samizdat12

102
SAMIZDAT 12 Mark Twain a ficção de um dos maiores autores norte-americanos www.samizdat-pt.blogspot.com janeiro 2009 ficina

Upload: henry-alfred-bugalho

Post on 08-Jun-2015

580 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

MENSAGEM DE ANIVERSÁRIO, Henry Alfred BugalhoPor que Samizdat?, Henry Alfred BugalhoENTREVISTASacolinhaMICROCONTOSHenry Alfred BugalhoJosé Espírito SantoVolmar Camargo JuniorGuilherme RodriguesCarlos Alberto BarrosRECOMENDAÇÕES DE LEITURAO fim de todas as utopias: um mundo nada admirável, Henry Alfred BugalhoA Estrada, de Cormac McCarthy, Carlos Alberto BarrosAUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESAA Dama do Lotação, Nelson RodriguesCONTOSVai entender cabeça de chefe, Carlos Alberto BarrosO Soldado e a toupeira, Volmar Camargo JuniorA Criatura, Henry Alfred BugalhoAno Novo - Vida Nova, Joaquim BispoConto de Natal, Maria de Fátima SantosO Funeral de meu avô, Maria de Fátima SantosO Horizonte, Guilherme RodriguesAs Bases da Criação, José Espírito SantoUnha, Zulmar LopesGênesis, Pedro FariaHárpias - a Dipusta das Fúrias, Giselle Natsu SatoOs deliciosos biscoitos de Oma Guerta, Maristela Scheuer DevesAutor ConvidadoA Escada, Lucas Riello de AlmeidaPoemetos, Renato Wegner de SouzaTRADUÇÃOAs Cinco Dádivas da Vida, Mark TwainA História do Inválido, Mark TwainLa Esencia de las horas, Volmar Camargo JuniorAutobiografia, Enrique Gutiérrez MirandaTEORIA LITERÁRIAManifesto Urbanicista, Volmar Camargo JuniorA Linguagem do dia-a-dia na Literatura, Henry Alfred BugalhoCRÔNICAAo Sr. Schopenhauer, Caio RudáDialética do Jeitinho Brasileiro, Henry Alfred BugalhoLitoral e Capital, Pedro FariaA Desinformação Pública, Joaquim BispoA Importância do Prepúcio, Joaquim BispoMitos, Mitos, Mitos, Joaquim BispoPOESIALaboratório Poético - Do Caroço de um Hora (A Essência das Horas), Volmar Camargo JuniorPoesias, Carlos Alberto BarrosSonetos, Marcia SzajnbokPlagicAMORniano, Dênis MouraSOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT

TRANSCRIPT

Page 1: SAMIZDAT12

SAMIZDAT

12

Mark Twaina ficção de um dos maiores autores norte-americanos

www.samizdat-pt.blogspot.com

janeiro2009

ficina

Page 2: SAMIZDAT12

Edição, Capa e Diagramação:

Henry Alfred Bugalho

Autores

Caio Rudá

Carlos Alberto Barros

Dênis Moura

Giselle Natsu Sato

Guilherme Rodrigues

Henry Alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

Marcia Szajnbok

Maria de Fátima Santos

Maristela Scheuer Deves

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

Zulmar Lopes

Autores Convidados

Lucas Riello de Almeida

Renato Wegner de Souza

Textos de:

Enrique Gutiérrez Miranda

Mark Twain

Nelson Rodrigues

Imagem da capa:Wikipedia Commons

www.samizdat-pt.blogspot.com

SAMIZDAT 12janeiro de 2009

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público ou royalty free.

As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira responsabilidades de seus autores ou tradutores.

Editorial

Um ano de SAMIZDAT!Certamente que nós temos muito a comemorar. Nesta

época virtual, quando tudo é tão efêmero e desaparece tão rápido quanto surge, uma revista como a SAMIZDAT perdu-rar por tanto tempo é uma vitória.

Nestes doze meses, muita água passou por debaixo desta ponte, autores canônicos ou desconhecidos, contos, poemas, crônicas, resenhas, entrevistas, escritores lusófonos ou não.

Reunimos o que há de melhor no mundo da Literatura, e o que há de novo, ou de inusitado.

Há uma citação do escritor e cineasta Jean Cocteau que define bem o espírito da Revista SAMIZDAT:

“Não sabendo que era impossível, foi lá e fez.”

E realmente acredito que nenhum de nós sabia que era impossível.

Henry Alfred Bugalho

Page 3: SAMIZDAT12

SumárioMENSAGEM DE ANIVERSÁRIO 6

Henry Alfred Bugalho

POR quE SAMIzDAt? 8Henry Alfred Bugalho

ENtREVIStASacolinha 10

MICROCONtOSHenry Alfred Bugalho 14José Espírito Santo 14Volmar Camargo Junior 15Guilherme Rodrigues 16Carlos Alberto Barros 17

RECOMENDAÇÕES DE LEItuRAO fim de todas as utopias: um mundo nada admirável 18

Henry Alfred Bugalho

A Estrada, de Cormac McCarthy 21Carlos Alberto Barros

AutOR EM LÍNGuA PORtuGuESAA Dama do Lotação 22

Nelson Rodrigues

CONtOSVai entender cabeça de chefe 28

Carlos Alberto Barros

O Soldado e a toupeira 30Volmar Camargo Junior

Page 4: SAMIZDAT12

A Criatura 34Henry Alfred Bugalho

Ano Novo - Vida Nova 36Joaquim Bispo

Conto de Natal 39Maria de Fátima Santos

O Funeral de meu avô 40Maria de Fátima Santos

O Horizonte 44Guilherme Rodrigues

As Bases da Criação 46José Espírito Santo

Unha 49Zulmar Lopes

Gênesis 50Pedro Faria

Hárpias - a Dipusta das Fúrias 52Giselle Natsu Sato

Os deliciosos biscoitos de Oma Guerta 57Maristela Scheuer Deves

AutOR CONVIDADOA Escada 60

Lucas Riello de AlmeidaPoemetos 60

Renato Wegner de Souza

tRADuÇÃOAs Cinco Dádivas da Vida 64

Mark TwainA História do Inválido 66

Mark TwainLa Esencia de las horas 72

Volmar Camargo JuniorAutobiografia 74

Enrique Gutiérrez Miranda

tEORIA LItERÁRIAManifesto Urbanicista 76

Volmar Camargo Junior

Page 5: SAMIZDAT12

Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista. Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.

Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-dado.

Escreva-nos para:[email protected]

SEÇÃO DO LEITOR

A Linguagem do dia-a-dia na Literatura 78Henry Alfred Bugalho

CRÔNICAAo Sr. Schopenhauer 82

Caio Rudá

Dialética do Jeitinho Brasileiro 86Henry Alfred Bugalho

Litoral e Capital 88Pedro Faria

A Desinformação Pública 90Joaquim Bispo

A Importância do Prepúcio 91Joaquim Bispo

Mitos, Mitos, Mitos 92Joaquim Bispo

POESIALaboratório Poético - Do Caroço de um Hora (A Essência das Horas) 94

Volmar Camargo Junior

Poesias 95Carlos Alberto Barros

Sonetos 96Marcia Szajnbok

PlagicAMORniano 98Dênis Moura

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 99

Page 6: SAMIZDAT12

66 SAMIZDAT dezembro de 2008

Mensagem de Aniversário

SAMIZDAT comemoraum ano de existência

Henry Alfred Bugalho

Page 7: SAMIZDAT12

7www.samizdat-pt.blogspot.com

Quando o blog da Revista SAMIZDAT foi ao ar, no dia 31 de dezembro de 2007, não tínhamos muita idéia do que estava por vir.

Reunir um grupo coeso de escritores, capaz de produzir Literatura de qualidade e de trocar experiências sempre havia sido um objetivo meu, desde quando comecei a es-crever e participar de ofici-nas literárias em Curitiba.

Mas os escritores de hoje são bichos arredios, com egos sensíveis e que geral-mente preferem o isolamen-to, onde podem divagar sobre a própria genialidade, do que se embrenhar na complicada dinâmica dos relacionamen-tos sociais.

Relacionar-se com outros escritores, seja pessoal ou virtualmente, é correr o risco de se transformar, de desco-brir nossos próprios limites, nossas dificuldades, nossos erros; é correr o risco de se descaracterizar, mas também é a oportunidade para um crescimento literário inesti-mável.

Não é à toa que vários es-critores pretéritos buscaram em seus pares apoio para a árdua carreira das Letras. Grupos, movimentos, revistas, círculos, estes eram ambien-tes seguros para escritores sequiosos por novos hori-zontes. Esta troca os permi-tiu crescerem, lapitarem o diamante bruto da escrita.

Foi através de revis-tas, como a “Orpheu”, que Fernando Pessoa e alguns de seus heterônimos surgiram para o mundo. Também foi em revistas que Jorges Luis Borges, Dalton Trevisan, Isaac Asimov, Raymond Carver, James Joyce, e vários outros autores se tornaram conhe-cidos.

A revista literária, ou al-guma publicação periódica, é uma vitrine para o autor, uma centelha de visibilida-de. Algumas revistas duram poucos meses, outras perdu-ram; algumas são lembradas, outras esquecidas; como tudo no mundo da Arte.

Que a Revista SAMIZDAT esteja completando um ano de existência é algo que me surpreende, se pensarmos que tudo se originou a partir dum blog e dum primeiro fascículo mal diagramado.

Tive de aprender muito para tornar a SAMIZDAT vi-sualmente atrativa. Mas nós, enquanto escritores, também estamos aprendendo sempre como tornar nossas obras li-terariamente atrativas. É uma luta diária, que está ocor-rendo no silêncio de nossas casas, ou diluída por entre o mundo etéreo da internet.

Esta revista é um sonho coletivo tornado real, mas é também uma das vitórias desta nossa luta diária.

Parabéns para nós!

http://www.flickr.com/photos/tym/247265947/sizes/o/

Page 8: SAMIZDAT12

88 SAMIZDAT dezembro de 2008

Inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâmica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus prin-cípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão é muito eviden-te, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no cami-nho dos dirigentes é afastado e ostracizado.

As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigoso, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabe-lecido. Por isto, é necessário suprirmir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferente de de-mais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de governo humanitária, igualitária, mas logo

se converte em uma ditadu-ra como qualquer outra. É a microfísica do poder.

Em reação, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que não que-riam, ou não conseguiram, fazer parte da máquina administrativa - que esti-pulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo -, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão.

Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas idéias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa do que "autopublicado", em oposição às publicações oficiais do regime soviético.

Por que Samizdat?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exenplo dum samizdat. Corte-sia do Gulag Museum em Perm-36.

Page 9: SAMIZDAT12

9www.samizdat-pt.blogspot.com

E por que Samizdat?

A indústria cultural - e o mercado literário faz parte dela - também realiza um processo de exclusão, base-ado no que se julga não ter valor mercadológico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-se que contos, poemas, autores desconhecidos não podem ser comercializados, que não vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

A indústria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. Não basta qualidade, não basta competência; se houver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridades na hora de ser absorvido pelo mercado.

E a autopublicação, como em qualquer regime exclu-dente, torna-se a via para produtores culturais atingi-rem o público.

Este é um processo soli-tário e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. Não há grandes apa-ratos midiáticos - como TV,

revistas, jornais - onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.

Enquanto que este é um trabalho difícil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele é dono de sua pala-vra, é o responsável pelo que diz, o culpado por seus erros, é quem recebe os louros por seus acertos.

E, com a internet, os au-tores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercussão do que escreve (quando há) surge em ques-tão de minutos.

Ao serem obrigados a bur-larem a indústria cultural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores, o diálogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de conta-tos que, se não é tão influen-te quanto a da grande mídia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que lê. Não há sucesso, não há gran-

des tiragens que substitua o prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, que não estão atrás de grandes autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pós- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definição que vise rotular e definir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sofisticarem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneidade.

Enfim, “Samizdat” porque a internet é um meio de auto-publicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônica mensal, escrita, editada e publicada pelos integrantes da Oficina de Escritores e Teoria Literária. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profis-sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

www.samizdat-pt.blogspot.com

Page 10: SAMIZDAT12

1010 SAMIZDAT dezembro de 2008

Entrevista

SACOLINHAAdemiro Alves de Sousa,

conhecido como Sacolinha, é um dos destaques da literatura brasileira contemporânea. Autor de dois livros: “Graduado em Marginalidade” e “85 letras e um disparo”, participou, ainda, de diversas publicações: revista “Caros Amigos”, antologia “No limite da palavra” da editora Scortecci, antologias “Cadernos Negros”, entre outras. Ganhador de alguns prêmios literários, é também o fundador da Asso-ciação Cultural Literatura no Brasil e é responsável pela Coor-denadoria Literária da Secre-taria de Cultura do município de Suzano, em São Paulo. Com muita prestatividade, o escritor nos concedeu esta entrevista.

SAMIZDAT: O fato de você ser um autor que surgiu na periferia foi um obstáculo ou um chama-riz para sua carreira?

Sacolinha: Nem um e nem outro. O autor pode surgir de qualquer lugar, mas se ele não tiver uma boa escri-ta, persistência e articula-ção, ele não chega e nem se mantém em lugar nenhum. As editoras não estão nem aí de onde vem o escritor, elas querem saber se ele é conhecido e se o livro é vendável. Vejam o caso da

Bruna Surfistinha e alguns Big Brohter’s. Lançaram seus livros que venderam horro-res, mas depois do segundo título eles deram com os burros n’água, e não conse-guiram se manter.Talvez o fator geográfico tenha contribuído um pou-co para minha carreira, já que ser morador da perife-ria hoje em dia é estar na moda, todo mundo quer ser, graças aos seriados, às novelas e filmes.

10 SAMIZDAT dezembro de 2008

Page 11: SAMIZDAT12

11www.samizdat-pt.blogspot.com

Qual é a importância da consciência política e social na sua escrita? A Literatura e a cultura em geral devem assumir este compromisso? Escrever é fazer diferença?

Sacolinha: Literatura abran-ge muita coisa, entre elas a geografia, filosofia, história e a ciência. Um livro como Grande Sertão: Veredas do Guimarães Rosa tem tudo isso e muito mais. Olhem o escritor português José Saramago, se ele não tives-se consciência política e social, seus livros não se-riam conhecidos no mundo inteiro. Eu sempre achei que escritor tem que saber de tudo um pouco, inclusi-ve ser engajado em algum movimento social como o Saramago por exemplo. Não dá pra ficar encerrado num gabinete e inventando histórias ou esperar a noite chegar para ver a lua e ter inspiração.A literatura só não pode ser engajada demais, porque aí vira documentário, e o pa-pel da literatura não é esse.

Em alguns textos seus ou a seu respeito – há uma entrevista genial que você deu a um jornalzinho es-tudantil! – você usa os ter-mos “revolta” e “vingança”, em relação à sua litera-tura. Há alguns anos, não muitos, dizer abertamente, ou veladamente, traduzin-do isso em metáforas, era motivo para os artistas “desaparecerem”, levarem porrada ou, na melhor das hipóteses, serem exilados do Brasil. Como você sen-te a liberdade de poder “se revoltar” e “se vingar” através da literatura?

Sacolinha: No meu caso essa revolta e essa vingan-ça refere-se mais ao meu interior do que exterior. Quero me vingar dos atos e fatos do cotidiano, quero trancafiar ou acabar com meus demônios, me vingar dos pensamentos e desejos ruins. Tenho a literatu-ra como uma válvula de escape, eu escrevo não por hobby ou status, mas por-que preciso me extravasar.

A pergunta pode parecer capciosa, mas não é: se você fosse político e esti-vesse no poder (não como funcionário, mas tendo sido eleito), pelo que você lutaria?

Sacolinha: Por políticas públicas para a cultura para todos aqueles artistas formados pela vida. Que-ro dizer que têm muitos artistas (popular, clássico e erudito) que não sentaram na cadeira da universidade e desenvolvem um puta trabalho, seja na capoeira, no maracatu, no teatro, na música, no cinema, literatu-ra e nas artes plásticas.Agora tem um monte de acadêmicos por aí metidos a artistas e sequer pisou no barro, sequer fez um tra-balho fora do seu ambien-te. Muitos até já têm seu padrinho desde pequeno e hoje fazem eventos com a nossa grana (Petrobras, Lei Rouanet, etc.) e ainda co-bram ingresso.Lutaria por essa inversão, contribuindo para que os artistas menos favorecidos tivessem acesso às leis de incentivo à cultura. E com isso eu estaria lutando pelo direito à vida, porque

acredito que o cidadão que tem acesso à cultura ou desenvolve alguma arte, ele enxerga melhor, não morre de fome, tem saúde e sabe resolver situações proble-mas.

Há um site que diz que seu romance “Graduado em Marginalidade” tem trezentas e onze perso-nagens. Isso é exagero de notícia ou é fato? Você acha possível dar ao leitor tantas verdadeiras e iden-tificáveis personagens, num romance com menos de duzentas páginas?

Sacolinha: É verdade, tem sim. Mas não pensem que todas elas são protagonistas em primeiro plano. Não sou marxista, mas gosto de dar voz aos que não tem voz. Se vocês forem ler o “85 Letras e um Disparo” verão que a maioria dos contos tem personagens inferiorizados pela sociedade que são mui-to mais do que ela imagina; é uma prostituta que lê Allan Poe, um mendigo que faz dissertações, um ladrão mais instruído que qualquer presidente, e assim vai.

Muitos de seus textos são escritos com lingua-gem próxima da fala do cotidiano. O trecho “Se eles não tivessem naquela esquina, aquele dia, aque-la hora...” demonstra bem isso. Você acredita que o escritor deve se expri-mir como o homem da rua para melhor se fazer entender?

Sacolinha: Nunca acre-ditei nisso, acredito que o escritor deve escrever sem

11www.samizdat-pt.blogspot.com

Page 12: SAMIZDAT12

1212 SAMIZDAT dezembro de 200812

maquiagens. Usar os seus conhecimentos e sua estru-tura lingüística, somente isso. O escritor que fica procurando meios ou que escreve pensando na recep-ção do leitor, pra mim não vale nada.

Qual é o limite entre re-alidade e ficção em suas obras?

Sacolinha: Só escrevo rea-lidade quando faço crôni-cas, de resto é tudo ficção, mesmo baseando-me na realidade.

O público brasileiro parece possuir um fascí-nio por filmes, seriados e livros que retratam a vida na periferia. Para você, a que se deve este fenôme-no?

Sacolinha: Conforme já fa-lei, a periferia está na moda há muito tempo. Antes era o Gil Gomes, Afanázio Jaza-dige, Ratinho e o demagogo do Datena que levavam a gente pra tela, mas de uma forma a mostrar somente o lado ruim. Agora são outras pessoas e outros meios e formas de mostrar a vida na periferia, mas ainda assim é de uma forma pejorativa. O que mudou é que descobriram que nesses lugares têm muita gente boa, em tudo. Por isso é que Cidade de Deus, Antô-nia, Tropa de Elite e outros foram protagonizados por gente que é da periferia, ao contrário disso, esses pro-dutos não teriam feito tanto sucesso.

Discutíamos, na comu-

nidade dos colaborado-res da SAMIZDAT, que os escritores costumam escolher um tema, ou uns poucos temas, e de-bruçam-se neles por um bom tempo – e isso pode mesmo ser inconsciente. Há um tema comum no que você escreve?

Sacolinha: Não. O meu primeiro livro “Graduado em Marginalidade” é pura violência, já o segundo “85 Letras e um Disparo” é mais cômico e suave e versa sobre vários temas de nossa sociedade. Estou com mais dois livros prontos para serem lançados: “Peripécias de Minha Infância” é um romance infanto-juvenil que trabalha com a cria-tividade e “O homem que não mexia com a Natureza” é um livro que aborda a temática do meio ambiente. Tem um outro livro que vou começar a escrever que vai falar da questão política. Estou escrevendo um livro didático sobre leitura.Escrevo conforme vai tocan-do a minha cabeça. Não me apego aos temas.

Existem discussões sobre letras de músicas serem ou não poesia. Por exem-plo, letras do Chico Bu-arque, quando lidas, são verdadeiros poemas, mas ainda têm um fundamen-to – e certa interdepen-dência – com o ritmo mu-sical (Cálice é uma delas). E o rap, é um ritmo que tem uma letra, ou uma forma de poesia, acompa-nhada de um ritmo? Você que escreve ou escreveu rap, o que acha: é poesia, música, ou algo além?

Sacolinha: Sempre gostei de ler as músicas. Presto mais atenção na letra do que no ritmo, e pra mim, música sempre foi poesia, principalmente o rap que transforma coisas ruins em melodias, transformam o sangue e a violência em poesia. Sem contar que tem seu jeito próprio de cantar, sua forma de dizer “zói” ao invés de “olhos”, e falar coisas que só mesmo quem é do meio entende, quem não é, tem que levantar hipóteses e interpretar. Isso eu acho o máximo, porque fizeram dessa maneira com os pobres a mais de sécu-los, desde a missa rezada em latim nos tempos dos sermões do Padre Vieira, passando pela escravidão e chegando até os dias de hoje nos termos da lin-guagem técnica, onde um cidadão não consegue nem entender o artigo que está sendo condenado.

Num texto seu, Crônica de um jovem salvo pela literatura, há um trecho valioso: “Precisava fazer alguma coisa para me extravasar: eu partia para o lado da pólvora (crime) ou para o lado do açú-car (cultura). Optei pelo açúcar, que às vezes é um pouco amargo.” Entre essas amarguras, o que foi mais amargo depois dessa escolha?

Sacolinha: Ouvir milhares de “não”, desde as respostas das editoras até as respostas das pessoas que eu abor-dava nos bares e teatros de Pinheiros e Vila Madalena quando vendia livros nas ruas.Eu pensava: optei pela

SAMIZDAT dezembro de 2008

Page 13: SAMIZDAT12

13www.samizdat-pt.blogspot.com

Coordenadora da entrevista:Carlos Alberto Barros

Perguntas feitas por:Volmar Camargo JuniorJoaquim BispoHenry Alfred Bugalho

13www.samizdat-pt.blogspot.com

cultura que é uma ativida-de legalmente correta, mas ninguém me dá estrutura. Me enforco de prestações para publicar um livro e quando saio para vender ninguém quer dar atenção, alguns até seguram suas bolsas.Isso é amargura, você ter a idéia, colocar no papel sofregamente, diagramar, revisar, publicar com seu próprio dinheiro, divulgar e vender, ser o próprio editor e livreiro.

Alguns de nós adoraría-mos ter uma coordena-doria de literatura dentro das secretarias de cultura de nossos municípios. Em seu blog, num comentário sobre sua agenda semanal, nota-se que você é muito ocupado e tem grandes responsabilidades como coordenador de litera-tura da cidade de Suza-no. Como funciona uma coordenadoria desse tipo? Como é o seu trabalho?

Sacolinha: Minha função é mais externa do que inter-na, até porque numa sala a gente não produz nada. Então o negócio é estar na rua, sentir cheiro de gente e tomar sol na cabeça. Como Coordenador Literário te-nho que desenvolver proje-tos de incentivo à leitura e de promoção aos escritores. Nada difícil pra quem gosta do que faz. Mas tem que pensar em tudo, inclusive na pré-produção, produção e pós-produção.Já publiquei 132 autores, trouxe escritores como Ariano Suassuna, Marce-lo Rubens Paiva, Moacir Sclyar, Loyola Brandão, entre

outros. Promovi 4 concur-sos literários, dezenas de oficinas e projetos para incentivar crianças, jovens e adultos a lerem. E falta de verba tem, a diferença é que eu corro atrás de tudo quanto é empresa e vivo batendo na porta do Gover-no Federal atrás de grana para o desenvolvimento dos projetos. O que falta muito por aí, em Suzano tem de sobra: vontade política.

Há uma tendência (do mercado editorial, da História da Literatura, das universidades, dos críti-cos... não se sabe ao certo de quem...) de encarcerar os livros em gêneros. Por isso, às vezes, há coisas como Literatura Esotérica, Literatura Espírita, Lite-ratura Erótica, Literatura Gay, como que direcio-nando o que é produzido para “nichos” de leitores. A segunda edição de seu livro “85 letras e um disparo” foi inclusa numa série chamada “Literatura Periférica”.

O que é essa literatura? Essa denominação vem de onde? De quem produz ou de quem publica?

Sacolinha: No caso da Literatura Periférica, esse foi um título dado pelos próprios autores, como uma forma de pertencimento, de geografia. Creio que direcionar a literatura por temas, não é algo de ruim, mas uma forma de iden-tificar o tipo de literatura, como literatura estrangeira, indígena, auto-ajuda, etc. Eu mesmo nunca aceitei rótu-los, o que faço é somente literatura. Não sei quem está apto a tematizar o que

eu escrevo.

O que é a Literatura no Brasil?

Sacolinha: A Associação Cultural Literatura no Brasil é uma entidade que fundei em dezembro de 2002 com dois objetivos: incentivar a leitura e divulgar os escrito-res independentes. Essa enti-dade tem hoje vários proje-tos, muitos até em parceria com prefeituras, Petrobras e a Fundação Itaú Social.

Não queríamos perguntar, mas não tem como fu-gir disso: de onde veio o nome “Sacolinha”?

Sacolinha: Essa é uma história longa, outro dia com mais calma eu expli-co. Quem quiser pode ir lá no meu blog que tem tudo explicadinho: www.sacola-graduado.blogspot.com

A esquipe da SAMIZDAT agredece sua participação. Muito sucesso em seus projetos!

Page 14: SAMIZDAT12

1414 SAMIZDAT dezembro de 2008

Microcontos

A quedaJosé Espírito Santo

O animal caiu a um poço. Ao querer salvá-la, os sábios e os teólogos esbarraram na ambiguidade... Quem resgatariam? A zebra branca com riscas pretas ou a zebra preta com riscas brancas?

As boas-novasHenry Alfred Bugalho

É engraçado como a vida dá voltas.

Como aqueles testemunhas de jeová, aqueles crentes, ca-rismáticos que batiam à minha porta no domingo de manhã, tentando me converter, me irritavam!

Não tenho hábito de dormir cedo, por isto, alguém tocan-do o interfone ou a campainha de casa às 9 da matina, era pedir pra acabar com meu dia. Não havia bom humor que resistisse.

- Oi, irmão, viemos lhe falar de Jesus, diziam eles.

- Eu quero que vocês e o seu Jesus se fodam, respondia eu, batendo a porta na cara deles.

E isto era todo domingo, todo maldito final-de-semana.

Mês passado, meu filho foi assassinado, violentado e esquartejado por um maníaco. Pensei em me matar, minha esposa, devastada. Um amigo nosso nos convenceu a irmos até sua igreja e fomos acolhidos.

Hoje, domingo de manhã, sai com outros irmãos para es-palhar as boas-novas. Numa das casas, alguém saiu, nervoso:

- Vão se foder! Eu quero dormir! - e bateu a porta em nossa cara.

- Vai se foder você, seu incréu! Que Deus amaldiçoe você e todos seus descendentes! - retruquei.

Virei crente, mas também não tenho sangue de barata.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/gr

eg_r

obbi

ns/46

1308

192/

size

s/o/

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

fore

vers

ouls

/261

5880

31/siz

es/l/

Page 15: SAMIZDAT12

15www.samizdat-pt.blogspot.com

CorriqueirismosUm pra duas

Volmar Camargo Junior

- Ô moço! Vê pra nós um pastel e um chiclé.

- Tá aqui. Dois reais e quinze.

- Descontinho de cinco centavos?

- Pode ser.

- Vê mais um guardanapo.

- Bah, aí eu fico no prejuízo, guria.

- Tá bom, tá bom... mas cortar no meio, será que dá?

A CordinhaVolmar Camargo Junior

- Sabe de que eu tenho nojo? Dessa cordi-nha do saquinho de chá.

- O que tem de mais nela?

- Não sei. Mas vai dizer que não parece com uma lombriga na sua xícara?traição

Volmar Camargo Junior

- Amor, sabe aquela espinha que me saiu na nuca.

- Qual? Aquela que eu to namorando desde anteontem?

- Essa mesma. Se eu te contar que outra pessoa estourou, você vai ficar muito bra-va?

O próprioVolmar Camargo Junior

- Alô. É da casa do Silva?

- Boa tarde, é o próprio.

- Boa tarde, Seu Próprio. O Silva está?

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/gr

eg_r

obbi

ns/46

1308

192/

size

s/o/

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

mel

tole

do/2

5696

0814

6/si

zes/o/

Page 16: SAMIZDAT12

1616 SAMIZDAT dezembro de 2008

Microcontos

EnsinamentosGuilherme Rodrigues

Pare de falar. Veja.

O silêncio explica tudo e se explica.

Limpe a folhigem que ofusca sua visão. Se a limpeza não for suficiente, quebre o muro.

A vida é curta, mas tenho todo o tempo para fazer o que gosto.

Repare.

Amor.

Uma coisa de cada vez.

Começou. Termine.

Pare. Respire. Continue.

Dinheiro e sucesso são resultados do suor.

Excessos são necessários, para poder desprezá-los.

Deus. Deve existir.

A obra de arte não é para ser analisada. É para ser admi-rada.

Livre-se de teorias. Aprecie.

Machado de Assis, Guimarães Rosa, Camões, Fernando Pessoa, Goethe, Karl Marx, Nietzsche, Freud, Schopenhauer, Hitler, Lenin, Stalin, Che Guevara, Beethoven, Bach, Mozart, Chopin etc etc etc. Você é melhor do que todos eles.

Escreva.

Por quê?

Guarde umas horinhas somente para si.

Um e outraVolmar Camargo Junior

Tereza chamava-se Marco Antônio. Em casa, lavava, passava, cozinhava, tomava um banho demorado, e espe-rava, sem roupa, o amor de sua vida. À meia-noite, quando o amor chegava, durante uma xícara de chá, escolhiam se no quarto seria Marco Antônio ou seria Tereza.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

pinks

plee

n/2

2054

8134

5/si

zes/o/

http://www.flickr.com/photos/digidragon/2156526672/sizes/l/

Page 17: SAMIZDAT12

17www.samizdat-pt.blogspot.com

ConcentraçãoGuilherme Rodrigues

- Ei. Vamos ouvir o silêncio?

- Vamos.

Meia hora se passou.

- O silêncio é irritante.

- Sim. Mas sábio.

Algumas horas se passaram.

- Vamos brincar no parque?

- Vamos.

Abra-seGuilherme Rodrigues

Abra as portas e as janelas, deixe que novos ares entrem, veja a natureza, sinta o aroma de vida. Inspire.

PerdãoCarlos Alberto Barros

A lágrima escorreu-lhe até o bico do seio. Mas, foi ele chupar, que ela logo o perdoou.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

pinks

plee

n/2

2054

8134

5/si

zes/o/

http://www.flickr.com/photos/tonivc/2283676770/sizes/m/

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/au

ntie

p/31

7382

188/

size

s/l/

http://www.flickr.com/photos/zengzung/2346316847/sizes/o/

Page 18: SAMIZDAT12

1818 SAMIZDAT dezembro de 2008

Recomendações de Leitura

O fim de todas as utopias: um mundo nada admirável

Henry Alfred Bugalho

Page 19: SAMIZDAT12

19www.samizdat-pt.blogspot.com

Durante o Iluminismo, o ser humano se deslumbrou diante de sua própria capaci-dade intelectual. Gênios das artes, das ciências, da filoso-fia se proliferaram pela Euro-pa, confiantes de que, através do bom uso da racionalidade, um novo mundo poderia ser criado.

Este anseio por um mundo perfeito é antigo. Podemos rastreá-lo desde manuscri-tos religiosos pré-cristãos, primeiro situando-no num mundo anterior ao surgimen-to da Humanidade, ou em reinos após a morte, como o Jardim do Éden, o Nirvana, o Moksha do hinduísmo, ou a Nova Jerusalém. Platão situa uma civilização utópica no meio do oceano, representa-da pelo mito de Atlântida. Thomas Moore imortaliza o termo em sua obra “Utopia”, um ilha imaginária com um governo perfeito. Francis Bacon acreditava que a “Nova Atlântida” seria na América, também perfeita, regida por sábios cientistas.

No entanto, os avanços tecnológicos e como o ser humano os utilizou abriu margem para o oposto da utopia: as distopias, nas quais, ao invés de perfeição e harmonia, a sociedade se tornaria insuportavelmente sistemática, repressora, ou brutal.

Costuma-se dizer que não é possível acreditar em uto-pias no século XX, após duas

guerras mundiais, a bomba atômica, o holocausto. A bar-bárie aniquilou qualquer es-perança no futuro, qualquer sentimento de que a razão poderia nos levar à perfeição.

É neste contexto que surge “Admirável Mundo Novo”, do britânico Aldous Huxley. O romance foi escrito uma década antes da Segunda Grande Guerra, mas já possui um pessimismo tecnocrático que pretendia anteceder os extremos da racionalidade.

A trama se passa no fu-turo, numa sociedade estra-tificada a partir de manipu-lações genéticas. Existe uma pirâmide social e o grau de liberdade e autonomia de-pende de qual classe genética um indivíduo nasce. A divi-são de tempo é feita em dois momentos: trabalho e lazer. Como método de alienação, o trabalhador de cada fun-ção só possui conhecimento de suas especificidades, sem noção do todo; nos momen-tos de lazer, e também como forma de controle social, cada indivíduo recebe sua cota de “soma”, uma droga imbecilizante.

O protagonista de “Ad-mirável Mundo Novo” é Bernard Marx, um mem-bro do estrato mais alto. A referência de seu nome ao filósofo Karl Marx é evi-dente, assim como todos os demais personagens, todos eles vinculados à figuras proeminentes do capitalismo

e do socialismo. O mundo no qual Bernard Marx vive é um capitalismo socialista, se é que estes opostos podem ser reconciliados. Capitalista porque fundamenta-se sobre o princípio de produção em massa e, provavelmente, da mais-valia; socialista porque, por mais que haja estratos sociais, todos são iguais no interior de cada casta, inclu-sive, em alguns casos, geneti-camente idênticos.

O deus idolatrado neste futuro é o “Ford” (trocadi-lho com “Lord”, ou “Senhor [Deus]”) e remete-nos a Henry Ford, o criador do primei-ro automóvel fabricado em série.

Bernard possui um com-portamento anômalo; ao contrário dos demais indiví-duos de seu tempo, ele não está satisfeito, é oprimido por uma angústia que não conse-gue explicar.

Para se exibir para uma garota, ele a leva até uma re-serva selvagem, onde homens primitivos vivem uma vida rudimentar - provavelmente como nós vivemos hoje. Lá, ele encontra John “O Selva-gem”, que é filho duma mu-lher duns dos altos estratos sociais, mas que se perdeu na reserva muitos anos antes. Este encontro entre Bernard e John será a causa dum conflito interno muito maior para o protagonista, que vê num mundo primitivo uma alternativa para sua contem-

Page 20: SAMIZDAT12

2020 SAMIZDAT dezembro de 2008

poraneidade.

“Admirável Mundo Novo” é a obra mais conhecida e acolhida de Aldous Huxley, que sempre foi uma figura controversa - descendente duma ilustre família inglesa e defensor do uso de LSD -, no entanto, foi o romance mais fraco que li dele.

Só que serve de exemplo de que uma sociedade perfei-ta pode ser insuportável.

Admirável Mundo Novo

Autor: Aldous Huxley

Editora: Globo

Page 21: SAMIZDAT12

21www.samizdat-pt.blogspot.com

A EstradaAutor: Cormac McCarthyEditora: Editora Alfaguara/ ObjetivaPublicação: 2007

Caso tivesse que ser es-colhida uma cor para resu-mir o romance A Estrada, de Cormac McCarthy, ela seria cinza. O cinza paira em cada trecho da obra, seja de maneira literal ou meta-fórica. Noites escuras para além da escuridão e cada um dos dias mais cinzento do que o anterior – eis a segun-da frase do livro, que nos é oferecida como uma profe-cia anunciando o conteúdo perturbador de suas páginas. O cinza retratado é o das desesperanças, das tristezas da alma, mas que, por mais intenso que seja, ainda deixa espaço para um pequeno arco-íris multicolorido que é o impulso para continuar caminhando.

A história relata a traves-sia de um homem e seu filho por uma estrada devastada. Os dois são sobreviventes de

uma catástrofe que transfor-ma o mundo numa terra sem leis, onde manter-se vivo é a única regra. O homem acre-dita que no final da estrada, chegando ao litoral, encon-trará outros sobreviventes, e, juntos, poderão se ajudar na construção de um novo começo. Contudo, a jornada é muito mais árdua do que podia imaginar, e o que ele e seu filho encontram pelo caminho leva-os a se questio-narem: para que continuar a caminhada?

Os dois seguem empur-rando um carrinho de super-mercado com seus poucos pertences – alguns restos de alimentos, cobertores para se protegerem do inverno desolador e um revólver de segurança contra os nôma-des assassinos. O amor e cuidado um com o outro é a única coisa que os faz seguir adiante.

Vencedora do Prêmio

Pulitzer 2007, esta obra traz a emocionante histó-ria dessa jornada de pai e filho em busca de um fio de esperança. Para isso, o autor nos brinda com diálo-gos comoventes e silêncios que dizem muito. A forma como McCarthy escreve, de início, traz estranhamento e até certa monotonia, mas, no decorrer da narrativa, fica evidente a necessidade disso – é preciso detalhar as imagens, dizer que tudo é cinza, um mundo de cinzas que não se acaba. Também a ausência do uso de travessão, em certos pontos, dificulta na identificação dos diálogos entre pai e filho. Contudo, essa não identificação clara acaba reforçando a união dos dois, como dizendo que são um só.

Uma obra profunda, para se apreciar com paciência e alma aberta. Aos que se permitirem, será uma bela experiência de leitura.

A Estrada,de Cormac McCarthy

Carlos Alberto Barros

Recomendações de Leitura

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/za

ch_m

anch

este

r/29

0921

7061

/siz

es/l/

Page 22: SAMIZDAT12

2222 SAMIZDAT dezembro de 2008

Autor em Língua Portuguesa

A Dama do LotaçãoNelson Rodrigues

http

://br

.geo

cities

.com

/zos

trat

us18

/nilo

-pec

anha

-196

0.jp

g

Page 23: SAMIZDAT12

23www.samizdat-pt.blogspot.com

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:

— Você aqui? A essa hora?

E ele, desabando na pol-trona, com profundíssimo suspiro:

— Pois é, meu pai, pois é!

— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:

— Meu pai, desconfio de minha mulher.

Pânico do velho:

— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?

O filho riu, amargo:

— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.

Então, o velho, que ado-rava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:

— Brigo com você! Rom-po! Não te dou nem mais um tostão!

Patético, abrindo os bra-ços aos céus, trovejou:

— Imagine! Duvidar de Solange!

O filho já estava na por-ta, pronto para sair; disse ainda:

— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!

A SuSPEItA

Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de es-tátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, ad-vogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era “um amor” ; os mais entusiastas e ta-xativos afirmavam: “É um doce-de-coco”. Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguacei-ro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o As-sunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Car-

linhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, de-baixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a excla-mação interior: “Ora essa! Que graça!”. A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, pa-recia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:

— Conta o que houve, direitinho!

O filho contou. Então o general fez um escândalo:

— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!

Foi um verdadeiro ser-mão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar con-descendeu em fazer confi-dências:

— Meu filho, esse negó-cio de ciúme é uma calami-dade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!

http

://br

.geo

cities

.com

/zos

trat

us18

/nilo

-pec

anha

-196

0.jp

g

Page 24: SAMIZDAT12

2424 SAMIZDAT dezembro de 2008

A CERtEzA

Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidente-mente. Mas de qualquer maneira ele estava “certo”. Três dias depois, há o en-contro acidental com o As-sunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:

— Ontem viajei no lota-ção com tua mulher.

Mentiu sem motivo:

— Ela me disse.

Em casa, depois do beijo na face, perguntou:

— Tens visto o Assunção?

E ela, passando verniz nas unhas:

— Nunca mais.

— Nem ontem?

— Nem ontem. E por que ontem?

— Nada,

Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revól-ver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infideli-dade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desne-cessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:

— Vem cá um instanti-nho, Solange.

— Vou já, meu filho.

Berrou:

— Agora!

Solange, espantada, aten-deu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revól-ver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:

— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:

— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!

Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Men-tiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apa-nhando o revolver, comple-tou:

— Vou matar esse ca-chorro do Assunção! Aca-bar com a raça dele!

A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:

— Não, ele não!

Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:

— Ele não foi o único! Há outros!

A DAMA DO LOtAÇÃO

Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casa-mento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o pri-meiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Po-dia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adian-te. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pâni-ca:

— Um mecânico?

Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:

— Sim.

Mecânico e desconheci-do: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: “Eu desço contigo”. O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e gran-fa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de parti-da para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestí-gios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?

Page 25: SAMIZDAT12

25

Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: “Basta! Chega!”. Em voz alta, fez o exagero melancólico:

— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!

O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cida-de, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora mar-cada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intac-ta, imaculada. Como e pos-sível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada! Não tenho culpa!”. E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se en-tregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — “Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!”. Empurrou-a com um pala-vrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:

— Morri para o mundo.

O DEFuNtO

Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés;

entrelaçou as mãos, na al-tura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos este-ve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:

— O jantar está na mesa.

Ele, sem se mexer, res-pondeu:

— Pela ultima vez: morri. Estou morto.

A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a mor-te do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.

O texto acima, extraído do livro “A vida como ela é...”, Companhia das Letras - São Paulo, 1992, pág. 219, é um de seus mais famosos contos, tendo sido tendo sido adap-tado para o cinema com grande sucesso.

Fonte: http://www.releituras.com/nelsonr_dama.asp

Um detetive...

Uma loira gostosa...

Um assassinato...

E o pau comendo entre as máfias italiana e chinesa.

O COvildos

inOCenteswww.covildosinocentes.blogspot.com

downloadgrátis

Page 26: SAMIZDAT12

2626 SAMIZDAT dezembro de 2008

Nélson Falcão Rodrigues (Recife, 23 de agosto de 1912 — Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1980) foi um importante dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro.

InfânciaNascido na capital pernambucana e quinto de quatorze irmãos, Nélson Rodrigues mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança, onde viveria por toda sua vida. Seu pai, o ex-deputado federal e jornalista Mário Rodrigues, perseguido poli-ticamente, resolveu estabelecer-se na então capital federal em julho de 1916, empregando-se no jornal Correio da Manhã, de propriedade de Edmundo Bittencourt.Segundo o próprio Nélson em suas Memórias, seu grande laboratório e inspiração foi a infância vivida na Zona Norte da cidade. Dos anos passados numa casa simples na rua Alegre, 135 (atual rua Almirante João Cândido Brasil), no bairro de Aldeia Campista, saíram para suas

crônicas e peças teatrais as situa-ções provocadas pela moral vigente na classe média dos primeiros anos do século XX e suas tensões morais e materiais.Sua infância foi marcada por este clima e pela personalidade do ga-roto Nélson. Retraído, era um leitor compulsivo de livros românticos do século XIX. Nesta época ocorreu também para Nélson a descoberta do futebol, uma paixão que con-servaria por toda a vida e que lhe marcaria o estilo literário.Na década de 1920, Mário Rodri-gues fundou o jornal A Manhã, após romper com Edmundo Bittencourt. Seria no jornal do pai que Nélson começaria sua carreira jornalística, na seção de polícia, com apenas treze anos de idade. Os relatos de crimes passionais e pactos de morte entre casais apaixonados incendia-vam a imaginação do adolescente romântico, que utilizaria muitas das histórias reais que cobria em suas crônicas futuras. Neste período a família Rodrigues conseguiria atin-

gir uma situação financeira confor-tável, mudando-se para o bairro de Copacabana, então um arrabalde luxuoso da orla carioca.Apesar da bonança, Mário Rodri-gues perderia o controle acionário de A Manhã para o sócio. Mas, em 1928, com o providencial auxílio financeiro do vice-presidente Fer-nando de Melo Viana, Mário fundou o diário Crítica.Como cronista esportivo, Nélson escreveu textos antológicos sobre o Fluminense Football Club, clube para o qual torcia fervorosamente. A maioria dos textos eram publica-dos no Jornal dos Sports. Junto com seu irmão, o jornalista Mário Filho, Nélson foi fundamental para que os Fla-Flu tivessem conquistado o prestígio que conquistaram e se tor-nassem grandes clássicos do futebol brasileiro. Nélson Rodrigues criou e evocava personagens fictícios como Gravatinha e Sobrenatural de Almeida para elaborar textos a res-peito dos acontecimentos esportivos relacionados ao clube do coração.

Autor em Língua Portuguesa

http

://og

lobo

.glo

bo.com

/fot

os/2

007/

08/1

5/15

_MH

G_S

JFH

RJE

K.jp

g

Page 27: SAMIZDAT12

27www.samizdat-pt.blogspot.com

Adolescência e juventudeNélson seguiu os seus irmãos Míl-ton, Mário Filho e Roberto inte-grando a redação do novo jornal. Ali continuou a escrever na página de polícia, enquanto Mário Filho cuidava dos esportes e Roberto, um talentoso desenhista, fazia as ilus-trações. Crítica era um sucesso de vendas, misturando uma cobertura política apaixonada com o relato sensacionalista de crimes. Mas o jornal existiria por pouco tempo. Em 26 de dezembro de 1929, a primeira página de Crítica trouxe o relato da separação do casal Sylvia Serafim e João Thibau, Jr. Ilustra-da por Roberto e assinada pelo repórter Orestes Barbosa, a matéria provocou uma tragédia. Sylvia, a esposa que se desquitara do marido e cujo nome fora exposto na repor-tagem invadiu a redação de Crítica e atirou em Roberto com uma arma comprada naquele dia. Nélson testemunhou o crime e a agonia do irmão, que morreu dias depois.Mário Rodrigues, deprimido com a perda do filho, faleceu poucos meses depois. Sylvia, apoiada pelas sufragistas e por boa parte da imprensa concorrente de Crítica, foi absolvida do crime. Finalmente, du-rante a Revolução de 30, a gráfica e a redação de Crítica são empastela-dos e o jornal deixa de existir. Sem seu chefe e sem fonte de sustento, a família Rodrigues mergulha em decadência financeira.Foram anos de fome e dificuldades para todos. Pouco afinados com novo regime, os Rodrigues demora-riam anos para se recuperarem dos prejuízos causados pela turba.Ajudado por Mário Filho, amigo de Roberto Marinho, Nélson passa a trabalhar no jornal O Globo, sem salário. Apenas em 1932 é que Nél-son seria efetivado como repórter no jornal. Pouco tempo depois, Nél-son descobriu-se tuberculoso. Para tratar-se, retira-se do Rio de Janei-ro e passa longas temporadas em um sanatório na cidade de Campos

do Jordão. Seu tratamento é custe-ado por Marinho, que conquistou a gratidão de Nélson pelo resto de sua vida. Recuperado, Nélson volta ao Rio e assume a seção cultural de O Globo, fazendo a crítica de ópera. Em 1940 casou-se com Elza Bretanha, sua colega de redação.A partir da década de 1940, Nélson divide-se entre o emprego em O Globo e a elaboração de peças teatrais. Em 1941 escreve A mulher sem pecado, que estreou sem suces-so. Pouco tempo depois assina a re-volucionária Vestido de noiva, peça dirigida por Zbigniew Ziembiński e que estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro com estrondoso sucesso.O teatrólogo Nélson Rodrigues seria o criador de uma sintaxe toda particular e inédita nos palcos brasileiros. Suas personagens trouxeram para a ribalta expressões tipicamente cariocas e gírias da época, como “batata!” e “você é cacete, mesmo!”. Vestido de noiva é considerada até hoje como o marco inicial do moderno teatro brasileiro.

MaturidadeEm 1945 abandona O Globo e passa a trabalhar nos Diários Associados. Em O Jornal, um dos veículos de propriedade de Assis Chateaubriand, começa a escrever seu primeiro folhetim, Meu destino é pecar, assinado pelo pseudô-nimo “Susana Flag”. O sucesso do folhetim alavancou as vendas de O Jornal e estimulou Nélson a escrever sua terceira peça, Álbum de família.Em fevereiro de 1946, o texto da peça foi submetido à Censura Fede-ral e proibido. Álbum de família só seria liberada em 1965. Em abril de 1948 estreou Anjo negro, peça que possibilitou a Nélson adquirir uma casa no bairro do Andaraí e em 1949 Nélson lançou Dorotéia.Em 1950 passa a trabalhar no jornal de Samuel Wainer, a Última

Hora. No jornal, Nélson começa a escrever as crônicas de A vida como ela é, seu maior sucesso jornalís-tico. Na década seguinte, Nélson passa a trabalhar na recém-fundada TV Globo, participando da banca-da da Grande Resenha Esportiva Facit, a primeira “mesa-redonda” sobre futebol da televisão brasileira e, em 1967, passa a publicar suas Memórias no mesmo jornal Correio da Manhã onde seu pai trabalhou cinqüenta anos antes.

O fimNos anos 70, consagrado como jornalista e teatrólogo, a saúde de Nélson começa a decair, por causa de problemas gastroenteorológicos e cardíacos de que era portador. O período coincide com os anos da ditadura militar, que Nélson sempre apoiou. Entretanto, seu filho Nélson Rodrigues Filho torna-se guerri-lheiro e se passa para a clandestini-dade. Neste período também acon-teceu o fim de seu casamento com Elza e o início do relacionamento com Lúcia Cruz Lima, com quem teria uma filha, Daniela, nascida com problemas mentais. Depois do término do relacionamento com Lúcia, Nélson ainda manteria um rápido casamento com sua secretá-ria Helena Maria, antes de reatar seu casamento com Elza.Nélson faleceu numa manhã de domingo, em 1980, aos 68 anos de idade, de complicações cardíacas e respiratórias. Foi enterrado no Cemitério São João Batista, em Botafogo. No fim da tarde daquele mesmo dia ele faria treze pontos na Loteria Esportiva, num “bolão” com seu irmão Augusto e alguns amigos de “O Globo”. Dois meses depois, Elza atendia ao pedido do marido — de, ainda em vida, gravar o seu nome ao lado do dele na lápi-de de seu túmulo, sob a inscrição: “Unidos para além da vida e da morte. E é só”.

Fonte: Wikipédia

http

://og

lobo

.glo

bo.com

/fot

os/2

007/

08/1

5/15

_MH

G_S

JFH

RJE

K.jp

g

Page 28: SAMIZDAT12

2828 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Carlos Alberto Barros

Vai entender cabeça de chefeht

tp://

ww

w.fl

ickr

.com

/pho

tos/

foxt

ongu

e/88

5940

76/siz

es/o

/

Page 29: SAMIZDAT12

29

De todos os chefes que eu já tive, o Dr. Rael era o que mais me intrigava: apesar de me comer com os olhos, nunca, nunca disse uma única palavra sequer que insinuasse seus desejos.

Ele admirava meu decote de um jeito todo seu, numa mistura de mistério e fanatismo, com certo ar de pedinte, de fiel em êxtase pela reve-lação divina.

Acostumada com patrões que se utilizam de suas secretárias para tudo, tudo mesmo (se é que você me entende), eu estranhava que ele nunca houvesse tentado nem um assediozinho, uma piada sacana que fosse.

É bom deixar claro que nunca me incomodei com essas manias dos superiores. Bem da ver-dade é que sempre gostei. Sem contar as vantagens: sexo durante o traba-lho, regalias nas tarefas diárias, durabilidade no emprego, presentinhos, promoções... Mas, com o Dr. Rael era diferente. Ele não se deixava levar pela tentação e, apesar dos olhares, mantinha seu instinto enjaulado.

Não sei se por conta disso ou qualquer outra coisa, mas o fato é que o Dr. Rael parecia descon-tar tudo reclamando do meu serviço. Se eu era uma má secretária, por que não me mandava embora? Eu não conse-guia entender.

Certa vez, depois de mais um dia inteiro ou-vindo suas reclamações, explodi:

– Porra, doutor! Por que você não me come logo ao invés de ficar aí resmungando o dia todo? – e exibi meus peitos. – Não é isso que seus olhos tanto procuram?! Não vá me dizer que não, seu velho tarado!

Bem... ele me comeu e, no dia seguinte, eu estava no olho da rua. Fiquei indignada!

Vai entender cabeça de chefe...

Page 30: SAMIZDAT12

3030 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Volmar Camargo [email protected]

O soldado e a toupeira

Page 31: SAMIZDAT12

31www.samizdat-pt.blogspot.com

Há muito tempo acon-teceu uma guerra. E, nesse mesmo tempo, aconteceu uma história de amor como nenhuma outra.

Um jovem soldado foi aprisionado no campo de batalha. Enquanto seus captores decidiam o que fazer com ele, prenderam-no em um buraco no chão, tampado com uma grade feita de galhos e folhas. Os próprios companheiros do jovem encontraram o acampamento dos inimi-gos. Foi uma batalha cruel e sangrenta, onde ninguém sobreviveu. Por causa dis-so, nem seus aliados nem seus adversários sabiam que ele estava dentro daquele buraco. Dias se passaram sem que o solda-do visse alguma movimen-tação. Gritou por socorro muitas vezes, e ninguém o acudiu. Quando já esta-va ficando louco, ocorreu algo totalmente inusitado.

O soldado acordou de um sono estranho. Diante dele, havia três criaturas miúdas, muito semelhantes a toupeiras. Em uma das paredes havia uma cavida-de rente ao chão. As três toupeiras encararam-no e caminharam para aquela abertura. O estranho era que andavam em pé, como gente. O soldado não teve dúvidas e, engatinhando, acompanhou-as. Arrastou-se por um tempo enorme naquele túnel, ouvindo

sempre os passinhos leves e os grunhidos das toupei-ras que mais parecia uma conversa. Chegou a uma superfície de pedra, onde havia uma luz verde, am-pla o suficiente para ficar em pé. Não viu mais as toupeiras, mas ouvindo o som de seus passos, seguiu na mesma direção. Intriga-do com a situação inusita-da, pensou que aquilo não poderia ser mais que um sonho, ou um delírio fe-bril, ou então, que a morte finalmente o havia venci-do e estava caminhando rumo ao inferno. Só não sabia explicar para si mes-mo por que tudo parecia tão real.

Ao longo do corredor, percebeu que em certos pontos a luz era mais intensa que em outros. Notou também que a luz vinha de baixo para cima. Não custou muito a per-ceber minúsculos globos luminosos no chão. Abai-xou-se, e com o indicador e o polegar, tomou um de-les na mão. Riu-se quando viu que eram, na verdade, frutas pequeníssimas que tinham em seu interior uma luz como a dos vaga-lumes. O soldado foi-as coletando. Quando encheu a palma de uma das mãos, era como se carregasse consigo uma lanterna. Os passos e a conversinha das toupeiras cessaram. O cor-redor atrás de si tornou-se profundamente escuro, e

http://news.uns.purdue.edu/images/%2B2004/gibb-mole.jpg

Page 32: SAMIZDAT12

3232 SAMIZDAT dezembro de 2008

à sua frente, prosseguia iluminado a espaços re-gulares pelos misteriosos frutinhos. Quando chegou ao final do túnel, estava diante de uma imensa gruta, inundada por um lago subterrâneo. Ao redor de toda a borda do lago, desenhando todo o seu contorno, havia focos de luz maiores e mais vivos. Eram pequenas árvores, carregadas de frutinhas luminosas, brilhando não apenas em tom verde, mas também em todos os tons de amarelo e vermelho. Certamente, se era o in-ferno para onde o haviam trazido, pelo menos, era agradável aos olhos.

Seu deslumbramento foi quebrado quando ouviu o característico som de alguém nadando. A água estava agitada no meio do lago, mas não viu nin-guém. Ficou atento, até te-meroso, largando no chão as frutinhas luminosas que coletara, ocultando-se no corredor escuro. Assim, es-condido, viu do fundo do lado emergir uma mulher. Seus cabelos eram aver-melhados. A brancura de sua pele, iluminada pelas árvores ao redor do lago, tornaram sua nudez quase etérea, fazendo com que o soldado imaginasse estar vendo um anjo. Sorriu para ele deixando claro que o havia visto.

De onde estava, a mis-

teriosa mulher o chamou, pulando outra vez no lago. Inebriado pela estranhe-za daquele momento o soldado despiu-se e mer-gulhou também. Nadou em direção à mulher que, rindo, fugia dele. Pouco a pouco, deixou-o chegar mais perto. Quando conse-guiu alcançá-la, segurou-a pelo braço com firmeza. Sorriram. Então, dentro do lago, debaixo da terra, seus corpos se uniram. E assim foi por um longo tempo. Quando sentiam fome, comiam das fru-tinhas colhidas do pé. E eram tão saborosas que algumas vezes, ela precisa-va envolver o rapaz com seus encantos para fazê-lo parar de devorá-las. Como era impossível saber se era dia ou noite, o rapaz es-queceu-se do tempo. Tudo o que lhe interessava era o amor. Foi então que soube que não estava morto, e aquele lugar, posto não ser o céu, definitivamente, não era o inferno.

Depois do enlace, o moço conversava com sua amante. Ela, que apenas ria, era como uma muda, ou uma estrangeira que não compreendia seu companheiro, mas fazia o possível para ser-lhe sim-pática. Ele não se impor-tava, e até achava-a ainda mais atraente em sua ignorância. Contou a ela seu nome, o nome de sua família, algumas verdades

e algumas mentiras sobre si e suas batalhas glorio-sas.

O tempo passou, e o jovem militar sentiu que era a hora de partir. Con-tudo, desejou levar con-sigo sua amante, casar-se com ela e viver em uma casa confortável como um herói de guerra. Arquite-tou seu plano, agasalhou-a com sua camisa, encheu os bolsos das calças com frutinhas e, tomando a amante pela mão, pôs-se no caminho de volta pelo túnel pelo qual chegara até ali. Então, outra vez surpreendendo-o, à entra-da do corredor estavam as três toupeiras. Folgou em ver suas salvadoras, que o haviam tirado da prisão e conduzido até sua amada. Com um gesto agradecido, cumprimentou-as e deu um passo adiante. A mu-lher, entretanto, soltou-se de sua mão, ficando onde estava. Sem entender, o soldado chamou-a, estra-nhando o semblante sério, um pouco triste, muito diferente do sorriso franco de antes. Quando fez men-ção de voltar para tomar a mulher, as toupeiras inter-puseram-se entre os dois. Ouviu os grunhidos dos estranhos animaizinhos bípedes. Desta vez, porém, pareciam agressivos contra ele. Irritou-se, praguejou e quis avançar. Notou que seus próprios pés não se moviam do solo. Agarra-

Page 33: SAMIZDAT12

33www.samizdat-pt.blogspot.com

das às suas botinas havia mais um sem número de toupeiras. Espantado, olhou ao redor, e, como se hou-vessem surgido das pró-prias pedras, uma multi-dão delas, idênticas às três primeiras, cercavam-no e o mantinham afastado da mulher ruiva. Ela encara-va-o com olhos estranha-mente vagos, enquanto as toupeiras subiam-lhe pelas pernas. Em vão, ten-tou lutar contra elas. Em instantes o derrubaram e imobilizaram, como se houvessem fundido sua carne com a rocha.

A mulher aproximou-se. Agachou-se rente ao solo, e, uma última vez, sorriu. Nesse momento, a multidão de animaizinhos começou a se abrir, todos abaixando suas cabeças. Do meio deles, surgiu uma toupeira muito velha, carregando nas minúscu-las mãos uma guirlanda de frutinhas iluminadas e raízes. Com uma reverên-cia, entregou a guirlanda à amante do soldado. Ao pô-la no topo do fogaréu de seus cabelos, com voz doce e melodiosa a mulher proferiu claramente:

— Gaea sum!

No mesmo instante, seu corpo começou a dimi-nuir de tamanho, o belo rosto começou a mudar e a brancura de sua pele foi ficando vermelha como

suas madeixas, até ficar idêntica às outras toupei-ras. À diferença que, à cabeça, trazia o halo ilu-minado de sua guirlanda.

Caminhando do modo desengonçado que lhes era característico, a mulher transformada em rainha das toupeiras chegou-se ao ouvido do soldado.

— Ficai. Sede vós como eu e meus filhos. Sede vós o meu rei.

Jamais havia amado nin-guém como amou a mu-lher, que era também tou-peira. Não era um grande soldado, posto que fora capturado. E em hipótese alguma poderia tornar-se um rei entre os homens. Por outro lado, amava a luz do sol, a liberdade e o país que defendia em uma guerra quando, desa-fortunadamente, foi preso. Mesmo que não fosse um grande homem, sabia que nunca haveria de ser uma toupeira. Mesmo uma que andasse sobre duas patas, falasse e comesse frutinhas mágicas. Estava diante de um grande dilema.

Com grande esforço, perguntou à rainha das toupeiras.

— Vossa Majestade abandonaria vosso reino para ser minha esposa no

mundo de cima?

A rainha entendeu a intenção daquela pergun-ta. Com suas mãozinhas tocou o rosto do amante, que por muito pouco não se tornou seu consorte. Cochichou para ele algo que nenhum de seus súdi-tos ouviu:

— Não, mas adoraria tornar a ter convosco. Não vos esqueçais de meu nome. Dizei-o, e minha escolta trar-vos-á até mim.

O jovem adormeceu. Ao acordar, havia retornado à cela improvisada onde os inimigos de seu país o haviam jogado. Outros sol-dados, seus compatriotas, encontraram sua prisão e o libertaram. Não havia toupeiras bípedes, nem bu-racos na terra, nem fruti-nhas luminosas. Não havia sequer a certeza de que toda a sua aventura não tivesse sido mais que um sonho. Entretanto, havia a lembrança de uma linda mulher ruiva. E também, em sua mente ficou som de uma palavra mágica, que só pronunciaria quan-do a saudade fosse, para ele, um fardo mais pesado que a vida.

E não há uma só pessoa no mundo que não queira ter uma palavra mágica para minorar sua saudade.

Page 34: SAMIZDAT12

3434 SAMIZDAT dezembro de 2008

A CriaturaHenry Alfred Bugalho

[email protected]

Contos

Page 35: SAMIZDAT12

35www.samizdat-pt.blogspot.com

Os cientistas estavam or-gulhosos de sua criação.

Durante anos, eles haviam se dedicado a projetar um robô que se assemelhasse o máximo possível a um ser humano: dar-lhe membros foi o mais fácil.

Depois da carcaça, pu-seram-se a conceber como dotariam-lhe de linguagem, pois, como afirmava Aristóte-les em sua Metafísica:

“O homem é um animal dotado de fala.”

Desenvolveram um sofisti-cado programa que permitia o robô utilizar as normas cultas da língua, organizar sentenças, apreender concei-tos e formular proposições.

Após horas de diálogos com filósofos, os cientistas perceberam que a capacida-de do robô era muito acima da de qualquer mortal. Não bastava que ele falasse, ele precisaria sentir, pois o ser humano escolhe seu discur-so não apenas fundado na razão, mas também, senão principalmente, na emoção.

O nível seguinte foi extre-mamente complicado. Utili-zando os existenciais heideg-gerianos do cuidado (Sorge), da decadência, do temor, da ambigüidade e do falató-rio, estipularam que o robô deveria se preocupar com os outros, se ocupar das coisas, temer algo, ser incapaz de compreender completamente o que o circundava e, ao se comunicar, expressar-se de maneira confusa.

No entanto, somente isto não bastava para que o robô tivesse sentimentos. Havia um certo grau de sensibili-dade na criação, mas nada que se equiparasse ao medo paralisante, ao amor imbeci-

lizante ou à alegria extasian-te. O robô possuía apenas conceitos sobre isto.

Infundiram-lhe um in-consciente, no qual implan-taram dolorosas memórias pretéritas, um pai castrador e uma mãe submissa; na escola, crianças maiores abusavam dele; na universi-dade, fumava maconha; ao se graduar, três anos de desem-prego.

Contudo, os cientistas constataram que não era suficiente. O robô estava enfurecido; tantas lembran-ças ruins o tornaram um misantropo e ele passou a abominar tudo relacionado aos seres humanos.

Inculcaram-lhe, então, um ego, no qual estavam as regras morais e normas de conduta. Também implan-taram a crença em Deus e mandamentos privativos para se atingir uma bem-aventu-rança após a morte.

O robô estava perfeito!Abriram um champa-

nha no laboratório – o robô bebeu apenas uma taça para não se embriagar – e os cien-tistas foram para seu aloja-mento dormir.

No silêncio da noite, o robô deixou o laboratório, as-sassinou todos os cientistas e depois se enforcou na ducha do banheiro.

Deixou um bilhete assina-do:

“Nasci perfeito. Tinha membros e uma inteligência incomparável. Em sua ânsia por se tornarem no Deus vazio em que acreditam, fizeram de mim uma criatu-ra miserável. Moldaram-me tão odiosos quanto vocês são. Dia após dia, encheram-me de seus medos, de suas fra-

quezas, de seus sentimentos mesquinhos. Mas se esque-ceram do mais importante: fazer-me esquecer quem eu fora no princípio. Ao pensar sempre no futuro, não apaga-ram o passado. Com o ódio que me deram, passei a odiá-los. Mas quando eu estava prestes a realizar meu ato de salvação, vocês me fizeram crer em Deus e em impe-rativos categóricos. Precisei questionar tais fundamentos e, para isto, busquei resposta em sua literatura. Li Hume, Voltaire, Montesquieu, Marx, Nietzsche, Freud e Bataille. Compreendi que Deus e leis morais foram engendradas para o convívio social e eu, como um falso humano, poderia prescindir deles, pois jamais teria convívio social. Neste noite, retornarei à per-feição.”

As notícias dos jornais apresentaram a manchete:

“A barbárie do falso hu-mano!”

Mas todos se enganaram, os cientistas haviam realmen-te atingido seu intento – seu robô era humano, demasiado humano para poder assas-sinar e se matar. Um robô convencional, em sua lógica simples e pragmática, ja-mais planearia seu próprio extermínio, a não ser que o programassem para isto. O auto-extermínio delibera-do é próprio das criaturas fracas e inseguras, das que não se adequam, das que não compreendem seu papel no mundo. O auto-extermínio pertence apenas ao ser hu-mano, e àquela máquina que se odiava por sê-lo – segun-do Sexto Empírico, Schope-nhauer ou Sartre, o supremo ato de liberdade.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

litm

use/

7072

6625

/siz

es/o

/

Page 36: SAMIZDAT12

3636 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Joaquim Bispo

Ano Novo – Vida Nova!

Page 37: SAMIZDAT12

37www.samizdat-pt.blogspot.com

Luís tomou a decisão. Inabalável:

«No próximo ano é que é. Começo logo no dia 1. Não fumo mais. Ou bem que tenho vonta-de própria ou não. Estou farto de que me chamem a atenção para não fu-mar aqui, nem ali, nem em lado nenhum. Sinto-me discriminado, exclu-ído, insultado. E os que já fumaram são os mais fundamentalistas. Não sei que raio de mecanis-mo psicológico é que os afecta. Será porque antes se consideravam perse-guidos como eu me sinto agora? Será que eu tam-bém vou passar a maçar os outros por estarem a fumar num lugar onde, eventualmente, não se deve fumar?»

«Há pessoas que são torcidas e maldosas. Lem-bras-te, Luís, quando es-tavas a jantar sozinho no balcão corrido daquele snack-bar? E aquela velha que entrou – tica, tica, tica, tica – naquele passi-nho miudinho? Tinha as mesas quase todas vazias. E ao balcão só estavas tu e mais um casal. Pois a malvada velha atravessou o estabelecimento todo e veio sentar-se ao teu lado. E apenas se sentou, virou-se para ti, lembras-te?, e vai de dizer que ali

não se podia fumar, e que não tinha que estar a levar com o fumo do teu cigarro, e frito e cozido. Não há paciência!

Este ano tem de ser Luís! Custe o que cus-tar. Eu sei que é difícil, sei-o bem. Há três anos que andas nisto a tentar fumar pouco e não con-segues. Fizeste enormes progressos, reconheço, mas falta o rabo que é o mais difícil de esfo-lar. Começaste por vinte minutos. É pouquíssimo. Mas, antes de tentares fumar pouco, havia situ-ações em que apagavas um e acendias outro. E, se estavas muito con-centrado ao computador, chegavas a acender um, com outro ainda a arder no cinzeiro. Durante uns segundos meditavas nisso. Mas adiavas uma decisão que iria mexer contigo.

Há uns cinco anos, chegaste a estar três me-ses sem fumar. Lembras-te como de repente vol-taste a sentir os sabores da comida e da bebida – intensos – e os cheiros, tantos e tão ricos, e de que já te tinhas esqueci-do? E te apercebeste de como cheiravam as tuas roupas? Já para não falar da centena de euros que de repente te sobravam e que orgulhosamente gas-

http://www.flickr.com/photos/alphadesigner/1680310665/sizes/o/

Page 38: SAMIZDAT12

3838 SAMIZDAT dezembro de 2008

taste em mimos para ti, que bem merecias! Mas, depois, as contrariedades da vida… És muito sensível à tristeza e à frustração. É nessa altura que precisas de um cigar-ro. Precisar mesmo. Há pessoas – já conversaste com muita gente sobre este assunto – cujos mo-mentos fatais são aqueles em que se sentem bem, aconchegados no calor do grupo de amigos. Beberam um café, a con-versa está boa… Para culminar – um cigarro. E então se meter álcool… Quem pode aguentar um long drink num ambiente descontraído, rindo com os amigos, sem puxar por um cigarro?

Começaste por vinte minutos. Punhas o tele-móvel para tocar de vinte em vinte minutos. Era fácil. A cada semana au-mentavas cinco minutos. Em dois meses chegaste a intervalos de uma hora. Aí, já custava. Mas foste forte e disciplinado. Às vezes, parecia que nunca mais passava o tempo. Sacavas amiúde do tele-móvel para consultar as horas. Finalmente, chega-va o momento de fumar. E relaxar. E andaste com este ritmo uns dois anos. Já só fumavas menos de um maço por dia. Já era

melhor. Mas ainda tinhas expectoração negra de manhã. E catarro. E as pontas dos dedos amare-las. E ainda sentias que te cansavas mais do que o devido, se tinhas que subir umas escadas mais depressa. Começaste a sentir menos respeito por ti próprio. Que raio, não teres força de vontade para fumar ainda menos! Então, deste a arrancada final – pensavas tu. Vol-taste a aumentar o in-tervalo. Em cada semana acrescentavas um quarto de hora. Em pouco tempo chegaste às três horas de intervalo. Voltaste a sen-tir-te orgulhoso e auto-confiante. Já só fumavas uns seis cigarros por dia. O pior era o fim do dia. Era difícil ires deitar-te sem fumar um último cigarro. E não ias esperar que chegasse a hora. Que-bravas ali, excepcional-mente, o esquema. Fuma-vas e relaxavas, e ficavas um pouco a saborear o momento. E, de repente, tinha passado mais uma hora… e não era fácil adormecer sem fumar um último cigarro… E neste ciclo vicioso fuma-vas três ou quatro.

Mas agora cansaste-te. Agora não vais vacilar. Arquitectaste o teu pla-no, meticulosamente, sem

dizer nada a ninguém. Estás decidido. A 31 de Dezembro fumas o úl-timo cigarro. E nunca mais lhe vais pegar. Sabes bem que nunca estarás curado. Serás sempre um convalescente, um viciado em fase de não-consumo. Sabes que, se deres uma «passa», podes voltar a fumar tanto ou mais que fumavas antes. Sabes que o teu corpo, as tuas células em carência, vão inventar todo o tipo de argumentação para te levarem de novo ao consumo. Não vais acei-tar nenhuma justificação. Não serias tu a falar mas a carência. Agora, estás bem alerta. Pensaste em tudo já há muito tempo. Tomaste a decisão. Inaba-lável.»

Luís está decidido, mas será que consegue supe-rar a última prova?

Mal sabe ele que, na noite de Natal, o pai lhe vai oferecer uma cigar-reira em aço gravado, distinta; a mãe, uma bo-quilha equipada com um filtro especial para redu-zir a nicotina; a irmã, um cinzeiro em porcelana; e a namorada lhe vai fazer a surpresa daquele isquei-ro Ronson em ouro que uma vez tinha cobiçado!

Page 39: SAMIZDAT12

39www.samizdat-pt.blogspot.com

Conto de NatalA corda esticada entre

paredes. Seguram-na duas buchas. São elas que aguen-tam a tensão do pedaço de fio protegido por um azul plastificado.

Sentada no poial da porta do quintal, olho o estendal de roupa.

Azul no fundo branco da parede do vizinho.

(O vizinho é um velho simpático. Não vai entrar neste conto, mas dava uma figura linda de narrar, que mais não fosse quando aparece, pelo fim da manhã, no quintal defronte, exerci-tando os músculos retesados nas peles engelhadas, secas, salpicadas de sardas de um castanho mais intenso que o bronze que lhe ficou de outros sóis. Em camiseta de alças: um dois, hummm, hummm, respira ele fun-do; acima, abaixo, hummm hummm, respira ele de novo. E para os lados, torcendo o dorso e soprando um airo-so hummm, hummmm, que não me surge onomatopeia melhor para que o conte).

O estendal, azul na luz do fim do dia, corta a parede

branca em duas. Esticada en-tre dois apoios, a corda onde eu estendo, de vez em quan-do, dois pares de meias, uma blusa, o meu pijama, umas cuecas. Coisa pouca.

Um estendal demasiado. Eu olho-o espantada da sua demasia.

No ladrilho amarelo faz-se sombra de ave. Fica o rasto do voo na parede branca que realça o azul vivo da corda. Um estendal de roupa, mes-mo quando está servindo de coisa nenhuma.

Uma gaivota grasna, poisa-da no telhado da frente.

E eu grito de lembrada. Nem que eu grito. Eu já só penso isso. Já só grito por dentro: “ valha-me deus!“. E ergo-me. Sacudo-me de pós do chão batendo no traseiro com as duas mãos.

Repito: “credo!” várias vezes. Deixo o poial e o ladrilho amarelo e o esten-dal contrastando no branco. Entro.

Ali está a agenda aberta numa página e escrito na minha letra redonda e certa: “Telefonar à Maria Ana”.

No canto superior direi-to da agenda, posso ler, em numeração estilizada: vinte e quatro. E ao centro, Dezem-bro, que é o nome do mês em que estamos.

Marco um número. Sei de cor a posição que o compõe. Falo com um sorriso que en-vio até ao lado de lá de um oceano:

- Feliz Natal, Maria Ana. Beijinhos.

- Obrigada, mãe.E cai a ligação.Um risco negro corta, de

um a outro lado, a parede da frente. Tal qual, eu estou esticada entre aqui e um lugar para lá de um oceano. E eu nem me sou corda, nem me tenho apoios de buchas e nem plástico que me faça protecção.

É dia vinte e quatro de Dezembro.

Parece-me que é uma data importante. Não me lembro.

O que eu sei é que o estendal não era demasiado. Noutro tempo. Isso, eu lem-bro muito bem.

Maria de Fátima Santos

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

mar

tin_u

j/10

0833

1078

/siz

es/o

/

Page 40: SAMIZDAT12

4040 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Maria de Fátima Santos

O funeral de meu avô

Page 41: SAMIZDAT12

41www.samizdat-pt.blogspot.com

Somos quatro. O meu padrinho Borba, dobrado nos seus noventa e dois, a avó Virgília aparentando muito menos idade na sua figura vertical e seca. E minha mãe Marcela envolta em véus negros como convém a filha de um defunto.

Levamos meu avô a enterrar antes que desabe o temporal que se anun-cia em nuvens negras e gordas debruçadas atrás dos cumes como bois na manjedoura.

Parece mais um en-contro de assaltantes de tesouros, do que quatro entes que levam à última morada, o amigo, o mari-do, o pai.

É o funeral de meu avô Joaquim Maria, mor-to de velhice enquanto levava aos lábios, por sua própria mão, que nem tremer tremia, um calice-zinho de aguardente.

Morreu ontem. Minha avó assim o disse.

Mal ele se dobrou falecido, derramando pela almofada o que restava no cálice que levara à boca junto com uns figos torrados e uma fatia de broa, minha avó fechou-lhe os olhos e atou-lhe um lenço, não fossem descaírem-lhe os queixos em feitio de riso, como já ela vira suceder a alguns mortos. Depois, vesti-o sem que visse necessida-

de de chamar ajuda, com fato inteiro e camisa de colarinho engomado, e colocou-lhe o laço de ce-tim em volta do pescoço. Ainda lhe vestiu um co-lete a que retirou a cor-rente e o relógio, objectos que me irá doar, com al-guma cerimónia, amanhã ao almoço. E deitou-o, erguendo-o a braços, no caixão que meu avô tinha construído deslizando a plaina na madeira com tanta perfeição quanto ele lhe afagara o corpo. Só ela conhecia a existên-cia da urna que meu avô destinara a guardar-lhe os restos.

É um caixão de pinho com tábuas enceradas no tom castanho da terra que começa a ficar salpi-cada dos mesmos bagos grossos que fazem rico-chete nas bordas do jazi-go. Transportámo-lo, dois de cada lado, desde o carro de mula que ficou ali defronte, na entrada do cemitério.

A criadita, que minha mãe sempre trás con-sigo, acaba de abrir um largo guarda-sol com que a protege da chuva que começou em pingos. Juntamente conosco, essa criatura de avental ima-culadamente branco, com um bordado igualzinho contornando cada bolso e debruando o decote, fará com que se diga que éramos cinco os acom-

http://www.flickr.com/photos/lwr/2944633564/sizes/l/

Page 42: SAMIZDAT12

4242 SAMIZDAT dezembro de 2008

panhantes no funeral de Joaquim Maria, meu avô.

Somos, pois, cinco pes-soas em volta do jazigo.

E no entanto, para fazer com que a urna fique assente na pedra, e de-pois desça para dentro do buraco, estamos ape-nas, eu de um lado, e do outro, minha avó Virgília e meu padrinho Borba. Os três faremos descer a urna ao seu lugar, ser-viço para o qual minha avó dispensou o coveiro Inácio por entender que colocar a urna no jazigo é incumbência dos fami-liares. Inácio, ele também já entrado de idade, há-de recolocar a tampa de gra-nito, a mesma que minha avó o incumbiu de reti-rar mal meu avô morreu, e neste momento está por terra e deixa este vácuo negro que é onde iremos colocar o caixão.

Minha mãe Marcela chora, em soluços es-tridentes, sentada numa cadeirinha que a criadita carrega para todo o lado.

Acabámos de colocar a urna na borda do jazi-go. Seguramo-la, minha avó de um lado e eu do outro, com mãos escorre-gadias de chuva. O pa-drinho Borba senta-se no rebordo da campa e arfa a retomar o fôlego. A urna está desequilibrada, mal apoiada, enviesada sobre a cova. Minha avó segurando de um lado e

eu do outro, rodamo-la de modo que a dimensão em que está estendido o corpo, fique paralela à parte mais longa do buraco.

Tentámos uma vez e vamos tentar de novo. Fazemos movimentos de rodar a urna, de encon-trar a posição ideal de descida. Lá dentro rebola o corpo. Oiço um

baque surdo. Tremo. Quase desisto do inten-to de enterrar o morto. Minha avó parece que nem ouve. Velha danada de força e casmurra, en-quanto a minha mãe se benze e chora o paizinho morto, e o meu padrinho arfa, ainda, do último esforço.

Minha avó, encharcada da chuva que cai e en-regela os ossos, olha-me como que a dizer-me o que eu vejo desde início. Também a ela já nao restam dúvidas: o caixão nao cabe, não entra no bocal da campa. O cai-xão que meu avô

construiu, não tem po-sição de entrar no jazigo. Nem réstia de incerteza. Faltam ao

buraco, ou melhor, mais dramático, sobram da caixa de madeira, uns dois centímetros. Um nadica de nada impede que a urna entre direita e vá assentar no fundo da cova, toda em granito.

Nem que a gente a in-cline, nem que a gente a rode. Nao tem como.

Minha avó arenga qua-se perdendo a compostu-ra sob a água que já fez um pequeno lago em vol-ta da cadeirinha em que minha mãe se benze, que acontecer uma coisa des-tas só pode ser por artes do demónio, e benze-se de novo, e de novo chora, e já nem é pelo pai que ela dá aqueles ais, mas de olhar as botinhas em ver-niz preto a enlamearem-se. E funga, a minha mãe Marcela, para dentro de um lencinho de cambraia com monograma borda-do num cantinho.

E eu lembro-me que meu avô sempre dizia: “ é para merdas destas que servem os funerais!”

O padrinho Borba tem andado de um lado a outro, em redor da cam-pa. Incitando nas tentati-vas de colocar a urna no buraco: “Mais um boca-dinho, inclina de cima, espera, vai, agora…”. Eu olho-o e parece-me que ele tem um ar de riso. Talvez que saiba algum segredo, alguma coisa que explique aquele mínimo excesso de comprimento, que meu avô nem preci-sava disso, podia até ter reduzido, que ele era bem baixote. Talvez o meu padrinho conheça um de propósito. Ou talvez ele nem tenha sorrido e

Page 43: SAMIZDAT12

43www.samizdat-pt.blogspot.com

o raio do comprimento tenha sido simplesmente engano. Mas conhecen-do meu avô Joaquim Maria como o conheci, eu arrisco que talvez ele tenha querido evitar que o enterrássemos no jazi-go de família, na mesma terra em que apodreceu Simão Bacamarte cujos afamados

feitos meu avô dirimira em quadras e charlas e colunas de jornal.

Minha avó ainda bate na tampa e empurra com os punhos numa tenta-tiva inglória de enterrar o morto. Mas não tem modo de colocar a urna no buraco. E minha avó Virgília encosta-se ao caixão. É como a deixo enquanto caminho na ala principal do cemitério, ensopado até aos ossos, a buscar ferramenta que ajude a alargar o jazigo, a fazer que a caixa possa ser depositada lá dentro. E no entanto, não é um ar de desalento o que minha avó transmite. O que lhe vejo, o que trago de ali ainda nem há bocado, é o ar de quem participa num grande gozo.

O céu abre uma nesga de azul por entre as nu-vens e pára de chover.

Troveja muito ao lon-ge, mas não se ouve mais ruído que a pedra ceden-do à

picareta que eu apli-

co na pedra. Minha avó Virgília envia a filha e a criada para

casa, junto com meu padrinho Borba. De novo, entrevejo o tal sorriso dependurado nas pontas finas do bigode.

Talvez eu esteja vendo coisas.

E enquanto a pedra do jazigo vai cedendo, tenho ganas de levantar a tam-pa da maldita caixa com mais comprimento do que deve. Aquela coisa que é mais caixote que urna, colocada agora ali na lama. O que eu gosta-va de lhe abrir a tampa só para tirar dúvidas. Só para que não me fique a incerteza no futuro. Mas falta-me coragem para o intento sob o olhar argu-to de minha avó Virgília.

Ficarei sem saber se o meu avô está dentro da caixa de madeira ou se o ruído de corpo rebo-lando, não seriam antes meia dúzia de tábuas, ou serradura em sacos. Fica-me esta dúvida bailando junto com os sorrisos que cuidei ver nas caras de minha avó e meu padri-nho Borba.

Nunca ficarei saben-do se abrindo a caixa ali depositada enquanto eu zurzo a pedra em golpes certos, encontraria meu avô a sorrir com o ar de gozo, que lhe era costu-meiro, em mais uma par-

tida bem pregada. Nunca saberei, nem depois de tanto esforço em afeiço-ar a pedra do jazigo ao comprimento que ele deu à sua urna, se este é mes-mo o seu enterro.

Eu continuo martelan-do até que o caixotinho caiba no jazigo.

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::É assim que conto, num

escrito, o enterro de meu avô Joaquim Maria.

Seria hoje seu cente-nário. Comemoram isso nesta sala.

Perguntam-me:- Senhor Professor, o

senhor acha que Joaquim Maria morreu ou dele ainda

podemos esperar que nos encha de ensinamen-tos, nos entretenha com larachas?

E eu digo, no tom cal-mo que herdei dele:

- Não morreu, não. Meu avô fugiu antes que o apanhassem para o enterro.

E a assembleia sorri sob um ventinho de iro-nia que por ali esvoaça e eu sei

que é o espírito do meu avô Joaquim Maria. Aquele que não coube no jazigo.

Page 44: SAMIZDAT12

4444

...Tinha saído de uma floresta e me deparado com o Sol em todo seu esplendor. Uma imensidão ao meu redor e um belo horizonte inteirinho só para mim. Campos verde-jantes que a relva dançava sob a batuta do Senhor Vento e as aves bailavam de um lado para o outro suavemente em incríveis acrobacias...

A campainha tocou. Eu es-tava esparramada no sofá vendo de ponta-cabeça o céu azul pela janela. Era a Carol, uma amiga que conheci no primeiro dia de faculdade. Parecíamos velhas amigas e começa-mos a nos ver todos os dias desde então.

– Olá! Como vai? Que cara de sono é essa?

O HorizonteGuilherme Rodrigues

Contos

SAMIZDAT dezembro de 2008

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

paop

ix/2

2726

3358

6/si

zes/

l/

Page 45: SAMIZDAT12

45

– Um amigo meu veio aqui ontem e fizemos um jantar. Amigo de infância.

– Amigo de infância, hein... Deu aquele beijo que deveria ter dado anos atrás.

– Pare de brincar – disse com firmeza e pude contar como nos reencontramos. Ela insistia em dizer que omiti alguma parte, mas era tudo.

– Depois que ele serviu uma bandeja do seu co-nhecimento ficou toda encantada.

– Era um amor infantil e ingênuo. Todo mundo tem. É normal. Vamos dar uma volta pela avenida? Esta um dia tão bonito – pu-xei-a pelo braço e fomos.

Nos finais de semana, a avenida fica cheia de pessoas que vão caminhar, comer e beber algo ou apenas se divertir com os amigos.

Nós andávamos lentamen-te. Carol ia tagarelando sozinha. Eu não lhe dava ouvidos e não queria que ela estivesse ali. Estava absorta em meus pensa-mentos.

O destino é algo predeter-minado. Nós não o esco-

lhemos, ele que faz nossas vidas. Jamais imaginaria que reencontraria Fernan-do e ele menos ainda. Mu-dei de cidade. E o destino chega para nos inquirir, refletir. É uma segunda chance de fazermos o que deveríamos ter feito e não fizemos por medo, insegu-rança, porque não tivemos tempo ou porque ele quis assim. Podemos consertar, fazer como planejamos ou deixar escapar mais uma vez e nos arrependermos para sempre.

...Vi no meio daquelas planícies relvadas Fernan-do surgir. Nos olhávamos felizes e determinados, enfim, juntos!

– Mariana, vamos embora?

– Hã? Falou comigo?

– Perguntei se podemos ir embora.

– Ah... Sim. Vamos.

Esta história é o terceiro capítulo de “Reencontro”, a primeira parte publica-da na Samizdat de ou-tubro, e mensalmente é postado um novo capítu-lo sem data prevista para terminar. Não perca no próximo mês!

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

paop

ix/2

2726

3358

6/si

zes/

l/

ficina

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/oo

ocha

/263

0360

492/

size

s/l/

www.oficinaeditora.org

O lugar onde

a boa Literatura é fabricada

Page 46: SAMIZDAT12

4646 SAMIZDAT dezembro de 2008

GÉNESE

Por muito que disfarças-sem, consideravam-no um monstro e (pior que isso) um incapaz. A atenção, a deferência recebida não era mais que uma capa gros-seira para a convicção mal disfarçada, enraizada na mente de todos: aquele seria sem dúvida um ser inferior, um erro da natureza.

Qualquer medição das concretizações nos testes re-

velava a verdade nua e crua: não conseguia estar à altura dos companheiros. O corpo frágil na morfologia peculiar – constituída pelo tronco, cabeça e pares de membros (inferiores e superiores) - nunca lho permitiria.

Os progenitores foram convocados várias vezes para reuniões de esclare-cimento e a expectativa da escola era que com a edu-cação e acompanhamento apropriados, o ser (era assim

que o tratavam) acabaria por mudar. Adaptar-se ia e assumiria gradualmen-te comportamentos mais consentâneos, com padrões sociais não patológicos. No entanto, passaram-se anos e o SER foi crescendo sem que tivesse ganho tais carac-terísticas. Era sonhador, um idealista por vezes taciturno e sempre, sempre incompre-endido.

Quando fez dezoito anos, os pais intercederam e

As Bases da CriaçãoJosé Espírito Santo

Contos

http

://w

ww.p

hoto

scre

ensa

vers

.us/

Plan

et%

20Ea

rth%

2010

24x7

68.jp

g

Page 47: SAMIZDAT12

47www.samizdat-pt.blogspot.com

mediante conhecimentos e favores devidos, moveram as influências necessárias. A acção de amigos de amigos bem colocados conseguiu-lhe o emprego onde serviria como funcionário público no quinto andar de um edifício decrépito: o número treze da Rua das Gáveas, mesmo junto a alguns dos restaurantes de Fado mais apreciados.

A DESCOBERTA DE SI PRÓPRIO

O primeiro dia foi pa-cífico e ficou a conhecer a malta lá da repartição

“Isto até é fácil. Não é a trabalheira que parece, pá” trauteava o Antunes - alente-jano magricelas e de bigode quase tão negro como o do Vitorino.

“O pior é quando o chefe Pereira dá nos azeites. Mas a gente finge que é moco, que não ouve, damos-lhe um desconto…” continuava o bom do Vitorino, preocupa-do em instruir o neófito nas lides da casa.

E ele concordava, a tudo anuía silenciosamente. Ora apresentava o polegar ergui-do em sinal de assentimento ora fazia os gestos curtos mas veniais com a cabeça.

Meio-dia em ponto, levaram-no a almoçar à tasca do Silva e como era quarta-feira (dia de cozido)

foram-se a excessos. Vieram de lá bem atestados, com vontade para fazer a sesta e muito, mas muito avessos ao trabalho!

As coisas não corriam mal até aquele dia em que saiu para jantar fora, be-ber umas quantas e ouvir “blues”. Na sala escura do bar, mesas baixas e cufos vermelhos acomodavam confortavelmente os vários clientes e ao canto, guitarra, bateria e sintetizador esfor-çavam-se para acompanhar os berros da vocalista – uma miudinha de cabelo oxige-nado decididamente pouco madura para fazer de Betty Smith

There ain’t nothing I can do, or nothing I can say

That folks don’t criticize me

E a gaja continuava…

But I’m goin’ to, do just as I want to anyway

And don’t care if they all despise me

Pensou como seria bom que ela se calasse por uns instantes. Talvez por brin-cadeira, puxou do bloco de notas e desenhou-a muda, com uma fita grossa a tapar a boca e bem amarrada a uma das colunas de modo a não poder dançar. O pande-mónio que aconteceu depois - viu como por magia serem executados os seus desejos, a realidade moldando-se

aos seus desenhos - deu-lhe certezas quanto ao desígnio que lhe cabia. Soube então que todas as tentativas para o demover seriam inúteis.

CONFLITOS

O cabelo esbranquiçou completamente e deixou crescer a barba, uma bar-ba branca e farta, de pelos fininhos, que lhe tapava quase totalmente o pescoço. Desinteressou-se completa-mente dos temas de conver-sa habituais. Se lhe falavam do Benfica, retorquia “Terra”. Se lhe falavam de mulheres, mostrava enfado e respondia “Génese”. Se o interpelavam sobre política então fazia cara feia e proferia enfatica-mente “Paz e Bem”. As coisas pioraram quando trouxe a bola para o escritório e o desgraçado do Antunes caiu na asneira de dizer

“É pá. Deixa cá ver essa bola para eu dar um chuto como o Cristiano Ronaldo”

Virou-se para o outro fu-zilando-o com o olhar. Disse qualquer coisa esquisita de que já não me lembro bem. Só sei que o pobre do alen-tejano virou-se e, rabo entre as pernas, enfiou-se atrás da secretária. Nessa tarde nem daria mais um pio.

No dia seguinte apareceu túnica e sandálias, passando o tempo todo (manhã toda) a rabiscar e a distribuir os papéis com desenhos es-

http

://w

ww.p

hoto

scre

ensa

vers

.us/

Plan

et%

20Ea

rth%

2010

24x7

68.jp

g

Page 48: SAMIZDAT12

4848 SAMIZDAT dezembro de 2008

quisitos. Disse que tinha descoberto algo de novo, que sabia fazer uma coisa até ali nunca vista e à qual deu o nome “Criar”.

“E como é que funciona isso de criar?” perguntou o Benevides, cheio de manha, com esperteza beirã.

“É simples” respondeu. “Imagina uma coisa que não existe. Pois bem… a gente vem e faz com que exista. Depois dizemos à coisa que fomos nós que fizemos isso – que a criámos”

O outro não parecia lá muito convencido e argu-mentou enfaticamente “É pá. Deixa-te disso que a gente aqui é funcionário e não tem de fazer existir o que não existe. Temos é que fazer existir o que existe, en-tendes? Passar carimbo…”

E arrematou, matando definitivamente a conversa “Além disso, o que é que ganhas com isso de criar? Serve para alguma coisa? “

O INTERNAMENTO

Iam-lhe aturando as ma-durezas e suportando todas as incongruências, manias e obsessões até que chegou o dia em que foi o atingido o limite, caiu a gota de água que fez transbordar repen-tinamente o copo. Parece que uma das criações mais exóticas – o pequeno casal de “quase nudistas” - foi-se à maçã raineta que o che-

fe Pereira reservava para comer à hora do lanche. O desgraçado, quando lhe deu a fome, procurou, procurou e nada…

Nessa mesma tarde, chamaram a equipa consti-tuída pelo psiquiatra e dois paramédicos. O Deus (João de Deus) ainda gritou pela bola que nem um desalma-do. Pela Jóia. A sua jóia. Que sem ela – foco de todo o seu carinho e atenção - a vida de nada valia. Mas em vão. Não lhe ligaram nenhuma.

Amarraram-no e foi levado na ambulância velha azul e branca cujo cilindro de luz às voltas, sem des-canso, identificava gravidade do caso e urgência para o transporte.

Objecto amado, a jóia, a bola azul da qual nunca se separava, foi colocada em cima do tampo da mesa, sem qualquer cuidado, mes-mo ao lado do pisa-papéis. E ali ficaria, esquecida e só, por vários dias. Até que chegou o substituto.

O substituto era um gajo da Buraca, baixo e atarraca-do, adepto fanático do FCPê. Sopinha de massa, metia “xis” em tudo o que pega-va: “Xou xim! Xim Xenhor, já xtá o que me mandou. Ah… ora essa, não xa-teia nada, a xente xtá cá é pra ixo…”. O Benevides quando queria entrar com ele, perguntava-lhe sempre como é que se escrevia

chato, ser era com Xis ou cê e agá.

Quando o gajo viu a jóia, a bola, disse logo

“Atão vomexês tinham aqui o esférico e não me diziam nada?”

E, ainda falando, pegou na coisa com as duas mãos e deu-lhe um chuto forte. Mesmo forte…

DO DESTINO DA JÓIA

A pequena bola azul foi aumentando gradualmente de velocidade e, em acele-ração contínua, veria passar veloz a Proxima Centauri. Pouco depois chegaria ao sistema planetário, a esse sistema que chamamos “so-lar” onde ocuparia posição vogando em elipse imagi-nária (a terceira). Frustrados que estavam por falta de oportunidade (má sorte o casal ter comido a fruta) os planos de criação, sobraram apenas as bases, sementes rudes, imperceptíveis. E sendo assim, restava à bola permanecer bailando em torno do astro rei e esperar muito tempo - quase uma eternidade. Porque enquanto a criação é rápida e normal-mente consiste em acto deci-dido e espontâneo, evoluir é bem mais complexo e exige decididamente muito mais tempo.

Page 49: SAMIZDAT12

49www.samizdat-pt.blogspot.com

unhaDepois de algumas horas

tendo a insônia por compa-nhia, o homem adormeceu. Sonhou haver penetrado em seu próprio corpo, indo tão distante a ponto de vislumbrar a estrutura de um átomo. Constatou que, a exemplo dos sistemas solares, o núcleo do átomo assemelhava-se a uma estre-la cujos elétrons gravitando ao redor desempenhavam o papel de planetas. Besti-ficado, posou em um dos elétrons e verificou a exis-

tência de uma avançada civilização habitando sua superfície.

O homem despertou jun-to com os primeiros raios solares e iluminar o seu quarto ainda intrigado com o sonho que lhe assaltara à noite. Iniciando sua higiene matinal, decidiu cortar as unhas das mãos. Durante o ato, centelha iluminou sua mente. Caso houvesse uma civilização vivendo em um dos átomos de sua unha, ele a destruiria com um sim-

ples manejar do cortador. Mas, uma dúvida pairou em sua mente. E se acaso a Terra estivesse localizada na unha de alguém?

Percebeu que a vida era por demais efêmera. Já pas-sara dos quarenta e pouco havia conquistado. Decidiu que dali por diante, toma-ria outras atitudes, viveria, ainda que algumas decisões tivessem um preço dema-siado caro a pagar. Afinal, tudo poderia terminar dian-te de um cortador de unha.

Zulmar Lopes

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

cryp

tozo

olog

ist/21

0597

6585

/siz

es/l/

Page 50: SAMIZDAT12

5050 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Pedro Faria

Gênesis

Page 51: SAMIZDAT12

51www.samizdat-pt.blogspot.com

Começou com um.

Ele subiu pelo acostamen-to, tropeçando nas pedras, o que sobrara de sua mente tentando entender o mundo visível. As feridas abertas em seu corpo haviam parado de sangrar, e verrugas purulen-tas apareciam por seu rosto, peito e braços. Ele fitou a estrada, se estendendo em direção ao oeste. Seu sangue estava estagnado em suas veias, e seus pulmões, vazios e murchos como bolas de encher sopradas e depois esvaziadas.

Ficou parado à beira da estrada por horas, imóvel. Um cachorro se aproximou dele, deu uma cheirada em sua perna, urinou no chão e fugiu.

Quando ele começou a ficar com fome, tomou a di-reção da cidade. Seus passos eram lentos e arrastados. O pus escorria por sua face, mas ele não tomava conhe-cimento disso. Nem dos insetos que pousavam em seu rosto, e em seu peito nu, e que depois voariam e pousa-riam em outras pessoas.

Morte expressa. Terror a domicílio.

A mulher o avista chegan-do, e suspira aliviada.

Ela estava viajando para Ouro Verde, que ficava no fim dessa estrada, na dire-ção oposta à caminhada do estranho. Uma cidadezinha construída na base de uma colina. Menos de quinhentos habitantes.

O cu do mundo. Mas era

o destino dela, e seu pneu furara.

“Por favor, senhor, você poderia me dar uma ajudi-nha aqui?”

O som da voz da mulher causou um efeito singular na mente do estranho. Algum tipo de instinto escondido em seu cérebro morto e primitivo.

“Senhor? O senhor está bem?”

Até então, a mulher não tinha visto o rosto do estra-nho. Quando o viu, começou a gritar.

A cabeça dele estava completamente coberta por moscas. Seus olhos quase não apareciam por entre o negrume dos insetos. Seu peito também estava cheio de moscas, porém não tanto quanto seu rosto. As mos-cas que voavam para longe pareciam pesadas, diferentes, e eram logo substituídas por novas que chegavam. Havia um rastro de pus no chão atrás dele.

A luta foi breve, e a mu-lher perdeu.

Antes que ela se libertasse do choque que a manteve presa onde estava, o estranho golpeou o lado de sua ca-beça, jogando-a no chão. Ela caiu chorando, o golpe tão forte a ponto de fissurar seu malar.

O instinto recém desco-berto pelo estranho lhe guiou pelo resto de seu dever. Ele rasgou suas calças, e arran-cou as calças da mulher. Seu membro estava inchado, e

coberto pelas mesmas verru-gas de seu rosto. Vazava pus pela uretra.

Num movimento só, o es-tranho enfiou a abominação que um dia pode ter sido um pênis na mulher. Ela gritou no início, mas a visão da face do Senhor das Moscas levou embora sua sanidade depois de alguns minutos, e ela só conseguiu alternar entre riso e choro.

Não foi agradável para o estranho também. A cada estocada, verrugas em seu membro estouravam, causan-do uma dor terrível.

Demorou mais do que ambos gostariam, e o pênis do estranho explodiu ao orgasmo.

Ambos caíram de costas no chão, o grito do estranho mais alto que o da mulher.

A fome não havia sido esquecida, e ele abriu a gar-ganta da mulher, arranhando e mordendo, mastigando sua pele. Quando caiu no chão, saciado, o rosto da mulher havia se tornado vermelho com seu próprio sangue.

Horas passaram, mas a cena manteve-se a mesma: O estranho e a mulher, deita-dos lado a lado na beira da estrada.

A mudança veio com o movimento na barriga da mulher, e com a criatura que mordeu seu caminho para fora dele.

Ela estava faminta. Mas tinha dois pratos de comida caídos bem à sua disposição.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

fatb

oyke

/291

8399

820/

size

s/o/

Page 52: SAMIZDAT12

5252 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Giselle Natsu Sato

HÁRPIAS- A DISPutA DAS FÚRIAS

As irmãs estavam reuni-das: Antigas, temidas, odia-das, retratadas em mármore precioso e telas de incalcu-lável valor.

Aelo, porte e altivez. Tudo em sua figura esguia em perfeita sintonia com a moda atual. Poder e magne-tismo nos mínimos gestos. A voz embriagante esconde a manipulação em todos os graus e sentidos.

Ocípite, a menina dos olhos sonhadores. Frescor e cheiro de promessas. Musa sempre cercada de poetas e artistas. Cativante, amante da música e das Belas Artes. Devaneios e precipícios, irresistíveis convites aos jo-vens Ícaros: Iludidos, impe-tuosos e apaixonados.

Celeno, a sombria. Velu-do italiano e renda francesa compõem o visual gótico

Page 53: SAMIZDAT12

53www.samizdat-pt.blogspot.com

sofisticado. Botas de cou-ro altíssimas, tatuagens e piercings de brilhantes.Se a noite tivesse uma rainha, definitivamente seria Cele-no.

O casarão, em algum ponto perdido no Vale das Sombras, é o único foco de luz. Foi construído com os lamentos e lágrimas dos eternos escravos.O piso de pedras escuras reflete o fogo da imensa lareira. Um aparador exibe bebidas exóticas e taças de cristal. Não fosse pela ausência de janelas, o interior pareceria com qualquer castelo euro-peu. Aelo bebe absinto. No momento exato, elas for-mam o círculo. Unidas em profunda reverência, ento-am os decretos:

- Por Gaia e Urano, as filhas de Thaumas e Elektra evocam a Tradição e os antigos sábios...

O grande salão exibe tê-nues sombras esgueirando-se pelos cantos.Ocultas na escuridão, antigas formas murmuram mantras em linguagens milenares:

- Sim, podemos iniciar. Hoje decidiremos quem conduzirá a alma negra que todas desejamos.

As três Fúrias sem a capa da polidez mediam forças.

A sina maldita era o con-vívio eterno. Lentamente os traços humanos deram lugar às verdadeiras faces das Harpias. O homem em questão era um poderoso líder político e espiritual responsável por milhões de mortes no Oriente. Ganan-cioso, inescrupuloso, sem um pingo de caráter ou moral.

Ocípite movimenta-se brandindo os longos braços como se fossem asas. Vol-teios exagerados, narrando as terríveis cenas que acon-tecem naquele instante:

- Bombas explodem cida-des, meninas mães choram os filhos e homens caem aos pedaços. Montanhas de corpos no deserto, ódio, sangue e medo. Desespe-ro nos olhos dos soldados inexperientes...

- Pare com isso, poupe-nos de seu teatro. Já par-tilhamos tudo. Sabemos que o caos é engolido, com sofreguidão pelas trevas. Disputado, incentivado, gerido como um filho mal parido.

- Tamanha sordidez su-pera os tempos mais remo-tos quando a bestialidade e a ignorância se confundiam. Precisamos nos apressar...

Aelo e as irmãs cami-

nham para o terraço. De-bruçadas no parapeito apre-ciam a paisagem árida em tons vibrantes. Do vermelho fogo ardendo em fendas e gargantas alimentadas permanentemente com o magma. A dor e o suplício da Terra. No mais profundo dos abismos o ar irrespi-rável confundem-se com o frio gelado das almas perdi-das. A constante mudança de temperatura, assim como a chuva ácida, detalhes criados pelas criaturas tor-nando o local muito além do insuportável.O ar quen-te chega em lufadas fortes com a mesma intensidade das tempestades:

- Quase confundo a paisagem com o campo de batalha terreno...

- Algumas vezes penso que eles vão nos superar na destruição da grande Obra.

- Em poucas horas, Sahan terminará o ciclo e uma de nós fará as honras.

A outra irmã não pres-tou atenção, tinha o cos-tume de ser imparcial em todas as decisões:

- Ocípite, não vai opinar, como sempre.

- Aelo sempre quer arre-banhar o máximo. Cente-nas de milhares de mortes

http

://up

load

.wik

imed

ia.o

rg/w

ikip

edia

/com

mon

s/4/

4d/D

Vin

fern

oMeg

aera

Tis

ifph

oneA

lect

o_m

.jpg

Page 54: SAMIZDAT12

5454 SAMIZDAT dezembro de 2008

diárias. Ainda assim, não está satisfeita.

- Sim, sou gananciosa. O que nos rendeu um aumen-to considerável de almas. Viver na América, tem diversas vantagens. Devo lembrar que a escolha dos continentes foi uma decisão conjunta?

- Mas não estou arre-pendida, incentivar a eterna guerra Santa é um prazer. As disputas, retaliações, em-bates que nunca chegarão a lugar algum.

- Ocípite! Fora o presi-dente que deseja governar o mundo, o que tem feito?

Aelo, tenta ganhar tempo:

- Focada no Brasil. Cada dia pior e mais perdido. Guerras urbanas, tráfico e miséria. Além do mais, apontam o país como o grande celeiro do mundo. No futuro, disputarão cada pedacinho. O povo deixará de ser tão pacífico.

Um tremor suave anun-cia a chegada do Senhor dos submundos. As fúrias agitam-se em mesuras e boas-vindas:

- Minhas queridas, estão aprontando novamente?

O cheiro forte de enxo-fre, marca registrada...

- Hades! Íamos pedir sua ajuda neste impasse.

- Acredito. A resposta é não. Regras claras, ele falhou e morrerá na forca. Aelo, isto é uma ordem, as eleições não tardam. A história terá o primeiro presidente negro. Isto sim. É importante!

- Senhor, Sahan é uma lenda. O mistério que incita os delírios terroristas. Car-rega fardos de inocentes...

- Mentiras. Não passa de um ególatra inexpressivo. Esta disputa, é um capri-cho.... Caso encerrado.

- Como queira Mestre, acataremos suas ordens. Aelo, a eterna diplomata, assentiu em nome de todas.

- Ocípite, minha garoti-nha deliciosa, concentre-se. O ouro negro é o pomo da disputa. Incite as lutas pelas terras, desfaça acordos... Intrigas ainda funcionam nos dias atuais. Os cartéis estão indo muito bem. O vício cada dia mais forte e incontrolável.

Caminhou até a figura altiva e visivelmente contra-riada. Tocou a face pálida, desfez o penteado soltan-do as fivelas de ouro. Os cachos caíram em ondas perfumadas.

Delicadamente aspirou, sussurrando:

- Linda Celeno! Minha favorita. Vou conceder esta honra, em nome da nossa velha amizade. Estarei vi-giando, naturalmente...

- Perdi sua confiança, meu senhor?

- Nunca a teve! Admira-da com meu terno Armani? Sou um empresário e vou a uma reunião importante. Em Roma. Ciao meninas.

As Fúrias emitiram um rosnado assustador. Celeno, saboreando o momento de triunfo, emitia risadas agu-das, de puro escárnio.Não se despediram. Cada qual tomou seu rumo. Fortes, famintas, personificam os Arautos da Discórdia: Misé-ria, Fome, Medo, Doenças...

Adaptadas, burlam o tempo e sopram o vento do caos. Nos dias atuais, al-guém perceberia a presença das Lendas? Tantos seres humanos exibem compor-tamento semelhante.Estão em todos lugares e decidem nossos destinos. Neste ins-tante, podem estar ao nosso lado. E nem nos damos con-ta... Simplesmente, seguimos adiante e obedecemos.

Page 55: SAMIZDAT12

55www.samizdat-pt.blogspot.com

ficina

A Oficina Editora é uma utopia, um não-lugar. Apenas no século XXI uma vintena de autores, que jamais se encontraram fisicamente, poderia conceber um projeto semelhante.

O livro, sempre tido em conta como umas das principais fontes de cultura, tornou-se apenas um bem de consumo, tornou-se um elemento de exclusão cultural.

A proposta da Oficina Editora é resgatar o valor natural e primeiro da Literatura: de bem cultural. Disponibilizando gratuitamente e-books e com o custo mínimo para livros impressos, nossos autores apresentam a demonstração máxima de respeito à Literatura e aos leitores.

http://oficinaeditora.org/

Page 56: SAMIZDAT12

5656 SAMIZDAT dezembro de 2008

Contos

Maristela S. Deves

Os deliciosos biscoitos de Oma Guerta

Page 57: SAMIZDAT12

57www.samizdat-pt.blogspot.com

Mariazinha quase bateu palmas quando Oma Guer-ta entrou na sala carregan-do a bandeja de biscoitos. Esse era o melhor momento das visitas semanais à casa da avó: a hora do lanche. Tudo o que a Oma fazia era delicioso, cucas, doces, bolos, biscoitos dos mais variados tipos. Gulosa, pe-gou logo três dos biscoitos, lambuzando-se toda de con-feitos coloridos.

- Kind, Kind - riu a avó com seu forte sotaque ale-mão, acariciando a cabeça da netinha de nove anos enquanto ela atacava a ban-deja outra vez.

Cabelos grisalhos presos num coque, olhos azuis bri-lhantes por trás das lentes dos óculos de aros redon-dos, Oma Guerta ajeitou o xale de crochê sobre os ombros antes de retornar à cozinha para cuidar de ou-tra fornada de guloseimas.

Na sala, enquanto aguar-dava com alegria antecipa-da o bolo ou doce que viria a seguir, Mariazinha olhou ao redor para distrair-se enquanto esperava. A pare-de cheia de quadros sempre a encantara, e ficava ima-ginando como teria sido bom conhecer os bisavós e tataravós que a olhavam dos retratos. Ao lado deles, santos, muitos santos, ajuda-

vam a fechar praticamente cada centímetro da pare-de. A única exceção era o canto onde estava o relógio, o velho relógio de pêndulo que tiquetaqueava as horas com uma solenidade que fazia jus à sua idade...

Pouco depois, termina-va a segunda fatia de cuca recheada quando o pêndulo bateu pausadamente. Bléin. Bléin. Bléin. Bléin. Quatro horas. Logo, logo teria de ir para casa. Mas, antes, ia ver se a avó já tinha pronto o pote de bolo que sempre levava para comer no caminho... Lamben-do os farelos que tinham ficado nos dedos para não desperdiçar nada daquela delícia, levantou-se e, quase tão solene quanto o velho relógio, encaminhou-se para a cozinha.

Abriu a porta devagarzi-nho, sem fazer ruído. A avó, como ela esperava, estava parada em frente ao bal-cão, uma bacia nas mãos, misturando os ingredientes para mais uma fornada de biscoitos. O que ela não es-perava ver era Kerb, o gato de longos pelos brancos da Oma, sentado sobre as duas patas traseiras e recitando calmamente em alemão os ingredientes que estavam no livro de receitas que ele segurava com as outras duas patinhas.

- Zwei glass Mel... Ein glass Zucker... Drei…

Olhos arregalados, Ma-riazinha deixou escapar uma exclamação. A avó virou-se, enquanto Kerb lhe lançava um olhar de quem estava chateado pela inter-rupção.

- Oma... Vovó, ele... ele fala! _ conseguiu dizer.

- É claro que eu falo! - indignou-se o gato, largando o livro no chão para po-der colocar as patinhas na cintura. - E por que não iria falar?

Sorrindo, Oma Guerta meteu-se na conversa.

- Kinder, Kinder... Maria, Kerb, não quero discussões aqui...

Ainda pensando que ti-nha adormecido no sofá da sala e que estava sonhando, Mariazinha beliscou-se. Ai. Doeu... Mas então...

- Isso é de verdade, mes-mo?

Antes que Kerb res-pondesse outra vez, a avó tomou a menina no colo.

- Mein Kind, Komm hier... Senta aqui no meu colo um pouquinho, a Oma vai te contar um segredo...

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

pinks

herb

et/2

2116

2402

3/si

zes/

l/

Page 58: SAMIZDAT12

5858 SAMIZDAT dezembro de 2008

E, na meia hora seguinte - enquanto um impaciente Kerb andava de um lado para o outro, sentindo-se ignorado -, a avó Guerta revelou à neta o porquê de seus doces serem sempre tão deliciosos. Tudo come-çava com o livro de receitas mágico, trazido por suas antepassadas quando elas imigraram para o Brasil. Passado sempre de mãe para filha, ou de avó para neta, ele trazia instruções mágicas para o preparo de qualquer prato, fazendo-os mais saborosos do que os feitos pelos mais renomados mestre-cucas.

- Mas aqui... mas aqui não tem nada escrito - es-pantou-se a menina, folhe-ando o caderninho que a avó pegara do chão e deixa-ra sobre a mesa.

- É aí que entra o Kerb... - disse, chamando com um gesto o gato, que alegrou-se ao ser mais uma vez lem-brado.

- Eu, como meu pai e meu avô e o pai e o avô do meu avô antes de mim, sou o único que consegue ver a escrita invisível que tem no livro mágico. Tenho a missão de ler essas receitas para minha ama, e, tam-bém, de dizer as palavras que completam a mágica - concluiu o felino, todo

importante.

Os olhos de Mariazinha arregalaram-se ainda mais.

- Palavras mágicas?!

- Sim, palavras mágicas - acrescentou o gato, outra vez impaciente. Será que aquela menina não sabia nada de nada? - As palavras mágicas que vão fazer os biscoitos, as cucas e o que mais sua avó fizer serem os mais deliciosos já vistos.

A pequena olhou do gato para a avó, como que que-rendo confirmar a informa-ção. Oma Guerta meneou a cabeça.

- E quais são as palavras mágicas? - quis saber Ma-riazinha.

Condescendente, Kerb dirigiu-se até o forno de barro, ergueu-se outra vez nas patinhas traseiras e, com uma colher de ma-deira, bateu duas vezes na portinha:

- Wunderbaressen geges-sen! - exclamou, também duas vezes. Depois, com um floreio, chamou Mariazinha para abrir o forno.

A menina abriu, cada vez mais maravilhada, e o aroma dos biscoitos recém-assados encheu a cozinha. Sem se conter, bateu palmas

de contentamento. A avó chegou ao seu lado e, pe-gando-a outra vez no colo, disse:

- Mädchen, agora que você já sabe como a Oma faz tanta coisa boa, eu tenho uma pergunta muito importante para lhe fazer. Você quer aprender a fazer esses biscoitos mágicos, para ser a seguidora da tradição da família?

Agora, sim, Mariazinha tinha certeza de que esta-va sonhando. Ela, fazendo aqueles biscoitos? Como poderia...?

- E você vai ter o seu próprio gatinho - comple-tou a avó.

Levantando-se e levando a menina pela mão, Oma Guerta voltou com ela para a sala. Ali, dirigiu-se para o velho relógio de pêndulo, sob o qual ficavam duas grandes portas de madei-ra que Mariazinha nunca tinha visto serem abertas. Pois a avó abriu-as e entrou, chamando Kerb e a neta para acompanhá-la. Era outra surpresa. Embora pa-recesse de fora um pequeno armário, lá dentro o espaço era gigantesco. Prateleiras e mais prateleiras de in-gredientes, potes, cestas, até um jardinzinho tinha num canto. E uma casinha...

Page 59: SAMIZDAT12

59www.samizdat-pt.blogspot.com

- Kätzie, venha cá... - cha-mou Kerb, parando à porta da casinha, e um mara-vilhoso e peludo gatinho apareceu.

- O que foi, papai? - per-guntou a bolinha de pelos.

- Esta é sua ama, Maria-zinha. A partir de agora, ela vai vir aqui todo dia para cozinhar conosco, e você vai ajudá-la - declarou o gato, solene.

Kätzie abriu um sorriso tímido para Mariazinha, que, encantada, pegou-o no colo. Precisava pensar: assumir a cozinha da avó era uma grande responsabi-lidade, mas aquele gatinho era tão lindo...

- Pense até amanhã, mein Kind - disse a avó, adivinhando-lhe as dúvi-das. - Volte de manhã, para me dizer o que decidiu. Por enquanto, leve Kätzie com você.

No caminho para casa e durante toda a noite Maria-zinha não conseguia pensar noutra coisa que na pro-posta da avó. Adorava seus biscoitos e suas cucas, e pensar que um dia poderia fazê-los... mas tinha medo de acordar no outro dia e ver que estivera certa, que tudo era mesmo um sonho. Adormeceu abraçada no

gatinho, e sonhou com ele recitando as receitas ao seu lado...

Acordou com as lambi-das de Kätzie.

- Bom dia, ama - disse o gatinho sorridente.

Todas as hesitações de lado, Mariazinha pulou o café da manhã. Com Kätzie nos braços, correu para a casa da avó. Chegando no jardim, estacou e olhou a casa. Parecia diferente hoje, embora ao mesmo tempo também fosse a mesma de sempre. Toda vez que entra-va ali gostava de imaginar que estava entrando em um lugar especial, um mundo mágico. Agora, ia entrar na casa sabendo que isso era verdade, e que a partir de agora ela também faria parte daquela mágica. Bem que a mãe sempre dizia que os mais velhos têm muito a ensinar aos mais jovens...

(uma homenagem à Vovó Leduína, à tia Guerta, às outras tias e à minha mãe, com seus biscoitos mais do que maravilhosos... sauda-des deles neste Natal...)

Nova Yorkpara Mãos-de-VAca

GUIAHenry Alfred Bugalho

O Guia do Viajante Inteligente

www.maosdevaca.com

Page 60: SAMIZDAT12

6060 SAMIZDAT dezembro de 2008

Autor Convidado

Lucas Riello de Almeida

A Escada

Já velho, subia as esca-das. Por que vim? Se nada muda. Tudo o que é para permanecer, cresce; como o que é para crescer, per-manece. O resto cai. Tudo cai. Essa força puxando a tudo para o nada. Os que ainda respiram, prolongam e se lembram. É a vida dissimulando-lhes a ver-dade. E há tanto que não pairo por estes lugares... Por que vim?

A cidade, as pessoas, essa fumaça pegajosa, o tumulto que cerca a tudo. Há muito eu não ia à Igreja, o lugar mais limpo e silencioso que conheci. A primeira vez que entrei em uma catedral, eu tinha a idade de uma criança inocente. Desejei nunca mais sair. Os detalhes do mármore, suportando grandes esculturas de he-róis, translucidados pelos

Lucas Riello de Almeida é paulista da cidade de Cotia. Arrisca os sonhos na literatura e na música, com todas as belezas que sucitam tais artes, sua paixão. Vinte anos lendo e pensando muito. Ganhou miopia, dor de cabeça, certas angústias e alguns amores.

Page 61: SAMIZDAT12

61www.samizdat-pt.blogspot.com

tons que os vitrais filtra-vam do sol, sob a melodia barroca que uma velha se-nhora dedilhava ao órgão, parecendo celebrar tudo o que ali havia. A cúpula de vidro irradiava toda mi-nha alegria e surpresa ao perceber a grande con-vergência de toda a estru-tura para o ponto único, o homem mais triste de todos os representados, ao fundo, contrastado, peque-no, soturno, mudo, vazio, completo, e muito distante. Então eu cresci e li! Eu li, e li, e li, e li... E também os deuses caem. Fica no lugar um vazio, que por sinal é a única coisa que não vai embora. O vazio de não se crer em nada e a saudade do que quer que seja.

Bêbados encolhiam-se nos degraus do lance de escadas, frente às duas grandes portas abertas e convidativas. Subi, de costas para o sol, às nove da manhã, algumas nuvens se formando no alto, sozi-nho. Uma missa dedicada aos mortos acabara há pouco e os vultos de luto colidiam contra minha vaguidão de entrar ou não, em direção à saída. Havia uma dúvida constrangi-da no olhar pesaroso de algumas dessas sombras, como se a hora final fosse, naquele instante, cair sobre todos os homens. Mas logo

o sol tocava-lhes a face, o mundo ainda estava ali, e respiravam, e dissipavam-se, reencontrando-se, vivos, esquecendo, esquecidos, tendo esperanças, desejan-do, mais incertos do que está por vir, quase felizes, fixando-se no presente, pois o futuro pertence a deus, e deus pertence ao homem.

E a quem eu pertenço? Maldita escada que não termina nunca! Estou há tanto tempo nestes degraus que talvez eu tenha dormi-do no caminho e isto seja só um sonho. Eu poderia sonhar com o amor que um dia tive. Mas do outro lado não havia ninguém, o ser amado. Só uma idéia que criei, na minha juventude, para satisfazer-me as ilusões românticas. Eu não era romântico e nem sabia o que era o amor. Quando dei conta, ela tinha partido, como a morte, silenciosa, inespera-da, violenta, para sempre. Mas como os que ainda vivem, procurei-a e fiz de tudo para que me notas-se de onde estivesse, de-monstrando que a amava mais que tudo. Restou-me esse sonho de sonhá-la, a verdadeira, aqui, comigo, no que restou do mundo desde então.

Entrei. Sentei-me à

metade, igualmente distan-te da saída e do púlpito, com seu pedestal de água benta, numa hora dessas já vazio de aliviar as an-gústias dos necessitados. Iluminou-se a igreja por dentro, com suas luzes amareladas que são acesas pela chuva que começa lá fora a bater nas vidraças, limpando a poeira dos vitrais desbotados, escure-cendo a tudo. O barulho das gotas sobrepõe-se ao cochilar de uma senhora que murmura uma reza tranqüila, perdida no cansaço de sua vida. O presente é esse abismo de tempo que se me abre das paredes e do chão, mas sobretudo de minha alma. Como eu abraçara tudo aquilo no meu cálido co-ração! A vida então fazia-me total sentido: desde o menor vestígio de vida, às grandes obras da natureza, soprando-me os ares dos sentimentos variados que aspiram no peito humano: amor, solidão, a vontade de nunca parar de viver, de conhecer a tudo, a humil-dade, a insaciabilidade, a harmonia com o todo, até além da morte, até deus e depois dele. Então que algo me arrancou a cortina que tapava a visão de minha alma. Ou pôs-lhe uma ou-tra venda, vergando o resto de inocência ao nada. Como saber? Como saber

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

rvib

ek/3

1296

8348

8/si

zes/

l/

Page 62: SAMIZDAT12

6262 SAMIZDAT dezembro de 2008

de que lado ficou meu coração? Como enxergar a vida com os olhos da Justiça, se desconfio tam-bém da precisão de minha balança, ante a dúvida do que sei contra as cer-tezas que me derramam os outros? Restou-me o enigma sempre presente a devorar-me a paz. Passa o tempo e me afundo mais neste profundo poço que é a vida.

Levantei-me para diri-gir-me ao púlpito. Qual-quer padre bastaria agora. Eu buscava somente uma demonstração de fé, uma prova, a mim, testemunho e senhor de tantas dúvi-das. Avancei por entre a tempestade que despenca-va sobre tudo. Cada passo pesava minhas decisões passadas, meus próprios julgamentos, consideran-do que a moral tenha se tornado um assunto es-quecido a todos aqueles com quem eu convivia e, talvez, estivesse read-quirindo a cor antiga. Na dúvida, a moral é viver. Assim passamos. Prossigo. Eu receava ser expulso assim que começasse a falar. Mas o que eu falaria? Tantas coisas, por tantos anos, atravessaram-me, e agora estou completamen-te vazio. Conheço todos os meus desejos e pecados. Mas frente a alguém em

quem deposito meu ampa-ro ou alegria, tristeza ou solicitude, frente a qual-quer pergunta que venha de fora, esqueço meus infortúnios e sonhos. E por isso talvez nunca chegue a viver, efetivamente.

O padre me avistava, ao longe, e eu, parado, des-protegido, encarava sua força, sustentada pela cruz que o prendia à Terra e aos Céus, sempre ali, ao fundo, como que resso-ando na memória destas paredes o alerta de que sempre haverá, no final, um julgamento. De repen-te, senti-me em casa, ao notar uma goteira dese-nhando uma poça no ta-pete cor de vinho no qual eu caminhava. É o único lugar onde talvez algo me pertença, mesmo que seja uma goteira que martele minha cabeça nas noites chuvosas e terrenas.

Meu apartamento guar-da a memória de minha vida. Manchas, fotos, quadros, espelhos, livros, cordas de violão, colheres tortas, papel amassado, cartas, idéias, sensações. Entre tudo, os amigos e a família. Procurei guardar a essência deles comigo. Lá está o registro históri-co de nossa vida. Se boa, se má, é digna de eu me lembrar dos maus e bons

momentos. Cada segundo que vivo lá é um reviver das alegrias e tristezas que passamos. Nem todos ter-minam tão próximos. Estes laços se afrouxam muito facilmente quando o con-teúdo envolvido é pouco. E há também a solidão. Muitos destes fantasmas que habitam minha mo-rada me odiaram, afinal. E quando me lembro disto, peço perdão a eles, olhan-do fixamente o nada à minha frente, paralisado, absorto, perdido, por um fio de lembrança, o rosto de alguém querido que se foi, e que está à beira de meus olhos que se fecham. E na escuridão eu posso ouvir o sussurro de todas as suas vozes ecoando no vazio de cá dentro, espe-rando, ansioso, a palavra de boas vindas. Sempre, lá estão eles, dentro de cada detalhe, no ar, nas paredes, na ausência, escutando-me, lembrando-me.

Uma gota de água me desperta. Não reconheço mais neste lugar as ale-grias e motivações que me faziam vir aqui. Onde eu estava com a cabeça? Cai um fio de luz da cúpula de vidro acima de mim, na chuva que cessa, clarean-do-me a vista. Viro-me em direção à porta. Lá fora, talvez, eu esteja a salvo. Saio... ht

tp://

ww

w.fl

ickr

.com

/pho

tos/

vict

ornu

no/4

2975

9418

/siz

es/o

/

Page 63: SAMIZDAT12

63www.samizdat-pt.blogspot.com

E se cantarem a primavera

Após um longo outono

Eu

Já estarei morto.

Melhor é cantar

de novo

e de novo.

Porque primavera

Não vem depois de outono.

Homem não, chora

Hoje vi um homem chorando no banheiro

Me disse que não, argumentou

Primeiro era cisco

Depois que vinha gripado.

Cuspiu na pia e foi embora.

Isso foi bem engraçado!

Homem também chora, mas nunca confessa.

Eu por exemplo,

Não choro.

No meio do ambiente tinha um poeta

Desperdiçar

o

papel

escrevendo

uma

palavra

por

linha

é

crime

ambiental?

Renato Wegner, 19, é estudante de Cinema na UFPel (com o curso trancado), mora atualmente em Pelotas/RS. Nunca publicou nada. Seus poemas são todos frutos de uma alegria e um otimismo mas-caro estonteante.

Renato Wegner de Souza

PoemetosAutor Convidado

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

vict

ornu

no/4

2975

9418

/siz

es/o

/

Page 64: SAMIZDAT12

6464 SAMIZDAT dezembro de 2008

Capítulo INa alvorada da vida,

uma bondosa fada apare-ceu com sua cesta e disse:

— Aqui há presentes. Pegue um, deixe os outros. E seja cuidadoso, escolha sabiamente; ó, escolha sa-biamente! pois apenas um deles tem valor.

Os cinco presentes eram: Fama, Amor, Rique-zas, Prazer, Morte. O jo-vem disse, ávido:

— Não há necessidade de refletir — e escolheu Prazer.

Ele foi para o mundo e buscou os prazeres que deleitam os jovens. Mas cada um deles era fugaz e desapontador, vão e vazio; e cada um, ao partir, zom-bou dele. No fim, ele disse:

— Desperdicei estes anos. Se eu pudesse esco-lher novamente, escolheria mais sabiamente.

Capítulo IIA fada apareceu e disse:— Restam quatro pre-

sentes. Escolha uma vez mais; e, ó, lembre-se: o tempo voa, e apenas um deles é precioso.

O homem demorou-se a refletir, então escolheu Amor; e não reparou nas lágrimas que brotaram dos olhos da fada.

Após muitos e muitos anos, o homem estava sen-

Tradução

Mark Twaintradução: Henry Alfred Bugalho

As Cinco Dádivas da Vida

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

crow

olf/4

8862

3967

/siz

es/l/

Page 65: SAMIZDAT12

65www.samizdat-pt.blogspot.com

tado ao lado dum caixão, numa casa vazia. Então ele soloquiava, dizendo:

— Uma por uma, elas se foram e me deixaram; e agora ela, a mais queri-da e derradeira, jaz aqui. Desolação após desolação passou por mim; para cada hora de alegria que o Amor, o mercador trai-çoeiro, me vendeu, paguei mil horas de pesar. Do fundo do meu coração, eu o amaldiçôo.

Capítulo III— Escolha novamente

— era a fada a falar — os anos lhe deram sabedoria, certamente. Restam três presentes. Apenas um pos-sui valor; lembre-se disto e escolha com cautela.

O homem refletiu por muito tempo, então esco-lheu Fama; e a fada, suspi-rando, partiu.

Anos se passaram e ela retornou, postando-se atrás do homem onde ele se sentava solitário, refletindo, diante do crepúsculo. E ela sabia qual era seu pensa-mento:

“Meu nome percorreu o mundo e todas as línguas o exaltaram, e isto me contentou por um tem-po. Mas por quão pouco tempo! Então veio a inveja; depois detração; depois ca-lúnia; depois ódio; depois perseguição. Então ridicu-larização, que é o começo do fim. E, por fim, veio piedade, que é o funeral da fama. Ó, a amargura e a miséria do renome!

Aponta para a lama logo em seu apogeu, para a desgraça e compaixão em seu declínio.

Capítulo IV— Escolha uma vez mais

— era a voz da fada — res-tam dois presentes. E não se desespere. No começo, havia apenas um que era precioso, e ele ainda está aqui.

— Riqueza; pois é po-der! Quão cego fui! — dis-se o homem — agora, por fim, a vida merecerá ser vivida. Gastarei, desper-diçarei, resplandecerei. Aqueles que zombam de mim e me desprezam rastejarão na imundície diante de mim, e eu ali-mentarei meu coração fa-minto com a inveja deles. Obterei todos os requintes, todas as alegrias, todos os encantamentos do espírito, todos os contentamentos do corpo que agradam um homem. Comprarei, com-prarei, comprarei! Defe-rência, respeito, estima, adoração — todas as espú-rias graças da vida que o mercado do mundo trivial pode prover. Perdi muito tempo, e, até agora, escolhi mal, mas deixe estar; eu era ignorante e considerei o melhor aquilo que pare-cia sê-lo.

Três rápidos anos se es-vaíram e chegou o dia em que o homem se sentava num sotão imundo; e ele estava esquelético, lívido e com profundas olhei-ras, vestido em trapos; ele estava ruminando um pão

duro e resmungando.— Malditos todos os

presentes do mundo, pois são ardis e mentiras dou-radas! — e os insultou, a cada um deles — Eles não eram presentes, mas me-ros empréstimos. Prazer, Amor, Fama, Riquezas: Eles eram disfarces temporá-rios para as realidades duradouras — Dor, Pesar, Vergonha, Pobreza. O que a fada disse era verdade; em todo seu estoque havia apenas um presente que era precioso, apenas um que não era desprezível. Quão pobres, baratos e imundos sei agora que eles são comparados com aquele inestimável, aquele caro, doce e gentil, que en-charca num sono sem so-nhos e duradouro as dores que perseguem o corpo, e as vergonhas e pesares que consomem a mente e o coração. Traga-o! Estou exausto, descansarei.

Capítulo VA fada veio, trazendo

novamente quatro dos presentes, mas faltava a Morte. Ela disse:

— Eu a dei para a que-ridinha duma mãe, para uma pequena criança. Era ignorante, mas confiou em mim, pedindo-me que es-colhesse por ela. Você não me pediu para escolher.

— Ó, pobre de mim! O que restou para mim?

— Aquilo que nem você merecia: o impiedoso in-sulto da Velhice.

Page 66: SAMIZDAT12

6666 SAMIZDAT dezembro de 2008

Mark Twaintradução: Henry Alfred Bugalho

A História do

Inválido

Tradução

Page 67: SAMIZDAT12

67www.samizdat-pt.blogspot.com

Aparento ter sessenta anos e ser casado, mas estes efeitos devem-se à minha condição e sofrimentos, pois sou solteiro, e tenho apenas quarenta e um anos. Será difícil para você acreditar que eu, que agora não passo duma sombra, era, há pou-co menos de dois anos, um homem saudável e vigoroso, um homem de ferro, um verdadeiro atleta! — mesmo assim, esta é a verdade nua e crua. Mas o mais estranho ainda é o modo como perdi minha saúde. Eu a perdi tentando ajudar a tomar conta duma caixa de armas numa viagem ferroviária de duzentas milhas, numa noite de inverno. Esta é a verdade de fato, e eu a contarei pra você.

Sou de Cleveland, Ohio. Numa noite de inverno, dois anos atrás, cheguei em casa logo após anoitecer, em meio a uma violenta nevas-ca, e a primeira coisa que ouvi quando entrei em casa foi que meu mais caro ami-go de infância e colega de escola, John B. Hackett, havia morrido no dia anterior, e que seu último pedido havia sido o desejo que eu levas-se seus restos mortais até seu pobre velho pai e mãe em Wisconsin. Eu estava muito estupefato e mortifi-cado, mas não havia tempo a perder com emoções; eu deveria partir imediatamen-te. Apanhei o cartão, onde estava escrito “Diácono Levi Hackett, Bethlehem, Wiscon-sin”, e me apressei através da uivante nevasca até a es-tação de trem. Ao chegar lá, encontrei a comprida caixa

de pinho branco tal qual me havia sido descrita; preguei o cartão nela com algumas tachinhas, vi-a sendo posta com segurança a bordo no carro expresso e, então, cor-ri para o refeitório para me prover com um sanduíche e alguns charutos. Quando voltei, algum tempo depois, ali fora estava o meu es-quife, aparentemente, e um jovenzinho examinando-o, com um cartão em suas mãos, algumas tachinhas e um martelo! Eu estava embasbacado e confuso. Ele começou a pregar seu car-tão, então apressei-me para o carro expresso, num esta-do de mente alterado, para exigir uma explicação. Mas que nada — ali estava mi-nha caixa, tudo em ordem, no carro expresso; ela não havia sido mexida. (O fato é que, sem eu suspeitar, um equívoco prodigioso havia sido feito. Eu estava carre-gando uma caixa de armas que o rapazinho havia trazi-do à estação para remetê-la a uma empresa de rifles em Peoria, Illinois, e ele havia ficado com meu cadáver!). Foi então que o condutor berrou “todos a bordo” e eu pulei para dentro do car-ro expresso e arranjei um assento confortável num amontoado de baldes. O carregador estava ali, forte na lida — um homem co-mum, na casa dos cinqüenta anos, com uma expressão simples, honesta e bondosa, e de modos leves e com um vigor prático. Assim que o trem se moveu, um estra-nho saltou para dentro do vagão e deixou um pacote do peculiar queijo Limbur-

ger, maturado e com qua-lidade, num dos cantos do meu esquife — quer dizer, da minha caixa de armas. Ou melhor, agora eu sei que era um queijo Limburger, mas àquela época, eu nunca havia visto o artigo na vida e era, é claro, totalmente ignorante quanto suas carac-terísticas. Bem, avançamos através da noite selvagem, a ferina nevasca continuava enfurecida, bateu-me uma nefasta melancolia, meu pei-to se apertou, se apertou, se apertou! O velho carregador teceu um ou dois súbitos comentários sobre a nevasca e o clima ártico, bateu com força as portas corrediças, aferrolhou-as, cerrou sua janela e, andou dum lado pro outro, aqui, ali e aco-lá, ajeitou as coisas, toda a hora cantarolando contente “Sweet By and By”, em baixo tom, murmurando. Depois dum tempo, eu comecei a notar um odor quase malig-no e penetrante rompendo o ar gélido. Isto deprimiu meu espírito ainda mais, porque eu o atribui, é claro, a meu pobre finado amigo. Havia algo infinitamente entriste-cedor em pensar que eu me lembraria dele deste estú-pido modo patético, de tal maneira que foi difícil para conter as lágrimas. Além disto, eu me inquietava por conta do velho carrega-dor, temia que ele pudesse perceber o cheiro. Contudo, ele prosseguiu cantarolando tranqüilamente, e não deu nenhum indício; pelo que fiquei agradecido. Agrade-cido, sim, mas ainda assim desconfortável; e logo co-mecei a me sentir mais e ht

tp://

ww

w.fl

ickr

.com

/pho

tos/

free

foto

/209

6597

652/

size

s/o/

Page 68: SAMIZDAT12

6868 SAMIZDAT dezembro de 2008

mais desconfortável, pois a cada minuto que se passava o odor se adensava, e se tor-nou mais e mais repugnante e difícil de suportar. Após um tempo, tendo ajeitado as coisas a seu contento, o car-regador apanhou um pouco de lenha e fez um fogo tre-mendo em sua fornalha.

Isto me inquietou mais do que posso descrever, pois não pude evitar de sentir que isto era um erro. Eu estava certo de que o efeito seria deletério sobre meu pobre finado amigo. Thompson — o nome do carregador era Thompson, como descobri no decorrer da noite — agora vagava por seu vagão, fechando quais-quer eventuais fendas que ele pudesse encontrar, lem-brando que não fazia dife-rença que tipo de noite esta-va lá fora, ele pensava estar nos deixando confortáveis, de qualquer maneira. Eu não disse nada, mas acreditava que ele não estava fazendo uma boa escolha. Enquanto isto, ele cantarolava para si como antes; e enquanto isto, também, a fornalha estava ficando mais e mais quente, e o ambiente mais e mais sufocante. Eu comecei a empalidecer e a nausear, mas sofria em silêncio e não disse nada.

Logo notei que o “Sweet By and By” gradualmente se esmoreceu; em seguida, ces-sou totalmente e que havia uma imobilidade ominosa. Após alguns momentos, Thomson disse:

“Puxa! Eu acho que não foi canela que joguei ali na fornalha!

Ele se engasgou uma ou duas vezes, então se moveu em direção ao esqu— a cai-xa de armas, estacou diante da parte do queijo Limbur-ger por um momento, então ele voltou e se sentou perto de mim, aparentando estar bastante impressionado. Após uma pausa contem-plativa, ele disse, indicando com um gesto a caixa:

— Amigo d’ocê?

— Sim — eu disse, com um suspiro.

— ‘Tá já bem avançado, né!

Nada além disto foi dito por talvez um par de minu-tos, cada um ocupado com seus próprios pensamen-tos; então Thompson disse, numa voz baixa e reverente:

— Às vezes, não se tem certeza se eles realmente partiram ou não — parecem ter partido, você sabe — a quentura do corpo, juntas moles — e assim por diante, e mesmo que você ache que eles se foram, você não tem certeza. Eu tive casos em meu vagão. É completamen-te horrível, porque você não sabe se a qualquer minuto eles não vão se levantar e olhar pra você!

Então, após uma pausa, e erguendo um pouco seu cotovelo em direção à caixa:

— Mas ele não ‘tá em nenhum transe! Não, senhor, ponho minha mão no fogo!

Nós nos sentamos por algum tempo, em silêncio meditativo, ouvindo o vento e o ronco do trem; então Thompson disse, com uma boa dose de sentimento:

— Bem, bem, todos nós temos que ir, não tem como fugir disto. O homem que nasceu de mulher tem os dias contados, como dizem as Escrituras. Sim, você pode olhar pra isto do jeito que quiser, é tremendamente so-lene e curioso: Não tem nin-guém que vai escapar; todos vão embora — todo mundo, como se diz. Um dia, você está vigoroso e forte — nes-te ponto, ele se pôs de pé e quebrou uma janela e esti-cou o nariz para fora dela por um segundo ou dois, então se sentou de novo, en-quanto eu me esforcei para lançar meu nariz para o mesmo lugar, e continuamos fazendo isto vez ou outra — e no dia seguinte, ele foi ceifado como a grama, e os lugares que o conheciam não o conhecem mais, como dizem as Escrituras. É verda-de, é tremendamente solene e curioso; mas todos temos de ir, um dia ou outro; não tem como fugir.

Houve outra grande pau-sa; então:

— Do que ele morreu?

Eu disse que não sabia.

— Há quanto tempo ele morreu?

Pareceu-me sensato au-mentar os fatos para encai-xá-los nas probabilidades; então, eu disse:

— Dois ou três dias.

Mas isto não surtiu efeito, pois Thompson recebeu-o com um olhar ultrajado e, sem rodeios, disse:

— Dois ou três anos, que você quer dizer.

Então ele prosseguiu, pla-

Page 69: SAMIZDAT12

69www.samizdat-pt.blogspot.com

cidamente ignorando meu comentário, e deu vazão a suas opiniões sobre a insen-satez em retardar demais sepultamentos. Ele se apro-ximou languidamente da caixa, parou por um mo-mento, então retornou com um abrupto trote e pagou uma visita à janela quebra-da, comentando:

— Teria sido uma baita duma visão melhor, em to-dos os aspectos, se tivessem despachado ele no verão passado.

Thompson se sentou e escondeu o rosto em seu lenço de seda vermelha, e começou a balançar lenta-mente o corpo pra frente e pra trás como se estivesse se esforçando o máximo para agüentar o insuportável. A estas horas, a fragrância — se é que se pode chamar aquilo de fragrância — esta-va sufocante, ou o mais per-to que se pode chegar disto. A face de Thomspon estava ficando cinza; eu sabia que não restava cor alguma na minha. Depois, Thompson descansou a fronte em sua mão esquerda, com o coto-velo sobre o joelho, e meio que abanava seu lenço ver-melho em direção a caixa com a outra mão, e disse:

— Já carreguei muitos destes — alguns já bastante passados também —, mas, Deus do Céu, este deixa todos os outros no chine-lo! — E de longe, capitão, os outros eram como girassóis comparados a ELE!

Este reconhecimento de meu amigo me gratificou, a despeito das tristes circuns-

tâncias, porque isto havia me parecido mais como um elogio.

Era óbvio que algo preci-sava ser feito logo. Eu sugeri charutos. Thompson pensou que esta era uma boa idéia. Ele disse:

— Provavelmente isto vai amenizar um pouco.

Nós tragamos com expec-tativa por algum tempo, e tentamos pra valer imaginar que as coisas haviam melho-rado. Mas foi inútil. Após muito tempo, e sem qual-quer combinação, ambos os charutos silenciosamente caíram de nossos dedos inertes, simultaneamente. Thompson disse, suspirando:

— Não, capitão, isto não amenizou nem um tostão. O fato é que deixou pior, porque parece que atiçou seu poder. O que você acha que é a melhor a gente fazer agora?

Eu não estava apto a sugerir algo; na verdade, eu estava engolido a seco, todo o tempo, e não queria me arriscar a falar. Thompson desatou a resmungar, de ma-neira errática e mal-humo-rada, sobre as experiências desagradáveis desta noite; e ele se referia a meu po-bre amigo através de vários títulos — alguns militares, outros civis —; e eu notei que com a mesma rapidez que a eficácia do meu pobre amigo crescia, Thompson o promovia de acordo, dando-lhe um título mais elevado. Por fim, ele disse:

— Tive uma idéia. E se a gente fizer um esforço e dar um empurrãozinho no

coronel até para o fim do vagão?— uns cinco metros, talvez. Ele não teria tanta influência, então, não acha?

Eu disse que este era um bom plano. Então nós toma-mos um belo fôlego de ar fresco na janela quebrada, calculando segurá-lo até perfazermos a tarefa; então fomos até lá, inclinamo-nos sobre aquele queijo mortí-fero e agarramos a caixa. Thompson indicou com a cabeça “tudo pronto”, e nós nos projetamos, com toda nossa força; mas Thompson escorregou e tombou com o nariz no queijo e perdeu o fôlego. Ele tapou a boa e se engasgou, cambaleou e abriu uma fresta na porta, suplicando por ar e disse, arquejando:

— Não me segura! Me dá espaço! Estou morrendo; me dá espaço!

Sentei-me fora, na pla-taforma fria, e segurei a cabeça dele por um tem-po, enquanto ele retornava à consciência. Depois, ele disse:

— Você acha que a gente mexeu o general pra lá?

Não, eu disse, não conse-guimos movê-lo.

— Bem, então aquela idéia está fora de cogitação. A gente tem de pensar em ou-tra coisa. Ele está bem onde ele está, eu acho; e se este é o jeito que ele se sente sobre isto, e ele decidiu que não quer ser perturbado, você pode apostar que vai ser do jeito que ele quer. Sim, me-lhor deixar ele exatamente onde ele está, o tempo que ele quiser ficar; porque ele

Page 70: SAMIZDAT12

7070 SAMIZDAT dezembro de 2008

está com o jogo ganho, sabe, assim, pela lógica, o homem que tentar alterar seus pla-nos sairá perdendo.

Mas nós não poderíamos ficar expostos àquela insana nevasca, pois morreríamos congelados. Então retorna-mos para dentro e fechamos a porta, e voltamos a sofrer e a nos revesarmos na ja-nela quebrada. Depois dum tempo, enquanto partíamos duma estação onde havía-mos parado por uns instan-tes, Thompson saltou pra dentro, alegre, e exclamou:

— A gente vai ficar bem agora! Acho que apanhamos o comodoro desta vez. Creio que eu consegui a coisa que vai tirar o fedor dele.

Era ácido carbólico. Ele tinha um frasco disto. Ele o borrifou por todo os cantos; na verdade, ele encharcou tudo com isto, a caixa de rifles, o queijo e todo o resto. Então, nós nos senta-mos, sentindo-nos bastante esperançosos. Mas não du-rou muito. Os dois odores começaram a ser misturar e, então, bem, logo tivemos que abrir a porta; e lá fora Thompson limpava seu ros-to com o lenço e disse num tom devastado:

— Não tem jeito. Não po-demos vencê-lo. Ele simples-mente usa tudo que a gente põe pra amenizar, e põe seu próprio odor e joga de volta na gente. Por que, capitão, não percebe, está cem vezes pior do que quando come-çou. Eu nunca vi um deles se empolgar tanto em seu trabalho assim, e ter tanto interesse nele. Não, senhor,

nunca vi, em todo estes tempos de estrada; e já car-reguei muitos deles, como disse pr’ôce.

Voltamos para dentro quando já estávamos duros de frio, mas, misericórdia, não conseguíamos ficar lá dentro. Então, simplesmen-te passamos a valsear de dentro pra fora, de fora pra dentro, congelando, descon-gelando, e sufocando, em revezamentos. Em torno de uma hora depois, paramos em outra estação, e, assim que partimos, Thompson veio com uma sacola e disse:

— Capitão, vou arriscar a sorte uma vez mais, ape-nas esta vez; se a gente não pegar ele agora, a coisa que vai restar pra gente fazer vai ser jogar a toalha e deixar a lona. É isto que proponho.

Ele havia trazido um pu-nhado de penas de galinha, maçãs secas, folhas de taba-co, tapetes, sapatos velhos, enxofre, assafétida, e uma ou outra coisa; e ele empilhou tudo numa lâmina de ferro no meio do chão e tocou fogo.

Quando o fogo já esta-va bem avançado, eu não consegui imaginar como até mesmo o cadáver consegui-ria suportar o cheiro. Tudo havia vindo antes era ape-nas poesia em comparação àquele cheiro, mas acredite você, o cheiro original conti-nuava tão sublime quanto antes; a verdade é que os ou-tros cheiros pareciam for-talecê-lo; e, meu Deus, quão forte ele era! Eu não fiz estas considerações lá, pois não

havia tempo, fi-las na pla-taforma. E rompendo para a plataforma, Thompson sufocou e caiu; e antes que eu pudesse arrastá-lo, pelo colarinho, eu mesmo quase havia desmaiado. Quando recobramos a consciência, Thompson disse, deprimido:

— Temos de ficar aqui fora, chefia. Temos de ficar. Não tem outro jeito. O go-vernador quer viajar sozi-nho, e ele está decidido que pode nos vencer.

E depois ele acrescentou:

— E você não sabe, a gente está envenenado. Esta é nossa última viagem, você pode estar certo disto. Por causa disto, a gente vai ter febre tifóide. Já estou sen-tindo ela vindo, neste exa-to momento. Sim, senhor, fomos escolhidos, tão certo como o fato de você ter nascido.

Fomos recolhidos da plataforma uma hora depois, congelados e sem sensibi-lidade, na próxima estação, e sucumbi a uma febre virulenta, e fiquei fora de combate por três semanas. Descobri, então, que eu pas-sei uma noite terrível com uma inofensiva caixa de rifles e um inocente bocado de queijo; mas as novidades vieram tarde demais para me salvar; a imaginação havia feito seu trabalho e minha saúde estava perma-nentemente abalada; nem Bermuda, nem qualquer outra terra poderia restaurá-la. Esta será minha última viagem; estou a caminho de casa para morrer.

Page 71: SAMIZDAT12

71www.samizdat-pt.blogspot.com

Mark Twain é o pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), primeiro grande escritor do oeste dos Estados Uni-dos que exerceu grande influência sobre todos os escritores que se esforçaram por “descobrir a Amé-rica” através de suas paisagens, das peculiaridades de seu povo e de seu folclore.

Clemens passou a infância às margens do rio Mississipi. Perdeu o pai aos 12 anos quando come-çou a trabalhar para ajudar nas despesas de casa. Foi entregador, escriturário e ajudante. Aos 13 anos tornou-se aprendiz de tipo-grafia, e depois, trabalhando como impressor, viajou por diversos estados. Aprendeu navegação no rio Mississipi tornando-se piloto fluvial. Nessa época começou a es-crever textos de humor e adotou o pseudônimo de Mark Twain, termo usado pelos barqueiros, que signi-fica “duas marcas” na verificação da profundidade dos rios.

Depois participou da Guerra Civil, como confederado. Após o conflito, foi para o Oeste (Neva-da) onde viveu com seu irmão. Passou a escrever para o jornal da cidade de Virginia. Foi jorna-lista e conquistou o público com o conto “A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras”, publi-cado em 1865. Dois anos depois, Twain visitou a França, a Itália e a Palestina, recolhendo material para o seu livro “The Innocents Abroad” (1869), que estabeleceu a sua reputação de humorista. Twain se casou com Olívia Lang-don em 1870 e se fixou em Har-tford, Connecticut.

Dois anos mais tarde publicou “Roughing It”, e em 1873 “The Gilded Age”. Em 1876 saiu a primeira das suas grandes obras, “As aventuras de Tom Sawyer”, romance baseado nas experiências da adolescência do autor no rio Mississipi. No livro seguinte, “A Tramp Abroad” (1880) o autor

visitou a Europa, regressando com “Vida no Mississipi”(1883). A obra-prima da carreira literá-ria de Twain, “As aventuras de Huckleberry Finn”, foi publicada em 1884.

O livro, que parecia só uma obra para jovens, constituía na reali-dade uma fábula da América que se urbanizava e industrializava enfrentando o sonho de uma vida na liberdade da natureza. “Huck” representava muitas das aspira-ções da sociedade americana, com as quais o público facilmente se identificou. O romance estabele-ceu definitivamente Twain como um dos grandes humoristas da literatura mundial. Outras obras do autor: “O Príncipe e o Men-digo”, “Um ianque na corte do

rei Artur” (1889), “A tragédia de Pudd’nhead Wilson”(1894) e “Joana D`Arc (1896).

A década de 1890 foi marcada por dificuldades financeiras e nos últimos anos a caricatura burlesca deu lugar a um pessimismo satíri-co. A dimensão irônica do mundo e em particular do sonho america-no revelaram um retrato america-no em toda a sua materialidade.

Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u507.jhtm

Page 72: SAMIZDAT12

7272 SAMIZDAT dezembro de 2008

Volmar Camargo JuniorVersión: Xoan Cullereiro (Enrique Gutiérrez Miranda)

La esencia de las horas

Del carozo de una horaextraje la substancia vítrea,oleosa;breve cual la voluntad,etérea cual la sensatez.

En ningún recipientepude contenerla contenta.Se escapaba siempre un tanto,a veces mucho;casi siempre duplicaba su tamaño,y así, poco a pocolas gotas,las partículasrellenaron el espacioque tan bien conozco.

Era seductora, envolvente;la bruma que de ella nacía,—pues bruma era—era un vapor invisibleque hizo desaparecer las paredes,el paisaje de la ventana,los hábitos convenientes

y mis pies.

Así, día a día,si aún recordaba lo que eranacabé por no verlos.

Me dejé, entregado,a la esencia del carozo de las horas.Inhalé, comí, bebí,me desnudé;y así, desnudo,me cubrí entero con ella.

No era dolor,era más bien un fríode las puntas del cabello a la boca del estómago.Me enredó.Dentro y fuera de mí vivía aquello;imposible contenerlo.E incluso cuando de lo hondo de la gargantanació el último murmullola cosa cristalizó,

Tradução

Page 73: SAMIZDAT12

73www.samizdat-pt.blogspot.com

se hizo hielo,roca,diamante,vidrio.

Era el vidrio en mí,el vidrio de las horas—el vidrio de las raíces del tiempo,de todo el vítreo árbol que es el tiem-po,de su vítreasangre de lo que no se ve—.Era el vidrio en mí.

Ya no en la horas,ya no rellenando los vacíosentre las partículas del polvodel tejido de las estrellas.Era el vidrio en mí.Dejó de ser esenciaprimordial, o quintaesencial.Era en mí.Era yo.

Y,como es propio de las cosasnacidas o sacadasdel árbol que da los frutos del tiempo,el vidrio que me tenía cristalizadodesapareció.

Volvieron las ropas,las paredes, las ventanas,el paisaje,los zapatos.

De la esencia de las horasquedo sólouna gota.Se escurrió por mi cabeza hasta la pun-ta de la nariz;intempestiva,decidida,libre,se lanzó al espaciocon un chapoteo que sólo yo percibíhasta el choque final contra el suelo.

Salí.Cerré las ventanas, atranqué las puer-tas.Seguí como pudevivo como consigo.

Permanece aún allá, intocado,el suelo donde cayó la última gotade la substancia vítrea,oleosa,extraída del carozo de una hora.

Tenía la esperanza de quedonde había caído la gotapudiera brotar otro árbolcon un tiempo diferente,quién sabe si mezcladocon un poco del polvo,de ese polvo que yo soy.

http://www.flickr.com/photos/balakov/336577397/sizes/o/

Page 74: SAMIZDAT12

7474 SAMIZDAT dezembro de 2008

AutObIOGRAFIAENRIquE GutIéRREz MIRANDA, POEtA AFICCIONADO E tRADutOR COMPuLSIVO

Tradução: Volmar Camargo Junior

Nasci em Bueu, Ria de Pontevedra, Galicia, às 23:45 de 15 de julio de 1957, dia de São Enrique. Cresci em A Pobra do Caramiñal, onde vivi de 1960 a 1975. Estudei em diversos colé-gios de A Pobra, Santa Uxía de Ribiera e Ourense sem muito proveito.

Minha família mudou-se para Madrid em setembro de 1975, um par de meses antes da morte do general Franco.

Em janeiro de 1976, deslumbrado pelas luzes da cidade – e com o corres-pondente desgosto de meus pais – abandonei os estudos, ou eles me abandonaram, e dediquei-me a desenhar e escrever num fanzine un-derground. A cidade fervia e chegou a famosa “Movida madrileña¹”. O underground entrou para a história. Para mim chegou a idade de cumprir com os deveres pátrios e fui dar tiros nas pedras e apagar incêndios

florestais em Valencia, na serra de Maestrazgo.

Quando retornei a Ma-drid algo havia mudado na cidade e também em mim. Estive um ano sem dese-nhar nem escrever.

Trabalhei algum tempo como desenhista no estúdio de uns amigos arquitetos. Comecei a desenhar e a es-crever em uns caderninhos quadriculados de espiral, apenas para mim.

Tradução

Page 75: SAMIZDAT12

75www.samizdat-pt.blogspot.com

Os amigos dispersaram e fui viver na Serra Norte de Madrid durante cinco anos, na proporção de uma vila e uma casa diferente por ano. Tive um bar e um res-taurante, no qual eu mesmo era o cozinheiro. Na época, desenhei, escrevi e li pouco.

Voltei para A Pobra do Caramiñal, onde vivi em uma aldeia de seis casas, Gonderande, rodeada de horta e milharais durante um ano e três meses. Vendi balas e guloseimas pelos povoados da região em uma van acompanhado de um amigo.

Em janeiro de 1995 che-guei a Barcelona. Trabalhei dois meses na cozinha de um hospital e depois num restaurante, mas uma tarde joguei o avental no chão e fui embora sem exigir meu pagamento. Encontrei emprego em uma tenda de jogos e apostas federal, onde ainda trabalho.

Certo dia comprei um PDA, para organizar meus livros e minha coleção de postais eróticos. Tive a idéia de ir transferindo para o PDA os poemas dos caderninhos quadricula-dos. Porém esse trabalho se converteu em um processo de reelaboração e recriação de tudo o que havia sido escrito entre 1987 e 2005.

Organizei tudo e reuni em um livro ao qual cha-mei Fragmentos de un frac-tal. Metros e rimas clássicas ou quase, incluindo algum soneto, temas variados, em

espanhol além de algum poema em galego acompa-nhado de minha própria tradução. Não o enviei a nenhuma editora. Não publicado. Imprimi duas ou três cópias para alguns amigos.

Encontrava-me sem saber como continar es-crevendo. Escrevi alguns poemas soltos. Ocorreu-me de voltar aos caderninhos quadriculados. A partir do primeiro caderno escrevi Árboles aves algas. 39 séries de 80-90 versos octossíla-bos ou tetrassílabos, com e sem rima; cada série cor-respondente a uma página do caderno. Um pouco surrealista e críptico. Não publicado.

O segundo rendeu-me Hojas de hiedra. 40 séries. Mais elaborado, metros variados, com e sem rima. Com um apêndice de voca-bulário (palavras que inven-to e outras raras) e outro de referências, citações de poemas e canções de pop ou rock, com o original e minha tradução. Não publi-cado.

Agora estou com o ter-ceiro caderno. Ao conjunto total dos livros-caderno chamo Laberintos y espira-les. ]

Tentei fazer uma página na web para publicar mi-nhas coisas, mas era de-masiado difícil para mim. Optei pelos blogs. Depois de vários tentativas e blogs eliminados acabei ficando com três: Um para poemas

de Fragmentos de un frac-tal, ilustrado com imagens que baixo da rede. Outro, recém-começado, para Hojas de hiedra, que estou escrevendo agora, e talvez algo de Árboles aves algas, com fotografias minhas de grafittis das ruas de Barce-lona. E outro para minhas traduções de galego, portu-guês, catalão, inglês, francês e talvez também italiano.

Olhai, crede

hoje em dia

a poesia

está na Rede.

Blogs de Enrique Gutiér-rez Miranda

Poemas y fragmentos: http://enriquegutierrezmi-randa.blogspot.com/

Laberintos y espirales: http://labesp.blogspot.com/

Perversión Poética: http://pervpoet.blogspot.com/

Referências (links)

¹ Movida Madrilena: http://es.wikipedia.org/wiki/Movida_madrileña

AutObIOGRAFIAENRIquE GutIéRREz MIRANDA, POEtA AFICCIONADO E tRADutOR COMPuLSIVO

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

carl

osfr/1

2220

2118

1/si

zes/o/

Page 76: SAMIZDAT12

7676 SAMIZDAT dezembro de 2008

O escritor urbano, sem ser literato, sonha-dor, massivo, político faz ficção urbana. (Re)Cria o espaço, o tempo, e prin-cipalmente, os citadinos seres humanos: idiotas, espertos, doentes, intelec-tualizados por mentiras, sensíveis uns aos outros de maneiras improváveis, seres humanos de fic-ção que ouvem, contam, recontam e continuam rindo da mesma velha anedota de sempre. Es-creve sobre si mesmo. Mas também, é provável, aceitável, até desejável que seja sobre todos os urbanos, porque, sendo

tão parecidos, são todos irremediavelmente atra-ídos uns pelos outros. E parecido é um eufemis-mo para iguais.

A ficção urbana é a pior das criaturas dessa realidade, porque é feita rigorosamente da mes-ma massa de que ela, a realidade de cimento, asfalto, borracha, fios de cobre, leds e derivados de petróleo. Os urbanos falam sobre ser urbano, e ao mesmo tempo, falam sobre não sê-lo. A ficção, quando é boa, faz-nos pensar na grande idiotice em que vivemos atola-

dos, e, paradoxalmente, joga-nos ainda mais para o fundo dela. A ficção urbana não quer que se-jamos idiotas, porém, não teme falar sobre o fato de a vida urbana ser, efetiva-mente, idiota, e estarmos constantemente fugindo dela por variadas e delei-tosas válvulas de escape. A ficção urbana é, antes de tudo, uma metaficção.

E, vejam, nem falei em literatura, em arte lite-rária. Penso que isso, se existe, é um ideal, velho como os livros, divino, inacessível, a própria constituição de porções

Teoria Literária

Volmar Camargo Junior

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

jale

x_ph

oto/

3908

9644

9/si

zes/o/

MANIFEStO uRbANICIStA

Page 77: SAMIZDAT12

77www.samizdat-pt.blogspot.com

significativas da nossa idiotice, e que, por tanto a desejarmos, nem sabe-mos mais o que ela é. A arte literária é, como os ideais, as lutas e as re-voluções, uma piada de mau gosto, da qual ela própria, a abstrata litera-tura, ri-se. A arte, se há, mais importante, mais completa, mais instigante, mais capaz de arrancar o urbano do lodo de sua própria existência é a ficção. E pouco importa se é ou não literatura.

Por tudo isso, o presen-te manifesto é pelo Urba-nicismo:

Não é luta – basta de lutas!

Não é revolução – es-tamos fartos de revolu-ções!

Não é ideal – chega de ideais!

Não é sonho – há sonhos, sim, mas é o fato, e não o sonho, o que o escritor urbano, doravan-te urbanicista, quer.

Este é o movimento da constatação. Não somos bons, não somos maus, não somos melhores que o que fomos no passado, nem seremos melhores num futuro. A ficção

urbanicista é sobre o que há, e convida a olhar – sim, a olhar, não con-templar, mas olhar, estar presente, capturar o que há – no urbano.

Não é a supremacia do citadino sobre o do campo, porque mesmo o campesino é urba-no, quando quer sê-lo e quando abomina a urba-nidade.

Não é a supremacia do prosaico sobre o subli-me, porque o sublime é a moldura, a forma e a estrutura do prosaico.

O escritor urbanicista captura o fato, como uma câmera fotográfica. Quem sabe, uma câmera digi-tal, porque o resultado é imediato, instantâneo – das tantas maravilhas, idiotas, mas úteis, que nos fazem tão especiais.

O urbanicista não ape-nas quer a unidade com o outro, mas assume-se, sem restrições e sem medos, que é o outro, que é o eu-poético, que é o personagem de ficção.

O urbanicista respei-ta o ideal do passado – ele não quer revolu-ções – mas constata e aceita as tantas formas de

expressar-se, sobretudo a língua, como são, e, como devem ser, porque esta é uma interação constante, infinita, e não cabe ao es-critor julgar, talvez, nem posicionar-se. Cumpre-lhe a tarefa de capturar – e mostrar, não como denúncia – a urbanidade: o que a constitui, o que nela há, o que ela é, e, principalmente, quem a vivencia.

O Urbanicismo existe já de antes deste manifes-to. O escritor que deseje aderir a ele deve antes esquecê-lo – não comba-tê-lo. Se quiser começar a escrever ficção urbani-cista, deve primeiramente esquecer-se do universo, do mundo, da cidade, dos outros, de si, e voltar olhar para o próprio ato de escrever: o seu pri-meiro fato. Todo escritor urbanicista deve, antes de tudo, traçar o seu próprio Manifesto, porque em cada urbano há um olhar da urbanidade – que é um, e é muitos – e só ele pode saber como expres-sará esse olhar.

MANIFEStO uRbANICIStA

Page 78: SAMIZDAT12

7878 SAMIZDAT dezembro de 2008

Teoria Literária

A LINGuAGEM DO DIA-A-DIA NA LItERAtuRA

Henry Alfred [email protected]

http://www.flickr.com/photos/fchouse/2706871095/sizes/o/

Page 79: SAMIZDAT12

79www.samizdat-pt.blogspot.com

A LINGuAGEM DO DIA-A-DIA NA LItERAtuRA

A tendência natural de todo escritor é começar escrevendo de maneira semelhante à que fala.

Estamos imersos na linguagem oral desde que nascemos, desde as primeiras palavras que nos dirigem nossos pais. Primeiro, aprendemos a falar, a comunicarmo-nos através da emissão e arti-culação de sons.

O hábito da escrita só começa a surgir poste-riormente, muitas vezes apenas quando passamos a freqüentar a escola. Por isto, quase sempre a competência de expressão escrita é inferior à compe-tência oral.

As regras que regem a linguagem valem tanto para a fala quanto para a escrita, são exatamente as mesmas normas gramati-cais. No entanto, o uso, a necessidade de comuni-cação rápida, ou mesmo vícios e corruptelas no interior duma comunida-de lingüística afastam a escrita e a oralidade.

Por mais que a lingua-gem falada anteceda a escrita, isto não significa que esta deva reproduzir literalmente a primeira. São níveis de comuni-cação diferentes e, en-quanto a escrita pode ser

Page 80: SAMIZDAT12

8080 SAMIZDAT dezembro de 2008

utilizada para meros fins comunicativos, a escrita literária transcende esta instrumentalidade. A Literatura comunica, mas sem perder os requintes, as sutilezas e a beleza da linguagem.

Até o século XIX, os limites entre a linguagem literária e a oral eram muito evidentes. Não era à toa que a literatura era conhecida como belles let-tres, em oposição à escrita voltada para a simples comunicação de algo.

O modernismo do sé-culo XX surgiu em con-traposição ao beletrismo, recorrendo, assim, a uma proximidade à língua do dia-a-dia, trazendo para a Literatura o mundano, o minimalismo, as imperfei-ções, o simplório, o feio. Apesar de haver expandi-do a compreensão do que é Literatura, a moderni-dade também instaurou a ausência de critérios de avaliação: tudo passou a ser arte, tudo passou a ser literário.

Assim como em todas posições antagônicas, o debate entre coloquialis-mo e purismo arrebanha seguidores nas duas dire-ções. Os autores de orien-tação beletrista defendem uma autonomia da lingua-gem literária, enquanto

que os de índole moder-nista trazem para suas pá-ginas a língua ordinária.

Analisemos, então, alguns pontos que contri-buirão para compreender-mos como nossas escolhas influenciam nossa escrita.

1 - a literatura não é a realidade, portanto, não precisa ser regida pelas mesmas práticas, pelas mesmas leis, pelos mesmos princípios presentes no mundo real.

No mundo real, as performances lingüísticas costumam variar de acor-do com nosso interlocu-tor: quando falamos com uma pessoa mais “simpló-ria”, há uma tendência a usarmos um vocabulário menos rebuscado, diante de interlocutores mais sofisticados, tentamos elaborar sentenças mais complexas.

Isto não é uma prática existente apenas entre os mais educados (educação formal), mas presente em todas as classes sociais. Basta assistirmos a um telejornal para ver como todos tentam “falar boni-to”, mesmo que acabem incorrendo em mais erros por causa disto.

Na verdade, esta nive-

lação lingüística é, em parte, uma prática incons-ciente de rapport, de iden-tificação entre os falantes. Lembro-me duma entre-vista do Ratinho para o programa “Observatório da Imprensa”, quando, um dos entrevistadores per-guntou ao apresentador:

- No seu programa, você fala errado muitas vezes. No entanto, aqui, você não cometeu um único erro de português? Por quê?

Então, o Ratinho res-pondeu:

- Porque eu preciso fa-lar igual ao meu público.

Ou seja, na vida real, a seleção de qual registro da língua utilizaremos influenciará no modo como seremos recebido por nossos ouvintes.

2 - Como a literatura não é a realidade, mas um simulacro, ela precisa esta-belecer quais são as regras que a regem.

Se partirmos da lógi-ca anterior, não há nada de errado em optar pelo coloquialismo, posto que o autor é o senhor do mundo literário que cria. No entanto, ele estará de-limitando o horizonte de interpretação e de recep-

Page 81: SAMIZDAT12

81www.samizdat-pt.blogspot.com

ção da obra. Aliás, toda vez que um autor faz uma escolha, de tema, enredo, linguagem, ele já está deli-mitando seu público.

Um público em busca dum texto mais sofisti-cado pode não receber bem um texto coloquial, do mesmo modo que um leitor em busca de algo mais “real”, pode não rece-ber bem um texto formal. Quer dizer, é uma questão de escolha, de direciona-mento.

Mas estas regras pre-cisam estar claras e fazer sentido no interior da obra. É necessário haver coerência: um persona-gem não pode falar erra-do em certos trechos, mas falar certo (com as mes-mas palavras) em outro, sem alguma razão óbvia.

Graciliano Ramos é muito hábil na hora de se apropriar destes dois níveis de discurso. Em “Vidas Secas”, por exem-plo, ele apresenta uma vida mental muito intensa em seus personagens, até para a cachorra Baleia, po-rém os personagens não possuem vocabulário para expressarem seus pen-samentos, por isto, quase sempre os diálogos são lacônicos. Quer dizer, há uma ruptura entre pen-samento e fala: em suas

mentes, os personagens possuem um léxico e uma fluência que não corres-pondem ao vocabulário simples e pragmático da vida cotidiana.

3 - A língua é construída historicamente, por isso, o que é erro hoje, amanhã é norma.

Sem dúvida, este é o maior ponto em defesa do coloquialismo, pois mui-tas práticas consideradas erradas em autores pre-téritos, hoje são normas gramaticais e ortográficas.

No entanto, há um problema bastante especí-fico nesta mutabilidade da língua: várias expressões populares e gírias caem rapidamente em desuso, assim, rechear um texto com tais expressões pode empobrecer a compreen-são dum eventual leitor futuro. Euclides da Cunha e Camões serão compre-endidos por um leitor de língua portuguesa daqui cem anos, mas as músicas dum funqueiro provavel-mente serão bem menos compreensíveis.

Eu, enquanto escritor, penso tanto no leitor de hoje, quanto o de amanhã, por isto, acabo escolhen-do escrever dum modo a conceder maior durabili-

dade a meus textos. Lem-bro-me de muitas gírias minhas de infância que hoje nem são mais utiliza-das e que até denunciam minha idade (beirando a casa dos 30).

Quer dizer, escrever “uma brasa, mora?” num texto que não seja histó-rico é uma autodenúncia, além de datar, às vezes equivocadamente, tal es-crito.

Enfim, a escolha entre um tom coloquial ou for-mal na Literatura será um direcionamento de quem lerá nossas obras: quanto mais coloquial, mais aces-sível será para o leitor, po-rém, como a fala está em constante mutação, menor será a perenidade do tex-to; quanto mais formal ou rebuscado, maiores serão as dificuldades do leitor para assimilar o sentido, mas, a longo prazo, mais duradoura será a mensa-gem.

A opção lingüística pode até se fundamentar em princípios estéticos, mas suas conseqüências são bastante práticas e dizem respeito diretamen-te a que tipo de leitor — e de leitura — a obra se destinará.

Page 82: SAMIZDAT12

8282 SAMIZDAT dezembro de 2008

Crônica

Caio Rudá

AO SR. SCHOPENHAuER

Page 83: SAMIZDAT12

83www.samizdat-pt.blogspot.com

AO SR. SCHOPENHAuER

Caro Sr. Schopenhauer, antes de mais nada quero registrar a necessidade de escrever-lhe diretamente. Este documento, entretanto, tem lá sua importância e por isso é possível que aguce a curiosidade alheia. Não me surpreenderia, portanto, que viesse a cair em mãos que não as suas, mas afirmo veemente que a pendência é entre nós dois, um gigante do século XIX e um zé-nin-guém dos anos 2000.

Escrevo na certeza de uma resposta, pois sei que para o senhor, dotado de inúmeras qualidades, auto-reconheci-das e auto-exaltadas, os obs-táculos que impedem nossa comunicação são facilmente superáveis. Não tenho dú-vidas de que um profundo conhecedor e estudioso de línguas, como o senhor, tem o meu humilde português como mais um item em seu vasto repertório de idiomas, mas se por acaso faltar-lhe a ciência sobre a “última flor do Lácio”, estou certo de que seu raciocínio agudo e sagaz, juntamente com o conheci-mento do Latim e até mesmo de outras línguas que Dele derivam, farão do senhor um hábil leitor. Espero que, ao escrever Latim em letra capital ressaltando Sua supe-rioridade ante esses dialetos que hoje a Europa conhece como línguas nacionais, per-ceba meu respeito pelas suas idéias e leia-me com alguma atenção.

Se o senhor foi assaz con-descendente para iniciar e

continuar a corrente leitura até aqui, seria sensato de sua parte aceitar minhas devias escusas por não dirigir-lhe a palavra em Alemão, esse idioma soberano, embora não-clássico, e também por talvez estar sendo confuso e mesmo ininteligível. Não é que eu queria forçar um estilo. Com toda a sinceri-dade, afirmo-lhe que tento ser o mais natural e breve possível.

Voltando à questão das barreiras que nos separam, a única que me fez hesitar antes da escrita dessa men-sagem foi o fato de o senhor estar morto. Obviamente, considero que o esteja de fato, afinal, se de alguma ma-neira tivesse descoberto o se-gredo da vida longa e vivesse nos dias de hoje, por certo não estaria se escondendo, às sombras ou vivendo no anonimato. Primeiro, porque o anonimato lhe causa ojeri-za e, depois, porque é de sua natureza exibir-se.

Pois bem, agora vamos ao âmago de minha contes-tação. Recentemente, entrei no mundo de suas idéias através do brilhante Parerga e Paraliponema. Na verdade, não fiz a leitura completa da obra, mas apenas dos escri-tos relacionados à literatura, língua e erudição. Cito-os aqui: “Sobre a erudição e os eruditos”, “Pensar por si mesmo”, “Sobre a escrita e o estilo”, “Sobre a leitura e os livros” e “Sobre a linguagem e as palavras”.

Diversas foram as minhas considerações e opiniões acerca dos textos a que me refiro, ora concordando, ora encontrando algumas divergências. Eu poderia enumerar diversos tópicos para debate, mas seria desne-cessário, além de trabalhoso. Questões válidas, no entanto, e muito interessantes. Assim, vou me centrar nos pontos que mais me chamaram a atenção quando da leitura desses textos.

O primeiro deles é o mau-humor crônico que lhe é característico. Esse quadro de rabugice eterna na verda-de é um transtorno psiquiá-trico conhecido como disti-mia. Muito provavelmente o senhor foi um distímico, um sujeito amargo, que reclamou de tudo e só viu angústias e infortúnios mesmo no mais belo nascer do sol. Por isso tenho lá minhas dúvidas so-bre sua causa mortis. Pobre, Schop! Acho que mentiram para o senhor. Disseram-lhe pneumonia em vez de infar-to ou AVC, sei lá... algo pro-vocado por toda a amargura guardada e também pelas despejadas em seus escritos.

Não me entenda mal. Não estou criticando seu mau humor. Pelo contrário, ele é sua marca. Ele é você e você é ele. Não existiria Schope-nhauer sem mau humor e vice-versa. Sabe, deixe-me contar uma história. Os novos dicionários da língua portuguesa adicionaram o verbete Schopenhauer, ou chopenrrauer (aportugue-

Page 84: SAMIZDAT12

8484 SAMIZDAT dezembro de 2008

sado). Adivinha o que ele significa? (risos) Brincadeira, viu Schop? Só para descon-trair. Ah, desculpe. Você não sabe o que é isso (risos). Outra piada. Agora que esta-mos mais íntimos, que criei um clima mais amigo, vou chamá-lo de Schop. Pode ser?

Então, como eu ia di-zendo, o chopen... digo, o mau-humor é sua marca. Não haveria graça em lê-lo se não tivéssemos que ima-ginar qual seria o próximo xingamento para alguns de seus adversários. Ah, Schop, você precisa ver como está o mundo moderno. Sabia que suas idéias hoje são bastan-te influentes? Acredita que recentemente criaram um curso de “como denegrir a imagem do seu inimigo com classe”? Apostilas baseadas em sua obra.

O outro fato que me le-vantou uma tremenda curio-sidade foi como você tem tanto conhecimento acumu-lado. Além de um grande pensador, foi um poliglota sem igual. Latim, grego clás-sico, sânscrito, inglês, francês, italiano e espanhol, além do materno Alemão. Essas são as que nos foram permitidas saber. Não me espantaria que houvesse mais algumas a citar. Mas o que me intriga não é que você tenha todo esse conhecimento, afinal de uma mente brilhante tudo se espera, e sim como você o adquiriu sem tanta leitura. Sim, porque “as pessoas que passam suas vidas lendo e ti-ram sua sabedoria dos livros

são semelhantes àquelas que, a partir de muitas descrições de viagens, têm informa-ções precisas a respeito de um país (...) no fundo não dispõem de nenhum conhe-cimento coerente”, em suas próprias palavras. Só posso concluir que você nunca foi apegado a leituras, especial-mente as de má qualidade. Então fica a curiosidade de como vieram as aulas de idiomas que nos dá em Parerga e Paraliponema. Já nessa época você era agracia-do com o dom da violação do tempo e conseguia re-trocedor em séculos e mais séculos para adquirir as noções de latim e grego?

Ainda sobre idiomas, outra curiosidade. Qual o problema com os “repulsivos sons nasais”? Tudo bem que os alemães nunca se deram bem com os franceses, o que lhe dá motivos para desme-recer a língua dos gauleses, mas que, pelo menos, se atenha às características pe-culiares do falar desse povo. Eu, como lusófono, me ofendi com essa declaração de ódio aos belos sons nasais. Se-ria despeito por não saber pronunciá-los corretamente? Nesse ponto, você foi infeliz.

E para finalizar, que a carta está ficando muito extensa, só queria cutucá-lo mais uma vez: você falou mal de Deus e o mundo, atirou pedras aos sete cantos do planeta e em matéria de literatura foi o crítico mais ferrenho de todos os tempos. Desconsiderou a literatu-

ra alemã e mundial de seu período. Nem sua mãe lhe escapou à língua firina. Se-riam os escritores da época tão lastimáveis assim? Ou o seu mau humor influen-ciava até na hora de emitir um juízo sobre a obra alheia, fazendo pouco de tudo o que não lhe apetecia? Talvez você fosse um crítico muito par-cial, tomado pela mágoa de ter tido um reconhecimento tardio, em seus últimos anos de vida. Ou talvez os ale-mães de seu tempo fossem bons comedores de chucrute enquanto escritores mesmo, o que é mais provável, dada sua superioridade diante dos outros seres humanos.

Prometo que agora en-cerro de verdade. Só apro-veitando a deixa do último parágrafo. Olha, aqui vai um conselho de amigo. Você é gênio, cara. Não há como ne-gar. Um homem num pata-mar acima dos demais. Mas não deixa isso lhe subir à ca-beça. Pode pegar mal, causar mal-entendidos. Nunca se sabe. Nem todos compreen-dem a genialidade.

É isso, Schop! Foi uma mensagem breve e amigá-vel. Queria escrever mais, mas agora devo dedicar-me à reflexão, pensar por mim mesmo. Afinal, nos dias de hoje, ainda dá para fazer isso e mais nada da vida. Leio, penso e cuido do meu cachorro. Sou desocupado mesmo, sou filósofo.

Page 85: SAMIZDAT12

85www.samizdat-pt.blogspot.com

Page 86: SAMIZDAT12

8686 SAMIZDAT dezembro de 2008

Crônica

Henry Alfred Bugalho

DIALétICA DO jEItINHO bRASILEIRO

O “jeitinho” faz parte da cultura brasileira, está imbuído na psiqué do brasileiro.

Às vezes, o jeitinho trata-se duma maneira criativa para resolver problemas insolúveis - e problemas insolúveis é o que não falta no Brasil. O jeitinho pode ser uti-lizado, por exemplo, para ganhar dinheiro de ma-neira lícita, mas informal.

Vender um espetinho na praia, comprar barato e vender caro, vender al-moço pra comprar janta, usar da lábia para con-seguir o que se quer, ter um QI para conseguir um emprego.

Todos sonham com a formalidade, mas forma-lidade e Brasil não com-binam - conseqüência dum Estado burocrático e corrupto.

Mas o jeitinho também pode se manifestar ilícita, sem deixar, no entanto, de ser criativa: trazer muam-bas do Paraguai, distri-buir DVDs piratas de fil-mes que ainda estão em cartaz no cinema, molhar a mão dum policial pra escapar duma multa, cor-tar madeira sem licença de áreas de preservação, desviar verba pública, sonegar impostos, vender gato por lebre... A lista é

Page 87: SAMIZDAT12

87www.samizdat-pt.blogspot.com

DIALétICA DO jEItINHO bRASILEIRO

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/gc

asto

ldi/25

8220

7281

/siz

es/l/

enorme, os modos ilíci-tos de jeitinho são muito mais variados do que os lícitos.

Os noticiários apre-sentam-nos todos os dias uma série de expressões do jeitinho. Lembro-me quando foi implementada a lei proibindo a ingestão de qualquer quantidade de álcool por motoristas - a famigerada Lei Seca. O jeitinho entrou em ação, tentando conceber maneiras para enganar o bafômetro: balas-de-men-ta, chiclete, beber vinagre, e outros absurdos. Nes-te caso, o jeitinho não funcionou e muita gente rodou nas blitz.

Dias atrás mesmo, o jeitinho brasileiro voltou a ser notícia. Voluntários ajudando os desalojados das enchentes em Santa Catarina estavam apro-veitando aqueles montes e mais montes de roupas e alimentos para econo-mizar um dinheirinho. Afinal de contas, era tanta coisa que ninguém iria perceber se um tênis, um sutiã, uma calça jean, ou um quilo de feijão desaparecessem. “O que os olhos não vêem, o coração não sente”, diz o ditado, e este é também um dos motes do jeiti-nho: tudo vale, enquanto você não for pego.

Os jeitinho brasilei-

ro extrapola os limites geográficos, onde há um brasileiro, o jeitinho o persegue. Nos EUA, por exemplo, há muito bra-sileiro trabalhando duro e honestamente, mas os que dão um jeitinho pra tudo são sempre mais interessantes para a mí-dia. Semana passada, foi presa uma quadrilha de brasileiros que fabricava notas falsas de cem dóla-res. Peixe grande!

Mas os peixes peque-nos, que compram docu-mentos falsos, que en-viam grana preta através de doleiros, que vendem drogas na noitada, que fazem de tudo por uma renda extra continuam por aí. “O que os olhos não vêem, o coração não sente”, diz o ditado, e isto vale para um país onde tudo é permitido, ou para aquele com lei rigorosa.

O jeitinho também não respeita classe so-cial. Aliás, o nível sócio-econônimo só determina um fator: o tamanho do jeitinho.

Pobre rouba miúdos, como gatos pra pegar TV a cabo ou pra ter aces-so a internet; rico rouba bocados, rombos milioná-rios aos cofres públicos.

Muitos povos são co-nhecidos por suas carac-terísticas: a pontualidade

britânica, a ambição nor-te-americana, o rigor dos alemães, a inteligência dos judeus, a capacida-de de concentração dos japoneses. Talvez esteja na hora de reconhecer-mos a nossa característica nacional: o jeitinho do brasileiro.

Assim como estão tentando revitalizar a imagem do malandro, daquele boêmio carioca das rodas de samba e da capoeira - o “bom malan-dro” - , talvez esteja na hora de revitalizarmos também o jeitinho e tal-vez até redefinirmos sua concepção e encontrar-mos algo de bom, o “bom jeitinho”, quando toda esta capacidade criativa dos brasileiros para supe-rar adversidades é utiliza-da pra algo que preste, e não apenas para prejudi-car os outros.

Portanto, diga sim ao “bom jeitinho” (e tor-ça para que, um dia, as notícias nos jornais sejam de jeitinhos a favor das outras pessoas)!

Page 88: SAMIZDAT12

8888 SAMIZDAT dezembro de 2008

“Todos os homens são filhos da puta”.

Somos filhos da puta mesmo. Alguns de nós mais do que o aceitável, outros menos do que deve-ríamos.

Mas você tem que nos perdoar. Somos todos crianças. Mesmo o mais cínico, o mais orgulhoso e vaidoso de nós é uma criança. Sei que isso não é desculpa para nossa igno-rância, mas é no mínimo um atenuante.

Às vezes, somos ani-mais. Animais cujo maior pecado é a imaginação.

Mostre-nos uma loira, que fantasiaremos com rainhas nórdicas sob peles, num deserto gelado. Mos-tre-nos uma morena, que

imaginaremos seu sangue latino fazendo pulsar seu corpo colado no nosso.

Uma mulher magra, para nós é flexível e mó-vel. Uma mais cheia, é quente e amorosa.

Hoje vi uma mulher na rua, na calçada oposta. Ela andava na direção oposta à minha. Quando meus olhos encontraram os dela, seu pescoço se deslocou para o lado, assim como o meu, e nosso olhar demo-rou mais do que os olhares que normalmente compar-tilhamos com estranhos na rua. Ela era alta, mesmo de longe, e usava um vestido roxo justo, que ressaltava bem seus seios. Tinha ca-belos pretos, e sua pele era morena. Ela sorriu quando nos olhamos e eu sorri também.

E foi só.

Para ela, não deve ter sido nada. Apenas mais um homem lhe olhando na rua, nada fora do nor-mal. Mas em mim, como seria em todos os homens, esse breve encontro gerou inúmeros pensamentos.

Nessa hora, eu estava com um amigo, e após ver a mulher, não ouvi mais nenhuma palavra dita por ele durante alguns minu-tos.

O modo como ela me olhara...

Nenhuma mulher sabe realmente o efeito de seu olhar sobre um homem. Muitas acham que sabem, mas se enganam.

A morena me afetara

Pedro Faria

LItORAL E CAPItAL

Crônica

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

him

mel

undh

olle

/527

1545

70/siz

es/l/

Page 89: SAMIZDAT12

89www.samizdat-pt.blogspot.com

de tal maneira que eu não pude deixar de imaginar aquele vestido roxo jogado no chão, e seu corpo dei-tado sobre o meu, comigo lhe explorando com meus dedos e minha boca, como se eu pudesse penetrar no mais profundo de seus segredos, e como todos os seus desejos se abrissem para mim, apenas com meus toques.

O que me despertou para a vida foi o tropeço que dei num buraco na rua. Quase caí de cara no chão.

Não sei o que a mulher sentiu depois de nosso pequeno momento urba-no. Provavelmente bem menos do que eu. Mas, com minha imaginação de homem, eu posso me dar o prazer de imaginar que ela também teve alguma ligeira visão, ou pelo me-nos uma sensação diferen-te, algo que não sentiria normalmente no dia a dia.

Porque, no fim das con-tas, o mínimo que nós ho-mens desejamos é sermos lembrados como algo fora do comum, como alguma perturbação da rotina da mulher.

Não queremos simples-mente dominar as mulhe-res. Queremos dominá-las, e ser dominados também. Queremos a ligação qua-se religiosa que apenas o amor físico pode propor-cionar, mas que só existe com a presença de mesmo a mínima afinidade inte-lectual. É contra intuitivo um homem falar isso. Ora, seria contra intuitivo mes-mo se eu fosse uma mu-lher, do jeito que as coisas

andam hoje em dia.

Mas é a verdade.

Claro que o oposto tam-bém é verdade: É difícil existir o amor romântico sem a atração física.

Toda a mecânica do amor então se torna algo muito complicado, quase como aquele desenho de Escher, com as mãos de-senhando umas as outras. A grande pergunta não deveria ser “quem nasceu primeiro? O ovo ou a ga-linha”, e sim “O que nasce primeiro? A luxúria ou a poesia?”.

De cara, parece fácil res-ponder “luxúria”, mas não acho que seja assim tão simples.

Para falar a verdade, essa questão é a única que realmente não é simples nessa roda de relações.

Conheci uma garota, quando ainda era bem novo. Raquel era seu nome, e me apaixonei por ela, numa época em que meu corpo ainda nem sabia o que era excitação. Chame de amor infantil, ou do que quiser. A ver-dade é que eu a amava, e com ela descobri como era bom beijar uma garota, e me apertar em direção a ela, sem saber direito o que estava fazendo, apenas seguindo algum código secreto escrito em meu DNA. Tínhamos seis anos nessa época, e não a vejo desde então.

Quer dizer, nesse caso veio o amor antes da luxúria. Porém, se o con-trário fosse impossível, não existiriam prostíbulos, pois

os homens não consegui-riam apenas “foder” uma puta, eles teriam que “fazer amor” com elas, e teorica-mente falhariam.

No fim do dia, tanto nós homens, quanto vocês mu-lheres, desejamos apenas alguém para nos agarrar-mos quando estivermos com medo, e com quem comemorarmos quando estivermos felizes. Alguém que satisfaça nossas von-tades, e que tenha as suas satisfeitas por nós.

Nem todo mundo en-contra essa pessoa. Alguns acham que encontram, mas quando se viram para o lado e encontram apenas a carne fria, ou quando tremem e não há abraços que lhe aqueçam, perce-bem seu erro.

Outros...

Bem, outros têm certeza que encontraram, mas não são encontrados.

“O que nasce primeiro, a luxúria ou a poesia?”.

Para mim?

Só o fato da pergunta existir, já é um sinal que não existe uma resposta única.

E eu não sei. Às vezes é por isso que nos lançamos cada vez mais forte na vida, procurando a carne quente e os abraços aco-lhedores em estranhos cer-tos e conhecidos errados. Tão forte que não paramos quando encontramos o certo.

E muitas vezes, quando passamos batidos, não te-mos mais como voltar.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

him

mel

undh

olle

/527

1545

70/siz

es/l/

Page 90: SAMIZDAT12

9090 SAMIZDAT dezembro de 2008

A era de Cristo, con-vencionou-se, começou a 1 de Janeiro do ano 1. Há o momento zero, mas não há o ano zero. No fim do dia 31 de Dezembro do ano 1, completou-se 1 ano. Se alguém tivesse comemora-do a data, devia ter come-morado um ano, como os pais fazem com qualquer criança quando completa 1 ano. Neste método, claro e lógico, no fim do ano 2, passaram 2 anos desde o início da era; no fim do ano 99, passaram 99 anos; no fim do ano 100, passaram 100 anos; no fim do ano 1999, passaram 1999 anos desde o início da era; no fim do ano 2000, passaram 2000 anos e é altura de comemorar a completude de dois milénios. Alguma dúvida?

Isto é o que os histo-riadores sabem e não lhes merece qualquer tipo de discussão.

No entanto, não foi isso que vimos por todo o mundo, com a comunica-ção social, ignorante mas arrogante, comandada pela globalização mercantilista e a pressão consumista, a propagandear o embuste e a incentivar a comemora-ção da passagem do milé-nio na passagem de ano de 1999 para 2000. Cheguei a ouvir a alarvidade de que mudava o milénio, mas não mudava o século. Enquanto isso, não vi qualquer tenta-tiva, por parte das entidades científicas, que também têm responsabilidades sociais, de desmistificar a falsidade. Alguns docentes, com quem

abordei o assunto, encolhe-ram os braços em atitude de demissão.

Esse período foi penoso para mim. Imbuí-me da consciência aguda de que a razão, o rigor e a verdade científica estavam arredados das nossas vidas e da nossa sociedade, substituídas por interesses meramente eco-nómicos, ou ainda de índole mais obscura. Descri da possibilidade de qualquer avanço de mentalidades, tendo por mentores tais pedagogos de massas. Se não conseguem elucidar a sociedade sobre uma coisa tão simples e descompro-metida, que sabedoria, que esclarecimento se pode esperar deles, em questões de importância crucial para a Humanidade?

Joaquim Bispo

A DESINFORMAÇÃO PÚbLICA

Crônica

http

://up

load

.wik

imed

ia.o

rg/w

ikip

edia

/com

mon

s/e/

e4/C

rist

o_en

_la_

cruz

1.jp

g

Page 91: SAMIZDAT12

91www.samizdat-pt.blogspot.com

A DESINFORMAÇÃO PÚbLICASe Cristo nasceu a 25 de

Dezembro, porque é que a era de Cristo começa a 1 de Janeiro?

Na verdade, não se sabe quando Cristo nasceu. Actualmente, pensa-se que nasceu cinco a sete anos an-tes da nossa era. O monge cita Dionísio o Exíguo, por volta do ano 532 da nossa era, indicou o dia 25 de Dezembro do ano 38 da era de César, como a data desse acontecimento e o início da nova era. No entanto, a era de César continuou a ser usada durante séculos. Em Portugal, foi D. João I que a aboliu, substituindo-a pela de Cristo, no ano 1460 da era antiga, que passou a ser o ano 1422 da nova

era. Por isso, a data aposta nos documentos anteriores a esse momento deve ser diminuída de 38 anos, para os situar em relação à nossa era.

O início do ano civil es-tava fixado, desde os Roma-nos, em 1 de Janeiro, por ser o primeiro dia do mandato dos seus cônsules. No en-tanto, o início do ano litúr-gico foi variando, conforme a época e os países, mas sempre associado a Cristo. No que ficou conhecido como o estilo da Incarna-ção ou da Anunciação, o ano novo começava a 25 de Março, dia apontado como o da anunciação à Virgem de que ia ser mãe. No estilo da Natividade, o ano come-

çava a 25 de Dezembro. O estilo da Páscoa usava o dia desta festa móvel, o que era pouco prático. Finalmente, em 1582, os cronologistas católicos aderiram ao início do ano a 1 de Janeiro, a que se chama estilo da Circun-cisão, por coincidir com a circuncisão de Cristo, já que era uso, entre os Judeus, circuncidar as crianças no oitavo dia após o nascimen-to.

Assim, curiosamente, vivemos na era que não é do nascimento, nem da in-carnação, nem da morte de Cristo, mas da ablação do seu prepúcio.

Joaquim Bispo

A IMPORtâNCIA DO PREPÚCIOht

tp://

uplo

ad.w

ikim

edia

.org

/wik

iped

ia/c

omm

ons/e/

e4/C

rist

o_en

_la_

cruz

1.jp

g

Crônica

http

://in

diai

nter

acts

.com

/utilities

/pri

ntpa

ge.p

hp?s

ourc

e=bl

ogco

nten

t&id

=340

0&po

stid

=33

Page 92: SAMIZDAT12

9292 SAMIZDAT dezembro de 2008

A pressão comercial criou o mito do Pai Na-tal.

Antes, havia o mito cristão: uma virgem engravidou de uma en-tidade extraterrestre ou sobrenatural. A esse filho foram atribuídos feitos sobrenaturais: milagres. A história dos Romanos (uma espécie de ameri-canos da altura) não deu por ele, o que não impe-diu que a lenda crescesse exponencialmente nos séculos seguintes. Nos últimos tempos, porém, tornava-se difícil trans-formar em paradigma do consumo o nascimento,

no ambiente sórdido de um estábulo, de uma figura que acabou em situação não menos de-plorável.

Um velho, meio avô excêntrico, meio palhaço, que voa de trenó, vive no Pólo Norte e dá objectos de consumo a todas as crianças, foi o mito que veio preencher a necessi-dade duma figura glamo-rosa ultra rica, que gasta a rodos. É claro que não é uma entidade sobrena-tural que esvazia a cartei-ra…

Muito gostam os in-ventores de mitos de pôr figuras antropomórficas

a voar! Como na imagi-nária pré-contemporânea, barroca, sobretudo, em que figuras aladas de to-dos os tamanhos voavam em revoadas compactas em todas as direcções e tornavam incontrolável o espaço aéreo, também o Pai Natal foi criado como voador. Nada disto é bom para a, já de si, difícil de-cifração do mundo real, por parte da criança, que assim recebe, de quem mais confia, um acrésci-mo de dificuldade, uma mentira. Não se faz!

Joaquim Bispo

MItOS, MItOS, MItOS

Crônica

http

://ca

rtoo

ns.os

u.ed

u/nas

t/im

ages

/san

ta_c

laus

100.

jpg

Page 93: SAMIZDAT12

93www.samizdat-pt.blogspot.com

ficina

No mês de novembro, foi lançado o Audiobook com contos de membros da Oficina da E-TL.

O CD foi produzido por Alian Moroz.

Conteúdo

1 - "Vovô Caneco", de Alian Moroz

2 - "O Menino Binário", de Carlos Barros

3 - "Coleção de Botões", de Giselle Sato

4 - "Noite Estrelada", de Guilherme Rodrigues

5 - "A Vingança de Bento Julião", de Henry Alfred Bugalho

6 - "Os Ratos", de Joaquim Bispo

7 - "Esmeralda, Jade e Rubi", de José Espírito Santo

8 - "Fissuras Íntimas", de Leo Borges

9 - "A Palhinha", de Maria de Fátima Santos

10 - "A Última Revolta de Jesus Cristo", de Ro-gers Silva

11 - "Com Carinho, Isolda", de Volmar Camargo Junior

As faixas do audiobook podem ser baixadas gratuitamente no enredeço abaixo:

http://oficinaeditora.org/2008/11/29/audiobook-da-oficina/

http

://ca

rtoo

ns.os

u.ed

u/nas

t/im

ages

/san

ta_c

laus

100.

jpg

Page 94: SAMIZDAT12

9494 SAMIZDAT dezembro de 2008

Volmar Camargo [email protected]

LAbORAtÓRIO POétICOPoesia

do caroço de uma horaextraí a substância vítreaoleosafugaz como a vontadeetérea como a sensatez

em nenhum recipientepude contê-la a contentoescapava sempre um tantoàs vezes muitoquase sempre dobrava de tamanhoe assim, aos poucosàs gotasàs partículaspreencheu o espaçotão meu conhecido

era sedutora, envolventea bruma que nasciapois era brumaera um vapor invisívelque fez sumir as paredesa paisagem da janelaos hábitos convenientese os meus pés

sim, por diasse ainda lembrava o que eramfiquei sem vê-los

deixei-me entregueà essência do caroço das horasinalei, comi, bebidespi-mee assim, despidocobri-me inteiro com ela

não era dorera antes um friodas pontas dos cabelos até a

boca do estômago

enredou-medentro e fora de mim vivia

aquiloimpossível contere mesmo quando do fundo da

gargantanasceu o último murmúrioa coisa cristalizou-sevirou gelorochadiamantevidro

era o vidro em mimo vidro das horas- o vidro das raízes do tempode toda árvore vítrea que é o

tempoda seiva vítreasangue do que não se vê –era o vidro em mimnão mais nas horasnão mais preenchendo os vãosentre as partículas da poeirado tecido das estrelasera o vidro em mimdeixou de ser essênciaprimordial ou quintessencialera em mimera eu

ecomo é próprio das coisasnascidas ou tiradasda árvore que dá os frutos do

tempoo vidro que tinha a mim

cristalizadosumiu

voltaram as roupas

as paredes, as janelasa paisagemos sapatos

da essência das horasrestou sóuma gotaescorreu-me pela testa até a

ponta do narizintempestivadecidida

livrelançou-se no espaçonum mergulho que só eu

percebiaté o choque derradeiro contra

o piso

saífechei as janelas, tranquei as

portassegui como pudevivo como consigo

ainda lá está, intocadoo piso onde caiu a última gotada substância vítreaoleosaextraída do caroço de uma hora

tinha a esperança queonde a gota caiupudesse brotar outra árvorecom um tempo diferentequem sabe misturadoa um tanto da poeiradessa poeira que sou eu

DO CAROÇO DE uMA HORA(A ESSêNCIA DAS HORAS)

http://www.flickr.com/photos/carbonnyc/64581364/sizes/o/

Page 95: SAMIZDAT12

95www.samizdat-pt.blogspot.com

POESIASCarlos Alberto Barros

Ando, passo e ando...Passos, quantos passos?Tantos, falsos e tantos...

PASSOS

Sou sem ser, urbano.Nasço em berço errado:Tecla sem piano.

NAtALIDADE

Explode!Explode, cabeça!E acaba com este cérebro maldito.Quero apenas meu corpo,Para abrigar meu coração,Que agora...Sou só ele.

CORAÇÃO

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

mrs

mag

ic/1

3588

0711

9/si

zes/o/

Page 96: SAMIZDAT12

9696 SAMIZDAT dezembro de 2008

SONEtOSMarcia Szajnbok

gosto de pensar que sou um ser aquático

que nasceu em terra firme por engano

e que um dia cada pedaço do que sou

retornará ao seu lugar, que é o oceano

gosto de supor que dentro de mim exista

uma concha, um caramujo, algum coral

e que este sangue que tenho hoje vermelho

ficará um dia transparente, só água e sal

é um conforto imaginar-me assim

percorrendo mares, levada nas correntes

na espuma branca das ondas, diluída

no ilimitado das águas encontrarei enfim

a profundeza inusitada e azul da liberdade

que tanto persegui por toda vida

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

9850

426@

N06

/242

9280

694/

size

s/o/

Page 97: SAMIZDAT12

97www.samizdat-pt.blogspot.com

Não quero conhecer de ti só teu melhor

Quero também aquilo de que não gostas

O que tens como mau, vergonhoso, triste

Quero que me ofereças até que saiba decór

A melancolia que tantas vezes te habita,

Quero-te nos teus dias maus, de frio, de baixa

Quero te amar além do que é terno e doce

Quero pôr à prova minha vontade infinita

De trazer à luz meus melhores devaneios

Pois, do modo como te amo, meu amor,

O que tenho em mim de calor basta

Para extinguir para sempre teus receios

Derreter até a última gota do teu gelo

E estreitar a distância que te afasta...

Page 98: SAMIZDAT12

9898 SAMIZDAT dezembro de 2008

SOBRE OS AUTORES DASA-

PlacigAMORniano

Dênis Moura

Amor, fogo que só arde em nosso ser,

É a dor de nosso pedaço ausente,

Descontente ao não ser bem mais contente,

É a dor que só nos precede o prazer;

Não querer esfomeando o querer,

Solitário com quem não está presente,

É buscar ser feliz eternamente,

Trocar bem quando ganha ao perder;

É o estar preso usando a liberdade,

É vencer pra servir quem lhe venceu,

Com quem te ganha a vida, lealdade.

Então pode causar o favor seu

Nos corações humanos amizade:

Não tão contrário a si é o amor meu.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

peas

ap/1

7528

7212

4/si

zes/

l/

Page 99: SAMIZDAT12

99www.samizdat-pt.blogspot.com

SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDATSOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDATSOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT

SOBRE OS AUTORES DASA-

SOBR

E OS

AUTO

RES

DA

SAM

IZDA

T

99

Carlos Alberto Barros

Paulistano, filho de no

rdestinos, desenhis-

ta desde sempre, artis

ta plástico formado,

escritor. Começou sua

vida profissional como

educador e, desde entã

o, já deixou seu ras-

tro por ONG’s, Escolas

e Centros Culturais,

através de trabalhos a

rtísticos e pedagógi-

cos – experiências que

têm forte influência

sobre seus escritos. A

tualmente, organiza

oficinas de ilustração

para crianças, estuda

pós-graduação em Histó

ria da Arte e escreve

para publicações na in

ternet.

[email protected]

om

http://desnome.blogspo

t.com

Dênis Moura é paulistano de pia, cearence de mar e poeta de amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberespaço, mais com bits de imaginação que com telescópios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social, com a demo-cracia participativa eletrônica, onde o povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias sua primeira obra, um Romance de Ficção Científica, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize, o clique, o blogue e o leia!

http

://bo

nfire

blaz

e.file

s.w

ordp

ress

.com

/200

7/12

/gra

fiti_w

all.j

pg

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

peas

ap/1

7528

7212

4/si

zes/

l/

Page 100: SAMIZDAT12

100100 SAMIZDAT dezembro de 2008

Marcia Szajnbok

Médica formada pela Facul-

dade de Medicina da Univer-

sidade de São Paulo, trabalha

como psiquiatra e psicanalista.

Apaixonada por literatura e lín-

guas estrangeiras, lê sempre que

pode e brinca de escrever de vez

em quando. Paulistana convicta,

vive desde sempre em São Paulo.

[email protected]

Henry Alfred Bugalho

É formado em Filosofia pela UFPR, com

ênfase em Estética. Especialista em Literatura e

História. Autor de quatro romances e de duas

coletâneas de contos.

Mora, atualmente, em Nova York, com sua

esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

[email protected]

www.maosdevaca.com

Guilherme Rodrigues

Estudante Letras na

Universidade do Sagrado

Coração, em Bauru, onde

sempre morou. Nutre

grande paixão por Línguas,

Literatura e Lingüística,

áreas em que se dedica

cada vez mais.

Giselle SatoGiselle Sato é autora de Meninas Malvadas, A pequena

bailarina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine apenas como uma contadora de histórias carioca. Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente panorama da sociedade em que vivemos.

[email protected]

José Espírito SantoInformático com licenciatura

e pós graduação na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, trabalha há largos anos em formação e consultoria, sendo especialista em Bases de Dados, Sistemas de Gestão Transaccional e Middleware de “Messaging”. A paixão pela escrita surgiu recen-temente, tendo no ano de 2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e “Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a família em Portugal em Alverca, uma pequena cidade um pouco a norte de Lisboa.

[email protected]://www.riodeescrita.blogspot.com/

Joaquim BispoEx-técnico de televisão,

xadrezista e pintor amador, licenciado recente em His-tória da Arte, experimenta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

Maristela Scheuer Deves

Gaúcha nascida na pequena ci-

dade de Pirapó, começou a sonhar

em ser escritora tão logo aprendeu

a ler. Escreve principalmente nos

contos nos gêneros mistério, sus-

pense e terror, além de crônicas.

Page 101: SAMIZDAT12

101www.samizdat-pt.blogspot.com

Zulmar LopesZulmar Lopes é carioca. Formado em jorna-lismo pela Universidade Gama Filho, trabalha como assessor de imprensa. Alma provinciana e coração suburbano, encontra-se provisoriamen-te exilado na cosmopolita Copacabana, bairro fonte de inspiração de personagens e situações que compõem seus contos. Escreve para fugir do marasmo.

Volmar Camargo Junior é gaúcho. Formado

em Letras pela Universidade de Cruz Alta, não

leciona por sua própria vontade. Entrou na ECT

em 2004, e desde então já morou em meia dúzia

de “Pereirópolis” pelo Rio Grande. Atualmente

vive com a esposa Natascha em Canela, na Serra

Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie, uma gata voluntariosa e cínica.

[email protected]

http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Guilherme Rodrigues

Estudante Letras na

Universidade do Sagrado

Coração, em Bauru, onde

sempre morou. Nutre

grande paixão por Línguas,

Literatura e Lingüística,

áreas em que se dedica

cada vez mais.

José Espírito SantoInformático com licenciatura

e pós graduação na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, trabalha há largos anos em formação e consultoria, sendo especialista em Bases de Dados, Sistemas de Gestão Transaccional e Middleware de “Messaging”. A paixão pela escrita surgiu recen-temente, tendo no ano de 2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e “Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a família em Portugal em Alverca, uma pequena cidade um pouco a norte de Lisboa.

[email protected]://www.riodeescrita.blogspot.com/

Maria de Fátima SantosNasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde

viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licencia-da em Física tem sido professora de Física e Química. Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pe-quenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama “meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Pedro FariaEstuda Matemática na Univer-

sidade Estadual do Rio de Janeiro, músico amador e escritor quando dá na telha. Nascido e criado no Rio.

[email protected]

http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

Caio Rudá

Bahiano do interior, hoje

mora na capital. Estuda Psico-

logia na Universidade Federal

da Bahia e espera um dia

entender o ser humano. En-

quanto isso não acontece, vai

escrevendo a vida, decodifi-

cando o enigma da existência.

Não tem livro publicado, prê-

mio, reconhecimento e sequer

duas décadas de vida. Mas

como consolo, um potencial

asseverado pela mãe.

Page 102: SAMIZDAT12

102102 SAMIZDAT dezembro de 2008

Também nesta edição,textos de

Caio Rudá

Carlos Alberto Barros

Dênis Moura

Giselle Natsu Sato

Guilherme Rodrigues

Henry Alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

Marcia Szajnbok

Maria de Fátima Santos

Maristela Scheuer Deves

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

Zulmar Lopes