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Alegorizando as Periferias: pontos de articulacao entre a crítica cultural de Fredric Jameson e Roberto Schwarz

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    Alegorizando as periferias: pontos de articulao entre a crtica cultural de FredericJameson e Roberto SchwarzAuthor(s: McNee, Malcolm K.Published by: Associao Internacional de LusitanistasPersistent URL: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/33885

    Accessed : 11-Jul-2015 22:41:37

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  • VEREDAS 4 (Porto, 2001) 245-264

    Alegorizando as Periferias: Pontosde Articulacao entre a Critica Culturalde Fredric Jameson e Roberto Schwarz

    MALCOLM K. McNEEEUA, Universidade de Minnesota

    The profound hypocrisy and inherant bar-barism of bourgeois civilization lies unveiledbefore our eyes, turning from its home, whereit assumes respectable forms, to the colonies,where it goes naked.

    KARL MARx, "On Imperialism in India"

    Numa aula recente, dedicada a discussao de Dom Casmurro deMachado de Assis, .uma estudante fez uma observacao interessante,carregada com algumas das questoes mais perduraveis para escrito-res e criticos brasileiros, latino-americanos, e ate "terceiro-mundistas"ou "p6s-colonialistas," se aceitarmos de momento tais categorias con-testadas. A estudante, com um genuino entusiasmo de louvor, disseque ao ler a obra de Machado sentia-se como se estivesse lendo umromance "europeu," que 0 livro tinha uma certa qualidade ou aurade europeidade que faltava aos outros textos que tinhamos lido.Ressaltando a hierarquia qualitativa invertivel que a observaeao delaparecia sugerir, vale a pena mencionar que Machado de Assis, durante

  • 246 Malcolm K McNee

    a sua vida, foi acusado de nao ser brasileiro autentico. Como RobertoSchwarz observa, Silvio Romero, numa critica escrita em 1897 contraMachado de Assis, cIassifica a arte do escritor como "anglomaniainepta, servil, inadequada etc." (1989, 39).

    De tal modo, uma das questoes contidas na caracterizacao posi-tiva da estudante e a negativa de Romero tem a ver com a dicoto-mia nacional/cosmopolita ou local/universal. Posicionar os elementosdiscursivos de urn escritor ao longo de urn espectro que corre do localate 0 universal tem sido uma estrategia de avaliacao critica e histo-riografia literaria perduravel mas tambem problematica, talvez aindamais para as literaturas "perifericas", visto que a universalidadeimplica uma certa fidelidade a tradicao formal e filos6fica ocidentalou europeia. Tambem implica a possibilidade de questionar a origi-nalidade do texto periferico, de medir os nfveis da dependencia ines-capavel dos modelos ou antecedentes europeus, a fonte de uma longaconversa critica no Brasil e na America Latina em geral.

    Outra dimensao da observacao da estudante tem a ver com asua recepcao do texto e a subseqiiente construeao do seu sentido.Paradoxalmente, para aquela leitora, saber das origens do romancenum pais periferico fez com que ela 0 classificasse como europeu (leia-se: universal ou cosmopolita?). Pois, a questao que fica ressaltada ecomo este saber afetou conscientemente e subconscientemente a sualeitura e a sua participacao na construcao dos sentidos imanentes ealeg6ricos do texto.

    Tomando a observacao da estudante sobre Machado de Assis eas questoes nela implfcitas como ponto de partida, minha propostapara este trabalho e uma analise de dois criticos que oferecem estra-tegias dialeticas para reformular ou matizar as dicotomias local/luniversal, originalidade/dependencia e colonialismo/p6s-colonialismo.Focalizo especificamente nas suas construcoes te6ricas de um papelda periferia, ou uma posicao material e epistemol6gica do chamadoTerceiro Mundo, que poderia informar a leitura de textos individuaise a formacao e reforma de canones de literatura local e mundial.

    Comeeo com uma leitura da obra de Fredric Jameson, especifi-camente do papel do Terceiro Mundo na sua critica do p6s-moder-nismo como expressao cultural da mundializaeao capitalista entrandonuma nova epoca de consolidaeao. Como observa Santiago Colas, noargumento de Jameson, 0 Terceiro Mundo, como espaco material, men-

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    tal e discursivo, tem uma dupla funcao: (1) a sua conquista, trans-formacao, e eventual eliminaeao pelas foreas de desenvolvimento capi-talista representariam a consolidacao do "capitalismo tardio" como sis-tema mundial hegemonico; (2) nao obstante, tambem este seria 0espaco que poderia oferecer as maiores possibilidades de resistenciae oposicao aquela consolidacao, 0 espaco supostamente mais hetero-geneo do Terceiro Mundo, em termos estruturais e ideol6gicos, tornapossivel pensar 0 presente historicamente, uma capacidade relativa-mente limitada para 0 sujeito de um Primeiro Mundo relativamentehomogeneizado. Seguindo esta 16gica, Jameson confere a literatura doTerceiro Mundo este papel contra-hegemonico, em oposieao ao romanceburgues, individualista, psicol6gico, e primeiro-mundista, declarandoque:

    Os textos do Terceiro Mundo necessariamente projetam uma dimensaopolftiea na forma de alegoria nacional: isto e, a hist6ria do destino indivi-dual e privado e sempre uma alegoria da situacao de luta da cultura e socie-dade ptiblicas do Terceiro Mundo (1986, 69; minha tradueao).

    Sigo esta leitura seletiva de Jameson com uma discussao do cri-tico, Roberto Schwarz. Focalizo nao s6 na sua extensa obra sobreMachado de Assis, mas tambem nos ensaios que enfatizam individuos,geracoes intelectuais ou movimentos na hist6ria cultural brasileiraque abertamente tentaram resolver ou ultrapassar as problematicasindicadas pelas dicotomias ja mencionadas. Nos ensaios sobre Machadode Assis, Schwarz privilegia uma leitura aleg6rica, mas tambem his-toricizada, onde ha uma contradicao ou, pelo menos, uma tensao evi-dente que merece mais ateneao. Segundo a leitura de Schwarz, osmelhores romances de Machado nao s6 expoem cuidadosamente a dina-mica social do Segundo Imperio brasileiro e a dificil transieao aPrimeira Republica, mas tambem apresentam uma reflexao ainda rele-vante sobre a situacao ideol6gica do Brasil como pais periferico edependente, e desta forma deixam uma li\(ao aleg6rica sobre a essen-cia ou marca supostamente inevitavel da nacao devida a posicao dopais numa ordem mundial capitalista.

    Por ultimo, demonstro que 0 ponto mais saliente que Jameson eSchwarz compartilham, e que parece sublinhar especificamente a cons-tru\(ao te6rica de um papel para as literaturas perifericas, e um pri-vilegiar epistemol6gico da consciencia subalterna. Os dois reafirmam

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    a dialetica hegeliana do patrao/escravo que atribui, nas varias rearti-culacoes ao longo de toda a tradicao marxista, ao marginal, perife-rico, subalterno, etc. uma consciencia situacional superior Ii hegemo-nica para revelar sistemas de poder ou totalidades sociais. Por issoSchwarz e Jameson compartilham algumas das dificuldades ou fra-quezas te6ricas e metodol6gicas com 0 projeto de estudos subalternosem geral: isto e, ter que encontrar e representar a consciencia dife-rencial, a negatividade do sujeito subalterno - isto e, uma "singula-ridade cultural" - e, ao mesmo tempo, evitar uma simples e simplifi-cante polftica de identidades. Fazer isso ao nivel da dicotomiaPrimeirolTerceiro Mundo ou CentrolPeriferia no contexto da mundia-lizaeao atual e, epistemologicamente, dificil, mas tambem necessario,pedagogicamente, para ressaltar dissimetrias de poder a estos nfveisgeo-polfticos e culturais. Em fim, suas tentativas ou estrategias derepresentar singularidade cultural subalterna envolvem a formacao epromocao de canones literarios ou culturais que teriam urn fim peda-g6gico de expor criticamente a singularidade hegemonica do sistemamundial capitalista. A fraqueza te6rica talvez inevitavel que fica e avulnerabilidade Ii facil desconstrucao te6rica de qualquer dessas sin-gularidades culturais, seja Centro, Periferia, Primeiro Mundo ouTerceiro Mundo. Alberto Moreiras identifica esta dificuldade: "A situa-

    ~ao fundacional do subalternismo e a vacilacao constitutiva entre afir-macao de singularidade cultural e seu abandono como ilusao ideol6-gica" (879; minha traducao).

    * * *

    Embora Jameson declare que talvez seria "orientalista" de suaparte tentar formular uma teoria geral para a grande pluralidade querepresenta a literatura do Terceiro Mundo, no ensaio publicado em1986, "Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism,"ele oferece umas perspectivas "provis6rias" e uma estrategia de lei-tura para abranger esta pluralidade. E uma proposta teoricamentemuito perigosa, devido Ii multiplicidade de culturas e hist6rias quepermite uma facil critica da sua categoria de Terceiro Mundo. 0 con-traponto desta essencializacao dos objetos do seu estudo e a identifi-

    ca~ao de urn grupo especifico de leitores para 0 qual sua estrategiade ler a literatura "terceiro-mundista" seja necesaria. Jameson diz

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    querer comunicar aos leitores "primeiro-mundistas" (e menciona espe-cificamente os norte-americanos) um sentido de interesse e valor deliteraturas marginais com 0 intento de abrir mais espaeo para elasnos canones das instituieoes e curriculos academicos primeiro-mun-distas. Seus leitores, portanto, siio "pessoas formadas pelos valores eestere6tipos de uma cultura primeiro-mundista." Ele, a continuar, des-creve a necessidade de uma aproximacao destes leitores as culturas,ou, para comecar, as tradicoes literarias do Terceiro Mundo:

    [Nlenhuma destas culturas pode ser concebida como independente ouautonorna antropologicamente, senao, sao todas, de varias e distintas manei-ras, empenhadas numa luta de vida ou morte com 0 imperialismo culturalprimeiro-mundista - uma luta cultural que e, em si, uma reflexao da situa-~ao economica de tais areas na sua penetraeao por varias etapas de capital,ou como e chamado eufemisticamente, modernizaeao. Isto, entao, e um pri-meiro sentido de como um estudo da cultura terceiro-mundista necessaria-mente implica uma vista nova de nos mesmos, desde fora (1986, 68; minhatraducao).

    o que parece essencial na posicao de Jameson com respeito asuposta capacidade de literatura periferica para desmistificar 0 capi-talismo global e a relaeao entre forma e conteudo. Segundo seu argu-mento, em geral os romances do Terceiro Mundo tern um "defeito"qualitativo que reflete as condicoes materiais e epistemol6gicas dasua produeao: uma mistura desafinada do pessoal e do politico quenao oferece ao leitor "tipico" do Primeiro Mundo a mesma satisfaeaode um Dostoyevsky, Proust, ou Joyce.

    Aqui, Jameson parece reafirmar a posicao de Georg Lukacs sobrea forma romanesca e a ponte entre 0 particular e 0 geral que e umelemento essencial da relacao entre 0 romance e um conjunto de pro-blematicas e ideologias burguesas. Seguindo a proposta de Hegel,Lukacs insiste no fato de que a forma funciona numa relacao diale-tica com 0 conteudo ideol6gico. E 0 romance, como forma cultural, ea "epica burguesa", refletindo inicialmente a autoconfianca na conso-lidacao de hegemonia burguesa, mas tambem, eventualmente, a alie-nacao e 0 desabrigo do sujeito numa sociedade moderna, uma socie-dade desprovida de uma totalidade de sentido. 0 romance e amanifestacao cultural de uma saudade do absoluto desaparecido.Lukacs descreve a estrategia discursiva do romance como tipicamente

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    ironica, e "0 epico de um mundo abandonado por Deus" (Eagleton,27; minha traducao).

    Os grandes romances sao, portanto, aqueles que, num esforcopara reconstruir uma realidade cada vez mais fragmentada ou umainteireza humana, narram a dialetica entre 0 pessoal e 0 social, 0geral e 0 particular, 0 presente e os movimentos significantes ou atrajet6ria da hist6ria. Alguns escritores, posicionados temporalmentedurante transicoes tumultuosas de epocas hist6ricas, podiam perceberos seus presentes como hist6ria. Por isso, podiam construir 0 queLukacs privilegia como romances de realismo hist6rico, nos quais 0sujeito e ligado a totalidade social e cada particularidade da sua vidasocial e informada com 0 poder dos movimentos significantes do pro-cesso hist6rico (Eagleton, 28-29).

    Na sua caracterizacao de romances do Terceiro Mundo e sua refle-xao sobre varies escritores especificos, Jameson imputa-lhes essa cons-ciencia hist6rica, mas tambem imbuida de uma dimensao situacionalespecifica, relativa a sua posicao na periferia ou limiar da expansaoe consolidacao de capitalismo mundial. Mas Jameson tambem imputa-lhes uma "deficiencia" de nao reproduzir fielmente a dinamica fami-liar do romance burgues entre 0 particular e 0 universal, esvaziandoo sujeito do seu sentido imanente e, portanto, tornando-o consciente-mente aleg6rico:

    Todos os textos Iiterarios do Terceiro Mundo sao, necessariamente, ale-goricos, e de uma maneira muito especifica: devem ser lidos como alegoriasnacionais. Uma das caracterfsticas determinantes da cultura capitalista, istoe, a cultura do romance realista e modernista ocidental, e uma cisao radicalentre 0 particular e 0 publico, entre 0 poetico e 0 politico, entre 0 que cos-tumamos pensar como a esfera da sexualidade e. a do poder politico secular:em outras palavras, Freud contra Marx (69; minha traducao).

    Jameson propoe que esta "deficiencia", isto e, a tendencia maisabertamente aleg6rica, seja um antidoto para a tendencia oposta naliteratura que agora domina a sensibilidade dos leitores do PrimeiroMundo. Nesta tradicao, 0 sentido politico e restrito ao individuo, psi-cologizado, e explicado em termos de dinamicas individuais ou subje-tivistas de, tipicamente, ou ressentimento pessoal ou personalidadeautoritaria. No Primeiro Mundo, segundo a generalizaeao bastanteabrangente de Jameson, 0 politico e ate 0 engajamento politico sao

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    psicologizados, enquanto que, no Terceiro Mundo, 0 psicol6gico e lidoprimariamente em termos politicos e sociais:

    Tais estruturas aleg6ricas, entao, nao sao tao ausentes dos textos cul-turais do Primeiro Mundo, como sao inconscientes, e por isso tem que serdecifradas por mecanismos interpretativos que necessarimente requerem umacompleta critica social e hist6rica da nossa atualidade primeiro-mundista.Meu ponto aqui e que a diferenea das alegorias inconscientes de nossos tex-tos culturais, as alegorias nacionais do Terceiro Mundo sao conscientes e evi-dentes: inferem uma relacao objetiva e radicalmente diferente entre a polf-tica e dinfunicas libidinais (79-80; minha tradueao).

    A raiz desta diferenea da dinamica de sentido na literatura doTerceiro Mundo e sua subalternidade material e discursiva e a cons-ciencia situacional que esta subalternidade carrega. Segundo Jameson,subalternidade e a nocao que abrange os sentimentos de inferioridademental e criativa, os habitos de subserviencia e obediencia que resul-tam de situacoes de dominacao explicita elou implicita. Longe de seruma deficiencia, a subalternidade e a sua tendencia aleg6rica nassuas manifestacoes romancistas do Terceiro Mundo e uma forea deprivilegiar epistemol6gico segundo Jameson. S6 0 subaltemo tem apossibilidade de alcanear uma consciencia verdadeira da sua situa-~ao, da totalidade das foreas materiais e dos sistemas de poder.Entretanto, 0 hegemonico e condenado ao idealismo, ao luxo de umaliberdade que torna impossfvel qualquer consciencia da sua pr6priasituacao. E esta a situacao que marca a consciencia cultural do pri-meiro mundo e que poderia ser desafiado atraves de maior espacopara literaturas perifericas nos canones academicos, Aqui se identi-fica seu fim pedag6gico para a entrada dos romances do TerceiroMundo nos cursos do Primeiro Mundo:

    A visdo de cima e epistemologicamente debilitante e reduz seus sujeitosas ilusoes de uma multidao de subjetividades fragmentadas sem passados nemfuturos coletivos, sem qualquer possibilidade de perceber a totalidade social.Esta individualidade sem lugar, este idealismo estrutural oferece uma fugado "pesadelo da hist6ria," mas ao mesmo tempo condena nossa cultura ao psi-cologismo e as projeeoes de subjetividade privada. Todo isto e negado a cul-tura do Terceiro Mundo, que tem que ser situacional e materialista. E e istoque explica a natureza aleg6rica da cultura do Terceiro Mundo, onde a nar-

    ra~ao da hist6ria individual, finalmente, nao pode senao envolver a narracaoabrangente da experiencia da pr6pria coletividade (85-86; minha tradueao).

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    Antes de continuar com a discussao sobre 0 privilegiar epistemo-logico do subalterno que parece ocupar urn espaeo importante na basete6rica da critica cultural de Roberto Schwarz, e preciso questionaras categorias de diferenca e de coletividade que parecem ser impor-tantes na construcao de Jameson de urn papel "universal" (ou no "cen-tro") para literaturas terceiro-mundistas. Nas categorias, atraves dasquais a dialetica hegeliana e interpretada, encontramos algumas dife-rencas importantes entre Jameson e Schwarz.

    Em urn artigo que responde diretamente a proposta te6rica deJameson, Aijaz Ahmad questiona a oposieao binaria que Jameson man-tern entre 0 Primeiro Mundo e 0 Terceiro Mundo. A categoria doTerceiro Mundo situa-se na negacao de diferenca entre os multiplespaises e povos que experimentaram, e experimentam, distintas rela-

    ~oes com as nacoes definidas por seu status de ex-poder colonial ecentro do capitalismo avancado. Alem disso, os paises do chamadoTerceiro Mundo tern distintas relaeoes com 0 dominante mecanismocultural identificado por Jameson e Ahmad: 0 capitalismo globalizante.Finalmente, a divisao te6rica entre 0 Primeiro e 0 Terceiro Mundonega subjetividade a este Ultimo: "[0] Terceiro Mundo e definido pura-mente em termos de uma 'experiencia' de fenonomos externamenteinseridos" (Ahmad, 6; minha traducao), 0 Primeiro Mundo e definidoem termos de producao, de capitalismo, enquanto 0 Terceiro Mundoe definido s6 como objeto de forcas hist6ricas dirigidas externamente,o imperialismo e 0 neoimperialismo.

    Walter Mignolo tambem questiona esta dicotomia mas reconheceque ha validade na tentativa de Jameson de reformular 0 canone lite-rario com maior espaco para textos que poderiam desafiar nossa sen-sibilidade nao hist6rica e individualista. 0 que falta na posicao deJameson e a nocao de coexistencia e dialogo necessario entre variescanones e uma reflexao precisa sobre para quem 0 canone e cons-truido. Alem de reconhecer varies canones para uma heterogeneidadede coletividades, Mignolo faz uma distineao entre dois tipos de cano-nes: 0 "vocacional" e 0 "epistemico. Se aceitarmos a diferenciaeao entreo ensino de literatura ao nivel vocacional e os estudos da disciplinaao nivel epistemico, podemos entender 0 que de outro modo parece-riam noeoes essencialistas, discriminat6rias, ou imperialistas por partede Jameson, incluindo a dicotomia Primeirofl'erceiro Mundo:

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    Enquanto 0 ponto de vista vocacional pennite a integraeao de leiturasnao-ocidentais ou terceiro-mundistas no curriculo ingles, a perspectiva episte-mica nos alerta ao fato de que 0 que faz sentido do ponto de vista do curri-culo ingles e das necessidades de uma certa comunidade nlio necessariamentefaz sentido para a comunidade do qual os textos foram obtidos emprestados(16-17; minha traducao).

    Ahmad tambem problematiza a enfase que Jameson da a cate-goria da nacao como sujeito hist6rico ou objeto de analise te6rica.Mesmo se aceitarmos a possibilidade de uma forte tendencia de ale-goria nas literaturas identificadas por Jameson, Amhad defende aexistencia de outras coletividades indicadas por estas alegorias: classe,genero, communidade religiosa, sindicato, partido politico, aldeia,regiao, etc. Ahmad questiona se a designaeao de "alegoria nacional"nao reforca uma ideologia da naeao que ja historicamente ha exclufdoou suprimido uma multiplicidade de identidades coletivas (15).

    Tomando esta Ultima critica em conta, parece que Jameson pode-ria haver evitado umas das limitacoes do seu argumento s6 com umamodificacao de terminologia que refletiria mais uma flexibilidade nonfvel de sentido aleg6rico supostamente construido pelos textos emconsideraeao; talvez substituindo "alegoria nacional" por "alegoria cole-tiva", por exemplo. Mas, a categoria do Terceiro Mundo parece sermais fundamental para 0 projeto mais amplo de Jameson: a criticado capitalismo tardio e sua 16gica cultural, 0 p6s-modernismo, comoSantiago Colas indica. A coexistencia de varies modos de produeao, aexperiencia existencial de multiples mundos e etapas hist6ricas alter-nativas no Terceiro Mundo, em contraste com 0 Primeiro Mundo, man-tem um sentido do passado, uma historicidade. Apesar da penetracaode capital multinacional, 0 espaco ut6pico do Terceiro Mundo aindaoferece varias formas de cultura oposicional a hegemonia neoliberal,formas vistas como "extraterritorial and Archimedian footholds for cri-tical effectivity" que sao relativamente escassas no Primeiro Mundo(264). Sendo assim, uma estrategia que Colas oferece para nuanear eaproveitar das ideias e preocupaeoes de Jameson e:

    confrontar seu conceito de totalidade mundial com os detalhes das variasfonnas de pohtica cultural, aos quais ele talvez nlio preste ateneao, mas cujaexistencia e varias carateristicas especificas ele nao exclui. Desta maneira,certas categorias mundiais operando dentro do paradigma de Jameson [...]

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    podem ser provisoriamente re-escritas, com maior flexibilidade para nos aju-dar a compreender e articular as formas heterogeneas de resistencia cultural[...] do mundo atual (268; minha traducao),

    Jameson, em textos mais recentes, parece ter re-elaborado suascategorias, demonstrando a flexibilidade relativa delas na sua crfticageral da mundializaeao capitalista. No entanto, ele mantem a meta-dialetica hegemonico/subalterno, sustituindo em um caso a dicotomiaPrimeirotrerceiro Mundo por Os Estados Unidos/O Resto do Mundo!e escreve mais especificamente da cegueira norte-americana exempli-ficada por "nossa tendencia de confundir 0 universal e 0 cultural"(1998, 58; minha traducao),

    * * *

    Para uma discussao de textos e dinamicas culturais que supos-tamente demonstrariam ou manifestariam uma consciencia situacio-nal - isto e, a subalternidade que Jameson privilegia - voltemos nossaateneao ao contexto brasileiro e a obra do critico Roberto Schwarz.Especialista da critica literaria sociol6gica estabelecida no Brasil porAntonio Candido'', Schwarz desafiou a tradicao interpretativa sobreuma das figuras chaves da literatura brasileira (e, na opiniao de mui-tos, mundial), Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). 0 inte-resse de Schwarz nao se limita ao seculo dezenove nem a textos iso-lados. As leituras criticas de Schwarz abrangem varies movimentos e

    1 No ensaio "Notes on Globalization as a Philosophical Issue," Jameson escreve:"Ha uma dissimetria fundamental entre os Estados Unidos e todos os outros paisesno mundo, nao s6 paises do Terceiro Mundo, mas ate Japao e os paises da EuropaOcidenta!" (58; minha traducao),

    2 Veja, por exemplo, 0 ensaio "Literatura e Subdesenvolvimento", no qual Candidoreflete sobre a forma\;ao da tradi\;ao Iiteraria brasileira em termos das dialeticas uni-versal/regional e desenvolvimento/subdesenvolvimento. Especialmente interessantes nestetrabalho sao as no\;oes da "consciencia do pais novo" e da "consciencia de subdesenvol-vimento" que parecem ligadas conceitualmente Ii conscieneia situacional ou subalternaque Jameson descreve. Candido escreve : As areas de subdesenvolvimento e os pro-blemas do subdesenvolvimento (ou atraso) invadem 0 campo da consciencia e da sensi-bilidade do escritor, propondo sugestoes, erigindo-se em assunto que e impossivel evi-tar, tornando-se estimulos positivos ou negativos da cria\;ao (158)>>. E tornando aleg6ricaa dinamiea do sentido, acrescentaria talvez Jameson.

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    dinamicas polttico-culturais que marcam 0 seculo vinte brasileiro,incluindo: 0 modernismo, 0 regionalismo, 0 populismo nacional, 0cinema novo, a poesia concreta, e a tropicalia. 0 que define a suaaproximacao a alguns dos impasses consistentes e sucessos duradou-ros que estes periodos geraram e 0 movimento constante entre umacuidadosa ateneao a obra para uma analise critica e, quase semprepolemica, dos mecanismos de poder do espaco social e vice-versa.

    Numa coletanea extensa de ensaios sobre Machado de Assis3,Schwarz oferece uma leitura menos psicologizada e mais historicizadae, num sentido limitado do adjetivo, aleg6rica, iluminando a dinamicadistinta entre: (1) ideias ou formas liberais rearticuladas pela elitebrasileira, (2) a autoridade intelectualizada e estrutural dessa elite e(3) a realidade socio-economica do pais "atrasado" ou periferico.Segundo John Gledson, cuja leitura de Dom Casmurro dialoga com ade Schwarz:

    o metodo de comunicar verdade polftica pode ser descrito facilmentecomo aleg6rico porque requer que 0 leitor veja paralelos entre 0 espaco pri-vado do romance (cuja a~ao e limitada a duas ou tres famflias) e a hist6riapublica do Segundo Reinado (9; minha tradueao).

    Esta proposta de Schwarz de uma leitura historicizada, mas tam-bern aleg6rica, da construcao de sentido pela fic~ao machadiana emais sucintamente elaborada no ensaio "Ideias fora do lugar." 0 con-flito ou as contradicoes ideol6gicas que, segundo este ensaio, sao res-saltados claramente na obra de Machado de Assis tem a ver com asdiversas dinamicas entre trabalho e capital no Brasil e na Europa noseculo dezenove. A dinamica brasileira, enraizada na escravidao, con-trasta com 0 liberalismo operario europeu no seu sentido ideal. 0resultado deste conflito no Brasil e 0 que Schwarz designa "a come-dia ideoI6gica:" uma tensao entre "vivencia," a vida diaria na socie-dade escravista, e "experiencia," a vida intelectual, formada princi-palmente por ideias liberais ou modelos culturais supostamente

    3 Veja, por exemplo, os Iivros, Ao vencedor as batatas, Um mestre na periferiado capitalismo, Duas meninas, e os ensaios, "A velha pobr~ e 0 retratista" da colecao,Os pobres na literatura brasileira, "Complexo, moderno, nacional, e negativo","Pressupostos, salvo engano, da 'Dialetica da malandragem''', e "Duas notas sobreMachado de Assis" da colecao, Que horas sao?

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    universais de origem europeia, E a dinamica social que marcava estacomedia ideol6gica brasileira era "0 favor".

    Enquanto a dinamica que dominava as relacoes entre os latifun-diaries e os escravos era a autoridade fisicamente repressiva, 0 quemais marcava diretamente a vida intelectual e ideol6gica da socie-dade, pelo menos pelo que e evidente na produeao de alta cultura,eram as relacoes entre os latifundiarios e a classe de homens livresou "agregados," que compunham 0 que durante a vida do pr6prioMachado seria uma emergente classe media. A mediacao social, a dofavor, entre estas duas classes seria a maneira brasileira de convivercom a tensao entre a experiencia liberal e a vivencia escravista. 0favor mantinha uma relacao de dependencia entre ele ou ela quetinha poder e urn individuo socialmente inferior, tendo como fachadaurn discurso de igualdade, mobilidade social, raciocinio e merito. 0sistema de favor era marcado ideologicamente pelo uso da ret6ricaliberal para esconder relacoes autoritarias, decisoes irracionais, arbi-trarias ou de capricho, e para justificar e manter uma hierarquiasocio-economica:

    [Nlo campo dos argumentos adotavamos sofregamente os que a burgue-sia europeia tinha elaborado contra arbitrio e escravidiio; enquanto na pra-tica, geralmente dos pr6prios debatedores, sustentado pelo latifundio, 0 favorreafirmava sem descanso os sentimentos e as nocoes em que implica. Alemdos naturais debates, este antagonismo produziu, portanto, uma coexistenciaestabilizada - que interessa estudar. Ai a novidade: adotadas as ideias erazoes europeias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificacao,nominalmente "objetiva", para um momento de arbitrio que e da natureza dofavor (17).

    E esta dinamica social, 0 favors, que Machado de Assis expoe ecritica atraves das seus personagens; personagens bastante desenvol-

    4 Vale mencionar que a dinamica do favor que Schwarz III e analisa na obra deMachado nao e especifica aquela epoca. Um legado importante das condicoes socio-eco-nomicos e culturais descritas por Schwarz, 0 favor persiste em varias manifestacoeena sociedade atual brasileira. Por exemplo 0 antrop6logo/soci6logo Roberto DaMattades creve 0 favor em termos do "jeitinho" brasileira e a famosa expresslio "Voce sabecom quem esta falando?" que opera "as a ritual of inversion that transforms an egali-tarian, individualistic situation into a hierarchical, personalistic one" (Hess andDaMatta, 9).

  • Alegorizando as Periferias: Pontos de Articulaeao entre a Crftica Cultural... 257

    vidos pelo autor para merecerem decadas de interpretacoes primaria-mente psicologizadas.

    Mas, nao e so esta exploracao do espaco privado e subjetivo parailuminar as regras que ordenavam a vida publica de uma epoca espe-cffica que faz a obra de Machado alegorica na leitura de Schwarz.Ha outra dimensao de sentido alegorico que Schwarz ressalta com anocao bastante abrangente de "ideias fora do lugar". Machado, alemde poder problematizar e subverter as hierarquias da sociedadedaquela epoca, pode relativizar as verdades universais encaixadas nosdiscursos e formas literarios e filosoficos da Europa. A leitura deRoberto Reis concorda com esta descricao da obra machadiana:

    Machado inscreve seu trabalho s6b a primacia de relativizaeao - e nistoele insere-se no amago de modemidade. Problematizando verdades absolutas,o texto de Machado e notavel por polifonia, por conflito entre versoes, pelorelativismo de valores e sentidos (54; minha traducao),

    Machado de Assis podia realizar esta relativizaeao subversiva,segundo Schwarz, nao so devido ao seu genic individual, mas tam-bern devido a sua "consciencia situacional," a sua visao dos discursoscentricos a partir da periferia. E neste sentido que Schwarz parecedefinir urn papel para a literatura brasileira como periferica ou ex-centrica, identificando a sua diferenca, originalidade, e universalidade:

    Ao longo de sua reprodueao social, incansavelmente 0 Brasil poe e repoeideias europeias, sempre em sentido impr6prio. E nesta qualidade que elasserao materia e problema para a literatura. 0 escritor pode nao saber disso,nem precisa, para usa-las. [Dlefinimos urn campo vasto e heterogeneo, masestruturado, que e resultado hist6rico, e pode ser origem artfstica, Ao estuda-10, vimos que difere do europeu, usando embora seu vocabulario. Portanto apr6pria diferenea, a comparacao e a distancia fazem parte de sua definicao,(1981, 24-25).

    Mas este papel periferico nao esclarece se a estrategia de leituraque Schwarz propoe e ou nao alegorica no sentido muito simplificadoque Jameson sustem no seu ensaio. Esta questao encontra-se aindamais desenvolvida em urn dos mais conhecidos artigos de Schwarzsobre dinamicas culturais mais contemporaneas do Brasil: "Cultura epolitica, 1964-69."

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    Um dos conflitos ou contradicoes possiveis que aparece na obraem conjunto de Schwarz e a valorizacao de certas qualidades aleg6ri-cas da obra machadiana e, em outro contexto, a desvalorizacao daalegoria como forma de pensar e representar a realidade brasileira.Sua no~ao de ideias fora do lugar demonstra uma dimensao aleg6ricaenquanto parece transcender aquele espaco s6cio-hist6rico, revelandouma relativa falta de imanencia que Schwarz ressalta com sua com-paracao da consciencia situacional de Machado com ados grandesromancistas russos do seculo dezenove, tambem situados na periferiado liberalismo europeu. E numa entrevista Schwarz tambem reafirmaa transcendencia temporal e, porem, a alegoricidade desta tese:

    Ideias estiio no lugar quando representam abstracoes do processo a quese referem, e e uma fatalidade de nossa dependencia cultural que estejamossempre interpretando a nossa realidade com sistemas conceituais criados nou-tra parte, a partir de outros processos sociais ("Cuidado com", 120).

    No entanto, ao avaliar 0 surgimento da Tropicalia no contextoda primeira fase do governo militar no Brasil (1964-1968), Schwarzcritica negativamente sua estrategia de significacao aleg6rica. Ele des-creve a tecnica basica do movimento como a juxtaposicao de imagensde diferentes temporalidades culturais e estruturais coexistentes noBrasil. 0 efeito do pastiche entre um campo de icones da moderni-dade, da modernizacao, e do cosmopolitismo e os simbolos "anacrfmi-cos" do "subdesenvolvimento" ou "atraso" brasileiro transforma 0 paisnuma alegoria do absurdo. Schwarz escreve:

    E literalmente um disparate - e esta a primeira impressao - em cujodesacerto porem esta figurado urn abismo historico real, a conjugaeao de eta-pas diferentes do desenvolvimento capitalista ("Cultura", 1978, 74).

    Jameson talvez identificaria essa mesma conjugacao que aTropicalia pareceria ressaltar - esta heterogeneidade de etapas oumodos de producao capitalista na nacao periferica - como a fonte davantagem epistemol6gica do artista brasileiro (ou do Terceiro Mundoem geral). E sua forma mais 6bvia de significacao possivel teria queser aleg6rica, consciente ou abertamente. Enquanto Schwarz, nomomento em que escreveu sua critica da Tropicalia, nao via uma reso-lucao possivel a esta representacao aleg6rica do Brasil como conjun-

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    ~ao absurda do moderno e do atrasado - isto e, a essencia negativae a-temporal sempre pronta a ressurgir no presente eterno da naeao- Jameson talvez adotaria as alegorias da Tropicalia como momentosefetivos de conscientizacao dos leitores do Primeiro Mundo, revelandoas verdades da expansao capitalista na sua periferia. E, paradoxal-mente, embora a leitura de Schwarz das ideias fora do lugar na fie-

    ~ao machadiana pareca ressaltar, ao parafrasear Benjamin, as "rui-nas da hist6ria" brasileira, sempre presentes e, no seu processo lentode deterioracao, sempre emitindo sentidots) aleg6rico(s), Schwarzparece encaixar Machado na categoria estimada de Lukacs de rea-lismo hist6rico, ressaltando a capacidade de manter a conexao con-ceptual entre 0 sujeito, sua sociedade e as forcas hist6ricas de suaepoca.

    Como explicar esta inconsistencia na obra de Schwarz com res-peito a (deslvalorizaeao da alegoria? A primeira vista, como EvalinaHoisel reconhece, no caso da Tropicalia, Schwarz apropria-se de umanocao completamente negativa de alegoria, ressaltada na obra deLukacs: a alegoria, sem sentido imanente e sem liga~ao com umaespecificidade hist6rica, e a "nadificacao da hist6ria". Hoisel escreve:

    A falta de especificaeao do Tropicalismo se apoia, e ate se justifica paraSchwarz, pela utiliza~ao da alegoria. Se 0 discurso simb6lico realiza a identi-dade entre forma e conteudo, a alegoria estabelece um distanciamento entreesse niveis estruturais, configurando uma relacao extema e convencional, quenao da conta dos fundamentos da hist6ria, "encerrando 0 passado sob formade males sempre ativos e capazes de voltar", sugerindo ainda que eles sao 0nosso destino (46).

    A nocao negativa de alegoria de Lukacs e, por sua parte, umaleitura reducionista e simplificante do trabalho muito mais complexoe ambtguo de Benjamin sobre a alegoria do barroco e do modernismoeuropeus. Lukacs, no seu ensaio "A Ideologia de Modernismo" escrevede Benjamin e cita-o:

    Benjamin retoma, muitas vezes, a esta ligacao entre a alegoria e a ani-quilaeao da hist6ria: "a luz desta visao, a hist6ria aparece nao como a reali-

    za~ao gradual do eterno, senao como um processo de deterioraeao inevitavel.Como rufnas no mundo ffsico, assim sao alegorias no mundo da mente (41;minha traducao).

  • 260 Malcolm K. McNee

    Eu proponho que Schwarz, atraves de suas criticas aparente-mente contradit6rias da Tropicalia e da obra de Machado, mantem acomplexidade e ambiguidade de Benjamin com respeito a alegoria.fSchwarz nao desvaloriza a alegoria como modo de significacao: reco-nhecendo sua inevitabilidade e que enfim e uma questao da distin-

    ~ao relativa entre alegorias conscientes e inconscientes; senao rejeitaa li~ao que a alegoria dominante da Tropicalia parece ensinar. Emcontraste com a li~ao da alegoria das ideias fora do lugar - que tentaressaltar a dependencia cultural e ideol6gica dentro do contexto daposicao periferica da na~ao no sistema mundial capitalista - aTropicalia volta ou reverte a uma compreensao dualistica em vez dedialetica do desenvolvimento assimetrico no Brasil. A Tropicalia pro-poe um contraste absoluto e chocante, em vez de interdependencialogica, entre 0 "velho" e 0 "novo." Estes contrastes ou justaposicoescelebrados como as fontes de originalidade brasileira, alegorizam anacao como um absurdo, segundo Schwarz - isto e, como "um paiscongenitamente duplice," em vez de urn resultado da continua expan-sao capitalista na sua periferia do sistema mundial. Paulo EduardoArantes descreve esta dimensao da critica de Schwarz da Tropicalia:

    o que a ciencia social desautorizava, a experiencia estetica fda Tropicalia]voltava a sancionar. 0 antigo e 0 novo continuavam em presenea urn do outro- era 0 que parecia mostrar a experiencia social de todos os dias, sobretudoquando filtrada pel a forma estetica -, variava apenas 0 plano da sua con-jun~ao. Eramos de fato 0 produto do movimento intemacional do capital, masembora este se desenrole em escala mundial, vai compondo elementos quesao diferentes e assimetricos; distinguimo-nos assim do padrao geral namedida em que a primitiva exploracao colonial esta na base da articulaeaoentre sociedades dependentes e dominantes. Mas a que se resumia a singu-laridade do pais - posta a nu pela situacao de dependencia - senao a essa

    5 A no~lio de alegoria de Benjamin ressalta uma transfereneia basica do sentidodesde a imanencia das personagens e suas a~Oes ate uma maior totalidade social. ulti-mamente transcendendo a "organicidade" da obra literaria. Benjamin desenvolveu suateoria de alegoria atraves de um analise do barroco alemlio e a arte vailguardista doseculo vinte e sua preferencia pela fragmentaeao e pastiche. Segundo a perspectiva deBenjamin, alegoria tira elementos dos seus "orgAnicos" contextos originais e junta osfragmentos isolados para criar sentido. Peter Burger cita Benjamin: "Alegoria, cujaessencia e 0 fragmento, representa hist6ria como declfnio: 'em alegoria, 0 observador econfrontado com hist6ria como uma primordial paisagem petrificada (69; minha tradu-

    ~iio).

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    coexistencia, sistematica, descompartimentada, de heranea colonial e presentecapitalista? Essa a dualidade sem dualismo que escandia a nossa formacao edefinia os vetores basicos da experiencia brasileira (37-38).

    Ao criticar a natureza aparentemente afirmativa da Tropicalia -ressaltando sua reversao a nocoes ja rejeitadas pelas ciencias sociaisda dualidade reificada e irreconciliavel do Brasilf - a nocao de ale-goria de Schwarz, porem, e mais complexa e criticamente seletiva doque a de Jameson. Como ja observamos, Jameson aceita todas as ale-gorias "conscientes" do Terceiro Mundo como igualmente elucidantes,pelo menos para 0 leitor "tipico" do Primeiro Mundo a quem Jamesondirige seu argumento. Outra diferenea importante entre os dois crfti-cos e que na obra de Schwarz a categoria da naeao, e sua expressaocultural-politica, 0 nacionalismo, sao fortemente criticadas, devido aosseus efeitos de distorcer movimentos ou processos revolucionarios noBrasil e esconder conflitos e contradicoes de classe dentro da naeao,o Brasil, segundo Schwarz, ja viveu a experiencia do nacionalismocultural e 0 anti-imperialismo nacional trans-classista. Este ultimo,como estrategia oposicional, e responsavel em parte pela aberturademocratica, intelectual e cultural do fim dos cinqiienta e inicio dossessenta, mas tambem e responsavel pela falta de organizaeao e resis-tencia efetiva contra 0 golpe militar de 1964, que podia disfarcar seusinteresses classistas e dependencia do capital multinacional sob umaret6rica nacionalista. De qualquer modo, apesar destas diferencas con-ceituais, se pode observar que os dois criticos por fim compartilhame avancam um interesse profundo na formacao de canones com 0 pro-p6sito pedag6gico de ressaltar as dinamicas da expansao capitalista,em todas suas fronteiras ou periferias no caso de Jameson, e especi-ficamente no Brasil no caso de Schwarz.

    6 Os contrapontos culturais do Tropicalismo, identificados e estimados por Schwarzsao a arte engajada dos Centros Populares de Cultura, 0 Cinema Novo, 0 teatro brech-tiano do Teatro de Arena e 0 Teatro Oficina, e as campanhas de alfabetiaaeao e peda-gogia radical inspiradas pela obra de Paolo Freire. Estes movimentos, tambem temati-zando os confrontos entre 0 novo e 0 velho, entre 0 desenvolvimento esubdesenvolvimento, entre 0 moderno e 0 tradicional, ofereciam, segundo a avaliaeaode Schwarz, uma resolucao a dualidade da sociedade brasileira: isto e, a conscienti-

    za~ao do papel da agencia humana em reproduzir ou radicalmente transformar estadualidade social.

  • 262

    * * *

    Malcolm K McNee

    Como conclusao breve, gostaria de voltar a leitura de DomCasmurro da estudante - em si mesma uma mini-alegoria de euro-centrismo - que provocou meu interesse em ler paralelamente a obrade Jameson e Schwarz. 0 paradoxo desta leitura particular num cursono Primeiro Mundo de uma obra exemplar ou, talvez, excepcional doTerceiro Mundo pode ser narrado da seguinte forma: se ela realmentetivesse sentido como se estivesse lendo urn romance europeu (ou doPrimeiro Mundo), nao teria sentido conscientemente como se estivesselendo urn romance europeu. Esta influencia ou confluencia de canone,sala de aula, e suas posicoes relativas - em termos de urn sistemacapitalista mundializado - e ressaltado e problematizado na criticade Jameson e Schwarz.

    Neste sentido, acho que a distincao que Walter Mignolo propoeentre a formacao e reforma de canones epistemicos e canones peda-g6gicos para 0 ensino e estudo da literatura comparada e util paraajudar-nos a ler alem do orientalismo evidente nas elassificacoes deJameson da literatura do chamado Terceiro Mundo, e alem de urncerto determinismo prescritivo evidente na crftica de Schwarz daTropicalia, para chegar a uma compreensao dos motivos por suasessencializaeoes estrategicas. Apesar da vulnerabilidade epistemol6-gica da sua critica sociol6gica e seu privilegiar da singularidade cul-tural do subalterno - metodologicamente dependente de dicotomiasfacilmente desconstruidas - num sentido pedag6gico Jameson eSchwarz efetivamente ressaltam as dissimetrias persistentes de poderdiscursivo e estrutural da mundializacao contemporanea,

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