sala 206 ii - revista de artigos sobre audiovisual

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Segunda edição da Revista Sala 206, do Grupo de Estudos Audiovisuais (GRAV), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Outubro de 2011.

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206

SALA

EXPEDIENTE

Monitores do GRAV: Nathan Costa, Guilherme Reblo, Lucas Schuina e Honrio de Paula Rocha Filho Conselho editorial: Alexandre Curtiss - UFES Cleber Carminati - UFES Denilson Lopes - UFRJ Erly Vieira Jr - UFES Jos Benjamim Picado - UFF Jos Franscisco Serafim - UFBA Orlando Lopes - UFES Tadeu Capistrano - UFRJ Daniela Zanetti - UFES Vera Frana - UFMG Wilberth Salgueiro - UFES Reviso de textos: Nelson Martinelli Filho Marih Castro Lucas dos Passos Imagem de capa: Cena do filme As horas vulgares Projeto Grfico: Kisley Gomes Ecos Jr - Esther Radaelli (Ncleo de Jornalismo) Diagramao: Ecos Jr - Esther Radaelli (Ncleo de Jornalismo) Capa: Ecos Jr - Nathan Mello dos Santos (Ncleo de Publicidade) Tiragem: 500 exemplares [email protected] http://grupograv.wordpress.com Esta publicao foi contemplada pela Lei Rubem Braga.

Sala 206 uma publicao do Grupo de Estudos Audiovisuais - GRAV, ligado ao Departamento de Comunicao Social, Centro de Artes, UFES.Coordenador do GRAV: Alexandre Curtiss Produo editorial: Daniela Zanetti e Alexandre Curtiss Sala 206 - n2 out 2011, Vitria - ES ISSN: 2176-7130

Realizao:

Apoio Cultural:

Apoio:

Patrocnio:

APRE SENTAOCom o propsito de problematizar a relao entre local e global no campo do cinema, essa edio traz artigos que discutem produes bastante singulares, sem perder de vista o que possam ter de transcendentes. So textos que se debruam sobre obras de cineastas histricos e consagrados, ou de recentes produes de pases orientais, de diretores cujos trabalhos vm ganhando destaque na cinematografia mundial, mas tambm h anlises de cinematografias menos visveis no amplo circuito, trabalhos de realizadores capixabas. A anlise flmica, com destaque para questes do metacinema, a estratgia adotada por Josette Monzani para examinar as marcas autorais em Nicks Movie, de Wim Wenders, enquanto Rafael de Almeida busca aprofundar a definio do chamado documentrio experimental (ou de inveno) a partir de uma reviso de literatura acerca desse conceito e da anlise de vrias referncias histricas. Atento em um cinema que ganha cada vez mais destaque junto crtica internacional, Erly Vieira Jr. escreve sobre certos filmes contemporneos que buscam, como caracterstica distintiva, explorar a sensorialidade a partir da nfase esttica em novas relaes espao-temporais. Teorizao limtrofe, texto exploratrio e arriscado sobre um cinema que do mundo. A produo capixaba o foco de dois trabalhos de flego e de embate. O ensaio do cineasta e crtico de cinema Rodrigo de Oliveira um dos fundadores do GRAV e diretor, junto com Vitor Graize, do longa As Horas Vulgares analisa a produo regional recente, com prioridade nos aspectos narrativos e estticos das obras abordadas. O texto coloca em questo a tradicional crena numa supostamente desejada identida-

de comum dessas obras. A idia alimentar certos discursos estabelecidos com seu oposto e suprir carncias de polmica e contradies. Um pouco mais descritivo, e tendo como base uma pesquisa coletiva de iniciao cientfica coordenada pelo professor Alexandre Curtiss, Joyce Castello trata especificamente de aspectos do mercado e da cadeia produtiva audiovisual no Estado. De modo direto, enfoca as condies de produo, trazendo dados e nmeros que ajudam a mapear as oportunidades e apontar as dificuldades enfrentadas pelos realizadores capixabas. Por fim, tendo como base sua pesquisa de mestrado, Jlio Martins problematiza, pormenorizadamente, a questo das novas tecnologias, ao examinar uma espcie de anarquia de configuraes e aparatos tecnolgicos envolvidos nas operaes de armazenamento e o compartilhamento digital dos mais variados tipos de produtos audiovisuais. um olhar voltado para as bases infraestruturais das novas tecnologias, avesso aceitao automtica do que se apresenta como novo e isento de problemas. E assim Sala 206 encontra seu segundo nmero, ainda impresso. Fruto de um projeto aprovado pela Lei Rubem Braga, da Prefeitura Municipal de Vitria, o mais provvel que daqui em diante a revista se bandeie para a plataforma on line, tanto em funo da facilidade e do barateamento da produo, como tambm para ampliar sua circulao junto a outros pblicos. Como parte do GRAV projeto de extenso e grupo de pesquisa em audiovisual, ligado ao Departamento de Comunicao da UFES a idia a de que Sala 206 continue como espao que rena artigos e ensaios sobre o campo do audiovisual, seus processos e produtos, lugar de reflexo e aprendizado.

Boa leitura! Os editores.

0718 34 51 69 81

A morte viva. Apontamentos sobre Nicks Moviepor Josette Monzzani

Marcas de um realismo sensrio no cinema mundial conteporneopor Erly Vieira Jr.

A propsito de um documentrio experimentalpor Rafael Almeida

Suportes, formatos de arquivos e distribuio digital: novos rumos para o Audiovisual Documentriopor Jlio Martins

[Ensaio]O Cinema do Esprito Santo nos anos 2000: Acaso de uma imagem capixabapor Rodrigo Oliveira

[Pesquisa]O Negcio Audiovisual no Esprito Santopor Joyce Castello

N

I D

E C

A morte viva. Apontamentos sobre Nicks Moviepor Josette MonzaniWim Wenders estava acompanhando a agonia de Nicholas Ray. Mais uma vez foi visit-lo em Nova York, aproveitando um intervalo nas filmagens de Hammett. Nessa visita lhes ocorre fazer um filme juntos. E Wenders fica animado tambm com a ideia de poder realizar um velho desejo de fazer um filme sobre o cinema, um filme que tivesse por tema as filmagens (CIMENT, 1983, p. 310). Nicks movie um oximoro: um encontro de contrrios, como no verso camoniano. Wenders procurar resgatar a grandeza de Nick, reconstituir sua imagem deteriorada exteriormente pela doena e desdenhada por Hollywood, para mostrar o seu revs, como um cone do cinema criativo, autoral, independente.Resumo Wim Wenders procura, atravs do metacinema, enquanto forma narrativa, apreender a essncia do cineasta Nicholas Ray, que se confunde com o ser-cinema. Apesar ento de ter por horizonte a proximidade da morte de Nick, o filme consegue ser prazeroso. Nossa tarefa aqui ser discutir como isso ocorre. Procuraremos, principalmente por meio de textos de Christian Metz, Philippe Dubois e Serge Daney, discutir essa questo. palavras-chave: Wim Wenders; Nicholas Ray; metacinema; fico/documentrio.

O roteiro. O tempoPor onde a obra teve incio? Ela foi comeada sem roteiro. Diz Wenders, em entrevista sobre o filme (CIMENT, 1998, p. 308): A primeira sequncia que filmamos foi a conferncia em Vassar, e esta era estritamente documental. Ns a filmamos em 35mm e em vdeo, mas s com Nick em cena. Depois, eles voltaram universidade para fazer mais planos, planos ficcionais que completariam e alargariam os sentidos dos inicialmente feitos (CIMENT, 1983, p. 308). Na Universidade Vassar, Nick fala e mostra seu filme The lusty men Paixo de Bravo (1952). O tema da volta ao lugar de origem, lugar de paz, de reencontro consigo mesmo, presente na sequncia mostrada, lanado na diegese, fica de sobreaviso no espectador e vai encontrar eco no adiantado da narrativa quando parte do ltimo trabalho de Nick We cant go home again (1971-1973)4 for visto por Wenders, Nick e equipe. No fechamento do tema se percebe que havia sido exposta mais uma faceta da vida de Nick: o desassossego, a busca constante de um lugar para si no mundo, do espao do artista no mundo, atravs dessas duas temporalidades e constncias aproximadas. Nick, como Wenders, s que na direo inversa, a certa altura de sua vida (em torno de 1963/64) abandonou os Estados Unidos pela Europa. Jacques Aumont explicita essa passagem da vida de Ray:Ray s se torna cineasta aos 35 anos (advindo do teatro e do rdio) e sua carreira acidentada, suas relaes difceis

[1] Trabalho apresentado no NP de Comunicao Audiovisual, IX Encontro dos Grupos/ Ncleos de Pesquisas em Comunicao, evento componente do XXXII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao, agora reformulado para esta publicao.

[2] Profa. Dra. do Bacharelado e do Mestrado em Imagem e Som da Universidade Federal de So Carlos.

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[3] Termo empregado por Wenders em entrevista publicada em Hollywood (Entrevistas, 1983, p. 311). Diz ainda Wenders: Nick no apenas um sobrevivente (de uma outra poca), a prpria sobrevida, por sua vitalidade, pela juventude de suas ideias (p. 313).

com o poder dos produtores e seu carter supersensvel tornaram-no um dos astros mais paradoxais da poltica dos autores da crtica francesa. Aps um ltimo filme hollywoodiano, Os cinquenta e cinco dias de Pequim, [...] ele vaga pela Europa durante seis anos, artista alcolatra, um pouco perdido em seu sculo. ento que, acabado, volta a seu pas, filma o processo dos Nove de Chicago e torna-se, em vrias ocasies, professor de cinema na universidade e no Strasberg Institute.

[4] Nick Ray trabalhou com seus alunos do Harpur College em um filme coletivo, totalmente subjetivo e pessoal, encenando suas prprias relaes de professor e alunos de cinema. O ttulo, tpico e simblico, We cant go home again (DUBOIS, P. Cinema, Vdeo, Godard. So Paulo: CosacNaify, 2004, p. 121).

Wenders, nesse filme, pode estar tambm, enquanto reflexiona sobre o cineasta, vendo- se em projeo, pensando sua trajetria e o destino dela. medida que as filmagens tiveram incio, a necessidade do roteiro deve ter se impostado. E ele deve ter sido realizado quase conjuntamente com as filmagens. O interessante aqui que os acontecimentos, conforme foram se desenrolando na realidade, criaram o roteiro. Temos ento o real, e sua transformao em representao, como procedimento. o que se pode depreender de sequncias como esta: logo no incio do filme, vemos Nick acordando. O despertador toca. Ele acorda, desliga a TV, tosse. Est desalinhado. Reclama. A cala do seu pijama escorrega. As sequncias so de um realismo intenso. Quando ele pergunta a Wenders se estava bem na filmagem, temos conscincia da farsa. Porm, outro dado fundamental nesse momento, que no se apaga em ns a percepo que tivemos do real estado de sade de Nick. Como se ocorresse ao poeta fingir sentir que dor, a dor que deveras sentia, parafraseando aqui Fernando Pessoa. A ao era nica, com sentido duplo. Nesse sentido, ainda na referida entrevista (CIMENT, 1998, p. 309), Wenders afirma que Mais tarde [quando escolhemos a histria de nosso filme], decidimos que mostraramos como comeamos a pensar nela. Ento, ns escrevemos em forma de roteiro o que tinha nos acontecido uma semana antes (qual seja, a chegada de Wenders ao apartamento de Nick). O ponto de entrada naquela narrativa eram vrios possveis; optou-se por um deles, como veremos a seguir, no qualquer. Uma sequncia, ao longo do filme, mostra um momento no qual Ray e Wenders decidem a trama do filme e vem de Nick relacion-la com a de O amigo americano (1977). A ideia de fazer a abertura do filme numa cena exatamente igual outra de O amigo americano (1977) pode ter surgido em Wenders nessa oportunidade. De todo modo, a amizade dos dois ocorreu em decorrncia da participao de Ray no filme anterior de Wenders e esse fato estava em latncia nos dois5. Em O amigo americano tratava-se da chegada ao local onde residia o pintor supostamente morto que falsificava seus prprios quadros para sobre-

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viver; em Nicks movie tem-se um cineasta metaforicamente dado por morto pela sociedade, mas que continuava na ativa, e criativo. A correlao desses dois personagens vividos por Nick alarga por si o significado da repetio construtiva das sequncias: a ponte estrita entre O amigo americano e Nicks movie est feita. No necessrio discorrer explicitamente sobre isso no filme. Ainda, se quisermos ir alm dessa relao, segundo palavras do prprio Wenders, esse filme , de certa forma, antes uma continuao de You cant go home again, de Nicholas Ray, do que de O amigo americano (CIMENT, 1998, p. 314), dado seu experimentalismo, seu carter de obra aberta (DUBOIS, 2004, p. 216-217). Em modo narrativo assemelhado, num certo momento Ronee Blakley (esposa de Wenders na ocasio e intrprete da msica tema do filme) e Nick vo encenar um trecho da pea King Lear. Num cenrio completamente artificial, totalmente branco, composto por uma cama de hospital branca, um porta-soro e um gato preto ao lado da cama, onde se encontra deitado Nick. H uma luz vermelha que incide sobre seu rosto; depois, sobre os olhos e o peito dele e o rosto dela. Ronee entra em cena, como se fosse a filha de Lear, e o dilogo entre eles acaba por ser sobre a doena fatal dele, entrecortado poucas vezes por falas de Lear que ele profere. Conforme bem coloca Wenders,a sequncia entre Ronee e Nick talvez seja a mais artificial do filme. Mas justamente nessa cena inteiramente funcional que Nick fala do cncer, ou seja, da maior verdade. E foi esse o problema constante daquele filme. Era nas cenas inteiramente documentais que tnhamos dificuldade de nos aproximar da realidade. Quando inventvamos, podamos por fim falar daquela realidade (CIMENT, 1988, p. 312-313).

Mais uma vez, estabelece-se um jogo entre o narrado e o espectador, que acaba por ter informao sobre o passado de atores de Nick e de Ronee e o seu presente (real) e, na sobreposio dos dois, a significao daquela sequncia, mais intensa do que se abordasse um dos momentos de cada vez e que se pode denominar como a marca da majestade do agnico rei Nick. A apresentao da interpretao parece vir para justificar o presente, dar a este as ranhuras desejadas por Wenders.

As filmagens. A observao dos detalhes da aoA partir da observao de Serge Daney (2007, p. 226) a respeito desse filme, h em todos uma tal conscincia da cmera que, no limite, essa presena que se torna o nico motor do filme [...], pode-se depreender que h uma grande

[5] Nick inicialmente hospedou Wenders quando este resolveu mudar-se para a Amrica, introduziu-o nos Estados Unidos, o que os tornou muito prximos.

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A apresentao da interpretao parece vir para justificar o presente, dar a este as ranhuras desejadas por Wenders.

afinidade entre o trabalho da cmera e os protagonistas, no acompanhar e registrar o atuar. Ali, vai importar pouco destacar o documental do ficcional. Eles se encontram propositalmente fundidos; um propiciando a erupo do outro. Isso nos faz pensar na perceptvel tenso interna presente nessa obra (entre o perceptvel e o intudo) o que seria dizer, segundo Catherine Russell, que: this film is characterized by a Romantic dialectic of body and consciousness (1994, p. 72). Lembremos aqui que Nick foi ator, teorizou (Ao. Sobre a direo de atores) e ensinou tcnicas de atuao. Entre seus ensinamentos est o de queo diretor uma espcie de tradutor, que deve falar a linguagem de todos os atores. [...] De maneira menos psicolgica e mais tcnica, a importncia central da ao e do ator provm do fato de o desempenho do ator ser to essencial arte do filme que pode ocupar o lugar de qualquer outro meio expressivo, da cor, do primeiro plano etc. [...] O ideal da representao do ator quando suas aes so to perfeitamente corretas que sua correo torna-se natural e convincente (AUMONT, 2004, p. 169-170, grifo do autor).

Em Nicks movie quer-se escrever (ou inscrever), pelo registro sensvel de sua atuao, uma textualidade, uma corporalidade, a pele, o charme, a dor, a respirao, um respiro o ser Nick em vida, em presena. A ao de Nick, enfaticamente, e a construo de cada plano sonoro-visual parece aviar em ns a textura/tessitura da existncia humana. Junto a esses efeitos se vo assinalando os pensamentos, os sentimentos e os desejos de Nick, tudo o que complementa um ser. A utilizao das filmagens em 35mm e em vdeo tambm cria isso. H o contedo explcito, e h o implcito que o trabalho com duas cmeras revela. Trata-se de sugerir ao espectador o estado do ser humano, via ao e tratamento visual. A lembrar aqui que somente na segunda montagem, a feita por Wenders, as imagens da cmera de vdeo foram introduzidas no filme. Dubois, em sua magistral anlise do efeito das cmeras conjuntas no filme, mostra essas impresses tambm. Em sntese, uma imagem flmica lisa, transparente

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e bem acabada: uma imagem limpa, contrastando com a imagem eletrnica, urdida, cintilante, enrugada, como que empoeirada pelas oscilaes fugitivas (2004, p. 220-221). Assistir a Nicks movie conhecer Nicholas Ray, seus gestos, seu modo de ser, sua fala, seu olhar etc., alm de sua famlia, seus companheiros de trabalho, sua amizade com Wenders; v-lo trabalhando, ver seus filmes e, tambm, ver de perto Wim Wenders, perceber os traos que o distinguem, sua relao com os USA, com o cinema americano etc., ao mesmo tempo em se experiencia o trabalho de construo de uma obra flmica, do princpio ao fim, do roteiro s filmagens (das ideias s imagens) e dessas montagem, ou seja, participar da constituio da linguagem cinematogrfica, vla estruturar-se. H uma narrativa que se superpe outra e elas coexistem e dialogam. Na realidade, h at dois ttulos para esse filme: Nicks movie e Lightning over water,6este ltimo sugerido por Ray para a fico que iriam fazer juntos. Jean-Claude Bernardet, a propsito do cinema de poesia coloca que neste

H uma narrativa que se superpe outra e elas coexistem e dialogam.

o fato dos elementos no estarem fechados numa narrativa homognea, coesa e unvoca impede que a linguagem seja instrumentalizada, quer dizer, seja colocada a servio de outra coisa, tal como um enredo ou uma exposio sobre este ou aquele assunto. O fato de que o discurso no se fecha deixa a linguagem constantemente presente, porque constantemente ela tem que ser observada, interrogada, trabalhada (BERNARDET, 2003, p. 10-12).

Em Nicks movie parece acontecer exatamente isso: Wenders, Nick, as cmeras, as luzes, os microfones, a mesa de montagem, os tcnicos, os familiares etc. so personagens, sim, so personagens porque se fazem sentir, mostram seu potencial lado a lado com os dois protagonistas e, juntamente com esses, conduzem a obra como um painel do que rodeia o cineasta e seu meio de expresso: a linguagem cinematogrfica. Da articulao desses elementos depreende-se a metfora que, portanto, est no entre o que foi Nick / a linguagem (narrativa) cinematogrfica e o que Nick / a linguagem do cinema grande tema geral, enfim, dessa obra. No se pode desdenhar o fato de a motivao dos cineastas para realizar essa mais tabu para os germnicos do que para os mediterrneos, segundo Wenders (1988, p. 63) que, porm, nesse caso, serve

[6] Dubois fala dos duplos presentes nessa obra: Esta bipolaridade tambm aparece em todos os nveis de Nicks movie: em seu ttulo duplo [...], em sua realizao empreendida por dois cineastas, que so tambm seus dois atores principais; em suas duas verses, uma orientada para o documentrio, a outra, para a fico [...]; em seus dois suportes (cinema e vdeo); nos dois idiomas que ele superpe (ingls e alemo); na abordagem, enfim, de uma srie de temas que s fazem sentido em pares: Europa e Amrica, pai e filho, atrao e rejeio, vida e morte etc. (2004, p. 215).

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[7] Por ex., alguns publicados em livros: A lgica das imagens. Lisboa: Edies 70, [1988] e Emotion Pictures. Lisboa: Edies 70, [1987].

para revelar o inevitvel, o que est prximo e se instalar em breve. Sabemos, de incio, o final do filme. Portanto, isso no est em questo nessa narrativa. Entretanto, a morte fica como pano de fundo, o medo do desconhecido e a angstia por ele causada permanecem. Logo na parte inicial do filme, Wenders pergunta a Nick: Sobre o que falaremos no filme (que faremos juntos)?. A que Nick responde: About dying?, com a cmera j a mostr-lo. H um corte e o plano seguinte mostra uma embarcao navegando, com uma urna funerria (que supomos ser de Nick) e, com ela, uma cmera que gira e filma; entram a msica-tema, Lightning over water, e os letreiros. Corte e a narrativa (re)comea. O fazer o filme sendo mostrado aponta para o no-ilusionismo cinematogrfico, mas h uma fico em construo ali tambm, como se sabe; junto ao ficcional temos o documento e ambos levam o espectador a se identificar cinematogrfica e primariamente (METZ, 1983, p. 418) com o que est a se representar ali: ao lado da premncia da morte e o que ela simboliza para todos, inclusive para o espectador, a realizao, o gerar imagens sonoro-visuais em movimento impresses atuais de objetos ausentes (METZ, 1983, p. 419). O enredo constitui-se ento da aproximao entre esses dois aspectos, da sobreposio (de um sobre o outro), de uma condensao questionadora do parentesco da vivncia da morte com a vivncia da criao artstica. Dos destroos surge a Beleza. No nvel da identificao cinematogrfica secundria (METZ, 1983, p. 418), o espectador se aproxima intensamente de Nick e Wenders, enquanto atores em cena (cineastas), personagens deles mesmos. O carter extremamente ntimo das imagens, dos depoimentos e do dirio de Nick nos torna muito prximos dele; o medo e a insegurana de Wenders (expressos sonora e visualmente) tambm. Em uma sequncia, para citar um ex., Wenders expe seu pesadelo, seu temores com relao quela situao e nela insere um plano de si abraado fortemente a Nick, a destacar seu afeto e realizar uma despedida simblica. Vimos j alguns dos ecos de uma rede intertextual de criao ali presentes entre outros, na apresentao de trechos de Paixo de bravo e de We cant go home again e na evocao de O amigo americano, ou seja, no passado do cinema responsveis tambm pela ampliao dos motivos ligados identificao primria. Sabe-se do interesse de Wenders pelo processo de criao artstica. Isso transparece nos seus muitos escritos sobre o cinema7 e tambm nos seus filmes anteriores a esse, Movimento em falso (1975), sobre o processo de criao literria, e No decurso do tempo (1975), que trata da circulao/projeo de filmes.

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A intertextualidade e o ser do cinema continuaro presentes nos seus filmes, dali em diante8. De qualquer modo, um novo estado de cinema, o maneirista (ou barroco), como quer Dubois (2004, p. 148-152), est ali instaurado: um cinema que tem a si mesmo como tema, junto trama. Nicholas Ray sempre esteve atento experimentao esttica. Sua sensibilidade e coragem o condenaram em Hollywood, em tempos anteriores. Dubois (2004, p. 217) comenta queWe cant go home again uma tentativa de multiplicar os formatos (super-8, 16 e 35mm) e de embuti-los (para no dizer incrust-los) uns nos outros, no quadro totalizante de uma nica tela de projeo. Alm disso, Ray experimenta a mescla dos suportes flmico e eletrnico, utilizando o sintetizador de vdeo que lhe fornecera seu amigo, [...] Nam June Paik.

No mesmo livro, Dubois (2004, p. 217) ainda cita um artigo de Eisenschitz em que este lembra o interesse declarado de Ray pela imagem eletrnica desde suas primeiras experincias para a CBS em 1945 e 1954 (High Green Wall).

A montagem absolutamente pessoal, nica e inovadora. O espaoBem, como se v, Nicks movie foi realizado sob esse signo: o pensar e construir a linguagem cinematogrfica. Terminado o filme Nick est morto , ele exibido em Cannes, em 1980. Alguns meses depois, Wenders remonta-o. Segundo Serge Daney, (2007, p. 226-227), Wenders estava certssimo ao remontar o filme.A verso mostrada em Cannes era um filme longo, desagradvel e muito catico, ao qual somente podamos aderir se dissssemos que era o real da filmagem que se encontrava tambm implicado. [...] Tive a impresso de que o filme no era nem aquele de Ray (morto antes do trmino das filmagens) nem o de Wenders (a quem a equipe criticava, numa cena que tambm desapareceu, por ter abandonado o filme ao partir para a Califrnia para se ocupar de outro filme, Hammett), mas o filme do montador, Peter Przygodda, e que ele testemunhava sobre suas dificuldades e seu sofrimento. Przygodda privilegiava a figura de Ray moribundo, as idas e vindas de uma filmagem aventurosa, a infelicidade da equipe emparedada em sua impotncia e sua vontade de fazer

[8] poca, j se colocava muito essa questo, a da morte do cinema, em funo da TV e do vdeo. Penso que essa pergunta implica, na verdade, o significado do que constitui o narrar cinematogrfico esteticamente relevante. Em 1982, por ex., o prprio Wenders realizar O quarto 666, no qual tentar, atravs do questionamento a vrios cineastas presentes no Festival de Cannes, responder a essa pergunta. Seguindo-se imediatamente a Nicks movie, Wenders realizar ainda Hammett (1982); O estado das coisas (1983); Paris Texas (1983); Tokyo Ga (1985); Identidade de ns mesmos (1989); O cu de Lisboa (1994) e Um truque de luz (1995), todos, com variaes, naturalmente, tratando do cinema, de processo de criao, de nossa relao com as imagens. Em O desprezo (1963), Godard j colocara questo assemelhada, na forma da morte de um certo cinema, aquele do filme de autor, questo que tambm se aplica quele realizado por Nicholas Ray.

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bem feito. certo que, ao remontar o filme, Wenders traiu alguma coisa: ele traiu o filme de Przygodda, o documento puro e duro.

Wenders refaz a montagem de Peter Przygodda, ressalta-se como narrador off e destaca as msicas (suas msicas)9 na trilha: ou seja expe-se. O narrador off como ns, espectadores, em nossa posio fora de campo. O personagem off (Wenders) compartilha conosco certa posio off. Desse modo, portanto, seguindo aqui Metz novamente (1983, p. 426, grifo do autor), o processo de sutura envolve a identificao primria, pois o personagem off realmente um substituto do espectador. Ele um espectador um observador no interior do observado. Wenders nos concede sua experincia de personagem off nesse filme. E nos aproxima mais de Nick (o homem/o cinema/a morte), que se torna o protagonista. Ronee Blakley, cantora, tecladista e guitarrista esposa de Wenders naquele momento faz a trilha, canta a msica tema (Lightning over water), aparece em cena e atua ao lado de Nick, fazendo um papel assemelhado ao de Wenders com a voz off, ou seja, faz da trilha um narrador off assemelhado a ns, espectadores. Alm do tema do filme, a narrativa pontuada por solos ou duos jazzsticos, em geral, de piano e sax, msica tipicamente americana, tambm integrante de We cant go home again. As inseres musicais, bastante delicadas, parecem comentar o que est sendo sucedido com um ou com os dois protagonistas. Quanto montagem, pela insero do vdeo, ela traz para a narrativa o espao off, fato bem apontado por Dubois (2004, p. 224):no o espao off diegtico, sempre operante no filme, mas aquele que resta sempre e radicalmente fora de cena. O vdeo desvela a presena efetiva de uma equipe, de um material e de uma cmera, a preparao minuciosa da tomada e da direo dos atores. Ele disseca o cinema [...], [9] No seu livro Emotion Pictures e na entrevista citada, a CIMENT, Wenders fala que primeiro conheceu o esprito da Amrica atravs da msica, do Rock, com o qual se identificou. Para conferir isso, basta ler o referido livro, no qual sua paixo exposta de maneira clara.

ou seja, Wenders busca, atravs tambm desse recurso, costurar o espectador trama. Concordando com Catherine Russell, a propsito de Nicks movie, podemos afirmar que for the storyteller, on the other hand, death is the sign of the transposition of history into narrative (1994, p. 31). Wenders toma para si a verso-final desse relato. Conforme nos fala o narrador da obra de Peter Handke (romancista e

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roteirista de Wim Wenders), A sorrow beyond dreams:A narrativa somente um ato de memria [...] ela no mantm nada em reserva para futuro uso; ela simplesmente deriva um pequeno prazer de estados de medo e ansiedade ao formul-los to bem quanto possvel; do gozo do horror a narrativa produz o gozo da memria (apud CORRIGAN, 1997, p. 112).

O relato busca suprir a falta, a ausncia, o perdido10 A criao artstica, na . viso de Freud (1976, p. 147-158), impulsionada pela carncia. Deve ter havido, no processo de realizao desse filme, um aprofundamento da ansiedade por parte dos seus realizadores que ganhou ainda mais fora, em Wenders, com a morte de Nick. o que parece haver contaminado e estar revelado nesse fazer flmico que nos inscreve em si, na sua angstia. Podem-se aplicar ao sentido dessa realizao as belas palavras de Wenders, ao ser perguntado sobre sua razo de fazer filmes: O cinema pode salvar a existncia das coisas (1990, p. 10). Da mesma forma pela qual um ser humano entrega seu corpo para a pesquisa cientfica aps a morte, Nick entregara-se a Wenders quela obra, ao cinema, enfim (DANEY, 2007, p. 225). Todos os nveis do ser Nick sua face e mscaras foram oferecidos ali. Wenders, em respeito e amor ao cineasta norte-americano, opta por doar-se inteiramente tambm. Seu medo e sua dor seu ser em fragmentos so ali revelados. A remontagem dos planos com a utilizao das filmagens em vdeo (Betamax), ao lado daquelas em 35mm, a trilha escolhida e a voz off de Wenders ressignificaram o filme. A densidade espacial do real foi explorada. Agora os objetos e a paisagem ganham destaque; o som nos ajuda a dimensionar sua extenso. Dubois (2004) privilegia o encontro dos dois meios (cinema e vdeo) e baseia-se nisso primordialmente para estabelecer sua precisa leitura do filme. Quer-se destacar aqui que Wenders juntou a esse trao construtivo uma edio sonora inventiva e ampliadora da significao visual. O cineasta potencializa a montagem das imagens sonoras e visuais at atingir a iconizao mxima das mesmas; elas aludem para apontar o desejado desde o princpio: mostrar as possibilidades do real. Wenders, ao assumir-se como narrador final desse filme, dobra a voz da Morte voz da fantasia aquela que permite estabelecer novas e mltiplas conexes entre o filme e os espectadores. Faz-nos cmplices. Ao reinterpretar as formas narrativas, esse cinema

[10] A relao pai-filho, levantada a partir desse filme, j foi devidamente estudada, por ex., nos textos aqui mencionados de Russell, Corrigan e Daney. No nos deteremos, portanto, nesse ponto.

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possibilita ao espectador dar novas formas ao real, re-significar o mundo.

Assim, nessa obra, a partir do sensvel extraem-se totalidades emotivas metforas; chega-se s imagens/figuras de emoes como s se encontram em raros momentos, [...] imagens no vagas ou sentimentais, mas dum pattico perfeitamente claro e lcido, para usar aqui palavras do prprio Wenders (1987, p. 85).

O cineasta potencializa a montagem das imagens sonoras e visuais at atingir a iconizao mxima das mesmas.

No deslizar da embarcao com as cinzas de Nick essa condio narrativa brota, plena. Em uma sequncia inesquecvel, de altssima fora potica, v-se uma cmera a filmar operada pela urna de Nick. Dois projetores projetam pelculas ao lu. Por outra cmera (um narrador off, como ns), vemos o que ela v, seu visor: as imagens captadas pelo olho de Nick/o cinema. No final do filme, essa sequncia volta. Um plano do alto mostra o barco a navegar rio abaixo e, nele, a cmera/projetores/urna a caminho do mar. A trilha deixa rolar plenamente a msica cujos acordes j tinham sido ouvidos parcialmente. Na diegese, a sntese do continuum espcio-temporal. Puro xtase. O cinema como a redeno da realidade como desejava Kracauer querendo significar a ternura que o cinema pode mostrar em relao realidade (WENDERS, 1987, p. 47).

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Marcas de um realismo sensrio no cinema mundial contemporneopor Erly Vieira Jr.Resumo Este artigo busca investigar a emergncia, dentro de um certo cinema contemporneo transnacional de um outro realismo, marcado pela construo narrativa por ambincias, pela esttica do cotidiano e por promover, junto ao espectador, uma experincia mais sensorial e afetiva que racional. Para discutir este realismo sensrio, que por vezes se aproximaria o realismo afetivo proposto por Schllhammer (2005), buscamos nos aproximar dos estudos sobre cinema, corpo e sensorialidade de tericos como Steve Shaviro e Laura Marks, ilustrando-o com breves leituras de obras dos cineastas Claire Denis, Naomi Kawase, Apichatpong Weerasethakul, Hou Hsiao-Hsien e Lucrecia Martel (comumente associados, por parte da crtica cinematogrfica, ao termo esttica do fluxo). palavras-chave: cinema e sensorialidade; esttica do fluxo; cinema e corpo.

[1] Erly Vieira Jr professor do Departamento de Comunicao Social da Ufes e doutorando em Comunicao e Cultura pela UFRJ. Tambm escritor e curta-metragista.

noite, beira das florestas que circundam o vilarejo de Nabua, no nordeste da Tailndia. Em meio ao vento que balana suavemente as copas das rvores, um tubo de luz fluorescente ilumina fracamente um pequeno descampado. Aos poucos, vemos alguns clares rasgando o negrume quase absoluto: aparentemente, raios ou fogos de artifcio. Aps longos segundos de incerta e inquietante contemplao, eles se revelam como uma srie de imagens esbranquiadas, projetadas numa grande tela armada nesse mesmo descampado. Em certo momento, vemos a tela bastante prxima: a textura de seu tecido atravessada pela luz revela-se, quase a ponto de ser tocada. O som das exploses faz-se bastante presente, enquanto a noite continua a cair, e aos poucos emergem silhuetas humanas, recortadas contra a tela, e iluminadas por uma outra luz, alaranjada, que se move prxima ao cho. Depois de alguns segundos, finalmente percebemos se tratar de uma espcie de jogo de futebol, no qual uma bola em chamas chutada por um grupo de jovens aldees, posicionados entre nosso ponto de vista e a tela que ao fundo continua a projetar os clares. Um plano geral nos d a viso das trs fontes de luz: a lmpada tubular, as imagens projetadas na tela e a bola de fogo, que deixa por vezes um breve rastro na rasteira vegetao que se espraia pelo solo. Aps sermos apresentados, sem maiores cerimnias ou explicaes, aos elementos que engendram a ao contida na cena, resta-nos acompanhar, com alguma proximidade, o movimento da bola de fogo chutada incessantemente pelos jogadores: um desenho de luz que insiste em rasgar a escurido. O barulho das exploses agora se confunde ao o som dos chutes na bola que, por vezes, atinge a tela de projeo, inflamando-a. Primeiro, o fogo arde em pequenas reas, at finalmente a combusto atingir a totalidade de sua superfcie. Nessa hora, revela-se uma nova fonte de luz, frontal a nosso ponto de vista: a do projetor, revelado medida que as chamas extinguem a superfcie de projeo. O claro outrora projetado no tecido agora pulsa diante de nossos olhos, reverberando, quase imperceptvel, na fumaa que deriva da queima, enquanto ainda ouvimos algumas exploses a ressoarem nas caixas de som conectadas ao equipamento de projeo. Durante cerca de dez minutos, acompanhamos o desenrolar dessa cena,

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conduzida por um quase imperceptvel fiapo narrativo. Contudo, somos convidados a partilhar de uma intensa experincia sensorial, quase hipntica, ao seguirmos os movimentos das diversas fontes de luz enquadradas pela cmera. Alguns planos mais aproximados sugerem uma certa tatilidade da imagem, e o desenho de som, mesclando em sutis gradaes os rudos das exploses projetadas com os sons da partida de futebol e o ambiente da floresta, conduz a uma outra experincia auditiva, em que os sons pedem para ser desvendados cuidadosamente. O tempo cronolgico (pouco menos de dez minutos) j no importa mais: embarcamos numa espcie de presente eterno, que nos apresentado aos poucos ( medida que as figuras tornam-se distinguveis em meio penumbra), e que s se esvai ao final desse trnsito contnuo de afetos e intensidades que se efetua diante de nossos olhos, ouvidos, pele... em suma, de todo nosso corpo. A descrio que empreendi acima corresponde a Phantoms of Nabua, curtametragem realizado pelo tailands Apichatpong Weerasethakul em 2009. Em meio imerso proporcionada por um olhar atento, quase como uma lente de aumento voltada para um banal evento cotidiano, somos transportados para um outro espao-tempo narrativo, no qual poucos dados racionais nos so disponibilizados (potencializados, no caso, pela ausncia de dilogos), e o que sabemos da cena nos dado pela investigao intuitiva que empreendemos a partir dos diversos estmulos sensoriais sobrevalorizados no decorrer do filme. Se, por um lado, parece uma sada natural deixar de lado, ainda que por alguns instantes, o olhar racional/psicologizante que rege o aparato de leitura de imagens em movimento ao qual estamos mais acostumados nas narrativas cinematogrficas, por outro, a abertura valorizao da dimenso sensorial proposta por um filme como o de Weerasethakul amplia uma sensao de estar-com ou estar no mundo, que nos transporta para junto da cena. Essa proximidade dar-seia no no sentido ergomtrico de imerso que as to alardeadas tecnologias tridimensionais hollywoodianas deste incio de sculo nos proporcionam, mas sim ao instaurar uma espcie de pacto de cumplicidade entre espectador e imagem. Nele, estabelece-se uma troca de intensidades a nos dar a sensao de acompanhar o evento registrado pela cmera a partir de uma apreenso do fluxo de micro-acontecimentos cotidianos que o compem, como se ele nos atravessasse tambm. Eu poderia ter escolhido descrever outras cenas, de outros filmes realizados em diversas regies do planeta, para iniciar esse texto. Por exemplo, a investigao a princpio desinteressada que a cmera faz numa oficina tipogrfica abandonada, passeando por entre as prensas e ferramentas, por dentro

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(...) trata-se de uma outra pedagogia do visual e do sonoro (...)

e por fora dos cmodos, at se deparar com duas crianas que iniciam uma brincadeira, e segui-las enquanto correm por entre becos, bosques e ruas, at parar por alguns instantes como se ela tambm, maneira de um corpo humano, precisasse retomar o flego (Shara, da japonesa Naomi Kawase, 2003). Ou o jovem que atentamente escuta e grava sons numa estao, enquanto trens vo e vem, atravessando o quadro, corrigido pelas sutis flutuaes de uma cmera, em modulaes que se aproximam de uma respirao (Caf Lumire, do taiwans Hou Hsiao Hsien, 2003). Ou ainda os exerccios fsicos, repetidos, um a um, pelos corpos dos soldados da legio estrangeira em treinamento, acompanhados por movimentos mnimos e tambm flutuantes da cmera, que assumem, aps uma srie de repeties, um carter quase hipntico, podendo se prolongar de uma ao para outra como, por exemplo, o exerccio da corda bamba, ao qual se segue uma panormica atravs dos varais de roupas secando ao vento que sopra no deserto (em Bom trabalho, da francesa Claire Denis, realizado em 1999). Em comum, tais cenas (e filmes) possuem essa predileo de uma forma de narrar na qual o sensorial valorizado como dimenso primordial para o estabelecimento de uma experincia esttica junto ao espectador: em lugar de se explicar tudo com aes e dilogos aos quais a narrativa est submetida, adota-se aqui um certo tom de ambigidade visual e textual que permite a apreenso de outros sentidos inerentes imagem. Ou seja, trata-se de uma outra pedagogia do visual e do sonoro (muitas vezes aliado a uma certa dose de tatilidade na imagem, aquilo que Laura Marks denomina uma visualidade hptica), que nos convida a reaprender a ver e ouvir um filme, para alm de uma certa anestesia de sentidos que as convenes do cinema hegemnico (mesmo o contemporneo, com suas desconstrues narrativas ps-modernas e choques perceptivos proporcionados pela tridimensionalidade) h muito promovera em nossos corpos de espectadores. Para se referir a esse conjunto de narrativas audiovisuais, parte da crtica cinematogrfica adotou o termo cinema de fluxos ou esttica do fluxo (expresso cunhada por Stephane Bouquet, num artigo publicado na Cahiers du cinma, em 2002). Sob esse rtulo, so comumente includos filmes realizados a partir do final da dcada de 90 do sculo XX, num conjunto marcado pela nfase numa reinsero corporal no espao e tempo do cotidiano, presentifica-

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do, traduzido como experincia sensorial mediada pela linguagem audiovisual. Aqui, a elipse temporal e a ambigidade visual, desencadeadoras tanto de inquietudes quanto de delicadssimos alumbramentos, conduzem a um dispositivo de produo de incertezas, intensificado pela composio de imagens e ambincias que desarmam o espectador, convidando-o a imergir no espaotempo cnico atravs de uma nova relao do olhar que convida a primeiramente sentir, para apenas depois racionalizar. Trata-se, aqui, de estabelecer uma nova relao com o real, no no sentido traumtico como o percebido por Hal Foster (1995), pautado por uma espcie de choque perceptivo que cobre um espectro cinematogrfico tambm bastante amplo, que vai das provocaes de David Lynch e Lars Von Trier s tinturas naturalistas que colorem alguns momentos de filmes como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, ou Hunger, de Steve MacQueen, to exaltado por seu hiper-realismo. Pelo contrrio: os estetas do fluxo operam no mbito de uma investigao sutil e macroscpica do cotidiano, numa espcie de real em tom menor (LOPES, 2007) de potica sussurrada, situado na esfera do comum e do ordinrio. Aqui, a primazia por uma narrativa do tempo presente outra, completamente diversa da do cinema de ao de Hong Kong (John Woo, Tsui Hark), ou das imagens-sensacionais produzidas pela Hollywood contempornea (como Miami Vice ou a franquia do Homem Aranha), que serviriam de embrio para a lgica de imerso ergonmica de uma tecnologia tridimensional atualmente vendida com bastante alarde, como um gigantesco passo adiante na experincia cinematogrfica pela indstria cinematogrfica. Em lugar desse cinema que literalmente envolve o corpo do espectador por todos os lados, quase sem possibilidade de recusa sua experincia imposta de fora pra dentro, a esttica do fluxo parece-me uma alternativa de diluio das fronteiras entre o dentro e fora, na qual o corpo do espectador convidado, sim, a experimentar o real em suas mincias, em suas quase imperceptveis modulaes, deixando-se atravessar/afetar aos poucos pelas zonas de intensidade que migram pelos corpos e espaos filmados, num processo de gradual descoberta atravs dos estmulos oferecidos aos rgos do sentidos. Acredito existir, nesse cinema uma nova pedagogia do ver, ouvir e (por vezes) tatear a prpria materialidade das imagens. Numa poca em que o sensorial espetacularizado (e muitas vezes anestesiado), valorizar o aspecto micro em lugar do macro soa-me como um sugestivo convite subverso da lgica industrial. Da a adoo de uma sensorialidade (ou melhor, multi-sensorialidade) difusa, multiforme, reticular e dispersiva (e, nesse ponto, ela seria distinta das

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propostas sensoriais das vanguardas do comeo do sculo XX ou do cinema moderno de um Tarkovski, aliando tal dimenso sensorial a conexo com a dialtica memria/esquecimento). Aqui, os afetos eclodiriam dentro do plano, no necessariamente atrelados ao cerne narrativo da cena. como se compusessem um registro paralelo, capaz de tensionar nossa percepo do conjunto de simultneos microeventos e microdeslocamentos corporais registrados pela cmera, construindo um espao-tempo narrativo que concebe o cotidiano como uma experincia de sobrevalorizao sensorial, a reverberar diretamente no corpo e nos sentidos do espectador. Podemos afirmar que este cinema que dialoga com a fluidez e efemeridade de um mundo cuja profuso de sentidos e sensaes pede-nos uma intensa imerso corprea na realidade e na multidimensionalidade cotidiana, fazendo esgarar a trama narrativa at reduzi-la a alguns fiapos, que sirvam de porta de entrada para tal experincia. Acredito que isso esteja evidente, por exemplo, na fala da crtica Tatiana Monassa, em seu texto Cinema-mundo, publicado na edio 66 da Contracampo:A imagem cinematogrfica como mediadora privilegiada entre o espectador, entregue ao prazer de se ir ao seu encontro, e o mundo, fsico e vivo. Entregues s imagens que pulsam, podemos ento pulsar junto com elas e senti-las em toda sua intensidade. (MONASSA, 2004:1).

Da a sensao de um constante estado de embriaguez da cmera em seu percurso pelos espaos e corpos, dialogando sensorialmente com os transbordamentos de um mundo que pura mobilidade e fluidez, um aqui-e-agora no qual cineasta, espectador, cmera e atores esto imersos e tambm em movimento.

Um cinema da realidade? Conceituando o realismo sensrioEm primeiro lugar, cabe explicar que o realismo a que nos referimos aqui foge de concepes fenomenolgicas que marcam as proposies de Andr Bazin na dcada de 50, ao dividir o cinema entre realizadores que comungavam de uma crena na realidade (valorizao da mise-en-scne e do plano-sequncia) e os partidrios da crena na imagem (e da interferncia direta do realizador no material flmico atravs da montagem). Prefiro pensar como Steve Shaviro (1993), que prope abandonar essa dicotomia plano X montagem e abolir a descontinuidade entre esses dois domnios, como condio fundamental para

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se pensar uma leitura da teoria cinematogrfica sob o vis do corpo e de sua dimenso sensvel. Quando pensamos no cinema de Hou Hsiao Hsien, por exemplo, a idia da mise-en-scne como uma espcie de escritura da efemeridade cotidiana parece ganhar forma. Neste caso, trata-se de um outro realismo, diferente da mise-enscne clssica que se propunha como um ordenamento do real subordinado aos limites da cenicidade (OLIVEIRA, 2006) o prprio olhar torna-se mais arejado, os encadeamentos narrativos afrouxam-se, submetidos apreenso sensorial dos eventos captados pela lente de uma cmera que parece flutuar por sobre a realidade retratada, permevel a diversos elementos para alm do que se est enquadrando. Por no ter comeo nem fim aparentemente delimitveis, e estar marcada por uma multidimensionalidade (BURKITT, 2004), j que seus diversos microeventos ocorrem aleatoriamente em carter de simultaneidade (e por isso mesmo, deslizaramos de uma dimenso a outra), a experincia cotidiana assume-se como frtil terreno a ser explorado pela esttica do fluxo. No que j no houvesse incorporaes anteriores do cotidano pelo cinema e aqui, as referncias so vrias, desde o olhar milimtrico e quase silencioso de Yasujiro Ozu, confessa referncia para cineastas como Hou e Kawase, at experincias radicais da modernidade, como os filmes de seis, oito horas de durao de Warhol e a sucesso de eventos banais nos planos alongados de Chantal Akerman em seus primeiros filmes, especialmente em Jeanne Dielman. Contudo, podemos dizer que, nesta vertente do cinema contemporneo, a adoo de um olhar que tende ao microscpico e que se deixa guiar pelas sutis modulaes de detalhes sonoros, cinticos e luminosos no interior da cena recoloca a questo do cotidiano sob outra perspectiva narrativa: a que assume o carter sensorial como ponto de partida para a irrupo de alumbramentos capazes de abrir a percepo do espectador para alm do anestesiado olhar que j no percebe a riqueza multidimensional de um mundo em constante mobilidade. Da pensarmos num tipo de plano em que o corte no seja dado pelo final da ao, mas sim por elementos que apontem para o cessar ou para a migrao espao-temporal dos afetos irrompidos junto ao espectador

(..) abrir a percepo do espectador para alm do anestesiado olhar que j no percebe a riqueza multidimensional de um mundo em constante mobilidade.

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[2] Acerca da idia de realismo proposta por Schllhammer, cabe aqui citar uma fala concedida em uma entrevista, bastante elucidatria de como o realismo contemporneo no repete o carter naturalista de seu antecessor no sculo XIX: O realismo contemporneo est definido por linguagens estratgicas de representao, que apontam aos limites da representao e tentam trazer para dentro da obra algo alheio a esses limites, ou seja, a realidade tal qual, como experincia ou como fato documental (Entrevista concedida revista digital Digitagrama, n. 4, 2007, editada pela Universidade Estcio de S e disponvel no endereo: , acesso em 22/05/2010).

durante os eventos filmados/presenciados. Afeto, por sinal, um termo bastante recorrente ao se falar desse conjunto de filmes. Em diversos textos crticos, abundam referncias questo dos corpos e afetos/afeces, seja por uma matriz spinoziana ou mesmo deleuziana. Contudo, antes de nos determos em tais matrizes, proponho primeiramente uma outra aproximao. Karl-Erik Schllhammer (2005), ao discutir o realismo nas artes e literatura contemporneas, fala de uma esttica afetiva, contraposta esttica do efeito praticada a partir do final do sculo XX (e traduzida em especial no realismo traumtico identificado por Hal Foster em seu livro The return of the real, de 1994). Trata-se aqui de uma experincia que operaria atravs de singularidades afirmativas e criativas de subjetividades e intersubjetividades afetivas (2005:219). Nela, a obra de arte torna-se real com a potncia de um evento que envolve o sujeito sensivelmente no desdobramento de sua realizao no mundo (2005: 219). Ao dissolver a fronteira entre a realidade exposta e a realidade esteticamente envolvida, esse realismo afetivo traria a ao do sujeito para dentro do evento da obra. Esse tipo de suspenso entre o eu e o outro, de entre-lugar por onde transitam e transferem-se afetos, poderia encontrar paralelo no cinema contemporneo, a partir da explorao do sensorial (ptico e hptico, vide uma certa potica do ttil nos filmes de Kawase, por exemplo) como portas de entrada para a imerso do espectador na fugacidade do instante presente em que se desdobra a ao flmica. Da minha proposio de um realismo sensrio, espcie de desdobramento do realismo afetivo proposto por Schllhammer, em que a valorizao desses aspectos sensveis produza essa aproximao entre sujeito e obra. Afinal, tais aspectos propem um dilogo imediato com a alteridade na prpria dimenso do corpo, sem a necessidade de se organizar como estruturas e precedendo o sentido lingstico: sentir implica o corpo, mais ainda, uma necessria conexo entre o esprito e o corpo (SODR, 2006: 13). Tal conexo nos aproxima concepo de afeto proposta por Spinoza em sua tica (parte III, definio III): Por afeto, entendo as afeces do corpo pelas quais a potncia de agir desse corpo aumentada ou diminuda, favorecida ou reduzida, assim como as idias dessas afeces. (proposio XI, pg. 197). Para Spinoza, essas variaes de intensidade da potncia corporal promovidas pelos afetos que constituiriam a fora-motriz que rege as relaes que regem o dualismo corpo/alma e que poderamos estender aqui tambm para a paridade eu/outro(s). Assim sendo, podemos pensar o corpo como um continuum de intensidades variveis, capazes de afetar outros corpos e modificar suas potncias.

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Podemos pensar o conjunto de filmes analisados como embebido por tal lgica, uma vez que seu carter assumidamente sensorial permite que sensaes e afetos transbordem por entre corpos (filmados e espectatoriais) e espaos. Corpos povoados por intensidades, que os adentram a partir da pele, j que estamos falando de um cinema que lida com uma relao fsica entre cmera e atores. esta situao de fisicalidade (conjugada a uma percepo atravs do corpo inteiro), que permite a sensao de um estar no mundo e por ele deixar-se atravessar, que tanto nos remete conferncia de Merleau-Ponty, O cinema e a Nova psicologia (1945), texto fundador de toda uma linhagem de estudos sobre cinema e corpo. Essa concepo do corpo como superfcie deslizante e povoada por intensidades tambm est presente em Deleuze e Guattari, ao falarem do corpo sem rgos (CsO), proposio filosfica inspirada em Artaud e na tica spinoziana, que se configuraria como uma espcie de grau zero do corpo, despido de significncias e revelado na conexo de desejos e fluxos. Se o corpo sem rgos assume-se como uma utopia desejante, ao menos ele serve como ponto de partida para os estudos de Steve Shaviro acerca dos afetos entre o corpo sensvel e o cinema. Em seu livro The cinematic body, de 1993, ele conjuga do mesmo esprito deleuziano de mergulhar no impensado do corpo para propor uma esttica das intensidades do corpo na qual o cinema operaria como uma tecnologia de intensificao das sensaes corpreas, desestabilizando e multiplicando, ao mesmo tempo, os efeitos da subjetividade. Shaviro demonstra como o cinema produz reais efeitos no espectador (e no apenas apresenta a ele reflexes fantasmticas, como prope uma linhagem de leituras tericas que se baseiam na teoria lacaniana), para da explicar como se d uma imerso do espectador na materialidade fragmentada e na profundidade sem profundidade (no texto original, depth without depth) da imagem e aqui podemos nos aproximar da experincia de imerso que um filme de Hou Hsiao Hsien, Apichatpong Weerasethakul ou Lucrecia Martel nos provocam, seja no espao urbano multiforme atravessado por inmeros trens em Caf Lumire, na presena de algo invisvel porm claustrofbico e obsedante no suposto atropelamento em A mulher sem cabea, ou na densidade misteriosa e fascinante da floresta de Mal dos trpicos. Trata-se, ao mesmo tempo, de um estar aqui e l, na poltrona da sala de cinema e na superfcie da imagem, percebida por toda extenso desse corpo ambivalente. Para Shaviro, imagens produzem fluxos de tempo e sensorialidades, num processo de fascinao visual que, como nos recorda Tadeu Capistrano, seria uma pr-condio da produo de subjetividade no cinema, e no sua conseqn-

[3] Da derivam vrias vertentes, desde os estudos feministas de Laura Mulvey e Mary Ann Doanne, at os estudos fenomenolgicos de Vivian Sobchack, passando ainda por toda uma escola que estuda a noo de espectatorialidade e uma srie de estudos sobre corpo e sensorialidade, como The cinematic body (Steve Shaviro, 1993), The skin of the film (2000) e Touch (2002), ambos de Laura Marks, e The tactile eye (Jennifer Barker, 2009). Os autores desta ltima vertente constituem um dos principais referenciais tericos desta pesquisa, ao tratarmos da relao entre corpo e cinema.

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[4] Embora nem todos os filmes analisados nesta pesquisa comunguem dessa visualidade hptica (que, a meu ver, restringe-se exatamente aos exemplos citados nesse pargrafo), optei manter a hapticidade no conjunto das caracterstica que associo esttica do fluxo, de modo a permitir algumas interessantes reflexes sobre a sobrevalorizao sensorial que essa vertente do cinema contemporneo promove.

cia, j que as percepes construdas pelo filme engendram um poder de galvanizao espectatorial (CAPISTRANO, 2003: 14), ativando e acelerando o corpo sensvel do espectador. Shaviro, desse modo, nega uma concepo metafsica do olhar e da presena (1993: 46), em prol de uma valorizao da fisicalidade/sensorialidade/corporeidade na experincia de se assistir a um filme. partindo de um princpio bastante prximo que Laura Marks, em seu livro The skin of film, vai propor uma visualidade hptica como alternativa hegemonia de uma visualidade ptica, dependente da separao entre o sujeito que v e o objeto e calcada na distncia existente entre estas duas instncias para se constituir. J a viso hptica (inspirada no uso que Alois Riegl e Deleuze fazem do termo) tende a percorrer a superfcie do objeto: mais inclinada para o movimento do que para o foco, mais aproximada ao roar (graze) do que ao olhar (gaze) (MARKS, 2000: 163), forando o observador a contempl-la por si s, microperceptivamente, fazendo ativar os saberes e memrias que carregamos em nossos corpos e sentidos. Assim sendo, o hptico no s desperta a memria corporal, mas tambm faz confundir sujeito e objeto, anulando distncias, com seu olhar de proximidade extrema, feito lente de aumento. Como prope Jennifer Barker (2009:32), o toque (do latim contigere) remete tambm a uma certa contingncia, no sentido etimolgico que o termo carrega (ainda que quase esquecido nos dias de hoje) de ser uma afinidade material entre duas ou mais coisas (no caso, os corpos do espectador, do autor e do filme). Pensemos aqui na cmera quase grudada epiderme em diversos momentos dos filmes de Claire Denis, talvez o exemplo mais visvel dessa hapticidade traduzida em planos-detalhe reveladores do potencial hipntico dos mnimos movimentos do corpo (como em Bom trabalho), num roar erotizado que fascina at mesmo nos momentos mais sangrentos e supostamente repugnantes de Desejo e obsesso. Pensemos tambm na imobilidade corporal e no desequilbrio quase vertiginoso que permeiam a cena beira da piscina em Pntano, de Lucrecia Martel, espcie de prembulo a potencializar o incmodo causado pela quebra das taas que caem no cho, quase ao final da sequncia. Por outro lado, essa ativao hptica das memrias do corpo podem potencializar mudanas mnimas no registro de luz de um plano nos filmes de Hou Hsiao Hsien, como quando se abre uma cortina em meio a um longo plano-sequncia em Adeus ao sul (quase uma lufada de calor a roar a pele do espectador imerso na dinmica da cena, ainda que por alguns instantes) ou na pulsante luz artificial que se reflete no teto de vidro da cena de sexo em Millennium Mambo.4 Se retomarmos a nfase no cotidiano, no banal, num realismo quase sussurrado que demarca esse cinema de fluxos, tambm podemos identificar,

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nessa predileo em se direcionar o olhar da cmera para micro-percepes, uma espcie de contemplao meditativa que cria uma zona de indistino ao se manipular dessa maneira o espao e o tempo flmicos, suspender-se-ia a percepo ordinria, convidando o espectador a abrir-se para uma sensorialidade extra-ordinria, intuitiva, quase clarividente: a macro-percepo do ordinrio quando essa imagem crua projetada na tela. Em meio a tantas mincias, muitas vezes testemunhamos, na durao do plano, as marcas visveis do desgaste dos corpos no tempo e no espao, induzidas pela cmera, que a tudo registra. Em meio a imagens que roam, esculpe-se o tempo no filme, no corpo do personagem, para enfim reverberar na corporeidade do espectador. Se retomarmos a nfase no cotidiano, no banal, num realismo quase sussurrado que demarca esse cinema de fluxos, tambm podemos identificar, nessa predileo em se direcionar o olhar da cmera para micro-percepes, uma espcie de contemplao meditativa que cria uma zona de indistino ao se manipular dessa maneira o espao e o tempo flmicos, suspender-se-ia a percepo ordinria, convidando o espectador a abrir-se para uma sensorialidade extra-ordinria, intuitiva, quase clarividente: a macro-percepo do ordinrio quando essa imagem crua projetada na tela. Em meio a tantas mincias, muitas vezes testemunhamos, na durao do plano, as marcas visveis do desgaste dos corpos no tempo e no espao, induzidas pela cmera, que a tudo registra. Em meio a imagens que roam, esculpe-se o tempo no filme, no corpo do personagem, para enfim reverberar na corporeidade do espectador. O prprio retorno a uma atitude de crena na imagem pede uma nova postura no s espectatorial, mas tambm narrativa: da pensarmos numa cmera-corpo, em estado de semi-embriaguez, em especial no cinema de Naomi Kawase, como nos prope Camila Vieira da Silva (2009), a apreender sensorialmente a intensidade da experincia que captura, possibilitando uma mediao pulsante junto ao espectador contemporneo. Cabe a essa cmera escoar por entre o transbordamento de afetos entre todos esses corpos filmados e o prprio corpo do espectador e ela o faz passeando por entre os espaos, sem nunca porm buscar cristalizar ou petrificar as transies e nuances de

Por explorar minuciosamente o corpo na tela, a cmera-corpo afeta o prprio espectador, promovendo seu encontro com a alteridade (...)

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intensidades decorrentes desse encontro entre corpos diversos, construindo uma relao bastante fsica com o mundo que retrata. Por explorar minuciosamente o corpo na tela, a cmera-corpo afeta o prprio espectador, promovendo seu encontro com a alteridade (os outros corpos visto no filme), numa forma mais intensa do que a prpria linguagem verbal (e nisso, um filme como Nanayo, da prpria Kawase muito mais do que uma simples metfora desse estado das coisas). Com a cmera-corpo, talvez nos aproximamos da proposta de Delorme, em seu artigo Le lois de laffection (publicado pela Cahiers du Cinema em fevereiro de 2006): um cinema preocupado em abolir toda fronteira (inclusive entre o real e o imaginrio), justo embriaguez. Da, como diz Luiz Carlos Oliveira Junior (2009), ser absolutamente compreensvel que Claire Denis trate o real e o onrico com o mesmo teor ontolgico (cf. Desejo e obsesso, O intruso), que misture cinema fantstico com o mais cru dos realismos ao ponto da indistino entre uma coisa e outra, e que filme corpos indecisos entre uma realidade carnal e um estado vaporoso (OLIVEIRA, 2009: 29). Tal afirmao, eu ainda arriscaria, poderia se estender s aparies de espritos fantasmas e animais falantes no cinema de Apichatpong Weerasethakul, maneira como Van Sant filma a desencarnao do esprito do protagonista de ltimos dias, ou aos momentos que beiram o (hiper)realismo fantstico na relao menino/balo em A viagem do balo vermelho (2007), de Hou Hsiao-Hsien. Neste caso, no precisamos reduzir a noo de realismo a uma perspectiva naturalista, tal qual pregava a concepo vigente do sculo XIX. Afinal, estamos falando da utilizao de efeitos de real (FOSTER, 1994) para se criar uma experincia afetiva que envolva espectador e obra ainda que, nesse caso, tais efeitos sejam produzidos por elementos que fogem nossa idia de uma realidade concreta e racional, ou que dialoguem com a dimenso do sobrenatural e do mtico. E aqui, muitos dos efeitos de realidade produzidos por este cinema advm de um vigoroso retorno de uma tatilidade que a era do CGI (das imagens geradas do computador) tenderia a anestesiar (OLIVEIRA, 2006: 27). essa sensao de tatilidade/haptcidade/proximidade, de tentar apreender de alguma forma o que h de voltil nessa imagem que talvez torne tais imagens to presentes e intensas. Se podemos falar de um cinema do corpo dentro do cnone moderno, que dialogue com os corpos em fluxo da contemporaneidade, podemos partir de uma srie de genalogias (a serem melhor desenvolvidas e analisadas num captulo posterior). Uma primeira linhagem deriva da primazia concedida ao gesto corporal como desencadeador de afetos e organizador da dinmica interna da

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cena: aqui, o cinema de John Cassavetes e Maurice Pialat (em especial Aos nossos amores) uma referncia central, por exemplo, nos filmes de Claire Denis embora ela amplie esse cinema corporal ao trabalhar tambm uma certa materialidade traduzida numa certa percepo hptica da carne (MARTIN, 2008). Por outro lado, temos outra linhagem, derivada do tratamento rgido e desarticulador proposto por Bresson ao conceber o corpo do ator como modelo a ser esvaziado e preenchido minuciosamente, conforme o manuseio operado pelo cineasta: os corpos desencontrados e patticos dos personagens de Tsai Ming Liang (que muitas vezes remetem tambm comdia corporal de Jacques Tati e Buster Keaton) e a ausncia deliberada de memrias corporais nos corpos migrantes de Jia Zhang-Ke so assumidamente calcados na matriz bressoniana, qual podemos tambm associar como herdeiros os corpos ora em deteriorao (No quarto de Vanda) ora fantasmagricos (Juventude em marcha) dos filmes de Pedro Costa. Cabe destacar, contudo, que a matriz bressoniana, nesses trs casos, difere de outra possibilidade, tambm herdeira de Bresson, presente na crueza da cmera seca, colada ao corpo, reagindo a eles quase instintivamente (MARQUES, 2008: 14), da qual os irmos Dardenne sejam seu mais conhecido exemplo. Uma terceira possibilidade a dos corpos cotidianos, apresentados sem sobressaltos ou espetculos, e neste caso podemos nos deter sobre os herdeiros de Ozu, em especial Hou Hsiao Hsien e Kawase (embora suas cmeras flutuantes operem num registro diverso da visualidade de planos fixos do mestre japons), mas tambm no minimalismo milimtrico dos gestos que atravessa a mise-en-scne de Tsai Ming-Liang e outros asiticos como Hong Sang Soo e Edward Yang (MARTIN, 2008). Mas tambm podemos perceber um outro olhar sobre o cotidiano, que paga tributo diretamente banalidade dos corpos objetificados de Andy Warhol. Se, no caso do cineasta/artista visual norte-americano tal objetificao vem de uma extrema extenso da durao do plano (o que faz com que Shaviro afirme que, em lugar de representar o real, Warhol entra no real), podemos perceber essa mesma banalizao dos corpos na imobilidade dos corpos cansados (AMADO, 2009) de Lucrecia Martel, ou no misto de leveza e estranhamento presente nos filmes de Apichatpong Weerasethakul. Em qualquer das trs linhagens, trata-se de uma insero dos corpos no espao calcada na construo de planos que, ao retratarem o aleatrio de um fragmento do mundo em movimento, assumem-se como errantes e flutuantes, sem adotarem um tom psicologizante ou moralizante dos eventos retratados alis, falar da dimenso psicolgica na caracterizao dos personagens nesse cinema soa um tanto quanto inadequado, j que os personagens muitas vezes

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(...) em lugar do espao lacunar ou dispersivo do cinema moderno, temos um espao que se permite atravessar por afetos e sentidos.

esto em construo durante os eventos com os quais seus corpos interagem, no servindo assim a regras dramticas pr-estabelecidas (BRAGANA, 2007). O que temos aqui so planos de fruio que, ao valorizarem a presena fsica dos corpos, novamente esto na contramo da virtualizao proposta pelo cinema tecnolgico dos CGI. Aqui, uma idia central a de preenchimento, como nos prope Oliveira (2006: 29): em lugar do espao lacunar ou dispersivo do cinema moderno, temos um espao que se permite atravessar por afetos e sentidos. Esse preenchimento muitas vezes potencializado pelas paisagens sonoras, verdadeiros amplificadores do sentimento de fluidez e efemeridade que perpassa esse cotidiano deslizante. Se tal condio permite uma supervalorizao da conexo sensorial, antecedendo a prpria formao de significados (vide diversos momentos nos filmes de Weerasethakul, como o travelling que se aproxima de um exaustor, ao final de Sndromes e um sculo, por exemplo), ela tambm consolida o carter de errncia e fluidez dentro das imagens: No se trata de formas estticas to passveis de anlise. Essa sensao do fluxo nas artes trabalha muito mais a partir de modulaes, intensidades, algo entre a msica e a fsica. Trata-se menos de pensar o mundo e mais de reagir a ele (MARQUES, 2008: 20). Para Luisa Marques, esse tipo de cinema opera atravs de uma diluio narrativa, que ela contrape desconstruo narrativa, blocada e ldica que caracteriza outros cinemas contemporneos (como, por exemplo, os filmes de Iarritu, Lars Von Trier ou Michel Gondry). Essa diluio permite que se valorizem elementos sensoriais, como ritmos, duraes, texturas, luminosidades, indicativos da fluidez to perseguida pela esttica do fluxo. Um exemplo marcante o estranho esporte praticado em Phantom of Nabua (curta-metragem realizado por Apichatpong Weerasethakul em 2009), uma espcie de futebol jogado com uma bola em chamas por um grupo de jovens tailandeses, num descampado, noite. Acompanhamos o movimento de uma massa luminosa esfrica que arde continuamente, flutuando por entre os diversos pontos do quadro. A pouca iluminao (concentrada na pouca claridade gerada

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pela bola, e por alguns clares que vez por outra cortam o espao, projetados numa tela estendida atrs dos jogadores) faz com que nosso olhar se desprenda da banalidade do ato captado pela cmera, e mergulhe num transe sensorial que se traduz em pequeno alumbramento quando finalmente a bola atinge uma tela (cinematogrfica?) que se situa atrs de onde supostamente estaria o goleiro. Acompanhamos a tela se incendiar, como se toda a imagem fosse uma grande abstrao dotada de transbordante energia cintica a impulsionar o movimento da bola luminosa. Mergulhados nesse transe, por vezes somos surpreendidos pelos clares que o projetor lana sobre a tela, remetendo a uma imaginria tempestade tropical, no num sentido aterrorizante, to banalizado pelo cinema de horror, mas como uma surpresa sensorial, um piscar de luz estroboscpica a rasgar a penumbra num ligeiro e fugaz claro.

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A propsito de um documentrio experimentalpor Rafael de AlmeidaResumo A partir da anlise e levantamento de obras que consideramos precursoras do que denominamos documentrio experimental ou documentrio de inveno, pretendemos contribuir para a formulao de uma noo mais concreta desses termos, posteriormente aplicveis em outras pesquisas. palavras-chave: cinema experimental; cinema documentrio; documentrio experimental ou de inveno.

Realizar um levantamento breve e pontual de obras que consideramos precursoras do que na contemporaneidade tendemos a nomear como documentrio experimental ou documentrio de inveno o que pretendemos. Tal esforo possui o intuito de trazer, a partir dos filmes percorridos, uma noo um pouco mais concreta, mesmo que no estanque, e posteriormente aplicvel do que viria a ser essa vertente experimental do documentrio. Trata-se de uma noo imprescindvel para uma reflexo sobre o documentrio como um gnero capaz de possibilitar a produo de discursos reflexivos, subjetivos e criativos que instaurem novas relaes com a realidade.

Pensamento precursorAcreditamos que as origens da vertente do documentrio a que esse trabalho se dedica esto justamente nos pioneiros cineastas russos, de maneira especial em Vertov e sua concepo de cine-olho. Apesar da tentativa de conceituao do domnio documental ter ocorrido somente em meados de 1930, j na dcada anterior o terico e cineasta russo Dziga Vertov havia desenvolvido o conceito de cine-olho que se encontra intimamente ligado maneira como compreendemos o domnio documental , fazendo-nos perceb-lo como um dos fundadores do gnero.O principal, o essencial a cine-sensao do mundo. Assim, como ponto de partida, defendemos a utilizao da cmera como cine-olho, muito mais aperfeioada do que o olho humano, para explorar o caos dos fenmenos visuais que preenchem o espao. O cine-olho vive e se move no tempo e no espao, ao mesmo tempo em que colhe e fixa impresses de modo totalmente diverso daquele do olho humano. (VERTOV, 1983: 253).

[1] Rafael de Almeida mestrando no Programa de PsGraduao em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas e professor de Audiovisual na Faculdade de Comunicao e Biblioteconomia da Universidade Federal de Gois. Como realizador audiovisual, dirigiu alguns curtas, entre os quais destaca Impej (2007) e A saudade um filme sem fim (2009). Atua como diretor, produtor e curador no MIAU (Mostra Independente do Audiovisual Universitrio), festival de cinema sediado em Goinia, desde 2008.

O mtodo do cine-olho, proposto por Vertov, possua como objetivo a verdade. O cine-olho era o meio para o alcance dessa verdade, que ele definiu como seu princpio: cinema-verdade (kinopravda). Segundo tal princpio era preciso que a realidade fosse captada de maneira totalmente espontnea, era

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preciso tomar a vida de improviso. Ou seja, ele era contrrio a qualquer tipo de interveno durante as filmagens, utilizando, inclusive, sem nenhuma m conscincia a cmera-oculta como forma de trazer para as imagens tragos de vida autntica. Mas isso no significa que a verdade estaria naquelas imagens por si s. Era preciso que se interpretassem as possveis relaes, em um estado de latncia, existentes entre elas e a realidade para que a verdade pudesse vir tona. Algo assim seria possvel somente pelo mtodo do cine-olho, capaz de trazer uma nova percepo do mundo e das coisas.Cine-olho: possibilidade de tornar visvel o invisvel, de iluminar a escurido, de desmascarar o que est mascarado, de transformar o que encenado em no encenado, de fazer da mentira a verdade. Cine-olho, fuso de cincia e de atualidades cinematogrficas, para que lutemos pela decifrao comunista do mundo; tentativa de mostrar a verdade na tela pelo Cine-Verdade. (VERTOV, 1983: 262)

Sendo assim, por um vis vertoviano, temos que a cmera no era considerada capaz de capturar a realidade. Nesse sentido, Vertov defendia uma atitude de reconstruo potica dos registros do que a cmera viu (NICHOLS, 2005: 131), em especial por perceber a mquina por um vis futurista, como modelo para o homem, e manter uma postura anti-ilusionista. Por isso o lder dos kinoks se vale de todos os recursos e procedimentos da linguagem cinematogrfica possveis, com especial importncia para as noes de montagem e intervalo, to caras para as aproximaes que pretendemos apontar. Os filmes produzidos pelo mtodo do cine-olho estavam ininterruptamente em processo de montagem, de construo. Eram considerados resultados de um processo de criao artstica, assumidamente fabricados da escolha do tema finalizao da obra. As teorias soviticas da arte construtivista e da montagem flmica atrelavam a capacidade de o aparato flmico representar o mundo histrico com fidelidade fotogrfica ao desejo do cineasta de recriar o mundo numa imagem da nova sociedade revolucionria. (NICHOLS, 2005: 133). O intervalo ou seja, o efeito de transio entre os planos, as correlaes visuais sugeridas entre os planos permitia ao cineasta construir novas percepes do mundo histrico e deixava nas obras lacunas que deveriam ser preenchidas pelo prprio espectador. Os filmes, desse modo, visavam a uma participao mental ativa do espectador e pretendiam no s decifrar o mundo,

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mas tambm ensinar a ver. Atravs dos recursos de estilo (acelerao, sobre-exposio, retrocesso, variao das angulaes de filmagem, escala de planos etc.) era possvel decompor a vida, fragment-la em acontecimentos a serem rearranjados e flexionar a realidade atravs do dispositivo, da mquina. Tudo isso com vistas a constituir uma ligao, atravs do cinema, entre o proletariado de todos os pases sob a plataforma da decifrao comunista do mundo. Dessa maneira, o que percebemos em Vertov so as bases de um verdadeiro trabalho de escritura documental e, por consequncia, da tendncia do documentrio contemporneo que nos propomos a pesquisar. Ele pensava na organizao das imagens como forma de constituir um pensamento, de estabelecer uma linguagem expressiva que pudesse ser compreendida de maneira universal. Chegou, assim, a registrar em suas anotaes que aprendeu a escrever no com uma caneta, mas com uma cmera. A concepo de Vertov de um cine-olho que contorna e ultrapassa a mera percepo (TEIXEIRA, 2007: 43) amplamente contemplada em seu filme O homem da cmera (1929), que Jacques Aumont considera como o lugar em que o cinema se funda como teoria, e o prprio Vertov avalia como no apenas uma realizao prtica, mas tambm uma manifestao terica na tela. (MACHADO, 2006: 14).Em O Homem da Cmera, a tcnica sempre usada em relao direta com os aspectos temticos, que se sobrepem e se inter-relacionam ao longo do filme: a velha e a nova sociedade, diferenas de classe, tecnologia e progresso social, arte e trabalho, esfera pblica e esfera privada, cinema de entretenimento e cinema-verdade. Recursos de cmera, de laboratrio e principalmente de montagem contribuem para criar contrastes, metforas visuais e recontextualizao de cenas familiares, provocando estranhamento e dificultando deliberadamente uma interpretao unvoca. (DA-RIN, 2006: 178-179).

As sinfoniasCom o florescimento da vanguarda na Europa, durante a dcada de 20, o cinema se viu liberto da obrigao de representar fielmente aquilo que se passava diante da cmera. Estendeu-se, ento, rumo compreenso das imagens captadas como material para a instaurao de um cinema potico, livre, experimental, em contraponto ao dominante cinema narrativo de fico . As sinfonias metropolitanas foram produes documentais, inspiradas pelos movimentos de

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vanguarda, que privilegiavam os aspectos estilsticos, tanto da fotografia quanto da montagem, na busca de retratar um dia na vida de uma grande cidade. O homem da cmera, de Dziga Vertov, um dos grandes representantes desse ciclo de documentrios submersos pelo intento de representar os espaos urbanos nos anos 1920. Alm dele, poderamos destacar desse movimento: Apenas as horas (1926), de Alberto Cavalcanti; Berlim, sinfonia de uma metrpole (1927), de Walter Ruttmann; Chuva (1929), de Joris Ivens; e A propsito de Nice (1930), de Jean Vigo. O filme marco da concepo cinematogrfica de Vertov inicia-se com uma espcie de prlogo: apresentado o personagem que servir como condutor da narrativa, um homem com a cmera voltada para as coisas que o cercam, com os olhos atentos para o mundo. E, em seguida, esse mesmo personagem adentra as coxias de um teatro vazio. Logo vemos que, na verdade, trata-se de um cinema, pois assistimos ao nosso personagem manuseando latas de filmes e um projetor. O pblico comea a encher a sala. As luzes se apagam. A banda est a postos. A incidncia da luz sobre a pelcula indica que o espetculo ser iniciado. E a orquestra comea a tocar vigorosamente. Somente depois deste prlogo que o filme nos d a ver uma estrutura que ser encontrada em outras obras das sinfonias urbanas: uma grande cidade do despertar ao anoitecer. Nesse sentido, nos perguntamos qual seria o papel desse prlogo seno revelar, desde o primeiro instante, o aspecto de construo do objeto flmico? Somos levados a pensar que estes minutos iniciais preparam o espectador para receber o filme, que antes de ser documentrio uma obra artstica, um experimento, uma viso de mundo particular que o artista compartilha com o pblico. Ou seja, o carter anti-ilusionista e autorreflexivo j esto presentes antes mesmo que a pelcula em si, se que podemos chamar assim, comece a ser projetada. Outro instante que bastante elucidativo e confirma esta postura antiilusionista vertoviana se trata de quando, a partir do congelamento da imagem de uma carruagem na rua, nos so exibidos mais alguns freeze-frames seguidos por imagens em movimento de uma tira de fotogramas, bobinas, uma sala de montagem, e o trabalho de Svilova, mulher e montadora dos filmes de Vertov, com a moviola para depois retornarmos ao exato ponto em que a primeira imagem foi paralisada. como se, no meio da narrativa, a voz do documentrio sofresse uma inflexo para lembrar mais uma vez que tudo se trata de uma construo. O congelamento usado como uma tentativa de resistir ao fluxo acelerado das imagens, permitindo a instaurao de outro tempo na narrativa pelo gesto de parada.

[1] Da as feies construtivistas e futuristas da concepo vertoviana do documentrio, conforme vimos anteriormente.

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O olho da mquina se mostra como personagem (...)

A cidade, as pessoas, a vida urbana, a rotina, as mquinas, o transporte, o trabalho, o descanso, o nascimento, a morte, o casamento, o divrcio; enfim, tudo que possa atingir esse operrio das imagens que carrega a cmera, o olho aperfeioado, utilizado para compor a narrativa. E a maneira como ela composta, sem dvida, o que torna O homem da cmera o principal precursor do documentrio experimental, essa tendncia contempornea do gnero que reflete sobre os princpios de um documentrio de carter autoral, comprometido concomitantemente com a subjetividade e a realidade. Vimos anteriormente a importncia das noes de montagem e intervalo para Vertov, e para realizar esse inventrio da vida na cidade ele se vale de planos curtos, rpidos, e dos mais variados recursos de estilo: variao de velocidade (esttico, lento, acelerado, retroativo), fuses, sobre-exposies, animao, variao da escala de planos etc. Parte-se da colagem e da dissociao de materiais visuais, utilizando recursos no como um inventrio das possibilidades tcnicas e expressivas, e sim como plataforma de formulao de uma cine-escritura, que se baseia na inter-relao entre a percepo humana e o processo cinematogrfico (DA-RIN, 2006: 175) o que refora a imposio do filme como discurso construdo e reconstrudo pelo espectador atravs de um processo de inteleco baseado no distanciamento crtico (DARIN, 2006: 179). A cmera por vrios momentos ir recuar para revelar, alm das imagens, a captao das mesmas pelo homem. O olho da mquina se mostra como personagem, o que nos faz crer que sempre, independente da imagem que estejamos vendo, existe uma subjetividade se no do homem, da prpria cmera. Atravs desses recuos o processo do fazer flmico acompanhado pelo espectador. Exemplo disso a sequncia em que um trem vem em direo cmera e a montagem tenciona para um acidente atravs de planos curtssimos da locomotiva se aproximando, dos vages do trem passando sobre a cmera, do kinok nos trilhos, e uma mulher sonhando aflitamente, acompanhados de intervalos com a tela negra, para s depois expor-se como a sequncia foi criada a partir de uma cena que revela um buraco no meio dos trilhos preparado para alojar a cmera durante a passagem do trem. A partir de O homem da cmera possvel dizer que o cinema tornou-se capaz de interpretar o mundo e colocar essa leitura em reflexo ampla e apropria-

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da a partir do dispositivo cinematogrfico. Talvez encontremos aqui, em Vertov, as bases para uma inflexo ensastica do documentrio to comum a essa vertente que nos propomos a compreender.

Entre o experimental e o documentalE agora propomos um pequeno desvio e um retrocesso. Debruaremos-nos de maneira bastante pontual sobre alguns filmes menores e nem por isso menos importantes, mas certamente menos vistos. Filmes que j demonstravam uma feio documental, apesar de serem predominantemente experimentais, rumo potica que buscamos delinear, antes mesmo do ciclo das sinfonias urbanas. Manhatta (1921), dirigido por Charles Sheeler e Paul Strand, considerado o primeiro filme avant-garde americano. Baseado em um poema de Walt Whitman, Leaves of grass, o experimento uma poesia visual sobre a cidade de Nova York, com uso de longos e estticos planos bem enquadrados que o munem de um ar contemplativo. Trechos do poema so regularmente inseridos em cartelas durante o filme, antecipando o motivo das imagens que esto por vir. Gigantescas construes de ferro, finas, fortes, esplndidas torres em direo aos cus, por exemplo, vem antes de planos bastante abertos da cidade revelando altssimos arranha-cus acompanhados de uma lentssima movimentao de cmera de cima para baixo. Ao apoiar-se em um poema para reforar o carter potico que a construo narrativo-imagtica pretende alcanar, o filme acaba por se revelar altamente contraditrio, por vezes (HORAK, 2002: 28). Um instante elucidativo do que apontamos quando, aps a cartela Este mundo arruinado com estradas de ferro, vemos imagens bem compostas de uma grande estao de trem, com locomotivas se movendo e marcando seu trajeto com fumaa, que muito mais exalta do que denigre os caminhos abertos pelos trilhos. Manhatta certamente foi uma obra central para o projeto de desconstruo da perspectiva renascentista na realizao cinematogrfica, privilegiando a reflexividade dos pontos de vista e a multiplicidade de interpretaes. No entanto, em seu desejo de trazer uma experincia cinematogrfica formalmente inovadora, em contraponto aos modelos clssicos pr-estabelecidos, os realizadores no abandonam pressupostos filosficos que criam uma tenso entre o verbal e o no-verbal dentro do filme, conforme apontamos, entre uma perspectiva modernista e uma romntica segundo a qual o homem continua em harmonia com a natureza (HORAK, 1995: 267). Assim como Chuva, A ponte (1928) outro trabalho de Joris Ivens em que o

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O artista-documentarista se insere no quadro como forma de explicitar, em um nvel extremo, a sua presena (...)

olhar artstico sobre um fato comum extrai poesia do ordinrio. Tendo como motivo o funcionamento de uma ponte ferroviria prxima a Rotterdam, o filme se inicia com planos gerais e estticos da ponte, para logo em seguida trazer quatro planos do cameraman, que supomos tratar-se do prprio Ivens. Inicialmente ele est de perfil com a cmera em punho, em um plano prximo, que revela apenas seu rosto. O cineasta-personagem se vira de frente para a cmera, como se fosse capaz de, com seu dispositivo cinematogrfico cnico, enquadrar o espectador. Temos um corte para a posio inicial (perfil) e uma fuso para a posio final (frontal). H, ainda, mais um corte para um plano mais prximo da cmera, centralizando a objetiva, que, agora, pela ao do cinegrafista, se aproxima ainda mais. Aqui reiteramos os apontamentos feitos sobre a presena corporal do cineasta durante as anlises das obras de Vertov e Vigo, e damos relevncia a sua recorrncia. O artista-documentarista se insere no quadro como forma d