rousseau nova heloisa

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JE-JACQUES ROUSSEAU 712-1778) por Anton Graff DEDALUS - Acervo - FFLCH 11� 111IW li I�+11�m20900032411 JEAN-JACQUES ROUSSEAU �; vrA., JÚLIA Canas de dois amantes de uma cidadezinha ao pé dos Alpes segunda edição + l �; . , - , - -� - - Q� SBD-FFLCH-USP �/ ./ _ . . . - ,,," 1111111 1 11 1111111 1 111 111+1111111111llll 305668 - r-,��L d e.� �e- �-� EDr : oHUCITEC �í�. Sao Paulo, 2006

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  • JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778)

    por Anton Graff

    DEDALUS - Acervo - FFLCH

    11 111 IW li I 1111 m !li I f! 20900032411

    JEAN-JACQUES ROUSSEAU

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    Canas de dois amantes de uma cidadezinha

    ao p dos Alpes

    segunda edio

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    levianamente todos os seus negcios mas dizem livremente todas a s suas mximas. A mesa, durante o passeio, em conversa particular ou diante de todo mundo, usa-se sempre a mesma linguagem; diz-se com ingenuidade o que se pensa sobre cada coisa e, sem pensar cm ningum, cada um encontra sempre alguma instruo. Como os empregados nunca vem o patro fazer alguma coisa que no seja reto, justo, equitvel, no encaram a justia como o tributo do pobre, como o jugo do ipfeliz, como uma das misrias de sua condio. O cuidado que se tem em no fazer os operrios andarem em vo e perderem dias para vir solicitar o pagamento de suas jornadas, acostuma-os a sentir o preo do tempo. Vendo o cuidado dos patres com o dos outros, cada um conclui que o seu precioso e considera a ociosidade como um crime

    maior. A confiana que se tem em sua integridade confere

    s suas instituies uma fora que lhes d valor e evita os abusos. Nio se teme que na gratificao semanal a patroa pense sempre que o mais jovem ou o mais bem apanhado que foi o mais diligente. Um antigo empregado no teme que o trapaceiam para economizar o aumento de salrios que lhe do. No se espera aproveitar da discrdia deles para fazer-se valer e obter de um o que outro tiver recusado. Os que vo casar no temem que se traga dano a seu casamento para conserv-los por mais tempo e que sejam assim prejudicados por seu devotamento. Se algum Criado estranho viesse dizer aos empregados desta casa que um patro e seus criados esto entre si num verdadeiro estado de guerra, que quando estes ltimos fazem queles o pior que puderem fazer, usam nesse ponto de uma justa rcprcstlia que, sendo os patres usurpadores, mentirosos e velhacos no h mal cm tratlos como tratam o Prncipe ou o Povo ou os particulares e a devolvcrlhcs habilmen te o mal que fazem violentamente; aquele que falas.se assim nio seria compreendido por ningum; nem mesmo pensam aqui em combater ou evitar tais conversas, s aqueles que as provocam so obrigados a refut-las.

    Nunca h nem mau humor nem insubordinao na obedincia porque no h nem altivez nem capricho no comando, porque no se exige nada que no seja razovel e til e porque se respeita suficientemente a dignidade do homem, embora na condio de empregado, para somente ocup-lo com coisas que no o aviltem. Alm disso, aqui s o vicio baixo e tudo o que til e j usto honesto e decente.

    Se no se recebe nenhuma intriga vinda de fora, ningum tentado a cri-la. Sabem perfeitamente que sua mais segura fortuna est ligada do patro e que nunca lhes faltar nada enquanto virem prosperar a casa. Servindo-a, cuidam portanto de seu patrimnio e o aumentam tornando seu servio agradvel; este seu maior interesse. Mas esta palavra est deslocada aqui, pois nunca vi uma organizao cm que o interesse fosse to 408

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  • sabiamente dirigido e onde, contudo, influsse menos do que nesta. Tudo se fn por afeio, dir-sc-ia que essas almas venais purificam-se ao entrar nesta morad de sabedoria e de unio. D ir-se-ia que uma parte das luzes do patro e dos sentimentos da patroa passaram para cada um de seus empregados, de tal forma os sentimos sensatos,. beneficentes, honestos e superiores sua condio. Fazer-se estimar, considerar, querer bem sua maior ambio e contam as palavras obsequiosas que lhes dizem como contam os presentes de Ano-Bom que lhe do.

    Eis, Milorde, minilas principais observaes quanto parte da economia desta asa referente aos empregados e mercenrios. Quanto maneira de viver dos patres e direo das crianas, cada um desses pontos merece perfeitamente uma carta parte. Sabeis com que inteno comecei estas observaes, mas na verdade tudo isto forma um conjunto to encantador que para gostar de contempl-lo basta o prazer que se sente. j -.:tk-.

    Carta XI -4. f A Mll.ORDt. t.DUARDO i;(;'!J:/f.,).

    No, Milorde, no estou me desdizendo, nada se v nesta casa que no assoc:e o agradvel ao til, mas as ocupaes teis no se limitam aos trabalhos que trazem proveito, compreendem ainda todo o divertimento inocente e simples que alimenta o gosto da vida retirada, do trabalho,. da moderao e conserva, para aquele que a ela se ntrega, uma alma ,;adia., um corao livre da perturbao das paixes. Se a indolente ociosidade engendra somente tristeza e tdio, o encanto dos doces cios o fruto de uma vida laboriosa. Trabalha-se apenas para gozar, esta alternncia de trabalho e de gozo nossa verdadeira vocao. O repouso, que serve de descanso pelos trabalhos passados e de encorajamento para outros, nio menos necessrio ao homem do que o prprio trabalho.

    Aps ter admirado o efeito da vigilincia e dos cuidados da mais respeitvel me de famlia na ordem da casa, vi o de suas recreaes num local retirado de que faz seu passeio favorito e que chama seu Eliseu.

    Havia vrios dias que ouvia falar desse Eliseu com uma espcie de mistrio. Enfim, ontem, depois do almoo, como o extremo calor tornava o exterior e o interior da casa quase igualmente insupord.veis, o Sr. de Wolmar props que sua mulher deixasse o trabalho tarde e, cm lugar de retirar-se como sempre para o quarto de seus filhos at quase noitinha, fosse conosco respirar no pomar; ela consentiu e fomos juntos.

    Esse lugar, embora muito perto da casa, est de tal forma estondido pela alameda coberta, que dela o separa que no percebido de nenhum

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    Cf._ e.+..: o./ l"t.M. (......._'1;l,. .,..;r._ '--s-1.-r y)

    lugar. A espessa folhagem que o rodeia no permite que a vista penetre e est sempre cuidadosamcncc fechado 2 chave. M.al cncrci, por estar a porta escondida por amieiros e avcleiras que somente deixam duas estreitu passagens de ambos os lados, ao volcar-mc no vi mais por-onde entrara e, no percebendo nenhuma porta, cnconcrci-me l como se tivesse caldo du nuvens.

    Ao trar ncssu_rctcnso pomar, sci-me atingido por uma agradvel sensao de frcscor que obscuras sombras, uma verdura animada e viva, flores esparsas P?J todos os lados, um murmrio de gua corrente e o canto de mil pssaros trouxeram minha imaginao pelo menos tanto quanto .aos meus sentidos; mas, ao mesmo tempo, julguei ver o lugar mais selvagem, mais solitrio da naturc1a e parecia-me ser o primeiro mortal a ter alguma vc1 penetrado nesse deserto. Surpreso, impressionado, arrebatado por um espetculo to pouco previsto, permaneci um momento imvel e exclamei num entusiasmo involuntrio: Tinia, Juan Fernandes1! Jlia, o limite do mundo est ao vosso alcance! Muitas pessoas tambm pensam como vs, disse ela com um sorriso, mas vinte passos os levam de volca bem depressa a Clarens: vejamos se o encanto durar por mais tempo cm vs. Este o mesmo pomar em que passeastes outrora e onde combateis com minha prima a golpes de pssegos. Sabeis que a relva era bastante rida, as rvores bastante espaadas, dando pouca sombra e que .g!_o havia gua. Eilo agora fresco, verde, vestido, enfeitado, florido, banhado: o que pnsais que me custou para p-lo no estado cm que se encontra? Pois bom dizervos que sou sua superintendente e que meu marido deixa-me sua completa organiuo. Para db:er a verdade, disse-lhe, ele s vos custou um pouco de negligncia. Este lugar encantador, verdade, mas agreste e abandonado, nele no vejo trabalho humano. Fechastes a porta, a gua veio no sei: como, somente a natureza fez o resto e vs mesma nunca tereis sabido agir co bem quanto da. verdade, disse, que a natureza fez tudo, mas sob a minha dirc o e nada h aqui que cu no ccn a or a o. ais uma vc1, .adivinhai: cm primeiro lugar, repliquei, no compreendo como, com trabalho e dinheiro, pode-se substituir o tempo. As rvores ... quanto a isso, disse o Sr. d.e Wolmar, notareis que no h muitas de grande porte e essas ji existiam. Alm disso, Jlia comeou cudo isso hi muito tempo, antes de seu cuamenco e quase logo aps a morce da me, quando veio com seu pai procurar aqui a rolido. Pois bem, disse eu, visco que quereis que todos estes mas. ests grandes-caramanches, essas ramagens suspensas, estes bosquczinhos to bem protegidos tenham crescido cm sete ou oito anos e

    1 lla dt.tercaa do mar do Sul, d.lebres na viagem do Almican1e An1on. (N.A.)

  • que o trabalho tenha ajudado, estimo que, se num recinto to vasto fizestes tudo isto por dois mil escudos, economizastes bastante. Encarecestes apenas dois mil escudos, disse ela, ele nada custou. Como, nada? No, nada, a menos que conteis uns doze dias por ano de meu jardineiro, o mesmo de dois ou trs de meus empregados e alguns do prprio Sr. de Wolmar que se dignou ser algumas vezes meu ajudante de jardineiro. Eu nada compreendia desse enigma mas Jlia, que at ento me retivera, disseme deixando-me ir: avanai e compreendereis. Adeus Tinia, adeus Juan Fernandes, adeus todo o encantamento! Num momento estareis de volta do fim do mundo.

    Pus-me a percorrer com xtase esse pomar assim metamorfoseado e, se no encontrei plantas exticas e produtos das f ndias, encontrei os da regio, dispostos e reu_nidos de maneira a produzir um efeito mais alegre e mais agradvel. A relva verdejante, espessa, mas curta e cerrada, apresentava-se misturada com serpo, com menta, com tomilho, com manjerona e com outras ervas perfumadas. Viam-se brilhar mil flores dos campos, entre as quais o olhar distinguia, com surpresa, algumas de jardim, que pareciam crescer naturalmente com as outras. Encontrava, de vez cm quando, toucciras escuras, impenetrveis aos raios do sol, como na mais espessa floresta; essas touceiras eram formadas pelas rvores do bosque mais flexvel do qual se haviam feito recurvar os galhos, alcanar o cho e deitar razes com uma arte semelhante ao que fazem nacuralmentc os frutos do paletvio na Amrica. Nos lugares mais descobertos viam-se, c e l, sem ordem e sem simetria, moitas de rosas, de framboeseiros, de groselhas, .matagais de lilases, de aveleira, de sabugueiro, de silindra, de giesta, de triflio, que enfeitavam a cerra, dando-lhe uma aparncia de terreno in-ulto. Seguia alamedas tortuosas e irregulares ladeadas por esses arvore

    dos floridos e cobertos de mil guirlandas de videira da Judia, de videira 11i:rgem, de lpulo, de campainha, de bri'nia, de clematitc e de outras plantas dessa espcie entre as quais a madressilva e o jasmim dignavam-se confundir-se. Essas guirlandas pareciam atiradas negligentemente de uma arvore a outra como havia notado algumas vezes, nas florestas; e formavam acima de ns espcies de tapearias que nos defendiam do sol, enquanto tnhamos sob nossos ps um andar suave, cmodo e seco sobre uma cspiima fina sem areia, sem erva e sem

    . rebento speros. Somente ento descobri,

    nio sem surpresa, que essas sombras verdes e densas que tanto me haviam enganado de longe eram formadas apenas por essas plantas rastejantes e parasitas que, guiadas ao longo das rvores, rodeavam seus topos com a f!lais espessa folhagem e seus ps de sombra e de frcscor. Obscrvi mesmo que, atravs de uma operao bastante simples, havia-se feito com que

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    vrias dessas plantas fincassem suas razes nos troncos das rvore1, de maneira que se estendiam mais fazendo um trajeto menor. Imaginais bem que os frutos pouco ganham com todos esses acrscimos mas somente neste lugar sacrificou-se o til ao agradvel e no resto das terras tomou-se um tal cuidado com as mudas e as rvores que, mesmo sem este pomar, a colheita de frutos no deixa de ser maior do que antes. Se pensais como encantador s vezes, no fundo de um bosque, ver uma fruta selvagem e mesmo com ela refrescar-se, compreendereis o prazer que sentimos ao encontrar neste deserto artificial frutas excelentes e maduras, embora dispersas e de mau aspecto, o que confere ainda o prazer da procura e da escolha.

    Todos esses pequenos caminhos eram ladeados e atravessados por uma gua lmpida e clara, que ora circulava entre a relva e as flores cm fios quase imperceptveis, ora cm riachos maiores que corriam sobre um cascalho puro e matizado que tornava a gua mais brilhante. Viam-se fontes borbulharem e sair da cerra e algumas vezes canais mais profundos nos quais a gua calma e tranqila refletia os objetos a olho nu. Compreendo agora o resto, disse a Jlia: mas csca gua que vejo por toda parte ... Ela vem de l, replicou ela, mostrando-me a direo cm que se cnconcrava o eirado de seu jardim. I:. este mesmo riacho que abastece, cm grande quantidade, no canteiro, um jato d'gua a que ningum d importincia. O Sr. de Wolmar no quer destru-lo, cm ateno a meu pai que o mandou fazer, mas com que prazer vimos todos os dias ver correr neste pomarsta gua da qua{ pouco nos aproximamos no jardim! O jato d' gua funciona para os estranhos, o riacho corre aqui para ns. verdade que nele reuni a gua da fonte pblica que ia para o lago pela estrada principal que ela deteriorava para prcjulzo dos passantes e cm pura perda para todo mundo. Ela fazia um ngulo ao p do pomar, entre duas filas de salgueiros; encerrei-os no meu recinto e trago a mesma gua por outros caminhos.

    Vi ento que apenas se fizera serpentear essas guas com economia, dividindo-as e reunindo-as no momento certo, usando o mais posslvel e com cuidado o declive, para prolongar o circuito e conseguir o murmrio de algumas pequenas quedas, Uma camada de argila coberta por uma polegada de cascalho do lago e semeada de conchas formava o- leito dos riachos. Esses mesmos riachos, correndo por intervalos sob algumas largu telhas recobertas de terra e de relva ao nvel do solo, formavam sada outras tantas fontes .utificiais. Alguns filetes elevavam-se delas atrav de sif6cs sobre os lugares speros e borbulhavam ao cair novamente. Enfim, a terra assim refrescada e umedecida dava continuamente novas flora e mantinha a relva sempre verdejante e bela.

    Mais percorria esse agradvel asilo mais sentia aumentar a sensalo '12

    ' 1

  • deliciosa que experimentara ao entrar; contudo, a curiosidade mantinha me com a ateno suspensa: tinha mais vontade de ver as coisas do que examinar suas impresses e gostava de entregarme a essa encantadora contemplalo sem ter o trabalho de pensar, mas a Sra. de Wolmar, ti randome de meu devaneio, disseme dando-me o brao: tudo o que vedes apenas a natureza vegetal e inanimada e faase o que se fizer, ela deixa sempre uma idia de solido que entristece. Vinde vla animada e sensvel. l que, a cada momento do dia, encontrareis nela um atrativo novVs me prevenis, disse-lhe, ouo um chilreio barulhento e confuso e percebo bem poucos pssaros, compreendo que tendes um viveiro de aves. verdade, disse ela, aproximcmonos. Ainda no ousava dizer o que pensava do viveiro, mas essa idia tinha alguma coisa que me desagrada

    , va e no me parecia combinar c_om o resto. Descemos por mil desvios ao fundo do pomar onde encontrei toda

    ,a gua reunida num bonito riacho que corria suavemente entre duas filas de velhos salgueiros que haviam sido freqentemente podados. Seus to

    , pos ocos e meio calvos formavam espcies de vasos de onde saam, pela operao de que falei, touceiras de madressilva, uma parte das quais cn trelaavase ao redor dos galhos e a outra caa com graa ao longo do riacho. Quase na extremidade do recinto havia um pequeno tanque ro deado de ervas, de juncos, de canios, que servia de bebedouro para o viveiro e ltima etapa dessa gua to preciosa e tio bem aproveitada.

    Alm do tanque havia um ter!apleno limitado no ingulo do recinto por um montculo ornado de um senmcro de arbustos de todo tipo, os menores mais acima, e crescendo sempre cm altura, medida que o solo se -abaixava, o que tornava o plano das cabeas quase horizontal ou mostrava,

    pelo menos, que um dia deveria s-lo. Na parte anterior havia umas -doze ,,rvores ainda novas mas prprias a se tornarem muito grandes, como a

    faia, o olmo, o freixo, a accia. Eram os arvoredos desse outeiro que serviam de asilo a essa multido de p'ssaros cujo chilreio ouvira de longe e era sombra dessa folhagem, como sob um grande guardasol, que os vamos esvoaar, correr, cantar, provocaremsc, baterem-se, como se no ti,vcssem percebido. Fugiram to pouco ao nos aproximarmos que, segundo minha idia preconcebida, pensei a prindpio citarem encerrados P-r uma grade: mas ao chegarmos beira do tanque vi virios descerem e a,proximarem-se de ns numa espcie de curta alameda que separava em dois terrapleno e ligava o tanque ao viveiro. Ento o Sr. de Wolmar, dando a volta ao tanque, semeou na alameda dois ou t punhados de gros ,mesclados que tinha no bolso e, quando se retirou, os pssaros acorre

    e puseram-se a comer como galinhas, com um ar tio familiar que vi 413

  • 1 1

    1 1

    perfeiramenre que eravam acosrumados a essa manobra. f. encanrador! exclamei: a palavra viveiro me surpreendera, vindo de vs, m as compreen do-a agora, vejo que desejais hspedes e no prisioneiros. Que chamais hspedes? respondeu Jlia. Somos ns que somos seus hspedes. Eles aqui so os pacres e ns lhes pagamos criburo para sermos suporcados algumas vezes. Muiro bem, retruquei, mas de que maneira estes patres se apoderaram deste lugar? Qual o meio de\, reunir aqui tancos moradores voluntrios? No ouvi dizer que se tenha alguma vez tentado algo seme !bante e no teria acreditado que se pudesse consegui-lo se no tivesse a prova diante dos olhos .

    . A pacincia e o tempo, disse o Sr. de Wolmar, fizeram este milagre. So expedientes nos quais as pessoas ricas quase no pensam , em seus prazeres . Sempre com pressa de gozar, a fora e o dinheiro so os nicos meios que conhecem, possuem pssaros nas gaiolas e amigos a tanto por ms. Se um dia os criados se aproximassem deste lugar, vereis em breve os pssaros desaparecerem e se agora esto aqui em grande nmero porque sempre os houve. No os fazemos vir quando no h nenhum mas fcil, quando h alguns, atrair mais outros, antecipando todas as suas necessidades, no os assustando nunca, deixando-os chocar em segurana e no desalojando os filhotes, pois ento os que aqui estiverem ficam e os que chegam permanecem tambm. Este arvoredo existia embora estivesse separado do pomar. Jlia apenas o rodeou com uma sebe viva, retirou a que o separava, aumentou-o e ornou-o com novos ps. Estais vendo direita e esquerda da alameda que conduz a ele dois espaos preenchidos por uma mistura confusa de ervas, de palhas e de toda espcie deplantas. Cada ano m anda plantar trigo, milho-mido, girassol, sementes de dnhamo, p'ltt ttr, geralmente todos os gros de que os pssaros gostam e no se colhe nada. J..lm disso, quase todos os dias, no vero e no inverno, ela ou eu lhes tiaz.emos comida e quando no vimos Fanchon geralmente nos substitui: tem gua a alguns passos,.como estais vendo. A Sra. de Wolmar leva o cuidado at ao ponto de prov-los, a cada primavera, de pequenas pores de crina, de palha, de l, de musgo e de outras matrias prprias para fazer ninhos. Com a vizinhana dos materiais, a abundncia de vveres e o grande cuidado que tomamos em afastar todos os inimigosl, a eterna tranqilidade de que gozam leva-os a pr ovos num lugar agradvel onde nada lhes falta, onde ningum os perrnrba. Eis como a ptria dos pais ainda a dos filhos e como a tribo se mantm e se multiplica.

    1 Ervilhaca. (N .A.) 1 01 lcit6a, 01 camundongos, as corujas e sobretudo as crianas. (N.A.)

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  • Ah!, disse Jlia, no vedes mais nada! cada um s pensa agora cm si, mas esposos inseparveis, o z.clo das ocupaes domsticas, a ternura paterna e materna, perdestes tudo isto. Era preciso estar aqui h dois meses para oferecer aos olhos o mais encantador dos espetculos e ao corao o mais doce dos sentimentos da natureza. Senhora, repliquei com bastante tristeza, sois esposa e me, so prazeres que cabe a vs conhecer. Imediatamente, o Sr. de Wolmar, tomando-me pela mo, disse-me ao apert-la: tendes amigos e estes amigos tm filhos, de que maneira a afeio paterna vos seria estranha? Olhei-o, olhei Jlia, ambos se olharam e me devolve rarrflum olhar to comovente que, abraando-os um depois do outro disselhes com enternecimento: des me so to caros quanto a vs. No sei por qual bizarro efeito uma palavra pode assim transformar uma alma mas, desde esse momento, o Sr. de Wolmar parece-me um outro homem e vejo nele menos o marido daquela que canto amei do que o pai de duas crianas pelas quais daria a minha vida.

    Quis dar a volta ao tanque para ir ver de mais perco esse encantador asilo e seus pequenos habitantes, mas a Sra. de Wolmar me reteve. Ningum, disse ela, vai perturb-los em seu domicilio e sois mesmo o primeiro de nossos hspedes que eu trouxe at aqui. H quatro chaves desse pomar das quais meu pai e ns temos uma cada um, Fanchon tem a quarta, como inspetora e para trazer s vezes meus filhos, favor cujo preo aumentado pela extrema circunspeco que se exige deles enquanto esto aqui. O prprio Gustin s entra com um dos quatro; mesmo assim, dois meses depois da primavera, quando seus trabalhos tm utilidade, de quase no entra mais e o resto feito entre ns. Assim, disse-lhe, por medo de que vossos pssaros no sejam vossos escravos, vos tornastes es cravos deles. Exatamente, replicou ela, as palavras de um tirano que so mente julga gozar de sua liberdade medida que perturba a dos outros.

    Ao partirmos para voltar, o Sr. de Wolmar atirou um punhado de cevada dentro do tanque e ao olhar percebi nele pequenos peixes. Ah, ah! disse logo, aqui h, contudo, prisioneiros? Sim, disse ele, so prisionei ros de guerra, aos quais conservamos a vida. Sem dvida, acrescentou sua mulher. H algum tempo, Fanchon roubou na cozinha pequenas percas que trouxe para c sem que cu soubesse. Deixo-as aqui, por medo de mortific-la se as enviasse de volta para o lago, pois ainda prefcdvel albergar peixes em pouco espao a indispor uma pessoa de bem. Tendes rado, tcspondi, e no se deve lamentar este por ter escapado da panela a tal preo.

    Pois bem, que pensais, disse-me ela ao voltar. EstaI ainda no fim do mundo? Nio, disse, e-is-me completamente fora dele e, de fato, transpor

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  • tastes-me ao Eliseu. O nome pomposo que ela deu a este pomar, disse o Sr. de Wolmar, merece realmente esta zombaria. Louvai moderadamente es tas infantilidades e pensai que nunca prejudicaram a me de famlia. Sei o, repliquei, tenho toda a certeza e as infantilidades me agradam mais neste sentido do que os trabalhos dos homens.

    Contudo, h aqui, continuei, uma coisa que no posso compreender. que um lugar to diferente do que ra s pode ter-se cornado o que com cultivo e cuidados, todavia, no vejo em parte alguma o menor tro de cultivo. Tudo verdejante, fresco, vigoroso e a mo elo jardineiro no aparece: nada desmente a idia de uma Ilha: deserta que me veio mente ao entrar e no percebo nenhum passo humano. Ah! disse o Sr. de.>Wolmal' que se tomou grande cuidado em apag-los. Fui muias vezes testem nha, algumas vez.es cmplice da malandragem . Manda-se semear fc.no em todos os lugares cultivados e a grama esconde cm seguida os vestgios do trabalho; no inverno, manda-se cobrir com algumas camadas de adubo ti lugares pobres e ridos, o adubo faz. desaparecer o musgo, reanima a grama e as plantas, as prprias rvores no se do mal e no vero ele desapareceu .. Quanto ao musgo que cobre algumas alamedas, foi Milord Edyardo que nos enviou da Inglaterra o segredo para faz.-lo nascer. Estes dois lado , continuou, estavam fechados por muros, os muros foram scndidos no por rvores de latada mas por espessos arbustos que fazem cn que os limites do local paream o inkio de um bosque. Dos dois outros lados h forces sebes vivas, bem cobertas de bordos, de estrcpeiros, de azevinho, de alfena e de 04trOs.;,,.arbustos misturados que lhes retiram a aparncia ae sebes e lhes do a d'ma mata de corte. Nada vedes de alinhado, nada ie nivelado; o cordel nunca entrou neste lugar, a natureza nunca planta nada seguindo um cordel, as sinuosidades em sua irregularidade simulad sio feitas com arte para prolongar a avenida, esconder as margens da Ilha e aumentar sua extenso aparen'ce, sem incmodos e freqentes desvios1

    Considerando tudo isso, achei muito estranho que 54: dessem canto trabalho para esconder o que se deram; no teria sido prefcdvel nio se darem ao trabalho? Apesar de tudo o que vos disseram , respondeu-me J lia, julgais o trabalho pelo efeito e vos enganais. Tudo o que vedes so plantas selvagens ou forres que basta pr na terra e que crescem em-seguida por si mesmas. Alis, a natureza parece querer ocultar aos olhos aos homens seus verdadeiros atrativos, aos quais so por demais pouco sen

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    1 Assim, no se trata desses pequenos bosqua:inhos que esto na moda, to ric!iculamcntc contornados que s se pode caminhar cm zigue-:iaguc e que, a cada p JO, 4 preciso faur uma pirueta. (N.A.)

    \

  • dveis e que desfiguram quando esto ao seu alcance: ela foge dos lugares freqentados, no cume das montanhas, no fundo das florestas, nas Ilhas d erras que ela ostenta seus mais emocionantes encantos. Os que a amam e que nlo podem ir procur-la to longe esto reduzidos a violent-la, a

    for-la, de algum modo, a vir morar com eles, e tudo isso no pode ser , feito sem ulll"pouco de iluso.

    A essas palavras veio-me uma idia que os fez rir. Imagino, diss-lhes, um homem rico, de Paris ou de Londres, dono desta casa e qe trouxesse co ele' um Arquiteta a quem pagasse um alto preo para estragar a :)atureza. Com que desdm entraria neste lugar. simples e pequeno! com que desprezo mandaria arrancr todas estas ninharias! Que belos alinhamentos faria! Que belas avenidas mandaria abrir1 Que belas encruzi

    '

    lhadas, que' bela rvores em forma de guarda-sol, de leque! Que belos gradeamentos bm cinzelados! Que belas alamedas arborizadas, bem desenhadas, bem esquadriadas, bem contornadas! Que belos relvados de fina relva da Inglaterra, redondos, quadrados, em meia lua, ovais! Que belos Teixos recortados em forma de drages, de pagodes, de figuras grotescas, de todo tipo de monstros! Que belos vasos de bronze, que belas frutas de pedra com os quais ornar seu jardim!. . . 2 Quando tudo isso estiver executado, disse.o Sr. de Wolmar, ter feito um local belssimo onde quase no se ir e de onde sempre se sair apressadamente para ir procurar o campo, um lugar triste onde no se passear mas por onde se passar para ir passear, enquanto em minhas andanas pelo campo apresso-me muitas vezes cm voltar para vir passear aqui .

    . Nessas terras to vastas e to ricamente ornadas vejo apenas a vaidade do proprietrio e do artista que, sempre apressados em ostentar, um sua riqueza e outro seu talento, preparam, com grandes despesas, tdio para quem quer que deseje gozar de sua obra. Um falso gosto pela grandeza que no feita para o homem envenena seus prazeres. O ar faustoso sempre triste, faz pensar nas misrias de quem o procura. Em meio a seus canteiros e a suas grandes alamedas, sua pequena pessoa no cresce, uma vore de vinte ps cobre-o como um de sessenta3, ocupa sempre apenas

    -1 Nesta carta Rousseau ope o jardim inglesa, no caso o Eliseu, ao jardim clsico francs. (N.T.)

    1 Estou persuadido de que est perto o momento cm que no mais se desejar, nos jardins, o que se encontra no campo; no se suportaro mais nem plantas, nem arbustos, somente desejar-se-o flores e figuras de porcelana, gradeamentos, areia de todas as cores e belos vasos cheios de nada. (N.A.)

    ' Ele devia, de fato, estender-se um pouco sobre o mau gosto de podar as llrvores de maneira ridlcula, para lan-las nas nuvens, retirando-lhe seus belos topos, suas

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  • seu espao de trs ps e perde-se como um pobre coitado em seus imens 1 domnios.

    H um outro gosto diretamente oposto a esse e mais ridculo aind pois no deixa nem mesmo goiar do passeio para o qual os jardins feitos. Compreendo, disse-lhe, o desses pequnos curiosos, desses pe quenos floristas' que desfalecem diante de um rannculo e se prosternam

    diante das tulipas. Nesse momento, contei-lhe, Milorde, o que me acon, tecera outrora, em Londres, nesse jardim de flores no qual fomos intro dudos com canto aparato e onde vimos brilhar co pomposamente todo1 os tesouros da Holanda sobre quatro camadas de estrume. No esqueci a cerimnia do guarda-sol e da varinha com que me honraram, a mim, indigno, assim como aos outros espectadores. Confessei-lhes humildemente como, tendo desejado esforar-me por minha vez e correr o risco de extasiar-me vista de uma tulipa cuja cor pareceu-me viva e a forma elegante, fui escarnecido, apupado, vaiado por todos os Sbios e como o professor do jardim, passando do desprezo da flor ao do panegirista, tilo se dignou mais olhar-me durante toda a permanncia. Penso, acrescentei, que lamentou muito sua varinha a seu guarda-sol profanados.

    Esse gosto, disse o Sr. de Wolmar, quando degenera em mania, tem algo de mesquinho e de fa!so que o torna pueril e ridiculamente dispen dioso. O- outro, pelo menos, tem nobreza, grandeza e algum tipo de verdade; mas o que o valor de uma raiz ou de uma cebola, que um insem ri ou destri talvez no momento cm que a regateamos ou de uma flor, preciosa ao meio dia e mur.cha ao pr do -sol, o que uma beleza convcn cional que s sensvel aos olhos dos curiosos e que s bela porqae querem que o seja? Pode chegar o momento etn que se procurar 01$ flora exatamente o contrrio do que se procura hoje e com a mesma razio, endo sereis o douto, a vosso turno, e vosso curioso ser o ignorante. Todas asai pequenas observaes que degeneram em estudo absolutamente"O'io coavm ao homem sensato que quer dar a seu corpo um exerccio moderado OI descansar seu esprito durante o passeio, conversando com os amigos. AI flores so feitas para distrair nossos olhares, de passagem, e no para serem

    sombras, esgotando sua seiva e impedindo-as de extrair algum proveito. E.uc- verdade, d madeira aos jardincirs mas' a retira ao pais que jt nlo rcm mllil& Julgar-se-ia que a narurez.a, na Frana, feira de maneira diferente do que no,.... mundo, tanto o cuidado que se roma para desfigur-la. Os parqua fO.,_ p!aatado1 de longas varas, so floresw de mastros ou de maiu e paaei_a-tc ao .. dos boaquc:s sem encontrar sombra. (N.A.) ,

    i. O Dki1111Jm J11 k..kmi11, de m;i, define jkurim como "aquele q Oorcs, que gosta de Aorcs, que cem pruec cm cuMv-t. (N. T.)

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  • tio uriosamcmte analisadas'. Vede brilhar sua Rainha em toda pane nese pomar. Ela perfuma o ar, ela encanta os olhos e quase nio custa nem

    e idados ncin cultivo. por isso que os floristas a desprezam; a natureza a fei tio bela que eles nio lhe poderiam acrescentar belezas de conveno e, ri,io podendo fatigar-se cm cultiv-la,pada encontram nela que os deleite. O em>. das pretensas pessoas de go{to o de que.rer arte por toda pane e o de nunca estar contentes enquanto a arte no se mostrar, equanto o verdadeiro gosto consiste em escond-la, sobretudo quando se trata das obras da nacurcza. Que significam essas alamedas co retas, to areadas que se encontram continuamente e essas encnzilhadas atravs das quais, bem longe de estender diant dos olhos a dimenso de um parque, como se imagina.ria, mostram-se apenas, desajeitadamente, seus limites? V-se nos bosques areia dos rios ou os ps repousam com mais suavidade nessa areia do que sobre o musgo ou o relvado? A natureza usa continuamente o esquadro e a rgua? tm medo de que no seja reconhecida em alguma coisa apesar dos cuidados que tm em desfigur-la? Enfim, no engraado que, como se j estivessem cansados do passeio ao come-lo, gostem de fu!-lo em linha reta para chegar mais depressa ao termo? No se diria que, tmdo o caminho mais curto, fazem antes uma viagem do que um passeio e st apressam cm sair logo que entraram?

    Que far portanto o homem de gosto que vive por viver, que sabe gozar de si mesmo, que procura os prazeres verdadeiros e simples e que deseja criar uma avenida porta de sua casa? Ele a far to cmoda e to agradvel que nela possa comprazer-se cm to_das as horas do dia e contudo tio simples e to natural que parea nada ter feito. Runir a gua, a verdura, a sombra e o frescor, pois a nacureza tambm rene todas essas coisas. A nada dar simetria, ela inimiga da natureza e da variedade e todas as alamedas de um jardim comum se assemelham. tanto qe temos a impresso de estar sempre na mesma. Desbri.var o terren para nele passear comodamente, mas os dois lados de suas alamedas nem sempre serio exatamente paralelos, a direo no 1ser sempre a linha reta, ter no lei ue de vago como o andar de um homem ocioso que vagueia ao pas; r: no se preocupar em abrir ao longe belas perspectivas. Os gostos dos potits de vista e das distncias vm- c!a inclinao que tem. a maioria

    homeris para somente se comprazerem onde no esto. Esto sempre 'dos pelo que est longe deles e o artista, que no sabe torn-los sufi-

    1 O s'bio Wolmar no havia observado bem. Ele, que sabia tio bem examinar os homens, teria to mal examinado. natureza? lgnonva que se seu Autor grande nas gnndcs coisas, muitq grande nas pequenas? (N.A.)

    419

  • cicntcmcntc satisfeitos com o que os rodeia, lana mo para diverti-los, mas o homem de que falo no tem essa aflio e quando sente bem onde est no se preocupa crn estar cm outro lugar. Aqui, r exemplo, no se tem perspectiva para fora e estamos muito contentes por no ce-la. Pensaramos de boa vontade que todos os encantos da naturc za esto encerrados aqui e cu tcmeri.f muito que a menor perspectiva para o exterior no retirasse muitos dos atrativos deste passeio'. Certamente todo homem que no goste de passar belos dias num lugar to simples e to agradvel, no possui um gosto puro nem uma alma s. Confesso que no se devem levar com solenidade os estranhos mas, cm compensafo, nele podemos comprazermos a ns mesmos sem mostr-lo a ningum.

    Senhor, disse-lhe, essas pessoas to ricas que fazem to belos jardin1, possuem muito boas razes para no gostarem de passear sozinhas, nem para se encontrarem a ss consigo mesmas: assim, fazem muito bem nesse ponto em somente pensar nos outros. De resto, vi na China jardins como os que desejais e feitos com canta arte, que a arte no era percebida, mas de maneira to dispendiosa e mantidos com tal custo, que essa idia retira va-me todo o prazer que poderia ter tido em ve-los. Eram rochas, grutu, cascatas artificiais em lugares planos e arenosos onde s existe gua_ de poo; eram flores e plantas raras de todos os climas da china e da Tarria, reunidas e cultivadas num mesmo solo. Na verdade, no se viam nembelu alamedas nem desenhos regulares, mas viam-se profusamente acumula das maravilhas que s so encontradas espalhadas e separadas. A natureza apresentava-se sob mil aspectos diversos e todo o conjunto no era nata ral. Aqui no se transportaram nem terras nem pedras, no foram fcitOI nem bombas nem reservatrios, no h necessidade nem de estufas nem de fornos, nem de redomas nem de esteires. Um terreno quase liso recetieu ornamentos muito simples. Ervas comuns, arbustos comuns, alguns filetes de gua corrente, sem arranjos, sem violencia, foram suficientes para em

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    1 No sei se j se tentou dar, s longas alamedas de uma. encruzilhada, uma lne curvatura de maneira que a vista nio possa seguir totalmente cada alameda" o fia e de maneira que a extremidade oposta esteja escondida ao espectador. PerderICllll, verdade, os atracivos dos pontos de vista, mas ganhar-se-ia a vantagem tio cara_ proprietrios de aumentar, para a imaginao, o lugar cm que se csd e, no cenuo de uma encruzilhada bastante limitada, imaginarnos-lamos perdidos num parque imcmo. E.stou persuadido de que o passeio seria assim menos aborrecido, embona.i. solitrio, pois tudo o que provoca a imaginao excita a.s idias e alimenta o csplril!IS mas os fazedores de jardins no so pessoas capazes de sentir essu coisu. QIWltllt veza, num lugar selvagem o lpis lhes cairia das mos, como caiu das mlol ele Le No/ue no parque de St. James, se conhecessem como ele o que_ d vida l 11u11111u interesse a seu espetS.culo? (N.A.)

  • belez-lo'. um trabalho sem esforo cuja facilidade d ao espectador um "1.

    'no o prazer. ,Sinto que este lugar poderia ser ainda mais agradvel e agr dar-me infinitamente menos . .e_ o caso, por exemplo, do clebre parque de Milorde Cobham em Staw. um conjunto de lugares belssimos e muito pitorescos, cujos aspectos foram escolhidcp em diferentes pases e do qual tudo parece natural exceto sua reunio, corli.o nos jardins da China de que acabo de falar-vos. O dono e o criador ,dessa maravilhosa solido, nela fei mesmo construir runas, templos, atigas construes e tanto as pocas quanto os lugares nela esto reunidos com uma magnif icncia mais do que humana. Eis, exatamente, do que me queixo. Gostaria que os divertimentos dos homens tivessem sempre um ar agradvel que no fizesse pensar em sua fraqueza e que, ao admirar essas maravilhas, no se tivesse a cabea cansada com as somas e os trabalhos que custaam. A sorte j n'o nos d penas suficientes sem p-las at em nossos divertientos?

    ;Censuro apenas uma coisa a vosso Eliseu, acrescentei olhando Jlia, ma$ que vos parecer grave, de ser um divertimento suprfluo. Para que cri'ar um novo passeio tendo, do outro lado da casa, bosquezinhos to encantadores e to desprezados? verdade, disse ela um pouco embaraadi, _mas prefiro isco. Se tivsseis bem pensado em vossa pergunta, antes d fla, interrompeu o Sr. de Wolmar, ela seria mais do que deslocada. Desde seu casamento, m inha mulher nunca ps os ps nos bosquezinhos de que falais. Conheo a razo, embora ela sempre ma tenha calado. Vs, que no o ignorais, aprendei a respeitar os lugares em que vos encontrais, eles so p laneados pelas mos da virtude.

    VMal recebera essa justa reprimenda, a pequena famlia, trazida por Fan.chon, entrou enquanto saamos. Essas trs encantadoras crianas atiraram-se ao pescoo do Sr . e da Sra. de Wolmar. Tive meu quinho de seu,s .. pequenos afagos. Voltamos, Jlia e eu, para o Eliseu, dando alguns passos com eles, depois fomos nos juntar ao Sr. de Wolmar que falava a alguns operrios. No caminho, ela me disse que depois d ter-se tornado me tivera, sobre esse passeio, uma idia que aumentara seu zelo em embelez-lo . Pensei, disse-me, no divertimento de meus filhos e na sua sade quando forem maiores. A manuteno deste lugar exig maiores cuidados do que trabalho; trata-se antes de dar certo contorno aos ramos das.plantas do que de cavar e arar a terra; quero fazer deles, um dia, meus pequenos jardineiros: tero suficiente exerccio para reforar o corpo mu, no tanto para cans-lo. Alis, mandaro fazer o que for demasiado penoso para sua idade e limitar-se-o ao trabalho que os divertir. Nlo 11beia dizer-vos, acrescentou, que doura s into m imaginar meus filhos ocueados em devolver-me todas as pequenas atenes que tenho por eles

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  • com tanto prazer e a alegria de seus ternos coraes, vendo sua mle passear com prazer sob estas sombras cultivadas pelas mlos deles. Na verdade, meu amigo, disse-me com voz comovida, dias vividos dessa maneira parecem felicidade da outra vida e n o sem railo que, pensando nisso, dei de antemo a este lugar o nome de Eliseu. Milorde, esta incomparvI mulher me como esposa, como amiga, como filha e, para eterno suplcio de meu corao, foi ainda assim que foi amante .

    Entusiasmado com um lugar to encantador pedi-lhes, noite, que aceitassem que durante minha estada em sua casa Fanchon me entregasse sua chave e o trabalho de alimentar os pssaros, Jlia enviou logo ao meu quarto o saco de gros e deu-me sua prpria chave. No sei por que a recebi com uma espcie de tristeza: pareceu-me que teria prefe rido a do Sr. de Wolmar.

    Hoje, levantei-me cedo e, com a pressa de uma criana, fui encerrarme na Ilha deserta. Quantos agradveis pensamentos esperava levar para esse lugar solitrio onde unicamente o doce aspecto da natureza devia expulsar de minha lembrana toda essa ordem social e factlcia que me tornou to infeliz! Tudo o que vai envolver-me obra daquela que me foi to cara. Contempl-la-ei ao meu redor. Nada verei que sua mo no tenha tocado, beijarei flores que seus ps tiverem pisado, respirarei com o orvalho um ar que ela respirou, seu gosto em seus divertimentos tornarme- presentes todos os seus encantos e encontrarei em toda parte como ela no fundo do meu corao.

    Ao entrar no Elise!l com essas disposies lembrei-me subitamente das ltimas palavras que me disse ontem o Sr. de Wolmar mais ou menos no mesmo lugar. A lembrana dessas nicas palavras transformou imediatamente todo o estado de minha alma. Julguei ver a i magem da virtude onde procurava a do prazer. Essa imagem confundiu-se em meu esprito com os traos da Sra. de Wolmar e, pela primeira vez desde minha volta, vi Jlia em sua ausncia, no tal como foi para mim e como gosto de imagin-la, mas tal como se mostra aos meus olhos todos os dias. Milorde, julguei ver esta mulher to encantadora, to casta e to virtuosa no centro desse mesmo cortejo que a rodeava ontem . Via ao seu redor seus trs adorveis filhos, hon rado e precioso penhor da unio conjugal e da terna amizade, fazer-lhe e receber dela mil emocionantes atenes. Via a seu lado o grave Wolmar, este Esposo to caro, to feliz, to digno de s-lo. Julgava ver seu olhar penetrante e judicioso entrar no fundo do meu corao e fazer-me ainda sentir envergonhado; julgav ouvir sair de sua boca censuras por dem ais merecidas e lies por demais mal ouvidas. Via em seguida essa mesma Fanchon Regard, viva p rova do triunfo das virtudes e da humanidade sobre o mais 422

  • ardente amor. Ah! que senti ment.i culpado teria penetrado at ela atravs desse inviolvel cortejo? Com que indignao teria abafado os vis arrebatamentos de uma paixo cri m i nosa e mal extin tas e quanto me teria desprezado por macular co m um n ico susp iro um to encan tador quadro de inocncia e de honestidade! Repassava cm m inha memr i as palavras que ela me dissera ao sair, depois, remon tando com ela para \im fu turo que co ntem pla . com tanto encanto, via esta terna me nJiugar o suor da cesta de seus fi lhos, beijar suas faces inflamadas e entregar esse corao feito eara amar ao mais doce sentimento da natureza. At mesmo o nome Eliseu corrigia em mim os desvios da imaginao e trazia minha alma uma calma p refervel perturbao das paixes mais sedutoras. Ele me pin tava, num cerco sentido, o in terior daquela que o encontrara, pensava que, com uma conscincia agitada nunca se teria escolhido aquele nome. Dizia a mim mesmo: a paz reina no fundo d e seu corao como no asi lo a que deu o nome.

    Prometera a mim mesmo um devaneio agradvel , sonhei mais agradavel mente do que esperara. Passei duas horas no Eliseu s quais no prefiro nenhuma poca de mi nha vida. Vendo com que encanto e com que rapidez elas haviam-se escoado, julguei que h na medicao dos pensamentos_ honestos uma espcie de bem -estar que os maus nunca conheceram, o de comprazer-se consigo mesmo. Se pensssemos n isso sem preveno, no sei que outro prazer poderamos igualar a ele. Sinto, pelo menos, que quem quer que goste tanto quanco eu da solido deve temer encontrar nela tormentos. Talvez se extraia dos mesmos principias a chave dos falsos julgamentos dos homens sobre as vantagens do vcio e sobre os da virtude: pois o gozo da virtude cocal mence interior e s percebido por aquele q'uc o sente, mas todas as van tagens do vicio impress,ionam os o lhos alhios e somente aquel e que as cem sabe o que lhe custam.

    "Se a ciascun /'interno affenno Si ieggesu in fronte scritto, Quanti mai, che lnvidia Janno, Ci farebbero piet? ' , 2

    1 "Se de cada um o secreto rormenco/Se lesse escrito na fronte/ Quantos h, que causa.m i nveja/ Nos friam pena?" Mecascsio, Giuuppt ricanouinta. (N.T.)

    1 Ele reria podido acrescentar a continuao, que muito bonita, e no convm menos . ao assunto: "Si vttria cht i lor ntmici

    Anna in uno, t Ji riJ1ut Ntl partrt a nai foliei O:ni lar ft/icit . (N.A.) "Ver-se-ia que seus inimigos/Tm no corao, e reduz-se/ No parecer a ns felizes/ Toda sua felicidade". (N.T.)

    423

  • Como era tarde, sem que cu o percebesse, o Sr. de Wolmar veio juntar se a mim e advertir-me de que Jlia e o ch me esperavam. Sois vs, disse lhes desculpando-me que me impedeis de estar convosco: senti-me tio encantado com minha tarde de ontem que voltei para goz-la esta manh; felizmente no h mal nisso e, visto que me esperastes, minha manh no est perdida. exatamente isro, respondeu a S ra. de Wol mar, seria prefe rvel esperar at o meio-dia a perct'er o prazer de tomarmos juntos o desjejum. Os estranhos nunca sio admitidos pela m anh cm meu quarto e tomam o desjejum no seu. O desjejum a refeio dos amigos, os criados dele esto excludos, os imporrunos n o aparecem, diz-se tudo o que se pensa, revelam-se todos os segredos, nenhum sentimento reprimido, podemos entregar-nos sem imprudncia s douras da confiana e da familiaridade. quase o nico momento cm que permitido ser o que se , ah! se durasse o dia inteiro! Ah! Jlia, estive a ponto de dizer, eis um desejo bem interessado! mas calei-me. A primeira coisa que eliminei, com o amor, foi o louvor. Louvar algum cm sua presena, a menos que no se trate da prpria amante, ser outra coisa seno dar um preo vaidade? Sabeis, Milorde, se Sra. de Wol mar que se pode fazer tal censura. No, no, honro-a demais para no honr-la cm silncio. V-la, ouvi la, observar sua conduta n o louv-la suficientemente?

    Carta XII

    DA SENHORA DE WOLMAR SRA. D'ORBE

    Est escrito, cara amiga, que deves ser, em todas as pocas, minha salvaguarda Contra mim mesma e que, aps ter-me l ibertado com tanto trabalho das armadilhas de meu corao, defender-me-s ainda das de minha razo. Aps tantas provas cruis, aprendo a desconfiar dos erros " como das paixes das quais so com tanta freqncia as obras. Ah ! se tivesse tido sempre a mesma precauo! Se no passado tivesse contado menos com minhas luzes, ter-me-ia envergonhado menos dos meus sentimentos. ,

    Que este prembulo no te alarme. Seria indigna de rua amizade se tivesse ainda de consult-la sobre assuntos graves. O crime sempre foi estranho ao meu corao e ouso julg-lo mais afastado do que nunca. Escuta-me, pois, tranqilamente, minha Prima, e cr que nunca precisarei dos conselhos que a honestidade sozinha pode resolver.

    Desde que vivo, h seis anos, com o Sr. de Wolmar na mais perfeita unio que possa reinar entre dois esposos, sabes que ele nunca me falou nem de sua famflia nem de sua pessoa e que, tendo-o recebido de um pai to cioso da fel icidade de sua filha do que da honra de sua casa, no mostrei 424

  • pressa cm saber a seu respeito ais do que ele julgasse oportuno dizer-me. Contente por dever-lhe, com a vida daquele quera deu, minha honra, meu sossego, minha ruo, meus filhos e tudo o uc pode dar-me algu valor a meus olhos, estava bem segura de que o que ignorava dele no desmentiria o que sabia e no precisava saber mais para am-lo, estim-lo, honr-lo tanto quanto fosse possvel. ,

    Esta maf!h, ao desjejum, ele nos props um passeio antes d.o calor; depois; com o pretexto de, dizia, no' andar pelo campo de roupo, levounos aos bosquezinhos e precisamente, minha cara, a esse mesmo bosquezinho onde comearam todas as infelicidades de minha vida. Ao aproximarme desse lugar fatal senti me corao bater horrivelmente e teria recusado entrar se a vergonha no me tivesse retido e se a lembrana de algumas palavras que foram ditas no outro dia no Eliscu no me tivessem feito temer as interpretaes. No sei se o filsofo estava mais tranqilo mas, tendo-o olhado pouco depois, por acaso, achei-o plido, mudado, e no posso dizer que sofrimento tudo isso me causou.

    Ao entrar no bosquezinho vi meu marido olhar-me e sorrir. Sentou-se entre ns e, aps um momento de silncio, tomando-nos ambos pela mo: meus filhos, disse-nos, comeo a ver que meus projetos no sero vos que poderemos estar unidos, os trs, por uma afeio duradoura, prpria a fazer nossa felicidade comum e minha consolao nas dificuldades de uma velhice que se aproxima: mas conheo-vos a ambos melhor do que me conheceis, justo tornar as coisas equivalentes e, embora no tenha nada de muito interessante e dizer-vos, visto que no tendes mais segredos para

    . mim, no quero mais t-los para vs. Ento revelou-nos o mistrio de seu nascimento que at agora s meu

    pai conhecera. Quando o souberes compreenders at onde vo o sanguefrio e a moderao de um homem capaz de calar por seis anos um tal segredo sua mulher; mas este segredo nada para ele e pensa nele uit!) pouco para que faa um grande esforo calando-o

    No vos deterei, disse, nos acontecimentos de m inha vida, o que pode interessar-vos ,conhecer menos minhas aventuras do que meu carter. Elas so simples como ele e, sabendo bem o que sou, compreendereis facilmente o que pude fazer. Tenho naturalmente uma alma tranqila e o corao frio. Sou esse tipo de homem que se pensa injuriar dizendo que no sente nada, isto , que no tem nenhuma paixo que o impea de seguir o verdadeiro guia do homem. Pouco sensvel ao prazer e dor, sinto mesmo muito pouco esse sentimento de interesse e de humanidade que faz.cm

    as as afeies alheias. Se sofro ao vr sofrer as pessoas de bem, a pi ade no entra cm causa, pois no a tenho ao ver sofrer os maus. Meu

    42 5 " 'I l

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