rossel-wood, anthony. centros e periferias no mundo luso-brasileiro,1500-1808

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    Revista Brasileira de HistriaOn-line version ISSN 1806-9347

    Rev. bras. Hist. vol. 18 n. 36 So Paulo 1998http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881998000200010

    Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro,1500-1808 *

    A. J. R. Russel-Wood The Johns Hopkins University

    Traduo de Maria de Ftima Silva Gouva **Universidade Federal Fluminense

    Resumo

    Este estudo representa a aplicao do modelo centro-periferia no contexto doBrasil colonial em dois nveis: metrpole-colnia e intracol-nia. Examina asdimenses polticas, administrativas, sociais, econmicas e culturais nestadinmica. O autor esclarece a maneira em que o princpio mercantilista e ahegemonia metropolitana sofreram uma progressiva eroso por causa deuma descentralizao sistmica, e a aplicao de uma prtica da "autoridadenegociada". Conclui que a histria do Brasil colonial representa umatrajetria em direo a uma crescente autonomia, que se retro-alimenta, se expande e corrobora para a criao deuma identidade que se pode chamar de brasileira. Palavras-chave: Luso-Brasileiro; Centro; Periferia; Identidade.

    Abstract

    This study applies the paradigm of center _ periphery relations in the context of colonial Brazil at two levels: first,metropolis _ colony; secondly, intracolonial. The author examines political, social, administrative, economic andcultural dimensions to what was a dynamic. The author demonstrates how metropolitan hegemony and themercantilist principle were progressively undermined by systemic descentralization and the practice of negotiatedauthority. He concludes that the history of Colonial Brazil is a trajectory toward increasing autonomy, self reliance,and creation of self identification with Brazil. Key words: Luso-Brazilian; Center; Periphery.

    As notcias acerca da chegada da frota de Pedro lvares Cabral costa do Brasil em 1500 no tiveram granderessonncia nas ruas de Lisboa ou na corte real. Sintomtico dessa indiferena foi a deciso rgia (1502) emarrendar o contrato de corte do pau-brasil (o nico recurso material perceptvel para alm dos papagaios emacacos) e o fato de que os contratantes deveriam ser cristos-novos, um grupo j ento marginalizado nasociedade portuguesa. Foi apenas frente ameaa de ocupao francesa que D. Joo III se sentiu estimulado aestabelecer uma presena formal dos portugueses no Novo Mundo. Isto ocorreu em 1532, com a introduo noBrasil de um recurso administrativo praticado na Madeira e nos Aores no sculo XV e estendido at Cabo Verde: osistema de donatrias1. Para alm desta experincia insular, no havia nenhum outro precedente ou poltica decolonizao da frica ou do Estado da ndia, alm da defesa de determinadas reas essenciais para o comrcio. No

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  • Brasil a Coroa preservou sua suserania, embora concedesse amplos poderes a indivduos em troca de seu empenhoem assumirem responsabilidades especficas. A baixa capitalizao e a assistncia inadequada do Errio Rgio,associadas presena dos ndios hostis, aparente ausncia de riquezas minerais e de potencial comercial, nofaziam do Brasil uma proposio atraente. Somente em 1549 foi ali estabelecido o governo da Coroa. Entretanto,na metade do sculo seguinte, o Brasil permaneceria perifrico s atenes reais. O fato dele ter atrado asconsideraes rgias no sculo XVII pode ser atribudo aos sinais de eroso naquilo que at ento havia seconstitudo na urea indelvel de riquezas cercando a ndia portuguesa, e ao perigo resultante da presenaholandesa no nordeste brasileiro, assim como aos mritos intrnsecos prpria colnia. A descoberta do ouro dealuvio na dcada de 1690, seguida das corridas de ouro e da chegada do metal em grandes quantidades emLisboa, possibilitaram a D. Joo V realizar suas ambies absolutistas, rivalizando com Lus XIV. Da mesma forma,a descoberta dos diamantes na dcada de 1720 fez do Brasil o cenrio central para o rei. A mudana de periferiapara centro, j manifestada em termos econmicos, ganhou reconhecimento poltico com a chegada da famlia realao Brasil em 1808. A localizao de uma corte real na Amrica no era exclusividade sua (confrontar com aexperincia de Maximiliano, imperador do Mxico, 1864-67, cuja ascenso e queda envolvera outro Napoleo).Entretanto, o Brasil apresentava uma situao singular em dois aspectos: tal mudana havia sido aventada ediscutida sculos antes, e a colnia tornara-se hospedeira de uma corte real que, transferida para o Novo, eraproveniente do Velho Mundo.

    Aquilo que se constitui como um "centro" e uma "periferia" algo subjetivo, dependendo da perspectiva daqueleque realiza tal aferio. Alm disso, a paralaxe - a aparente mudana na posio daquilo que constitui o centro e aperiferia resultante da mudana de posio do observador - seja em termos espaciais ou cronolgicos, seja emtermos das circunstncias sociais e financeiras, demanda que os parmetros e as limitaes do presente estudosejam claramente indicados. Este ensaio examinar as relaes centro-periferia atravs de dois nveis. Primeiro,tomando Portugal como centro e o Brasil como periferia, sero discutidas as polticas e atitudes metropolitanas emrelao colnia, bem como a dinmica deste relacionamento entre 1500 e 1822. O termo "metropolitano" abarcao rei, os ministros, os conselhos de Estado, e os interesses de Lisboa que - em termos polticos, demogrficos,sociais, comerciais, e enquanto um grande ncleo urbano - eram preeminentes no perodo considerado. A questorelativa possibilidade dos interesses lisboetas representarem aqueles de Portugal como um todo encontra-se paraalm do objetivo desse trabalho. Ela fornecer entretanto o contexto para que na segunda parte desse estudo sepossa examinar trs facetas das relaes centro-periferia no Brasil: colonizao, administrao e comrcio.

    Centro-Periferia: Portugal e Brasil

    Que o Brasil era perifrico nos interesses metropolitanos durante o sculo XVI um dado que nunca foiquestionado. Ao longo do sculo XVII, reconhecia-se na metrpole a sua posio crtica em relao ao bem-estareconmico da me-ptria. No sculo XVIII, a dependncia para com o Brasil no que diz respeito sobrevivnciaeconmica de Portugal era indubitvel. Com justificativas abundantes, um oficial do governo referiu-se ao Brasilcomo a jia mais preciosa da Coroa real. Surpreendentemente, esta centralidade em relao aos interessesnacionais portugueses era reconhecida apenas com m vontade. Ainda mais surpreendente era o fato de que aCoroa e os oficiais metropolitanos permaneciam decidida e resolutamente inflexveis em algumas de suas atitudese polticas em relao colnia. Meu objetivo examinar a rigidez de tais polticas e atitudes, e ento considerarcomo, no obstante a centralizao, as leis reais e as determinaes dos conselhos, havia espao para flexibilidadee negociao.

    As polticas aplicveis ao Brasil eram concebidas e formuladas em Lisboa. Enquanto portugueses com experinciano Brasil serviam no Conselho Ultramarino - o principal rgo de formulao das polticas para os assuntosconcernentes ao ultramar - e em outros conselhos de Estado em Lisboa, raramente um indivduo nascido no Brasilera nomeado para tais conselhos. Alexandre de Gusmo (1695-1753) foi indiscutivelmente o brasileiro (nascido emSantos) mais ilustre a ganhar o reconhecimento rgio como um homem de Estado, ento secretrio privado de D.Joo V, diplomata e arquiteto do Tratado de Madri. Mesmo assim, foi esquecido por D. Jos I para ocupar o cargode Secretrio de Estado, e suas idias sobre o Brasil, que prevaleceram no conjunto dos anos 50, foram ignoradaspelo Marqus de Pombal2. As decises metropolitanas no eram o resultado da extensa troca e correspondncia,nem mesmo com os representantes da Coroa na colnia, muito menos de uma ampla consulta aos colonos. Aquiuma distino pode ser tecida entre Amrica e ndia portuguesas. Enquanto apenas no sculo XVIII tornara-selugar comum a outorga do ttulo de vice-rei ao mais importante representante da Coroa no Brasil, o mesmo jvinha sendo praticado na ndia desde o sculo XVI. Alm disso, os vice-reis da ndia exerciam uma maiorautoridade do que aquela conferida aos governadores-gerais e vice-reis no Brasil, cuja autoridade na prtica estavarestrita aos limites da capitania-geral na qual residiam. Em ambos os hemisfrios havia fruns para os vice-reis egovernadores-gerais realizarem consultas de forma mais ampla, mas esta prtica parece ter predominado em Goa,comparativamente a Salvador ou ao Rio de Janeiro3.

    primeira vista, a administrao do Imprio portugus aparenta ser altamente centralizada e hegemnica. Aautoridade absoluta era centralizada na pessoa do monarca. As decises finais sobre nomeaes (civil, eclesisticae militar) eram tomadas em Lisboa e submetidas confirmao real. Decises finais sobre os principais casoslegais eram enviados Casa de Suplicao em Lisboa, uma vez que as cortes de apelao no Brasil - os Tribunais

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  • da Relao - no dispunham de plena jurisdio. As agncias de governo com maior jurisdio sobre as matriasultramarinas - Conselho Ultramarino, Desembargo do Pao e Mesa da Conscincia e Ordens - encontravam-se emLisboa. Em contraste com a Amrica inglesa, francesa e espanhola, no fra criado nenhum cdigo escravista parao Brasil. No havia tambm um corpo de leis especfico para a colnia: as compilaes de leis portuguesas -Ordenaes Manuelinas e Filipinas - foram igualmente aplicadas colnia e suplementadas atravs de uma grandequantidade de leis conhecidas como "leis extravagantes". Os rgos administrativos e a estrutura de pessoal nacolnia encontravam-se modelados de forma muito prxima aos seus equivalentes metropolitanos. Isto aplicava-ses matrias fiscais e judiciais, porm no s cortes inquisitoriais, as quais no foram formalmente estabelecidas nacolnia. O governo municipal no Brasil foi modelado a partir de seus equivalentes metropolitanos. As cmarasmunicipais (Senados da Cmara) na colnia disputavam os privilgios conferidos s cmaras de Lisboa, Porto ouvora4. Os compromissos das irmandades e das Ordens Terceiras eram definidos a partir de seus equivalentesmetropolitanos e submetidos confirmao rgia. A Coroa negou-se a criar uma estrutura administrativa para oBrasil que refletisse prioridades ou interesses coloniais. Quando enfrentou o desafio da gesto da extrao eregulamentao do ouro, o regimento (aprovado pelo rei em 1702) no era um documento novo, mas sim umareviso de um decreto anterior a 1652, que tivera sua gnese em uma lei de minerao (1603) ordenada por FelipeIII de Espanha, e ampliada em 1618. As Intendncias das Minas refletiam os objetivos metropolitanos e reais emcada capitania. Os intendentes do ouro eram nomeados pelo rei e respondiam ao rei e a seus conselhos em Lisboa.Quando os diamantes brasileiros abarrotaram de tal forma o mercado europeu, chegando a ameaar osrendimentos do Errio Rgio, devido queda dos preos, a Coroa atuou no sentido de restringir a sua extrao aonorte de Minas Gerais, criando o Distrito Diamantino e nomeando (1734) um Intendente que respondiadiretamente Lisboa. A produo de diamantes tornou-se monoplio rgio, e foi arrendada a uma srie decontratantes de origem portuguesa (1740-1771). Em 1771 o sistema de contrato foi abolido e substitudo peladireta administrao da Coroa, em Lisboa. A administrao dos diamantes representou o exemplo mais gritante daintransigncia metropolitana, e da Coroa, em relao aos interesses coloniais: o movimento de entrada e sada dodistrito era controlado; a reparao legal contra os confiscos ordenados pelo Intendente foram negados; economiaslocais foram sacrificadas em favor da extrao de diamantes; soldados patrulhavam na represso da extrao ilcitae do contrabando; denncias eram encorajadas; protestos individuais ou de cmaras municipais eram ignorados; eat mesmo o governador de Minas Gerais no tinha jurisdio sobre este distrito no interior da capitania5.

    No centro das polticas metropolitanas encontrava-se a crena inabalvel de que a raison d'tre do Brasil era servircomo fonte de matrias-primas e de impostos para a metrpole. As polticas portuguesas voltadas para o Brasilconstituram um caso clssico de mercantilismo e bulhonismo. Seu corolrio era o de que nenhuma iniciativacolonial seria permitida caso tivesse o potencial de infringir negativamente os interesses ou a economiametropolitana. As proibies quanto explorao dos depsitos de ferro e as restries ao estabelecimento defundies na colnia tiveram a inteno de proteger este importante produto de exportao portugus. O fato deque se encontravam proibidos o cultivo de uvas ou de azeitonas, o refino de acar, a manufatura de tecidos demelhor qualidade, ou o curtimento de peles, refletia a inteno de se evitar competio entre a produo colonial ea metropolitana. A protoindustrializao do Brasil estava proibida. As iniciativas empresariais privadas foramesmagadas. As invenes no foram encorajadas. At mesmo quando Portugal no era o prprio produtor dos itensessenciais ao uso domstico ou produo colonial, Lisboa era apresentada como o principal porto para o enviodos produtos de origem europia destinados ao Brasil. Tais produtos eram taxados pesadamente e de formarepetitiva. Nada muito diferente daquilo que ocorrera na sia portuguesa, muitos dos rendimentos que afluam aoscofres rgios eram derivados de quotas e taxas. Monoplios reais foram impostos em diferentes perodos ao pau-brasil, sal, vinho, leo de oliva e pesca da baleia, dentre outros produtos. A Coroa portuguesa no havia apenasinvestido o menos possvel na colnia, mas havia tambm desviado fundos destinados inicialmente a fins coloniais.O caso clssico era o do dzimo, inicialmente imposto cobrado sobre os produtos agrcolas, estendido depois a umnmero mais amplo de produtos, cujo propsito - como estipulado nos termos do Padroado Rgio - era asustentao da Igreja e a manuteno das igrejas no Brasil. Alguns fundos foram usados para este fim, mas outrosforam desviados e investidos em empreendimentos seculares, e inclusive metropolitanos. O pagamento e a coletados dzimos se tornaram fonte inesgotvel de queixas e protestos coloniais.

    Dada esta perspectiva mercantilista, surpreendente o fato de que at 1580 o acesso aos portos brasileirosencontrava-se liberado aos navios de todas as naes. Durante o perodo de unio das duas coroas (1580-1640),restries ao comrcio do Brasil foram impostas aos sditos de monarcas cujos pases estivessem em guerra comas naes ibricas. As dcadas que se sucederam assistiram ao estabelecimento de medidas restritivas ao comrcioAtlntico e aos navios engajados neste trato, em razo de questes comerciais e militares. Estas incluam a criaodas companhias de comrcio monopolistas ultramarinas (Companhia do Brasil, 1649; Companhia do Maranho,1679; companhias pombalinas do Gro Par e Maranho, 1755; e de Pernambuco e Paraba, 1759), as frotasanuais e comboios, e medidas visando impedir o domnio do comrcio e do contrabando por estrangeiros6.

    O Brasil era visto por metropolitanos, tanto seculares quanto religiosos, como uma mina sem fim de recursosfinanceiros ou de reservas que pudessem ser extradas em prol das necessidades da Metrpole. Em sua direovoltavam-se os monarcas portugueses em ocasies de crise ou necessidade: a reconstruo de Lisboa depois doterremoto de 1755; a subscrio dos custos de instalao de uma embaixada em Roma; a construo de Mafra; ouas subscries destinadas aos casamentos e enxovais reais. Esses casos no podem ser interpretados de outramaneira, salvo como beneficiamento central em termos de prestgio, de engrandecimento prprio, ou material, scustas financeiras da periferia. No sculo XVIII, a opulncia e as riquezas brasileiras permitiram a D. Joo V ser

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  • reverenciado por seus pares europeus, e as fontes de recursos materiais brasileiros - madeiras finas, ouro,diamantes - incentivaram a cultura e a promoo das artes como parte da poltica externa portuguesa. O perodoque vai da dcada de 1720 de 1750 em especial, assistiu igualmente ao envio para o Brasil, por parte dossuperiores das ordens religiosas em Portugal, de frades em busca de almas para as instituies metropolitanas.Precisamente na ocasio em que proliferavam as reclamaes das cmaras municipais no Brasil acerca daconstruo desenfreada de monastrios na colnia, que acabavam servindo como escoadouro das economias locaise regionais.

    A coroa desenvolvia uma poltica de imperialismo cultural. Repetidas solicitaes foram rejeitadas acerca da criaode uma universidade na colnia. Afora os colgios jesuticos, no existia oportunidade para uma educao maiselevada na colnia, fazendo com que as pessoas nascidas no Brasil fossem enviadas para as universidadeseuropias em busca de ttulos superiores7. Havia um minucioso exame do comrcio de livros e da possibilidade dedisseminao de idias, notavelmente no sculo XVIII, face ao crescente temor, beirando mesmo a parania,acerca das "idias jacobinas". Isso era especialmente perturbador para os intelectuais brasileiros face proibiodo estabelecimento de uma imprensa em territrio colonial. Trabalhos escritos no Brasil - fossem eles tratadostcnicos, ligados erudio humanista, ou at mesmo catecismos - tinham que ser submetidos aos censores emPortugal antes de serem publicados. No comeo do sculo XVIII, uma imprensa em Recife foi destruda sob ordensdas autoridades de Lisboa, assim que sua existncia tornou-se conhecida, em 17068. O destino de uma outratipografia elucidador dessa situao. Gomes Freire de Andrade - que fra aluno do Colgio das Artes de Coimbrano incio do sculo XVIII, escrevia em excelente espanhol e falava fluentemente o francs - foi nomeadogovernador do Rio de Janeiro em 1733. Atravs de seu encorajamento Antnio Isidoro da Fonseca mudou sua casaeditorial de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1746. Sem demora, publicou um pequeno livro descrevendo a entradado bispo no Rio, treze poemas e um curto ensaio. Mas mesmo um poderoso protetor como o citado governador nopde evitar a determinao de Lisboa em 1747, ordenando o fechamento da imprensa9.

    Ao longo de todo o perodo colonial percebe-se na correspondncia metropolitana com representantes da Coroa noBrasil a presena de uma nfase, como que um texto subjacente, no tema da degenerao associada tanto terraquanto aos "filhos da terra". Algo que corroborava a posio perifrica do Brasil, em termos mentais, espirituais,fsicos e humanos. Se Portugal era visto como a marca autntica de ortodoxia religiosa, de civilidade, de civilizao,de relaes interpessoais apropriadas, de estabilidade poltica e de refinamento, os comentrios sobre o Brasil eseus habitantes refletiam atitudes que percebiam a terra e suas populaes como marginalizadas e situadas naperiferia, ou mesmo alm dela, fato ento aceitvel. Do ponto de vista do centro, existia uma gradao dapopulao do Brasil e sua crescente alocao em crculos cada vez mais perifricos, na medida em que se desviavados ideais metropolitanos. Isto era baseado em uma combinao de nascimento e raa, aprofundando-se caso apessoa possusse algum ancestral de origem escrava: pessoas nascidas em Portugal eram vistas como sendo asmais prximas daquele ideal: pessoas nascidas no Brasil, embora de descendncia portuguesa por parte de pai ede me eram de alguma forma isentadas. A partir de ento ocorria uma rpida expanso do carter perifrico. Nocaso de mistura de sangue, aquelas de ancestrais amerndio-portugus - e portanto livres do estigma daescravido - eram preferidas em relao quelas com ancestrais de origem portuguesa-africana ou africana-amerndia. Amerndios eram preferidos em relao aos africanos. Cristos-novos eram perseguidos em termosreligiosos, mas no to marginalizados como eram as pessoas com mistura de raas. Ciganos eram excludos dasociedade. A marginalizao social dos cristos-novos e dos ciganos tomou forma concreta, isto , estes grupostnicos foram sistematicamente sentenciados ao exlio (degredo) da metrpole para as ilhas do Atlntico, Brasil efrica; havendo uma hierarquia entre esses lugares de exlio, que refletia as conotaes negativas associadas a taisregies no europias no pensamento metropolitano10. As cortes inquisitoriais consideravam o Brasil como umpurgatrio, onde um processo de purificao poderia ocorrer11. Ao menos isto implicava na possibilidade deredeno. Observaes feitas por pessoas que acompanharam a corte real ao Rio de Janeiro foram menospositivas. Referiam-se cidade como um "Inferno", uma Babilnia corrompida pelos perniciosos efeitos daescravido, uma terra de perdio, uma terra sem Deus e cuja populao era libertina, aptica, fraca, fsica emoralmente, degenerada12.

    Do sculo XVI em diante, para os portugueses continentais, o Brasil era um palco no qual se encenava a luta entreo Bem e o Mal, a Virtude e o Vcio, Deus e o Diabo. A degenerao de qualquer que tenha sido a Graapredominante nos primeiros tempos da Amrica portuguesa descrita por Joo de Barros, ele prprio reinol. Emsuas Dcadas denuncia aqueles que permitiram que o nome de Terra de Santa Cruz fosse substitudo pelo deBrasil, ou seja, a evocao de Cristo na Cruz pela da madeira associada ao comrcio. O legado da justaposio deBarros teria ressonncia trs sculos mais tarde nos escritos de Sebastio da Rocha Pitta e Nuno MarquesPereira13. Se o Cristianismo havia triunfado sobre o Demnio na Europa, havia ainda a questo pendente acerca dolocal para onde o Demnio havia sido expulso. As vastas extenses das Amricas forneciam uma pronta resposta.Estas atitudes negativas podem ter sido tambm produto do pensamento europeu, despreparado para lidar com arealidade ali posta. A imagem da terra presente na correspondncia metropolitana pode ser deprimente - umaterra hostil de clima e topografia excessivas - em contraste com os comentrios entusiasmados dos tratados deFerno Cardim, S.J., os Dilogos das grandezas do Brasil (1618), atribudo a Ambrsio Fernandes Brando, e aRelao sumria das coisas do Maranho14 (1624) de Simo Estcio da Silveira, autores que detinham umconhecimento em primeira mo do Brasil. Finalmente, interessante perceber que a correlao entre maiordistncia espacial em relao metrpole e a atribuio de maior demonizao terra e ao povo da regio, to

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  • aparente no mundo atlntico portugus, no era aplicvel s populaes e terras da sia com os quais asportugueses tiveram contato.

    Esta atitude pode ter sido a base da relutncia da Coroa em aprovar a indicao de pessoas nascidas no Brasil paraa ocupao de altos cargos pblicos. E encontrou ressonncia entre as ordens religiosas. A Coroa estava resolutaem proibir que pessoas de "sangue impuro", tanto em termos raciais (pessoas de descendncia africana) quantoreligiosos (pessoas de origem judaica), detivessem cargos em qualquer nvel da administrao. Nenhum negro nosculo XVII no Brasil, excepto o mulato Manuel Gonalves Doria, nascido na Bahia, teve acesso s ordens militaresportuguesas de Cristo, Santiago ou Avis: Henrique Dias, apesar de ter sido agraciado com o hbito, recebeuapenas a medalha com a esfinge do rei. Entretanto, outros africanos de nascimento ou de descendncia - mas nonascidos no Brasil - tais como o Prncipe Warri e Joo Fernandes Vieira, tornaram-se membros da Ordem deCristo15. Mais surpreendente foi a incapacidade dos reis portugueses de conceder o estatuto de cavaleiro aindivduos nascidos no Brasil (ou queles nascidos em Portugal e residentes no Brasil), em reconhecimento do fatode terem sido pioneiros na explorao e na colonizao; na contribuio econmica, no caso de fazendeiros,comerciantes e empresrios da minerao; assim como em reconhecimento daqueles que prestaram servios coroa de forma leal e duradoura. Em Gois, o rei usou do instrumento de concesso da merc do hbito da Ordemde Cristo para premiar os mineradores que entregaram seu ouro s casas de fundio16. Se havia algum gruposocial na colnia identificado com o ethos e a aparncia exterior da nobreza, e que se auto-identificava como tal,era o dos senhores de engenho do nordeste, notavelmente da Bahia e Olinda. Apesar de sua preeminncia social edistino econmica, os membros deste grupo no tiveram tanta evidncia, como se poderia esperar, entre aquelesagraciados com ttulos de fidalgos-cavaleiros e com outras mercs que constituam a rede clientelstica da Coroa17.

    Outra clara indicao da reticncia da Coroa em fornecer instrumentos atravs dos quais os habitantes do Brasilpudessem rivalizar com seus correspondentes metropolitanos foram as leis de suntuosidade (1742, 1749), queproibiam os colonos usarem em suas vestimentas seda, veludo, ouro e prata; limitavam a ostentao causada pelautilizao do ouro e da prata nas moblias e carruagens; e restringiam o nmero daqueles que poderiam carregarespadas e armas de fogo, ou outros smbolos de elevado status18. Quando o alvo de tais leis de suntuosidade oumesmo de editos municipais eram as pessoas de descendncia africana, a lgica usada era a de que seriainapropriado ou indecoroso para tais pessoas adornarem-se de uma maneira que pudesse fazer com que elasexcedessem seu estatuto social. Porm, quando o objeto de tais determinaes era predominante o elementobranco, a Coroa e oficiais metropolitanos utilizavam uma ttica diferente, argumentando que os gastos comvestimentas, carruagens, palanquins, criados e lacaios constituam um desperdcio para as economias locais, e quetais demonstraes exacerbavam tenses sociais latentes na colnia, espao onde as desigualdades sociais eeconmicas j se mostravam exacerbadas. Tais medidas metropolitanas podem ser vistas em um contexto queenfatizava uma leitura perifrica da localizao dos brasileiros em relao quilo que era tomado pelos portuguesescomo sendo a "sociedade", no devendo ser encorajada a complacncia - no importando quo efmero issopudesse ser - para com a noo de que eles se constituam em pares dos cidados ou cortesos de Lisboa.

    Esse argumento revela a extenso na qual o centro dominava a periferia nas relaes Portugal-Brasil e metrpole-colnia. Esta dominao inclua os setores financeiros e comerciais, a administrao e a formulao de polticas, asupresso de uma "voz" colonial atravs da estratgia de nomeaes e concesses, do avano limitado da carreiraou da ausncia de mecanismos adequados para a "promoo" colonial. Uma forma de imperialismo cultural quecontrolava - ou melhor dizendo, negava - uma vida cultural livre na colnia. Interessante era a extenso na qual osbrasileiros aparentemente aceitavam esse status quo. Ocorreram poucas insurreies contra tal opresso ousupresso. Seria isso atribudo apatia colonial, ao medo de represlias, ou incapacidade de organizao deestratgias, falta de liderana e de convico coletiva; ou talvez isso refletisse um dos dois sentimentos opostos ?Ou seria essa expresso de ultraje sem razo, dada a obstinao metropolitana; ou ser que havia suficienteporosidade, elasticidade ou potencial de subterfgio em um sistema que fazia da confrontao uma estratgiadesnecessria, exceto em casos de extrema opresso? Caso fosse essa a situao, isto representaria uma "vlvulade segurana" crucial que poderia desarmar situaes potencialmente desestabilizadoras. At mesmo os maisproeminentes movimentos insurgentes - Maranho (1684), Vila Rica (1720), Inconfidncia Mineira (1789), "Revoltados Alfaiates" em Salvador (1798), e Pernambuco (1801, 1817) - foram de limitada durao, carecendo de umaampla base de apoio, com parcas repercusses para alm da localidade ou regio adjacente. Na verdade, poucosforam aqueles movimentos que de fato ocorreram ou chegaram a seu termo, tendo sido, ao contrrio e na maioriadas vezes, objetos de traio ou de prematura revelao. O monoplio do sal e os preos altos ocasionaramataques aos depsitos de sal em Santos (1710, 1734) e casa do contratador em Salvador (1710). Periodicamenteocorriam insurgncias localizadas em termos de protestos contra os impostos, notavelmente no serto de MinasGerais no sculo XVIII. Revoltas maiores tiveram os seguintes desfechos: punio exemplar de forma draconiana eexecuo dos cabeas dos motins: Manuel Beckman, Felipe dos Santos, Joaquim Jos da Silva Xavier, conspiraodos alfaiates (quatro executados), Pernambuco, 1817 (doze executados); e concesso de anistia geral pelogovernador ou pelo rei, como na "guerra dos emboabas", "guerra dos mascates", Vila Rica (1720) e Pernambuco(1818), dentre outras. O recurso anistia e ao perdo merece maiores estudos. Constituam no apenas umaestratgia de colocar termo a situaes de instabilidade, mas tambm se apresentavam como um reconhecimentotcito da inabilidade das autoridades em controlar de forma mais segura e acertada a oposio e em suprimirrevoltas de maior porte.

    No menos interessante - e possivelmente indicativo da psicologia coletiva prevalecendo na colnia at mesmo no

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  • sculo XVIII - era o fato de que, mesmo diante do ressentimento acerca da explorao metropolitana, os colonosconsideravam a metrpole como referncia daquilo que a colnia deveria se constituir em termos mentais, moraisou de sade espiritual. Algo prximo forma pela qual o Brasil independente, no perodo monrquico, consideravaa Europa e especialmente a Frana, como a eptome de civilizao, situao essa de curta durao devido manuteno da escravido19. Assim tambm agiam os nascidos no Brasil, em termos da forma como que nacolnia ento se olhava para Lisboa e para a corte. Se as pessoas ilustres de Salvador, So Paulo ou Vila Ricasolicitavam a extenso s suas municipalidades dos privilgios usufrudos por Lisboa, vora ou Porto; se aMisericrdia de Salvador tinha orgulho em usufruir os mesmos privilgios da casa matriz em Lisboa; se os senhoresde engenho eram assduos em suas demandas por ttulos honorficos (a posio de mestre de campo era altamentecobiada); se at mesmo os paulistas poderiam ser amansados com a concesso de mercs pelo rei; e se oscidados do Rio de Janeiro, Vila Rica ou Salvador buscaram adotar estilos metropolitanos de vestimentas ecomportamentos, como devemos interpretar isto? Covarde acatamento para com a metrpole? Um desejo emimitar aquilo que era, do ponto de vista colonial e perifrico, visto como desejvel? Ou seria essa corrente desolicitaes por ttulos e privilgios indicativo da insegurana colonial e da esperana de que tais privilgiospoderiam conferir legitimidade aos colonos que os recebiam (individualmente ou corporativamente) e paridade emrelao a seus pares metropolitanos? Ou deveria o historiador tomar isto como um indicativo de uma posio maisagressiva e mais ativa da parte dos colonos? Estariam eles buscando ou demandando reconhecimentometropolitano, ou pelo menos validao, de forma individual e coletiva? Ou estas solicitaes revelariam um antigoressentimento em termos do reconhecimento das lutas das mltiplas geraes de colonos em conquistar ndioshostis, subjugar e colonizar a terra, trabalhar e explorar as fontes de recursos da superfcie e do subterrneo,construir vilas e cidades? Ou seria mais o fato de que as elites estabelecidas na colnia buscavam a obteno deprivilgios e ttulos to avidamente, visando distinguir-se o mximo possvel dos arrivistas, assim como tambmdissociar-se da maioria da populao pobre e escravizada do Brasil?

    No tenho uma resposta pronta para todas essas questes, mas insistiria em uma distino a ser feita entre asrelaes centro-periferia como ilustrado em nosso caso de estudo metrpole-colnia, e o relacionamento entresdito e soberano. Quaisquer que sejam as vicissitudes que freqentemente caracterizavam o conturbadorelacionamento entre portugueses e brasileiros, entre metrpole e colnia, entre centro e periferia, os brasileiroseram inabalveis em sua lealdade para com a Coroa. Peties de colonos eram freqentemente expressas em umalinguagem que considerava o rei um parente fictcio. O que os colonos almejavam com tais solicitaes era oreconhecimento real de seu valor, de seus servios e sacrifcios, e tais pedidos eram feitos e concedidos em umcontexto altamente pessoal da relao vassalo-soberano. Isto foi resumido nas palavras de Cipriano Borges deSanta Ana Barrios, um negro livre que viajou a negcios de sua terra natal na Bahia para Portugal, no final dosculo XVIII, com o objetivo deliberado de beijar a mo do prncipe regente:

    (...) a concluso de vrios negcios que finalmente decidiu, s lhe restava o mais importante objetocomo fiel e humilde vassalo, que o de ter a fortuna de beijar a mo de V. R. A. Para que ficasseconhecendo aquele por quem tem de obrigao dar a ltima gota de sangue20.

    As vicissitudes das relaes centro-periferia no tinham correspondncia na natureza do vnculo caractersticodeste contrato social entre "parentes".

    A noo de um governo metropolitano centralizado, a formulao de polticas impermeveis realidade colonial eimplementadas ao p da letra por agentes da Coroa, de uma Coroa insensvel e de atitudes metropolitanas rgidasvoltadas para o Brasil, demanda reviso. Se por um lado, a estrutura de governo era altamente centralizada nametrpole - com efeito, esta foi a lgica da criao (1642) do Conselho Ultramarino -, de outro, equiparava-se aum contexto descentralizado: convergncia de jurisdies e de autoridades acerca das mltiplas funes degoverno em um nico indivduo ou em apenas uma agncia de governo, ao mesmo tempo que mltiplas agnciasde governo e vrios indivduos exerciam jurisdio e autoridade sobre uma nica funo de governo. reas dejurisdies no enunciadas, pobremente definidas ou obscuras, resultavam em uma difuso da autoridade emrivalidades e tenses entre indivduos e entre agncias de governo. Foras centrfugas ligadas a mltiplos pontosde tomada de deciso e a falta de coordenao entre administradores individuais e entre as agnciasadministrativas enfraqueciam a efetividade da ao do governo. Isto abria espao para que os colonosparticipassem da estrutura administrativa e da formulao ou implementao das polticas da Coroa.

    O fato de que na administrao do imprio, com canais de comunicao definidos, havia um mecanismo atravs doqual peties de indivduos que poderiam ser genericamente caracterizados como "sem voz" (amerndios e pessoasde descendncia africana e asitica, notadamente mulheres) foram enviadas diretamente ao rei, parece ter sidouma situao reveladora do carter excepcional do Brasil. Tais pedidos buscavam remdio contra proprietrioscruis, cativeiro ilegal, ou recusa de cartas de liberdade, apesar de uma oferta material razovel por parte dosescravos. O dado de que indivduos eram suficientemente familiarizados com estratgias e canais viabilizados pormecanismos de apelao extra-judicial, remetendo seus casos diretamente ao rei, sugere o argumento de que osno europeus no eram to desavisados assim acerca da natureza mais particular do sistema legal e de seusmecanismos de funcionamento, como tem sido aventado pela historiografia. A Coroa tambm respondia speties de natureza no judicial apresentadas por grupos corporativos que consideravam seus serviosdesvalorizados por seus pares ou pelo oficialato da colnia, ou por se sentirem rebaixados diante da recusa doreconhecimento do status correspondente ao de homens brancos em circunstncias idnticas. Esta questo tem

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  • sido discutida21 e pode ser aqui resumida. Os regimentos de milcias de mulatos e negros livres no recebiamremunerao. Tiveram sucesso requerimentos enviados ao rei por oficiais dos regimentos negros dos Henriques, dePernambuco e Salvador, solicitando pagamento mensal bsico e auxlio anual para a manuteno de seusuniformes, como era o caso dos oficiais dos regimentos de milcias brancas. Mais tarde, D. Joo (prncipe regente,1792-1816; rei 1816-1826) estendeu esta equivalncia de pagamento a todos os oficiais negros livres dosHenriques em todo o Brasil22. Os oficiais de descendncia africana tambm buscaram eqidade de privilgios,principalmente no que diz respeito a seus postos, elegibilidade para posies nas tropas regulares pagas, aodireito de usar certas insgnias, e inclusive ao foro militar - direito de ser julgado pelas cortes militares. Em 1802, oprncipe regente apoiou a resoluo (1800) do Conselho Ultramarino de que os regimentos de mulatos fossemcomandados por oficiais da mesma cor. Nesse sentido, D. Joo e o Conselho rejeitaram a ao precipitada dogovernador de Salvador que havia substitudo tais oficiais em seus comandos por oficiais brancos de postos maisbaixos23. O grau em que tais peties eram especficas regionalmente, refletindo assim a composio local emtermos demogrficos e raciais, pode ser ilustrado pelo dado encontrado pela professora Karasch de que na dcadade 1780, em Gois, j se encontrava bem consolidada a situao na qual os regimentos de mulatos eramcomandados por oficiais pardos, na maioria dos casos filhos de proeminentes pais brancos. Tambm no sculoXVIII, as agncias de governo das irmandades de negros e mulatos tiveram solicitaes atendidas pela Coroa emtermos de seus pedidos de equivalncia de privilgios e do direito ao autogoverno. Mais especificamente, airmandade de Nossa Senhora do Rosrio buscou o privilgio de ter um esquife para funerais de seus irmos, comoera o caso da Santa Casa de Misericrdia branca: e certas irmandades de negros conseguiram a aprovao realpara que os cargos de tesoureiro e de escrivo fossem ocupados por negros e no por brancos24. Em 1759, o reiconcordou com a solicitao feita em favor dos mulatos mais educados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, no sentidode que lhes fosse permitido carregar espadas25.

    Cabe lembrar que apesar dos nascidos no Brasil serem elegveis para os cargos pblicos, poucos eram aqueles quealcanaram de fato os altos escales da Igreja ou do Estado. As oportunidades de promoo adicional eram muitolimitadas, principalmente para aqueles que no haviam nascido em Portugal e que no dispunham de vantagensem termos de relaes de parentesco, de ligaes pessoais, e da proteo de pessoas de poder na metrpole paragalgarem cargos mais altos. Como exemplo podemos citar o caso dos magistrados, cujo pice da carreira nomundo de influncia portuguesa era a nomeao para a Relao do Porto, para a Casa de Suplicao ou,excepcionalmente, para o Desembargo do Pao em Lisboa. Isto estendia-se tambm ao setor religioso. Em 1736, aCmara de Salvador queixou-se do fato de que em 145 anos de existncia da Ordem Beneditina no Brasil, poucashaviam sido as pessoas nascidas na colnia que ali tinham exercido altos cargos, e que a ordem se recusava aadmitir os "filhos do Brasil". Em Olinda, os Carmelitas Descalos se recusaram a admitir pessoas nascidas emPernambuco e procuraram novios de origem exclusivamente portuguesa26.

    No sculo XVIII foi grande o nmero de brasileiros que ocuparam cargos na Igreja e no Estado. Sebastio da RochaPitta, nascido na Bahia e formado em Coimbra, referiu-se com orgulho, em 1730, a seus companheiros brasileiros:"pessoas naturaes do Brasil, que exerceram dignidades e governos ecclesiasticos e seculares na ptria e foradella"27. At mesmo a Cmara de Salvador admitia que entre 1720 e 1780 trs pessoas nascidas no Brasil tinhamsido eleitas provinciais da Ordem Franciscana28. Isto era atribudo em parte ao grande nmero de pessoasnascidas no Brasil, que havia estudado em Coimbra e retornado colnia em busca de uma carreira no serviopblico: serviram como governadores, provedores-mores da Fazenda e nas Mesas da Inspeco e Juntas daFazenda. Este dado era tambm atribudo ao aumento da prtica da venda de cargos pblicos, a qual tinharamificaes mais amplas. Ao colocar cargos pblicos venda, a Coroa abriu um espao para que os colonos ossolicitassem e os obtivessem: alguns eram de importncia comparativamente menor, tais como o de escrivo emuma vila ou cidade; outros eram de considervel importncia, como por exemplo o de secretrio de Estado, o deprovedor da Fazenda e at mesmo o de desembargador na Relao da Bahia. Criava-se, assim, no apenas uminstrumento atravs do qual as elites regionais proprietrias de terra poderiam vir a ser envolvidas no governo, emnveis outros que o do Senado da Cmara, mas tambm os comerciantes e os homens de negcio passavam a ter apossibilidade de acesso a cargos pblicos. A maior participao dos colonos no processo de tomada de deciso nosnveis local e regional poderia ser traduzida como um aumento de autonomia. Todos aqueles envolvidos nacriolizao do governo estavam mais motivados pela perspectiva de auto-enriquecimento do que preocupados como provimento de impostos adicionais ao Errio Rgio; por lealdades derivadas de relaes de parentesco ou poruma intrincada rede de interesses especiais locais, do que com a existncia de um monarca distante; porinteresses regionais ou setoriais do que com aqueles ligados metrpole. De certa maneira, o instrumentofinanceiro impessoal do contrato isentava os contratadores e compradores de cargos pblicos de suas lealdadespara com o rei de Portugal. A compra de cargos tambm estimulou a criao de oligarquias locais que acabarampor obter o domnio exclusivo sobre determinados postos, alguns deles passados de pai para filho ou oferecidoscomo dotes com a inteno de garantir um casamento ou de fortalecer as redes de parentesco coloniais.Reforava-se assim a autoridade das oligarquias locais, cujo contraforte era a preservao dos bens coloniais maisimportantes. A criolizao e as tendncias centrfugas resultantes da venda de cargos pblicos modificavam asrelaes centro-periferia na medida em que favoreciam uma maior participao dos colonos no governo da colnia.

    O Marqus de Pombal reconhecia este potencial de combinao de recursos e, no contexto de seus esforos emnacionalizar a economia luso-brasileira, encorajou pessoas nascidas no Brasil a compartilharem a administraocolonial. Mas evidncias sugerem o fato de que havia pouca probalidade para que pessoas nascidas no Brasil

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  • pudessem realmente superar os constrangimentos e presses existentes a nvel local ou regional em termos de suamaior projeo sobre a colnia. Este no foi o caso quando se considera como um indicador da questo o exemplodos grupos de interesse ligados ao comrcio e representados nas cmaras de comrcio no final do sculo XVIII eXIX. Na verdade, apesar de sua contribuio para a integrao econmica e urbana, para as reas dascomunicaes e dos portos, permanecia ainda uma rivalidade entre cidades, uma exacerbao e perpetuao deregionalismos29.

    Pode-se dizer que, considerando a ausncia de elementos que pudessem reforar e facilitar as supostas ligaesentre sdito e soberano, as mudanas demogrficas na colnia e a poltica pombalina que mais diretamente buscouencorajar o engajamento dos colonos na promoo daquilo que ento era referido na correspondnciametropolitana como um "imprio" - o que significava uma ligao entre metrpole e colnias em um esforoconjunto para a melhoria de ambos -, a histria do Brasil colonial fornece numerosos exemplos de como os colonosforam capazes de exercer suficiente presso sobre as autoridades metropolitanas no sentido de evitar ou modificartotalmente as polticas propostas, de atrasar a implementao de aes prescritas, ou de negociar um acordomenos ofensivo aos interesses coloniais. Em sua forma mais extremada, havia confrontao fsica: governadoresforam forados a fugir (o governador de Pernambuco, Castro e Caldas, escapou de Recife por barco para Salvador,em 1710, sob a ameaa do ataque de fazendeiros de Olinda; o governador de Gois foi aparentemente expulsocontra a sua vontade, em 1805, pelas elites locais da mesma cidade, apesar de ter retornado depois), oudesprezados pelos colonos e forados a retornar s suas bases originais (governador do Rio de Janeiro, D.Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre, foi forado (1709) pelos emboabas a deixar o Rio das Mortes eretornar ao Rio; tratamento idntico foi dado a seu sucessor, Antnio de Albuquerque, pelos paulistas). Os gruposde presso colonial exerciam fora suficiente para provocar a deposio de governadores.

    Existia tambm potencial para negociao, sendo o exemplo clssico as negociaes em torno do pagamento doquinto real da produo mineira. A preferncia pelo mtodo de coleta dos quintos em ouro, colocou os mineiroscontra sucessivos governadores e contra a prpria coroa. A proposta inicial do rei em relao ao imposto sobre asbateias ganhou a oposio dos mineradores. Atravs de suas cmaras municipais, fizeram a contra-proposta depagamento de uma quota anual. Esta foi aceita pelo governador, alegando a defesa dos interesses em favor daestabilidade e da agilidade fiscal. No obstante, ela foi rejeitada pela Coroa, que ordenou (1715) a implementaodo mtodo da bateia. O governador acabou enredado em uma difcil situao de lesa-majestade, pois suacomplacncia poderia significar ruptura. Os interesses dos colonos prevaleceram. O Conde de Assumar foiencarregado (1719) pelo rei da tarefa de introduzir as casas de fundio para a extrao dos quintos. Uma revoltafoi brutalmente suprimida pelo governador, mas ele acabou por aceitar a proposta dos colonos de uma quotaanual. As cmaras municipais negociaram um aumento da contribuio anual, o que concorreu ainda mais para ademora na construo da casa de fundio. Esta era uma vitria Prrica para os mineiros. A primeira casa defundio foi aberta em 1725. Entretanto, os rendimentos no foram suficientes para a Coroa, que acabouordenando a substituio da quota pela captao (imposto per capita pago pelos proprietrios sobre os escravosmaiores de 12 anos de idade; pelas pessoas livres de cor sobre si prprias; pelos artesos e proprietrios de lojas,armazns e tavernas) em 1733. As negociaes prosseguiram entre as cmaras municipais e o governador,resultando no adiamento da implementao da ordem rgia at 1735. Como este mtodo no fornecia rendimentosadequados, as casas de fundio foram introduzidas novamente em 1750. No ltimo estgio desta saga, foramconvocadas reunies nas quais as cmaras de diferentes cidades realizaram consultas entre si, apresentandopropostas aos governadores, o que resultou em negociaes entre estes e os vereadores30.

    Tais negociaes indicam um fato interessante na medida em que os oficiais da Coroa no apenas dialogaram comos colonos, mas, na ocasio, acabaram por se posicionar ao lado dos colonos contra a Coroa. O Conde de Sabugosa(vice-rei, 1720-35) apoiou a comunidade de negociantes baianos em seus esforos em preservar o monoplio docomrcio de escravos com o oeste da frica e com o Golfo do Benin, em oposio aos interesses de comerciantesde Lisboa que, com o apoio de D. Joo V, tentaram intrometer-se nesse comrcio. O Governador recm-nomeadode Minas Gerais, Andr de Mello de Castro, Conde de Galvas, uniu-se (1734) aos mineiros resistentes introduo do imposto per capta. Apoiou tambm a proposta local de uma quota anual de 100 arrobas de ouro aser paga Coroa. Em um protesto contra o monoplio real do sal e contra os preos exorbitantes, um membro damagistratura, o juiz de fora, liderou o ataque (1734) contra o depsito de sal em Santos, colocando o produto venda com o preo legal. Ironicamente, o cargo de juiz de fora havia sido criado no Brasil especificamente parapresidir, e portanto moderar, os excessos dos Senados da Cmara.

    A agncia negociadora que freqentemente representava os interesses brasileiros era o Senado da Cmara. Aelegibilidade dos que serviam em tais cargos pblicos, assim como a elegibilidade daqueles que votavam, baseava-se no rigoroso critrio que a limitava aos homens bons. Isto significou que no apenas as principais famlias davila, cidade ou regio eram representadas na cmara, mas ainda que a cmara advogava, articulava e protegia osinteresses das elites locais. Tais concelhos municipais usufruam de grande autonomia e eram mais poderosos queseus equivalentes na Amrica Espanhola, possuindo uma jurisdio mais extensiva. Vice-reis e governadores osnegligenciavam, incorrendo em risco prprio, conscientes de que pessoas influentes na colnia tinham linha diretade comunicao com a corte, e cujas reclamaes poderiam facilmente ganhar os ouvidos de um ministro poderosoou do prprio rei. O malogro de um governador em negociar ou acomodar interesses locais poderia provocar umarepreenso rgia ou levar sua destituio, como no caso de Lus Vahia Monteiro em 1732, governador do Rio deJaneiro to pouco popular e de personalidade um tanto instvel31. Ou poderia levar a uma avaliao negativa em

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  • uma inquirio judicial ao final do mandato de exerccio de cargo, influindo assim na deciso rgia acerca da suapossvel seleo para postos mais altos, de seu merecimento de uma penso, ou, se fosse o caso, de seu debanimento para o Minho ou o Alentejo.

    Vice-reis, governadores-gerais e governadores eram submetidos presso de grupos poderosos: fazendeiros,proprietrios de terra, colonos, bispos, jesutas, ordens religiosas. A mistura era particularmente voltil noMaranho, onde os governadores tinham que navegar entre a conciliao e a administrao de duas situaesextremas: de um lado, a demandas dos colonos por mo-de-obra amerndia e, de outro, a presena poderosa dosjesutas e o desejo da Coroa em proteger da explorao os americanos nativos. Eles tambm no poderiam contarcom o apoio dos bispos, na medida em que os governadores no exerciam jurisdio sobre eles. H que sedestacar igualmente o fato de que as polticas da Coroa vacilavam entre a proteo dos amerndios e ofavorecimento dos colonos, enfraquecendo ainda mais a posio dos governadores. O caso do Maranho forneceum exemplo extremo de interesses em situao de competio, mas governadores de outras regies entendiamque o mandato de trs anos no cargo os deixava em posio pouco vantajosa frente aos colonos, e que elesnecessitavam de potencial humano para implementar a vontade rgia. Muito freqentemente governadores-geraise governadores eram forados a entrar em acordos, fazer concesses, ou fazer vistas grossas em relao a abusosflagrantes, variando entre a escravizao forada de amerndios e o arrebatamento no autorizado de terras emdesafio aos editos reais.

    No sculo XVII a economia Atlntica equiparou-se, e logo superou, aquela da rota do Cabo e os impostos extradospela Coroa portuguesa no controle fiscal sobre o comrcio no oceano ndico e na regio mais a este. Se o sculoXVII representou o apogeu do prestgio e da influncia poltica dos senhores de engenho enquanto classe, em finaisdesta centria e ao longo da seguinte assistiu-se emergncia no Brasil das comunidades mercantis, quevigorosamente passaram a implementar a defesa de seus prprios interesses e a desafiar a supremacia, at entoincontestvel, dos comerciantes metropolitanos. Salvador e Recife ainda mantinham sua preeminncia, mas o Riofoi se estabelecendo como um importante emprio comercial no trato com as capitanias do norte, assim como como Rio da Prata e Angola. Ao longo do sculo, Belm, So Lus e Santos ganharam preeminncia comercial. J em1618, o autor dos Dilogos das Grandezas do Brasil referia-se colnia portuguesa na Amrica como sendo aencruzilhada das rotas do comrcio mundial. O sculo XVIII tornou-se cenrio de determinados processos quetestemunharam a oscilao do setor comercial da metrpole para a periferia (Brasil). Primeiramente oscomerciantes se constituram em um grupo coletivo com ambies polticas. Em Salvador isto seria reconhecidopelo vice-rei, que respondeu positivamente solicitao dos negociantes no sentido da criao da Mesa doComrcio ou Mesa do Bem Comum, em 172632. Apesar do termo "grupo de presso" estar associado no nordeste afazendeiros de acar, havia coeso suficiente entre os negociantes de Salvador a ponto de frustarem os esforosde Pombal no sentido da criao de uma companhia de comrcio monopolista para a Bahia. Ao mesmo tempo oprojeto do Marqus havia sido bem sucedido em Pernambuco, no Par e Maranho. Em segundo lugar, enquanto naprimeira metade do sculo pessoas nascidas no Brasil atuavam principalmente enquanto agentes comissionadosdas casas comerciais metropolitanas, na segunda metade, um nmero maior de brasileiros atuava em seu prpriointeresse no comrcio Atlntico. Isto acontecia no preciso momento em que Pombal (1750-1777) tentava"nacionalizar a economia luso-brasileira"33. Em terceiro lugar, a acumulao de capital no Brasil constitua-se emfora-motriz da emergncia da colnia enquanto uma presena mercantil ativa, que alcanava um grau deindependncia em relao hegemonia comercial metropolitana. Isto se aplicava aos senhores de engenho nonordeste que se achavam engajados no comrcio, aos mineradores de ouro em Minas Gerais, Mato Grosso e Goisque se encontravam igualmente empenhados no trato, e especialmente comunidade mercantil em expanso doRio de Janeiro e adjacncias. A acumulao de capital no interior da colnia constituiu-se em fator crtico napreparao das fundaes para um Brasil independente.

    A mxima ironia para um pas no qual o mercantilismo era central em relao s suas atitudes e polticas para oBrasil, era justamente o fato de que Portugal se mostrava incapaz de implementar tal poltica. Dada a naturezamulti-continental e multi-ocenica da presena portuguesa, a realizao do comrcio entre colnias - Brasil eAngola, Brasil e Macau ou Moambique, Macau e Malaca, inter alia - sem a interferncia de um componentemetropolitano, no apenas enfraquecia as polticas mercantilistas, subtraindo de Portugal fontes fiscais empotencial, como tambm assegurava que os lucros permanecessem fora da metrpole, fortalecendo assim asperiferias. Embora a Coroa permanecesse obstinada em relao questo da criao das universidades e doestabelecimento da imprensa no Brasil, e tentasse controlar o comrcio de livros para a colnia - seja atravs dosportos do Atlntico ou do interior, via rio Paraguai para o Mato Grosso -, no conseguia conter o fluxo de idias ede livros provenientes da Europa, como pode ser constatado atravs do exame dos contedos das bibliotecascoloniais. Tambm no tinha ela poderes para sustar a participao estrangeira no comrcio e no contrabandoocenico. Logo aps a restaurao (1640), a Coroa introduziu a primeira medida restritiva participao de naviosestrangeiros no comrcio com o Brasil. No restante do perodo colonial, at a abertura dos portos brasileiros em1808, novas medidas foram promulgadas no sentido de restringir contatos com traficantes e embarcaesestrangeiras, ou mesmo de negar o acesso de no portugueses ao Brasil. Os objetivos eram estratgicos,principalmente voltados para a defesa da colnia contra intrusos, mas particularmente como forma de garantir quea colnia permanecesse dependente ("dependncia perifrica" nas palavras de J. P. Greene) da metrpole emrelao s importaes. Assim como tambm garantir a posio exclusiva dos portos de Lisboa e Porto no tocante entrada dos produtos exportados do Brasil para a Europa. Ao fazer isso, a Coroa estava remando contra foras forade seu controle. Eram elas naturais (vastas extenses ocenicas, presena de arquiplagos no Atlntico, a costa

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  • brasileira de 4.603 milhas coalhada de portos isolados), humanas (inadequados contingentes humanos, intrusosestrangeiros - principalmente britnicos) e materiais (carncia de embarcaes portuguesas). Poderosa tambmera a fora demonstrada por brasileiros (e alguns portugueses) em resistir aos mecanismos de controle eregulamentao estabelecidos pelas autoridades metropolitanas. Uma "cultura de evaso" era to predominantequanto inalienvel do ethos colonial, contribuindo em ltima instncia para o enfraquecimento do controlemetropolitano. Ela assumiu vrias formas: recusa em pagar impostos e taxas, escamoteamento dos pontos defiscalizao, evaso do servio militar, burla quanto incluso nas listas municipais, mudana clandestina durantea noite do tabaco de grau inferior para regies associadas com produo de maior qualidade, ou a realizao damistura de estanho com ouro. O contrabando era corrente em terra e em alto mar: para frica (ouro, tabaco),Europa (ouro, diamantes, tabaco, pau-brasil), outras partes das Amricas (Guianas, Peru, Rio da Prata: acarbrasileiro e escravos em troca de prata e peles). A porosidade era endmica. A perda financeira para osnegociantes metropolitanos e para o Errio Rgio era de peso. Assim sendo, tornava-se pblica e manifesta ainabilidade da Coroa ou das autoridades metropolitanas em controlar, ou mesmo limitar, esta orquestrao ilcitados rendimentos. De outro lado, o sucesso de tais prticas animaram o esprito colonial, gerando um sentimento deauto-suficincia ou de estar no controle, de ter o capital, os produtos, o potencial humano e os meios para pugnarpor sua independncia de ao.

    Dois grupos no foram atingidos pelas medidas implementadas pela metrpole ou pelo governo colonial no sculoXVII. O primeiro deles era constitudo pelos proprietrios de fazendas de gado no serto, cujo o estilo de vida lhesconferiu o ttulo de poderosos do serto. Eles viviam e operavam na maioria dos casos fora daquilo que asautoridades metropolitanas consideravam como a fronteira entre a civilizao e o barbarismo, situando-se paraalm do espao onde se observava um efetivo cumprimento dos editos reais e das leis portuguesas. O seu modusoperandi os colocava em posio de estranhamento em relao Coroa e seus representantes na colnia.Dispunham freqentemente de exrcitos constitudos por homens de confiana, viabilizando assim sua atuaoarbitrria. Estes potentados das reas mais distantes puderam assumir uma posio de ignorar uma sucesso deeditos reais da dcada de 1690, que visavam limitar o tamanho das sesmarias. Auto-suficincia, distncia einacessibilidade faziam deles elementos inalcanveis pela Coroa. O segundo grupo era formado pelos paulistas,que de So Paulo entravam pelo interior adentro, em direo a oeste, norte e sul. Topograficamente So Pauloencontrava-se isolado pela a Serra do Mar, sendo que o plat de Piratininga proporcionava poucas oportunidades. Opovoamento era constitudo pela presena de indivduos de diversas nacionalidades (portugueses, espanhis,italianos e europeus do norte) e de culturas variadas (amerndios, africanos, europeus). A lngua predominante noera o portugus, mas sim a lngua geral, uma mistura de portugus com o tupi-guarani. A cidade de So Paulo,propriamente dita, tinha uma pequena populao residente, servindo mais como ponto de organizao dasbandeiras. Sua auto-suficincia engendrava um esprito de independncia, concorrendo para que os paulistasrejeitassem ou ignorassem as autoridades reais. Estes dois grupos contriburam de diferentes formas, em termosde suas especificidades, em favor da economia colonial, e desempenharam um importante papel no desbravamentodo interior do Brasil, apesar de permanecerem perifricos em relao ao conjunto da sociedade colonial - tendomesmo se constitudo para alm dela.

    A ausncia de movimentos abertamente revoltosos por parte dos nascidos no Brasil contra as arbitrrias medidasmetropolitanas, assim como tambm as acomodaes referidas acima, que revelam a forma como os brasileirosnegociavam as decises com as autoridades na metrpole ou com os representantes da Coroa na colnia, nodevem concorrer a favor da idia de que tudo era calmaria e idlio em termos do relacionamento entre os nascidosem Portugal e os nascidos no Brasil. No nvel mais profundo, permanecia ainda uma grande desconfiana mtua,especialmente da parte de vrios brasileiros em relao queles nascidos em Portugal, principalmente quandoestes se encontravam em posies representativas, mas igualmente enquanto indivduos privados. No que dizrespeito ecloso de hostilidades, a experincia mais citada a da Guerra dos Emboabas (1707), na qual os"filhos da terra" estavam em desacordo com os forasteiros, ou emboabas. Este exemplo de antagonismo verificadoentre os nascidos no Brasil versus os nascidos em Portugal algo apenas aceitvel dada a condio de que para ospaulistas todo aquele que no era paulista era um "forasteiro" (emboaba). Embora esta categoria abrangesseportugueses da Europa continental e das ilhas do Atlntico, tambm inclua brasileiros, dentre outras reas,nascidos no Maranho, Pernambuco ou Bahia, salientando-se assim a extenso na qual os paulistas percebiam a siprprios - e eram ento identificados pelos outros - enquanto um grupo tnico especfico; bem como a fora dasrivalidades inter-regionais no interior da colnia. Um exame detalhado de outros distrbios, tais como a Guerra dosMascates (1711) retratada na historiografia enquanto uma luta entre comerciantes de Recife e plantadores deacar de Olinda, pode igualmente revelar um forte componente de desconfiana interpessoal mtua no nvel dasrelaes colonos-metropolitanos. Os registros de admisso nas Ordens Terceiras e nas irmandades no final doperodo colonial contm expresses de antipatia em relao aos nascidos em Portugal.

    Finalmente, coloca-se a discutida e difcil questo relativa a uma identidade colonial. Os paulistas no estavamsozinhos em sua forte identificao com a terra. Fazendeiros de gado dos sertes de Pernambuco, Cear, Piau,Maranho, Minas Gerais e Bahia; lavradores de cana e senhores de engenho do nordeste devem ter sentido umcerto grau de identidade com a terra, apesar destes ltimos demonstrarem uma preferncia em passar perodossubstanciais de tempo em seus solares urbanos e, at mesmo quando residindo em suas propriedades rurais,delegarem a outros indivduos a operao do dia-a-dia dos engenhos e da produo da cana. A identificao entrehomem e terra era expressa por meio da designao "poderosos do serto". Longos perodos de tempo deresidncia no ultramar no significava necessariamente a transferncia de fidelidade ou lealdade da metrpole para

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  • a colnia, embora existissem instncias bem documentadas acerca de pessoas nascidas no Brasil que claramentese identificavam no como portugueses ou americanos portugueses, mas sim como brasileiros.

    Centro-Periferia: Brasil

    O exame das relaes centro-periferia na Amrica portuguesa abre uma espcie de caixa de Pandora em termosdas surpreendentes oportunidades para os historiadores interessados. A dimenso humana a mais intrigante,mas tambm a de mais difcil compreenso, principalmente em termos de um olhar sobre o Brasil que enfatizequestes de raa e/ou gnero no interior da estruturao das relaes centro-periferia. Pessoas de origem oudescendncia europia dominavam a administrao colonial e eram consideradas, assim como se consideravam,como sendo o centro da sociedade brasileira, mesmo que se constituindo em uma minoria demogrfica ao longo detodo o perodo colonial. Senhores de engenho e comerciantes, em diferentes perodos e em diferentes lugares,formaram grupos centrais para a organizao no apenas de suas regies, mas de todo o Brasil. Durante umlimitado perodo de tempo e em uma regio especfica, bairrismo regional era algo vinculado aos empresrios daminerao. O jesuta italiano Antonio Giovanni Andreoni, escrevendo no incio do sculo XVIII, chamava a atenopara o fato de que escravos de descendncia africana eram "as mos e os ps do senhor de engenho" (um ditadode aplicao equivalente para os mineradores), e no h dvidas de que os escravos constituam pea central daeconomia de subsistncia da colnia34. Como visto de forma to efetiva durante o "tempo dos flamengos", asobrevivncia da Amrica portuguesa dependia dos no europeus tanto em termos militares como tambm emrelao mo-de-obra e procriao. Relaes de gnero podem tambm ser estudadas em termos da arquiteturacentro-periferia. Apenas recentemente a historiografia - at ento receptiva aos argumentos de um "peregrino" emMinas Gerais por volta de 172835 acerca do papel passivo das mulheres de descendncia europia na colnia -comea a ser revista luz de evidncias que mostram que mulheres de descendncia portuguesa atuavamindependentemente, instigando casos legais, administrando minas e plantaes, gerenciando propriedades, eorganizando seus prprios negcios. Mulheres de descendncia africana eram centrais para as redes comerciaislocais. A estrutura centro-periferia pode servir de perspectiva ao historiador nos estudos sobre a sociedade, raa,gnero, ocupao, cultura e idioma, assim como tambm no que diz respeito administrao, economia ecomrcio, estimulando o surgimento de um novo conjunto de questes. Dadas as habilidades multi-lingusticas daspessoas de descendncia africana, era o portugus o ncleo do idioma do Brasil? Seguia o catolicismo em Portugaluma estrita ortodoxia e uniformidade quando trazido para o Brasil no perodo inicial de sua propagao, de maneiraum tanto frouxa, constituindo-se no mago da religiosidade colonial? Qual foi o impacto sobre o catolicismo noBrasil da dicotomia entre a centralizao da Igreja secular em cidades e a disperso das atividades missionriaspor reas geograficamente perifricas? Meu exame das relaes centro-periferia na Amrica portuguesa serlimitado aos seguintes elementos: povoamento e demografia, administrao, e comrcio. Cada um deles tinha asua prpria dinmica, apesar de todos os trs estarem interrelacionados em certos perodos de tempo e em certasregies.

    Um aspecto extraordinrio dos 322 anos de existncia do Brasil colonial o quanto - em 1800 no menos que em1600 - a colnia permaneceu inalterada. A preponderncia litornea da populao, das cidades e das vilasmanteve-se. Mesmo ao longo do litoral a distribuio era profundamente desigual: o nordeste e a grande regio daGuanabara abarcavam os ncleos de maior densidade demogrfica. Em termos gerais, as regies mais importantesno sculo XVI permaneciam como as mais representativas - demogrfica, econmica e politicamente - no sculoXIX36. Continuava vlido o comentrio feito por Fr. Vicente do Salvador no sculo XVII, de que os portuguesesportavam-se como caranguejos, de to presos que eram costa. Embora verdadeiros em sua extenso maisampla, este e similares ditados encobrem mudanas nas relaes entre centro-periferia, se considerados ospadres de povoamento.

    A princpio devo declarar o que entendo como "centro" ou "ncleo". Para o rei e o colono, um centro era associadoa um ncleo urbano. No mundo portugus isto correspondia categoria de vila ou cidade. Com a exceo deSalvador, que j fra fundada como uma cidade, vilas eram criadas e a elas poderia ser posteriormente outorgadoo cobiado status de cidade. A criao de tais entidades era uma prerrogativa real. As vilas refletiam uma respostargia a uma situao resultante de um povoamento anterior e espontneo, promovido por colonos individualmente,e cujo crescimento at determinado ponto, fazia com que a Coroa julgasse necessrio prover a organizao de umgoverno municipal. Este era o Senado da Cmara. A inteno da Coroa era favorecer a estabilidade administrativa,social e econmica. No foram todas as vilas que se tornaram ncleo para alm de um sentido local ou regional.Mas em relao s vilas, cuja importncia era multi-dimensional, havia a probabilidade efetiva de lhes seroutorgado o status de cidade. A correlao entre cidade e ncleo no era automtica: algumas cidades nuncaalcanaram completamente o status de ncleo no contexto dos interesses coloniais em sentido mais amplo; quantos outras, sua importncia aumentava ou declinava; outras ainda retinham seus status inalterado ao longo de todoo perodo colonial. Em ltima instncia, isto era atribudo aos seus papis multi-funcionais enquanto centros degoverno, bispado, comrcio, importncia estratgica para defesa, crescimento populacional e habilidade deadaptao. No foi surpreendente perceber que poucos ncleos urbanos na colnia, que usufruam o status decidade, estavam localizados naquelas capitanias que, no contexto colonial mais amplo, constituam as regiesnucleares: nordeste (Pernambuco, Bahia) e sudeste (Rio de Janeiro).

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  • Uma distino precisa ser feita entre vilas ou cidades com papis multi-funcionais e aquelas cuja proeminncia eraatribuda a uma nica faceta. Ribeiro do Carmo, em Minas Gerais, ilustra este ltimo caso: ela foi elevada categoria de cidade, sendo renomeada Mariana por ocasio da criao (1745) da S episcopal. Para alm destafuno eclesistica, Mariana no constitua um ncleo. Entretanto, sua vizinha Vila Rica do Ouro Preto no obteve ostatus de cidade, apesar de ter sido sede do governo da capitania-geral de Minas Gerais, de nela ter se instalado acasa de fundio, a casa de moeda e a residncia de altos oficiais fiscais e da magistratura. Com uma populao de20.000 habitantes na dcada de 1740, era celebrada pela riqueza e elegncia de seus prdios pblicos, e peloestilo de vida opulento que alguns desenvolveram com base no ouro extrado37. Havia tambm vilas que erampontos importantes de articulao do comrcio intracolonial, ou centros de coleta de impostos e dzimos, mas cujaimportncia nunca fra to grande a ponto de transform-las em ncleos.

    Por definio, uma periferia precisa ter um ponto de referncia, a saber, um centro. Nosso objetivo examinar anatureza desse relacionamento. Apesar da distncia poder ter se constitudo num fator, ela no era um dado sinequa non. O Brasil fornece numerosos exemplos de regies que eram perifricas na medida em que se encontravamseparadas de seus ncleos no apenas devido distncia, mas devido s caractersticas topogrficas: Serra doMar, florestas impenetrveis ou rios bravios que tornavam o acesso difcil, o transporte e a comunicaopraticamente impossveis. Havia tambm regies cujo perfil econmico de suas exportaes se apresentava deforma bastante tmida, caracterizando-se ainda pelo isolamento espacial vis--vis outras regies ou centrosurbanos, e cuja importncia administrativa ou militar era ento negligenciada no cenrio mais amplo da colnia ouda me-ptria, o que concorria para que elas se mantivessem perifricas no obstante seu carter de auto-suficincia econmica (Esprito Santo). Algumas regies desfrutaram de uma temporria projeo, relacionada acircunstncias econmicas e militares. Gois e Mato Grosso se apresentaram de forma mais proeminente durante aefmera era do ouro, porm nunca transcenderam seus status perifricos na colnia. Nesta ltima categoriaencontravam-se as capitanias subordinadas do sul, as quais, durante os perodos de conflito com Espanha,constituram-se na preocupao mais fundamental das autoridades no Rio de Janeiro, embora por outro ladopermanecessem perifricas em relao aos interesses mais centrais da colnia. Em suas formas mais extremadas,as periferias eram associadas a um termo muito usado em Angola e no Brasil: o serto. Abrangia a extensocrescente, rida e semi-rida, dos interiores de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, at Piau, Cear e Maranho,submetida aos excessos de temperatura e clima, a longos perodo de seca, violentas tempestades e inundaesrelampejantes. Unia-se a isto uma vegetao composta de erva daninha, cerrado de cactos e arbustos espinhentos,constituindo-se em obstculo a possveis intrusos. Na mente dos reis, conselheiros metropolitanos, administradorescoloniais e muitos colonos, o serto ou os sertes estavam associados desordem, ao desvirtuamento e instabilidade. Eles eram vistos como sendo povoados por pessoas (de acordo com rumores, algumas eramgrotescas) marginalizadas na melhor das hipteses, ou totalmente situadas para alm dos limites impostos pelospadres metropolitanos em termos de ortodoxia religiosa, costumes, moralidade, cultura e relaes interpessoais.A civilidade estava ausente, o barbarismo reinava. Quando a palavra serto aparece nos mapas coloniais, veminvariavelmente acompanhada de um termo que a qualifique etnograficamente, tal como "serto dos tapuias".Dado os constrangimentos da administrao portuguesa, os sertes poderiam se localizar para alm do alcance dogoverno ou, na verdade, to distantes como se estivessem efetivamente fora do imprio. Assim sendo, eles tinhamum alto grau de autonomia. Para todos, salvo para os sertanejos, o serto era um estado de esprito e depercepes: descrev-lo como simples periferia ignorar a multiplicidade de conotaes que a palavra e a regioevocam38.

    Enquanto o termo "periferia" possui flexibilidade suficiente para ser aplicado a relaes no espaciais, precisamente no contexto geogrfico ou espacial que ele se apresenta menos satisfatrio e torna-se sinnimo defronteira. No meu tratamento das "periferias", irei recorrer a trs termos utilizados pelos gegrafos: "umland","hinterland" e "vorland"39. Por "umland", quero designar uma regio imediatamente contgua a um ncleo. Para oBrasil colonial litorneo, as "umlands" eram caracterizadas pelo clima moderado, solos de diferentes composies,apropriados para uma variedade de cultivos, alturas pluviomtricas adequadas e previsveis, acesso mo-de-obra, e - mais importante - proximidade com os mercados e com um porto de exportao. Elas tinham ligaesculturais, polticas, econmicas e sociais de proximidade com o ncleo/centro. "Hinterland" implica em umadistncia maior, mas em uma continuidade territorial entre o ponto nuclear de referncia e a "hinterland", assimcomo em um relacionamento - cobrindo o espectro de frgil a forte - a ser definido entre os dois. Em minhaproposta, isto no inclui a "umland", na mesma medida em que estes dois espaos no dividem fronteiras comuns."Vorland" refere-se a localidades que no tm continuidade territorial com o ncleo, mas em relao s quais oncleo tem uma intensa conexo, constituindo um relacionamento significante. Os portos aparecem dentro destacategoria. No Brasil colonial dois exemplos de relacionamento to prximo podem ser observados entre Bahia e oGolfo de Benin, ou entre o Rio de Janeiro e Angola ou mesmo Moambique. Aquilo que constitui uma "umland",uma "hinterland" e uma "vorland" algo subjetivo, dependendo da perspectiva ou das percepes de um indivduoou grupo.

    O relacionamento entre o centro e sua "umland", "hinterland" ou "vorland" era tambm suscetvel mudana. Porexemplo, uma relao unidimensional baseada em uma "umland" ou em uma "hinterland", enquanto as principaisprovedoras de alimentos bsicos para um ncleo, poderia evoluir para uma relao comercial muito maiscomplexa, ganhando importncia social, estratgica ou administrativa: em resumo, tornando-se multi-dimensional.Por meio de sua contigidade em relao ao ncleo, era pouco provvel que uma "umland" fosse outra coisa almda "umland" de um ncleo em especfico; no entanto a "hinterland" ou a "vorland" poderiam ter este

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  • relacionamento com um nico ou com mltiplos ncleos concomitantemente ou in seriatum. Inversamente, otempo e as circunstncias poderiam significar que um ncleo no manteria a mesma "hinterland" ou "vorland"; ouque dois ncleos poderiam dividir a mesma "hinterland" ou "vorland". Resumidamente, estas eram variantes ecombinaes que acompanhavam tais relacionamentos envolvendo um ncleo. Uma "hinterland" poderiadesenvolver um relacionamento com outra "hinterland" interior na ausncia de um ncleo, ou uma "hinterland"poderia desenvolver-se em um ncleo. O mercado era o mais importante fator afetando o processo de mudana.Tais denominaes introduzem a discusso acerca da especificidade ausente no termo "periferia", emborapreservando o ncleo ou centro como o ponto de referncia.

    As questes que precisam ser interpostas so: quais eram as circunstncias que incidiam para que uma regiofosse designada enquanto perifrica em termos espaciais? Em que estgio a contiguidade incorporava o perifrico?Por exemplo, o Recncavo contguo ou perifrico a Salvador? Respostas podem ser dadas em termos espaciais,mas podem tambm depender do perodo em discusso. No sculo XVI, plantaes de acar e engenhos doRecncavo eram remotos o bastante de Salvador em termos de distncia - mais precisamente em termos doacesso e de comunicaes - a ponto de poderem ser considerados perifricos40. J ao longo do sculo XVII isto noera mais o caso: o maior acesso por terra e gua e a criao de vilas no Recncavo tornaram esta regio contguaa Salvador. Algumas parquias (freguesias) do Recncavo poderiam ento ser consideradas como parte da "grandeSalvador". Na primeira dcada do sculo XVIII, acampamentos mineradores na parte ocidental daquilo que aindaera a capitania do Rio de Janeiro eram perifricos cidade do Rio: de fato, eles constituam a fronteira ocidental dacapitania. Em torno da dcada de 1730 cidades mineradoras, naquilo que ento havia se tornado Minas Gerais,tinham um relacionamento diferente com a cidade do Rio de Janeiro. Conexes regulares e interesses comerciaiscomuns tornaram tais vilas mais acessveis ao Rio e, portanto, menos perifricas. Em ambos os casos o que ocorriainicialmente indicativo do fato de que a localizao perifrica, seja em termos das plantaes ou dascomunidades mineiras, se constitua na fronteira da colonizao. Em uma segunda fase, outros povoados foramcriados, usufruindo de um maior acesso em relao ao ncleo anterior ou recente, assim como de um maior graude autonomia administrativa. Reformulava-se ento no apenas o nexo em relao ao ncleo, alterandoigualmente a primitiva posio de periferia para outra que poderia ser definida como de contigidade, mensuradaem termos espaciais ou no. Esse movimento havia se dado dentro da esfera de influncia do Rio de Janeiro. Assimsendo, a complementariedade ou a convergncia de interesses entre ncleos e periferias anteriores produzia umasensao - ou uma percepo - de contigidade. Em alguns casos, aquilo que inicialmente havia se constitudo emperiferia se transformara em ncleo, desenvolvendo suas prprias redes de satlites, fazendo-os ou no girar emtorno de si, ou incorporando-os no que havia sido a periferia do ncleo original, tornando mais poderosa a suarbita de influncia.

    Vilas foram criadas no Brasil antes do estabelecimento do governo da Coroa em 1549. Elas incluam Santos (1532),Vitria (1535), So Paulo (cerca de 1535) e Olinda (1537). Como centros de riqueza e distino social, Olinda eSalvador eram preeminentes antes de 1600, testemunho da importncia do acar na formao da colnia. A elasjuntava-se o Rio de Janeiro (fundado em 1565) enquanto cidades ncleos do Brasil - na verdade, as nicas cidadesda colnia antes de 1700. Em direo ao sul do Rio, a capitania de So Vicente possua os povoamentos de Santose So Vicente; no interior se localizava o pequeno povoado de So Paulo. Se por um lado se observou nesteperodo um pequeno desenvolvimento em termos dos ncleos, por outro houve considervel desenvolvimento dasperiferias. As duas ltimas dcadas do sculo XVI, e o sculo XVII, assistiram ao acesso de portugueses a regiesdo Brasil at ento inacessveis devido existncia de ndios hostis, distncia em relao aos centrospopulacionais, e presena holandesa que se estendeu (1630-1654) de Pernambuco ao Maranho. O mpeto deavanar para alm dos povoamentos nucleares partiu no das autoridades da Coroa, mas de trs grupos, sendoque nenhum deles era central para sociedade metropolitana ou colonial: jesutas e homens do clero em busca dealmas; paulistas em busca de ndios; e fazendeiros de gado em busca de pastagens. Os interesses da Coroa - queno se constituam propriamente em uma poltica - eram: colonizao de regies sensivelmente estratgicas,defesa contra foras europias; povoamento de regies recm descobertas; incremento da populao de origemeuropia no sentido de obteno de fora humana para a defesa e produo agrcola, tanto para o sustento doncleo de povoamento, quanto para exportao. Na realidade, a contribuio financeira da Coroa era negligente elimitada distribuio de sesmarias, de isenes fiscais a determinados colonos, e de privilgios aos queinvestissem na produo de cana. Ordens eram dadas ao corregedor em Lisboa para comutar as sentenas deexlio daqueles que haviam sido destinados frica e ao Estado da ndia, para que servissem no Brasil com oobjetivo expresso de prover fora humana para as tropas, e de se tornarem colonos em potencial. O final do sculoXVI assistiu a um constante movimento portugus em direo ao norte, de Salvador/Bahia para Sergipe e norte dePernambuco. Antes do final do sculo, Paraba e Sergipe haviam sido colonizados. O processo subseqente deerradicao dos ndios, de expulso dos holandeses e de incentivo expulso dos franceses do norte da Paraba,culminou, no sculo XVII, com a busca de novas terras para colonizao. Da Bahia e de Pernambuco futurospovoadores rumaram para oeste, de onde se bifurcaram tanto em direo a noroeste e nordeste, atravs doserto, quanto em direo ao norte e ao sul. Efetivou-se o povoamento do Rio Grande do Norte, Cear, Piau,Maranho (aps a expulso dos franceses), e organizaram-se entradas espordicas no delta e na bacia doAmazonas, onde o processo de colonizao no se fez de forma regular e sustentada. O estabelecimento de vilas(no cidades) refletiu estas mudanas: So Lus, 1615; Belm, 1616; Paraba, cerca de 1646-1649; Fortaleza,1699; Recife, 1709. Porm, no sculo XVII, estas novas vilas - portos martimos, em sua totalidade - no podemser tomadas como algo alm de centros locais ou regionais, cada qual com sua prpria "umland", ao invs de umaperiferia. Pequenos povoamentos surgiram ao longo das rotas de gado do serto. Belm do Par era sui generis. As

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  • peculiaridades das correntes e dos ventos do Atlntico colocavam Belm em uma posio estratgica entre Lisboa ea costa este-oeste do Brasil e da Amaznia. Era o porto de exportao do norte do Brasil, cobrindo uma regio todistante quanto o mdio e o alto Amazonas, e era o principal porto receptor das importaes vindas de Portugal,sendo ali repassadas a outros navios. Belm tinha portanto uma "hinterland", mas o fato mais excepcional parauma vila de tamanho to pequeno, era a existncia de uma "vorland", ou seja, Lisboa. Em contraste, Santos, cuja"hinterland" inclua So Paulo, permanecia subordinado ao porto do Rio de Janeiro, no tendo desenvolvido umcomrcio transatlntico a ponto de se considerar que um porto africano ou mesmo portugus se constitusse em"vorland". Entretanto, tal era o comrcio legal para os portos do sul e o comrcio ilcito com o rio da Prata, quepoderia ser desenvolvido o argumento de que Buenos Aires se apresentava como uma "vorland" unidimensional(em outras palavras, comercial) de Santos. Aquilo que colocava Salvador parte e, em menor escala nestemomento, Rio de Janeiro e Olinda/Recife, era o fato de que serem cidades multi-funcionais e que cada uma haviaestabelecido sua prpria "umland", "hinterland" e "vorland".

    Concomitantemente, observa-se no sculo XVII uma movimentao em direo s reas ao sul do Rio de Janeiro ede So Paulo. Na dcada de 1640, Salvador Correia de S defendia, por razes econmicas e estratgicas, opovoamento das partes meridionais do Brasil e o estabelecimento da presena portuguesa no rio da Prata. Nadcada de 1650 existiam povoamentos em Curitiba, Paranagu (vila, cerca de 1646-9) e So Francisco do Sul. Em1680 os portugueses vieram a construir seu primeiro forte na Colnia do Sacramento41. Desses povoados, apenasCuritiba no se situava no litoral, e nenhuma daquelas vilas merecia a definio de ncleo. Este era tambm o casode So Paulo. Apesar de se encontrar entre as primeiras vilas criadas no Brasil, So Paulo continuava a ser umpovoado de fronteira, com uma populao em expanso e comunidades satlites ao seu redor; mas era menos umncleo do que um lugar de partida de expedies de explorao (bandeiras) e de incurses dirigidas para oeste,norte e sul do Brasil. Tais expedies (freqentemente razias contra misses jesuticas em busca de escravos) eramto pouco estruturadas, coordenadas e espordicas, que no chegavam a estabelecer ncleos de povoamentosperifricos a So Paulo, apesar de terem estendido o raio de suas viagens at (e para alm) dos limites da Amricaportuguesa, conforme o especificado pelo Tratado de Tordesilhas (1494)42. O sculo XVII tambm testemunhou omovimento para o interior, a partir da rea litornea do Rio de Janeiro, at Campos dos Goitacazes, cujas terraseram propcias para a criao de gado. Mas o relacionamento entre Campos e Rio de Janeiro era caracterstico deuma "umland", voltada para a proviso de produtos de subsistncia ao ncleo, e para o provimento de matriasprimas de exportao. Havia uma dependncia mtua em um nico nvel, no se tratando de uma relao multi-dimensional entre ncleo e periferia.

    O sculo XVIII representou um perodo de mudanas. A descoberta de depsitos de ouro em grande quantidade naregio do rio das Velhas na dcada de 1690, despertou mltiplas e intensas corridas do ouro at os anos de 1730,principalmente s regies central e ocidental do Brasil (Minas Gerais, Gois e Mato Grosso). As pessoas queintegraram essa movimentao febril eram provenientes de Portugal, das ilhas portuguesas do Atlntico e, no casodos escravos, da frica ocidental, central e oriental. O jesuta Antonil descreveu este amplo espectro racial: "Dascidades, vilas, recncavos e sertes do Brasil, vo brancos, pardos e pretos, e muitos ndios, de que os paulistas seservem"43. Esta era uma decolagem para o Brasil em cinco sentidos. Inicialmente, pela primeira vez a colniaexperimentava ondas migratrias seriadas. Em segundo lugar, um massivo movimento demogrfico deslocava-sedos portos e do litoral para o interior. Terceiro, isto representou o movimento migratrio mais intenso at aqueladata entre regies do interior: migrantes e especuladores com destino s reas de minerao, oriundos doMaranho, Par, Cear, Piau, Pernambuco, Bahia, So Paulo e Curitiba. Em quarto lugar, na medida em que o rioSo Francisco serviu como um importante canal de acesso dos migrantes para Minas Gerais, o transporte fluvialacabaria por se tornar o principal fator na migrao para o extremo oeste do Brasil, notavelmente para aquelasregies que constituiriam futuramente o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondnia. Deveras importante foi adimenso martima da gesto de Rolim de Moura, primeiro governador (1748) do Mato Grosso, que ordenara ainstituio de canoas armadas e definira um plano estratgico para a defesa naval do Mato Grosso44. Finalmente,os nmeros relativos ao comrcio inter-regional de escravos provavelmente excederam a migrao de brancos e depessoas livres de descendncia africana. Isto coincidiu com movimentos marcados por uma continuidade,concorrendo para o povoamento da regio sul e da Amaznia. Em contraste com o sculo XVII, a centria seguinteassistiu migrao subsidiada pela Coroa, proveniente dos Aores, com o objetivo especfico de ocupar e povoar asterras do sul. A Colnia do Sacramento e Santa Catarina falharam no sentido de corresponder a essasexpectativas, mas solos frteis e clima saudvel, unidos a um excelente porto e livre disponibilidade de acessopara o gado selvagem, atraram colonizadores de Portugal e de regies to distantes, como da Bahia e de MinasGerais, para o Rio Grande de So Pedro. Em torno do ano de 1780, a populao j se encontrava na casa dos18.000 habitantes, incluindo 5.102 escravos negros45. Uma iniciativa interessante foi aquela realizada em 1808,com a utilizao de fundos oriundos da Intendncia Geral da Polcia do Rio de Janeiro, no sentido de trazerimigrantes aorianos para se estabelecerem no Rio de Janeiro, So Paulo, Porto Seguro e Esprito Santo46. NoAmazonas, aqui considerado como as capitanias do Gro Par e Maranho, a populao branca no passava de umtotal de 2.000 pessoas em 170047. O cacau e as drogas do serto originrias da bacia amaznica, assim como ocultivo de algodo na costa, estimularam a criao por Pombal (1755), da Companhia do Comrcio do Gro Par edo Maranho. Entretanto, no Par o cultivo de arroz, cacau e caf no era de tal monta a ponto de induzir aorganizao de grandes estabelecimentos, implicando apenas em uma ampliao no nmero de escravos negros.Apesar da regio ter adquirido importncia econmica devido s exportaes, ela permanecia demogrfica eadministrativamente perifrica colnia. Da mesma forma, o sistema de ventos e as correntes isolavam a costa

    AndrCarlosRealce

  • este-oeste, de So Roque ilha de Maraj, do resto do Brasil, sendo mais fcil alcanar Lisboa do que a Bahia48.

    O sculo XVIII foi um perodo de intensa movimentao em toda a colnia. Esta mobilidade refletia um espritoempresarial generalizado e dinmico que abria novas oportunidades e novas fronteiras, mas que tambm concorriapara a instabilidade e a inquietao civil. Pela primeira vez, grupos de intelectuais eram constitudos no Brasil emreas para alm das cidades porturias de fcil monitoramento. Apesar de uma maior distribuio espacial dapopulao do Brasil em 1800, do que em 1700; somente em Minas Gerais pode-se falar de um novo ncleopopulacional significante que, pela altura do terceiro quartel do sculo XVIII, no apenas excedia em nmero o dequalquer outra regio, mas permanecia em torno de 20% da populao da colnia: 319.769 habitantes em c. 1776e 407.004 em 1805. O Cear apresentou um sbito e impressionante crescimento de 61.408 (3,9%) em 1776 para125.764 (6,1%) em 1808. A capitania de So Paulo assistiu a duas etapas de crescimento entre 1776 e 1810, masse manteve em quinto lugar: pouco mais do que a metade da populao de Pernambuco e menos de um tero daBahia. Pessoas de descendncia africana constituam a maioria (mais de 78% na Bahia, 74% em Minas Gerais,82% em Gois) em todas as capitanias por volta do final do perodo colonial, com exceo de So Paulo e RioGrande do Sul, nas quais havia uma maioria branca. Apesar do curso da migrao trans-ocenica e intra-brasileirano perodo de 1700-1820, Paraba, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro permaneceram como os ncleosdemogrficos da colnia, somando cerca da metade da populao colonial. Provavelmente, no final do perodocolonial, em torno de 70% das pessoas ainda viviam na costa ou em regies de fcil acesso