revista de educaÇÃo publica mt 1272645755

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Revista de Educao Pblica

Ministrio da Educao Ministry of Education

UFMTReitor Chancellor

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Federal University of Mato GrossoConselho Consultivo Consulting Council

Maria Lcia Cavalli NederVice-Reitor Vice-Chancellor

Alessandra Frota M. de Schueler (UERJ) Rio de ngela Maria Franco Martins Coelho de Paiva Bala(Universidade de vora), vora, Portugal Aumeri Carlos Bampi (UNEMAT/Sinop) Sinop/MT, Brasil Bernardete Angelina Gatti (PUCSP) So Paulo/SP, Brasil Clarilza Prado de Sousa (PUCSP) So Paulo/SP, Brasil Claudia Leme Ferreira Davis (PUCSP) So Paulo/SP, Brasil Jacques Gauthier (Paris VIII-Frana) Frana, Paris Denise Meyrelles de Jesus (UFES) Vitria/ES, Brasil Elizabeth Madureira Siqueira (IHGMT), Cuiab/MT, Brasil Francisca Izabel Pereira Maciel (UFMG), Belo Horizonte/ MG, Brasil Geraldo Incio Filho (UFU-MG), Uberlndia/MG, Brasil Helosa Szymanski (PUCSP), So Paulo/SP, Brasil Luiz Augusto Passos (UFMT), Cuiab/MT, Brasil Maria Laura Puglisi Barbosa Franco (PUCSP), So Paulo/ SP Brasil , Mariluce Bittar (UCDB), Campo Grande/MS, Brasil Marlene Ribeiro (UFRGS), Porto Alegre/RS, Brasil Pedro Ganzelli (UNICAMP), Campinas/SP, Brasil Rubn Cucuzza (Universidad Nacional de Lujn) Lujn, Provncia de Buenos Aires, Argentina Vera Maria Nigro de Souza Placco (PUCSP), So Paulo/ SP, BrasilConselho Cientfico Scientific Council

Janeiro/RJ, Brasil

Francisco Jos Dutra SoutoCoordenadora da EdUFMT EdUFMTs Coordinator

Elizabeth Madureira SiqueiraConselho Editorial Publishers Council

Bernardete Angelina Gatti Fundao CarlosChagas, So Paulo/SP, Brasil

Celso de Rui Beisiegel USP, So Paulo/SP, Brasil Christian Anglade University of Essex,Essex, Inglaterra

Denise Jodelet EHESS cole des Hautes tudesen Sciences Sociales, Paris, Frana

Florestan Fernandes In Memoriam Francisco Fernndez Buey Universitat PompeoFabra, Espanha

Jean Hbette UFPA, Belm/PA, Brasil Maria Ins Pagliarini Cox UFMT, Cuiab/MT, Brasil Martin Coy Univ. Tubingen, Tubingen, Alemanha Michel-Louis Rouquette Universit Paris Descartes,Boulogne, Frana

Moacir Gadotti USP, So Paulo/SP, Brasil Nicanor Palhares S UFMT, Cuiab/MT, Brasil Paulo Speller UFMT, Cuiab/MT, Brasil

Artemis Torres (UFMT) Cuiab/MT, Brasil Educao, Poder e Cidadania Education, Power and Citizenship Michle Tomoko Sato (UFMT), Cuiab/MT, BrasilEducao Ambiental Environmental Education

Daniela Barros da Silva Freire Andrade, Cuiab/MT, BrasilRevista de Educao Pblica Av. Fernando Corra da Costa, s/n. Coxip, Cuiab-MT, Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Educao, sala 49. CEP: 78.060-900 Telefone: (65) 3615-8466 Homepage: E-Mail: [email protected] e Psicologia Education and Psychology

Filomena Maria de Arruda Monteiro, Cuiab/MT, BrasilCultura Escolar e Formao de Professores School Culture and Teacher Education

Nicanor Palhares S (UFMT), Cuiab/MT, BrasilHistria da Educao History of Education

ISSN 0104-5962

Revista de Educao Pblica

2008R. Educ. Pbl. Cuiab v. 18 n. 36 p. 1-240 jan./abr. 2009

Copyright: 2009 EdUFMT Publicao do Programa de Mestrado e Doutorado em Educao da Universidade Federal de Mato Grosso Av. Fernando Corra da Costa, s/n. Coxip, Cuiab/MT, Brasil CEP: 78.060-900 Telefone: (65) 3615-8431 / Homepage: A Revista de Educao Pblica tem por misso a divulgao de conhecimentos cientficos voltados rea de Educao. Visa fomentar e facilitar o intercmbio de pesquisas produzidas dentro desse campo de saber, em mbito regional, nacional e internacional. A exatido das informaes e os conceitos e opinies emitidos so de exclusiva responsabilidade dos autores. Os direitos desta edio so reservados EdUFMT Editora da Universidade Federal de Mato Grosso. Disponvel tambm em: proibida a reproduo total ou parcial desta obra, sem autorizao expressa da Editora. EdUFMT Av. Fernando Corra da Costa, s/n. - Coxip. Cuiab/MT CEP: 78060-900 Homepage: E-Mail: [email protected] Fone: (65) 3615-8322 / Fax: (65) 3615-8325. Indexada em: BBE Bibliografia Brasileira de Educao (Braslia, INEP). SIBE Sistema de Informaes Bibliogrficas em Educao (Braslia, INEP). IRESIE ndice de Revistas de Educacin Superior y investigacin Educativa UNAM Universidad Autnoma del Mxico CITAS Latinoamericana en Ciencias Sociales y Humanidades CLASECoordenadora da EdUFMT: Elizabeth Madureira Siqueira Editor da Revista de Educao Pblica: Nicanor Palhares S Reviso de texto: Eliete Hugueney de Figueiredo e Maria Auxiliadora Silva Pereira Secretria Executiva: Dionia da Silva Trindade Assessoria em artes grficas: Jeison Gomes dos Santos Editorao: To de Miranda Periodicidade: Quadrimestral

FAPEMAT

Catalogao na Fonte _________________________________________________________R454 Revista de Educao Pblica - v. 18, n. 36 (jan./abr. 2009) Cuiab : EdUFMT, 2009, 240 p. Anual: 1992-1993. Semestral: 1994-2005. Quadrimestral: 2006Publicao do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Mato Grosso. ISSN 0104-5962 1. Educao. 2. Pesquisa Educacional. 3. Universidade Federal de Mato Grosso. 4. Programa de Ps-Graduao em Educao. CDU37.050zComercializao: Fundao Uniselva / EdUFMT Caixa Econmica Federal / Agncia: 0686 Operao: 003 / Conta Corrente 550-4 E-mail: [email protected] Assinatura: R$55,00 Avulso: R$20,00

_________________________________________________________Correspondncia para envio de artigos, assinaturas e permutas: Revista de Educao Pblica, sala 49, Instituto de Educao/UFMT Av. Fernando Corra da Costa, s/n. Coxip, Cuiab/MT CEP: 78.060-900

Projeto Grfico original: Carrin & Carracedo Editores Associados Av. Senador Metello, 3773 - Cep: 78030-005 Jd. Cuiab - Telefax: (65) 3624-5294 www.carrionecarracedo.com.br [email protected]

Este nmero foi produzido no formato 155x225mm, em impresso offset, no papel Suzano Plen Print 80g/ m, 1 cor; capa em papel triplex 250g/m, 4x0 cores, plastificao fosca em 1 face.Composto com os tipos Adobe Garamond e Frutiger. Tiragem: 1.000 exemplares Impresso e acabamento: Bartira Grfica e Editora S/A.

SumrioCarta do Editor............................................................................... 11

Cultura Escolar e Formao de Professores .................................................. 13Em busca de balizadores para a anlise de interaes discursivas em sala de aula com base em Bakhtin ........................ 15Ceclia Goulart

Expectativas de socializao na escola entre mes de camadas populares do Rio de Janeiro ..................... 33Lea Pinheiro Paixo

O Que um Texto? (Parte 2) ............................................................ 49Michael Otte

Formao de docentes que atuam na Educao Superior............. 71Tnia Maria Lima Beraldo

Quem ensina e quem aprende no estgio curricular do Curso de Pedagogia? .............................. 89Simone Albuquerque da Rocha

Educao e Psicologia ............................................................................... 107Representaes e mitos contemporneos .................................... 109Nikos Kalampalikis

A polissemia da noo de competncia no campo da educao.................................................................... 133Clarilza Prado de Sousa Maria Ins Pestana

Educao, Poder e Cidadania ................................................................... 153Humanismo, Personalismo e os desafios sociais da educao contempornea ........................................................ 155Antnio Joaquim Severino

Uma pedagogia do movimento: Os movimentos sociais na obra de Paulo Freire.......................... 165Danilo R. Streck

Educao Ambiental ................................................................................. 179Os missionrios salesianos e a educao escolar indgena em Mato Grosso: um sculo de histria .......... 181Maria Guiomar Carneiro Tomazello Edmilson Tadeu Canavarros

Histria da Educao................................................................................. 199Apontamentos para uma problematizao das formas de classificao racial dos negros no sculo XIX........................ 201Marcus Vincius Fonseca

Notas de leituras, resumos e resenhas ....................................................... 221SILVA, Rose Clia Ramos; TORRES, Artemis. Conselhos escolares e democracia: lemas e dilemas. Cuiab: EdUFMT, 2008. 76 p. [Coleo Educao e Democracia, v. 3]. .................... 223

Ivone Maria Ferreira da Silva

DIEGUES, Antnio Carlos SantAna. O mito moderno da natureza intocada. So Paulo: Hucitec, 2000. 169 p. ................................. 227Samuel Borges de Oliveira Jnior

Informes da ps-graduao e da pesquisa ................................................. 231Relao das defesas de mestrado realizadas no PPGE, no perodo letivo 2008/2 ............................................................. 233 Normas para publicao de originais .......................................... 236 Ficha para assinatura da Revista de Educao Pblica ............... 239

ContentsPublishers letter ............................................................................. 11

School culture and teacher education ......................................................... 13Parameters to analyze classroom discursiveinteractions since Bakhtins Theory............................... 15Ceclia GOULART

Expectations of socialization in school among mothers belonging to poor social layers in the Rio de Janeiro ................... 33Lea Pinheiro PAIXO

What is a Text? (Part 2) .................................................................. 49Michael OTTE

Teacher training for those who act in Higher Education ............. 71Tnia Maria Lima BERALDO

Who teach about learn at probation and curriculum Course of Pedagogy? ........................................... 89Simone Albuquerque da ROCHA

Education and Psychology ......................................................................... 107Contemporany representations and myths ................................. 109Nikos KALAMPALIKIS

The polysemy of the notion of competence in the field of education ............................................................... 133Clarilza Prado de SOUSA Maria Ins PESTANA

Education, Power and Citizenship ............................................................. 153Humanism, personnalism and social challenges of contemporary education.......................................................... 155Antnio Joaquim SEVERINO

Pedagogy of movement: Social movements in the work of Paulo Freire ............................ 165Danilo R. STRECK

Environmental Education .......................................................................... 179Salesianos missionaries and the indigenous school education in Mato Grosso: a century of history.............. 181Maria Guiomar Carneiro TOMAZELLO Edmilson Tadeu CANAVARROS

History of Education ................................................................................. 199Notes for a problematization of ways to black racial classification in the 19th Century ....................... 201Marcus Vincius FONSECA

Readings notes, summary and reviewSILVA, Rose Clia Ramos; TORRES, Artemis. Conselhos escolares e democracia: lemas e dilemas. Cuiab: EdUFMT, 2008. 76 p. [Coleo Educao e Democracia, v. 3]. .................... 223Ivone Maria Ferreira da Silva

DIEGUES, Antnio Carlos SantAna. O mito moderno da natureza intocada. So Paulo: Hucitec, 2000. 169 p.Samuel Borges de OLIVEIRA JNIOR

Pos-graduation information and research development 2008 .................... 231Relation of master defenses in the PPGE, of learning period 2008/2 ............................................................... 233 Directions for originals publication ................................................ 236 Subscription form .......................................................................... 239

Carta do EditorA Revista de Educao Pblica obteve, em 2007, a classificao mxima nacional A, atribuda pela ANPEd. A partir de 2008, muda o sistema de avaliao da CAPES e cria-se outra estrutura avaliativa com outras categorias. A categoria A foi reservada para os peridicos internacionais, com dois nveis; e B para os nacionais, com cinco nveis. A Revista de Educao Pblica obteve o mais alto nvel de classificao dos peridicos cientficos nacionais da rea de Educao, ou seja, B1 como equivalente ao antigo nacional A. Desde o incio, esta Revista tem se caracterizado como peridico cientfico com alguma participao internacional, todavia, jamais se colocou como meta sua internacionalizao; o seu objetivo sempre foi caracterizar-se como um instrumento de intercmbio e socializao da pesquisa no mbito nacional. A criao do doutorado impe novas formas de intercmbio com o necessrio aumento da internacionalizao das relaes do Programa, trazendo para o interior da ps-graduao experincias de outros pases como forma de ruptura de paroquialismos. Esses novos compromissos no devem ser estabelecidos em detrimento do processo de insero social que ocorre com o sistema de educao local ou nacional. No se perdero de vista a produo de recursos humanos e os conhecimentos relevantes educao brasileira, alis, sobre essa base que sero construdas as nossas relaes externas. Todas as possibilidades de intercmbio devem ser exploradas com vistas complexificao da viso de mundo de educao que vigorar no futuro do Programa comunidade europia, sociedade americana, mas, precisamos dar especial ateno s naes do sul do Equador, particularmente aos pases africanos e latino-americanos. necessrio fazer uma produo adequada s realidades desses pases. Enfim, produzir a partir de matriz diversificada, com autonomia e sem subordinaes de qualquer natureza, inclusive a cientfica hegemnica.Prof. Dr. Nicanor Palhares S Editor da Revista de Educao Pblica

Cultura Escolar e Formao de Professores

R. Educ. Pbl.

Cuiab

v. 18

n. 36

p. 13-105

jan./abr. 2009

Em busca de balizadores para a anlise de interaes discursivas em sala de aula com base em BakhtinParameters to analyze classroom discursive interactions since Bakhtins theoryCeclia Goulart1

ResumoO estudo visa delinear balizadores para a anlise de interaes discursivas em sala de aula, defendendo, a partir de Bakhtin, que enunciar argumentar. A sala de aula compreendida como um espao em que o objetivo dos professores fazer com que os alunos se apropriem discursivamente de determinados modos de conhecer temas vinculados s diferentes reas de conhecimento. Categorias bakhtinianas relevantes para nossa discusso so enunciado, dialogismo, gneros do discurso, palavra de autoridade/palavra internamente persuasiva e linguagens sociais. Entendemos que, focalizando aspectos argumentativos do processo de ensinar-aprender, o movimento discursivo de construo do conhecimento deva vir tona.Palavras-chave: Discurso. Argumentao. Bakhtin. Interaes em sala de aula.

AbstractThe study aims to outline some parameters to analyze classroom discursive interactions, supporting that enunciating is arguing since Bakhtins theory. Classrooms are understood as spaces where teachers work in order that students develop and appropriate formal discourses related to different knowledge areas. Relevant bakhtinian categories to our discussion are enunciation, dialogism, discourse genders, authority word/internally persuasive word and social languages. We understand that focusing in argumentative aspects of the teaching-learning process, the discursive move of knowledge constructions process may arise.Keywords: Discourse. Argumentation. Bakhtin. Classroom interactions.

1

Professora da Faculdade de Educao/Programa de Ps-Graduao em Educao, Universidade Federal Fluminense. Doutora em Letras, Lingstica Aplicada pela PUC-RJ . Pesquisadora do CNPq. Endereo profissional: Praa Leoni Ramos, 882 Bloco D s. 405 - Campus do Gragoat, So Domingos, CEP 24-020-200 .Niteri-RJ, Brasil. E-mail: R. Educ. Pbl. Cuiab v. 18 n. 36 p. 15-31 jan./abr. 2009

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Cultura Escolar e Formao de Professores

O senhor replicar que a realidade no tem a menor obrigao de ser interessante. Eu lhe responderei que a realidade pode prescindir dessa obrigao, porm no as hipteses.Personagem de J. L. Borges, A Morte e a Bssola. In: Fices.

Apresentao do estudoA pesquisa que desenvolvemos sobre processos de ensino-aprendizagem na perspectiva da alfabetizao vem nos levando a compreender, com base em estudos da linguagem, aspectos da complexidade daqueles processos (GOULART, 2000; 2001; 2003a; 2003b; 2003c; 2004; e GOULART; COLINVAUX; SALOMO, 2003). Nestes estudos tambm sobressai a discusso sobre a funo social da escola e trabalhos pedaggicos nela realizados (GOULART, 2001, p. 20). O presente artigo tem como objetivo buscar evidncias terico-metodolgicas para conceber processos argumentativos na linguagem, com base na teoria da enunciao de Mikhail Bakhtin. Com a elaborao desse estudo, visamos iniciar a construo de balizadores para analisar interaes discursivas em sala de aula, no intuito de contribuir para a compreenso de como se constri o conhecimento nesse espao. Ao longo da primeira parte do texto, apresentamos e discutimos alguns princpios, noes e categorias bakhtinianas marcantes na concepo de linguagem do autor, procurando destacar aspectos que concebam o processo de enunciao como argumentativo. No mesmo movimento, vamos refletindo sobre a natureza discursiva do espao escolar. Em seguida, com base nas reflexes apresentadas, centramo-nos de modo mais direto no aspecto da argumentao, procurando destacar algumas possibilidades de balizadores para a anlise de interaes discursivas.

A construo da base terica do estudo: linguagem, argumentao, sala de aula e escola preciso destacar primeiramente que Bakhtin2 em seus estudos no fala em argumentao de um modo explcito, mas de formas composicionais do enunciado, destacando a importncia e a necessidade de estudos que busquem compreender a organizao sinttica dos enunciados dentro de situaes discursivas.2 Discutem-se na literatura questes relacionadas autoria de alguns textos assinados por Voloshinov e Medvedev como sendo de Bakhtin. Neste trabalho, utilizarei as referncias que constam nos livros e estudos e no entrarei em detalhes de tal discusso.

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Em busca de balizadores para a anlise de interaes discursivas em sala de aula com base em Bakhtin

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Bakhtin toma o enunciado como objeto dos estudos da linguagem - objeto de significao e objeto da cultura discursivo, social e histrico, um tecido organizado e estruturado. Segundo o autor, o enunciado deve ser analisado nas relaes internas e externas: sua organizao, a interao verbal, o contexto, o intertexto, ou seja, as condies de produo. O princpio dialgico considerado como bsico para a concepo de linguagem, o princpio constitutivo de todo discurso. O dialogismo , desse modo, a condio do sentido do discurso, a ligao entre a linguagem e a vida cultural. O dialogismo se realiza tanto na interao verbal, entre o enunciador e o enunciatrio, quanto no interior do discurso, o dialogismo da interdiscursividade. No dialogismo da interao verbal, o centro o espao entre o Eu e o(s) Outro(s), as vozes sociais no texto que se produz e que anunciam um sujeito histrico. No dialogismo da interdiscursividade, discursos dialogam produzindo novos discursos. Neste, ento, habitam muitas vozes sociais, que se completam, polemizam e respondem umas s outras. Para Bakhtin, todas as esferas da atividade humana esto relacionadas utilizao da lngua, se organizam em forma de enunciados concretos e nicos, orais e escritos. O enunciado reflete as condies especficas e as finalidades de cada uma das esferas, por meio de trs aspectos: o contedo temtico; o estilo verbal, ligado seleo dos recursos da lngua; e, sobretudo, a construo composicional. Este ltimo aspecto estaria mais relacionado formao de gneros do discurso. As pessoas, as classes sociais, as esferas sociais do conhecimento, utilizam a lngua de acordo com seus valores, conhecimentos, construdos na vida cotidiana e em outras esferas sociais. A da vida cotidiana tem um valor muito grande para o autor. Todo signo, todo gnero de discurso a nasce e a se banha para continuar vivo e no se congelar, petrificar (BAKHTIN, 1988, p. 118-119). Os gneros de discurso so tipos relativamente estveis de enunciados que se constituem nas diferentes esferas da atividade humana. Esses gneros so de riqueza e variedade infinitas, e marcados pela heterogeneidade. Vo-se diferenciando e tambm se ampliando, no caso daquelas esferas se desenvolverem e ficarem mais complexas. Os gneros organizam os conhecimentos sociais de determinadas maneiras, associadas s intenes e propsitos dos locutores. O autor atribui grande relevncia terica distino dos tipos de gneros primrio e secundrio. Os gneros do discurso secundrio aparecem em circunstncias mais complexas de comunicao cultural, relativamente mais evoludas, principalmente associadas escrita. Transformam os gneros primrios ligados comunicao verbal espontnea e, nessa transformao, os gneros primrios adquirem uma caracterstica particular: perdem sua relao imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios.

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Cultura Escolar e Formao de Professores

O que nos leva a buscar compreender como se do as interaes discursivas em sala de aula um determinado conjunto de eixos tericos de diferentes origens que vm embasando e defendendo a produtividade de aulas interativas. Mesmo a tradio de trabalho escolar, no tempo-espao denominado aula, organizase em variadas formas de interao verbal entre professores e alunos. Segundo Bakhtin, toda situao inscrita duravelmente nos costumes possui um auditrio organizado de uma certa maneira e conseqentemente um certo repertrio de pequenas frmulas correntes. (p. 126). O autor afirma que as frmulas adaptam-se em qualquer lugar ao canal de interao social que lhe reservado, refletindo ideologicamente o tipo, a estrutura, os objetivos e a composio social do grupo. Coincidem com esse meio, so por ele delimitadas e determinadas em todos os aspectos. Por isso, encontram-se formas caractersticas de enunciados nos diferentes lugares de produo de trabalho. Diante dessas postulaes de Bakhtin, podemos dizer que a sala de aula tenha um certo repertrio de frmulas correntes, que organiza o discurso ali produzido de determinadas maneiras: leituras de diferentes tipos e para variados fins (comentada, silenciosa...), conversas, produes escritas, elaborao de resumos, exposio oral, realizao de exerccios, esquemas e provas, entre outros. O tipo de instituio, a estrutura, os objetivos e a composio social da escola a organizam de um certo modo discursivo, caracterizando, junto com outros elementos, uma cultura escolar. Nesse contexto, a sala de aula um espao discursivo em que o objetivo dos professores que trabalham com os contedos das disciplinas escolares fazer com que os alunos se apropriem discursivamente de determinados modos de conhecer/conceber objetos, funcionamentos e fenmenos das reas - os contedos - que esto vinculados s diferentes disciplinas. Trabalham intencionalmente, com propsitos definidos. De que modo trabalham para alcanar esse objetivo? Produzindo enunciados na perspectiva de um horizonte social, que o horizonte da aprendizagem dos alunos e do papel da escola. E os alunos trabalham no horizonte social do que j conhecem e do ensino dos professores. Segundo o autor,O objeto do discurso de um locutor, seja ele qual for, no objeto do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor no o primeiro a falar dele. O objeto, por assim dizer, j foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diversas maneiras, o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista, vises de mundo, tendncias. [...] Na realidade, como j dissemos, todo enunciado, alm do objeto de seu teor, sempre responde (no sentido lato da palavra), de uma forma ou de outra, a enunciados do outro anteriores. [...] O enunciado est voltado no s para o seu objeto, mas

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tambm para o discurso do outro acerca desse objeto. A mais leve aluso ao enunciado do outro confere fala um aspecto dialgico que nenhum tema constitudo puramente pelo objeto poderia conferir-lhe. (BAKHTIN, 1992, p. 319-320).

Como, ento, surgem os enunciados do professor? Eles surgem no contexto do mundo discursivo do professor, de seus sistemas de referncia discursivamente constitudos. No caso especfico da aula devem surgir fundamentados em sua prpria formao, logo no interior de uma esfera social do conhecimento, conformado por uma linguagem social que caracterstica daquela esfera. Mas, mesmo este sentido do discurso se construiu no movimento de muitas vozes: de professores, de autores de livros, de artigos, de jornais. E tambm no movimento de suas relaes com outras esferas sociais de conhecimento, principalmente da esfera do cotidiano. ento num emaranhado hibridizado de vozes que os enunciados pedaggicos se constituem. Para Bakhtin, todos os enunciados esto fundidos com julgamentos de valor social e com uma entonao, um tom apreciativo. A comunho de julgamentos de valor presumidos (por sociedades, grupos sociais,...) constitui o contexto cultural no qual a enunciao viva desenha o contorno da entonao. A escola, por sua vez, um lugar de conhecimentos que so julgados socialmente de forma positiva, como relevantes para a vida, em muitos sentidos. Os alunos vo escola para aprender e os professores, para ensinar. O fato de os professores dominarem o conhecimento de uma linguagem social, vinculada a certa esfera de conhecimento, garante-lhes um lugar de autoridade. Autoridade, inclusive, para fixar enunciados de determinadas maneiras. Trataremos desse ponto mais adiante. O dilogo da sala de aula deve possibilitar que se percebam indcios da tenso dos diversos sentidos que os alunos do s palavras do professor, dos outros colegas e de autores que sejam lidos no processo de aprender determinado contedo e tambm os sentidos que o professor d s palavras dos alunos. Na anlise desse processo, embora acontea de modos variados, deve ser possvel capturar o movimento discursivo de produo de conhecimento, de aprendizagem e, no caso de nosso estudo, de aspectos discursivo-argumentativos dos processos de construo do conhecimento. Considerando a concepo de linguagem de Bakhtin, como podemos refletir sobre a construo da argumentao e dos argumentos na linguagem, especialmente na sala de aula? Parece-nos que a resposta a essa questo liga-se idia de que, nessa concepo de linguagem, enunciar argumentar. Podemos pensar, entretanto, em gneros de discurso, em enunciados, mais e menos argumentativos, dependendo das condies de produo do discurso e das caractersticas e objetivos prprios aos gneros utilizados. E o que nos leva a esta afirmativa? Segundo o autor:

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Cultura Escolar e Formao de Professores

[...] o enunciado daquele a quem respondo (aquieso, contesto, executo, anoto etc) j-aqui, mas sua resposta porvir. Enquanto elaboro meu enunciado, tendo a determinar essa resposta de modo ativo; por outro lado, tendo a presumi-la, e essa resposta presumida, por sua vez, influi no meu enunciado (precavenho-me das objees que estou prevendo, assinalo restries etc.). Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo aperceptivo sobre a qual minha fala ser recebida pelo destinatrio: o grau de informao que ele tem da situao, seus conhecimentos especializados na rea de determinada comunicao cultural, suas opinies e convices, seus preconceitos (de meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias etc.; pois isso que condicionar sua compreenso responsiva de meu enunciado. Essas escolhas determinaro a escolha do gnero do enunciado, a escolha dos procedimentos composicionais e, por fim, a escolha dos recursos lingsticos, ou seja, o estilo do meu enunciado. (BAKHTIN, 1992, p. 321, grifos nossos).

Qual seria o pressuposto bsico para elaborarmos o delineamento de um estudo sobre a argumentao, dentro da teoria de Bakhtin? Produzir linguagem, produzir enunciados, no sentido que estamos dando, argumentar numa determinada direo, na direo do interlocutor, no horizonte social do locutor. O que nos leva a esse pressuposto o fato de que a natureza dialgica da linguagem para Bakhtin leva-o a postular que o locutor , em certo grau, respondente, ao pressupor no s a existncia do sistema da lngua que utiliza, mas a existncia dos enunciados anteriores (dele mesmo ou de outros), aos quais seu prprio enunciado est vinculado por algum tipo de relao (fundamenta-se neles, polemiza com eles) (BAKHTIN, 1992, p. 291). Desse modo, cada enunciado um elo da cadeia complexa de outros enunciados, assim como se pode entender a heterogeneidade discursiva e o quanto os discursos e os gneros do discurso se afetam, dado que a lngua material plstico e vivo. Como explica o autor, por esta razo que no s compreendemos a significao da palavra enquanto palavra da lngua, mas tambm adotamos para com ela uma atitude responsiva ativa (simpatia, concordncia, discordncia, estmulo ao). A entonao expressiva no pertence palavra, mas ao enunciado. [...] Ao escolher a palavra, partimos das intenes que presidem ao todo do nosso enunciado (BAKHTIN, 1992, p. 310, grifos nossos).

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Assim, na perspectiva da relao entre as palavras dos sujeitos do discurso, a argumentao seria o modo de elaborao da linguagem por meio das intenes sempre presentes nos enunciados desses sujeitos. E os argumentos podem ser considerados, no sentido filosfico genrico, os raciocnios destinados a provar ou refutar determinada proposio, um ponto de vista ou uma tese qualquer. Seu objetivo (da argumentao) o de convencer ou persuadir, mostrando que todos os argumentos utilizados tendem para uma nica concluso. (JAPIASS; MARCONDES, 1996, p. 15). A argumentao estaria enraizada na construo dos signos, dos gneros do discurso, na medida em que, quando nos apropriamos de palavras dos outros, apropriamo-nos tambm do tom apreciativo, isto , das condies sociais em que so produzidas e tm valor. A argumentatividade da linguagem seria inerente ao princpio dialgico. Dados anedticos apontam que na sala de aula o professor fixa o discurso, ainda que momentaneamente, como uma estratgia de ensino. E como estamos entendendo o fixar? Estamos entendendo na perspectiva de o professor fazer afirmaes (ligadas aos contedos com que est trabalhando) aparentemente descontextualizadas (como se viessem de uma nica voz, monofnicas, fixas, como se os enunciados tivessem congelado...). De um modo geral, isso se faz tirando as ncoras da realidade cotidiana dos alunos, as possibilidades de metaforizar, de citar exemplos. Nesse sentido, podese pensar tal estratgia como uma provocao (um argumento?) para que os alunos construam gneros do discurso secundrios, complexos, como o so os da cincia, do direito, da religio, entre outros. Conforme Bakhtin,[...] por mais monolgico que seja um enunciado (uma obra cientfica ou filosfica, por exemplo), por mais que se concentre no seu objeto, ele no pode deixar de ser tambm, em certo grau, uma resposta ao que j foi dito sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo problema, ainda que esse carter de resposta no receba uma expresso externa bem perceptvel. A resposta transparecer nas tonalidades do sentido, nos mais nfimos matizes da composio. (BAKHTIN, 1992, p. 317).

Ento, os enunciados monolgicos tambm respondem a questes e necessidades anteriores, de outros sujeitos: Como o discurso verbal se relaciona com a situao social que o engendrou? Esta a pergunta que Brait (1999, p. 18) traz e que nos fazemos. Para Bakhtin, o contexto extraverbal composto de trs fatores bsicos: a extenso espacial, comum aos interlocutores (a unidade do visvel; no caso do discurso pedaggico, a sala de aula); o conhecimento e a compreenso comum da situao existente entre os interlocutores; e a avaliao comum dessa situao (VOLOSHINOV, 1926).

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Mas, como se relacionam o dito e o no-dito (pressuposto, presumido)? O autor considera a situao extraverbal como parte constitutiva essencial estrutura de significao do enunciado. O social e o objetivo so pontos de partida para o estudo do presumido (e no o individual e subjetivo). S pode ser presumido o que ns falantes sabemos, vemos, amamos, reconhecemos, isto , coletivamente, unidos. As avaliaes, julgamentos de valor presumidos so avaliaes sociais bsicas que derivam de um grupo social dado (BRAIT, 1992, p. 20) Assim, podemos conceber as orientaes pedaggicas na sala de aula, de professores, textos, livros e dos prprios alunos. o julgamento de valor que determina a seleo verbal e o todo da forma verbal, bem como a recepo dessa seleo pelo ouvinte. A entonao, o tom avaliativo, se constitui como o elemento que estabelece um firme elo entre o discurso verbal e o contexto extraverbal. A natureza social do fenmeno entonacional est na fronteira entre o verbal e o extraverbal, conjunto de valores pressupostos no meio social em que ocorre o discurso. O falante seleciona as palavras no contexto da vida, onde as palavras foram embebidas e se impregnaram de julgamentos de valor. O falante, o tpico e o ouvinte so constitutivos do discurso, essenciais a sua existncia e, conseqentemente, a sua descrio e anlise. O ouvinte aquele que o falante leva em conta, para quem o discurso orientado e que intrinsecamente determina a estrutura do discurso. O ouvinte exerce influncia crucial sobre todos os fatores do discurso. Segundo Bakhtin, as influncias extratextuais tm uma grande importncia na construo do discurso, possibilitando a entrada de palavras alheias em nossas palavras: Depois, estas palavras alheias se reelaboram dialogicamente em palavras prprias alheias com a ajuda de outras palavras alheias (anteriormente ouvidas) e, em seguida, j em palavras prprias (com a perda das aspas, para falar metaforicamente) que j possuem um carter criativo. (BAKHTIN, 1992). O carter criativo est ligado no ao sentido da arte, mas ao sentido da integrao e da autonomia que as palavras, que foram alheias, ganham no discurso daquele que delas se apropriou. O autor destaca o processo paulatino de esquecimento dos portadores das palavras alheias. As palavras alheias se tornam annimas ao serem apropriadas; com isso, a conscincia se monologiza. Tambm so esquecidas as relaes dialgicas iniciais com as palavras alheias que so absorvidas pelas palavras alheias assimiladas (passando pela fase das palavras prprias-alheias). A conscincia criativa, ao tornar-se monolgica, se completa pelos annimos. Depois, a conscincia monologizada como um todo nico inicia um novo dilogo (agora com vozes externas novas) (BAKHTIN, 1992). Lemos (1999) relaciona o contexto desse monlogo, que inaugura um novo dilogo, autoria e relaciona

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as palavras annimas ao resultado do apagamento da voz do outro na palavra alheia apropriada, constituindo o sujeito em outro do outro, em outro de si prprio e em outro das vozes-sujeitos que circulam em seu discurso conscincia monologizada. (p. 43). Esta perspectiva de monologizao parece ser relevante para refletir sobre os processos de aprendizagem. Do ponto de vista da significao do enunciado, Bakhtin d um destaque noo de tema e nos diz o seguinte:Qualquer tipo genuno de compreenso deve ser ativo deve conter j o germe de uma resposta. S a compreenso ativa nos permite apreender o tema, pois a evoluo no pode ser apreendida seno com a ajuda de um outro processo evolutivo. Compreender a enunciao de outrem significa orientar-se em relao a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciao que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma srie de palavras nossas, formando uma rplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real a nossa compreenso [...] A compreenso uma forma de dilogo; ela est para a enunciao assim como uma rplica est para outra no dilogo. Compreender opor palavra do locutor uma contrapalavra. (BAKHTIN, 1988, p. 131-132).

O autor chama de tema o sentido completo de cada enunciao e, com esse conceito, possibilita entender, principalmente do ponto de vista ideolgico, as diferenas sutis de significao, em enunciados aparentemente semelhantes. O tema determinado pelas formas lingsticas que entram na composio do enunciado e igualmente pelos elementos no-verbais da situao: perder esses ltimos elementos da situao significa perder suas palavras mais importantes, significa no compreender. Somente a enunciao tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenmeno histrico possui um tema. (BAKHTIN, 1988, p. 129). O autor destaca que preciso considerar tambm que, alm do tema e da significao, toda palavra possui um acento de valor ou apreciativo de natureza social, transmitido atravs da entonao expressiva, conforme expresso anteriormente. A apreciao caracteriza o papel criativo nas mudanas de significao, o deslocamento de uma determinada palavra de um contexto apreciativo para outro.

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Outro prisma da teoria enunciativa de Bakhtin a considerar a distino de duas categorias de palavras, a autoritria e a palavra internamente persuasiva, que tm relevncia para o estudo dos processos de ensino-aprendizagem, entendidos, a partir daqui, como processos caracteristicamente argumentativos:O objetivo da assimilao da palavra de outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formao ideolgica do homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta no mais na qualidade de informaes, indicaes, regras, modelos, etc, - ela procura definir as prprias bases de nossa atitude ideolgica em relao ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritria e como a palavra internamente persuasiva. (BAKHTIN, 1998, p. 142.

O autor destaca a profunda diferena entre tais palavras, ressaltando que podem se unir em uma s palavra, entretanto, de forma rara. A palavra autoritria religiosa, poltica, moral, a palavra do pai, dos adultos, dos professores etc. carece de persuaso interior para a conscincia; ns j a encontramos unida autoridade; exige de ns o reconhecimento e a assimilao; est ligada ao passado hierrquico. A palavra internamente persuasiva, por sua vez, carece de autoridade; revela possibilidades diferentes. determinante para o processo da transformao ideolgica da conscincia individual. A palavra persuasiva interior comumente metade nossa, metade de outrem. Tem produtividade criativa no sentido de que desperta nosso pensamento e nossa nova palavra autnoma; organiza do interior as massas de nossas palavras, em vez de permanecer numa situao de isolamento e imobilidade; esclarecese mutuamente em novos contextos; ingressa num inter-relacionamento tenso e num conflito com as outras palavras internamente persuasivas. De acordo com Bakhtin,Nossa transformao ideolgica justamente um conflito tenso no nosso interior pela supremacia dos diferentes pontos de vista verbais e ideolgicos, aproximaes, tendncias, avaliaes. A estrutura semntica da palavra internamente persuasiva no terminada, permanece aberta, capaz de revelar sempre todas as novas possibilidades semnticas em cada um dos seus novos contextos dialogizados. (QEL, 1998, p. 146).

A citao aponta a tenso existente nos sujeitos no movimento enunciativo de transformao ideolgica, o que entendemos como movimentos de reflexo e de possvel mudana. Diferentes pontos de vista co-ocorrem e concorrem disputando espao. Nesse sentido, podemos supor que os enunciados dos sujeitos

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envolvidos no discurso se constituam como argumentos, expressando diferentes conhecimentos, carregados de valor e de intenes na direo dos outros. Este se configura como outro contexto para refletir sobre processos de ensinoaprendizagem. O espao da sala de aula, dado o seu carter pedaggico, admitiria a flexibilizao das palavras autoritrias das reas de conhecimento, isto , dos contedos historicamente construdos, para que seu objetivo seja atingido. Como j foi dito, nosso objetivo neste artigo buscar caminhos, com base em Bakhtin, para analisar, do ponto de vista da argumentatividade da linguagem, interaes discursivas em sala de aula, visando a construo do conhecimento. De acordo com Brait (1997, p. 101), [...] descortinar um projeto de estudo das formas de construo e produo do sentido no conjunto dos escritos bakhtinianos uma tarefa rdua, mas no impossvel [...] Caminhando na direo da possibilidade aberta por Brait nos estudos da enunciao de Bakhtin, duas questes inter-relacionadas se destacam, considerando a elaborao terica que vem sendo constituda e o objetivo explicitado. A primeira diz respeito aos modos de apropriao da palavra do outro; a segunda se relaciona com o contexto tenso em que tal apropriao se d. Avaliamos que seja nessas relaes (que deve conter muitas conotaes, de que no iremos tratar aqui) que a elaborao argumentativa do discurso mais se explicite. Apresentamos a seguir possibilidades de dar conta do inter-relacionamento das duas questes destacadas. Numa primeira aproximao das questes, reportamo-nos ao discurso citado/referido (discurso direto, indireto e indireto livre), estudado por Bakhtin (1988; 1998), que envolve tendncias historicamente consolidadas de apreenso do discurso de outro. Essa parece ser uma categoria relevante para o estudo da argumentao, na medida em que so elementos do discurso do outro (citado) que so trazidos para o discurso citante com algum propsito, como argumentos, j que entram no enunciado intencionalmente. Paulillo (1993, p. 37-43), analisando o estudo de Bakhtin na perspectiva de definir procedimentos de anlise do discurso citado, chega s seguintes possibilidades: (a) Discurso direto (citao literal); (b) Discurso indireto (uma espcie de descrio do discurso do outro), como p. ex. Ele me disse que voc sabia de tudo; (c) o uso de verbos introdutores que interpretam a inteno comunicativa com que o discurso citado teria sido proferido (afirmar, argumentar,...); e (d) Discurso indireto livre (mais comum em texto literrio). Segundo a mesma autora, h outros fenmenos em que o discurso citado indicado, aludido, como: (e) colocao de palavras e expresses entre aspas: A modernizao do pas que o governo pretende...; (f ) O uso do Condicional: O incndio teria sido provocado por um curto-circuito, em que o sujeito enunciador no assume, no adere

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totalmente ao enunciado produzido; vestgio de outra voz que seria o suporte da forma afirmativa do enunciado. Ocorre o efeito de distanciamento, que pode ir desde o no-compromisso (com a afirmao) at a recusa crtica, sob a capa de ironia, da verdade do enunciado afirmativo ao qual o condicional alude; (g) Indicadores genricos: Dizem que...; Parece que..., entre outros; (h) A insero/ uso de provrbio: implica a meno de outras vozes, mas o enunciador no nem identificado, nem individualizado; remete ao senso comum, humanidade; o enunciador citante adere ao enunciado, assume a sua validade. Outra aproximao nos foi possvel por meio do estudo de Weinrich (1964, apud KOCH, 1987, p. 37-48), vinculado aos estudos da Lingstica Textual. relevante destacar que a Lingstica Textual busca captar o sentido do texto, considerando a prpria construo textual, logo, de dentro para fora. A anlise de discursos possibilitada por Bakhtin, ao contrrio, nos leva a compreender o sentido dos textos no movimento exterioridade-interioridade-exterioridade, logo, considerando as condies de produo do discurso, isto , a extenso espacial comum aos interlocutores; o conhecimento e a compreenso comum da situao existente entre os interlocutores; e a avaliao comum dessa situao, como j foi mencionado. Estamos, portanto, assumindo o trabalho de Weinrich numa direo diferente daquela dada pelo autor. Weinrich organiza as funes dos tempos verbais na lngua francesa em dois grandes grupos de situaes comunicativas independentes - mundo narrado e mundo comentado. O falante apresenta o mundo utilizando-se dos tempos verbais e o ouvinte o entende, ou como mundo comentado ou como mundo narrado. (KOCH, 1987, p. 38). Diante do mundo comentado, o falante afetado, tem de se mover e reagir. Isto , no mundo comentado, o locutor se responsabiliza e se compromete com aquilo que enuncia, criando uma tenso entre os interlocutores que esto diretamente envolvidos no discurso. No mundo narrado, por sua vez, a atitude do locutor distensa, ele se distancia de sua fala, no se comprometendo em relao ao fato que est sendo narrado. O locutor, neste caso, simplesmente relata fatos e acontecimentos como se apresentam por si prprios. Parece-nos que o ouvinte nesse caso recebe os relatos tambm como algo aceito, legitimado. As expresses verbais prprias do comentrio so aquelas empregadas no tempo presente e no tempo futuro, bem como as locues verbais formadas com tais tempos. O mundo narrado se caracteriza pelos tempos pretritos e tambm pelas locues verbais formadas com estes tempos. Para o autor, os tempos verbais no tm vinculao com o Tempo (Cronos). Essa observao tem relevncia para ns, j que nos permite pensar que os tempos verbais se vinculam ao movimento temporal da situao de enunciao.

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Ao verificar a adequao da propriedade das expresses verbais de um e de outro mundo para o portugus, Koch observa que ela se mostra vlida, a no ser pelo pretrito perfeito simples que apresenta elevado ndice de incidncia tanto no relato como no comentrio. (1987, p. 43-44). Segundo Weinrich, o discurso direto pertence ao mundo comentado; j a construo do discurso indireto livre est em um meio caminho entre o mundo comentado e o mundo narrado, sendo possvel captar-se a fala do narrador e uma reflexo do autor superpostas. Isso pode contribuir para criar um clima de tenso, surpresa e expectativa no texto. Estamos entendendo, ento, que na sala de aula convivem estes mundos, o narrado e o comentado; o primeiro, ligado principalmente aos textos que o professor apresenta para socializar o contedo a ser ensinado, a palavra da autoridade, e aos relatos dos alunos reproduzidos a partir daquele texto ou associados quele texto; e o segundo, ligado tanto ao professor quanto aos alunos, no sentido de um conflito tenso... pela supremacia dos diferentes pontos de vista verbais e ideolgicos, aproximaes, tendncias, avaliaes, isto , da palavra internamente persuasiva. Do modo como estamos entendendo, as rplicas do discurso, as contrapalavras do falante na direo de determinadas consideraes, se interligam aos enunciados do mundo comentado, logo de carter altamente argumentativo. Ou, de outro modo, o mundo narrado estaria ligado ao discurso de autoridade e o mundo comentado, ao discurso internamente persuasivo. Estamos compreendendo a caracterizao do no-compromisso e do distanciamento do discurso do mundo narrado como algo que est convencionado ou legitimado como conhecimento aceito. Ao trazer as categorias de mundo narrado e mundo comentado, desenvolvidas por Weinrich, interligando-as aos discursos de autoridade e internamente persuasivo, elaborados por Bakhtin, acreditamos no estar realizando nenhuma violncia terica, mas repensando-as sob novas luzes. Nesse sentido, continuando a interligao, chegamos a outra posio bakhtiniana que desenvolvemos em Goulart, Colinvaux & Salomo (2003). Bakhtin (1998, p. 156) apresenta trs categorias bsicas de criao do modelo da linguagem no romance que consideramos produtivas, para conceber os processos de constituio da linguagem dos sujeitos: (a) hibridizao; (b) inter-relao dialogizada das linguagens; e (c) dilogos puros. As duas primeiras categorias, brevemente apresentadas a seguir, nos parecem relevantes para abordar a constituio do discurso no processo de ensino-aprendizagem. A hibridizao seria a mistura de, no mnimo, duas linguagens sociais no interior de um nico enunciado. O autor afirma que uma hibridizao involuntria, inconsciente, uma das modalidades mais importantes da existncia histrica e das transformaes das linguagens.

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[...] no fundo, a linguagem e as lnguas se transformam historicamente por meio da hibridizao, da mistura das diversas linguagens que coexistem no interior de um mesmo dialeto, de uma mesma lngua nacional, de uma mesma ramificao, de um mesmo grupo de ramificaes ou de vrios, tanto no passado histrico das lnguas, como no seu passado paleontolgico, e sempre o enunciado que serve de cratera para mistura. (BAKHTIM, 1998, p. 156-7). A linguagem de cada um de ns se constri e se transforma no mesmo movimento de tenso e de hibridizao pela palavra do Outro, atravessadas por gneros discursivos diversos, fundados em tambm diversas linguagens sociais.

Arrematando a discussoCom a construo terica esboada, entendemos que, com base em Bakhtin e outros autores coadjuvantes, tenhamos indicado possveis balizadores para anlise de interaes discursivas em sala de aula, contribuindo para a compreenso de aspectos da construo do conhecimento nesse espao. Podemos perseguir naquela anlise um pequeno repertrio de frmulas correntes que caracterizem a argumentao do discurso em sala de aula, considerando o papel fundamental do professor nos modos como encaminha a orientao social do gnero de discurso chamado aula. O modo como ele transforma a palavra de autoridade em palavra persuasiva; como hibridiza o discurso; as perguntas que elabora procurando encaminhar o querer-dizer dos alunos em relao ao foco do tema estudado; o modo como prope e interpe o discurso narrado; e os encaminhamentos para a realizao, pelos alunos, de atividade metalingstica. Parece-nos relevante considerar a legitimao e o trabalho com a palavra dos alunos, valorizando sua produo criativa, a interdiscursividade, mesmo que no vinculada diretamente ao contedo focalizado. Dito de outra maneira, parece-nos fundamental observar que universos de referncia so mobilizados pelos alunos para dialogar com os temas estudados e que recursos expressivos encontram para manifestar seus julgamentos de valor, suas compreenses. Esses enunciados devem expressar as suas possibilidades discursivas de ler o mundo naquele momento. Considerando a proposta do presente estudo, pode-se contrapor que o discurso produzido na escola, pelas prprias caractersticas dos processos que ali se vivenciam, envolvendo a disciplina que envolver, ser sempre fortemente argumentativo.

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Opomo-nos a este questionamento, destacando que o discurso escolar, como parte do discurso da vida, reflete-a e refrata-a, como tantos outros modos de construo de sentidos sociais que, por existirem fora da escola, habitam-na cotidianamente. Um dos pontos, entre muitos, que precisa de aprofundamento diz respeito s condies que tornam os enunciados mais e menos argumentativos. O papel dos professores, sendo fundamental para a aprendizagem dos alunos, parece estar ligado aos modos como lidam com a orientao social dos alunos nas interaes discursivas em uma aula. A maneira como os professores controlam o espao aberto entre o mundo narrado e o mundo comentado, a transformao da palavra de autoridade em palavra internamente persuasiva, parece tambm ser um fator relevante a investigar no processo discursivo de ensino-aprendizagem, como assinalado anteriormente. A discusso terico-metodolgica realizada neste artigo apenas inicia um percurso investigativo que pode ser frutfero nas muitas dimenses que abre, na perspectiva dos estudos da linguagem, para continuarmos refletindo sobre os processos de ensino-aprendizagem na escola.

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Expectativas de socializao na escola entre mes de camadas populares do Rio de JaneiroExpectations of socialization in school among mothers belonging to poor social layers in Rio de JaneiroLea Pinheiro Paixo1

ResumoO texto apresenta resultados de pesquisa realizada entre 2005 e 2007, com mes de crianas que frequentam uma escola pblica do Estado do Rio de Janeiro. Objetiva analisar expectativas de socializao na escola considerando estratgias instrumentais e identitrias. As anlises se apoiaram em Pierre Bourdieu, Daniel Thin e Agns Van Zanten. Foram realizadas entrevistas individuais com seis mes. Para trs mes, a escola deve ocupar-se, principalmente do ensino. As demais, que vivem em favelas prximas escola, revelaram expectativas modestas de socializao na escola. Todas, no entanto, esperam que a escola garanta a guarda das crianas durante o horrio escolar.Palavras-chave: Socializao na escola. Famlia e escola. Escolarizao e camadas populares.

Abstract:The text presents the results of a research carried out between 2005 and 2007 with childrens mothers attending a public school in the State of Rio de Janeiro. Its foccussed on the analysis of expectations of socialization in schools considering instrumental strategies and identities. Analysis were based, specially, on Pierre Bourdieu, Daniel Thin and Agnes Van Zanten. Individual interviews took place with six mothers who showed differences in relation to their expectations of school as a socializing place. Three of them fear the experiences of socialization in school. For them, school role should be primarily learning. The others, who live in a slum near the school, show little expecttions of such socialization. Linking the two groups there is the general expection that the school should look after the children, guaranting their safety, during school period.Keywords: Socialization in school. Family and school. Education and poor social layers.

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Doutorado em Sciences de LEducation pela Universite de Paris V (Rene Descartes), U.P Paris, Frana. .V. Professora da Universidade Federal Fluminense. End. Centro de Estudos Sociais Aplicados. Campus do Gragoat, Bloco D, Sala 520, So Domingos. Niteri RJ. Brasil. CEP 24.210350. Tel. (21) 26292699, (21) 26292695. E-mail: . R. Educ. Pbl. Cuiab v. 18 n. 36 p. 33-48 jan./abr. 2009

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IntroduoA escola contempornea vive momentos de tenso no que se refere s suas funes. Professoras/es declaram enfaticamente: Os pais e/ou mes esperam que realizemos um trabalho que deles. Ns no temos obrigao de educar; nossa funo, como professor/a, ensinar.2 Para as/os professoras/es, as funes da escola se ampliaram, dificultando o trabalho delas/es. Alegam que para se ocupar do que deve ser o ncleo das responsabilidades da escola ensinar precisam promover a aquisio, pelas crianas, de comportamentos que consideram pr-requisitos necessrios ao trabalho que constitui sua tarefa como professoras/es. Referem-se ao processo de socializao das crianas, que recebem como inadequado. Esse tipo de reclamao frequente entre professoras/es de escolas que recebem crianas de camadas mais pobres da sociedade e aponta para uma avaliao negativa do modo de socializar da famlia. As tenses da originadas podem contribuir para ampliar dificuldades no processo de escolarizao de crianas das camadas populares. Para outros grupos sociais, tais tenses encontram soluo com a transferncia do/a filho/a para escolas particulares que respondam s expectativas de socializao das famlias. H literatura, no campo da Sociologia da Educao, que vem mostrando a importncia de se pesquisar consonncias e dissonncias no modo de socializao3 da famlia e da escola (THIN, 2006a, 2006b; VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001). No Laboratrio de Estudos sobre a Relao Escola e Famlia (Universidade Federal Fluminense), estamos investindo em um programa de pesquisa cujo objetivo analisar consonncias e dissonncias entre expectativas de professoras/es, mes/pais e crianas. O programa de pesquisa foi iniciado ao final de 2004, em uma escola (aqui designada Escola X), que atende a crianas de camadas populares de Niteri (estado do Rio de Janeiro), objetivando: Colher elementos que possibilitem compreender: (i) as expectativas de famlias de camadas populares em relao s responsabilidades da escola no processo de socializao de seus/suas filhos/as; (ii) as percepes de profissionais da escola em relao a tais expectativas das famlias; (iii) a percepo de tais expectativas por parte dos/as alunos/ as. A partir da, analisar consonncias e dissonncias entre essas expectativas.

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Relato de professora, colhido no Grupo Focal organizado pela professora La da Cruz, na pesquisa com professoras. A noo de socializao no , neste texto, tomada como sinnimo de educao. A socializao no se limita a prticas que, de forma explcita, objetivam educar em certa direo. H componentes e efeitos inconscientes nesse processo. Como lembra Darmon (2006), as abordagens sociolgicas da socializao variam segundo a importncia que os estudiosos do a esses componentes e efeitos.

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Entender relacionalmente aproximaes e distines entre expectativas de socializao na escola, considerando a origem social dos/as alunos/as. Os resultados ora apresentados tratam da pesquisa realizada junto s mes. Duas outras pesquisadoras encarregaram-se das pesquisas junto s crianas4. Em pesquisa anterior, observei que mes catadoras alimentavam fortes expectativas de que a escola se ocupasse da dimenso de socializao dos/as filhos/ as (PAIXO, 2003, 2005). A pesquisa, cujos resultados so aqui apresentados, continua a tratar desta questo: socializao na escola. Para isso, entrevistei seis mes de crianas que frequentam ou frequentaram uma escola pblica em Niteri. O grupo menos homogneo que o entrevistado na pesquisa anterior (as catadoras). Nele, se encontram mes que, como as catadoras, vivem em situao precria asseguram a sobrevivncia em atividades no-regulares, no-assalariadas , como tambm mes que pertencem a famlias em que o assalariamento propicia condies menos instveis de sustentabilidade. Cinco dessas mes podem ser identificadas como pertencentes s camadas populares, na medida em que a sobrevivncia da famlia garantida por atividades manuais no-qualificadas. H uma me que escapa dessa categoria. Seu marido tem pequeno comrcio, atividade que inclui a famlia na categoria de extrato mais baixo de camadas mdias. A seguir, apresento um breve perfil de cada uma delas5. Sonia Negra, 32 anos. Reside em uma favela. Desempregada, faz faxina. O marido tambm est desempregado ( soldador) e mantm a famlia com o que recebe de servios eventuais (bicos). So trs os filhos: Eric, com 12 anos, que mora com a av; Alessandra, de 8 anos; Joo, com 3 anos. Sonia estudou at a quinta srie do Ensino Fundamental e pensa em voltar a estudar. Seu marido frequentou a escola at a sexta srie do Ensino Fundamental. A religio exerce papel importante no ethos familiar. Karla Negra, 39 anos. Reside em uma favela. Separou-se do marido h cinco anos. Ele era alcolatra. Karla no concluiu o Ensino Mdio. O ex-marido estudou at a quarta srie do Ensino Fundamental. Na casa, moram ela e quatro filhos (com 5, 9, 11 e 12 anos de idade). Karla sustenta a famlia como diarista e tambm executando pequenos trabalhos de artesanato.

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A professora doutora Marisol Barenco de Melo se ocupou das crianas e La da Cruz, das professoras. Os nomes so fictcios para preservar a identidade dos/as entrevistados/as.

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Marisa Negra, 34 anos. Reside em uma favela. Vive com marido e seis filhos (dois meninos e quatro meninas). No terreno h outras casas, onde residem parentes (me e irmos). Marisa dona-de-casa e o marido trabalha em uma empresa de limpeza urbana. Situao estvel de vida (assalariamento). A famlia espera que os filhos contribuam, a partir de certa idade, para a manuteno do grupo familiar. Por exemplo, um dos filhos trabalha em um shopping center em Niteri e o outro faz biscates. Marisa no concluiu a primeira srie do Ensino Fundamental. Confessa que no sabe ler. No soube precisar o nvel de escolarizao do marido: se at a quarta ou a oitava srie do Ensino Fundamental. Ana Maria Negra, 48 anos. Trabalha em uma empresa de limpeza. O companheiro funcionrio no setor de manuteno do quadro de uma universidade pblica. Situao estvel de vida (assalariamento). Ana Maria tem duas filhas: uma de 27 anos, que se formou em Pedagogia na UFF, e a outra de 11 anos, que estudou na Escola X. As filhas moram com ela e o companheiro. Ana Maria cuidou da filha do companheiro anterior, que tambm frequentou a Escola X. Essa jovem no vive mais com ela. Ana Maria completou o Ensino Fundamental. Henriqueta Branca, 39 anos. Mora no bairro onde est localizada a Escola X. Trabalha com o marido, proprietrio de uma imobiliria que funciona no andar trreo da casa onde residem. A famlia constituda de Henriqueta, marido, av (pai do pai dela) e dois filhos (uma jovem de 17 anos e um menino de 8 anos). Ambos estudam na Escola X. O marido tem Curso Superior; ela, o Ensino Mdio completo. Rosrio Negra, 44 anos. Mora em bairro prximo Escola X. Vive com dois filhos gmeos de oito anos que estudam na Escola X. A famlia tem vida atual estvel, que tende a se tornar mais precria, a mdio prazo. Rosrio no exerce uma atividade remunerada. Para sua subsistncia, depende da penso alimentcia paga pelo pai das crianas. Por isso, ela afirma que s pode garantir escolaridade para os filhos at atingirem 18 anos, quando ela no mais ter direito penso. Depois, eles devero trabalhar. Rosrio completou o Ensino Mdio. Neste texto, sero exploradas algumas das dimenses das expectativas das entrevistadas em relao ao processo de escolarizao. Sero focalizadas quatro delas que parecem distinguir o grupo entrevistado em suas relaes com a Escola X.

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1 Tenses entre as MesA anlise das entrevistas revela distines entre as mes. Apesar do pequeno nmero de entrevistadas (seis), suas reflexes sobre a escolarizao dos filhos e a leitura que fizeram da forma como a Escola X vem realizando sua tarefa, mostram no apenas diferenas, como tambm apontam para a existncia de tenses. Podemos identificar um subgrupo de trs mes que emitem avaliaes negativas sobre as mes de outros alunos, colegas de seus filhos. Segundo elas, tais mes prejudicariam o processo de escolarizao de seus prprios filhos. Essa crtica direcionada ao modo de socializao nas famlias que provoca, de acordo com elas, repercusses na vida da escola. Associados a essa crtica, avanam ainda pontos negativos relacionados ao acompanhamento escolar dos filhos daquelas famlias. Nesse sentido, esse primeiro subgrupo de mes avalia como procedentes as crticas que as/os professoras/es dirigem aos/s pais/mes em geral. O discurso delas aproxima-se das anlises efetuadas por algumas professoras no Grupo Focal. Apiam as professoras nas crticas que fazem aos/s pais/mes. Isso no significa que elas no critiquem, por seu turno, o trabalho da escola. Uma delas tirou a filha da Escola X porque considerou que a professora no era suficientemente competente do ponto de vista pedaggico. Ela alega ter registrado equvocos na correo dos deveres feitos pela filha. Preferiu, ento, transferi-la para uma escola particular. Uma outra me desse subgrupo relatou problemas relacionados ao ensino das disciplinas. Entretanto, como no pde arcar com os custos de uma escola particular, ela manteve o filho na Escola X, utilizando estratgia de vigilncia contnua e cerrada sobre o que acontece na escola. Uma terceira me acompanha as anteriores nas crticas escola em relao sua tarefa de ensinar. Ela gostaria de poder mudar o filho dessa escola pblica para uma outra, tambm pblica, localizada em um bairro de classe mdia alta, da cidade. Mas no pode transferilo, porque, segundo ela, bastante difcil conseguir transporte gratuito e ela no tem condies de arcar com as despesas das passagens de nibus. As mes que se posicionam como crticas de outras mes consideram problemtica a convivncia de seus/suas filhos/as com crianas oriundas de grupos familiares que no se envolvem com a escolarizao delas ou que admitem seus comportamentos inadequados. Tais avaliaes fundamentam-se em suas preocupaes com o processo de escolarizao das crianas e da perspectiva da escola como estratgia instrumental. Elas tm receio de que os/as filhos/as sejam prejudicados/as em consequncia do deficiente acompanhamento escolar de outras mes. A conduta de duas delas exemplifica a lgica dessas avaliaes. Na poca da entrevista, a Escola X no alcanara nmero suficiente de professoras/es para todas as turmas, e as duas mes desse subgrupo tinham filhos em

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uma turma sem professora. Todos os dias elas cobravam da direo da escola soluo para o problema. Inclusive, haviam acionado um canal de TV para tornar pblica a reivindicao. Como estratgia para enfrentar essa ausncia de trabalho pedaggico na escola, elas procuravam substituir, de certa forma, a professora: estudavam com os filhos em casa os contedos que - acreditavam - deveriam ser desenvolvidos naquele perodo. E refletiam: Aquelas outras mes no devem estar fazendo o mesmo. Assim, quando a turma tiver professora, nossos filhos vo perder tempo, porque ser necessrio ensinar aos demais aquilo que j ensinamos a eles. Nesse caso, em especial, as mes se referiam a um grupo de crianas cujas famlias moram em um casaro, um imvel antigo e mal-conservado localizado no mesmo bairro em que se encontra a Escola X e que havia sido invadido por famlias que no dispunham de lugar para morar. As crianas do casaro - na Escola X, comum se referir aos alunos que vivem ali dessa forma - ocuparam o centro de uma discusso, conforme relatou uma das professoras que disse ter recebido sugesto de mes (as duas entrevistadas) para deslocar de sua turma alguns alunos que moram no casaro, o que lhes foi devidamente negado. A preocupao com as crianas do casaro e com outras que vm de famlias mais pobres estende-se ao modo de socializao. Nesse sentido, uma das duas mes do subgrupo citado, em especial, mostrou-se enftica em sua crtica (Henriqueta): As mes, eu acho que jogam as crianas no colgio, muitas mes. Para ela, isso decorre do Programa Bolsa Famlia, benefcio que, para ser recebido, requer a frequncia das crianas na escola. Inclusive, ela at insinua que estas esto na escola apenas por esse motivo. Ademais, observa que, apesar da falta de professor/a, quase no se vem mes no estabelecimento de ensino (como ela, que est batalhando), afirmando ter tentado organiz-las para irem Coordenadoria reclamar sobre o problema. No entanto, s trs mes compareceram. Acho que num to nem a. Elas querem a presena das crianas no colgio, t l, t contando que t indo pro colgio e pronto! Ela, ao contrrio, declara que vai escola todos os dias para observar tudo cuidadosamente, inclusive a filha que est cursando o Nvel Mdio (segundo ano), e fala em: falta de educao que vem de casa: umas mes que vm pro colgio de short curto. Eu acho que no certo isso; vm com blusa c em cima. Isso a dando exemplo j pra quem? Pro filho, n? Porque a, voc j v: as crianas j dobra a blusa c em cima. Isso eu acho errado. Ainda, critica as mes que tm muitos filhos. Diz que elas e os mandam pedir dinheiro para levar para casa, lembrando que a filha encontrara uma criana vendendo coisas no sinal s 10 horas da noite. Essa criana vai estudar direito? Num acho. Acho que a culpa maior da me. Concorda com as professoras ao considerarem que as mes esperam da escola realizar a educao dos/as filhos/as e menciona o caso de uma professora que teve de dar banho em uma menina. A professora tambm... Ela vem aqui dar aula, mas num pra ficar tomando conta de criana, ter que cuidar, dar banho, ter que dar educao. No !

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Nesse sentido, o primeiro grupo de mes associa-se s professoras quanto s crticas relacionadas ao modo de vestir, de agir das crianas e falta de acompanhamento escolar pelas mes, as quais foram formuladas no Grupo Focal. Assim, se a tenso entre as mes revela a importncia da escola enquanto estratgia instrumental de um grupo - acreditam que a convivncia dos/as filhos/ as com as crianas do casaro pode dificultar a aprendizagem deles/as -, as crticas mostram que tal raciocnio encontra-se vinculado depreciao do modo de educar destas e de outras mes que parecem viver de modo igualmente precrio.

2 Socializao na escolaNo se podem tecer, em relao s mes entrevistadas da Escola X, essas mesmas observaes para o contedo das entrevistas realizadas com catadoras do lixo (PAIXO, 2003; 2005), que revelaram expectativas de a escola tomar para si a atribuio de socializar seus filhos. Entre as mes da Escola X no h unanimidade de expectativas de socializao na escola. Ana, Henriqueta e Rosrio estabelecem uma clara distino entre funes da escola e funes da famlia. Elas no s no esperam que a escola socialize os/ as filhos/as, como tambm temem a influncia da instituio nessa esfera. Suas expectativas esto mais concentradas na dimenso instrumental da escola: ensinar. Muitas de suas preocupaes esto relacionadas ao tamanho da escola e a sua administrao. Trata-se de um espao muito grande, no qual so oferecidos cursos desde a Educao Infantil ao Nvel Mdio (Formao de Professores) e que rene crianas e adolescentes de idades variadas. A escola situa-se num bairro em que se encontra estabelecido um dos campi da UFF e rodeada por trs favelas, de modo que no est imune a repercusses do trfico de drogas. Atendia, na poca das entrevistas, distribudos/as em 105 turmas, 2.449 alunos e alunas, em geral pertencentes s camadas mais pobres da localidade. Conhecendo os problemas da escola e a composio social dos/as alunos/as que a freqentam, as mes que tm uma situao menos precria ficam atentas para que, pelo menos, a educao recebida pelos/as filhos/as na famlia no seja prejudicada. Elas gostariam que a escola contribusse para fortalecer essa educao de acordo com o que valorizam, mas no alimentam grandes expectativas quanto a isso. Essas mes empenham-se em acompanhar ativamente todos os acontecimentos no ambiente escolar, numa tentativa de evitar que os/as filhos/as sofram influncias que julgam negativas para o desenvolvimento de suas identidades, em desacordo com a socializao que promovem em casa.

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Ana Maria, considerando que a Escola X no respondia a suas expectativas, transferiu a filha para uma escola particular, relatando um episdio que lhe trouxe sofrimento. Certo dia, a menina ficara desaparecida por horas, durante todo o perodo em que deveria estar na escola, e a direo do estabelecimento no conseguiu fornecer explicaes sobre o fato. Depois dessa experincia e de outra relacionada ao ensino propriamente dito, a me tirou a garota da escola, mas esta acabou fugindo de casa. Henriqueta, confessando que gostaria de tomar a mesma atitude de Ana Maria - mudar o filho para uma escola particular -, utiliza outra estratgia. Por meio de uma explanao interessante, ela demonstrou claramente todo o seu empenho em acompanhar a da socializao dos filhos no mbito escolar. Como no tem condies de pagar a mensalidade de uma instituio particular de ensino, procura tirar vantagem das experincias negativas adquiridas naquela escola em que o filho estuda. Segundo ela, ali eles aprendem de tudo e, ento, em casa, ela se preocupa em fazer o contraponto. Henriqueta conversa com eles, analisa suas experincias escolares e vai dizendo o que considera certo ou errado nisso. Para ela, os filhos tm de enxergar claramente os limites de uma e de outra instituio (a escola e a famlia). Citando um exemplo, relatou que, um dia, a filha chegou da escola comentando o assassinato de uma colega, grvida, que se envolvera com um menino do trfico. A partir desse fato e de outros do gnero, Henriqueta orienta os filhos sobre como se comportar na escola: os cuidados necessrios nas relaes com os colegas; a ateno que devem prestar aos lugares em que colocam a mochila, evitando o risco de encontrarem objetos indesejveis em seu interior etc. Ensina tambm que, embora ouam xingamentos, esse um comportamento reprovvel. A me avalia que a convivncia no meio escolar tem um lado positivo, na medida em que coloca os filhos em contato com a realidade:Outras crianas que estudam em outros colgios no tm contato nenhum; uma criana bobinha. Ela no sabe se defender, porque s convive com a criana do mesmo nvel dela, tudo do mesmo nvel. T certo que se eu pudesse iria colocar meu filho num colgio particular e tudo! Mas eu acho que seria a mesma coisa; num colgio particular tambm tem a mesma coisa: tem meninos agressivos... Aqui muito mais... Aqui ele aprende a se defender, aprende como o mundo l fora, porque t vendo que aqui tem de tudo, infelizmente... Porque isso a bom.

Henriqueta tem medo da violncia. Adverte o filho a respeitar as meninas, mas levanta um problema: a criana precisa aprender a se defender, e ela tem medo de o filho ficar meio bobo, retrado. Um dia, ouviu o menino falando palavres em casa. Ela o

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repreendeu: No. No pode falar isso. Deixa os seus colegas falar l. Acha bonito falar isso? S porque homem? Seu pai no fala palavro, voc devia ficar falando? Tem que estar sempre orientando. Sua estratgia de socializao aproxima-se de estratgias de famlias de camadas mdias e do modo escolar de socializao dessa classe social. No inflige castigos aos filhos, sejam fsicos ou de outra natureza. Prefere conversar, explicar, argumentar. E, quanto questo central dessa discusso, ela definitivamente no nutre a expectativa de que a escola socialize os filhos. Se entre as mes desse subgrupo ntido o temor pela socializao que pode ser promovida no recinto escolar junto aos/s filhos/as, sua condio socioeconmica no lhes permite outras sadas. Esperam que a escola cumpra minimamente as funes instrumentais que lhe cabe, ocupando-se, primordialmente, dos processos de aquisio de informaes e habilidades. Entretanto, no se podem fazer afirmaes semelhantes quando se trata das mes que moram em favela. Karla no parece to preocupada quanto as mes do subgrupo anterior em relao ao que se passa na escola, no se mantm atenta ao seu cotidiano, nem percebe os perigos que ali possam existir. Mas, se ela no teme a socializao escolar dos/as filhos/as, tambm no parece imputar tal responsabilidade escola. Afirma que a educao deve ser-lhes passada pelos pais, pois so muitos os/as alunos/as sob a responsabilidade da professora. Considera que a base : [...] ensinar a ver o ponto de vista, ensinar a ver onde que ele t certo, onde que ele t errado, respeitar os mais velhos, os coleguinhas. Procura servir de exemplo aos filhos: no fuma, no bebe, no tem companheiro. Sonia, em seu depoimento, d indcios de que alimenta algumas expectativas de que a escola contribua para a socializao das crianas. Afirma que a professora pode ajudar a disciplinar o aluno e acredita que a escola pode ensin-lo a se expressar (ressente-se por no saber se expressar corretamente). Em seu discurso, expectativas relativas ao ensino da lngua parecem articular dimenses identitrias e instrumentais. Nesse sentido, considera que a linguagem se associa ao comportamento, como, por exemplo: pedir licena para entrar em uma sala; pedir desculpas; entender termos que significam elogios etc. Esse aspecto foi evocado pelas professoras no Grupo Focal tambm como indicativo de carncia de socializao das crianas. Expectativas como essas foram igualmente encontradas entre as catadoras do lixo (PAIXO, 2005). Marisa, referindo-se educao dos filhos, proferiu um discurso genrico que no fornece informaes sobre suas expectativas em relao socializao na escola. No geral, parece acreditar que a escola sabe o que faz, apesar de ter tecido crticas quanto s restries impostas ao uso de bon e ao tamanho do short das crianas.

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3 Escola e estratgias instrumentaisHenriqueta, Rosrio e Ana Maria ressaltam mais a funo instrumental 6 da escola: a aquisio do saber e do diploma. Entre as demais, tais expectativas encontram-se associadas a dimenses identitrias. Karla espera que a escola ministre o contedo de modo mais eficaz, dissemine mais saber (dito de forma vaga) e cultive mais respeito. Para Sonia, a funo instrumental relaciona-se preparao da criana para que esta consiga um servio melhor, ser algum na vida, ter at patro, em funo do que: [...] necessrio ir at a oitava srie, saber se expressar melhor, aprender a ler, a fazer conta e a escrever. A depoente, falando sobre o saber, agrega dimenses mais identitrias, tais como ser gente honesta, falar melhor. Tambm, critica casos de agresso no espao escolar, um dos motivos que a levou a tirar o filho do Brizolo (o outro motivo foi a promoo automtica). Mas, o que consideram ser o saber? Seria preciso reunir mais elementos para compreendermos melhor a significao que atribuem ao termo. A distino entre os dois subgrupos quanto ao peso da escola como estratgia instrumental pode ser observada na avaliao de uma professora que foi objeto de consideraes extremamente contrastantes. Ela foi enfaticamente elogiada por algumas mes, que ressaltaram o carinho que ela tem pelos alunos e o fato de levar crianas para a casa dela, ministrando-lhes aulas especiais. J duas outras mes, referindo-se mesma pessoa, comentaram que ela era uma das piores professoras, alegando que fica aos beijinhos com as crianas e que as leva para brincar no ptio, em vez de realizar o trabalho pedaggico a ela atribudo: ensinar. Essas opinies absolutamente discordantes sobre a mesma professora mostram divergncias em relao ao que as mes esperam da escola. Enquanto para algumas a funo primordial desta associa-se ao saber, outras se mantm atentas maneira pela qual seus/suas filhos/as so acolhidos/as pela professora. Em suas expectativas, possvel se identificar correspondncia entre as dimenses instrumentais e as identitrias. Para algumas, a preocupao com a ordem moral - S quero ver meus filhos homens de bem, encaminhados, honestos... Coma do fruto do suor deles. - fala mais alto do que as expectativas instrumentais.

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Sobre estratgias identitrias e instrumentais, ver Zanten (1996) e Paixo (2007a).

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4 A responsabilidade da escola pela guarda7 das crianasSe nos itens anteriores as mes entrevistadas revelam perspectivas distintas sobre as funes da escola, h uma forte crtica a essa instituio com a qual todas as mes concordam. Trata-se de sua responsabilidade pela guarda das crianas no perodo em que elas esto, formalmente, sob sua tutela - o horrio escolar. As mes esperam que o estabelecimento de ensino, em primeiro lugar, garanta que seus/suas filhos/as permaneam em segurana durante o turno das aulas, em todo o espao escolar. obrigao da escola saber onde elas se encontram e dar conta do que lhes acontece nesse perodo. Entretanto, na avaliao das mes, a instituio no vem cumprindo esse papel, no se sente responsvel pela movimentao das crianas, sobretudo daquelas que se encontram no Ensino Fundamental e no Ensino Mdio - as maiores. H espaos na escola nos quais as crianas esto mais protegidas. So aqueles destinados aos menores. Ali h uma seguranazinha maior, informou uma delas. Os alunos da Educao Infantil circulam em um ambiente delimitado por grades e portes e so acompanhados pelas professoras em seus deslocamentos. Um dos motivos que levou Ana Maria a transferir a filha para uma escola particular foi justamente este: a escola no se sentir responsvel pela guarda de todas as crianas. Como j relatado, a direo no encontrou explicaes para o fato de a menina ter sado da escola sem que algum percebesse. Outras mes relataram casos que tambm ilustram esse descompromisso. Rosrio acompanha de perto a vida do filho na escola e o orienta sobre como evitar determinadas situaes potencialmente perigosas. Seus conselhos evidenciam possveis perigos a que a criana estaria exposta no perodo escolar e remetem para uma ausncia de responsabilidade da escola em relao integridade dos/as alunos/as: Ontem mesmo, estava falando com aquela me: Olha! Cuidado com as crianas no banheiro. No vai ao banheiro, evite ir ao banheiro. Henriqueta, a outra entrevistada que acompanha a entrevista, confirma: muito perigoso. As mes observam que no h inspetor de alunos, cuja ao poderia propiciar mais segurana s crianas no espao escolar. Reclamam de que crianas de diferentes idades ficam misturadas, o que consideram no ser bom.

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Uma primeira leitura das entrevistas sugeriu que essa dimenso poderia ser tratada no mbito do que foi e tem sido analisado como cuidado. Essa hiptese foi discutida por Marlia Pinto de Carvalho (1999), em cujo texto tal categoria foi utilizada. Nesta pesquisa, descartou-se a possibilidade de denominar aquelas preocupaes reveladas pelas mes como sendo da ordem do cuidado.

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O filho de Rosrio, por exemplo, convive no mesmo espao com alunos/ as mais velhos/as, e ela comentou, ainda, que soube do caso de uma menina de 12/13 anos que fora surpreendida tendo relaes sexuais nas dependncias da escola: no sabem se com o consentimento dela ou se se tratava de um estupro. Segundo Rosrio, uma professora da Escola X afirma que isso de fato aconteceu, acrescentando que o irmo da menina esteve na escola, armado, disposto a pegar o garoto. Em seguida, Rosrio volta a falar dos conselhos que d ao filho sobre o uso do banheiro da escola: Antes de sair de casa, eu falo pra ele: Bruno, vai ao banheiro; na escola, evite. Espera mame chegar; quando mame chegar, voc faz l na rua, pertinho da mame; mame te esconde num cantinho. Karla relata o caso em que o filho foi desrespeitado por um colega, que baixou o short do menino e ficou panhando (seria tocando?) o rgo sexual dele. Ela registrou a queixa no livro de ocorrncia e o ofensor foi transferido para outra turma, mas, neste ano (ano em que foi realizada a pesquisa), encontra-se na mesma turma do filho de Karla. Em virtude desse fato, ela acredita que a escola no considera as queixas registradas e no se preocupa com a administrao do livro de ocorrncia caso contrrio, o tal garoto no estaria estudando na mesma sala do filho. Como no tm condies de transferir os filhos para uma instituio de ensino que atenda melhor a suas preocupaes, as mes, diante da incapacidade da escola em promover a segurana e acompanhar os/as alunos/as nos deslocamentos por seu espao fsico, desenvolvem estratgias substitutivas. Elas tomam atitudes para resolver conflitos trazidos pelos/as filhos/as e que, em princpio, caberiam escola, atuando como verdadeiros agentes de defesa. Assim, houve relatos de situaes nas quais a agresso sofrida pelo/a filho/a gerou interveno direta do pai ou da me no espao escolar, como conversar com o colega agressor ou at mesmo amea-lo para impedir que a situao se repetisse. Em outra fala, a me entrou no ptio da escola e foi falar diretamente com o aluno que vinha tirando dinheiro de seu filho. Nesses casos, a me ou parentes prximos procuram, a seu modo, gerenciar situaes de conflito que se passam no interior da escola, interveno que provavelmente segue a lgica de socializao que orienta a educao das crianas no seio da famlia. surpreendente que tais interferncias no tenham sido objeto de observao das professoras no Grupo Focal, uma vez que elencaram vrios problemas enfrentados com as crianas e suas famlias. A interferncia para a resoluo de conflitos pode tambm se fazer via institucional. H pais e mes que tm familiaridade com o sistema de ensino e procuram acionar dispositivos previstos em regulamentaes. Assim, alguns solicitaram que o fato fosse registrado no livro de ocorrncias; outros reclamaram direo da escola, junto a rgos centrais da rede ou, ainda, a instncias superiores, como o Conselho Tutelar.

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