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14
A REVISTA PUNKTO É UMA PUBLICAÇÃO IRREGULAR, IMPREVISÍVEL E INDISCIPLINAR SOBRE LIMITES: DA PRÁTICA, DA TEORIA, DA ARTE E DA ARQUITECTURA. www.revistapunkto.com PEDRO BISMARCK agio por vir livre uso do próprio try again, fail again ACASO intensificação laboratório espacial experimentação memória do presente interrogação provisionalidade indeterminação erro kvitøya message from Andrée ocean wave totem angústia animismo vandalização profanação villa müller firmitas monumentos Giorgio Agamben Gonçalo M. Tavares Corbusier Álvaro Siza Baudelaire Joachim Koester Bas Jan Ader Samuel Beckett Robert Musil Adolf Loos Kent Kleinman ATELIER DA BOUÇA MIGUEL LEAL GODOFREDO PEREIRA ruído Yago Conde A ARQUITECTURA NUNCA ABOLIRÁ O ACASO ACASO NOVEMBRO 2010

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Revista sobre arquitectura e cidade (versão imprimir - frente e verso)

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Page 1: Revista Punkto#1 print

A REVISTA PU

NKTO É U

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LAR, IMPREVISÍVEL E IN

DISCIPLIN

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Giorgio Agamben

Gonçalo M. Tavares

Corbusier

Álvaro SizaBaudelaire

Joachim KoesterBas Jan Ader

Samuel Beckett

Robert Musil

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ATELIER DA

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EMB

RO

2010

Page 2: Revista Punkto#1 print

PRO

GRA

MA

Profanação e Vandalismo

Godofredo Pereira

Fa(i)llingM

iguel Leal

A M

emória do Presente

Pedro Levi Bismarck

Notas sobre a Prática do A

casoAtelier da Bouça

PU

NK

TO - AC

ASO

GLO

SSÁRIO

. U

M

LANC

E D

E D

ADO

S, M

allarmé,

poema

crítico, Baudelaire,

Flâneur, Flores do m

al, mem

ória do presente, liberdade, para m

im apenas liberdade, W

alter Benjamin,

arcadas, André

Breton, surrealism

o, Sant-Pol-

Rox, o poeta está a trabalhar, Louis Aragon, André M

asson, Freud, Sigmund, inconsciente, desenho

automático, R

aymond Roussel, JAM

AIS, Cadáver

esquisito, mesm

o atirado em circunstância eternas,

Dada, Le chien andalou, M

arcel Ducham

p, La m

ariée mise à nu par ses célibataires, m

ême,

Infra m

ince, 50cc

de ar

de Paris,

letrismo,

situacionismo, psico-geográfi ca, deriva, D

ebord, im

ponderabilidade, indeterm

inação, incerteza,

hasard, azar, al-azhar, dados, alea iacta est, Júlio C

ésar, Brutus,

ABOLIR

Á, caos,

teoria, bater

de asas,

explicações, princípio

da incerteza,

borboletas, determinar todas as causas é prever

todos os fenómenos, D

eus não joga aos dados, Einstein, probabilidades, oráculos, Tyche, fortuna, deusa, I-ching, livro das m

udanças, destino, o Jardim

dos

caminhos

que se

bifurcam,

Jorge Luis Borges, tem

po, espaço, labirinto, espaços, G

eorges Perec, Erik Satie, John Cage, Fontana

mix,

Fortunately, som

ewhere

between

chance and m

ystery lies imagination, the only thing that

protects our freedom, despite the fact that people

keep trying to reduce it or kill it off altogether, Luis Buñuel, O

ACASO

, para além de toda a

mim

etização toda a experimentação e toda a

liberdade, casus, acontecimento, Rules for sexual

engagement, cair, W

e are all agreed that your theory is crazy. Th e question w

hich divides us is w

hether it is crazy enough to have a chance of being correct. M

y own feeling is that it is not crazy

enough, la espanhola quando besa, polka dots and m

oonbeams, M

aterialismo dialéctico, C

ertifi cat d’ authenticité, para m

im com

duas pedras de gelo, O

norte é lindo, oh god! You are beautiful, São Rom

ão do Coronado, N

ada, da mem

orável crise em

que teve lugar o acontecimento, try again, fail

again, better again, todo o pensamento produz

UM

LANC

E DE D

ADO

S.

Page 3: Revista Punkto#1 print

26

EQ

UIP

A Pedro Levi Bism

arck Pedro O

liveira C

arlos Castro

ED

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A Punkto

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ÕES

Atelier da BouçaPedro Levi Bism

arckM

iguel LealG

odofredo Pereira

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inerva

TIR

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1000 exemplares

DIST

RIB

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ÃO

Gratuita

IMA

GEM

DA C

AP

A

retirada da série Rotoreliefs, M

arcel Ducham

p, 1923

CO

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S

revistapunkto@gm

ail.comM

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A.....O

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B

AIX

O!

JÁ ERAJÁ ERA

JÁ ERA

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VENHA CONHECER OS NOVOS CONCEITOS RESIDENCE IN THE CITY-CONFORT-LIVING-LOUNGE-URBAN-TERRACE-SECURITY-GARAGE-LUXURY-CCTV QUE TEMOS PARA SI!

PUN

KTO

Nº1

Novem

bro 2010Porto

CLA

SSIFICA

DO

SPU

NK

TO - AC

ASO3

EDITO

RIA

L. De M

allarmé aprendem

os a ler o vazio das palavras, de Ducham

p aprendemos a interrogar

a arte, de John Cage a escutar o silêncio da m

úsica e de Siza que para ver é preciso tocar o imperceptível.

§ A obra não se faz a partir de um sentido único e universal m

as faz-se na medida em

que se entrega ao espectador: provocando-o, questionando-o, possuindo-o. § A obra de arte é um

agenciamento

incessante e imprevisível de outros signifi cados, sentidos, interpretações. É um

acaso. E o acaso é o espaço da interpretação, da experiência, da com

unicação que se abre entre nós e a obra. § O acaso não

é aquilo que é sem sentido ou fortuito m

as é o que possibilita que nada esteja à partida destinado. É a im

previsibilidade, a imponderabilidade: é a própria vida. § O

acaso é o espaço vazio que nos é dado para poderm

os ser livres, o espaço nunca predefi nido, onde somos nós entregues à experiência de poderm

os ser nós próprios, falhando, falhando de novo, falhando sem

pre. § A arquitectura é a experiência do acaso, isto é a experiência da vida, da construção inconstante de um

a rotina nunca predefi nida. Os desenhos

e as imagens acabadas fi cam

no arquivo, lá fora a vida continua, a arquitectura ganha vida, enfeitiça-se, sacraliza-se e profana-se, desaparece e renasce. § A natureza indeterm

inável da arquitectura não é a sua im

perfeição mas a sua grande possibilidade: que esta na paisagem

ausente do quotidiano seja capaz de provocar o im

previsível, de nos interrogar, rasgar o véu do saber e trazer sempre algo novo, im

possível e belo. § Q

ue haja sempre um

a hipótese de fugir ao que estamos fatalm

ente destinados é esse o sentido da palavra acaso.

Page 4: Revista Punkto#1 print

Interior do palácio Al Faw ocupado pelo exército Am

ericano, Iraque, (Foto: Richard M

osse, série ‘Breach’, 2009).

PU

NK

TO - AC

ASO25

O acaso pode inform

ar o projecto de arquitectura.

Tudo tendo tendência ao equilíbrio, as coisas tom

am,

naturalmente, o seu lugar

justo, isto é adequam-se aos

rituais/movim

entos que nós fazem

os no tempo e espaço.

"Observez un jour, non pas

dans un restaurant de luxe où l’intervention arbitraire des garçons et des som

meliers détruit

mon poèm

e, observez dans un petit casse-croûte populaire, deux ou trois convives ayant pris leur café et causant. La table est couverte encore de verres, de bouteilles, d’assiettes, l’huilier, le sel, le poivre, la serviette lerond de serviette, etc. Voyez l’ordre fatal qui m

et tous ces objets en rapport les uns avec les autres; ils ont tous servi, ils ont été saisis par la m

ain de l’un ou de l’autre des convives; les distances qui les séparent sont la m

esure de la vie. C

’est une composition m

athéma-

tiquement agencée ; il n’y a pas un

lieu faux, un hiatus, une trompe-

rie. Si un cinéaste non halluciné par H

ollywood était là, tournant

cette nature morte, en ‘gros plan’,

nous aurions un témoin de pure

harmonie." Le C

orbusier 2.

E se, apesar de separarmos o

ser e o parecer, as nossas ro-tinas m

udarem m

ais depressa do que os objectos levam

a as-sentar? E se não quiserm

os que o conforto se instale perene e obtuso e, pelo contrário, pela disposição estranha dos objec-tos, quiserm

os que o espaço nos faça/obrigue a m

udar?

Intensifi cando, “praticar o acaso” inform

a a prática do projecto...

Quando se passa de m

ero observador a jogador, quando exploram

os os limites da

fl exibilidade e refi namos/

radicalizamos as nossas

experiências (laboratoriais), seguindo o m

étodo científi co (problem

a – premissa

resultante da vivência - , hipótese – projecto que responde ao problem

a -, experiência – construção do espaço -, observação – análise das vantagens e problem

as que o novo espaço im

põe, levando ao estabelecim

ento de novas prem

issas) reunimos

um conjunto de inform

ações passíveis de generalização e por isso úteis para qualifi car/garantir dispositivos de fl exibilidade aos espaços que propom

os. É desta form

a e com este

objectivo que (Ab)usamos

intensamente (d)a casa com

o laboratório espacial... pelo prazer do acaso enquanto m

anipulador do pré defi nido, ou apenas porque gostam

os de recom

eços.

1 Gonçalo M

. Tavares in Pedro Pacheco e Luís Santiago Baptista (curadores), Falemos de C

asas... em Portugal (exposição), Trienal

de Arquitectura de Lisboa, 2010.2 Le C

orbusier, Prologue Américain, in Précisions, C

ollection de L’Esprit nouveau. Altamira, 1997.

Page 5: Revista Punkto#1 print

PU

NK

TO - AC

ASO

24

Algum

a arquitectura apavora-se com

o acaso!

Alguns projectos de espaços querem

determinar

completam

ente a vida que neles decorre e decorrerá em

todos os próxim

os tempos.

Fazendo um paralelo ao teatro,

diríamos que desejam

à partida conhecer e dar resposta tácita a um

argumento, um

a narrativa com

pletamente defi nida.

Se essa narrativa não está disponível à partida, torna-se tam

bém ela objecto de

projecto na sua fi nitude.Entendendo o acaso com

o algo que acontece sem

ser consequência de algo passado, ou seja, efeito que não se explica por um

a determinação

precedente, nestes projectos o acaso é um

drama, o pavor!

Os espaços que elim

inam a

surpresa, que condicionam e

prevêem tudo, têm

tanto medo

das surpresas más (pouca

confi ança nas capacidades do espaço) que elim

inam

qualquer hipótese de surpresa boa.

O acaso é im

placável!

O acaso existe e é im

possível, além

de ser escusado, desenhá--lo. C

omo todas as profi ssões

que gerem/lidam

com o

percurso das coisas no tempo,

ambicionam

os projectar/condicionar o futuro, este desejo, sabem

o-lo desde o início, é irrealizável na sua com

pletude, mas quem

disse que nós querem

os mesm

o prever tudo?N

ão podemos (nem

conseguíam

os se quiséssem

os...) conhecer o acaso, e condicioná-lo? Até que ponto?Até que ponto querem

os fechar todas as saídas e deixar um

a família/instituição/

comunidade enclausurada? O

conforto não é a possibilidade de acaso, a m

ultiplicidade de apropriações, a m

áquina aberta à sua m

anipulação?

A arquitectura m

anipula o espaço do acaso.

“A ideia de que a arquitectura deve facilitar todos os m

ovimentos, de igual m

aneira, é assum

ir que a arquitectura não tom

a uma posição

fi losófi ca, por exemplo em

relação à vida das pessoas, isso parece-m

e um disparate. Por

outras palavras, eu gosto mais

de uma casa que m

e difi culta, ou que m

e põe obstáculos para m

e impedir que faça

coisas tontas e que me facilita

movim

entos para fazer coisas sensatas”. G

onçalo M. Tavares 1

Filipa de Castro G

uerreiro e Tiago M

acedo Correia [atelier da bouça]

Nasceram

em 1976, licenciaram

-se na FAUP em

2000. Desenvolvem

actividade profi ssional desde 2001. Fundaram em

2008 o atelier da Bouça. Filipa é docente de Projecto 1 e responsável pelo Pelouro da C

omunicação da O

ASR

N 2008-10.

A dois (ab)usam (d)a casa com

o laboratório espacial, partilham a obsessão pelo vazio enquanto m

atéria da arquitectura.

5

GO

DO

FREDO

PEREIRA

Monum

entos

Foi recentemente transform

ada em condom

ínio de luxo a antiga sede da PID

E-DG

S em

Lisboa. No decurso das m

odifi cações a placa com

emorativa existente foi recolocada num

a zona m

enos visível, certamente para não

prejudicar a boa imagem

do edifício, um prédio

que não chegou a ser monum

ento na revolução e que seguindo a sua vida se deixou profanar pelo m

ercado imobiliário. Perante tal afronta

à mem

ória do fascismo e da opressão, m

as sem

a capacidade de adquirir o edifício para o transform

ar num m

onumento – ou porque

ele já é um m

onumento ao neo-liberalism

o – a questão que sobrou foi a de saber onde recolocar a placa com

emorativa existente. Pelo m

eio e com

o seria de esperar tanto a placa como a

fachada do edifício foram vandalizadas. H

onra aos H

eróis, dizia. Depois de m

uita discussão restou à C

âmara M

unicipal fazer uma nova placa

inaugurada com pom

pa e circunstância. Dois

monum

entos num só ditou o acaso, algo que

decerto o projectista original nunca imaginou.

Firmitas

Na relação da arquitectura com

o acaso ganham

relevo duas afi rmações concorrentes: 1) se a

arquitectura não pensa na sorte é porque pensa não depender dela e 2) se a arquitectura pensa na sorte é porque deseja controlar o acaso. A prim

eira afi rmação é confi rm

ada pelo ideal

da estabilidade Vitruviana: Firm

itas não se refere apenas a um

a estabilidade ou fi rmeza do

construído, mas à sua necessária perm

anência ao longo do tem

po enquanto permanência

daquilo que é estabelecido pela arquitectura em

si. O m

elhor exemplo deste desejo de

inscrição são os monum

entos, edifi cações com

uma função de uso cerim

onial, construção de peças representativas que supostam

ente falam

para todo o sempre. E se estender este

pressuposto específi co dos monum

entos a toda a outra arquitectura é debatível, já questionar até que ponto é que, m

esmo no desenho de

monum

entos, a arquitectura cumpre este

desígnio de permanência parece-nos m

ais relevante. Para ilum

inar esta questão teremos

de indagar sobre o que se entende ser o objecto (propósito) da arquitectura. Se nos estiverm

os a referir à organização e disposição de m

ateriais com dim

ensões específi cas, então talvez possam

os dizer que este objecto m

onumental perm

anece tal como

as pirâmides ou os tem

plos Gregos. M

as é sabido que o objecto arquitectónico não é exactam

ente a mesm

a coisa que o objecto da arquitectura, assum

indo-se em geral que este é

de facto o projecto: investido de ideias e funções, ideológico, sim

bólico e representativo (mesm

o quando tenta não o ser). Enquanto projecto o objecto da arquitectura será então o planifi car de um

a construção de acordo com certos pressupostos

ideológicos, uma defi nição que se enquadra bem

com

o que nos fornece a história da arquitectura: o m

onumento concretiza o projecto. M

as por

PRO

FAN

AÇÃ

OE

VA

ND

ALISM

OSO

BRE O A

CA

SO N

A VID

A D

OS M

ON

UM

ENTO

S

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PU

NK

TO - AC

ASO

6 outro lado temos tam

bém a inscrição do objecto

no mundo, aberta à vida e à transform

ação, em

que se passa de objecto acabado de construir (m

undo perfeito) a objecto vivo, selvagem e

alheio às maquinações do arquitecto. Apesar

de não ser objectual, não poderá também

esta dim

ensão almejar ao título de objecto da

arquitectura? E se sim, poder-se-á afi rm

ar que a arquitectura possui dois objectos de estudo, a saber, o objecto projectual e o seu devir-m

undo?O

problema não se põe. Sim

plesmente porque

desde há muito que a escolha foi feita: é que

a arquitectura, mesm

o aquela que não almeja

à monum

entalidade, não quer geralmente ter

nada que ver com vida, m

as apenas com m

orte e perfeição, o que talvez explique um

maior

interesse na petrifi cação do projecto do que nas suas eventuais m

utações. E porquê? Talvez porque nesta diferença entre o projecto e a sua vida edifi cada se interpõe um

a fi gura que impõe

a separação dos dois tempos, isto é, a fi gura do

acaso. Assim

sendo, a segunda afi rmação que

avançamos parece ser a m

ais correcta: a arquitectura pensa na sorte quando se deixa levar pela angústia de controlo que a todo o custo se recusa a aceitar o devir da própria arquitectura. Q

uando os imprevistos usos e transform

ações do edifi cado são descritos em

termos de sorte

ou azar, é sinal que se dá prioridade ao objecto projectual e por isso m

esmo aí se espeta a

primeira faca à arquitectura e à sua vida.

Também

tu, Brutus!

Brutus aqui é o arquivo, essa tentativa de matar a

arquitectura (fala-se exclusivamente do projecto

e não do edifício). O arquivo é, com

o observa K

ent Kleinm

an em Archiving Architecture 1 um

suplem

ento de qualidades que a obra construída necessariam

ente não terá (originalidade, estabilidade, perm

anência) e vive precisamente

desta separação forçada entre projecto-ideia e obra-viva. O

arquivo insiste nesta separação segundo a assunção de que a arquitectura está no projecto e o resto é obra do acaso, tentando passar a ideia de que o que se observa no projecto se observa no edifi cado: “O

arquivo

deve ser mais precisam

ente descrito como

uma m

áquina para esquecer que os projectos arquitectónicos são ontologicam

ente distintos das suas representações”. Só que fatidicam

ente o grande perigo espreita e as traças com

em os

livros. D

e facto o projecto enquanto objecto de arquivo ou de referência sofre tam

bém aí as necessárias

vicissitudes da passagem do tem

po, sob a form

a da sua integração compulsiva em

novas genealogias ou interpretações históricas. O

u seja, estam

os perante um problem

a bem m

ais sim

ples: ignora-se voluntariamente o acaso da

arquitectura porque se sabe não o poder evitar, e busca-se o refúgio do arquivo com

o se este estivesse protegido da intem

périe, oferecendo m

ais que uma protecção ilusória.

Mas há quem

vá mais longe e decida não só

arquivar o projecto como arquivar o próprio

edifício. O caso da V

illa Müller é exem

plar: na vontade de restaurar o projecto original de acordo com

os desenhos e ideias de Loos, foram

retiradas as camadas de tinta que escondiam

as cores originais, foram

retiradas mobílias não

originais, a casa foi limpa até ao seu passado-

ideal, passado esse que pouco mais foi que o

projecto. É patente o terror inerente à defesa do m

onumento, o terror ao m

undano, que contra a vida vivida da arquitectura transform

a o objecto num

a obra de arte, intocável. Por isso, a recuperação da casa M

üller (como a

de tantas outras) é de facto profundamente

anti-arquitectónica, e ainda mais se vista à luz

das posições do próprio Loos. E o que é ainda m

ais curioso é que numa época em

que se assum

e que os arquitectos já não constroem

monum

entalmente se continuem

a produzir m

onumentos em

todo o lado: monum

entos às instituições, ao passado histórico, ao pensam

ento, à revolução, à cultura, à arquitectura, etc. O

restauro da Villa M

üller foi confi rmado pelo

arquivo dos seus desenhos originais e fotografi as existentes. M

as restaurando-a o edifício deixa de ser arquitectura e passa a ser um

arquivo construído. C

omo tal não pode ser tocado,

transforma-se num

monum

ento, uma im

agem

do auto-imaginar-se da sociedade. Assim

, quando o arquivo não chega, m

ata-se o próprio

ATELIER DA

BOU

ÇA

Nove variações sobre um

a mesm

a casa.

A C C

E G G

H H

I

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Page 7: Revista Punkto#1 print

Nove variações sobre um

a mesm

a casa.

A B

C

D

E F

G

H

I

PU

NK

TO - AC

ASO7

edifício. Tudo para que o mundano acaso

não profane ou vandalize a bela imagem

que querem

os da arquitectura.

Profanação M

as passemos para o m

undano, pois se nos debruçarm

os sobre essa segunda vida do objecto verifi cam

os que o acaso não é assim tão sim

ples. A profanação do objecto arquitectónico signifi ca segundo Agam

ben, a sua devolução ao com

um, ao espaço m

undano, agora fora do dispositivo de poder que o inscreve: “U

ma

vez profanado, aquilo que estava indisponível e separado perde a sua aura e é devolvido ao uso”

2. Se usarmos o exem

plo da arquitectura portuguesa do Estado N

ovo – que melhor

exemplo se pode pedir para um

a arquitectura que inscreve determ

inadas formas de poder

pastoral na identidade colectiva de uma nação

– então teremos com

o exemplo de profanação o

Tribunal transformado em

padaria, os Correios

em discoteca ou o Portugal dos Pequeninos em

loja de conveniência. C

laro que muitas vezes tal

não acontece – ou acontece menos vezes do que

seria desejável – o que pode indicar problemas

nesta ideia. Mas profanar signifi ca retirar ao

sagrado. Ora devem

os começar por reparar

que no que respeita à arquitectura, o sagrado é aquilo que é determ

inado pela ideia-função e cristalizado na sua representação ‘parlante’. O

sagrado remete não só para um

espaço religioso ou legal, m

as principalmente para a

sua cristalização projectual enquanto tal. Trata-se aqui da arquitectura enquanto produção de sagrado e ela m

esma produção sagrada. Assim

os espaços sagrados da arquitectura são todos aqueles determ

inados para um ritual específi co,

desenhados para cumprir a inscrição na terra

do sagrado (a Ideia). Dito de outra form

a, são todos aqueles passíveis de serem

profanados. Mas

assim sendo tem

os que esta organização de poder pelo objecto não é exclusiva da arquitectura de estado ou arquitectura de excepção, m

as sim

estranhamente inerente à própria ideia

de arquitectura. Aliás, verifi camos que na

maioria dos casos o objecto arquitectónico é

o palco de constantes profanações, constantes

re-usos e adaptações, frutos da ocasião e das circunstâncias, ou para seguir a linha deste ensaio, do acaso. A profanação trata então da defi nição de lim

iares a partir dos quais se considera que o edifício está a ser desvirtuado, lim

iares a partir dos quais em certos casos se

pode recorrer a mecanism

os legais disponíveis para intervir e repor a ordem

. E principalmente

a profanação força o constatar da irremediável

distância entre o ideal projectado e o real vivido e necessariam

ente transformado.

Vandalização

Por vezes, a profanação não é apenas fruto do quotidiano e das suas preocupações terrenas, m

as de um acto deliberado contra a im

agem do

objecto edifi cado. Este acto que pelo objecto (ou sobre ele) visa produzir um

determinado

efeito político, indica que se é possível passar do sagrado ao profano, então tam

bém é possível

o seu oposto, a passagem do profano para o

sagrado. A esta acção daremos, à falta de m

elhor, o nom

e de vandalização. O

acto de vandalismo parte do princípio de que

a separação entre sagrado e profano, entre poder e viver (ou entre o poder inscrito no projecto e a selvajaria m

undana do edifi cado) não é mais

que uma fabricação, um

a manobra que esconde

o real poder do edifício e que esconde a verdade da arquitectura. Vandaliza-se porque vale a pena vandalizar, porque o edifício representa algo. O

muro da universidade é um

monum

ento ao poder instituído, a capela em

desuso é de facto a m

anifestação de uma instituição conservadora,

a vandalização de uma fachada vai decerto

enfurecer os apoiantes do partido politico adversário, etc. A vandalização é portanto um

m

omento de ataque ao profano (ataque ao

edifício que fi nge ser profano) mostrando que

ele é profundamente sagrado, trazendo ao de

cima o m

onumento totém

ico que se esconde na rotina da vida quotidiana e m

undana. O

escritor Robert Corbu indicava num

texto sobre m

onumentos desconfi ar da sua suspeita

inconspicuidade. A suspeita inconspicuidade dos m

onumentos é a sua capacidade para

passarem despercebidos quando reduzidos a

Page 8: Revista Punkto#1 print

PU

NK

TO - AC

ASO

8 fundos, perdidos no dia-a-dia dos hábitos até que alguém

os retire a essa invisibilidade. E ao tentar ser iconoclasta, a vandalização pressupõe que para os outros existe ali um

tabu e reinveste totem

icamente o edifício, conferindo-lhe a

capacidade para articular e dar visibilidade a uma

luta de poder que necessariamente o ultrapassa:

expõe o sagrado, torna-o visível e ao mesm

o tem

po duplica o seu poder. A vandalização pressupõe que ao atacar a fachada se ataca sim

ultaneamente a ideia que está expressa na

fachada. E pressupõe que alguém se im

porta (e de facto há sem

pre alguém que se im

porta...).Assim

, se a profanação parece marcar um

a diferença ontológica inscrita nos próprios fundam

entos da prática da arquitectura entre o projecto do objecto e a vida do objecto - i.e. duas arquitecturas - já a vandalização através da sua acção sacrifi cial, nunca rem

ete para o profano, m

as sempre para o sagrado. Só que

é precisamente por este estar no m

undo que a vandalização é capaz de devolver ao objecto m

undano o seu carácter ideal e que assim o

ressuscita da morte.

E é este mom

ento de encantamento que se

torna decisivo. No m

omento da vandalização,

a separação entre sagrado e profano colapsa e edifício, uso e sim

bologia, recuperam um

a co-im

anência que lhes escapa desde que se transm

utaram de projecto em

obra, e que no fundo opera a união, o encontro ainda que m

omentâneo entre essas duas vidas da

arquitectura, a vida ideal, projectada, e a vida real m

undana e confl itual. A vandalização desenterra a Ideia para m

onumentalizar a terrível

realidade que se esconde no profano.

Anim

ismo

Temos portanto que entre estas duas vertentes

da arquitectura, ou entre os seus dois objectos existem

múltiplas relações, de apropriação,

de profanação, de violência, passando do sim

bólico ao profano, do usual ao monum

ental, m

ovimentos que refl ectem

as lutas de poder em

torno ao edifi cado ou fazendo uso do edifi cado. Para além

de Kleinm

en, diremos fi nalm

ente que não se trata tanto ou sim

plesmente de

uma separação ontológica, m

as de duas linhas de vida que casualm

ente se cruzam e

voltam a separar, produzindo-se m

omentos de

transferência entre elas, forçados pelos variados encantam

entos mágicos do edifício e do

projecto e pelas igualmente feiticistas tentativas

de os desmascarar. Assim

sendo o objecto da arquitectura não será m

ais do que a tentativa de ter pulso nesta relação entre inscrição e transform

ação ou entre morte e vida.

Afi nal, o problema é que a m

onumentalidade

– que é normalm

ente identifi cada com o

simbolism

o clássico – não advém sim

plesmente

de uma decisão de construir m

onumentalm

ente, isto é, de seguir um

a certa forma de projectar,

mas principalm

ente de circunstâncias im

previsíveis ditadas pelo acontecer da arquitectura, que resultam

no edifício tornado m

onumento. O

ra dá-se o caso deste processo poder cristalizar para a história da arquitectura um

a organização espacial e uma linguagem

form

al que se baseou precisamente na ideia

de anti-monum

entalidade. E aí produz-se o léxico de um

a nova monum

entalidade, isto é, de um

a nova forma de representar e fazer ver

pela arquitectura. Diria Benjam

in que é aura que está em

jogo, diremos nós que a angústia

contra o acaso, que parece animar os delírios de

controlo do arquitecto, resulta da incapacidade de aceitar o carácter totém

ico e feiticista do objecto arquitectónico. E que é essa capacidade de descobrir poderes ocultos e um

a espécie de alm

a vivente na matéria inanim

ada que faz a vida da arquitectura.

Godofredo Pereira (Porto, 1979) Arquitecto pela FAU

P. M

estrado AVATAR, pela Bartlett School of Architecture. D

esenvolve tese de doutoramento sobre ‘Feiticism

o e Política M

ágica dos Monum

entos’, no Centre for Research Architec-

ture, Goldsm

iths University, Londres, com

bolsa da Fundação para a C

iência e Tecnologia. É co-editor da DET

RITOS

(http://ww

w.revistadetritos.com) e lecciona na Bartlett School of

Architecture, Londres.

1 Kent K

leinmen, Archiving Architecture, (in Blouin, Francis X

., Rosenberg, William

G., Archives, docum

entation, and institutions of social m

emory: essays from

the Sawyer Sem

inar, University of M

ichigan Press, 2006, pp. 54-60).2 G

iorgio Agamben, Profanations, Zone Books, N

Y, 2007, pp. 73-92.

Stéphane Mallarm

é, Un coup de dés, 1897 (página da edição francesa, 2003)

O núm

ero / se existisse / diverso da alucinação esparsa da agonia / começasse ou fi ndasse / ensurdecedor e não negado e

preso quando aparecesse / enfi m / através dum

a profusão ampliada e rara / se contasse / com

o evidência da soma pouca um

a / se ilum

inasse / o acaso / cai / a pena / rítmica suspensa do sinistro / para se afundar / na espum

a original / recente onde explode o delírio até ao cim

o / desvanecido / pela neutralidade idêntica do abismo.

Page 9: Revista Punkto#1 print

PU

NK

TO - AC

ASO

20

da obra arquitectónica. Que isso aconteça

imprevisivelm

ente, indeterminadam

ente e até no m

ais ínfi mo porm

enor, apenas reforça a nossa confi ança na capacidade e no valor da arquitectura.

4. O espaço im

perceptível – desvelando, interrogando o real

Toda a produção artística exige de nós atenção e vigília, há sem

pre algo a des-velar, a des-cobrir. M

as o verdadeiro conteúdo da revelação não é aquilo que é por si próprio revelado, m

as aquilo que esta, no seu silêncio, deixa ainda por dizer. Isto é, não o que em

si é inexpugnável à com

preensão, mas o que é deixado a m

im para

poder dizer. Também

na obra de arquitectura assim

o é: se nada tiver sido deixado por dizer (e por vir), então signifi ca que nada afi nal foi dito. C

omo escreve A

gamben, «o único

conteúdo da revelação é aquilo que é fechado em

si, o que é velado – a luz é apenas a chegada do escuro a si próprio» 13.N

a digressão-em-viagem

pelos espaços de Á

lvaro Siza há sempre algo que fi ca por dizer,

há sempre um

signifi cado indeterminado,

um gesto im

previsível que pede um outro

sentido. A lição fundamental de Siza não

está no desenho ou no método, naquilo que

imediatam

ente vemos, m

as naquilo que fi ca por ver. Para Siza a arquitectura é, acim

a de tudo, um

dispositivo crítico e irónico sobre o exercício da quotidianidade. C

ada edifício é em

si uma refl exão sobre a sua própria

condição, cada edifício subverte a essência de si m

esmo e interroga a natureza da nossa relação

com o espaço, com

os programas, com

o quotidiano. N

a paisagem distraída das rotinas

diárias, Siza faz do espaço arquitectónico um

a experiência por vir, interrogando-nos e provocando-nos, subvertendo o m

ais ínfi mo

pormenor e exigindo de nós toda a atenção

e disponibilidade, mas sobretudo, toda a

vontade – agio. O traço negro que circunda

o Pavilhão Carlos R

amos; as escadas-percurso

que dão acesso à Casa de C

há da Boa Nova;

o vermelho-cor das paredes interiores do cubo

de entrada na Faculdade de Arquitectura, m

as tam

bém essa perspectiva acelerada do corredor,

e em Berlim

, o olho invisível do Bonjour Tristesse, guardam

essa precisa indeterminação

da arquitectura, essa capacidade de provocar o im

ponderável, de interrogar, de abrir um

espaço na mem

ória do presente, rasgando o véu do saber e trazendo sem

pre algo novo, im

possível e belo.

Os poetas provençais fazem

do agio um «term

inus technicus» da sua poética, que designa o lugar próprio do am

or. Ou m

elhor, não tanto o lugar do amor,

quanto o amor com

o experiência do ter-lugar de uma

singularidade qualquer.

Giorgio A

gamben, A com

unidade que vem

Pedro Levi Bism

arck (Praia da Granja, 1983). Arquitecto

pela FAUP. Estudou e trabalhou em

Berlim. Está actualm

en-te a desenvolver a sua tese de doutoram

ento na FAUP. V

ive no Porto. spacingzyx24.blogspot.com

1 Carlos Am

aral Dias, program

a Alma N

ostra, Antena 1 (20 de Abril de 2010).2 Italo C

alvino, Senhor Palomar.

3 Casus está etim

ologicamente ligado ao verbo cadere. San Isidoro de Sevilla, Etim

ologias.4 Idem

.5 D

omus é o dom

ínio do senhor, daquilo que foi domesticado. Ibidem

.6 Para H

eidegger, compreender/pensar os nom

es que se ocultam por detrás das palavras é com

preender/pensar a relação imem

o-rial do hom

em com

o mundo. C

F. Heidegger, D

as ding.7 Term

o convocado por Manuel M

endes.8 G

iorgio Agambem

. Cf. A ideia do ter-lugar é desenvolvida no livro A C

omunidade que vem

.9 Idem

, pp. 27.10 Agam

ben chama a isso a nossa possibilidade ética - o ethos - a nossa segunda natureza. Ibidem

, pp. 30.11 A expressão sentir-se em

casa assinala a forma verbal que faz a casa e am

plifi ca o sentido provisional desta como algo que

acontece, através da produção mom

entânea de um espaço-em

-que-se-pode-estar.12 C

harles Baudelaire, Critique d’art suivi de critique m

usicale. A mem

ória do presente revela, em Baudelaire, o sentido efém

ero do próprio presente, m

as também

retém a im

portância da experiência do presente como construção de um

a mem

ória singular.13 G

iorgio Agamben, Ideia da Prosa, pp.117.

‘Honra aos H

eróis’ - grafi tti na fachada da antiga sede da PID

E-DG

S em Lisboa, antes de serem

iniciadas as obras para a sua transform

ação em condom

ínio de luxo. (Foto: autor desconhecido)

Page 10: Revista Punkto#1 print

PEDRO

OLIVEIRA

Bas Jan Ader no Ocean W

ave (Cortesia C

GAC

, 2010)

Os destroços do O

cean Wave. D

etalhe do material docum

ental da exposição (CG

AC, 2010)

PU

NK

TO - AC

ASO19

não é um sim

ples suporte de rotinas, mas sim

o praticável 7 que perm

ite que o ser ocupe um

lugar no mundo, não para dele se esconder,

mas para a partir daí poder com

unicar com

ele. Que esse espaço não seja determ

inável na sua form

a, nem previsível no seu sentido, não

é uma im

perfeição da casa, mas a sua dádiva,

a possibilidade última que possibilita a própria

arquitectura, deixando sempre que algo m

ais advenha, aconteça e possa ter um

lugar no m

undo, para além do m

undo8.

2. O espaço-por-vir: agio

Na paisagem

tecnifi cada e impositiva da

realidade qualquer discurso arquitectónico sobre a casa terá de reconhecer que esta é, acim

a de tudo, um processo aberto, um

a táctica provisória para um

a conquista do lugar. E que o últim

o reduto do privado não deve e não pode ser um

a submissão aos ditam

es burocráticos das leis, dos m

ercados ou das im

agens, mas deve ser sem

pre e cada vez um

a refl exão-digressão sobre a construção da liberdade individual no m

undo e a construção de um

espaço de relação com o outro. É esse

o sentido da palavra agio (à vontade), utilizada por G

iorgio Agam

ben, que «indica de acordo com

o seu étimo, o espaço ao lado (ad-jacens,

adjacentia), o lugar vazio em que cada um

se pode m

over livremente, num

a constelação sem

ântica em que a proxim

idade espacial confi na com

o tempo oportuno (ad-agio, ter

agio) e a comodidade com

a justa relação» 9. Agio é o lugar do livre uso do próprio, é o espaço do porvir, daquilo que não estando determ

inado, nem estando destinado, apenas

a nós cabe cumprir e realizar 10. É o espaço

do nosso ser que é deixado em suspenso, um

espaço-acaso, um

espaço-casa, que permanece

por fazer e por vir. Não é o lugar do casuístico

ou do fortuito, mas o espaço adjacente,

indeterminado nas suas m

argens e imprevisível

na sua natureza, que se abre no limite do ser e

permite que este conquiste a sua singularidade,

esse seu lugar no mundo. Ter agio é fazer(-

se) casa, é conquistar a intima fragilidade do

mundo, m

as é acima de tudo, o lugar-encontro

que se faz na presença e na procura do outro, na partilha, na constelação sem

ântica e na sim

ultaneidade provisional e única entre dois tem

pos e dois espaços. É um verbo m

ais que um

nome, um

a acção mais do que um

facto, um

espaço aberto e indeterminado que se faz

mundo entre o hom

em e as coisas 11.

3. O espaço instante - a m

emória do presente

Mas não será tam

bém o agio essa

indeterminação nos lim

ites de cada objecto que Yago C

onde procurava; os espaços brancos entre as frases de M

allarmé; o silêncio

imperscrutável da m

úsica de John Cage ou

o infra mince de D

uchamp? Esse m

omento

ínfi mo e im

previsível que faz do encontro entre a obra de arte e o espectador um

evento plenam

ente individual e inter-subjectivo, para além

de qualquer sentido universal. A obra de arte abre-se ao acaso, à abertura e à aventura da interpretação, e é o interprete-criador que dá o seu sentido últim

o, possuindo-a, destruindo-a, refazendo-a. E quando esse instante único se faz casus e se faz casa, dá-se precisam

ente aquilo a que podemos cham

ar o facto estético. Baudelaire escrevia que era a passagem

imediata da experiência à m

emória

que concretizava o mom

ento estético (a m

emória do presente 12); m

as não será esse m

omento o instante único onde a experiência

é simultaneam

ente já mem

ória, isto é, onde o presente é já o ausente, onde aquilo que vejo é sim

ultaneamente aquilo que recordo?

A sincronização absoluta e imprevisível de

dois tempos, o ínfi m

o paradoxo que faz com

que algo se escape da escuridão e seja, enfi m

, belo – não pela sua forma, pela sua

proporção, mas por nos pôr frente a frente

com essa im

possibilidade humana: recordar

o que ainda posso tocar e tocar aquilo que sei que vou recordar, que quero recordar. Q

ue esse m

omentum

súbito, esse instante ínfi mo

possa acontecer e tomar lugar, disturbando

os limites da nossa linguagem

e interrogando a nossa quotidianidade, abrindo um

espaço - um

agio - de aproximação e de encontro em

direcção ao m

undo, é esse o sentido último

Page 11: Revista Punkto#1 print

PU

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ASO

18

interpretação, dos sentidos que se (o)põe em

cada leitor. Era esse também

o sentido da palavra ducham

piana infra mince, esse

ínfi mo porm

enor, esse mínim

o evento capaz de dar um

sentido provisional à obra de arte e transform

á-la não num objecto estético, m

as num

conteúdo provisório, num agenciam

ento de outros signifi cados. E essa é tam

bém a

busca absoluta de John Cage, não a procura

por uma nova linguagem

, mas essa de abrir

a música ao indizível m

undo do acaso, mas

abrir como sinónim

o de libertação dos códigos tradicionais, para além

do beco infi ndável das m

imetologias académ

icas. Foi essa tam

bém a procura últim

a de Yago Conde,

essa indeterminação precisa do sentido da

arquitectura. Mas um

a indeterminação que

não é a procura infi nita do fortuito, mas

sim da precariedade própria da disciplina.

Precariedade como provisionalidade contra a

automatização dos discursos encerrados em

si próprios; precariedade com

o experimentação,

questionando em cada m

omento a arquitectura

e os signifi cados demasiado exactos que

esquecemos já de interrogar. Em

suma:

precariedade como um

a forma de estar atento.

I. O espaço provisional - fazer(-se) casa

Incerteza como im

previsibilidade e indeterm

inação como provisionalidade são os

sentidos da palavra acaso que nos interessam

aqui reter, mas são tam

bém os signifi cados que

sobrevêm da origem

etimológica desta palavra.

Casus, em

latim, signifi cava não apenas um

acontecim

ento, uma oportunidade, m

as nomeava

também

o próprio acto de cair, daquilo que im

previsivelmente cai e que, por conseguinte,

perece 3. O que subitam

ente se torna relevante na digressão por esta palavra, é que aquilo a que hoje cham

amos casa tem

precisamente a

mesm

a origem etim

ológica que acaso. A casa para os rom

anos não era algo sólido ou estável, m

as uma construção provisória e precária, um

a cabana, um

a barraca4. O

ra, que tenha sido esta palavra e não a palavra dom

us 5 a nomear

esse distinto lugar do habitar e da privacidade do hum

ano frente ao mundo, m

ostra muito

da precariedade do nome e da acção que a

palavra casa ainda hoje nomeia. Se a dom

us invoca desde logo essa acção triunfante sobre o território e sobre a natureza, por outro lado, a casa traz consigo, e de form

a bem presente,

essa precariedade e fragilidade não apenas da sua construção, m

as do próprio acto/evento do fazer-se habitar e do ocupar-se lugar para praticar esse residir, esse estar-no-m

undo. Se com

o nos diz Heidegger, ir ao encontro

das palavras é ir ao encontro do mundo

6, e se a teoria e o exercício da escrita são, antes de m

ais, uma caixa de ferram

entas como o

escreve Foucault, então a questão é sempre

o que podemos fazer com

estes nomes e o

que podem eles identifi car e oferecer à nossa

actividade quotidiana? Neste caso concreto,

as palavras advertem-nos que m

esmo por

detrás da aparência e da solidez do nome

casa, esta é algo profundamente precário e

provisório, mas que sim

ultaneamente se faz

sobre essa provisionalidade. A casa-projecto com

o algo pré-defi nido, acabado, deverá ser entendida antes com

o casa-táctica, como

algo que se pensa, desenha, reconhecendo a natureza provisional do espaço e do tem

po. Se o acaso tem

algum sentido enquanto

experiência do mundo é o reconhecim

ento de um

a dimensão especifi ca da vida e do habitar

que aparece toujours improbabilisticam

ente, exigindo sem

pre atenção, resposta, mas

sobretudo invenção – a capacidade de escutar o im

previsível e ensaiar uma reacção. Porque

é precisamente aí, nesse espaço do confronto

súbito que ocorre fora da rotina do habitus, que se produz a essência criativa do ser no m

undo, onde este produz/encontra o seu próprio espaço de acção e de liberdade. E quando isso acontece, quando esse espaço im

previsível e indeterminado se abre, podem

os dizer que o hom

em fez casa, ou talvez, fez-se a

si mesm

o casa. O que a palavra casus nom

eia é precisam

ente isso, essa possibilidade que algo aconteça, e esse acontecer inestim

ável que a casa perm

ite e oferece é esse lugar do eu, do ser junto-às-coisas, nunca sobre-o-m

undo (como

na domus), m

as sempre provisionalm

ente, indeterm

inadamente, abrindo-nos de um

a form

a sempre nova e livre às coisas. A casa

11

MIG

UEL LEA

L

Try again. Fail again. Better again. Or better w

orse. Fail w

orse again. Still worse again. Till sick for good.

Th row up for good. G

o for good. Where neither for

good. Good and all.

Samuel Beckett

Na m

anhã de 18 de Abril de 1976, quando

navegava 100 milhas a sul da costa irlandesa,

um barco de pesca galego avistou o casco sem

i-subm

erso de um pequeno veleiro de recreio que

não chegava a ter 4 metros de envergadura. À

deriva em m

ar aberto e sem sinais de ocupação

recente, o barco foi encontrado na vertical, com

a proa no fundo e parte da popa fora de água. N

o seu interior, entre vários outros objectos, descobriu-se um

passaporte no nome

de Baastian Johan Christiaan A

der. Tratava-se com

efeito do Ocean W

ave, o barco no qual, a 9 Julho de 1975, o artista de origem

holandesa Bas Jan A

der tinha partido de Cape C

od, no M

assachusetts, tendo como destino o porto

de Falmouth, na G

rã-Bretanha. Não era a

primeira vez que A

der cruzava o Atlântico

num barco à vela. Já em

1963, com 20 anos,

depois de viajar à boleia por França e Espanha, tinha em

barcado em M

arrocos num veleiro

que o levaria numa longa e atribulada travessia

de 11 meses até San D

iego, na Califórnia,

com passagens pela M

artinica e pelo Canal

do Panamá. Estabelecido desde então em

Los A

ngeles, para Bas Jan Ader a viagem

do O

cean Wave era por isso m

esmo um

a espécie

de retorno mais ou m

enos romântico ao lugar

de onde tinha partido anos antes. No entanto,

quando planeou enfrentar sozinho o oceano A

tlântico numa arriscada aventura —

e nunca antes tentada em

tais condições —, A

der tinha com

o objectivo concluir o seu projecto In Search of the M

iraculous e podemos por isso

dizer que se tratava acima de tudo um

a radical experiência estética. A

pesar da adaptações que lhe foram

feitas, o barco escolhido, um G

uppy 13 Pocket C

ruiser, um pequeno veleiro de

recreio muito popular à época na C

alifórnia, não parecia o m

ais indicado para a travessia. D

esafi ar o Atlântico sozinho num

a autêntica casca de noz foi para A

der apenas mais um

a form

a de ensaiar o difícil encontro entre a tragédia e a farsa, derradeira tentativa de levar ao lim

ite o confronto com as ideias de

risco, queda, fracasso ou desaparecimento que

parecem dom

inar a sua obra.In Search of the M

iraculous era assim o

gesto radical exigido a um artista que

experimentou de um

modo m

uito particular a tão reclam

ada fusão entre vida e obra que m

arcou as décadas de 60 e 70. Na verdade,

Ader integrou a prim

eira geração de artistas conceptuais da costa leste m

as desde cedo o seu trabalho m

ostrou uma dim

ensão poética que o aproxim

ava da já longa tradição do R

omantism

o. Há, ainda assim

, um lado

absurdo e trágico-cómico que tam

bém perm

ite relacionar a sua obra com

as mecânicas

específi cas do burlesco. Observe-se, por

FA(I)LLIN

G

Page 12: Revista Punkto#1 print

PU

NK

TO - AC

ASO

12

exemplo, com

o Ader enfrenta a gravidade em

dois curtos fi lm

es de 1970 — Fall I e Fall II.

No prim

eiro, vemo-lo sentado num

a cadeira em

cima de um

telhado de onde acaba por cair no chão, desam

parado e aos repelões; no segundo, pedala ao longo de um

canal para cair bruscam

ente na água. Sem explicação

aparente, as duas quedas são absurdas e estão talvez m

ais próximas da com

édia splatstick de Buster K

eaton do que da grande tragédia rom

ântica. Por isso mesm

o, o modo com

o Ader

combina essa dim

ensão trágico-cómica com

a m

elancolia evidente da sua fi gura solitária, em

fi lmes com

o I’m Too Sad to Tell You, de

1971, no qual chora convulsivamente em

frente à câm

ara, ou em Broken Fall (O

rganic), do m

esmo ano, em

que se baloiça pateticamente

do alto de uma grande árvore até se deixar

cair na água, transformam

o seu trabalho num

a variante singular da arte conceptual e, ao m

esmo tem

po, como alguém

assinalou, num

a síntese pouco comum

entre a Europa e a A

mérica.

A primeira parte do projecto In Search of the

Miraculous foi apresentada em

Los Angeles

pouco tempo antes da partida do O

cean W

ave e o seu segundo mom

ento deveria ter resultado da viagem

solitária de Ader, para o

que se planeava já, entre outras, uma exposição

no Museu de G

roningen, na Holanda. O

ra, A

der veio a desaparecer algures no meio

do Atlântico, naquela que é um

a forma

estranhamente topográfi ca de defi nir a ideia

de interrupção e talvez a única que poderia em

boa verdade completar um

projecto que pretendia levar ao lim

ite as ideias centrais da sua obra. Q

uando o casco do Ocean W

ave foi encontrado, 10 m

eses após a partida de Cape

Cod, estava já coberto de algas e m

oluscos e por isso estim

a-se que andasse à deriva há vários m

eses. Sabe-se apenas que se perdeu o contacto via rádio com

Ader três sem

anas após a partida e julga-se que algum

a coisa terá acontecido ao O

cean Wave já depois de ter

passado os Açores. O

s sinais encontrados no barco não foram

sufi cientes para reconstituir o sucedido. O

Ocean W

ave foi trazido pelo pesqueiro galego para o porto da C

orunha m

as pouco tempo depois viria a desaparecer

misteriosam

ente uma segunda vez, agora em

defi nitivo. D

o Ocean W

ave não restam pois

mais do que algum

as imagens, ajudando a

adensar o mistério em

volta da última viagem

de Bas Jan A

der.

§

Na Bienal de Veneza de 2005 Joachim

Koester

apresentou Message from

Andrée, uma peça na

qual podemos encontrar sinais da sua vocação

de caçador de fantasmas. O

ponto de partida de K

oester foi a viagem falhada, em

1897, dos exploradores suecos Salom

on A. A

ndrée, N

ils Strindberg e Knut Frænkel, que queriam

sobrevoar em

balão o Pólo Norte. O

balão,

17

PEDRO

LEVI BISMA

RCK

A M

EMÓ

RIA

D

O P

RESEN

TEO

IMPREVISÍVEL D

EVIR DO

ESPAÇ

O - A

RQU

ITECTU

RA, LIBERD

AD

E E AM

OR

É a imprevisibilidade que faz o acontecim

ento, mas é tam

bém a im

previsibilidade que faz o próprio conhecimento.

Não é aquilo que probabilisticam

ente se pode determinar m

as é o ponto improbabilístico que rasga o próprio véu do

saber e mostra qualquer coisa que até aí não fom

os capazes de prever.

Carlos A

maral D

ias 1

Prelúdio 1 : P

alomar

O inquieto senhor Palom

ar 2 está sobre o mar m

as não o observa, fi xa o olhar sobre uma onda,

uma apenas. Tenta prever todos os seus m

ovimentos, a sua dinâm

ica inquieta. Precisa de encontrar um

a ordem, um

esquema que lhe perm

ita organizar toda essa complexidade. N

ão desiste. R

eduz o campo de observação, regista todos os pequenos detalhes. Se conseguir será em

breve capaz de prever todos os m

ovimentos e passar à derradeira fase: estender esse conhecim

ento ao universo inteiro. M

as a maré m

uda subitamente e o senhor Palom

ar perde a paciência, regressando a casa ainda m

ais nervoso. Esta pequena metáfora que Italo C

alvino nos oferece sobre os modelos

humanos de explicação do m

undo é aqui tão simples com

o magnifi cam

ente exposta. De facto, o

homem

constrói-se a partir dessa vontade de controlar os fenómenos do m

undo, de nomear e de

lhes dar um sentido. Projectar, investigar, planear são os nom

es desses mecanism

os de domínio

da realidade. Formas, operações de organização da vida quotidiana que traçam

esse percurso para um

a artifi cialidade especifi camente hum

ana. A casa-abrigo não é o indomável território-onda, m

as sim

o pequeno campo de observação das coisas seguras e previsíveis. A casa faz-se sobre o signo da

fi rmitas, da perm

anência, de um habitus capaz de nos colocar em

segurança com o m

undo. Mas

cada campo de observação é apenas um

a estação provisória e, tal como em

Palomar, há sem

pre uma

maré, um

distúrbio iminente e im

previsível. Toda a construção é provisional, contingente, assim é

a nossa essência humana, na m

orte para além da m

orte.

Préludio 2 : U

n coup de dés

O que é irredutivelm

ente interessante no poema U

n coup de dés de Mallarm

é é que o acaso é um

a metáfora que nom

eia não o objecto do poema, m

as o seu irreparável propósito. O acaso

que o poeta francês assinala é a abertura improbabilística que se abre na interpretação do

seu próprio poema. O

espaço branco que é deixado entre as frases é o espaço do acaso, da

Page 13: Revista Punkto#1 print

Nove m

emórias-registos (Le C

orbusier - Villa Savoye, Á

lvaro Siza - FAUP e Bonjour Tristesse, M

ies - Pavilhão de Barcelo-na e N

eue Nationalgalerie, Steven H

oll - Kiasm

a)

PU

NK

TO - AC

ASO13

baptizado com nom

e de ave imperial —

Ör-

nen (Águia) —

, partiu de Danskøya, perto de

Spitsbergen, no Árctico, a 11 de Julho de 1897,

mas ao fi m

de três dias, a poucas centenas de quilóm

etros do ponto de partida, caiu no gelo para não m

ais se levantar. Andrée, Strindberg

e Frænkel andaram então à deriva sobre o gelo

implacável do Á

rctico durante várias semanas

até se instalarem, com

a intenção de aí passar o Inverno, num

a pequena ilha desabitada — K

vi-tøya [W

hite Island] —, onde viriam

a morrer

em data incerta do m

ês de Outubro. O

desapa-recim

ento heróico da expedição fi caria envolto em

mistério durante m

ais de trinta anos, até que em

1930 se descobriu, quase intacto, o acam

pamento m

ontado em K

vitøya. Aí esta-

vam os corpos dos três hom

ens, os seus diários de bordo e as películas fotográfi cas nas quais Strindberg, o fotógrafo de serviço, fi xou m

eto-dicam

ente as peripécias do pequeno grupo. À época, este achado im

provável fez furor dentro e fora da Suécia, tendo a reconstituição das desventuras da expedição liderada por A

ndrée ajudado a alim

entar o imaginário de m

uitos lei-tores. Joachim

Koester não foi pois o prim

eiro a interessar-se pelas fatalidades e contingências do destino da expedição em

balão sobre o pólo, m

as fê-lo de um m

odo muito particular. A obra

de Koester é povoada de assuntos obscuros

e personagens estranhas, movim

entando-se am

biguamente entre o docum

entário e a fi cção; no entanto, o centro da instalação de Veneza não era tanto a história dos três aventureiros

mas sim

um fi lm

e em form

ato 16mm

, mudo

e quase abstracto. Dos rolos fotográfi cos es-

pecialmente preparados pela K

odak para a expedição, recuperaram

-se cinco em 1930, já

expostos, um deles ainda no interior da m

á-quina. Surpreendentem

ente, após tanto tempo,

logo na altura foi possível revelar quase uma

centena de imagens. A

lguns dos negativos, cobertos de m

anchas e riscos, tinham fi cado

praticamente ilegíveis, m

as foram precisam

ente as m

arcas físicas do seu destino a prender a atenção de K

oester. Para Message from

Andrée, o artista fi lm

ou, frame a fram

e, as manchas

importunas que povoam

o branco de outro m

odo imaculado das paisagens retratadas nas

fotografi as de Nils Strindberg. O

resultado fi -nal é paradoxal, silencioso e abstracto, qualquer coisa que pode ser descrita através do ruído que certos espectros sonoros ou visuais se m

ostram

capazes de produzir. Koester optou por se

concentrar nas qualidades plásticas das ima-

gens, no preciso sentido de uma plasticidade

que deriva directamente da abertura ao acaso

e à mudança, ao acidente e à contingência. N

o fi lm

e somos confrontados com

essa espécie de autonom

ia plástica da emulsão fotográfi ca que

liberta as imagens de um

a função documental

e as isenta de qualquer valor de indexação. Foi portanto o potencial visionário e alucinatório dessas m

anchas mais do que a referência das

fotografi as a um passado trágico, que atraiu a

imaginação de K

oester. A deriva dos três ho-m

ens sobre as placas soltas de gelo, com tudo o

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14

que isso tem de um

a dramática psicogeografi a

e de um jogo com

o acaso, encontra no fi lme

um ém

ulo visual de carácter telepático e alu-cinatório. D

as desoladas paisagens do Árctico

retratadas por Nils Strindberg restam

no fi lme

as manchas inform

es que o acaso produziu, e é precisam

ente esse ruído, essa música do acaso

tantas vezes interpretada como erro ou falha

incómoda, que constitui a substância da inter-

venção de Koester. H

á pois um inconsciente

que se esconde nas velhas e gastas películas encontradas em

Kvitøya, um

inconsciente sem

o qual aquelas imagens não seriam

o que são e que aparece no fi lm

e de Veneza como narrativa

abstracta e silenciosa, singela homenagem

tanto à desgraçada aventura sobre o gelo do Á

rctico com

o ao potencial auto-poético e imaginativo

das coisas, em particular dessas m

anchas que ganharam

vida própria e reapareceram à super-

fície como a derradeira m

ensagem de Andrée.

§

A sombra de Beckett e a circularidade im

plica-da no bater sincopado do texto de W

orstward

Ho (1983) —

Try again. Fail again. Better again. O

r better worse. Fail w

orse again. Still w

orse again... — persegue-m

e há vários anos com

o marca possível de um

a ontologia da própria prática artística. N

ão é coisa sobre a qual se possa escrever directam

ente e por isso recorri a um

efeito de deslocação em que a

referência à queda do Örnen e às m

anchas do

fi lme de K

oester são como que um

a metoním

ia que m

e permite continuar falar da suspensão

e do aparente fracasso da viagem de Bas Jan

Ader. A

través deste método espero que se possa

descobrir que nenhuma das viagens falhou

verdadeiramente porque o que im

porta é tentar outra vez para falhar outra vez, apenas para falhar m

elhor, de uma vez por todas ainda pior

outra vez...

Miguel Leal (Porto, 1967) Artista plástico. V

ive e trabalha no Porto. M

embro fundador da V

IROSE, um

a estrutura interdisciplinar dedicada aos m

edia e ao estudo das relações entre arte tecnologia. É professor na Faculdade de Belas Artes da U

niversidade do Porto (FBAUP), onde orienta

trabalho de atelier e lecciona cadeiras de arte e cultura contem

porâneas. http://ml.virose.pt

O Ö

rnen imediatam

ente após a aterragem forçada a 14 de julho de 1897. Fotografi a retocada.

Este texto foi em parte m

otivado pela exposição In Search of Th e Miraculous: Trinta anos despois, apresentada entre M

aio e Setem

bro de 2010 no Centro G

alego de Arte C

ontemporânea, em

Santiago de Com

postela. Com

curadoria de Pedro de Llano, a exposição partia da ligação fortuita da história do O

cean Wave à G

aliza para oferecer uma leitura abrangente da obra rarefeita

de Bas Jan Ader.R

epare-se, a propósito da aventura do Örnen, que logo em

1930 saiu na Suécia o livro Med Ö

rnen mot Polen,

baseado nos diários de Andrée, Strindberg e Frænkel e ilustrado com

algumas das fotografi as recuperadas em

Kvitøya, ainda que

retocadas, de imediato publicado com

sucesso em vários outros países (veja-se a versão am

ericana em edição dirigida a um

público juvenil: Andrée’s Story: From

the diaries and Journals of S. A. Andrée, N

ils Strindberg, and K. Frænkel, found on W

hite Island in the Sum

mer of 1930 and edited by the Sw

edish Society for Antrophology and Geography, N

ova Iorque, Blue Ribbon Books, c. 1930).

Para mais detalhes sobre a peça de Joachim

Koester em

Veneza ver o catálogo Joachim K

oester: Message from

Andrée, Copenhagen,

Th e Danish A

rts Agency, 2005.