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Transformação, transposição e variação na Ciberliteratura de Língua portuguesa Rui Torres * INTRODUÇÃO A reflexão que aqui proponho parte do mapeamento de várias produções literárias que existem hoje em suportes electrónicos, deles dependendo para que a leitura seja possível. Também denominada literatura algorítmica, generativa ou virtual, a ciberliteratura designa aqueles textos literários cuja construção se baseia em procedimentos informáticos: combinatórios, multimediáticos ou interactivos. Fazendo uso das potencialidades do computador como máquina criativa que permite o desenvolvimento de estruturas textuais, em estado virtual, actualizando-as até ao infinito, a ciberliteratura utiliza o computador de forma criativa, como manipulador de signos verbais e não apenas como simples armazenador e transmissor de informação. Deste modo, a ciberliteratura distingue-se da literatura digital(izada), constituindo esta uma hipertextualização de estratégias textuais pré-existentes, em que se verifica uma transição do papel para o pixel em termos meramente técnicos, e ficando aquela dependente de uma construção cibernética ou hipermediática que promove novos modos de escrita e de leitura. Neste sentido, interessa ao ciberautor promover as potencialidades gerativas de um algoritmo, que pode ter uma base combinatória, aleatória, estrutural, interactiva ou mista, e permitindo assim o funcionamento do computador como "máquina aberta". Ora, essa "máquina semiótica" de que nos falava Pedro Barbosa altera profundamente todo o circuito comunicacional da literatura. * Professor Associado da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa; Investigador do Centro de Estudos de Texto Informático e Ciberliteratura, UFP-Porto; bolseiro de Pós- Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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Transformação, transposição e variação na Ciberliteratura de Língua portuguesa

Rui Torres*

INTRODUÇÃO

A reflexão que aqui proponho parte do mapeamento de várias produções literárias que

existem hoje em suportes electrónicos, deles dependendo para que a leitura seja

possível. Também denominada literatura algorítmica, generativa ou virtual, a

ciberliteratura designa aqueles textos literários cuja construção se baseia em

procedimentos informáticos: combinatórios, multimediáticos ou interactivos. Fazendo

uso das potencialidades do computador como máquina criativa que permite o

desenvolvimento de estruturas textuais, em estado virtual, actualizando-as até ao

infinito, a ciberliteratura utiliza o computador de forma criativa, como manipulador de

signos verbais e não apenas como simples armazenador e transmissor de informação.

Deste modo, a ciberliteratura distingue-se da literatura digital(izada), constituindo esta

uma hipertextualização de estratégias textuais pré-existentes, em que se verifica uma

transição do papel para o pixel em termos meramente técnicos, e ficando aquela

dependente de uma construção cibernética ou hipermediática que promove novos

modos de escrita e de leitura. Neste sentido, interessa ao ciberautor promover as

potencialidades gerativas de um algoritmo, que pode ter uma base combinatória,

aleatória, estrutural, interactiva ou mista, e permitindo assim o funcionamento do

computador como "máquina aberta". Ora, essa "máquina semiótica" de que nos falava

Pedro Barbosa altera profundamente todo o circuito comunicacional da literatura.

* Professor Associado da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa; Investigador do Centro de Estudos de Texto Informático e Ciberliteratura, UFP-Porto; bolseiro de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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TRANSFORMAÇÃO, TRANSPOSIÇÃO E VARIAÇÃO

Dado o vasto campo de aplicações culturais e comerciais que ocupam hoje em dia o

espaço público virtual da Internet e dos computadores pessoais, têm-me interessado

particularmente os textos digitais que investem, não num mero processo de remediação

e transposição, mas em textualidades que nos remetam para uma reflexão acerca dos

processos criativos constitutivos da hipermédia, a partir de uma função organizativa e

taxinómica própria da crítica.

Ora, as mobilidades e o intercâmbio entre poesia e crítica encontram na hipermédia um

salutar impulso: transitando entre tipologias textuais distintas, esbatendo as fronteiras

dos géneros do discurso, o leitor do cibertexto é crítico e criativo. E é desse modo que o

meio digital se parece adequar à poesia de inovação, acolhendo-a na sua arquitectura

descentrada e múltipla. E a poesia de inovação e experimental (seja ela concreta, visual

ou sonora) reconhece a importância dos materiais da escrita para a própria escrita, isto é,

da função estética da linguagem e da materialidade dos meios.

Não estamos ainda, porém, em pleno terreno da operacionalidade maquínica, por muito

que alguns assim o queiram profetizar. Pelo contrário, o horizonte que o espaço

electromagnético inaugura perante os nossos olhos desarmados é apenas o início de algo

bem maior, que apenas podemos para já vislumbrar. Também não parece haver

descontinuidades nos processos criativos que se inauguram, mas antes sugere o cenário

que estas textualidades electrónicas se inscrevem em processos que já se podem

antecipar num passado de experiências que apontavam para caminhos de convergência e

interactividade.

Neste sentido, somos obrigados a investir na investigação das possibilidades de

remediação e hipermediação das poesias experimentais do século XX. Porque conhecer

a produção concretista e visual dos poetas da segunda metade do século XX, é perceber

como certas formas poéticas antecipam certas mudanças e a elas se adaptam. Reler essas

vanguardas literárias a partir do meio que essas formas antecipavam é, por isso, um

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exercício útil. No meio digital, de uma forma intuitiva, poemas sonoros, visuais e

concretos podem ser apresentados de maneiras inovadoras, cativando novos leitores

para o jogo verbal da poesia, em geral, e da concretista e visual, em particular, pois a

inovação poética do experimentalismo de meados do século XX acaba também por

representar as matrizes da linguagem digital.

Vários estudiosos da poesia digital, tais como Aarseth ou Glazier, da linguagem dos

novos média, como Manovich, ou do hipertexto, como Landow ou Bolter, têm

observado uma certa linha de continuidade entre a hipertextualidade digital e as poéticas

de ruptura do início do século (dadaísmo, futurismo) e do meio do século XX

(concretismo, letrismo) a que fazemos referência. Mesmo em termos teóricos e

conceptuais, já nos avisava George P. Landow acerca da aproximação entre o

pensamento cibernético e a teoria literária, em 1996:

“When designers of computer software examine the pages of Glas or Of Grammatology, they encounter a digitalized, hypertextual Derrida; and when literary theorists examine Literary Machines , they encounter a deconstructionist or poststructuralist Nelson. (…) A paradigm shift, I suggest, has begun to take place in the writings of Jacques Derrida and Theodor Nelson, Roland Barthes and Andries van Dam.”

Este aspecto está, naturalmente, relacionado com esta metáfora da remediação, que

promove a transposição de um meio para o outro. Ora, uma concepção limitada do

computador enquanto um potencial acelerador de cálculos e algoritmos previamente

executados “à mão”, esquece, conforme salienta Manovich, outros usos essenciais,

novas formas de interacção e de criação digital. Assim, enquanto que uma manipulação,

mesmo que através de meios digitais, de materiais convencionais, pode ser vista como

uma remediação (ou como uma hiperedição), da qual se poderia constituir uma

categoria tal como a de literatura digital, o mesmo não se aplica ao modo de trabalhar

em tempo real através das redes, ou através de toda uma série de procedimentos

algorítmicos em que as estratégias de enunciação escapam ao circuito tradicional da

comunicação.

Esta dimensão de uma nova interactividade é analisada por Paulo Cunha Filho e André

Neves numa perspectiva semiótica:

“São os hipersignos - sejam eles on-line (Web) ou off-line (CD-Rom) - que, ao atualizarem o repositório de substâncias de expressão da hipermídia, propõem

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Page 4: Rui Torres INTRODUÇÃO - telepoesis.net · espaço público virtual da Internet e dos computadores pessoais, têm-me interessado ... além da geração combinatória de 1 Algumas

mensagens ao dispositivo. Apenas, contrariamente aos media da era analógica baseados em suportes materiais, esta atualização é digitalmente interativa, e ocorre um processo de metasignificação no qual as substâncias de expressão (três tipologias de imagem e três tipologias sonoras) permitem uma verdadeira (e não metafórica) deriva infinita do sentido: a navegação não-linear sob a forma de interferências, contra-interferências e links.”

A poesia em meio digital está presente na rede e na hipermédia de um modo virtual, isto

é, em código estritamente numérico; quando um poema digital é lido, todo um conjunto

de dispositivos na relação homem-máquina-rede são despoletados, tais como a geração

automática de texto ou a navegação randómica, numa convergência multimediática

verbovocovisual. Ora, dentro do esquema modelizante primário da cultura ocidental (e

seu imaginário plasmado na tecnologia), somos levados a construir mensagens que,

conforme pretendiam os formalistas e depois os estruturalistas, deformassem a língua

comum das redes, dos computadores. E, filhos do nosso tempo, escreveremos a nova

poesia e as novas narrativas com recurso às linguagens de programação do nosso tempo,

e sua linguagem de programação própria.

Manovich, McGann e outros explicam-nos que a questão se coloca então nestes termos:

os poetas do tempo que vem terão que programar, os poetas do ciberespaço têm que

conhecer linguagens de programação. E porque esta é uma época de passagem, a

exemplo dos poetas experimentalistas do Cabaret Voltaire, da Noigandres, da PO-EX

ou do OULIPO, temos de propor, hoje, uma integração da criatividade em meios

digitais na estética literária, por forma a melhor se afigurarem, de novo, que caminhos

poderemos a partir de agora seguir. Porque os novos media, como Manovich não se

cansou de referir, são a estética que acompanha os estádios de cada tecnologia mediática

da modernidade.

Historicamente situada, inscrição do futuro no passado, reconhecimento do valor

plagiotrópico da sua inventividade, também a ciberliteratura nos obriga a remeter para

essas práticas literárias do meio do século passado – do concretismo à visualidade,

articulam-se com as novas experiências digitais princípios já experimentados. Mas, e

trata-se aqui de um importante aviso à navegação, o passado não pode atrasar o futuro.

O seu a seu dono, e se é verdade que concretismo e visualidade abriram espaços

importantes para as novas práticas poéticas, não podemos aceitar a designação de

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ciberliteratura ou de literatura informática para esse passado, que parece por vezes

querer para o devir das coisas.

A poesia experimental cruza, na expressividade dos meios, uma multiplicidade de

matrizes de carácter verbovocovisual: o som – dos anúncios e das canções; o grafismo e

a visualidade – dos comics e da iconografia urbana; a escrita – dos caligramas e da

combinatória. Exemplos abundam, em Portugal como no Brasil. Em Portugal, de que

me ocuparei mais neste momento, Ana Hatherly explora desde cedo os recursos visuais

da caligrafia; Herberto Helder desenvolve nos seus poemas a técnica combinatória,

antecipando as experiências com computadores; António Aragão explora a fotocópia e a

electrografia; Ernesto M. de Melo e Castro cria a vídeo-poesia; Fernando Aguiar

dedica-se à performance; e Alberto Pimenta faz de tudo isto um pouco, com muita

ironia, pertinência e coerência.1

É sem dúvida desta relação entre uma dialéctica das formas e uma metamorfose

permanente dos meios que resulta a ciberliteratura.

O carácter espacial e objectual de muita da poesia concreta, visual e gráfica teve (e tem

ainda) a sua repercussão na transição do meio impresso para o meio digital, do mesmo

modo que a projecção poética no espaço público (o acontecimento, a performance) teve

a sua importância na transferência para uma arquitectura em rede em que se parecem

configurar a ciberpoesia e o ciberteatro. Deste modo, além da geração combinatória de 1 Algumas das publicações colectivas de poesia experimental: Poesia Experimental: 1º caderno antológico, org. António Aragão & Herberto Hélder, Lisboa, 1964; Poesia Experimental: 2º caderno antológico, org. António Aragão, E. M. de Melo e Castro & Herberto Hélder, Lisboa, 1966; Hidra 1, org. E. M. de Melo e Castro, Porto, ECMA, 1966; Operação 1, org. E. M. de Melo e Castro, Lisboa, 1967; Hidra 2, org. E. M. de Melo e Castro, Lisboa, Quadrante, 1969; Novas tendências na arte portuguesa: poesia visual portuguesa: Portuguese visual poetry, Coimbra, Galeria CAPC - Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1980; Exposição de poesia experimental portuguesa: PO.EX 80, Lisboa, Galeria Nacional de Arte Moderna, 1980; Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa, org. Fernando Aguiar e Silvestre Pestana, Lisboa, Ulmeiro, 1985; Concreta, experimental, visual: poesia portuguesa, 1959-1989, org. Fernando Aguiar & G. Rui da Silva, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989; Visual Poetry: An International Anthology, in: Visible Language 27 (4) Autumn 1993, org. Harry Polkinhorn; World poem, org. Manuel Portela & Alberto Pimenta, Figueira da Foz, Museu Municipal Doutor Santos Rocha & Câmara Municipal, 1993; Antologia da Poesia Experimental portuguesa: Anos 60 - Anos 80, org. Carlos Mendes de Sousa & Eunice Ribeiro, Coimbra, Angelus Novus, 2004. Uma parte significativa destes trabalhos está a ser classificada e digitalizada por um grupo de investigadores do Centro de Estudos de Texto Informático e Ciberliteratura da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, com financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. O projecto, denominado "CD-ROM da PO.EX", tem como objectivo produzir um CD-ROM de divulgação destes trabalhos, há muito esgotados. Foi também criado um sítio web onde é possível estudar e conhecer a produção impressa da poesia experimental portuguesa dos anos 60, disponível em [http://www.po-ex.net].

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texto, que foi “concretizada” pela literatura gerada em computador, também a

componente gráfica e visual explorada pela poesia experimental viria a ter

desenvolvimentos com os meios digitais que são significativos.2

METODOLOGIAS DE AVALIAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO

Aarseth, no seu livro Cibertexto: Por uma literatura ergódica, de 1997, define como

cibertexto todo o texto que tem mecanismos de retroacção que permitem ao leitor

configurar caminhos (ergos + hodos = trabalho + percurso). Essa definição permite

trabalhar com um mesmo esquema de classificação (baseado no ergodismo) trabalhos

que vão do I-Ching a contos do J. Cortazar, caligramas de Apollinaire a livros de

crianças, R. Queneau a MUDs, hiperficção e literatura generativa. Muito útil, este livro

acaba desconstruindo o "mito do hipertexto" establecido principalmente nos Estados

Unidos. Aarseth conclui que textos não electrónicos são por vezes mais indeterminados

do que hiperficções do storyspace, além de apresentar a aleatoriedade de acesso do

codex VS. determinação de percursos das narrativas digitais fechadas (e que porém se

dizem abertas).

Para propor um esquema de classificação (quantitativo, de que resulta um mapa próprio)

Aarseth propõe conceitos novos, como os de escritões - encadeamentos tal como são

percebidos pelos leitores; e textões - encadeamentos existentes no texto. Será

interessante aqui incluir as 6 variáveis, de que resultam 4 funções do utilizador, por ele

referidas. As variáveis são: Dinâmica, Determinabilidade, Transiência, Perspectiva,

Acesso e Ligações. As "Funções do utilizador" que daqui resultam são: Interpretativa -

todas as decisões do leitor dizem respeito ao significado; Exploratória - decisão de

percurso de leitura cabe ao leitor; Configurativa - escritões são parcialmente escolhidos

ou criados pelo utilizador; Textónica - podem acrescentar-se ao texto textões ou funções

transversais. 2 Uma importante referência para compreender algumas das relações entre poesia concreta e meios digitais é o artigo de Manuel Portela, "Concrete and Digital Poetics”, in: New Media Poetry and Poetics - Special Issue, Leonardo Electronic Almanac, 14(5-6), 2006, disponível em [http://leoalmanac.org/journal/vol_14/lea_v14_n05-06/mengberg.asp].

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O que uma taxinomia e uma classificação deste género nos possibilitam é a abordagem

cuidadosa e processual de toda a literatura experimental. Para diferenciar, porém, aquela

que é estritamente electrónica, devemos ir um pouco mais longe, por exemplo aceitando

uma distinção como aquela que é proposta por R. Koskimaa. Koskimaa fala de 4

diferenças que poderão ser úteis: 1) digitalização de literatura impressa; 2) publicação

electrónica/digital de literatura original; 3) literatura que utiliza novas técnicas que

apenas são possíveis com os novos formatos digitais; e 4) literatura das redes.

Também Pedro Barbosa procurou definir e classificar as possibilidades de utilização do

computador como uma máquina semiótica, explicando nesse contexto que há vários

tipos de procedimentos possíveis. Ele fala em algoritmos de base combinatória,

aleatória, estrutural, interactiva e/ou mistos. As linhas, géneros ou tendências de criação

textual na Literatura Gerada por Computador que daqui derivam são: Poesia animada

por computador, que introduz a temporalidade na textura frequentemente

multimediática da escrita em movimento no ecrã; a Literatura generativa, que apresenta

ao leitor um campo de leitura virtual constituído por variantes em torno de um modelo;

e a Hiperficção, que deriva da narrativa desenvolvida segundo uma estrutura em

labirinto em que a intervenção do leitor vai determinar um percurso de leitura único que

não esgota a totalidade dos percursos possíveis no campo de leitura

Por fim, referir que Friedrich W. Block nos fala de categorias conceptuais que

caracterizam a poesia digital, e que são muito úteis para poderos distinguir, com clareza,

os princípios-base destas criações. Block fala de autorefrência medial; processualidade,

interactividade, hipermedialidade e networking.

Finalmente, devemos considerar que as componentes mediáticas da hipermédia,

disponíveis para utilização na literatura electrónica, um número mais alargado de

critérios deverá ser abordado: Interface, Imagem, Texto e Tipografia, Gráficos, Áudio,

Vídeo, Animação, 3D, Espaço virtual, Web, Rede, Programação e Algoritmos

concorrem para a criação digital em hipermédia

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EXEMPLOS – ANÁLISE E APRESENTAÇÃO

Vou agora apresentar alguns exemplos de trabalhos que estamos a desenvolver com a

Poesia Experimental portuguesa que poderão servir como exemplo desta mobilização

para a digitalização consciente bem como a produção do conhecimento científico em

meio hipermediático. O projecto “CD-ROM da PO-EX (Poesia Experimental

Portuguesa: Cadernos e Catálogos)” é financiado pela Fundação para a Ciência e a

Tecnologia/POCI e com apoio logístico de uma equipa formada por investigadores do

CETIC-Centro de Estudos de texto Informático e Ciberliteratura, Unidade de I&D da

Universidade Fernando Pessoa, Porto, bem como um conjunto de consultores e

bolseiros de investigação. O nosso é recolher, classificar, digitalizar e reproduzir em

formato electrónico, a produção da poesia concreta e visual do Movimento da Poesia

Experimental Portuguesa dos anos 60, com vista à produção de um CD-ROM e de um

Portal na Internet para divulgação da mesma. Desse modo, além de contribuir para a

promoção e divulgação da poesia portuguesa do século XX em geral, e da sua poesia

experimental em particular, motivando novas proposições teóricas e novas

metodologias de ensino e pesquisa, contribui-se para a preservação de um espólio

literário da PO.EX, através da criação um arquivo electrónico das revistas e

suplementos do Movimento, facilitando desse modo a acessibilidade a essas

publicações, há muito esgotadas.

Para alcançar os objectivos propostos, propusemos uma metodologia interdisciplinar,

aliando o estudo e a investigação dos Estudos Literários ao desenvolvimento

tecnológico, através da Engenharia Informática. Mesmo assim, e dada a complexidade

sintáctica e semântica de muitos destes poemas, estão a ser estudadas as formas mais

apropriadas à correcta reprodução destes poemas, distinguindo digitalização (trabalho

que consiste em copiar literalmente o trabalho, como uma fotografia) de aplicação

informática (processo de recriação que pressupõe uma análise e um estudo

intersemiótico da tradução entre meios e linguagens diferentes).

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Estas propostas de transcriação de poemas partem de uma conceituação metodológica

que identifica na poesia experimental portuguesa uma organização sígnica que se

apresentava já como pré-digital e pré-hipermediática. Assim, ao invés de promover uma

visão descontínua da história literária, identificamos uma linha de continuidade na

criação das poéticas digitais da hipermédia, remetendo para um processo de renovação

histórica dos discursos as possibilidades de criatividade a partir das novas tecnologias

digitais.

HELDER – MÁQUINA DE EMARANHAR PAISAGENS

Herberto Helder, no posfácio de Electronicolírica,3 apresentou-nos a experiência

pioneira de Nanni Balestrini, em 1961, com poesia gerada por computador, em que este,

“escolhendo alguns fragmentos de textos antigos e modernos, forneceu-os a uma

calculadora electrónica que, com eles, organizou, segundo certas regras combinatórias

previamente estabelecidas, 3002 combinações, depois seleccionadas”4. Também textos

como os d’“A Máquina de Emaranhar Paisagens”, onde Helder combina livremente

fragmentos do livro do Génesis, do livro do Apocalipse, de François Villon, de Dante,

de Camões e do próprio, ou ainda o Húmus, escrito a partir de “palavras, frases,

fragmentos, imagens, [e] metáforas” da obra homónima de Raul Brandão,5 inserem-se

no conjunto de textos experimentais que encenam a transformação e a devoração da

tradição.6 Mas em Electronicolírica, liberto do grupo de que entretanto se afastava,

Herberto Helder vai mais longe, utilizando processos combinatórios, inter e intra-

textuais, de uma maior complexidade. E explica que o seu método de criação poética é

estimulado por um processo de transferência e de combinatória de que resultara uma

semelhança com “certos textos mágicos primitivos, a certa poesia popular, a certo

lirismo medieval”,7 criando uma peculiar “fórmula ritual mágica, de que o refrão

3 Herberto Hélder, “Posfácio”, in: Electronicolírica, Lisboa, Guimarães Editores, 1964. 4 Idem, ibidem, p. 50. 5 Herberto Helder, Húmus, Lisboa, Guimarães Editores, 1967. 6 Ver a este propósito o estudo de Maria dos Prazeres Gomes, Outrora agora: relações dialógicas na poesia portuguesa de invenção, São Paulo, EDUC, 1993. 7Idem, ibidem.

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popular é um vestígio e de que é vestígio também o paralelismo medieval,

exemplificável com as cantigas dos cancioneiros”.8 Helder acaba por concluir que “[o]

princípio combinatório é, na verdade, a base linguística da criação poética”.9

A combinatória de que deriva a literatura gerada por computador inscreve-se numa

tradição que percorre a história da literatura (e das ideias). Em Portugal, ela foi ainda

experimentada, de um modo pré-informático, nos trabalhos de E. M. de Melo e Castro

(bastaria lembrar o seu ensaio de cariz combinatório, A proposição 2.01, de 1965, ou,

em Álea e Vazio, de 1971, a colocação, como hipótese criativa, de um algoritmo

literário), de Ana Hatherly (desde as séries do Anagramático, de 1970, até ao mais

recente Rilkeana, de 1999) e de Alberto Pimenta.

Estes trabalhos de Herberto Helder foram expandidos por Pedro Barbosa (1950-) em

algumas das experiências iniciais que desenvolveu com poesia generativa. Barbosa tem

vindo a desenvolver poesia com a ajuda de computadores desde 1976.10 Um pioneiro da

literature gerada por computador, ele tem trabalhado, para a realização dos seus textos

viurtuais, com a colaboração de vários programadores, mas em todos os seus projectos

os algoritmos literários são da sua autoria. Em consonância e sincronicidade com o

movimento palgiotrópico a que nos temos referido, sera curioso notar que entre os seus

primeiros poemas cibernéticos estão a recriação da “Máquina de Emaranhar Paisagens”.

Pedro Barbosa proopunha já nessa altura uma renovação do experimentalismo literário

pela literatura gerada por computador, antecipando desse modo os processos de

transformação e transposição que uma transição da página impressa para o meio digital

possibilitavam.11

Ao mesmo tempo, devemos salientar que o seu texto virtual resulta em um texto aberto:

um trabalho em movimento, incomplete e indeterminado, de que derivam várias versões

de um mesmo código-base. Ao mesmo tempo, há a possibilidade de o leitor interagir

8 Idem, ibidem. 9 Idem, ibidem. 10 A Literatura Cibernética 1: autopoemas gerados por computador, Porto, Edições Árvore, 1977; A Literatura Cibernética 2: um sintetizador de narrativas, Porto, Edições Árvore, 1980. Teoria do Homem Sentado, Porto, Edições Afrontamento, 1996. O Motor Textual, Porto, Edições UFP, 2001; Máquinas Pensantes: aforismos gerados por computador, Lisboa, Livros Horizonte, 1988. 11 Pedro Barbosa, “A renovação do experimentalismo literário na Literatura Gerada por Computador”, in Revista da UFP, 2(1), p. 181-188, Maio de 1998.

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com o texto-programa, tornando-se desse modo um co-autor, um escrileitor, que joga e

interage com um multitexto.

Imagem 1. Máquina de emaranhar paisagens, de Herberto Helder

Imagem 2. Recriação da Máquina de emaranhar paisagens, por Pedro Barbosa

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POESIA ENCONTRADA DE ANTÓNIO ARAGÃO

António Aragão (1924-) foi o organizador de várias publicações da poesia experimental

em Portugal. Ele desenvolveu muitas experiências pioneiras com electrografia,

fotocópia, colagem e texto-imagem, e o seu trabalho, muito pouco publicado e menos

conhecido, é no entanto reconhecido por todos os poetas do grupo como inovador e

influente.

Ao explicar os seus poemas-colagem, Aragão escreve que

“Os dois casos de ‘poesia encontrada’ que aqui propomos vieram dos jornais. Foram tomados de im pro viso na descoberta do olhar. A maleabilidade da expressão permite várias leituras […]. E, à maneira duma arte de posição transformável ou de colaboração com o fruidor, deixamos também ao leitor a possibilidade de construir outras leituras, ou seja, de fazer, até certo ponto, o seu poema.”12

Esta abertura incial do texto original, assim como a sua projecção de fragmentação e de

indeterminação, podem ser desenvolvidos e expandidos através dos meios digitais, uma

vez que o cibertexto pode ser dinâmico, aberto e randomicamente generativo. Na

verdade, é possível hoje em dia criar uma poesia encontrada automaticamente gerada,

além da possibilidade de adicionar a esta dinâmica uma potencial espacialização do

texto-colagem, despoletando desse modo múltiplas leituras e combinações.

Para a recriação desta poesia encontrada, utilizei o código em Actionscript de Jared

Tarbel intitulado "The Emotion Fractal", que é defindo pelo próprio como "a recursive

space filling algorithm"13 que coloca, de um modo arbitrário, palavras de um dado texto

no espaço da tela. Com uma adaptação deste código para PHP feita por Nuno F.

Ferreira, é agora possível utilizar os feeds dos jornais online como base de trabalho

desse algoritmo de espacialização fractal. Desse modo, colocando em jogo uma auto-

referência mediática através da expressividade própria da materialidade dos

significantes tipográficos, é possível espacializar em tempo real um conjunto de textos

que são retirados de RSSs de .

12 António Aragão, “Poesia encontrada”, Cadernos da Poesia Experimental, 1, Lisboa, Ed. Autor, 1964, p. 37. 13 <http://levitated.net/daily/levEmotionFractal.html>.

Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa

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Vale por isso a pena insistir no aspecto processual dos textos-colagem conforme Aragão

propunha:

“A poesia sempre variou de expressão. Por um lado, a descoberta duma dada expressão corresponde a uma aquisição instrumental necessária para servir aquilo que o poeta em dado momento tem para dizer. A busca incessante de expressões diferentes, como se passa afinal em todas as artes, é tremendamente provocada pela necessidade de conhecer e dar as realidades (todas) do espírito humano. Sem dúvida que a conquista de outras expressões em vez de destruir a poesia, é afinal a sua maneira de caminhar no tempo, e é o seu contínuo e inesgotável poder de metamorfose que lhe confere val IDADE e presença no mundo.”14

Imagem 3. Poemas encontrados, de António Aragão

14 António Aragão, “Poesia encontrada”, Cadernos da Poesia Experimental, 1, Lisboa, Ed. Autor, 1964, p. 37.

Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa

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Imagem 4. Recriação de Poemas encontrados, de António Aragão

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Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa

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Imagem 6. Recriação de Poemas encontrados, de António Aragão

Imagem 7. Recriação de Poemas encontrados, de António Aragão

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CONCLUSÃO

A literatura gerada por computador promove, deste modo, a experimentação e o jogo,

recriando profundamente conceitos como os de texto e interpretação. Laborando na

senda das vanguardas históricas e dentro do espaço inaugurado pelo experimentalismo

universal e intemporal da escrita, da imagem e do som, a ciberliteratura permite uma

renovação dos meios, partindo da hipótese de que de meios novos surgem conteúdos

novos também. Por isso, além de reconhecer a importância dos textos gerados por

motores e algoritmos de programação, é também necessário avaliar as consequências

que as tecnologias digitais e as redes telemáticas têm na compreensão das condições

estruturais que os novos meios oferecem à poesia, à prosa e ao teatro.

Transformação, transposição e variação na ciberliteratura de língua portuguesa

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