rosto, uma verdade que me ultrapassa · 2012-02-16 · pelo narrador de “a hora da estrela” de...
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ROSTO, UMA VERDADE QUE ME ULTRAPASSA:
A im-possibilidade de tradução em “A hora da estrela” de Clarice Lispector1
Hadson José Gomes de Sousa
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[...] a cara – e quando se presta atenção espontânea e
virgem de imposições, quando se presta atenção a cara
[Rosto] [Grifo meu] diz quase tudo. Clarice Lispector
RESUMO
Tomando como pressuposto a acepção abrangente do termo tradução, engendrada por Roman
Jakobson et. al., propõe-se analisar e verificar, neste estudo, o processo tradutório logrado
pelo narrador de “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, ao contar a história da protagonista
da trama. Em consonância com leituras feitas a partir do ensaio Die Aufgabe des Übersetzers
(A tarefa do tradutor) de Walter Benjamin, depreende-se, também, a tradução como a im-
possibilidade de interpretar/compreender/revelar, não apenas na acepção que comporta o
sentido interlingual, mas, sobretudo, quando o inefável torna-se objeto do discurso do
tradutor. Na obra lispectoriana, a tentativa de discorrer (traduzir) o ideatum (ideia adequada)
de Rosto, ponto de partida para tessitura do texto, torna flagrante esta experiência. Para
Emmanuel Lèvinas o Rosto despido de sua forma habitual – elementos expressivos – é
significação em si. Portanto, descarta-se qualquer tentativa de intelecção, ontologismo:
tradução. Todavia, Rodrigo S.M. encube-se dessa tarefa penosa, utilizando uma escrita
fotográfica, quiçá como insight criativo, devido à in-traduzibilidade, para compor algo que lhe
ultrapassa – Macabéa enquanto Rosto. Portanto, tradução intersemiótica; nos moldes de Julio
Plaza: transmutação intersígnica.
Palavras-chave: A Hora da Estrela; Rosto; Tradução; In-Traduzibilidade; Transmutação
intersígnica.
Visada metafísica da tradução: Busca da verdade e/ou da pura linguagem
Suzana Kampeff Lages (2002), na obra “Walter Benjamin: Tradução e melancolia”,
analisa as leituras ((re)interpretações) feitas do ensaio basilar, Die Aufgabe des Übersetzers
(A tarefa do tradutor), concernente ao ofício do tradutor. Porquanto o ensaio benjaminiano
apresente a tradução no âmbito estrito do termo – relação interlingual – neste estudo far-se-á
uso do que autores como Jacques Derrida observam no ensaio: a tradução como revelação e
ao mesmo tempo im-possibilidade de revelar. Assim redimensionar-se-á a tradução
1 Trabalho apresentado no GT Nº 02 – "Audiovisual, literatura e discursos", durante o I CLIC: Culturas,
Linguagens e Interfaces Contemporâneas, realizado na Universidade Federal do Pará, de 27 a 30 de setembro de
2011. 2 Aluno do programa de pós-graduação (Strictu senso) – Linguagens e Saberes na/da Amazônia –
UFPA/Bragança. Esp. em Ensino-aprendizagem de Língua e Literaturas – UFPA/Capanema. Graduado em
Letras (Língua Portuguesa) UFPA/Capanema. [email protected].
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atribuindo-lhe sentido lato. Ao enfocar o modo como Derrida interpreta, lê o ensaio, Lages
(op. cit.) menciona que o filósofo francês faz um link com o mito bíblico da Torre de Babel: A
“perfomance babeliana” institui um vínculo, um compromisso com uma tradução que se
torna ao mesmo tempo lei e interdição, impossibilidade [Grifo meu], pois remete a uma
dívida que não pode ser quitada (p.180) (Grifo da autora).
O pseudo-autor/narrador da obra A Hora da Estrela3 (1977), último livro de Clarice
Lispector publicado em vida, Rodrigo S.M., enquadra-se neste panorama apresentado por
Lages. Diante da in-traduzibilidade do Rosto (infinito), o narrador sente-se na obrigação de
transpor para narrativa a simbolização do infinito, do Rosto: Macabéa – protagonista da
história. Esta tradução não pretende recuperar, cognoscitivamente, significados. Lages (2002)
reitera que O ensaio benjaminiano sobre a tradução constitui, assim, uma referência
fundamental para um tipo de reflexão que parte da aceitação da perda [...] e da
impossibilidade de se entender a tradução em termos de recuperação racional de significados
(p.169).
A concepção de infinito em Lèvinas denota uma relação de exterioridade com o
inapreensível, o infinito é alteridade inassimilável. O Rosto do Outro, que se manifesta
inacessível aos meus poderes de assimilação e redução, ultrapassa-me. Está tão distante de
Mim, que nem ao menos posso pensá-lo, pois outrem é mais do que eu posso pensar. Destarte,
fala-se em uma relação com o infinito, com o que Me transcende por ser inalcançável aos
Meus sentidos. Lages (Ibid.), congruente ao pensamento de Derrida, deslinda que esta [...]
dimensão do intocável, do intangível orienta o trabalho do tradutor [...] (p. 183).
Antoine Berman (apud LAGES 2002), por seu turno, aliando tradução e filosofia,
explicita no texto benjaminiano um liame entre o singular e o universal, entre o sensível
empírico e o não-sensível ideal; a tarefa de traduzir implica, nesses termos, um movimento
para além do ético – transcendência, visada metafísica – pois parte do plano sensível (finito)
para o supra-sensível (infinito). Ela consistiria em procurar [...] a pura linguagem [...]. Uma
tal visada – que nada tem a ver com a visada ética – é rigorosamente metafísica, na medida
em que, platonicamente, ela procura um além “verdadeiro” [...] (p. 164-165) (Grifo do
autor). Isso corrobora para que este autor abstraia do texto de Benjamin, uma
problematização em termos de tradução referente ao que demarca de essência platônica do
ensaio.
3 Doravante utilizar-se-á a sigla HE para todas as citações referentes à obra A Hora da Estrela.
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O narrador de HE intimado a traduzir, apesar de fazer uso da escrita, busca outra
forma de linguagem para revelar Macabéa ao leitor. No processo de simbolização da
protagonista, Rodrigo/Clarice utiliza uma linguagem que condensa signos verbais com signos
pictóricos. Diferentemente do que Roman Jakobson (1995) assinala de tradução inter-
semiótica ou transmutação, diálogo entre os signos; mais especificamente, a passagem do
signo linguístico para o não-linguístico.
Porém, à luz de Julio Plaza (2001), concernente ao que este autor vislumbra como
tradução intersemiótica, poder-se-á ratificar que Rodrigo S.M. traduz Macabéa com uma
descrição híbrida: escrita icônica. O autor/narrador/personagem/Clarice objetiva uma
transmutação intersígnica da nordestina, para torná-la visível ao leitor. Ele percorre, enfim,
um caminho da palavra à imagem; e ambas constroem uma espécie de caligrama. Entretanto
esta representação da personagem se dá num diálogo intersemiótico virtual, pois o narrador
dispõe apenas da escrita para tal; embora seu discurso aspire por um signo não-linguístico.
A Tradução Intersemiótica se pauta, então, pelo uso material dos suportes, cujas
qualidades e estruturas são os interpretantes dos signos que absorvem, servindo
como interfaces. Sendo assim, o operar tradutor, para nós, é mais do que a
“interpretação de signos lingüísticos por outros não-lingüísticos”. Nossa visão diz
mais respeito às transmutações intersígnicas do que exclusivamente à passagem de
signos lingüísticos para não-lingüísticos [...] (Id. op. cit., p. 67) (Grifos do autor).
Destarte, Rodrigo S.M. declara: Juro que este livro é feito sem palavras. É uma
fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta (HE, p. 21).
Consequentemente, o leitor é posto em contato com um silêncio inerente à linguagem não-
verbal. Todavia, é um silêncio ensurdecedor, questionador, como O Grito pintado de Edvard
Münch.
Plaza (2001) elucida que no processo de Transmutação negritam-se os liames entre
sentidos, meios e linguagens, acentuando-se aí um estranhamento entre esses aspectos. Os
meios, como instrumentos da tradução, emprestam as qualidades necessárias aos caracteres
dos signos, as suas aparências (p. 9). Então, consonante ao pensamento deste autor, traduzir é
fazer símiles e produzir metamorfoses – transplante de formas.
1. A perspectiva de Rosto no pensamento de Emmanuel Lèvinas
Nas reflexões de Emmanuel Lèvinas, o rosto recebe uma significação diferente da
concebida tradicionalmente pela filosofia. Há uma quebra com todo o modo de pensar
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ocidental, cristalizador da filosofia do eu, egologia, que resume basicamente toda a alteridade
à identidade cartesiana do Cogito – eu penso.
O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a idéia do Outro em mim,
chamamo-lo, de facto, rosto (LÈVINAS 1988a, p.37). Isso implica pensar o Outro além da
imagem plástica. Adentrar-lhe sem invadir-lhe, entretanto ser invadido por outrem e
responsabilizar-se por ele, é estar em contato com o infinito, transcendente, que é Rosto, que é
o Alter.
O rosto é a própria identidade de um ser. Ele se manifesta aí a partir dele mesmo,
sem conceito. A presença sensível deste casto pedaço de pele, com testa, nariz,
olhos, boca, não é signo que permita remontar ao significado, nem máscara que o dissimula. A presença sensível, aqui, se dessensibiliza para deixar surgir diretamente
aquele que não se refere senão a si, o idêntico (LÈVINAS 2004, p. 59).
A maneira como o Rosto levinasiano se apresenta rompe com qualquer
caracterização ontológica. Transcende sua significação no mundo – concepção de ser –
renunciando qualquer formatação estética, uma vez que a imagem, ao apresentar-se aos olhos,
pode ser apreendida como conteúdo, e assim, ser possuída pelo Mesmo como objeto, o que a
torna incapaz de expressar a significação do rosto.
E, diante do Rosto, Lèvinas defende uma relação não-totalizadora, neutralizando o
egoísmo do Ser. Instaura-se, portanto, a Distância. Este distanciamento dá-se graças à noção
de infinito apresentada pelo filósofo:
Na idéia do infinito e que, por isso, é a idéia de Deus, se produz, precisamente, a
afecção do finito pelo infinito, para além da simples negação de um pelo outro, para
além da pura contradição que os oporia e os separaria ou que exporia o outro à hegemonia do Uno entendido como um “Eu penso” (Id. Ibid., p. 278) (Grifos do
autor).
1.1. Rosto e Infinito
É no face a face com o rosto do Outro que o infinito manifesta-se, pondo a baixo
todas as intenções do Mesmo de abarcar seu conteúdo. Como esclarece Lèvinas, é na relação
com o infinito, transcendente, que se encontra a procura pela verdade. Não uma verdade una,
fundamentada, advinda da intelecção, mas uma verdade resultante do respeito pelo ser, eis o
sentido da verdade metafísica. Esta verdade é concebida na exterioridade, ou seja, na relação
entre seres independentes e separados que a buscam juntos sem violar a interioridade. Sem
que um reduza-se ao Outro.
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A busca da verdade metafísica requer mais que a relação de exterioridade com o
Outro. Exige um eu completo, despojado de toda e qualquer necessidade que resulte em
satisfação para si. Essa necessidade é ultrapassada pelo Desejo do Estrangeiro, daquele que é
distinto de Mim e impele-me a uma relação de recepção e respeito ao Rosto, lugar de
manifestação do infinito.
O infinito é próprio do ser transcendente enquanto transcendente, o infinito é o
absolutamente outro. Pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro, não é então
pensar um objeto. É pensar o que não tem os traços do objeto, na realidade é fazer
mais ou melhor do que pensar. O infinito no finito, o mais no menos que se realiza
pela idéia do Infinito, produz-se como Desejo (LÈVINAS 1988a, p. 23).
O infinito, que nos apresenta Lèvinas, não é algo que procede de Mim ou que pode
ser reduzido a Mim. A noção do infinito traduz-se no desejo do absolutamente outro.
Significa desejar, metafisicamente, aquilo que não posso ver, nem tocar, mas com o qual eu
mantenho relação. É desejar o que é incompreensível aos olhos do Mesmo, através de um
pensamento que transcende os limites do que é pensado a respeito de outrem, ser inatingível.
É invalidar definitivamente os poderes de anulação do Mesmo sobre o Outro. Portanto, na
relação do eu com outrem, enquanto Rosto, instaura-se a comunicabilidade – diálogo inter-
subjetivo.
Desejo do absolutamente outro, referido por Lèvinas, transcende as habituais
necessidades do homem: de fome e de sede, por exemplo, pois estas são saciáveis. Trata-se de
um Desejo sem satisfação, de uma relação de irreciprocidade, onde o ser Desejado não tem o
compromisso de suprir a vontade do Mesmo, pois a intensifica. Nesta relação de desigualdade
e desapego inexistem posse e objetivação, permitindo a abertura ao Outro e respeito a sua
alteridade.
O Outro manifesta através do rosto uma imagem dotada de significado próprio.
Prescinde de qualquer ajuda para se fazer significação. Ao apresentar-se, o rosto expressa-se
epifanicamente, ultrapassando sua representação plástica e toda forma de conceituação que o
Mesmo possa fazer dele. Esta [...] epifania do absolutamente outro é rosto em que o Outro me
interpela e me significa uma ordem, por sua nudez, por sua indigência. Sua presença é uma
intimação para responder (LÈVINAS 1993, p.53).
O Rosto de outrem, manifestação do infinito, de maneira alguma será compreendido
pela concepção ontológica. Na relação face a face, o infinitamente outrem não pode ser
incorporado à totalidade do eu, porque outrem não é propriedade Minha e nem faz parte do
Meu mundo, ele significa por si mesmo.
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Em sua nudez, o Rosto indica libertação de toda tentativa de aprisionamento, é [...]
despojamento sem nenhum ornamento cultural – uma absolução (absolution) –, um
desprendimento de sua forma no seio da produção da forma (Id. op. cit., p. 51). Daí significar
estranhamento, porque foge a toda compreensão do Outro. Ao mesmo tempo em que se
estabelece uma relação com aquele que possui miséria, pois desprovido de mundo suplica
acolhimento, estabelece-se, também, uma relação com o Altíssimo, aquele que é mais do que
eu. A linguagem do rosto, expressão, constituirá a ponte entre eu e outrem.
2. A linguagem do Rosto
Longe da concepção iconográfica de rosto que suscita no Outro um pré-conceito a
partir da superficialidade contida na expressão da imagem, quase sempre mascarada
(maquiada), o Rosto nas análises de Lèvinas apresenta-se como infinito no finito – o Outro em
Mim. Transcende, portanto, toda imagem capturada ou idealizada pela ótica do Mesmo;
minimizando o eu posso decorrente do eu penso. Pois, O visível forma uma totalidade ou
tende para ela (LÈVINAS 1988b, p. 380).
O rosto, contra a ontologia contemporânea, traz uma noção de verdade que não é o
desvendar de um neutro impessoal, mas uma expressão: o ente atravessa todos os invólucros e generalidades do ser, para expor na sua “forma” a totalidade do seu
“conteúdo”, para eliminar, no fim de contas, a distinção de forma e conteúdo (o que
se consegue por uma qualquer modificação do conhecimento que tematiza, mas
precisamente pela viragem da “tematização” em discurso) (LÈVINAS 1988a, p. 38)
(Grifos do autor).
O rosto revela-se na recusa de ser objeto, conteúdo, enquadrado pela visão que o
objetiva, torna-o [...] pensamento entendido como visão, conhecimento e intencionalidade, a
inteligibilidade significa, pois a redução do Outro ao Mesmo, a sincronia do ser na sua
reunião egológica (LÈVINAS 2004, p. 207). O ver na perspectiva levinasiana resulta em
ontologismos. O Rosto, logo, está fora do plano imagético, da plasticidade. Mesmo assim,
apresenta-se face a face na relação com o eu, exigindo uma resposta responsiva. Clama por
resposta, porque é questionamento. A linguagem é fundamentada com a presença de outrem –
o rosto como significação primeira no ser.
Para Lèvinas, a linguagem, discurso, neste âmbito, engendra a Metafísica da
Alteridade – relação entre eu e outrem. Relação com o infinito – transcendência. Descarta-se
nesta relação, qualquer possibilidade de totalização, relação pelo conhecimento – forma falsa
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(ontológica) de compreender o dito4, que não diz o dizer
5. Mas, é relação ética, do frente a
frente, apesar da distância possibilitada pela revelação do Rosto, pelo Desejo insaciável
suscitado, pelo agir moral do Mesmo (bondade) e pelo dizer imbricado no dito, discurso –
diálogo, que subsume todo egoísmo do eu: poder de reduzir o Outro ao Mesmo.
O discurso, pelo simples facto de manter a distância entre mim e outrem, a
separação radical que impede a reconstituição da totalidade e que é pretendida na
transcendência, não pode renunciar ao egoísmo da sua existência; mas o próprio
facto de se encontrar num discurso consiste em reconhecer a outrem um direito
sobre o egoísmo e assim em justificar-se (LÈVINAS 1988a, p. 27).
Compartilhar a linguagem pré-originária – dizer – demanda uma relação de inter-
subjetivos. A subjetividade, compreensão do ser, que o torna sujeito cognoscente, leva-o a ser
de outro modo. Enquanto que a inter-subjetividade, não aniquila a exterioridade, alteridade de
outrem, levando o eu a ser de outro-modo-que-ser – ser Para o outro. Daí, a inter-
subjetividade é relação do cara a cara um com o outro, responsabilidade de um para o outro
e substituição de um pelo outro: Justiça (COSTA 2000, p. 161). Enfim, o cerne do discurso
ético, oração, é priorizar o Outro ao invés do eu, relacionar-se com ele enquanto pessoa que
porta um Rosto invulnerável, uma identidade própria, livre de quaisquer amarras; portanto,
transcendente.
O rosto levinasiano não está definido por um conceito; visto que, se este autor o
tivesse conceituado tornaria seu discurso dúbio. Contudo, quando ele discorre acerca da
linguagem do rosto aproxima o leitor não da ideia, tentativa de conceptualização, sobretudo,
do Ideatum – a ideia adequada do que seria o rosto. A distância que separa ideatum e ideia
constitui aqui o conteúdo do próprio ideatum. O infinito é característica própria de um ser
transcendente, o infinito é o absolutamente outro (LÈVINAS Ibid., p. 36) (Grifos do autor).
As palavras de Levinas nos dão as razões da impropriedade, ou mesmo
impossibilidade [grifos meus], de tentar ousar uma explicitação do rosto. Se o rosto
ultrapassa a idéia que dele podemos ter, é porque ele a transcende, e a própria idéia ser incapaz de revelar aquilo que ele é o que, a rigor, não é um aquilo. Conforme a
fórmula de Levinas, o rosto simplesmente não é. Ele ultrapassa a idéia de ser, ou
seja, o rosto não tem a espessura de uma entidade ontológica, que pode ser referida
propriamente como um “isso” ou “aquilo” (SOUZA 2007, p. 137) (Grifos do autor).
4 O dito joga o jogo de linguagem de seu respectivo mundo (ontológico) e não pode mais que anunciar o sentido
e o significado possíveis de uma dada totalidade. Noutras palavras, o dito é limitado. 5 Anunciar no enunciado do dito mais do que nele se pode enunciar. Lèvinas designa esse plus, que é anunciado
no enunciado, como o dizer. Este é mais originário e anterior a todo dito. O dizer é uma expressibilidade pré-
originária anterior às línguas, à linguagem e a seus jogos.
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3. Tradução e os dualismos da escritura de Clarice Lispector
Analisar a novela A Hora da Estrela adotando como escopo os apontamentos
levinasianos acerca de Rosto e do caráter ambivalente da linguagem, inerente a todo processo
tradutório, clarifica os dualismos experimentados pelo narrador da obra clariceana. A
narrativa é, antes de tudo, um relato, um desabafo de Rodrigo S.M., que conta a história da
nordestina Macabéa na cruel sociedade do Rio de Janeiro, com fatos sem literatura,
traduzindo, desnudando, o real através de uma história verdadeira embora inventada. Esta
história, segundo o autor, acontece em estado de emergência e de calamidade pública e, exige
a participação dos leitores para continuá-la, pois Trata-se de livro inacabado, por ser um
questionamento, uma pergunta. Neste aspecto reside, outrossim, a denúncia social pretendida
pelo(a) autor(a).
Peter Burke (2009) vislumbra que A moral é que qualquer tradução deve ser
considerada menos uma solução definitiva para um problema do que um caótico meio-termo,
envolvendo perdas ou renúncias e deixando o caminho aberto para uma renegociação (p.15).
Na árdua tarefa de traduzir (ou (re)interpretar) Macabéa ao leitor, o autor-narrador-
personagem/Clarice descreve a existência impessoal da protagonista, visto que a relação com
o Outro (enquanto Rosto) é sensibilidade – Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos –
sou eu que escrevo o que estou escrevendo (HE, p. 11). Burke (2009), ao discorrer sobre as
consequências da tradução, clarifica que, análoga a outras formas de fala e escrita, o processo
tradutório é considerado um tipo de ação.
Ademias pode-se dizer que a escrita do narrador é uma crítica, a partir da Metafísica
da Alteridade, um questionamento, uma pergunta: Enquanto eu tiver perguntas e não houver
resposta continuarei a escrever (HE, p. 11). E escreve com simplicidade sobre algo que o(a)
transcende, ultrapassa – Vejo que escrevo aquém e além de mim; por isso, a narrativa
(Macabéa) não decorre da intelecção, compreensão, de ontologismos. É, antes de tudo,
revelação. Rodrigo S. M., com esta declaração, negrita um distanciamento com relação à
Macabéa.
A Metafísica na ótica levinasiana concebe a alteridade de outrem desvinculada de
qualquer tentativa de intelecção ou imperialismo do Mesmo. Assim, ela é anterior a qualquer
ação do eu. Contudo, é na relação do eu com o Outro, o absolutamente Outro, em que ambos
estão separados e impossibilitados de possuir ou objetivar um ao outro, que a exterioridade
(Distância) se apresenta. Esta relação é estabelecida por meio da linguagem e da expressão e,
cada um permanece em si, separado, distante, porém frente a frente.
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A linguagem desempenha de facto uma relação de tal maneira que os termos não são
limítrofes nessa relação, que o Outro, apesar da relação com o Mesmo, permanece
transcendente ao Mesmo. A relação do Mesmo com o Outro – ou metafísica –
processa-se originalmente como discurso em que o Mesmo, recolhido na sua
ipseidade de “eu” – de ente particular único e autóctone – sai de si (LÈVINAS
1988a., p. 27) (Grifo do autor).
Destarte, ao declarar que escreve além e aquém, o narrador demarca o processo
tradutório logrado por ele. Pode-se equiparar tal empreitada às im-possibilidades de leitura e
(re)interpretação, possíveis numa abordagem/concepção pós-estruturalista de tradução
cultural – esta vertente flexibiliza o termo tradução para uma acepção bem mais ampla (que
extrapola o diálogo interlingual). Burke (2009) considera o entendimento, as tentativas de
revelação e apresentação, como uma espécie de tradução. Rodrigo S.M./Clarice, consoante
aos apontamentos deste autor, apesar da limitação, pois utiliza a escrita para representar,
traduz Macabéa, revela-a aos leitores.
Costa (2000), tradutor de Lèvinas, vislumbra que A intenção Crítica da metafísica a
situa para além (excedência) ou aquém (originalidade) da ontologia e da inteligibilidade
como “logos” violentadores (p. 121) (Grifos do autor) (Grifos meus). Assim, Lispector com
esta escrita abre-se e, na abertura, contata com uma verdade outra, alheia – quando escrevo
não minto. Escreve sobre o Outro que, na Metafísica da Alteridade, antecede e excede o ser
(si-mesmo).
Certamente, as palavras são mentirosas, produto da história, da sociedade, do
inconsciente; elas dissimulam a mentira a todos e ao próprio mentiroso – e é-se
irremediavelmente enganado quando, em um pensamento expresso, não se buscam
as segundas intenções, quando se toma ao pé da letra o que nos é dito – mas a gente
não se encontra em toda esta fantasmagoria, não se inaugura a própria obra da crítica
senão a partir de um ponto fixo. Esta não pode ser uma verdade incontestável
qualquer, um enunciado “certo” [...], mas o absoluto de um interlocutor, de um ser, e
não de uma verdade relativa a seres (LÈVINAS 2004, p. 57-58) (Grifo do autor).
O autor/Clarice ratifica que quando escreve não mente, pois almeja explicitar ao
leitor o intuito do relato impiedoso para fazer entender o dizer, o que está por trás do discurso,
pelo dito; a crítica à insensibilidade esmagadora do próximo, à inocência pisada: [...] esta
história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto
que ultrapassa palavras e frases (HE, p.14). Apesar de trair seu pensamento, pois o dito
atraiçoa o dizer, tenta traduzir o intraduzível objetivando concretizar a denúncia social. Nesta
acepção a tradução é entendida como traição.
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Contudo, um desejo sem satisfação, congruente ao Desejo metafísico, conduz o
autor-narrador-personagem/Clarice a transpor para narrativa o dizer, pensamento. Lèvinas
considera a tradução do pensamento uma autotraição; empreende traduzir o que não é passível
de tradução. Em HE, narrar o inefável. Há em Clarice Lispector uma retórica cuja matéria
prima é o silêncio, onde o que lhe interessa é o não dito, o sentido que pulsa em cada coisa,
mas que não foi ainda auscultado pelo senso comum (LIMA 2003, p. 3). Clarice Lispector
diante da interpelação do Rosto da nordestina consegue ir além, contata com uma verdade que
a ultrapassa.
A exposição do rosto da nordestina despertou em Clarice uma perturbação, um
irrefreável Desejo de tentar relatar o irrelatável, de amplificar, mesmo que ontologicamente
(como explicitado acima), aquele clamor por justiça: O que escrevo é mais do que invenção, é
minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. É dever meu, nem que seja de
pouca arte, o de revelar-lhe a vida (HE, p. 27). Uma vez intimada pelo Rosto, que reclama
obrigação, Clarice respondeu ao apelo, à miséria essencial, através do recurso que dispunha: a
escrita; embora consciente que esta não modificaria a realidade, no entanto, porventura a
tornaria visível: E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa
(HE, p. 17).
Mas, temia que com seu intento de personificar a nordestina e sua vida massacrante,
a partir da manifestação de um Rosto nu, estivesse profanando o mistério do Outro, daí a
reflexão de Rodrigo S.M./Clarice: Será que entrando na semente de sua vida estarei como
que violando o segredo dos faraós? Terei castigo de morte por falar de uma vida que contém
como todas um segredo inviolável? (HE, p. 39).
A obra é permeada por reflexões, o autor-narrador Rodrigo S.M/Clarice, por vezes
demonstra um sentimento dual em relação à nordestina. Primeiro a deprecia, revelando uma
extrema insatisfação pelo existir de Macabéa: Estou com raiva. Uma cólera de derrubar
copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? [...] Por que ela não reage? Cadê um
pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente (HE, p. 26). Logo depois, padece-se de sua
personagem, demonstrando uma espécie de paixão/compaixão, contradizendo, assim, o relato
que deseja frio: Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela (HE, p. 27).
Para Lèvinas é o Rosto, em sua miséria, que suscita tal atitude ambígua: O rosto está
exposto, ameaçado, como se nos convidasse a um acto de violência. Ao mesmo tempo, o rosto
é o que nos proíbe de matar (LÈVINAS 1988b, p. 78). De Man (apud LAGES 2002) detecta
um ponto fulcral no ofício do tradutor: a idéia da morte como horizonte inelutável e definitivo
de qualquer processo de significação (p. 174).
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Rodrigo/Clarice anuncia a morte, em HE, como o seu personagem predileto. A morte
tem um papel essencial na narrativa, pois é com ela que a denúncia concretiza-se e, Macabéa
fica [...] enfim livre de si e de nós (HE, p. 86). A morte significa, na obra, a libertação de uma
existência acorrentada ao ser, reduzida ao Mesmo e pelo Mesmo, que nem o próprio
autor/escritor(a), por mais desejoso que estivesse de fazer algo, poderia interceder: Desculpai-
me esta morte. É que não pude evitá-la [...] (HE, p. 86). A morte nesta história é a ruptura
com a totalidade; Macabéa transfigura-se, passa do finito (totalidade) para o infinito
(transcendência); liberta-se de suas limitações.
O ser de cada ente humano não é para a morte, entendida como o instante final e
como o último “confronto com o ser”. Com a morte do ente humano termina seu
tempo e se dissolve seu mundo e seu ser. Ao finalizar-se, o ente humano cumpriu
em sua morte a totalidade de seu ser (COSTA 2000, p. 99) (Grifo do autor).
O personagem favorito, a morte, é responsável pela redenção da personagem
penitente, a evasão de sua existência maculada. Macabéa transcende a finitude do seu ser,
impossibilidade de ser, para transformar-se em infinito – A morte que é nesta história o meu
personagem predileto. Iria ela dar adeus a si mesma? Acho que ela não vai morrer porque
tem tanta vontade de viver (HE, p. 84).
Com a morte o narrador-personagem diviniza a moça; ela ganha Altura, pela
primeira vez está acima na relação, o que Lèvinas denomina de dessimetria do interpessoal.
Outrem, nestes termos, convoca o Eu a relacionar-se eticamente, a responsabilizar-se. A
morte, de fato, é vida, epifania: para o filósofo lituano este vocábulo denota a revelação de
outrem enquanto Rosto incorruptível. Com a morte, que de fato é vida – a vida come a vida –
recomeço, o narrador revela, traduz Macabéa. Ela ganha alteridade, exterioridade.
4. Rosto e in-traduzibilidade
É em torno do Rosto que se desencadeia a trama da novela clariceana. O autor
Rodrigo S.M/Clarice apresenta a personagem Macabéa do ponto de vista ontológico, expondo
o modo como o mundo ocidental vê o Outro, o Estranho, reduzindo-o ao Mesmo. Sua
denúncia parte de uma verdade nua e crua, de uma realidade transformada em ficção, para ir
além da essência do ser, [...] ultrapassando a idéia do Outro em mim [...] (LÈVINAS 1988a,
p.37).
Em Lèvinas o Rosto é manifestação, epifanicamente revela-se a Mim, desnudando
seu sentido, sem necessitar de Mim para se fazer significado. Clarice Lispector, antes de
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iniciar a construção de sua obra HE, recebe a visitação do Rosto, que a impele a escrever. O
Rosto revelou-se à escritora em meio à multidão, como ela mesma relatou em entrevista ao
jornalista Júlio Lerner: [...] no Rio de Janeiro tem uma feira dos nordestinos no Campo de
São Cristóvão e uma vez eu fui lá. Daí começou a nascer a idéia. Segundo a amiga Olga
Borelli (apud GUIDIN 1994, p. 85-86), nesse dia Lispector iniciou suas anotações sobre
Macabéa e Aos poucos, ela foi tomando vulto e se impondo.
Na obra, o narrador/escritor(a) explica, exatamente, como o Rosto apresentou-se a
ele(a): [...] numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance um sentimento de perdição
no rosto de uma moça nordestina (HE, p. 26). O Rosto da moça, despido de sua forma
habitual – elementos expressivos – revelou-se a Rodrigo S.M., invocando-o e, este o acolheu
tomando para si a responsabilidade de gritar por ela, ou seja, pelo Outro. A nudez do Rosto
expressa pobreza, indigência, abandono, o próximo exige respeito e resposta a sua súplica –
mandamento – que destrói qualquer esforço da consciência de abarcá-lo, de transformá-lo em
conteúdo, pois a presença do Rosto desordena a intencionalidade que o visa: [...] o que
escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes. Pois o
que estarei dizendo será apenas nu (HE, p. 16).
O Outro que está diante de mim não está incluído na totalidade do ser expresso. Ele
ressurge por detrás de toda reunião do ser, como aquele para quem eu exprimo isto
que exprimo. Eu me reencontro diante do Outro. Ele não é nem uma significação
cultural, nem um simples dado. Ele é primordialmente sentido, pois ele o confere à
própria expressão, e é por ele somente que um fenômeno como o da significação se introduz, de per si, no ser (LÈVINAS 1993, p. 50).
O apelo do Outro promove a abertura de uma nova dimensão, que surge na
sensibilidade do rosto, ultrapassando toda forma plástica, toda imagem construída a partir da
visão: Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência a barreira do som. Para as
pessoas outras ela não existia (HE, p. 63). Ao receber a visitação do Rosto, Rodrigo
S.M./Clarice vai além da impressão visual, excede os limites do olhar de conhecimento,
percepção, pois o Rosto é significação primeira no ser. Visualizar um Rosto e ter a
possibilidade de descrevê-lo, enquanto traços físicos: boca, nariz, olhos, torna-se inevitável
transformá-lo em objeto, em uma coisa passível de possessão. O narrador/escritor(a) sentiu a
presença do Rosto e o quis mostrar ao leitor, mesmo sendo irredutível ao olhar: Cuidai dela
porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua (HE, p. 19).
A relação mantida entre a escritora e o Rosto, é de início, estritamente social, ou seja,
é num primeiro momento, ética. Ao transpor para o livro a história verdadeira, ela objetiva
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figurar o infinito no finito, na tentativa de traduzir o Rosto do Outro. Trai, portanto, a ética (da
alteridade) por motivo grave de “força maior”, delata a cultura egológica; a cegueira social
do Eu. Como intui Lèvinas: a exigência ética não é uma necessidade ontológica (LÈVINAS
1988b, p. 79).
Se a ética (numa acepção levinasiana), obviamente, não faz parte do mundo
ontológico e, Clarice agiu eticamente, ao escrever sobre a nordestina, responsabilizando-se
pelo Outro, neutraliza-se, então, o estereótipo de escritora alienada e ontológica que lhe
atribuiu a crítica literária, pelo menos no que diz respeito à HE. A narrativa, pois, revela outra
faceta da autora: sua escrita emerge para a exterioridade – Escrevo neste instante com algum
prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita (HE, p. 12) –
busca o Outro, mesmo reduzindo o Rosto a sua simples representação. Lages (2002), à voz de
Berman, intitula esta atitude de ética do traduzir, visto que almeja afirmar e defender uma
“pura visada da tradução enquanto tal” (p. 164) (Grifo da autora).
Burke (2009) ao discutir outra possibilidade da tradução, como troca intercultural,
discorre acerca de um duplo processo de descontextualização e recontextualização, que busca
primeiro apropriar-se de algo Estranho e em seguida o domestica. Na tentativa de igualar-se,
de certa forma, à moça Rodrigo/Clarice renuncia a privilégios que Macabéa nem sonhava ter,
tudo isso para imergir no mundo da imigrante. O narrador passa por um processo de
descontextualização e recontextualização para pôr-se no nível da nordestina.
O narrado/escritor(a) explica:
É que de repente o figurativo me fascinou: crio a ação humana e estremeço. [...] Para
desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que me
alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado [...] (HE, p. 22).
Assim como:
[...] tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir
pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da nordestina (HE, p. 34).
Lèvinas diz que no acolhimento do Rosto estabelece-se a igualdade entre o Mesmo e
o Outro, porque o Outro comanda o Mesmo e se lhe revela na responsabilidade (LÈVINAS
1988a, p. 192). Como o Rosto é ordem, impõe-se ao narrador/escritor(a): Ela forçou de dentro
de mim a sua existência (HE, p. 29-30).
5. Macabéa: desdobramentos para traduzir o inefável...
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O linguista Roman Jakobson (1995) deslinda que em todo processo de simbolização,
entenda-se, também, tradutório, subjetivo ou social, há uma espécie de competição entre dois
procedimentos os quais denomina: Pólo Metonímico e Pólo Metafórico. Em HE o narrador,
por opção (ou por desdobramento), ancora seu discurso, tece a representação da protagonista,
por meio de similitudes. As similitudes utilizadas por Rodrigo lhe permitem uma cosmografia
analógica para a construção da personagem. Jakobson (Ibid.) pondera: [...] o distúrbio da
similaridade se liga à tendência para a metonímia [...] (p. 60). O narrador no início da
narrativa, ao travar um diálogo direto com o leitor, apresenta vários recortes do que irá
discorrer. Ele esclarece:
[...] esta história será o resultado de uma visão gradual – há dois anos e meio venho
aos poucos descobrindo os porquês. É visão da iminência de. De quê? Quem sabe se
mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só
não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a
vida – porque preciso registrar os fatos antecedentes (HE, p. 11).
Rodrigo S.M./Clarice a despeito de ser conhecedor da história num plano ontológico,
entretanto caminha gradativamente, montando o grande quebra-cabeça: Macabéa – E esta é
também a minha mais primeira condição: a de caminhar paulatinamente apesar da
impaciência que tenho em relação a essa moça (HE, p. 15). Jakobson (1995) esclarece,
quanto à predominância ou escolha de um dos pólos, que este fato não é exclusivo da
linguagem verbal. Daí, o autor(a) cataloga fatos e informações, no início da narrativa, com o
intuito de orientar sua escrita e o leitor. Experimenta outras formas de linguagem e, localiza a
narrativa fora do contexto verbal. Realça a relação da palavra com outras linguagens: de modo
flagrante com a pintura. Ele externa que
As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais,
estalactites, renda, música transfigurada de órgão. Mal ouso clamar palavras a essa
rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor.
Alegro com brio. Tentarei tirar ouro do carvão. Sei que estou adiando a história e
que brinco de bola sem bola. O fato é um ato? Juro que este livro é feito sem
palavras (HE, p.15-16).
Dessa forma, no processo tradutório de Macabéa para a narrativa, Rodrigo S.M. faz
uso de um jogo intersígnico, intersemiótico. Este insight do autor(a) ocasionará um “efeito
Moebius”6, uma transmutação virtual. Ele direciona o leitor para um plano que extrapola a
palavra – o texto se faz imagem virtual; não há definição de limites, como é dado às coisas no
6 Expressão utilizada por Pierre Lévy no texto “O que é o virtual?”.
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real. Plaza (2001) esclarece que (...) A transmutação comporta pensamento analógico,
interrelação dos sentidos e transplante de formas (p. 9). O narrador utiliza este subterfúgio
como desdobramento. Quiçá, por ter plena convicção que os fragmentos, os fatos costurados,
jamais comporão Macabéa enquanto Rosto. De Man (in LAGES 2002), ao analisar a imagem
da ânfora (vaso) quebrada, no ensaio benjaminiano, constata que a tarefa do tradutor é unir os
excertos, metonimicamente, sem, contudo, objetivar constituir uma totalidade.
Rodrigo S.M., no processo de simbolização da nordestina, constrói a narrativa
alinearmente (o que reforça os excertos), reside, portanto, no pólo metonímico da linguagem.
E no momento em que as sinédoques comporiam o mosaico do Rosto da protagonista, o
espelho não emula Macabéa; depois, lhe furta o reflexo. Projeta, a posteriori, uma reprodução
antropofágica, distorcida, fragmentária, distante da duplicação do semelhante. Nem mesmo o
espelho, lugar do reflexo, reproduz, por assinalação, a secreta e essencial semelhança.
Depois de receber o aviso [prévio] [Grifo meu] foi ao banheiro para ficar sozinha
porque estava toda atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a
pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida.
Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira
por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara todo deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um
palhaço de nariz de papelão (HE, p. 25).
O autor(a), conquanto faça uso de uma linguagem verbal, almeja compor um quadro
- Escrevo em traços vivos e ríspidos de pintura (HE, p. 17). Essa linguagem icônica corrobora
a intenção do autor(a) de narrar o não-dito, trazer para superfície do texto o que só tem
sentido no mundo extratexto, anunciar pelo dito – narrativa – o mistério, verdade que há no
prenúncio – dizer. Daí, para encaminhar o leitor à realidade, ele apresenta, criativamente, um
livro feito sem palavras, uma narrativa pictórica, uma fotografia muda – Se estou demorando
um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários
retratos dessa alagoana (HE, p. 39). Plaza (2001) menciona que a tradução enquanto prática
criativa está subjugada às (...) qualidades criativas e repertoriais do tradutor, do seu insight
(...) (p.14). O tradutor, neste contexto, desvencilha-se de normas e teorias, previamente
concebidas, para traduzir.
Dessa forma, o narrador/Clarice ratifica que a obra é feita sem palavras, é uma
fotografia muda. Talvez, devido à Separação (distância), própria da relação de um Eu com
Outrem, que impede toda tentativa de significação, objetivação – relação intersubjetiva,
portanto. A Separação para Lèvinas implica a Idéia de Infinito, ou seja, a im-possibilidade de
16
tradução. Para Burke (2009), apesar de enfocar o distanciamento no contexto do
relacionamento interlingual, a distância é um dos entraves da tradução.
A narrativa clariceana é um grande mosaico, fatos costurados constroem a imagem
(fotografia) da nordestina e o “retrato falado”, embora escrito, da insensibilidade e indiferença
da cultura egológica ocidental, de redução do Outro ao Mesmo. E com este intuito, o narrador
empreende a denúncia social e, Se há veracidade nela – é claro que a história é verdadeira
embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo [...] (HE, p.12). O leitor, desta
perspectiva, torna-se, por livre e espontânea imposição, coautor. Ele é fotógrafo e fotografado,
está inserido no cenário que compõe a fotografia muda – o livro HE. Ele é posto em contato
com um silêncio inerente à linguagem não-verbal. Todavia, é um silêncio ensurdecedor,
questionador, como O Grito pintado de Edvard Münch.
Em Clarice [...] o silêncio vai desempenhar funções mais penetrantes: abertura maior
de reflexão também para o leitor, sua presença geralmente vem precedida de
imagens semelhantes às que se conhecem, às vezes tão semelhantes ou definidoras
de algo, que o silêncio que as segue vai permitir ao leitor uma libertação mais ampla
e subjetiva, para que, nesse silêncio a sua imagem específica se forme enquanto
impulso de uma reflexão associada ao mundo que o envolve. Assim, a seqüência “uso de palavras – livro sem palavra – fotografia muda – silêncio” (HE, p.21). Não
só faz apelo a uma só forma de linguagem, como também pode levar o leitor a um
reposicionamento diante de um fato social que as palavras e sua ausência denunciam
em A Hora da Estrela [...] (NOVELLO 1987, p. 73) (Grifos do autor).
Porquanto, o leitor/coautor, se sensibilizado, poderá trilhar o caminho inverso
percorrido pelo autor na tessitura do texto. Sairá da realidade ficcional, HE, que é um excerto
da realidade, para vislumbrar, assim, o mundo real. Em suma, fascinado pelo [...] figurativo
assim como um pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o fazia por gosto,
e não por não saber desenhar [...] (HE, p. 22), o narrador a partir de palavras pintadas
compõe a fotografia muda, questiona, tenta tornar visível o que não é invisível, a verdade que
ninguém quer enxergar, a realidade nossa.
De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a
criação de uma pessoa que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela porque meu
poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa
da esvoaçada magreza (HE p. 19).
6. Como se se pudesse concluir
Relacionar os apontamentos levinasianos acerca do ideatum de Rosto e o que o
filósofo lituano discorre quanto à im-possibilidade de traduzi-lo, de torná-lo objeto de
compreensão, com as novas concepções de tradução (sem descartar o sentido estrito desse
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termo), introduzidas por Roman Jakobson e amplificadas por Julio Plaza, foi o intuito
principal deste trabalho. A obra A Hora da Estrela de Clarice Lispector, serviu de local de
constatação fenomenológica e empírica dessa empreitada. Nesta obra o narrador experimenta
as desventuras da tradução e, como desdobramento, ou por criatividade, logra uma
transposição intersemiótica da protagonista da história.
Dispondo apenas da escrita, Rodrigo figura Macabéa, a torna visível ao leitor. Para
tal, transforma as palavras em pinceladas, compõe a imagem da nordestina. Portanto, para
usar a voz de Plaza (2001), a narrativa é uma transmutação intersígnica. Foucault (2000), no
texto A palavra e as coisas, clarifica o liame infinito da linguagem (palavra) com a pintura.
Ele empreende que ambas
São irredutíveis uma ao outro [sic]: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não
se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por
imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que
os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem (p.12).
Por este motivo ele experimenta os impasses da im-possibilidade de traduzir
Macabéa, visto que o Rosto, como explica Lèvinas, excede a imagem plástica, não é passível
de descrição/significação. É sentido em si. O narrador defronta-se com o infinito, com aquilo
que ele não pode alcançar. Todavia, atendendo ao apelo irrecusável suscitado pelo Rosto –
ponto de partida para construção da narrativa – faz uma tradução/descrição icônica virtual;
transcende, assim, a finitude da representação. Funde o infinito no finito.
7. Obras referenciadas
BURKE, Peter & HSIA, R. Po‐Chia (orgs.). A tradução cultural nos primórdios da
Europa moderna. Tradução de Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Editora da UNESP,
2009. Título original: Cultural Translation in Early Modern Europe.
COSTA, Márcio Luis. Lévinas – Uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000.
FOULCALT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8° ed.
Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de leitura: A hora da estrela, de Clarice Lispector. São
Paulo: Editora Ática, 1994.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. 20ª Ed. Tradução de Izidoro Blikstein e
José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1995.
18
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2002.
LENER, Jaime. 1992. A última entrevista de Clarice Lispector. Revista Shalom, n. 296.
Disponível em <http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/claricelispector.htm>. Acessado em
10 de nov. de 2009.
LÈVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70,
1988a.
__________. Ética e Infinito. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1988b.
__________. Humanismo do Outro Homem. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
__________. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino S. Pivatto et al.
Petrópolis: Vozes, 2004.
LIMA, José Batista de. Clarice Lispector: Epifania ou transfiguração? Rev. Humanidades,
Fortaleza, v. 18, n. 1, p. 7-4, jan./jun. 2003.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NOVELLO, Nicolino. O Ato Criador de Clarice Lispector. Rio de Janeiro:
Presença/Minc/Pró-Memória/INL, 1987.
PLAZA, Júlio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001.
SOUZA, José Tadeu Batista de. Ética como metafísica da alteridade em Levinas: 2007.
197f. Dissertação (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.