revista punkto#1 print
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Revista sobre arquitectura e cidade (versão imprimir - frente e verso)TRANSCRIPT
A REVISTA PU
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LAR, IMPREVISÍVEL E IN
DISCIPLIN
AR SOBRE LIM
ITES: DA PRÁTICA, DA TEO
RIA, DA ARTE E DA ARQU
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agiopor vir
livre uso do próprio
try again, fail again
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intensificação
laboratório espacial
experimentação
memória do presente
interrogaçãoprovisionalidadeindeter
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Giorgio Agamben
Gonçalo M. Tavares
Corbusier
Álvaro SizaBaudelaire
Joachim KoesterBas Jan Ader
Samuel Beckett
Robert Musil
Adolf Loos
Kent Kleinman
ATELIER DA
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Yago Conde
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2010
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Profanação e Vandalismo
Godofredo Pereira
Fa(i)llingM
iguel Leal
A M
emória do Presente
Pedro Levi Bismarck
Notas sobre a Prática do A
casoAtelier da Bouça
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S, M
allarmé,
poema
crítico, Baudelaire,
Flâneur, Flores do m
al, mem
ória do presente, liberdade, para m
im apenas liberdade, W
alter Benjamin,
arcadas, André
Breton, surrealism
o, Sant-Pol-
Rox, o poeta está a trabalhar, Louis Aragon, André M
asson, Freud, Sigmund, inconsciente, desenho
automático, R
aymond Roussel, JAM
AIS, Cadáver
esquisito, mesm
o atirado em circunstância eternas,
Dada, Le chien andalou, M
arcel Ducham
p, La m
ariée mise à nu par ses célibataires, m
ême,
Infra m
ince, 50cc
de ar
de Paris,
letrismo,
situacionismo, psico-geográfi ca, deriva, D
ebord, im
ponderabilidade, indeterm
inação, incerteza,
hasard, azar, al-azhar, dados, alea iacta est, Júlio C
ésar, Brutus,
ABOLIR
Á, caos,
teoria, bater
de asas,
explicações, princípio
da incerteza,
borboletas, determinar todas as causas é prever
todos os fenómenos, D
eus não joga aos dados, Einstein, probabilidades, oráculos, Tyche, fortuna, deusa, I-ching, livro das m
udanças, destino, o Jardim
dos
caminhos
que se
bifurcam,
Jorge Luis Borges, tem
po, espaço, labirinto, espaços, G
eorges Perec, Erik Satie, John Cage, Fontana
mix,
Fortunately, som
ewhere
between
chance and m
ystery lies imagination, the only thing that
protects our freedom, despite the fact that people
keep trying to reduce it or kill it off altogether, Luis Buñuel, O
ACASO
, para além de toda a
mim
etização toda a experimentação e toda a
liberdade, casus, acontecimento, Rules for sexual
engagement, cair, W
e are all agreed that your theory is crazy. Th e question w
hich divides us is w
hether it is crazy enough to have a chance of being correct. M
y own feeling is that it is not crazy
enough, la espanhola quando besa, polka dots and m
oonbeams, M
aterialismo dialéctico, C
ertifi cat d’ authenticité, para m
im com
duas pedras de gelo, O
norte é lindo, oh god! You are beautiful, São Rom
ão do Coronado, N
ada, da mem
orável crise em
que teve lugar o acontecimento, try again, fail
again, better again, todo o pensamento produz
UM
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Atelier da BouçaPedro Levi Bism
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iguel LealG
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1000 exemplares
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Gratuita
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retirada da série Rotoreliefs, M
arcel Ducham
p, 1923
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JÁ ERA
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DESTRU
IR PATRIMÓ
NIO
!!!
......TENHA O MELHOR DE DOIS MUNDOS!JUNTE O URBAN OLD CENTER STYLE MAS COM TODOS OS CONFORTOS E SEGURANÇA DE UM CONDOMÍNIO DE LUXO!
VENHA CONHECER OS NOVOS CONCEITOS RESIDENCE IN THE CITY-CONFORT-LIVING-LOUNGE-URBAN-TERRACE-SECURITY-GARAGE-LUXURY-CCTV QUE TEMOS PARA SI!
PUN
KTO
Nº1
Novem
bro 2010Porto
CLA
SSIFICA
DO
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TO - AC
ASO3
EDITO
RIA
L. De M
allarmé aprendem
os a ler o vazio das palavras, de Ducham
p aprendemos a interrogar
a arte, de John Cage a escutar o silêncio da m
úsica e de Siza que para ver é preciso tocar o imperceptível.
§ A obra não se faz a partir de um sentido único e universal m
as faz-se na medida em
que se entrega ao espectador: provocando-o, questionando-o, possuindo-o. § A obra de arte é um
agenciamento
incessante e imprevisível de outros signifi cados, sentidos, interpretações. É um
acaso. E o acaso é o espaço da interpretação, da experiência, da com
unicação que se abre entre nós e a obra. § O acaso não
é aquilo que é sem sentido ou fortuito m
as é o que possibilita que nada esteja à partida destinado. É a im
previsibilidade, a imponderabilidade: é a própria vida. § O
acaso é o espaço vazio que nos é dado para poderm
os ser livres, o espaço nunca predefi nido, onde somos nós entregues à experiência de poderm
os ser nós próprios, falhando, falhando de novo, falhando sem
pre. § A arquitectura é a experiência do acaso, isto é a experiência da vida, da construção inconstante de um
a rotina nunca predefi nida. Os desenhos
e as imagens acabadas fi cam
no arquivo, lá fora a vida continua, a arquitectura ganha vida, enfeitiça-se, sacraliza-se e profana-se, desaparece e renasce. § A natureza indeterm
inável da arquitectura não é a sua im
perfeição mas a sua grande possibilidade: que esta na paisagem
ausente do quotidiano seja capaz de provocar o im
previsível, de nos interrogar, rasgar o véu do saber e trazer sempre algo novo, im
possível e belo. § Q
ue haja sempre um
a hipótese de fugir ao que estamos fatalm
ente destinados é esse o sentido da palavra acaso.
Interior do palácio Al Faw ocupado pelo exército Am
ericano, Iraque, (Foto: Richard M
osse, série ‘Breach’, 2009).
PU
NK
TO - AC
ASO25
O acaso pode inform
ar o projecto de arquitectura.
Tudo tendo tendência ao equilíbrio, as coisas tom
am,
naturalmente, o seu lugar
justo, isto é adequam-se aos
rituais/movim
entos que nós fazem
os no tempo e espaço.
"Observez un jour, non pas
dans un restaurant de luxe où l’intervention arbitraire des garçons et des som
meliers détruit
mon poèm
e, observez dans un petit casse-croûte populaire, deux ou trois convives ayant pris leur café et causant. La table est couverte encore de verres, de bouteilles, d’assiettes, l’huilier, le sel, le poivre, la serviette lerond de serviette, etc. Voyez l’ordre fatal qui m
et tous ces objets en rapport les uns avec les autres; ils ont tous servi, ils ont été saisis par la m
ain de l’un ou de l’autre des convives; les distances qui les séparent sont la m
esure de la vie. C
’est une composition m
athéma-
tiquement agencée ; il n’y a pas un
lieu faux, un hiatus, une trompe-
rie. Si un cinéaste non halluciné par H
ollywood était là, tournant
cette nature morte, en ‘gros plan’,
nous aurions un témoin de pure
harmonie." Le C
orbusier 2.
E se, apesar de separarmos o
ser e o parecer, as nossas ro-tinas m
udarem m
ais depressa do que os objectos levam
a as-sentar? E se não quiserm
os que o conforto se instale perene e obtuso e, pelo contrário, pela disposição estranha dos objec-tos, quiserm
os que o espaço nos faça/obrigue a m
udar?
Intensifi cando, “praticar o acaso” inform
a a prática do projecto...
Quando se passa de m
ero observador a jogador, quando exploram
os os limites da
fl exibilidade e refi namos/
radicalizamos as nossas
experiências (laboratoriais), seguindo o m
étodo científi co (problem
a – premissa
resultante da vivência - , hipótese – projecto que responde ao problem
a -, experiência – construção do espaço -, observação – análise das vantagens e problem
as que o novo espaço im
põe, levando ao estabelecim
ento de novas prem
issas) reunimos
um conjunto de inform
ações passíveis de generalização e por isso úteis para qualifi car/garantir dispositivos de fl exibilidade aos espaços que propom
os. É desta form
a e com este
objectivo que (Ab)usamos
intensamente (d)a casa com
o laboratório espacial... pelo prazer do acaso enquanto m
anipulador do pré defi nido, ou apenas porque gostam
os de recom
eços.
1 Gonçalo M
. Tavares in Pedro Pacheco e Luís Santiago Baptista (curadores), Falemos de C
asas... em Portugal (exposição), Trienal
de Arquitectura de Lisboa, 2010.2 Le C
orbusier, Prologue Américain, in Précisions, C
ollection de L’Esprit nouveau. Altamira, 1997.
PU
NK
TO - AC
ASO
24
Algum
a arquitectura apavora-se com
o acaso!
Alguns projectos de espaços querem
determinar
completam
ente a vida que neles decorre e decorrerá em
todos os próxim
os tempos.
Fazendo um paralelo ao teatro,
diríamos que desejam
à partida conhecer e dar resposta tácita a um
argumento, um
a narrativa com
pletamente defi nida.
Se essa narrativa não está disponível à partida, torna-se tam
bém ela objecto de
projecto na sua fi nitude.Entendendo o acaso com
o algo que acontece sem
ser consequência de algo passado, ou seja, efeito que não se explica por um
a determinação
precedente, nestes projectos o acaso é um
drama, o pavor!
Os espaços que elim
inam a
surpresa, que condicionam e
prevêem tudo, têm
tanto medo
das surpresas más (pouca
confi ança nas capacidades do espaço) que elim
inam
qualquer hipótese de surpresa boa.
O acaso é im
placável!
O acaso existe e é im
possível, além
de ser escusado, desenhá--lo. C
omo todas as profi ssões
que gerem/lidam
com o
percurso das coisas no tempo,
ambicionam
os projectar/condicionar o futuro, este desejo, sabem
o-lo desde o início, é irrealizável na sua com
pletude, mas quem
disse que nós querem
os mesm
o prever tudo?N
ão podemos (nem
conseguíam
os se quiséssem
os...) conhecer o acaso, e condicioná-lo? Até que ponto?Até que ponto querem
os fechar todas as saídas e deixar um
a família/instituição/
comunidade enclausurada? O
conforto não é a possibilidade de acaso, a m
ultiplicidade de apropriações, a m
áquina aberta à sua m
anipulação?
A arquitectura m
anipula o espaço do acaso.
“A ideia de que a arquitectura deve facilitar todos os m
ovimentos, de igual m
aneira, é assum
ir que a arquitectura não tom
a uma posição
fi losófi ca, por exemplo em
relação à vida das pessoas, isso parece-m
e um disparate. Por
outras palavras, eu gosto mais
de uma casa que m
e difi culta, ou que m
e põe obstáculos para m
e impedir que faça
coisas tontas e que me facilita
movim
entos para fazer coisas sensatas”. G
onçalo M. Tavares 1
Filipa de Castro G
uerreiro e Tiago M
acedo Correia [atelier da bouça]
Nasceram
em 1976, licenciaram
-se na FAUP em
2000. Desenvolvem
actividade profi ssional desde 2001. Fundaram em
2008 o atelier da Bouça. Filipa é docente de Projecto 1 e responsável pelo Pelouro da C
omunicação da O
ASR
N 2008-10.
A dois (ab)usam (d)a casa com
o laboratório espacial, partilham a obsessão pelo vazio enquanto m
atéria da arquitectura.
5
GO
DO
FREDO
PEREIRA
Monum
entos
Foi recentemente transform
ada em condom
ínio de luxo a antiga sede da PID
E-DG
S em
Lisboa. No decurso das m
odifi cações a placa com
emorativa existente foi recolocada num
a zona m
enos visível, certamente para não
prejudicar a boa imagem
do edifício, um prédio
que não chegou a ser monum
ento na revolução e que seguindo a sua vida se deixou profanar pelo m
ercado imobiliário. Perante tal afronta
à mem
ória do fascismo e da opressão, m
as sem
a capacidade de adquirir o edifício para o transform
ar num m
onumento – ou porque
ele já é um m
onumento ao neo-liberalism
o – a questão que sobrou foi a de saber onde recolocar a placa com
emorativa existente. Pelo m
eio e com
o seria de esperar tanto a placa como a
fachada do edifício foram vandalizadas. H
onra aos H
eróis, dizia. Depois de m
uita discussão restou à C
âmara M
unicipal fazer uma nova placa
inaugurada com pom
pa e circunstância. Dois
monum
entos num só ditou o acaso, algo que
decerto o projectista original nunca imaginou.
Firmitas
Na relação da arquitectura com
o acaso ganham
relevo duas afi rmações concorrentes: 1) se a
arquitectura não pensa na sorte é porque pensa não depender dela e 2) se a arquitectura pensa na sorte é porque deseja controlar o acaso. A prim
eira afi rmação é confi rm
ada pelo ideal
da estabilidade Vitruviana: Firm
itas não se refere apenas a um
a estabilidade ou fi rmeza do
construído, mas à sua necessária perm
anência ao longo do tem
po enquanto permanência
daquilo que é estabelecido pela arquitectura em
si. O m
elhor exemplo deste desejo de
inscrição são os monum
entos, edifi cações com
uma função de uso cerim
onial, construção de peças representativas que supostam
ente falam
para todo o sempre. E se estender este
pressuposto específi co dos monum
entos a toda a outra arquitectura é debatível, já questionar até que ponto é que, m
esmo no desenho de
monum
entos, a arquitectura cumpre este
desígnio de permanência parece-nos m
ais relevante. Para ilum
inar esta questão teremos
de indagar sobre o que se entende ser o objecto (propósito) da arquitectura. Se nos estiverm
os a referir à organização e disposição de m
ateriais com dim
ensões específi cas, então talvez possam
os dizer que este objecto m
onumental perm
anece tal como
as pirâmides ou os tem
plos Gregos. M
as é sabido que o objecto arquitectónico não é exactam
ente a mesm
a coisa que o objecto da arquitectura, assum
indo-se em geral que este é
de facto o projecto: investido de ideias e funções, ideológico, sim
bólico e representativo (mesm
o quando tenta não o ser). Enquanto projecto o objecto da arquitectura será então o planifi car de um
a construção de acordo com certos pressupostos
ideológicos, uma defi nição que se enquadra bem
com
o que nos fornece a história da arquitectura: o m
onumento concretiza o projecto. M
as por
PRO
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ENTO
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TO - AC
ASO
6 outro lado temos tam
bém a inscrição do objecto
no mundo, aberta à vida e à transform
ação, em
que se passa de objecto acabado de construir (m
undo perfeito) a objecto vivo, selvagem e
alheio às maquinações do arquitecto. Apesar
de não ser objectual, não poderá também
esta dim
ensão almejar ao título de objecto da
arquitectura? E se sim, poder-se-á afi rm
ar que a arquitectura possui dois objectos de estudo, a saber, o objecto projectual e o seu devir-m
undo?O
problema não se põe. Sim
plesmente porque
desde há muito que a escolha foi feita: é que
a arquitectura, mesm
o aquela que não almeja
à monum
entalidade, não quer geralmente ter
nada que ver com vida, m
as apenas com m
orte e perfeição, o que talvez explique um
maior
interesse na petrifi cação do projecto do que nas suas eventuais m
utações. E porquê? Talvez porque nesta diferença entre o projecto e a sua vida edifi cada se interpõe um
a fi gura que impõe
a separação dos dois tempos, isto é, a fi gura do
acaso. Assim
sendo, a segunda afi rmação que
avançamos parece ser a m
ais correcta: a arquitectura pensa na sorte quando se deixa levar pela angústia de controlo que a todo o custo se recusa a aceitar o devir da própria arquitectura. Q
uando os imprevistos usos e transform
ações do edifi cado são descritos em
termos de sorte
ou azar, é sinal que se dá prioridade ao objecto projectual e por isso m
esmo aí se espeta a
primeira faca à arquitectura e à sua vida.
Também
tu, Brutus!
Brutus aqui é o arquivo, essa tentativa de matar a
arquitectura (fala-se exclusivamente do projecto
e não do edifício). O arquivo é, com
o observa K
ent Kleinm
an em Archiving Architecture 1 um
suplem
ento de qualidades que a obra construída necessariam
ente não terá (originalidade, estabilidade, perm
anência) e vive precisamente
desta separação forçada entre projecto-ideia e obra-viva. O
arquivo insiste nesta separação segundo a assunção de que a arquitectura está no projecto e o resto é obra do acaso, tentando passar a ideia de que o que se observa no projecto se observa no edifi cado: “O
arquivo
deve ser mais precisam
ente descrito como
uma m
áquina para esquecer que os projectos arquitectónicos são ontologicam
ente distintos das suas representações”. Só que fatidicam
ente o grande perigo espreita e as traças com
em os
livros. D
e facto o projecto enquanto objecto de arquivo ou de referência sofre tam
bém aí as necessárias
vicissitudes da passagem do tem
po, sob a form
a da sua integração compulsiva em
novas genealogias ou interpretações históricas. O
u seja, estam
os perante um problem
a bem m
ais sim
ples: ignora-se voluntariamente o acaso da
arquitectura porque se sabe não o poder evitar, e busca-se o refúgio do arquivo com
o se este estivesse protegido da intem
périe, oferecendo m
ais que uma protecção ilusória.
Mas há quem
vá mais longe e decida não só
arquivar o projecto como arquivar o próprio
edifício. O caso da V
illa Müller é exem
plar: na vontade de restaurar o projecto original de acordo com
os desenhos e ideias de Loos, foram
retiradas as camadas de tinta que escondiam
as cores originais, foram
retiradas mobílias não
originais, a casa foi limpa até ao seu passado-
ideal, passado esse que pouco mais foi que o
projecto. É patente o terror inerente à defesa do m
onumento, o terror ao m
undano, que contra a vida vivida da arquitectura transform
a o objecto num
a obra de arte, intocável. Por isso, a recuperação da casa M
üller (como a
de tantas outras) é de facto profundamente
anti-arquitectónica, e ainda mais se vista à luz
das posições do próprio Loos. E o que é ainda m
ais curioso é que numa época em
que se assum
e que os arquitectos já não constroem
monum
entalmente se continuem
a produzir m
onumentos em
todo o lado: monum
entos às instituições, ao passado histórico, ao pensam
ento, à revolução, à cultura, à arquitectura, etc. O
restauro da Villa M
üller foi confi rmado pelo
arquivo dos seus desenhos originais e fotografi as existentes. M
as restaurando-a o edifício deixa de ser arquitectura e passa a ser um
arquivo construído. C
omo tal não pode ser tocado,
transforma-se num
monum
ento, uma im
agem
do auto-imaginar-se da sociedade. Assim
, quando o arquivo não chega, m
ata-se o próprio
ATELIER DA
BOU
ÇA
Nove variações sobre um
a mesm
a casa.
A C C
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H H
I
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Nove variações sobre um
a mesm
a casa.
A B
C
D
E F
G
H
I
PU
NK
TO - AC
ASO7
edifício. Tudo para que o mundano acaso
não profane ou vandalize a bela imagem
que querem
os da arquitectura.
Profanação M
as passemos para o m
undano, pois se nos debruçarm
os sobre essa segunda vida do objecto verifi cam
os que o acaso não é assim tão sim
ples. A profanação do objecto arquitectónico signifi ca segundo Agam
ben, a sua devolução ao com
um, ao espaço m
undano, agora fora do dispositivo de poder que o inscreve: “U
ma
vez profanado, aquilo que estava indisponível e separado perde a sua aura e é devolvido ao uso”
2. Se usarmos o exem
plo da arquitectura portuguesa do Estado N
ovo – que melhor
exemplo se pode pedir para um
a arquitectura que inscreve determ
inadas formas de poder
pastoral na identidade colectiva de uma nação
– então teremos com
o exemplo de profanação o
Tribunal transformado em
padaria, os Correios
em discoteca ou o Portugal dos Pequeninos em
loja de conveniência. C
laro que muitas vezes tal
não acontece – ou acontece menos vezes do que
seria desejável – o que pode indicar problemas
nesta ideia. Mas profanar signifi ca retirar ao
sagrado. Ora devem
os começar por reparar
que no que respeita à arquitectura, o sagrado é aquilo que é determ
inado pela ideia-função e cristalizado na sua representação ‘parlante’. O
sagrado remete não só para um
espaço religioso ou legal, m
as principalmente para a
sua cristalização projectual enquanto tal. Trata-se aqui da arquitectura enquanto produção de sagrado e ela m
esma produção sagrada. Assim
os espaços sagrados da arquitectura são todos aqueles determ
inados para um ritual específi co,
desenhados para cumprir a inscrição na terra
do sagrado (a Ideia). Dito de outra form
a, são todos aqueles passíveis de serem
profanados. Mas
assim sendo tem
os que esta organização de poder pelo objecto não é exclusiva da arquitectura de estado ou arquitectura de excepção, m
as sim
estranhamente inerente à própria ideia
de arquitectura. Aliás, verifi camos que na
maioria dos casos o objecto arquitectónico é
o palco de constantes profanações, constantes
re-usos e adaptações, frutos da ocasião e das circunstâncias, ou para seguir a linha deste ensaio, do acaso. A profanação trata então da defi nição de lim
iares a partir dos quais se considera que o edifício está a ser desvirtuado, lim
iares a partir dos quais em certos casos se
pode recorrer a mecanism
os legais disponíveis para intervir e repor a ordem
. E principalmente
a profanação força o constatar da irremediável
distância entre o ideal projectado e o real vivido e necessariam
ente transformado.
Vandalização
Por vezes, a profanação não é apenas fruto do quotidiano e das suas preocupações terrenas, m
as de um acto deliberado contra a im
agem do
objecto edifi cado. Este acto que pelo objecto (ou sobre ele) visa produzir um
determinado
efeito político, indica que se é possível passar do sagrado ao profano, então tam
bém é possível
o seu oposto, a passagem do profano para o
sagrado. A esta acção daremos, à falta de m
elhor, o nom
e de vandalização. O
acto de vandalismo parte do princípio de que
a separação entre sagrado e profano, entre poder e viver (ou entre o poder inscrito no projecto e a selvajaria m
undana do edifi cado) não é mais
que uma fabricação, um
a manobra que esconde
o real poder do edifício e que esconde a verdade da arquitectura. Vandaliza-se porque vale a pena vandalizar, porque o edifício representa algo. O
muro da universidade é um
monum
ento ao poder instituído, a capela em
desuso é de facto a m
anifestação de uma instituição conservadora,
a vandalização de uma fachada vai decerto
enfurecer os apoiantes do partido politico adversário, etc. A vandalização é portanto um
m
omento de ataque ao profano (ataque ao
edifício que fi nge ser profano) mostrando que
ele é profundamente sagrado, trazendo ao de
cima o m
onumento totém
ico que se esconde na rotina da vida quotidiana e m
undana. O
escritor Robert Corbu indicava num
texto sobre m
onumentos desconfi ar da sua suspeita
inconspicuidade. A suspeita inconspicuidade dos m
onumentos é a sua capacidade para
passarem despercebidos quando reduzidos a
PU
NK
TO - AC
ASO
8 fundos, perdidos no dia-a-dia dos hábitos até que alguém
os retire a essa invisibilidade. E ao tentar ser iconoclasta, a vandalização pressupõe que para os outros existe ali um
tabu e reinveste totem
icamente o edifício, conferindo-lhe a
capacidade para articular e dar visibilidade a uma
luta de poder que necessariamente o ultrapassa:
expõe o sagrado, torna-o visível e ao mesm
o tem
po duplica o seu poder. A vandalização pressupõe que ao atacar a fachada se ataca sim
ultaneamente a ideia que está expressa na
fachada. E pressupõe que alguém se im
porta (e de facto há sem
pre alguém que se im
porta...).Assim
, se a profanação parece marcar um
a diferença ontológica inscrita nos próprios fundam
entos da prática da arquitectura entre o projecto do objecto e a vida do objecto - i.e. duas arquitecturas - já a vandalização através da sua acção sacrifi cial, nunca rem
ete para o profano, m
as sempre para o sagrado. Só que
é precisamente por este estar no m
undo que a vandalização é capaz de devolver ao objecto m
undano o seu carácter ideal e que assim o
ressuscita da morte.
E é este mom
ento de encantamento que se
torna decisivo. No m
omento da vandalização,
a separação entre sagrado e profano colapsa e edifício, uso e sim
bologia, recuperam um
a co-im
anência que lhes escapa desde que se transm
utaram de projecto em
obra, e que no fundo opera a união, o encontro ainda que m
omentâneo entre essas duas vidas da
arquitectura, a vida ideal, projectada, e a vida real m
undana e confl itual. A vandalização desenterra a Ideia para m
onumentalizar a terrível
realidade que se esconde no profano.
Anim
ismo
Temos portanto que entre estas duas vertentes
da arquitectura, ou entre os seus dois objectos existem
múltiplas relações, de apropriação,
de profanação, de violência, passando do sim
bólico ao profano, do usual ao monum
ental, m
ovimentos que refl ectem
as lutas de poder em
torno ao edifi cado ou fazendo uso do edifi cado. Para além
de Kleinm
en, diremos fi nalm
ente que não se trata tanto ou sim
plesmente de
uma separação ontológica, m
as de duas linhas de vida que casualm
ente se cruzam e
voltam a separar, produzindo-se m
omentos de
transferência entre elas, forçados pelos variados encantam
entos mágicos do edifício e do
projecto e pelas igualmente feiticistas tentativas
de os desmascarar. Assim
sendo o objecto da arquitectura não será m
ais do que a tentativa de ter pulso nesta relação entre inscrição e transform
ação ou entre morte e vida.
Afi nal, o problema é que a m
onumentalidade
– que é normalm
ente identifi cada com o
simbolism
o clássico – não advém sim
plesmente
de uma decisão de construir m
onumentalm
ente, isto é, de seguir um
a certa forma de projectar,
mas principalm
ente de circunstâncias im
previsíveis ditadas pelo acontecer da arquitectura, que resultam
no edifício tornado m
onumento. O
ra dá-se o caso deste processo poder cristalizar para a história da arquitectura um
a organização espacial e uma linguagem
form
al que se baseou precisamente na ideia
de anti-monum
entalidade. E aí produz-se o léxico de um
a nova monum
entalidade, isto é, de um
a nova forma de representar e fazer ver
pela arquitectura. Diria Benjam
in que é aura que está em
jogo, diremos nós que a angústia
contra o acaso, que parece animar os delírios de
controlo do arquitecto, resulta da incapacidade de aceitar o carácter totém
ico e feiticista do objecto arquitectónico. E que é essa capacidade de descobrir poderes ocultos e um
a espécie de alm
a vivente na matéria inanim
ada que faz a vida da arquitectura.
Godofredo Pereira (Porto, 1979) Arquitecto pela FAU
P. M
estrado AVATAR, pela Bartlett School of Architecture. D
esenvolve tese de doutoramento sobre ‘Feiticism
o e Política M
ágica dos Monum
entos’, no Centre for Research Architec-
ture, Goldsm
iths University, Londres, com
bolsa da Fundação para a C
iência e Tecnologia. É co-editor da DET
RITOS
(http://ww
w.revistadetritos.com) e lecciona na Bartlett School of
Architecture, Londres.
1 Kent K
leinmen, Archiving Architecture, (in Blouin, Francis X
., Rosenberg, William
G., Archives, docum
entation, and institutions of social m
emory: essays from
the Sawyer Sem
inar, University of M
ichigan Press, 2006, pp. 54-60).2 G
iorgio Agamben, Profanations, Zone Books, N
Y, 2007, pp. 73-92.
Stéphane Mallarm
é, Un coup de dés, 1897 (página da edição francesa, 2003)
O núm
ero / se existisse / diverso da alucinação esparsa da agonia / começasse ou fi ndasse / ensurdecedor e não negado e
preso quando aparecesse / enfi m / através dum
a profusão ampliada e rara / se contasse / com
o evidência da soma pouca um
a / se ilum
inasse / o acaso / cai / a pena / rítmica suspensa do sinistro / para se afundar / na espum
a original / recente onde explode o delírio até ao cim
o / desvanecido / pela neutralidade idêntica do abismo.
PU
NK
TO - AC
ASO
20
da obra arquitectónica. Que isso aconteça
imprevisivelm
ente, indeterminadam
ente e até no m
ais ínfi mo porm
enor, apenas reforça a nossa confi ança na capacidade e no valor da arquitectura.
4. O espaço im
perceptível – desvelando, interrogando o real
Toda a produção artística exige de nós atenção e vigília, há sem
pre algo a des-velar, a des-cobrir. M
as o verdadeiro conteúdo da revelação não é aquilo que é por si próprio revelado, m
as aquilo que esta, no seu silêncio, deixa ainda por dizer. Isto é, não o que em
si é inexpugnável à com
preensão, mas o que é deixado a m
im para
poder dizer. Também
na obra de arquitectura assim
o é: se nada tiver sido deixado por dizer (e por vir), então signifi ca que nada afi nal foi dito. C
omo escreve A
gamben, «o único
conteúdo da revelação é aquilo que é fechado em
si, o que é velado – a luz é apenas a chegada do escuro a si próprio» 13.N
a digressão-em-viagem
pelos espaços de Á
lvaro Siza há sempre algo que fi ca por dizer,
há sempre um
signifi cado indeterminado,
um gesto im
previsível que pede um outro
sentido. A lição fundamental de Siza não
está no desenho ou no método, naquilo que
imediatam
ente vemos, m
as naquilo que fi ca por ver. Para Siza a arquitectura é, acim
a de tudo, um
dispositivo crítico e irónico sobre o exercício da quotidianidade. C
ada edifício é em
si uma refl exão sobre a sua própria
condição, cada edifício subverte a essência de si m
esmo e interroga a natureza da nossa relação
com o espaço, com
os programas, com
o quotidiano. N
a paisagem distraída das rotinas
diárias, Siza faz do espaço arquitectónico um
a experiência por vir, interrogando-nos e provocando-nos, subvertendo o m
ais ínfi mo
pormenor e exigindo de nós toda a atenção
e disponibilidade, mas sobretudo, toda a
vontade – agio. O traço negro que circunda
o Pavilhão Carlos R
amos; as escadas-percurso
que dão acesso à Casa de C
há da Boa Nova;
o vermelho-cor das paredes interiores do cubo
de entrada na Faculdade de Arquitectura, m
as tam
bém essa perspectiva acelerada do corredor,
e em Berlim
, o olho invisível do Bonjour Tristesse, guardam
essa precisa indeterminação
da arquitectura, essa capacidade de provocar o im
ponderável, de interrogar, de abrir um
espaço na mem
ória do presente, rasgando o véu do saber e trazendo sem
pre algo novo, im
possível e belo.
Os poetas provençais fazem
do agio um «term
inus technicus» da sua poética, que designa o lugar próprio do am
or. Ou m
elhor, não tanto o lugar do amor,
quanto o amor com
o experiência do ter-lugar de uma
singularidade qualquer.
Giorgio A
gamben, A com
unidade que vem
Pedro Levi Bism
arck (Praia da Granja, 1983). Arquitecto
pela FAUP. Estudou e trabalhou em
Berlim. Está actualm
en-te a desenvolver a sua tese de doutoram
ento na FAUP. V
ive no Porto. spacingzyx24.blogspot.com
1 Carlos Am
aral Dias, program
a Alma N
ostra, Antena 1 (20 de Abril de 2010).2 Italo C
alvino, Senhor Palomar.
3 Casus está etim
ologicamente ligado ao verbo cadere. San Isidoro de Sevilla, Etim
ologias.4 Idem
.5 D
omus é o dom
ínio do senhor, daquilo que foi domesticado. Ibidem
.6 Para H
eidegger, compreender/pensar os nom
es que se ocultam por detrás das palavras é com
preender/pensar a relação imem
o-rial do hom
em com
o mundo. C
F. Heidegger, D
as ding.7 Term
o convocado por Manuel M
endes.8 G
iorgio Agambem
. Cf. A ideia do ter-lugar é desenvolvida no livro A C
omunidade que vem
.9 Idem
, pp. 27.10 Agam
ben chama a isso a nossa possibilidade ética - o ethos - a nossa segunda natureza. Ibidem
, pp. 30.11 A expressão sentir-se em
casa assinala a forma verbal que faz a casa e am
plifi ca o sentido provisional desta como algo que
acontece, através da produção mom
entânea de um espaço-em
-que-se-pode-estar.12 C
harles Baudelaire, Critique d’art suivi de critique m
usicale. A mem
ória do presente revela, em Baudelaire, o sentido efém
ero do próprio presente, m
as também
retém a im
portância da experiência do presente como construção de um
a mem
ória singular.13 G
iorgio Agamben, Ideia da Prosa, pp.117.
‘Honra aos H
eróis’ - grafi tti na fachada da antiga sede da PID
E-DG
S em Lisboa, antes de serem
iniciadas as obras para a sua transform
ação em condom
ínio de luxo. (Foto: autor desconhecido)
PEDRO
OLIVEIRA
Bas Jan Ader no Ocean W
ave (Cortesia C
GAC
, 2010)
Os destroços do O
cean Wave. D
etalhe do material docum
ental da exposição (CG
AC, 2010)
PU
NK
TO - AC
ASO19
não é um sim
ples suporte de rotinas, mas sim
o praticável 7 que perm
ite que o ser ocupe um
lugar no mundo, não para dele se esconder,
mas para a partir daí poder com
unicar com
ele. Que esse espaço não seja determ
inável na sua form
a, nem previsível no seu sentido, não
é uma im
perfeição da casa, mas a sua dádiva,
a possibilidade última que possibilita a própria
arquitectura, deixando sempre que algo m
ais advenha, aconteça e possa ter um
lugar no m
undo, para além do m
undo8.
2. O espaço-por-vir: agio
Na paisagem
tecnifi cada e impositiva da
realidade qualquer discurso arquitectónico sobre a casa terá de reconhecer que esta é, acim
a de tudo, um processo aberto, um
a táctica provisória para um
a conquista do lugar. E que o últim
o reduto do privado não deve e não pode ser um
a submissão aos ditam
es burocráticos das leis, dos m
ercados ou das im
agens, mas deve ser sem
pre e cada vez um
a refl exão-digressão sobre a construção da liberdade individual no m
undo e a construção de um
espaço de relação com o outro. É esse
o sentido da palavra agio (à vontade), utilizada por G
iorgio Agam
ben, que «indica de acordo com
o seu étimo, o espaço ao lado (ad-jacens,
adjacentia), o lugar vazio em que cada um
se pode m
over livremente, num
a constelação sem
ântica em que a proxim
idade espacial confi na com
o tempo oportuno (ad-agio, ter
agio) e a comodidade com
a justa relação» 9. Agio é o lugar do livre uso do próprio, é o espaço do porvir, daquilo que não estando determ
inado, nem estando destinado, apenas
a nós cabe cumprir e realizar 10. É o espaço
do nosso ser que é deixado em suspenso, um
espaço-acaso, um
espaço-casa, que permanece
por fazer e por vir. Não é o lugar do casuístico
ou do fortuito, mas o espaço adjacente,
indeterminado nas suas m
argens e imprevisível
na sua natureza, que se abre no limite do ser e
permite que este conquiste a sua singularidade,
esse seu lugar no mundo. Ter agio é fazer(-
se) casa, é conquistar a intima fragilidade do
mundo, m
as é acima de tudo, o lugar-encontro
que se faz na presença e na procura do outro, na partilha, na constelação sem
ântica e na sim
ultaneidade provisional e única entre dois tem
pos e dois espaços. É um verbo m
ais que um
nome, um
a acção mais do que um
facto, um
espaço aberto e indeterminado que se faz
mundo entre o hom
em e as coisas 11.
3. O espaço instante - a m
emória do presente
Mas não será tam
bém o agio essa
indeterminação nos lim
ites de cada objecto que Yago C
onde procurava; os espaços brancos entre as frases de M
allarmé; o silêncio
imperscrutável da m
úsica de John Cage ou
o infra mince de D
uchamp? Esse m
omento
ínfi mo e im
previsível que faz do encontro entre a obra de arte e o espectador um
evento plenam
ente individual e inter-subjectivo, para além
de qualquer sentido universal. A obra de arte abre-se ao acaso, à abertura e à aventura da interpretação, e é o interprete-criador que dá o seu sentido últim
o, possuindo-a, destruindo-a, refazendo-a. E quando esse instante único se faz casus e se faz casa, dá-se precisam
ente aquilo a que podemos cham
ar o facto estético. Baudelaire escrevia que era a passagem
imediata da experiência à m
emória
que concretizava o mom
ento estético (a m
emória do presente 12); m
as não será esse m
omento o instante único onde a experiência
é simultaneam
ente já mem
ória, isto é, onde o presente é já o ausente, onde aquilo que vejo é sim
ultaneamente aquilo que recordo?
A sincronização absoluta e imprevisível de
dois tempos, o ínfi m
o paradoxo que faz com
que algo se escape da escuridão e seja, enfi m
, belo – não pela sua forma, pela sua
proporção, mas por nos pôr frente a frente
com essa im
possibilidade humana: recordar
o que ainda posso tocar e tocar aquilo que sei que vou recordar, que quero recordar. Q
ue esse m
omentum
súbito, esse instante ínfi mo
possa acontecer e tomar lugar, disturbando
os limites da nossa linguagem
e interrogando a nossa quotidianidade, abrindo um
espaço - um
agio - de aproximação e de encontro em
direcção ao m
undo, é esse o sentido último
PU
NK
TO - AC
ASO
18
interpretação, dos sentidos que se (o)põe em
cada leitor. Era esse também
o sentido da palavra ducham
piana infra mince, esse
ínfi mo porm
enor, esse mínim
o evento capaz de dar um
sentido provisional à obra de arte e transform
á-la não num objecto estético, m
as num
conteúdo provisório, num agenciam
ento de outros signifi cados. E essa é tam
bém a
busca absoluta de John Cage, não a procura
por uma nova linguagem
, mas essa de abrir
a música ao indizível m
undo do acaso, mas
abrir como sinónim
o de libertação dos códigos tradicionais, para além
do beco infi ndável das m
imetologias académ
icas. Foi essa tam
bém a procura últim
a de Yago Conde,
essa indeterminação precisa do sentido da
arquitectura. Mas um
a indeterminação que
não é a procura infi nita do fortuito, mas
sim da precariedade própria da disciplina.
Precariedade como provisionalidade contra a
automatização dos discursos encerrados em
si próprios; precariedade com
o experimentação,
questionando em cada m
omento a arquitectura
e os signifi cados demasiado exactos que
esquecemos já de interrogar. Em
suma:
precariedade como um
a forma de estar atento.
I. O espaço provisional - fazer(-se) casa
Incerteza como im
previsibilidade e indeterm
inação como provisionalidade são os
sentidos da palavra acaso que nos interessam
aqui reter, mas são tam
bém os signifi cados que
sobrevêm da origem
etimológica desta palavra.
Casus, em
latim, signifi cava não apenas um
acontecim
ento, uma oportunidade, m
as nomeava
também
o próprio acto de cair, daquilo que im
previsivelmente cai e que, por conseguinte,
perece 3. O que subitam
ente se torna relevante na digressão por esta palavra, é que aquilo a que hoje cham
amos casa tem
precisamente a
mesm
a origem etim
ológica que acaso. A casa para os rom
anos não era algo sólido ou estável, m
as uma construção provisória e precária, um
a cabana, um
a barraca4. O
ra, que tenha sido esta palavra e não a palavra dom
us 5 a nomear
esse distinto lugar do habitar e da privacidade do hum
ano frente ao mundo, m
ostra muito
da precariedade do nome e da acção que a
palavra casa ainda hoje nomeia. Se a dom
us invoca desde logo essa acção triunfante sobre o território e sobre a natureza, por outro lado, a casa traz consigo, e de form
a bem presente,
essa precariedade e fragilidade não apenas da sua construção, m
as do próprio acto/evento do fazer-se habitar e do ocupar-se lugar para praticar esse residir, esse estar-no-m
undo. Se com
o nos diz Heidegger, ir ao encontro
das palavras é ir ao encontro do mundo
6, e se a teoria e o exercício da escrita são, antes de m
ais, uma caixa de ferram
entas como o
escreve Foucault, então a questão é sempre
o que podemos fazer com
estes nomes e o
que podem eles identifi car e oferecer à nossa
actividade quotidiana? Neste caso concreto,
as palavras advertem-nos que m
esmo por
detrás da aparência e da solidez do nome
casa, esta é algo profundamente precário e
provisório, mas que sim
ultaneamente se faz
sobre essa provisionalidade. A casa-projecto com
o algo pré-defi nido, acabado, deverá ser entendida antes com
o casa-táctica, como
algo que se pensa, desenha, reconhecendo a natureza provisional do espaço e do tem
po. Se o acaso tem
algum sentido enquanto
experiência do mundo é o reconhecim
ento de um
a dimensão especifi ca da vida e do habitar
que aparece toujours improbabilisticam
ente, exigindo sem
pre atenção, resposta, mas
sobretudo invenção – a capacidade de escutar o im
previsível e ensaiar uma reacção. Porque
é precisamente aí, nesse espaço do confronto
súbito que ocorre fora da rotina do habitus, que se produz a essência criativa do ser no m
undo, onde este produz/encontra o seu próprio espaço de acção e de liberdade. E quando isso acontece, quando esse espaço im
previsível e indeterminado se abre, podem
os dizer que o hom
em fez casa, ou talvez, fez-se a
si mesm
o casa. O que a palavra casus nom
eia é precisam
ente isso, essa possibilidade que algo aconteça, e esse acontecer inestim
ável que a casa perm
ite e oferece é esse lugar do eu, do ser junto-às-coisas, nunca sobre-o-m
undo (como
na domus), m
as sempre provisionalm
ente, indeterm
inadamente, abrindo-nos de um
a form
a sempre nova e livre às coisas. A casa
11
MIG
UEL LEA
L
Try again. Fail again. Better again. Or better w
orse. Fail w
orse again. Still worse again. Till sick for good.
Th row up for good. G
o for good. Where neither for
good. Good and all.
Samuel Beckett
Na m
anhã de 18 de Abril de 1976, quando
navegava 100 milhas a sul da costa irlandesa,
um barco de pesca galego avistou o casco sem
i-subm
erso de um pequeno veleiro de recreio que
não chegava a ter 4 metros de envergadura. À
deriva em m
ar aberto e sem sinais de ocupação
recente, o barco foi encontrado na vertical, com
a proa no fundo e parte da popa fora de água. N
o seu interior, entre vários outros objectos, descobriu-se um
passaporte no nome
de Baastian Johan Christiaan A
der. Tratava-se com
efeito do Ocean W
ave, o barco no qual, a 9 Julho de 1975, o artista de origem
holandesa Bas Jan A
der tinha partido de Cape C
od, no M
assachusetts, tendo como destino o porto
de Falmouth, na G
rã-Bretanha. Não era a
primeira vez que A
der cruzava o Atlântico
num barco à vela. Já em
1963, com 20 anos,
depois de viajar à boleia por França e Espanha, tinha em
barcado em M
arrocos num veleiro
que o levaria numa longa e atribulada travessia
de 11 meses até San D
iego, na Califórnia,
com passagens pela M
artinica e pelo Canal
do Panamá. Estabelecido desde então em
Los A
ngeles, para Bas Jan Ader a viagem
do O
cean Wave era por isso m
esmo um
a espécie
de retorno mais ou m
enos romântico ao lugar
de onde tinha partido anos antes. No entanto,
quando planeou enfrentar sozinho o oceano A
tlântico numa arriscada aventura —
e nunca antes tentada em
tais condições —, A
der tinha com
o objectivo concluir o seu projecto In Search of the M
iraculous e podemos por isso
dizer que se tratava acima de tudo um
a radical experiência estética. A
pesar da adaptações que lhe foram
feitas, o barco escolhido, um G
uppy 13 Pocket C
ruiser, um pequeno veleiro de
recreio muito popular à época na C
alifórnia, não parecia o m
ais indicado para a travessia. D
esafi ar o Atlântico sozinho num
a autêntica casca de noz foi para A
der apenas mais um
a form
a de ensaiar o difícil encontro entre a tragédia e a farsa, derradeira tentativa de levar ao lim
ite o confronto com as ideias de
risco, queda, fracasso ou desaparecimento que
parecem dom
inar a sua obra.In Search of the M
iraculous era assim o
gesto radical exigido a um artista que
experimentou de um
modo m
uito particular a tão reclam
ada fusão entre vida e obra que m
arcou as décadas de 60 e 70. Na verdade,
Ader integrou a prim
eira geração de artistas conceptuais da costa leste m
as desde cedo o seu trabalho m
ostrou uma dim
ensão poética que o aproxim
ava da já longa tradição do R
omantism
o. Há, ainda assim
, um lado
absurdo e trágico-cómico que tam
bém perm
ite relacionar a sua obra com
as mecânicas
específi cas do burlesco. Observe-se, por
FA(I)LLIN
G
PU
NK
TO - AC
ASO
12
exemplo, com
o Ader enfrenta a gravidade em
dois curtos fi lm
es de 1970 — Fall I e Fall II.
No prim
eiro, vemo-lo sentado num
a cadeira em
cima de um
telhado de onde acaba por cair no chão, desam
parado e aos repelões; no segundo, pedala ao longo de um
canal para cair bruscam
ente na água. Sem explicação
aparente, as duas quedas são absurdas e estão talvez m
ais próximas da com
édia splatstick de Buster K
eaton do que da grande tragédia rom
ântica. Por isso mesm
o, o modo com
o Ader
combina essa dim
ensão trágico-cómica com
a m
elancolia evidente da sua fi gura solitária, em
fi lmes com
o I’m Too Sad to Tell You, de
1971, no qual chora convulsivamente em
frente à câm
ara, ou em Broken Fall (O
rganic), do m
esmo ano, em
que se baloiça pateticamente
do alto de uma grande árvore até se deixar
cair na água, transformam
o seu trabalho num
a variante singular da arte conceptual e, ao m
esmo tem
po, como alguém
assinalou, num
a síntese pouco comum
entre a Europa e a A
mérica.
A primeira parte do projecto In Search of the
Miraculous foi apresentada em
Los Angeles
pouco tempo antes da partida do O
cean W
ave e o seu segundo mom
ento deveria ter resultado da viagem
solitária de Ader, para o
que se planeava já, entre outras, uma exposição
no Museu de G
roningen, na Holanda. O
ra, A
der veio a desaparecer algures no meio
do Atlântico, naquela que é um
a forma
estranhamente topográfi ca de defi nir a ideia
de interrupção e talvez a única que poderia em
boa verdade completar um
projecto que pretendia levar ao lim
ite as ideias centrais da sua obra. Q
uando o casco do Ocean W
ave foi encontrado, 10 m
eses após a partida de Cape
Cod, estava já coberto de algas e m
oluscos e por isso estim
a-se que andasse à deriva há vários m
eses. Sabe-se apenas que se perdeu o contacto via rádio com
Ader três sem
anas após a partida e julga-se que algum
a coisa terá acontecido ao O
cean Wave já depois de ter
passado os Açores. O
s sinais encontrados no barco não foram
sufi cientes para reconstituir o sucedido. O
Ocean W
ave foi trazido pelo pesqueiro galego para o porto da C
orunha m
as pouco tempo depois viria a desaparecer
misteriosam
ente uma segunda vez, agora em
defi nitivo. D
o Ocean W
ave não restam pois
mais do que algum
as imagens, ajudando a
adensar o mistério em
volta da última viagem
de Bas Jan A
der.
§
Na Bienal de Veneza de 2005 Joachim
Koester
apresentou Message from
Andrée, uma peça na
qual podemos encontrar sinais da sua vocação
de caçador de fantasmas. O
ponto de partida de K
oester foi a viagem falhada, em
1897, dos exploradores suecos Salom
on A. A
ndrée, N
ils Strindberg e Knut Frænkel, que queriam
sobrevoar em
balão o Pólo Norte. O
balão,
17
PEDRO
LEVI BISMA
RCK
A M
EMÓ
RIA
D
O P
RESEN
TEO
IMPREVISÍVEL D
EVIR DO
ESPAÇ
O - A
RQU
ITECTU
RA, LIBERD
AD
E E AM
OR
É a imprevisibilidade que faz o acontecim
ento, mas é tam
bém a im
previsibilidade que faz o próprio conhecimento.
Não é aquilo que probabilisticam
ente se pode determinar m
as é o ponto improbabilístico que rasga o próprio véu do
saber e mostra qualquer coisa que até aí não fom
os capazes de prever.
Carlos A
maral D
ias 1
Prelúdio 1 : P
alomar
O inquieto senhor Palom
ar 2 está sobre o mar m
as não o observa, fi xa o olhar sobre uma onda,
uma apenas. Tenta prever todos os seus m
ovimentos, a sua dinâm
ica inquieta. Precisa de encontrar um
a ordem, um
esquema que lhe perm
ita organizar toda essa complexidade. N
ão desiste. R
eduz o campo de observação, regista todos os pequenos detalhes. Se conseguir será em
breve capaz de prever todos os m
ovimentos e passar à derradeira fase: estender esse conhecim
ento ao universo inteiro. M
as a maré m
uda subitamente e o senhor Palom
ar perde a paciência, regressando a casa ainda m
ais nervoso. Esta pequena metáfora que Italo C
alvino nos oferece sobre os modelos
humanos de explicação do m
undo é aqui tão simples com
o magnifi cam
ente exposta. De facto, o
homem
constrói-se a partir dessa vontade de controlar os fenómenos do m
undo, de nomear e de
lhes dar um sentido. Projectar, investigar, planear são os nom
es desses mecanism
os de domínio
da realidade. Formas, operações de organização da vida quotidiana que traçam
esse percurso para um
a artifi cialidade especifi camente hum
ana. A casa-abrigo não é o indomável território-onda, m
as sim
o pequeno campo de observação das coisas seguras e previsíveis. A casa faz-se sobre o signo da
fi rmitas, da perm
anência, de um habitus capaz de nos colocar em
segurança com o m
undo. Mas
cada campo de observação é apenas um
a estação provisória e, tal como em
Palomar, há sem
pre uma
maré, um
distúrbio iminente e im
previsível. Toda a construção é provisional, contingente, assim é
a nossa essência humana, na m
orte para além da m
orte.
Préludio 2 : U
n coup de dés
O que é irredutivelm
ente interessante no poema U
n coup de dés de Mallarm
é é que o acaso é um
a metáfora que nom
eia não o objecto do poema, m
as o seu irreparável propósito. O acaso
que o poeta francês assinala é a abertura improbabilística que se abre na interpretação do
seu próprio poema. O
espaço branco que é deixado entre as frases é o espaço do acaso, da
Nove m
emórias-registos (Le C
orbusier - Villa Savoye, Á
lvaro Siza - FAUP e Bonjour Tristesse, M
ies - Pavilhão de Barcelo-na e N
eue Nationalgalerie, Steven H
oll - Kiasm
a)
PU
NK
TO - AC
ASO13
baptizado com nom
e de ave imperial —
Ör-
nen (Águia) —
, partiu de Danskøya, perto de
Spitsbergen, no Árctico, a 11 de Julho de 1897,
mas ao fi m
de três dias, a poucas centenas de quilóm
etros do ponto de partida, caiu no gelo para não m
ais se levantar. Andrée, Strindberg
e Frænkel andaram então à deriva sobre o gelo
implacável do Á
rctico durante várias semanas
até se instalarem, com
a intenção de aí passar o Inverno, num
a pequena ilha desabitada — K
vi-tøya [W
hite Island] —, onde viriam
a morrer
em data incerta do m
ês de Outubro. O
desapa-recim
ento heróico da expedição fi caria envolto em
mistério durante m
ais de trinta anos, até que em
1930 se descobriu, quase intacto, o acam
pamento m
ontado em K
vitøya. Aí esta-
vam os corpos dos três hom
ens, os seus diários de bordo e as películas fotográfi cas nas quais Strindberg, o fotógrafo de serviço, fi xou m
eto-dicam
ente as peripécias do pequeno grupo. À época, este achado im
provável fez furor dentro e fora da Suécia, tendo a reconstituição das desventuras da expedição liderada por A
ndrée ajudado a alim
entar o imaginário de m
uitos lei-tores. Joachim
Koester não foi pois o prim
eiro a interessar-se pelas fatalidades e contingências do destino da expedição em
balão sobre o pólo, m
as fê-lo de um m
odo muito particular. A obra
de Koester é povoada de assuntos obscuros
e personagens estranhas, movim
entando-se am
biguamente entre o docum
entário e a fi cção; no entanto, o centro da instalação de Veneza não era tanto a história dos três aventureiros
mas sim
um fi lm
e em form
ato 16mm
, mudo
e quase abstracto. Dos rolos fotográfi cos es-
pecialmente preparados pela K
odak para a expedição, recuperaram
-se cinco em 1930, já
expostos, um deles ainda no interior da m
á-quina. Surpreendentem
ente, após tanto tempo,
logo na altura foi possível revelar quase uma
centena de imagens. A
lguns dos negativos, cobertos de m
anchas e riscos, tinham fi cado
praticamente ilegíveis, m
as foram precisam
ente as m
arcas físicas do seu destino a prender a atenção de K
oester. Para Message from
Andrée, o artista fi lm
ou, frame a fram
e, as manchas
importunas que povoam
o branco de outro m
odo imaculado das paisagens retratadas nas
fotografi as de Nils Strindberg. O
resultado fi -nal é paradoxal, silencioso e abstracto, qualquer coisa que pode ser descrita através do ruído que certos espectros sonoros ou visuais se m
ostram
capazes de produzir. Koester optou por se
concentrar nas qualidades plásticas das ima-
gens, no preciso sentido de uma plasticidade
que deriva directamente da abertura ao acaso
e à mudança, ao acidente e à contingência. N
o fi lm
e somos confrontados com
essa espécie de autonom
ia plástica da emulsão fotográfi ca que
liberta as imagens de um
a função documental
e as isenta de qualquer valor de indexação. Foi portanto o potencial visionário e alucinatório dessas m
anchas mais do que a referência das
fotografi as a um passado trágico, que atraiu a
imaginação de K
oester. A deriva dos três ho-m
ens sobre as placas soltas de gelo, com tudo o
PU
NK
TO - AC
ASO
14
que isso tem de um
a dramática psicogeografi a
e de um jogo com
o acaso, encontra no fi lme
um ém
ulo visual de carácter telepático e alu-cinatório. D
as desoladas paisagens do Árctico
retratadas por Nils Strindberg restam
no fi lme
as manchas inform
es que o acaso produziu, e é precisam
ente esse ruído, essa música do acaso
tantas vezes interpretada como erro ou falha
incómoda, que constitui a substância da inter-
venção de Koester. H
á pois um inconsciente
que se esconde nas velhas e gastas películas encontradas em
Kvitøya, um
inconsciente sem
o qual aquelas imagens não seriam
o que são e que aparece no fi lm
e de Veneza como narrativa
abstracta e silenciosa, singela homenagem
tanto à desgraçada aventura sobre o gelo do Á
rctico com
o ao potencial auto-poético e imaginativo
das coisas, em particular dessas m
anchas que ganharam
vida própria e reapareceram à super-
fície como a derradeira m
ensagem de Andrée.
§
A sombra de Beckett e a circularidade im
plica-da no bater sincopado do texto de W
orstward
Ho (1983) —
Try again. Fail again. Better again. O
r better worse. Fail w
orse again. Still w
orse again... — persegue-m
e há vários anos com
o marca possível de um
a ontologia da própria prática artística. N
ão é coisa sobre a qual se possa escrever directam
ente e por isso recorri a um
efeito de deslocação em que a
referência à queda do Örnen e às m
anchas do
fi lme de K
oester são como que um
a metoním
ia que m
e permite continuar falar da suspensão
e do aparente fracasso da viagem de Bas Jan
Ader. A
través deste método espero que se possa
descobrir que nenhuma das viagens falhou
verdadeiramente porque o que im
porta é tentar outra vez para falhar outra vez, apenas para falhar m
elhor, de uma vez por todas ainda pior
outra vez...
Miguel Leal (Porto, 1967) Artista plástico. V
ive e trabalha no Porto. M
embro fundador da V
IROSE, um
a estrutura interdisciplinar dedicada aos m
edia e ao estudo das relações entre arte tecnologia. É professor na Faculdade de Belas Artes da U
niversidade do Porto (FBAUP), onde orienta
trabalho de atelier e lecciona cadeiras de arte e cultura contem
porâneas. http://ml.virose.pt
O Ö
rnen imediatam
ente após a aterragem forçada a 14 de julho de 1897. Fotografi a retocada.
Este texto foi em parte m
otivado pela exposição In Search of Th e Miraculous: Trinta anos despois, apresentada entre M
aio e Setem
bro de 2010 no Centro G
alego de Arte C
ontemporânea, em
Santiago de Com
postela. Com
curadoria de Pedro de Llano, a exposição partia da ligação fortuita da história do O
cean Wave à G
aliza para oferecer uma leitura abrangente da obra rarefeita
de Bas Jan Ader.R
epare-se, a propósito da aventura do Örnen, que logo em
1930 saiu na Suécia o livro Med Ö
rnen mot Polen,
baseado nos diários de Andrée, Strindberg e Frænkel e ilustrado com
algumas das fotografi as recuperadas em
Kvitøya, ainda que
retocadas, de imediato publicado com
sucesso em vários outros países (veja-se a versão am
ericana em edição dirigida a um
público juvenil: Andrée’s Story: From
the diaries and Journals of S. A. Andrée, N
ils Strindberg, and K. Frænkel, found on W
hite Island in the Sum
mer of 1930 and edited by the Sw
edish Society for Antrophology and Geography, N
ova Iorque, Blue Ribbon Books, c. 1930).
Para mais detalhes sobre a peça de Joachim
Koester em
Veneza ver o catálogo Joachim K
oester: Message from
Andrée, Copenhagen,
Th e Danish A
rts Agency, 2005.