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ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS REVISTA BRASILEIRA DE publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional ISSN 1517-4115

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ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ISSN 1517-4115

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REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAISPublicação semestral da Anpur

Volume 12, número 1, maio de 2010

EDITOR RESPONSÁVEL Sarah Feldman (IAU-USP/São Carlos)

EDITOR ASSISTENTE Renato Cymbalista (FAU-USP)COMISSÃO EDITORIAL

Ana Fernandes (UFBA), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Luciana Correa do Lago (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP)CONSELHO EDITORIAL

Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ananya Roy (University of California, Berkeley), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile), Carlos Antonio Brandão

(Unicamp), Clara Irazabal (Columbia University, Nova York), Emilio Pradilla Cobos (Universidad Autonoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, México), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG), Henri Acselrad (UFRJ),

João Rovati (UFRGS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA),

Paul Claval (Université Paris-IV, Sorbonne), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Victor Ramiro Fernández (Universidad Nacional del Litoral, Argentina), Wrana Maria Panizzi (UFRGS)

COLABORADORESTelma Correia (USP), Jupira Gomes de Mendonça (UFMG), Cibele Rizek (USP), Eloisa Petti (UFBA), Angelo Salvador

Filardo Jr. (USP), Henri Acselrad (UFRJ), Geraldo Magela Costa (UFMG), Silvana Zioni (UFABC), Eduardo Vasconcelos (ANTP), Cristina Meneguello (Unicamp), Peter Kevin Spink (FGV-SP), Marta Ferreira dos Santos Farah (FGV-SP), Frederico de Holanda (UnB),

Margareth da Silva Pereira (UFRJ), Norma Lacerda (UFPE), Carolina Pozzi Castro (UFSCar), Joana Mello (Escola da Cidade), Juliana Gonzaga Jayme (PUC-MG), Angela Penalva dos Santos (UERJ), Flavio Villaça (USP), Silvio Mendes Zancheti (UFPE)

SECRETARIARaquel Cerqueira

PROJETO GRÁFICO João Baptista da Costa Aguiar

CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO

Ana Paula Gomes, Mônica Santos, Pedro SilvaIMPRESSÃO CTP

Gráfica Fabracor

Indexada na Library of Congress (EUA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.12, n.1, 2010. – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsável Sarah Feldman : A Associação, 2010. v. Semestral. ISSN 1517-4115 O nº 1 foi publicado em maio de 1999.

1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Feldman, Sarah

711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA 711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-098

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S U M Á R I O

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ARTIGOS

9 A Avaliação de Políticas Públicas Como Factor de Aprendizagem, Inovação Institu-cional e Cidadania — O Caso da Política de Ordenamento do Território em Portugal – João Ferrão e João Mourato

29 Transformações da Metrópole Con-temporânea — Novas Dinâmicas Espaciais, Esfera da Vida Pública e Sistema de Espaços Livres – Denio M. Benfatti, Eugenio F. Queiroga e Jonathas M. P. Silva

45 Preservação Ambiental no Contexto Urbano — Cidade e Natureza na Ilha de Santa Catarina – Almir Francisco Reis

63 Interações Espaciais, Transporte Públi-co e Estruturação do Espaço Urbano – Már-cio Rogério Silveira e Rodrigo Giraldi Cocco

83 A Importância da Macrometrópole Paulista como Escala de Planejamento de

Infraestruturas de Circulação e de Trans-porte – Marcelo Sacenco Asquino

99 Panorama da Municipalização da Políti-ca Habitacional em Pequenos Municípios de Minas Gerais – Aline Werneck Barbosa de Carva-lho, Ana Carla de Almeida Fagundes, Riane Ricceli do Carmo e Geraldo Browne Ribeiro Filho

119 Prestação dos Serviços de Água e Esgo-tos em Sete Lagoas-MG — “O Saae é Nosso” ou “Que Venha a Copasa”? – Tarcisio T. Nunes Jr., Léo Heller, Priscila Luiza da Silva, Sonaly Rezende e Antônio Leite Alves Radicchi

RE SE NHAS

143 De Nova Lisboa a Brasília. A invenção de uma ca-pital (séculos XIX e XX), de Laurent Vidal – por Carlos Roberto Monteiro de Andrade

146 Fordlândia. Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva, de Greg Grandin – por Fania Fridman

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Apoio

associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional – anpur

Gestão 2009-2011presidente

Leila Christina Dias (PPGG/UFSC)secretário executivo

Elson Manoel Pereira (PPGG/UFSC)secretária adjunta

Maria Inês Sugai (PGAU-Cidade/UFSC) diretores

Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ)Lucia Cony Faria Cidade (POSGEA/UnB)

Maria Lucia Refinetti Martins (PPGAU-FAU/USP)Silvio José de Lima Figueiredo (NAEA/UFPA)

conselho fiscal (titulares)Eloisa Petti Pinheiro (PPGAU/UFBA)

Ester Limonad (POSGEO/UFF)Rodrigo Ferreira Simões (CEDEPLAR/UFMG)

conselho fiscal (suplentes)Celia Ferraz de Souza (PROPUR/UFRGS)

Elis de Araújo Miranda (Mestrado em Planejamento Regional e Gestão de Cidades/UCAM-Campos)

Iná Elias de Castro (PPGG/UFRJ)

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E d i t o r i a lEsta edição da Revista Brasileira de Estados Urbanos e Regionais tem como eixo

temático permanências e transformações de políticas públicas, do ponto de vista de suas concepções, de seus marcos legais e de sua inserção institucional, no contexto de mudanças de paradigmas da política urbana e regional e da organização do território nas últimas três décadas.

O texto de abertura A avaliação de políticas públicas como factor de aprendizagem, inovação institucional e cidadania: o caso da política de ordenamento do território em Portugal, dos pesquisadores da Universidade de Lisboa, Ferrão e Mourato, aborda um aspecto que não tem recebido a devida atenção no campo dos estudos urbanos e regio-nais no Brasil – a institucionalização da avaliação das políticas públicas. Os autores ana-lisam a trajetória da avaliação do ordenamento do território em Portugal, mostrando como esta foi sendo moldada por contextos políticos e institucionais, paradigmas sobre o papel do Estado e das políticas públicas, tensões entre comunidades profissionais e instituições com culturas e interesses distintos, relações de poder entre atores com ca-pacidades, conhecimentos e valores desiguais. Na análise deste processo pleno de con-tradições, destacam a importância da avaliação para ampliar a ação pública para além de um conjunto de procedimentos legais, técnicos e administrativos e, principalmente, como fonte de conhecimento, aprendizagem, inovação institucional e cidadania.

Dois textos abordam a questão da reconfiguração, planejamento e gestão dos espaços livres públicos. Em Transformações da metrópole contemporânea: novas dinâmi-cas espaciais, esfera da vida pública e sistema de espaços livres, Benfatti, Queiroga e Silva problematizam a constituição dos sistemas de espaços livres, associando transformações na esfera da vida pública a novas formas de expansão metropolitana. Diante de novas condições socioespaciais engendradas pelo movimento das pessoas e de modificações na vida pública na escala da megalópole, os sistemas de espaços livres públicos não devem, segundo os autores, se ater às predeterminações legais sobre espaços e equi-pamentos de uso público, mas incorporar lugares que dão suporte à vida cotidiana: circulação, transbordo, comércio, trabalho, consumo, lazer e esporte, considerando a potencialidade e a qualidade de convívio público de todos esses espaços.

Em Preservação ambiental no contexto urbano: cidade e natureza na Ilha de Santa Catarina, Reis faz uma leitura da estrutura ambiental da Ilha de Santa Catarina e do processo de ocupação do território. Na perspectiva de uma cidade articulada por uma rede de espaços livres públicos densa e carregada de urbanidade, destaca o papel das Áreas de Preservação Permanente (APP): em termos da paisagem urbana, são elementos fundamentais da identidade de Florianópolis, se interpondo entre os diversos núcleos urbanos; em termos ambientais, constituem corredor ecológico, unindo diferentes ecossistemas. Aponta a necessidade de repensar a interface entre áreas urbanizadas e APPs para além da aplicação das leis ambientais, incorporando diretrizes globais e alternativas de desenho local.

Dois textos discutem diferentes aspectos do planejamento dos transportes e suas relações com a estrutura urbana e regional. Em Interações espaciais, transporte público e estruturação do espaço urbano, Silveira e Cocco analisam os serviços de transporte pú-

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blico no Brasil, a partir da revisão do conceito de interações espaciais. Mostram como de uma estrutura de produção “artesanal” evoluem para uma modernização e concen-tração associadas ao fomento estatal à indústria de material rodoviário, que resulta na organização de poderosos grupos econômicos e holdings de transporte. A profunda desigualdade de acessibilidade no Brasil e suas repercussões na valorização imobiliária são problematizadas a partir dos monopólios espaciais de pequenas e grandes empresas, dos modelos de concessão arcaicos e da permanência da visão do transporte coletivo como investimento “improdutivo”.

Em A importância da macrometrópole paulista como escala de planejamento de in-fraestruturas de circulação e de transporte, Asquino discute o papel das infraestruturas de circulação e de transportes na estruturação da metrópole de São Paulo e de seu espaço econômico expandido. Através da análise de planos e projetos desenvolvidos em dife-rentes esferas de governo para diferentes modos de transporte, mostra o reconhecimen-to da escala macrometropolitana no planejamento de infraestruturas regionais, a arti-culação que realizam extrapolando os limites administrativos, e como contribuem para a instalação de novos pólos e modificam a dinâmica dos fluxos no território expandido.

Dois textos avaliam políticas setoriais em cidades mineiras. A municipalização da política habitacional em municípios com menos de 20 mil habitantes, a partir da aprovação da Política Nacional de Habitação, é discutida em Panorama da municipa-lização da política habitacional em pequenos municípios de Minas Gerais por Carvalho, Fagundes, Carmo e Browne. Os autores mostram que, para atender ao modelo des-centralizador proposto pelo governo federal, os municípios se estruturam lentamente para a criação de instrumentos de gestão da política habitacional, e na implementação destes instrumentos enfrentam problemas como a centralização do processo de tomada de decisões, a falta de um setor específico e de profissionais habilitados para atuar na área de habitação.

Em Prestação dos serviços de água e esgotos em Sete Lagoas (MG): “o SAAE é nosso” ou “que venha a Copasa”?, Nunes Jr., Heller, da Silva, Rezende e Radicchi analisam o processo político de decisão municipal sobre o modelo de gestão dos serviços de sanea-mento básico. Revelam as motivações e os interesses nos embates entre a possibilidade de concessão dos serviços de água e esgotos para a esfera estadual e a sua manutenção no executivo municipal. Os autores mostram como a falta de posicionamento explícito dos representantes do município e a divisão da população entre o desejo da melhoria dos serviços e o receio de aumento das tarifas e do desemprego levaram ao encerramen-to do debate e à continuidade do órgão municipal.

Os dois livros resenhados nesta edição têm em comum o olhar de pesquisadores estrangeiros sobre cidades novas brasileiras, Brasília e Fordlândia. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX e XX), do pesquisador francês Laurent Vidal, que reconstrói o percurso de século e meio – de 1810 a 1960 –, desde as primei-ras propostas até a construção de Brasília, é comentado por Carlos Roberto Monteiro de Andrade. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva, do historiador e professor da Universidade de Nova York Greg Grandin, uma narrativa da saga da Ford Motor Company na Amazônia brasileira desde o final da década de 1920 até meados dos anos 1940, é comentado por Fania Fridman.

Sarah Feldman Edi tora res pon sá vel

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Artigos

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A AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO FACTOR DE APRENDIZAGEM, INOVAÇÃO

INSTITUCIONAL E CIDADANIA O Caso da Política de Ordenamento

do Território em Portugal1

J o ã o F e r r ã oJ o ã o M o u r a t o

R e s u m o A avaliação de políticas públicas em Portugal tem cerca de duas décadas e nasceu por imposição externa (sobretudo financiamento e adopção de leis da União Europeia/UE). Não sendo o ordenamento do território uma competência formal da UE, a avaliação teve, neste caso, um início particular. Entretanto, verificou-se o sucessivo alargamento das suas componentes: avaliação de conformidade, avaliação preventiva de impactes, avaliação de dinâmicas territoriais, e avaliação dos processos e das práticas de ordenamento do território. Esta evolução traduz a paradoxal crescente “europeização” de uma política fora das competên-cias da UE, mas também a emergência de novos paradigmas de avaliação e de ordenamento do território. Este artigo procura, a partir do caso português, contribuir para o debate sobre o papel da avaliação de políticas públicas como factor de mudança cultural das organizações, das comunidades profissionais e dos cidadãos em um contexto de crescente contestação da visão moderna e racionalista de Estado.

P a l a v r a s - c h a v e Avaliação de políticas públicas; ordenamento do território; aprendizagem; inovação institucional; mudança cultural; Portugal.

IN TRO DU ÇÃO

A avaliação de políticas públicas em Portugal tem apenas cerca de duas décadas de existência. Impulsionada inicialmente por requisitos de acesso a programas com financia-mento internacional e sobretudo da União Europeia, a avaliação nasce e desenvolve-se fortemente condicionada por factores externos de natureza coerciva: regulamentos de acesso a financiamento (o poder do dinheiro) e directivas legais (o poder da lei).

Contudo, o ordenamento do território não é uma competência formal da União Eu-ropeia. Em um continente em crescente integração política, mas onde, paradoxalmente, a questão da delimitação das fronteiras nacionais permanece um assunto político sensível, o território é visto como um dos últimos redutos da soberania dos diversos Estados- -membros. Assim, e em nome do princípio da subsidiariedade, evitam-se decisões que digam directamente respeito ao modo como os vários Estados-membros devem ocupar e organizar os seus territórios. Compreende-se, por isso, que a avaliação no domínio do or-denamento do território tenha, em países sem uma tradição de cultura nesta matéria, uma

1 Este artigo é uma adapta-ção parcial do texto Ferrão, J. e Mourato, J. “Evaluation and spatial planning in Por-tugal: from legal requirement to source of policy-learning and institutional innovation”, J. Farinós, (Ed. e Coord.). De la evaluación ambiental estratégica a la evaluación de impacto territorial. Valen-cia: Universidad de Valencia, 2011.

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A A V A L I A Ç Ã O D E P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S

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origem relativamente tardia e singular face a políticas públicas de origem Comunitária,2 isto é, definidas no âmbito da União Europeia.

No caso de Portugal, a avaliação no domínio do ordenamento do território foi em um primeiro momento influenciada por fontes externas à União Europeia. No entanto, a crescente “europeização” informal dos processos e práticas nacionais de ordenamento do território e a poderosa influência das políticas ambiental e de coesão (desenvolvimento regional) da União Europeia terão uma interferência crescente na sua posterior evolução.

Este texto analisa a trajectória de desenvolvimento da avaliação no domínio do ordenamento do território em Portugal, procurando identificar as principais alterações ocorridas desde a sua consagração legislativa (1998), os contextos institucionais que condicionaram essas alterações, as relações de poder existentes, as tensões ocorridas, as perspectivas que se colocam actualmente e, por último, as ilações a retirar deste processo de evolução em termos de mudança cultural. O texto está organizado em três partes.

Na primeira parte, de natureza enquadradora, relembramos sumariamente as origens da avaliação de políticas públicas em Portugal.

Na segunda parte, apresentamos o historial da avaliação no domínio específico do ordenamento do território, reconstituindo e contextualizando a evolução ocorrida desde a sua imposição legal como exercício de conformidade entre objectivos e resultados até ao entendimento recente dos processos de avaliação como fonte de conhecimento, aprendi-zagem, inovação institucional e cidadania, e identificamos os principais desafios e tensões que se colocam actualmente.

Na terceira parte, sublinhamos o que nos parece ser a principal ilação a retirar da análise efectuada anteriormente: a necessidade de conferir mais ambição e maior centra-lidade aos processos de avaliação, a partir de um enfoque que vá para além dos estímulos coercivos de natureza legal ou regulamentar, valorizando os processos e as práticas de aprendizagem, de inovação institucional e de escrutínio público; em suma, o papel da avaliação como factor de mudança cultural.

AS ORIGENS DA AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM PORTUGAL

A avaliação de iniciativas públicas ou de intervenções privadas com impacte relevante do ponto de vista do interesse público tem uma história curta em Portugal. Sem uma pro-dução relevante no campo das teorias da avaliação, o desenvolvimento inicial de exercícios de avaliação em Portugal resultou sobretudo de imposições de programas cofinanciados por fundos da União Europeia, e centrou-se em aspectos metodológicos associados à aplicação de procedimentos então novos no contexto português. As publicações pioneiras sobre avaliação são do início dos anos 90 do século passado.

O arranque deste período foi simbolicamente marcado por um documento preparado por dois especialistas estrangeiros (Quévit e Marquez, 1990) sobre a avaliação ex-ante do impacte do primeiro Quadro Comunitário de Apoio3 com aplicação em Portugal (1989-93),4 a pedido do então Ministro do Planeamento e da Administração do Território.5

As primeiras publicações de autores nacionais incidem sobre programas específicos: Programa ILE – Iniciativas Locais de Emprego (Baptista e Henriques, 1992), Iniciativa Comunitária Horizon (Pegado et al, 1996), Profap – Programa de Formação da Admi-nistração Pública (Pedroso et al, 1994), etc.

2 Ao longo deste texto, a palava “comunitário “ (iniciati-vas comunitárias, programas comunitários, etc.) refere-se a processos de decisão to-mados por órgãos da União Europeia e, por isso, com aplicação em todos os Esta-dos-membros. Não deve, por essa razão, ser confundida com o uso mais habitual de “comunitário” como algo relacionado com comunida-des locais.

3 Contrato plurianual es-tabelecido entre a União Europeia e cada um dos Estados-membros em que se definem, para o período em causa, as regras a que de-ve obedecer a utilização de apoios financeiros de origem Comunitária.

4 Portugal integrou, con-juntamente com a Espanha, a então designada Comu-nidade Económica Europeia em 1986 (apenas a partir de 1992 se utiliza a actual designação União Europeia). 5 Luís Valente de Oliveira, ministro em diversos Gover-nos e responsável pelo Mi-nistério do Planeamento e da Administração do Território entre 1985 e 1995.

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A década de 90 do século passado representa, de facto, o período de nascimen-to da avaliação de políticas públicas como domínio profissional e científico próprio em Portugal. Esta nova situação justifica a publicação dos primeiros textos que pro-curavam sintetizar e transpor para a realidade portuguesa os debates e experiências desenvolvidos em outros países, quer em termos de metodologias (Rodrigues, 1993; Capucha et al, 1996; Perestrelo e Caldas, 1996), quer em termos de aplicações a campos específicos de intervenção, primeiro na área do emprego (Pedroso, 1992) e da educação (Estrela e Nóvoa, Org., 1992), e depois nas mais diversas áreas: reabilitação urbana (Costa e Guerreiro, 1993), intervenção social (Monteiro, 1996), política re-gional (Ferrão, 1996), etc. Significativo ainda é o facto de o título da edição especial de 1996 da revista Sociologia. Problemas e Práticas dedicada ao tema da avaliação ser “Metodologias de Avaliação”.

É também no final dessa década (1998) que o Instituto Nacional da Administra-ção, a entidade nacional responsável pela formação de dirigentes públicos e técnicos da administração, organiza o primeiro encontro sobre avaliação na administração pública (Gonçalves, 2010, p.355).

O panorama da avaliação de políticas públicas em Portugal alterou-se, entretanto, de forma considerável, sobretudo a partir do início da segunda metade da primeira década deste século. Multiplicaram-se os exercícios de avaliação, diversificaram-se os objectivos visados, os domínios de aplicação e as metodologias utilizadas, modificou-se a própria natureza dos processos de avaliação. Acumularam-se, entretanto, competên-cias técnicas e constituíram-se comunidades de prática e profissionais específicas, em geral organizadas por domínios de intervenção (ambiente, educação, formação, questões sociais, saúde, desenvolvimento regional, etc.) ou em torno de instrumentos particulares (avaliações de impacte ambiental, por exemplo).

O website do Observatório do QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacio-nal),6 entidade responsável pelo acompanhamento da aplicação dos fundos estruturais Comunitários7 em Portugal para o período 2007-2013,8 contém estudos, guias e outros documentos de avaliação que, embora limitados ao seu domínio de intervenção, reve-lam bem o caminho percorrido em apenas duas décadas.

Ainda que com desigualdades relevantes entre distintos domínios de intervenção, e debatendo-se com resistências de natureza diversa, foram-se multiplicando os exercícios de avaliação de políticas públicas. Mais importante do que isso, a avaliação foi deixando de corresponder a uma mera resposta a imposições externas (sobretudo da União Europeia), consolidando-se gradualmente como uma componente de uma nova cultura organizacio-nal por parte das entidades da administração pública e, mesmo, como uma reivindicação de cidadãos mais exigentes mas também menos confiantes nas instituições públicas. A um nível mais genérico, esta evolução é acompanhada pela crítica crescente às visões positi-vistas modernas de avaliação inicialmente prevalecentes e pela consequente emergência de visões mais processuais, de natureza construtivista.

A AVALIAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO

A análise dos processos de avaliação no domínio do ordenamento do território em Portugal deve ser efectuada à luz de duas narrativas que apenas recentemente se cruzam

6 www.observatorio.pt

7 Existem quatro tipos de fundos estruturais: FE-DER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional; FSE – Fundo Social Europeu (emprego); FEOGA – Fundo Europeu de Orientação e Ga-rantia Agrícola (agricultura e desenvolvimento rural); e IFOP – Instrumento Financei-ro de Orientação da Pesca.

8 Este Observatório foi pre-cedido por um outro, criado em 2001 para acompanhar o Quadro Comunitário de Apoio III (2000-2006).

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de forma explícita: a história do ordenamento do território enquanto política pública e a história da avaliação de políticas públicas.

A política de ordenamento do território enquanto política pública autónoma nasce formalmente em 1998, com a aprovação da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (LBPOTU).9 Mas essa política tem três filiações históricas (Ferrão, 2010b): planeamento urbanístico, planeamento regional, e planeamento biofí-sico. Estas três filiações, que antecedem o ordenamento do território enquanto política pública autónoma, mas que com ela coexistem ainda hoje com graus distintos de ambi-guidade, sobreposição e tensão, continuam a constituir focos de influência dinâmicos, no contexto mais genérico das políticas públicas de base ou com incidência territorial e dos respectivos sistemas e processos de avaliação (Figura 1).

Figura1 – A Avaliação da politica de ordenamento do território em Portugal: contextos e instrumentos-chave

Por outro lado, a avaliação da política de ordenamento do território foi-se inte-grando em um universo mais amplo, de avaliação territorial, que inclui não só a política pública de ordenamento do território, mas também a avaliação de estratégias e políticas de desenvolvimento territorial e a avaliação de políticas sectoriais com forte impacte territorial.

9 Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto.

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Este universo mais amplo transcende o domínio específico do ordenamento do território, constituindo-se um contínuo, do ponto de vista de finalidades, abordagens e metodologias, entre a avaliação da política de ordenamento do território e a avaliação de outras políticas com expressão territorial. Essa continuidade é evidente em avaliações re-centes, como o Territorial Review sobre Portugal efectuado pela OCDE (2008) ou a análise do conjunto de políticas públicas com impacte territorial, inicialmente preparada como contributo nacional para o referido documento da OCDE, mas posteriormente revista e actualizada (Figueiredo, Coord., 2010).

Os comentários que se seguem referem-se à história da avaliação do ordenamento do território enquanto política pública autónoma iniciada em 1998, com a aprovação da LBPOTU, ou seja, no final da década em que a avaliação se afirmou em Portugal nos mais diversos domínios de acção pública.

Não sendo o ordenamento do território uma competência formal da União Euro-peia, percebe-se que o início da avaliação neste domínio tenha sido algo tardio em relação a políticas directamente expostas à influência da União Europeia, e que os primeiros passos dados nesse sentido não tenham decorrido directamente de imposições, legais ou regulamentares, de origem Comunitária. Na verdade, o modo como a dimensão de avaliação é consagrada na LBPOTU reflecte, nas palavras de um dos responsáveis técnicos pela sua preparação, a influência não de entidades Comunitárias, mas, antes, da OCDE (Direcção de Governança Pública e do Desenvolvimento Territorial) e da Lei Federal do Ordenamento do Território da Confederação Helvética de 1979 (Gonçalves, 2010).

Face a outros domínios das políticas públicas, a história da avaliação em ordenamen-to do território apresenta, por isso, um início singular. Mas rapidamente se “europeizou”, conforme se refere na Secção 2.1.

A trajectória de evolução da avaliação em ordenamento do território pode ser recons-tituída a partir da forma como, por estímulos externos e internos, ou como consequência da sua praxis e da reestruturação dos paradigmas de avaliação e de ordenamento do terri-tório, a avaliação foi sucessivamente alargando o seu âmbito – conformidade (resultados vs objectivos); prevenção de impactes (análise de impactes potencialmente negativos); dinâmicas territoriais (monitorização sistemática de dinâmicas e tendências territoriais); e processos e práticas (planeamento participativo, colaborativo e deliberativo; práticas institucionais e das comunidades profissionais) – e, correlativamente, os seus objectivos. Analisemos, ainda que de forma esquemática, essa evolução, os factores que a influencia-ram e os instrumentos-chave utilizados para a sua concretização (Figura 2).

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Dimensões de avaliação Contexto Alvo principal Objectivos principais

Conformidade técnica e legal

. Imposição legal . Plano . Melhor execução do plano. Melhor coordenação verti-cal e horizontal de planos. Fundamentação das altera-ções aos planos

Prevenção de impactes

. Imposição legal . Potenciais impactes do plano/programa

. Definição de medidas pre-ventivas e acções correctivas ou minimizadoras. Melhor coordenação entre instrumentos das políticas de ambiente e de ordena-mento do território

Dinâmicas e tendências territoriais

. Imposição legal

. Necessidade de maior resiliência em contextos de crescente complexidade, diversidade e imprevisibilidade. Maior escrutínio público

. Territórios em mutação

. Legitimação das opções tomadas. Apoio à decisão (mais informação, melhor conhecimento). Correcção de trajectórias de evolução. Prestação pública de informação (participação informada). Prestação de contas (trans-parência, responsabilização)

Processos e práticas

. Alteração dos paradigmas de avaliação e de ordenamento do território. Emulação / “europeização”

. Processos de participação, deliberação e governança. Práticas institucionais e das comunidades profissionais

. Aprendizagem

. Capacitação e inovação institucional. Democratização dos processos de decisão e reforço de cidadania. Empoderamento das co-munidades e inovação social

Dos Factores Fundadores Às Dinâmicas Recentes

O Referencial Normativo de Base da Política de Ordenamento do Território: A Avaliação de Conformidade

Em 1998 é aprovada a Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (LBPOTU), que estabelece um sistema coerente de gestão territorial constitu-ído por instrumentos (essencialmente planos) de âmbito nacional,10 regional11 e munici-pal.12 Aí se consagra, pela primeira vez e de forma inovadora no contexto europeu, o dever de avaliação e acompanhamento da política de ordenamento do território.

De acordo com a LBPOTU (Artigo 28º), a avaliação da política de ordenamento do território deve se basear em “Relatórios sobre o Estado do Ordenamento do Território” (REOT), a apresentar de dois em dois anos pelo Governo à Assembleia da República,

. Visão moderna de estado

. Visão positivista de ava-liação. Ordenamento do território como regulação do uso do solo

. Visão neo moderna de estado. Visão construtivista de avaliação. Ordenamento do território como governança e desen-volvimento territorial

Figura 2 – Quadro síntese da evolução da avaliação no domínio do ordenamento do território em Portugal

10 Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território e Planos Secto-riais.

11 Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT): 5 na parte continen-tal do país e 1 em cada uma das Regiões Autónomas, isto é, os arquipélagos dos Aço-res e da Madeira.

12 Planos Municipais de Ordenamento do Território (PMOT): Planos Directores Municipais (nível municipal), Planos de Urbanização e Pla-nos de Pormenor.

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pelas Juntas Regionais às respectivas Assembleias Regionais13 e pelas Câmaras Municipais às respectivas Assembleias Municipais, incidindo sobre a execução dos instrumentos de gestão territorial da sua competência. Trata-se, no essencial, de um exercício de confor-midade entre objectivos e resultados, e de coerência entre políticas e planos de natureza e âmbitos distintos (coordenação vertical, entre planos de ordenamento do território de nível nacional, regional e local; coordenação horizontal, entre planos de ordenamento do território e planos sectoriais com relevante impacte territorial).

No que se refere ao acompanhamento da política de ordenamento do território, a LBPOTU (Artigo 29º) prevê a criação de dois dispositivos que virão a ser consagrados, no ano seguinte, como um Observatório e o SNIT – Sistema Nacional de Informação Territorial (informação sobre os instrumentos de gestão territorial). De facto, é o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (1999)14 que vai regulamentar as finali-dades e o funcionamento de ambos os dispositivos e atribuir-lhes um papel essencial na fundamentação técnica de propostas de alteração ou revisão dos diversos instrumentos de gestão territorial.

Embora definida de forma mais pormenorizada, a avaliação continua a representar, no essencial, uma análise de conformidade que visa garantir a concretização dos fins pros-seguidos por cada instrumento de gestão territorial através da melhoria da sua execução (relação objectivos vs resultados), da garantia de uma boa coordenação com outros instru-mentos de política, ou da introdução de modificações, caso tenham, entretanto, ocorrido alterações económicas, sociais, culturais ou ambientais significativas.

A avaliação é, portanto, introduzida no domínio do ordenamento do território como uma ferramenta de gestão, visando melhorar a qualidade e eficiência dos instrumentos de gestão territorial (basicamente planos). Nesta óptica, o foco da avaliação é, naturalmente, o instrumento (o plano), não o território sobre o qual incide, os procedimentos utiliza-dos, as pessoas e comunidades afectadas, ou as instituições envolvidas na sua elaboração, execução e monitorização.

Pinho (2010) e Oliveira e Pinho (2009, 2010a) integram esta perspectiva no quadro mais geral das abordagens racionalistas de planeamento, centradas na preparação dos pla-nos e em aspectos operacionais da sua implementação. Na verdade, esta perspectiva traduz o paradigma moderno técnico-racional, administrativo e positivista então dominante não apenas no campo do ordenamento do território, mas genericamente no domínio das po-líticas públicas e da sua avaliação (Ferrão, 2010a).

A Poderosa Influência da Política Ambiental: A Avaliação Preventiva de Impactes

O ordenamento do território não corresponde a uma competência formal da União Europeia. Apesar disso, diversos autores têm reconhecido a crescente convergência de concepções e práticas neste domínio em países com culturas institucionais e políticas dis-tintas (Dühr, Stead e Zonnevel, 2007; Farinós Dasí (Ed.), 2007; Adams, 2008; Böhme e Waterhout, 2008; Waterhout, Mourato e Böhme, 2009; Ferrão, 2010), embora esses mesmos autores questionem a profundidade e durabilidade de alguns dos processos de relativa harmonização em curso.

Contudo, no domínio do ambiente existe uma política Comunitária. A exposição a decisões externas aos governos nacionais, tomadas no âmbito da União Europeia, é, portanto, mais intensa, e os seus efeitos fazem-se sentir mais rapidamente, nomeadamente por via coerciva, através da obrigatoriedade de transposição de Directivas Comunitárias.15

13 Não tendo sido criadas as Juntas Regionais e as Assembleias Regionais, pro-postas num contexto em que se previa o estabelecimento de regiões administrativas em Portugal continental, solução entretanto rejeitada por referendo em 1998, es-tas entidades foram substitu-ídas, respectivamente, pelas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional e pelos Conselhos da Re-gião.

14 Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de Setembro.

15 As Directivas Comu-nitárias são leis da União Europeia que devem ser transpostas para o direito nacional dos Estados-mem-bros dentro de um prazo limite preestabelecido.

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Foi precisamente nesse quadro que a avaliação como análise preventiva de impactes potencialmente negativos ganhou uma particular relevância em Portugal.

Em 2000 foi aprovado o Regime Jurídico da Avaliação do Impacte Ambiental de projectos públicos e privados susceptíveis de produzirem efeitos significativos no ambien-te,16 transpondo para o ordenamento jurídico nacional uma Directiva Comunitária de 1997.17 No preâmbulo do Decreto-Lei que institui este regime jurídico, refere-se que a avaliação de impacte ambiental (AIA) é um instrumento preventivo fundamental da po-lítica do ambiente e do ordenamento do território. A óptica adoptada é a da avaliação de potenciais impactes, com o objectivo de evitar, reduzir ou compensar impactes negativos. O conteúdo dos Estudos de Impacte Ambiental (EIA) é variável, mas inclui sempre as-pectos do domínio do ordenamento do território. O referido diploma define o conteúdo mínimo dos EIA, que contém necessariamente aspectos relacionados com a localização do projecto em avaliação, bem como a “descrição do estado do local” no que se refere a matérias como a população, a paisagem, o solo, a fauna e a flora.

Em 2007, e também como consequência da transposição de uma Directiva Comu-nitária,18 a avaliação de impacte ambiental de projectos é alargada a planos e programas, através da aprovação de um novo regime jurídico de avaliação ambiental.19 Todos os pla-nos e programas de ordenamento do território passam a se sujeitar a este tipo de avaliação ambiental, de natureza mais estratégica (AAE). Em nome de uma maior coerência e racio-nalidade da acção pública, a elaboração e aprovação desses planos e programas deverão, a partir de agora, tomar em consideração os requisitos ambientais resultantes do processo de avaliação ambiental estratégica. Às entidades responsáveis pela elaboração de planos e pro-gramas caberá garantir a efectiva incorporação das medidas decorrentes dessa avaliação.

A entidade responsável pelo plano ou programa tem a liberdade de determinar o âm-bito e conteúdo da AAE: obrigatoriedade, tipo de informação que deve ser analisada, grau de pormenor, etc. Os elementos produzidos no âmbito da AAE de um plano ou programa devem ser tomados em conta na AIA de projectos localizados nas áreas de intervenção desses planos ou programas. Este procedimento visa garantir maior coerência entre planos ou programas e projectos, e também simplificar os processos de AIA de projectos que se encontrem nestas condições. No entanto, os resultados da AAE não são vinculativos. Em caso de divergência, a entidade pública competente deverá justificar as razões que levaram a que a AIA de um determinado projecto não tenha levado em consideração as orientações da AAE do plano ou programa em vigor na área em que esse projecto se localiza.

A obrigatoriedade de avaliação preventiva de impactes ambientais de projectos, primeiro, e de planos e programas, depois, influenciou inevitavelmente o exercício de avaliação no domínio do ordenamento do território.

Tal como na situação anterior (avaliação de conformidade), foram factores de natureza normativa que justificaram a evolução ocorrida. Mas, ao contrário da situação anterior, o foco da avaliação são agora os potenciais impactes dos planos ou programas, não os planos ou programas em si. A avaliação continua a ser basicamente encarada como um instrumento de gestão, mas numa perspectiva preventiva e não de execução. A avaliação em ordenamento do território torna-se mais estratégica, mas essa natureza estratégica está enviesada a favor da componente de sustentabilidade ambiental.

Três anos depois da transposição da referida Directiva Comunitária, a Avaliação Ambiental Estratégica foi já aplicada a diversos tipos de planos de ordenamento do terri-tório: Planos Regionais, Planos Municipais e Planos Especiais (Planos de Áreas Protegidas e Planos de Albufeira, por exemplo).

16 Decreto-Lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, Artigo 1º; a avaliação de impactes ambientais de projectos regia-se anteriormente pelo Decreto-Lei n.º 186/90, de 6 de Junho.

17 Directiva n.º 97/11/CE, do Conselho, de 3 de Março de 1997.

18 Directiva n.º 2001/42/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho.

19 Decreto-Lei 232/2007, de 15 de Junho.

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Em um levantamento realizado pela DGOTDU (2010) incidindo exclusivamente so-bre os planos municipais de ordenamento do território do continente aprovados, revistos ou alterados no período compreendido entre 24 de Setembro de 2007 (data de entrada em vigor da nova legislação) e 21 de Abril de 2010, foram contabilizados 40 casos de ela-boração de Avaliações Ambientais Estratégicas. Soares (2008) analisou em profundidade os benefícios do Relatório de Avaliação Ambiental Estratégica que acompanhou a revisão do Plano Director de um município suburbano da Área Metropolitana de Lisboa (Vila Franca de Xira), e Ferreira (2009) procedeu a uma análise comparada de 25 casos de aplicação da Avaliação Ambiental Estratégica em âmbito municipal: 14 revisões de Planos Directores Municipais, 6 novos Planos de Urbanização e 5 novos Planos de Pormenor. É, no entanto, ainda cedo para uma apreciação rigorosa dos efeitos deste novo requisito do ponto de vista do ordenamento do território.

Independentemente dos benefícios resultantes da elaboração de relatórios de Ava-liação Ambiental Estratégica em relação a Planos de Ordenamento do Território em elaboração, alteração ou revisão, vale a pena sublinhar o modo como esta evolução pôs em confronto instituições e comunidades profissionais com culturas e referenciais jurídicos e técnicos distintos, uns do domínio do ambiente e outros da área do ordenamento do terri-tório. A preparação conjunta de um Guia de Avaliação Ambiental dos Planos Municipais de Ordenamento do Território pelas autoridades nacionais de cada um desses domínios (DGOTDU e APA, 2008) constitui um excelente exemplo do tipo de dificuldades e ten-sões que se podem gerar entre instituições e comunidades profissionais com insuficiente experiência de trabalho colaborativo.

Entre o Referencial Normativo de Base da Política de Ordenamento do Território e os Imperativos da Complexidade e do Escrutínio Público: A Avaliação de Dinâmicas Territoriais

Qualquer política de ordenamento do território pressupõe a existência de proce-dimentos sistemáticos de monitorização e avaliação das dinâmicas territoriais. Os vários dispositivos legalmente previstos – Sistema Nacional de Informação Territorial, Observa-tório do Ordenamento do Território e do Urbanismo, Relatórios sobre o Estado do Orde-namento do Território elaborados em âmbito nacional, regional e municipal – constituem as peças-chave desses procedimentos.

O Programa de Acção do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Ter-ritório, aprovado na Assembleia da República em 2007,20 reafirma a importância desses vários dispositivos, e relembra que a sua acção deve, entre outros aspectos, “incidir sobre as dinâmicas territoriais em curso” (Maotdr, 2007, p.235).

Infelizmente, o Observatório do Ordenamento do Território e do Urbanismo, embora formalmente criado, não teve ainda condições para iniciar as suas funções; o Sistema Nacio-nal de Informação Territorial encontra-se numa fase de consolidação, e são pouco numero-sas as entidades que produziram Relatórios sobre o Estado do Ordenamento do Território.

O atraso do início de funcionamento do Observatório do Ordenamento do Ter-ritório e do Urbanismo e o desenvolvimento ainda insuficiente do Sistema Nacional de Informação Territorial levam a que não existam orientações claras para a elaboração de Relatórios sobre o Estado do Ordenamento do Território (REOT) em âmbito muni-cipal. Reconhecendo essa situação, Prada (2008) propõe orientações metodológicas para a elaboração de REOT no âmbito dos processos de monitorização municipal, e sugere, tendo por base os REOT municipais já elaborados e os Annual Monitoring Reports ingleses,

20 Lei nº 58/2007, de 4 de Setembro.

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uma estrutura base harmonizada, mas suficientemente flexível para acolher a diversidade territorial existente no país.21

Mais do que dar resposta a um imperativo legal, é, no entanto, a crescente comple-xidade, diversidade e imprevisibilidade que caracteriza as sociedades actuais que impõe a necessidade de uma avaliação permanente e multiescalar da evolução das dinâmicas e tendências territoriais.

A avaliação de dinâmicas territoriais implica a existência de sistemas de indicadores harmonizados, que permitam uma visão articulada das realidades europeia, nacional, regional e local. A Direcção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Ur-bano (nível nacional), as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (nível regional) e os municípios (nível local) têm apostado recentemente na criação de sistemas de indicadores, ou mesmo de observatórios, que permitam uma avaliação sistemática das dinâmicas territoriais.

Distintos factores justificam essa aposta por parte de entidades públicas. Alguns desses factores são técnicos, como a possibilidade de recurso generalizado a tecnologias de informação geográfica; outros são de cultura organizacional, como a disseminação de práticas de trabalho mais colaborativas; e outros, políticos, como a convicção de que existe um crescente escrutínio público em relação às actividades desenvolvidas pela administra-ção central, regional e local.

Na verdade, a importância dessa aposta é hoje crescentemente reconhecida por decisores políticos, pela comunicação social e mesmo pela população em geral, perplexa com a ocorrência de situações como os fenómenos climáticos extremos (secas, inundações, tornados), o persistente despovoamento do interior do país, o recuo da linha de costa ou a deslocalização súbita para outros países de empresas de capital estrangeiro que até há bem pouco tempo empregavam milhares de pessoas.

No entanto, a persistência de culturas organizacionais verticalizadas e sectorializadas em muitas entidades da administração pública dificulta a necessária partilha de informa-ção e a construção de soluções comuns. Sem surpresa, a avaliação das dinâmicas territo-riais confronta-se com obstáculos institucionais, culturais e até técnicos ou de escassez de recursos humanos que não podem ser desprezados. E diversos autores têm vindo a sublinhar que, ao mesmo tempo que existe um défice de sistemas de monitorização e ava-liação de políticas, também se verifica que os sistemas existentes são, por vezes, demasiado ambiciosos e, por isso, irrealistas (Gonçalves e Marques, 2010), ou estão pouco orientados para a sociedade e para os actores políticos (Feio, 2010), o que pode comprometer a sua função de prestação pública de informação e de apoio à decisão.

Ao contrário das duas situações anteriores (avaliação de conformidade e avaliação pre-ventiva de impactes), a importância que as entidades com responsabilidades em matéria de ordenamento do território atribuem recentemente à avaliação das dinâmicas territoriais não decorre apenas de factores externos e de natureza legal, mas também de um duplo reconhe-cimento: o mundo é hoje mais complexo, diverso e imprevisível, o que implica mais progra-mação estratégica; os cidadãos confiam menos nas instituições e alguns sectores académicos; das organizações não governamentais e da comunicação social revelam graus crescentes de exigência, o que impõe a disponibilização de mais informação e maior transparência.

As concepções de políticas públicas e os processos de avaliação baseados em infor-mação empírica dão ainda os seus primeiros passos em Portugal (Figueiredo, 2010). Mas, corrigir trajectórias de desenvolvimento, legitimar opções políticas e prestar contas vão-se transformando, por convicção ou necessidade, em prioridades cuja concretização exige

21 A estrutura base pro-posta é a seguinte: i) In-trodução (caracterização do contexto actual do sistema de planeamento do território e do sistema de monitori-zação municipais); ii) Avalia-ção do estado do território (análise do sistema territorial municipal); iii) Avaliação do enquadramento estratégico e de planeamento (análise do sistema de planeamento municipal e das políticas mu-nicipais); e iv) Considerações finais (síntese da avaliação, definição de novas metas a atingir e de medidas a implementar, melhorias a in-troduzir no processo de mo-nitorização) (Prada, 2008: 99-100).

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avaliar de forma sistemática as dinâmicas e tendências territoriais em curso. Neste caso, são os territórios em mutação, condicionados ou não por planos e programas, o alvo dos exercícios de avaliação.

Uma Nova Visão de Ordenamento do Território, um Novo Paradigma de Avaliação: A Avaliação de Processos e Práticas

Como em muitos outros países, a política de ordenamento do território em Portugal evoluiu de uma visão sobretudo física, normativa e estática de regulação do uso do solo para uma visão mais estratégica, integrada e processual de desenvolvimento e governança territorial (Ferrão 2010a).

Num contexto de escasso debate teórico sobre as concepções e a missão das políticas de ordenamento do território, esta evolução resultou sobretudo da conjugação de diversos fac-tores de “europeização”, com pesos distintos, mas que tendem a reforçar-se reciprocamente:(i) O “efeito EDEC”, isto é, a influência dos princípios, visões e conceitos adoptados no

EDEC – Esquema de Desenvolvimento do Espaço Europeu (CE, 1999), documento estratégico e programático sobre o futuro desejável para o território da Europa cuja preparação envolveu a Comissão Europeia e entidades técnicas e decisores políticos de todos os Estados-membros durante cerca de dez anos;

(ii) O “efeito Iniciativas Comunitárias”, ou seja, a influência das concepções subjacentes a Iniciativas Comunitárias como o URBAN (para áreas urbanas), o Leader (para áreas rurais) ou o INTERREG (para áreas fronteiriças), que apoiaram em todos os Estados-membros acções experimentais baseadas nos princípios da parceria e da contratuali-zação e em intervenções integradas de base territorial;

(iii) O “efeito emulação de práticas”, isto é, a adopção de instrumentos e procedimentos de planeamento estratégico territorial então em desenvolvimento em várias cidades europeias, com destaque para Barcelona durante a fase de preparação dos Jogos Olímpicos de 1992, fonte directa de inspiração das primeiras experiências de plane-amento estratégico urbano em Portugal (Ferreira, 2005); e

(iv) O “efeito ESPON” que, embora mais tardio e circunscrito à comunidade académica e a especialistas, resulta do facto de o ESPON (European Spatial Planning Obser-vation Network)22 se ter afirmado como uma relevante plataforma transnacional de produção e difusão de informação e conhecimento sobre o conjunto do território da União Europeia.A influência conjugada destes diversos efeitos suscitou novas concepções de orde-

namento do território e, naturalmente, novas abordagens de avaliação no domínio do ordenamento do território.

Por um lado, a natureza mais estratégica dos planos, em particular os de nível regio-nal (Planos Regionais de Ordenamento do Território), permitiu que estes passassem a ser avaliados recorrendo a metodologias entretanto consolidadas no âmbito da avaliação de programas cofinanciados por fundos Comunitários, sobretudo os Programas Regionais. Oliveira e Pinho (2010d) sublinham, a este propósito, que o vazio que existiu inicialmente entre as metodologias de avaliação em ordenamento do território e as metodologias de avaliação de programas foi sendo substituído por uma relação entre ambos os domínios, através da influência crescente das metodologias de avaliação de programas sobre os pro-cessos de avaliação em ordenamento do território.23

Recorde-se, a este propósito, que na década de 1990 a Direcção-Geral XVI da Co-missão Europeia (Políticas Regionais e Coesão) publicou uma série de documentos e guias

22 Embora se utilize ge-neralizadamente o acrónimo inglês ESPON, a designação formal em português é ORA-TE – Observatório em Rede do Ordenamento do Espaço Europeu. Na verdade, o acró-nimo ORATE, ainda que seja utilizado nas várias línguas la-tinas, refere-se à designação francesa: Observatoire en Réseau de l´Aménagement du Territoire.

23 Significativamente, exis-tem duas associações na-cionais em Portugal que têm a avaliação como objecto principal: a APAI – Associa-ção Portuguesa de Avalia-ção de Impactes (http://www.apai.org.pt), filiada na International Association for Impact Assessment (IAIA) e que constitui uma plata-forma de debate sobre a AIA, AAE e outras formas de avaliação de impactes; e a Associação Portuguesa de Avaliação (http://aval-portugal.wordpress.com/), centrada na avaliação de po-líticas públicas, programas, projectos e organizações, e próxima de sociedades de avaliação como a American Evaluation Association, a Eu-ropean Evaluation Society e outras de âmbito nacional. Os membros da comunidade de ordenamento do território não ocupam uma posição relevante em qualquer destas associações.

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sobre avaliação (Colecção MEANS – Means for Evaluation Actions of a Structural Nature) que influenciaram de forma decisiva a actividade de avaliação de programas e políticas nos Estados-membros sem experiência nesse domínio. A partir daí, e em menos de duas décadas, a evolução ocorrida foi muito considerável, como se poderá constatar através da consulta do recurso on-line para a avaliação do desenvolvimento socioeconómico de-signado EVALSED (EC, 2008). É esta visão mais enriquecida de avaliação de políticas e programas que influencia hoje a avaliação em ordenamento do território.

Talvez o caso mais interessante, em Portugal, desta crescente influência seja o da me-todologia PPR – Plano, Processo e Resultados, desenvolvida por Oliveira e Pinho (2009, 2010a, 2010b e 2010c) para avaliar planos municipais a partir de uma visão integrada ba-seada em três componentes analíticas: racionalidade ex-ante do plano (fase de elaboração do plano); performance do processo de planeamento (fase de implementação do plano); e conformidade entre objectivos e resultados (também fase de implementação do plano).24 Esta metodologia foi testada nas duas principais cidades portuguesas, Lisboa e Porto.

Por outro lado, a natureza mais estratégica dos planos de ordenamento do território implicou o recurso a novos procedimentos de comunicação, troca de informação, partilha de conhecimento, participação, deliberação e governança, envolvendo um leque diver-sificado de actores da administração central, regional e local, do sector empresarial, das organizações não governamentais e do terceiro sector, e da população em geral.

Este envolvimento alargado pressupõe, inevitavelmente, uma gestão proactiva de processos de mobilização de actores, coordenação de políticas, ponderação de interesses contraditórios, busca de consensos e estabelecimento de compromissos, com tradução tanto nos propósitos como nas práticas de avaliação (Breda-Vázquez e Conceição, 2010; Breda-Vázquez, Conceição e Móia, 2010). Esta mudança traduz a influência mais ge-nérica das abordagens pós-positivistas na concepção e avaliação das políticas públicas. O paradigma moderno técnico-racional, administrativo e positivista é crescentemente contestado, e parcialmente substituído, por abordagens de natureza mais processual, par-ticipada e construtivista (Ferrão, 2010a). Sem descurar a avaliação de resultados, impactes e dinâmicas, esta nova abordagem integra ainda, atribuindo-lhe particular importância, a avaliação tanto dos processos de decisão, aprendizagem e inovação como das práticas das instituições e das comunidades de especialistas envolvidas.

Uma análise sequencial dos Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT) aprovados nos últimos anos ilustra essa evolução, em que às componentes de avaliação de conformidade, prevenção de impactes e monitorização de dinâmicas territo-riais se adicionam novas concepções e práticas de avaliação, mais ambiciosas e mais em linha, quer com os procedimentos de avaliação de programas, quer com os princípios do planeamento participativo, colaborativo e deliberativo.

O PROT do Algarve (2007) propõe procedimentos de avaliação estratégica com três dimensões principais: avaliação de conformidade entre objectivos e resultados; avaliação de impactes visando a definição de medidas preventivas e acções correctivas ou minimiza-doras; e avaliação da pertinência e adequação das estratégias, esta última reflectindo uma visão mais próxima dos critérios de avaliação de programas com cofinanciamento Comu-nitário. No essencial, a visão de avaliação consagrada neste PROT mantém-se, ainda assim, muito próxima das concepções anteriormente referidas de conformidade, prevenção de impactes e monitorização de dinâmicas territoriais.

O PROT do Oeste e Vale do Tejo (2009) inclui uma secção autónoma sobre Gover-nança do Território e prevê uma Estrutura de Monitorização, Avaliação e Gestão. Esta Es-

24 Dimensão “racionalidade ex-ante do plano” (4 crité-rios): coerência interna do plano, relevância do plano para a cidade; forma como o plano interpreta o sistema de planeamento; e coerência externa; Dimensão “Perfor-mance do processo de pla-neamento” (3 critérios): par-ticipação pública durante a elaboração e implementação do plano, utilização do plano nos processos de decisão, compromisso em termos de recursos financeiros e humanos; Dimensão “Confor-midade entre resultados e objectivos” (2 critérios): efi-cácia (resultados do plano) e orientações para o processo de desenvolvimento urbano (Oliveira e Pinho, 2010c).

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trutura visa, entre outros aspectos, garantir a participação e concertação estratégica de base territorial entre os actores relevantes, e deve, nomeadamente, “dinamizar as relações entre a comunidade e as instituições regionais e locais e a administração central.” A avaliação, nes-te caso, atribui uma maior importância ao papel dos processos de participação e negociação entre diferentes actores. O mesmo sucede com o PROT do Alentejo (2010), que inclui um Sistema de Gestão e Monitorização que deve, entre outras funções, assegurar a concertação intersectorial, a coordenação entre projectos, programas e políticas sectoriais com impactes territoriais, e a articulação com políticas municipais e de desenvolvimento local.

Finalmente, o PROT da Área Metropolitana de Lisboa (colocado em discussão pública no final de 2010) vai mais longe, ao defender que o sistema de indicadores pro-posto visa, entre outros objectivos, estabelecer um canal de comunicação permanente com os vários actores de desenvolvimento e contribuir para o empoderamento desses mesmos actores.

Também a ENGIZC – Estratégia Nacional para a Gestão Integrada da Zona Cos-teira, aprovada em 2009 (Maot, 2009), revela o mesmo tipo de visão, ao definir um modelo de governança que inclui três plataformas complementares: i) uma plataforma de concertação política (articulação interministerial), envolvendo os Ministérios mais relevantes; ii) uma plataforma de cooperação (coordenação de políticas e intervenções na zona costeira), integrando os serviços com competências em domínios relacionados com a gestão costeira; e iii) uma plataforma de conhecimento (produção de conhecimento científico interdisciplinar útil para a monitorização da zona costeira e para a formação no domínio da gestão costeira), mobilizando instituições universitárias e outras entidades de investigação. Transversal a estas três plataformas existe uma quarta, que é responsável pela divulgação dos resultados dos processos de monitorização e pela disponibilização de informação relevante para todas as entidades intervenientes e para o público em geral, criando condições favoráveis a processos de participação mais informados.

Há quinze anos, Ferrão (1996) afirmava que a avaliação não se deve limitar “a um conjunto mais ou menos sofisticado de procedimentos técnico-burocráticos de fiscaliza-ção, constituindo, antes, um processo de mobilização e de aprendizagem colectiva para os diversos tipos de actores envolvidos” (p.29). Essa preocupação começa actualmente a ser consagrada em diversos instrumentos de gestão territorial (planos, programas, estratégias). Reconhece-se hoje que a avaliação dos planos e dos seus impactes e a avaliação das dinâmi-cas territoriais devem ser acompanhadas pela avaliação das práticas de comunicação, troca de informação, partilha de conhecimento, participação, decisão e governança, visando estimular processos de capacitação, empoderamento, aprendizagem colectiva e inovação social que beneficiem as entidades envolvidas e as comunidades em geral

Não basta, portanto, avaliar as práticas e os processos associados à concepção, im-plementação e monitorização dos vários instrumentos de ordenamento do território. O próprio exercício de avaliação deve constituir uma fonte importante de aprendizagem e inovação social, com destaque para as entidades responsáveis pelo instrumento em avalia-ção, para as instituições e actores com quem estas entram em interacção nesse âmbito, e para os cidadãos em geral.

Neste contexto, ganham particular relevo os processos, instrumentos e técnicas de intermediação de conhecimento (knowledge brokerage) entre as comunidades científica e de decisores políticos e, de uma forma mais geral, entre os distintos actores envolvidos. Sheate e Rosário (2010), recorrendo a exemplos do Reino Unido e de Portugal (um dos quais, a ENGIZC), analisam o modo como a avaliação ambiental estratégica, através de

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práticas adequadas de comunicação e diálogo, pode contribuir, num ambiente de confian-ça entre os vários actores, para uma maior troca de conhecimento entre eles, desencadean-do processos de aprendizagem mútua e de capacitação institucional.

OLHANDO PARA O FUTURO PRÓXIMO: O LIMIAR DE UMA NOVA ETAPA?

A evolução anteriormente apresentada revela que, no domínio do ordenamento do território, a avaliação parece encontrar-se, em 2011, no limiar de uma nova etapa. Vários motivos contribuem para essa situação.

Em primeiro lugar, o encerramento do ciclo de elaboração dos instrumentos que constituem os pilares essenciais do edifício do ordenamento do território em Portugal – Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território e Planos Regionais de Or-denamento do Território – permite não só disponibilizar referenciais nacionais e regionais para o âmbito municipal e para as diversas políticas sectoriais, como transferir o foco de atenção dos procedimentos de elaboração de planos para os processos de monitorização e avaliação (Figueiredo, 2010).

Em segundo lugar, a concepção de avaliação como um processo reactivo e descontí-nuo, imposto por factores exógenos, de natureza coerciva e em geral normativa, vai dando lugar a uma cultura de avaliação como processo desejavelmente contínuo e associado a estímulos internos, como a necessidade de prestação de contas, a legitimação política das opções tomadas, ou a identificação de soluções mais resilientes a contextos turbulentos crescentemente complexos e imprevisíveis.

Em terceiro lugar, a nova concepção de avaliação surge como indissociável da visão mais proactiva e estratégica de ordenamento do território, que tende a complementar a concepção tradicional mais física e normativa de regulação do uso do solo, e mais próxi-ma do paradigma construtivista de avaliação, que tende a substituir a visão estritamente positivista antes prevalecente.

Finalmente, a avaliação que se pratica actualmente no domínio do ordenamento do território traduz a confluência de diversas influências, umas internas (avaliação de confor-midade técnica e jurídica dos planos e avaliação de dinâmicas territoriais), outras externas, provenientes, sobretudo, das áreas do ambiente (avaliação preventiva de impactes) e do desenvolvimento socioeconómico (avaliação de programas, nomeadamente dos que bene-ficiam de cofinanciamento da União Europeia).

Um novo contexto institucional, uma cultura de avaliação mais consolidada, uma nova visão de ordenamento do território, um novo paradigma de avaliação, uma permea-bilidade crescente a processos e práticas de avaliação desenvolvidos em outros domínios: estes parecem ser os ingredientes essenciais de uma nova etapa de uma trajectória de evo-lução que reflecte a intersecção de duas histórias relativamente autónomas mas crescente-mente interligadas – a história mais específica da política de ordenamento do território e a história mais genérica da avaliação de políticas públicas. Como pano de fundo comum a ambas as histórias, encontramos, porém, os factores de mudança mais estruturais: a erosão crescente da concepção moderna, racionalista e positivista de Estado e de acção pública, e a emergência de concepções pós-positivistas, umas de natureza neoliberal e outras que apostam num Estado mais relacional, aberto a distintas formas de governança e a proces-sos de democracia participativa e deliberativa.

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Estamos, no entanto, longe da afirmação generalizada de uma cultura de avaliação, em que esta se transforme numa prática regular das instituições públicas, numa acção eficiente de comunidades profissionais próprias e numa exigência recorrente dos cidadãos.

A efectiva apropriação de uma cultura de avaliação estratégica por parte das entida-des com responsabilidades no domínio do ordenamento do território requer alterações de valores, atitudes e comportamentos, quer dos decisores políticos, quer dos técnicos da administração, quer mesmo dos especialistas em avaliação. Essas alterações confrontam-se, no entanto, com comportamentos de resistência por parte de muitos membros daqueles grupos, e também com tensões entre distintas finalidades, abordagens e metodologias de avaliação associadas às várias comunidades profissionais envolvidas. Num contexto de escasso debate teórico sobre finalidades, princípios, conceitos e processos de avaliação, as lógicas corporativas de distintas comunidades profissionais, quase sempre de recorte disciplinar, nem sempre favorecem o trabalho colaborativo; antes alimentam a concorrên-cia entre si face a um mercado de reduzida dimensão mas com alguns segmentos muito dinâmicos, associados a políticas e instrumentos de influência Comunitária.

Entre o seu passado fundacional e a influência de outros domínios de política com grande exposição Comunitária e mesmo global, como o ambiente (o poder da norma, dos media e da opinião pública) ou as políticas de coesão e competitividade da União Europeia (o poder do financiamento), a evolução da avaliação em ordenamento do terri-tório dependerá, também, da capacidade de se desenvolverem comunidades profissionais específicas, abertas a concepções inovadoras de avaliação de políticas públicas mas ao mesmo tempo focalizadas no ordenamento do território enquanto política pública au-tónoma e renovada.

Finalmente, a afirmação de uma nova cultura de avaliação no domínio do orde-namento do território beneficiaria ainda, como salienta Gonçalves (2010, pp.370-1), da existência de “uma rede de entidades da sociedade civil, especificamente destinada a promover o avanço dos conhecimentos em matéria da avaliação de políticas públicas com incidência na organização do território”, com o duplo objectivo de “superar a inacção do Estado” e de promover uma avaliação política (e não apenas técnica) e democrática, que leve em conta os juízos dos cidadãos sobre essas políticas. Iniciativa tanto mais importante quanto ela concorre para a concretização do imperativo de processos de avaliação baseados em formas de planeamento participativo e em concepções de planeamento explicitamente assentes em princípios, como a abertura e o pluralismo, e valores, como a equidade e a justiça social (Cabral, 2010).

A AVALIAÇÃO COMO FACTOR DE MUDANÇA CULTURAL

A evolução próxima da avaliação no domínio do ordenamento do território não dei-xará de reflectir o conjunto de resistências e tensões referidas anteriormente, justificando que se atribua particular atenção aos processos de aprendizagem, inovação institucional e mudança social no contexto da produção e avaliação de políticas públicas.

Sanderson (2009) coloca, justamente, os processos de aprendizagem no centro do que designa por visão neomoderna da intervenção das políticas públicas.

Ao contrário do paradigma positivista moderno, que baseia a concepção, imple-mentação e avaliação de políticas públicas (policy-making) na acção racional e técnica de

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especialistas e decisores, a visão que Sanderson designa por neomoderna coloca a ênfase nos processos de policy-learning. Lidando com sistemas políticos, institucionais, sociais e económicos complexos, abertos a pressões externas e em permanente mudança, o êxito das políticas públicas depende da capacidade de se aprender e inovar através da experimenta-ção e de processos de comunicação baseados no diálogo e na argumentação, e não apenas em mais e melhor informação e conhecimento.

À luz da visão defendida por Sanderson (2009), os processos de avaliação da política pública de ordenamento do território devem ganhar uma nova ambição e uma maior centralidade. Por um lado, a ambição de adoptar uma visão holística das diversas com-ponentes referidas – conformidade legal e técnica; prevenção de impactes; dinâmicas e tendências territoriais; processos e práticas – e de mobilizar distintos tipos de actores, com conhecimentos e interesses diversos, no âmbito dos exercícios de avaliação. Por outro, atribuir aos exercícios de avaliação a missão de contribuir para que, entre os efeitos que se visa desencadear no âmbito das políticas ou instrumentos em avaliação, se incluam altera-ções duradouras de crenças, valores, competências e comportamentos que proporcionem processos de aprendizagem, inovação institucional e reforço da cidadania, e que permitam políticas públicas mais eficientes, justas e democráticas.

Em suma, e no que diz respeito à política de ordenamento do território, a avaliação deve contribuir para – e, simultaneamente, exige – uma tripla mudança cultural: uma cultura organizacional mais orientada para a democratização dos processos e a pertinência dos resultados por parte das entidades da administração pública, uma “cultura de territó-rio” mais respeitadora do interesse comum e dos direitos constitucionalmente consagrados por parte dos cidadãos e, ainda, uma “cultura de política de ordenamento do território” mais eficiente e resiliente face aos efeitos perversos do mercado e mesmo de outras políti-cas públicas por parte das comunidades profissionais envolvidas.

Isto significa que a evolução da avaliação da política do ordenamento do território não pode ficar exclusivamente refém de estímulos coercivos, de natureza legal ou regu-lamentar, por muito adequados e justificados que eles sejam. Os exercícios de avaliação devem resultar, paralelamente e cada vez mais, de estímulos de outra natureza, consequên-cia de uma maior maturidade em termos de reflexividade institucional, exigência cívica e competência profissional. Entender, de forma articulada, as circunstâncias que justificam os exercícios de avaliação, as condições e modos de os concretizar, e os efeitos daí decor-rentes nas alterações das políticas ou instrumentos em avaliação constitui, assim, uma prioridade que decisores políticos, membros das comunidades profissionais envolvidas no ordenamento do território e população em geral não podem ignorar.

A reconstituição da evolução da avaliação da política de ordenamento do território em Portugal permite realçar o modo como a trajectória percorrida foi sendo moldada, ao longo do tempo, por contextos políticos e institucionais, paradigmas sobre o papel do Estado e das políticas públicas, tensões entre comunidades profissionais e instituições com culturas e interesses distintos, relações de poder entre actores com capacidades, conheci-mentos e valores diferentes e, sobretudo, desiguais. Na verdade, a avaliação no domínio do ordenamento do território, como em qualquer outra esfera da acção pública, não pode ser reduzida a um conjunto mais ou menos completo e sofisticado de procedimentos legais, técnicos e administrativos. Ela é um factor decisivo para tornar a política de ordenamento do território mais inteligente, reconhecida e desejada, e por isso, com maior valor público e socialmente mais útil.

João Ferrão é investigador principal do Instituto de Ciên-cias Sociais, Universidade de Lisboa; geógrafo; doutor em Geografia. E-mail: [email protected]

João Mourato é investiga-dor pós-doutoral do Instituto de Ciências Sociais, Univer-sidade de Lisboa; arquitecto; doutor em Planeamento Ur-bano. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em janeiro de 2011 e aprovado para publi-cação em fevereiro de 2011.

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A b s t r a c t Public policy evaluation in Portugal is two decades old and arose as a response to external demands (European Union funding or legal requirements). Evaluation in spatial planning, not a formal EU competency, followed its own particular evolutive course specially comparing to other policies more exposed to normative exogenous factors. Throughout its development its aims become broader, from a simple assessment of policy conformity to a pre-emptive impact assessment and later to an evaluation of territorial dynamics, and planning processes and practices. This reflects the paradoxical Europeanisation of a policy outside the scope of EU competencies and the rise of new evaluation and spatial planning paradigms. By examining the Portuguese case, this paper contributes to the debate of the role of public policy evaluation as a factor for culture change in organisations, epistemic communities and citizens against the backdrop of a growing dispute of the modern and rationalist idea of State.

K e y w o r d s Public policy evaluation; spatial planning; policy-learning; institu-tional innovation; culture change; Portugal.

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TRANSFORMAÇÕES DA METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA

Novas Dinâmicas Espaciais, Esfera da Vida Pública e Sistema de Espaços Livres

D e n i o M . B e n f a t t i E u g e n i o F . Q u e i r o g aJ o n a t h a s M . P . S i l v a

R e s u m o O trabalho reflete sobre as novas formas de expansão e crescimento metro-politano, associando-as a transformações igualmente importantes na esfera da vida pública. A expressão cotidiana desse processo de expansão e crescimento se deixa transparecer a partir de dois movimentos complementares. De um lado, o aumento em número e extensão dos deslo-camentos cotidianos de uma comunidade a outra em um mesmo ambiente metropolitano. De outro, reflete as transformações resultantes do modo de vida metropolitano: horários variáveis e flexíveis, individualização das práticas de produção e consumo. Temos como objeto desta reflexão a Metrópole de Campinas como parte do território metropolitanizado que ocorre no entorno da capital paulista. Nossa hipótese é que essas transformações não se restringem a novas denominações de um processo ampliado de urbanização, mas que essas transformações têm engendrado novos padrões e espaços de sociabilidade e, mais do que isso, um modo de vida e produção específicos. Nesta reflexão, interessa-nos mostrar como essa nova dinâmica afeta a esfera da vida pública e a definição e constituição dos sistemas de espaços livres.

P a l a v r a s - c h a v e Megalópole; urbanização fragmentada; esfera da vida pública; espaço público; sistema de espaços livres.

NOVAS CONDIÇÕES DE URBANIZAÇÃO DAS METRÓPOLES

O crescimento das grandes aglomerações urbanas, em sua forma contemporânea, coloca problemas administrativos, sociais e culturais cada vez mais importantes e diver-sos daqueles de períodos anteriores. Nos últimos 30 anos, o tempo urbano afasta-se de seus referenciais tradicionais, distanciando-se daqueles definidos pela cidade industrial e entrando na era dos serviços.1 Os horários flexíveis, o trabalho temporário, o trabalho noturno têm produzido significativas modificações na vida urbana: a individualização das práticas de produção e consumo, a diversidade das formas de ativação dos laços familiares, organizados a partir de maior autonomia dos ritmos de vida de cada um. Com isso, os horizontes da vida cotidiana foram consideravelmente ampliados. Os cidadãos – ou, em sua maioria, apenas consumidores – atualmente têm concedido prioridade a uma abertura maior de suas possibilidades espaciais, ou seja, tem-se concedido a possibilidade de escolhas locacionais que, mesmo significando um gasto maior em termos de deslocamento cotidiano (residência, trabalho e lazer), permite um número maior de escolhas.

1 Para Secchi (2006, p.145), as transformações referentes à metrópole contemporânea já se anun-ciavam desde a década de 1950. “Já no fim dos anos 50 do século XX, em um mo-mento de exame crítico dos resultados obtidos durante a reconstrução bélica, aos olhos de muitos estudiosos, a cidade europeia mostrava-se inesperadamente diferen-te e de difícil compreensão, menos facilmente apreensí-vel em imagens e figuras coerentes. Essa passagem virá apontada nos anos se-guintes como a transição de uma sociedade simples a uma sociedade complexa”.

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Esta movimentação socioespacial tem influência significativa e diversa sobre di-ferentes escalas do território urbanizado. Por um lado, do ponto de vista da expansão metropolitana, das escolhas locacionais referentes à habitação e ao emprego, o habitante metropolitano amplia significativamente seu raio de ação e de influência. Tomando o caso da macrometrópole de São Paulo, aqui incluídas as regiões metropolitanas de San-tos, Campinas e Sorocaba,2 os limites do novo ambiente urbano-metropolitano atingem um diâmetro superior a 250 km. Por outro, com relação à vida cotidiana, estas novas dimensões influem não somente sobre o uso dos espaços urbanos como também sobre a concepção dos novos espaços destinados a acomodar a vida pública. Novas dimensões metropolitanas, novas possibilidades de comunicação e mobilidade, que geram novas formas de sociabilidade.

Nesse novo ambiente urbano em formação, os territórios urbanizados oriundos de uma concepção de tempo mais estável encontram-se deslocados em relação aos novos territórios que resultam dos movimentos da sociedade: expansão e fragmentação urbana em escalas mais amplas – supra-metropolitanas, regionais –, com localização do emprego mais distanciada do local de residência, novas formas de mobilidade, tecnologias de tele-comunicação, funcionamento em redes, etc.

Atualmente, no lugar de cidades relativamente mais ordenadas e dentro de limites mais facilmente perceptíveis, lidamos com nebulosas urbanas e limites incertos, em que os deslocamentos não mais obedecem a fronteiras administrativas ou políticas. Esses fatos sugerem a ideia de uma sociedade urbana que estendeu enormemente no território seus movimentos cotidianos e cíclicos (Boeri, 2003, p.364).

Essa situação encontra ressonância e significado em parte considerável da população urbanizada no entorno de grandes aglomerações, especialmente quando se tem em conta que mais da metade da população brasileira é do estrato de renda “C”, com renda familiar entre 3 a 8 salários mínimos. Maior significado ainda se evidencia quando se trata das vivências do interior paulista “megalopolitanizado”, em boa parte já integrado ao mundo das compras a crédito, ao uso do automóvel, aos passeios nos shoppings, às lan houses e aos cursos universitários noturnos.

Figura 1 – Macrometrópole: rede de vias expressas.

Desenho: Jonathas Magalhães sobre bases: Instituto Geográfico e Cartográfico – IGC, Departa-mento de Estrada de Rodagem – DER e Emplasa 2007.

2 Desde 2005, encontra-se em tramitação na Assem-bleia Legislativa de São Pau-lo Projeto de Lei que institui a Região Metropolitana de Sorocaba. Pelo Projeto, a RMS conterá 16 municípios, que apresentam mais de 1,5 milhão de habitantes (esti-mativa de 2009). A Região Administrativa de Sorocaba possui o quarto maior PIB do Estado de São Paulo, atrás da Região Metropolitana de São Paulo e das Regiões Administrativas de Campinas e São José dos Campos.

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As formulações teóricas, as hipóteses conceituais a respeito dessa movimentação da sociedade, em termos culturais, de modo de vida e de sua distribuição espacial configu-ram ainda um terreno recente e pouco consolidado. Este ensaio, apesar de integrar uma pesquisa mais ampla,3 não trata aqui de enfoques submetidos à comprovação empírica, mas aborda questões conceituais e as apresenta a partir de um cotejo com uma realidade específica, que é a região metropolitana de Campinas, de tal forma que possamos contri-buir para a reflexão teórico-conceitual.

Nos últimos 20-30 anos, ganhou força uma tese relacionada às metrópoles tradicio-nais, especialmente as dos países europeus, formadas ainda na passagem dos séculos XIX para o XX, de que o período de crescimento dessas grandes cidades havia terminado, e que, após décadas de crescimento urbano associado à metropolização, estaríamos na iminência de uma “inversão da tendência secular” da emigração campo-cidade (Ascher, 1995, p.17).

Essa tese, guardadas as especificidades do contexto brasileiro, repercutiu em nosso meio acadêmico e profissional pelo fato, entre outros, de que algumas das condições ali explicitadas poderiam ser verificadas para as grandes metrópoles brasileiras. Se correta, a afirmação poderia significar um renascimento demográfico das cidades médias e pe-quenas. Entretanto, as duas pontas desse prognóstico, tanto no caso europeu quanto no brasileiro, puderam ser verificadas apenas parcialmente. De um lado, o decréscimo de população e atividade ocorre apenas em alguns setores e partes centrais das metrópoles. De outro, o renascimento das cidades pequenas e médias não pode ser considerado de forma generalizada, e sim como um fenômeno mais fortemente associado à localização dessas em ambiente metropolitano. Quando analisamos os dados de população da Região Metropolitana de Campinas (RMC), é possível identificar essa tendência: das 19 cidades que compõem a região, 17 delas apresentaram crescimento significativamente superior ao da cidade central, Campinas. Apenas uma das cidades, Santa Bárbara d’Oeste, situada na periferia da região metropolitana, mais próxima a Piracicaba, e que não faz parte dos principais fluxos rodoviários, apresentou crescimento inferior.

De fato, nas cidades centrais das regiões metropolitanas, no seu todo ou em setores específicos, é possível verificar, nas últimas décadas, um esvaziamento tanto funcional quanto populacional, ou, de forma menos drástica, é possível constatar a desaceleração de suas taxas de crescimento, fato que pode ser verificado igualmente para as cidades de São Paulo, Campinas e Santos.

Segundo a Fundação Seade (Folha de São Paulo, 18.2.2008), entre 1996 e 2007, enquanto o centro expandido da cidade de São Paulo perde população equivalente a uma cidade de Santos (450 mil habitantes), a periferia da cidade ganha cerca de 1,2 milhão de habitantes.

Por sua vez, do ponto de vista das migrações intrametropolitanas, o jornal O Estado de São Paulo, já em sua edição de 17.1.1997, estampava em uma matéria sobre demografia a seguinte manchete: “São Paulo perde população para cidades vizinhas”. De fato, os dados do IBGE indicavam que, entre 1991 e 1996, as cidades de São Paulo e Campinas cresceram apenas 1,0% ao ano. Segundo a matéria do jornal, “Os mora-dores das grandes cidades mudaram-se para municípios vizinhos que oferecem imóveis mais baratos ou melhores condições de vida. Por outro lado, trabalhadores vindos de outras cidades e Estados não conseguem se fixar nas cidades centrais dessas metrópoles e contribuem para o aumento de população de municípios periféricos como Guarulhos e Indaiatuba.”4

3 O texto em questão foi elaborado como parte dos resultados do Projeto Temá-tico intitulado “Os Sistemas de Espaços Livres e a Cons-tituição da Esfera Pública Contemporânea no Brasil”.

4 Guarulhos integra a região metropolitana de São Paulo. Indaiatuba integra a região metropolitana de Campinas.

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Quadro 1 – RMC: Evolução da população 2000/2010.

Nome do municípioTotal da

população 2000

Total da população

2010

Tx. Geom. de Cresc./Pop. 2000-2010

(em % a.a.)

% de Cresc./

2000/2010

1 Americana 182.300 210.701 1,45 15,57%

2 Artur Nogueira 33.124 44.270 2,97 33,65%

3 Campinas 969.396 1.080.999 1,10 11,51%

4 Cosmópolis 44.355 58.821 2,87 32,61%

5 Engenheiro Coelho 10.033 15.719 4,60 56,67%

6 Holambra 7.211 11.292 4,58 56,59%

7 Hortolândia 152.523 192.225 2,37 26,03%

8 Indaiatuba 147.050 201.848 3,23 37,26%

9 Itatiba 81.197 101.450 2,26 24,94%

10 Jaguariúna 29.597 44.331 4,12 49,78%

11 Monte Mor 37.340 48.971 2,77 31,15%

12 Nova Odessa 42.071 51.278 2,01 21,88%

13 Paulínia 51.326 82.150 4,81 60,05%

14 Pedreira 35.219 41.549 1,68 17,97%

15 Santa Bárbara d’Oeste 170.078 180.148 0,58 5,92%

16 Santo Antônio de Posse 18.124 20.635 1,32 13,85%

17 Sumaré 196.723 241.437 2,09 22,72%

18 Valinhos 82.973 106.968 2,57 28,92%

19 Vinhedo 47.215 63.685 3,05 34,88%

TOTAL RMC 2.337.855 2.798.477 1,82 19,70%

Fonte: AGEMCAMP – Agência Metropolitana de Campinas. Campinas, 2011.

Na análise desses territórios urbanizados em seu conjunto, portanto, não se verifica perda de população e atividade, e sim uma reorganização em favor de cidades menores e cada vez mais distantes, situadas dentro de um mesmo funcionamento metropolitano: migrações alternadas e relações econômicas e sociais cotidianas em um mesmo espaço metropolitano. Essas transformações expressam, na verdade, uma recomposição funcional e social dos espaços metropolitanos (Ascher, 1995, p.19). Observa-se, mesmo, a forma-ção de uma entidade urbana nova, a megalópole, que inclui e transcende as formações metropolitanas, constituindo amplo território de alta densidade técnico-científico-informacional e comunicacional. No caso brasileiro, a Megalópole do Sudeste inclui não apenas a formação macrometropolitana paulista, mas o eixo “Rio-São Paulo”, porções do Sul de Minas (de Juiz de Fora a Poços de Caldas), e avança pelas principais rodovias paulistas conectando fortemente São Paulo e Campinas a Ribeirão Preto, a São Carlos e Araraquara, a Sorocaba, a São José dos Campos, para citar apenas os principais centros regionais já claramente integrados no processo de megalopolização do Sudeste (Queiroga; Benfatti, 2007a).

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SINTOMAS DA MEGALOPOLIZAÇÃO: RELATOS DE SÃO PAULO E CAMPINAS

A rádio CBN, com estações retransmissoras em São Paulo, Campinas, Rio de Janei-ro e outras cidades, todas as manhãs, dá a medida do movimento pendular que anima a megalópole do Sudeste. No rádio do carro, nas primeiras horas da manhã, o noticiário nos anima ou desanima com as dezenas de quilômetros de engarrafamentos ou redução de velocidade. Salvo algum acidente, a razão observada é o excesso de veículos que, na realidade megalopolitana, se manifesta em diferentes situações e formas. Dos que acessam São Paulo, vindos do interior pelas rodovias dos Bandeirantes, Anhanguera e Castelo Branco, e que, logo na chegada, se deparam cotidianamente com alguns quilômetros de congestionamento. Do mesmo modo as emissões do rádio informam, aos que partem de São Paulo e também da rodovia Presidente Dutra, a partir de São José dos Campos, com destino ao interior do Estado, que em Campinas as entradas principais da cidade também apresentam problemas de circulação.

A rádio, como um elemento ágil de comunicação e prestação de serviços, nos for-nece a representação, ou melhor, uma medida do território vasto compreendido por um descontínuo de mancha urbanizada, mas um contínuo de relações socioeconômicas e culturais. Essa não é a realidade dos milhões que habitam a megalópole; mas, sua exis-tência enquanto fato urbano cotidiano exerce influência direta e indireta sobre parte im-portante de alguns desses milhões, e não somente aqueles que vivem, trabalham e têm no seu dia a dia um território atualmente expandido para algo em torno de 150 quilômetros a partir da capital paulista, ou mesmo a partir de Campinas ou São José dos Campos. O congestionamento médio de cerca de 3 a 5 quilômetros que pode ser verificado todas as manhãs nas rodovias que chegam a São Paulo é uma das sobredeterminações desse fenômeno. Aparentemente, os commuters – como é denominado na expressão inglesa o contingente de cidadãos envolvidos diretamente com esse fenômeno –, ainda não esta-tisticamente mensurados, são relativamente poucos quando comparados com o conjunto de habitantes da metrópole. Entretanto, a movimentação cotidiana desses commuters importa sobre todo o conjunto da circulação e, consequentemente, afeta o conjunto dos habitantes da megalópole.

O morador de São Paulo envolvido diretamente nesse contingente é, por certo, um dos causadores do congestionamento da metrópole de Campinas. Do mesmo modo, os moradores dos condomínios fechados de Campinas e de seu entorno metropolitano – Valinhos, Vinhedo, Souzas, Joaquim Egídio – são contribuintes e corresponsáveis pelos problemas de circulação na capital do Estado. Canalizado a partir das grandes rodovias, dos anéis viários e das avenidas expressas, o fluxo de veículos irradia quantidade e proble-mas para todo o sistema viário estrutural dessas duas cidades-metrópole.

Assim, o noticiário diário sobre a circulação na megalópole como serviço de utili-dade pública revela-se uma importante representação da nova realidade urbana e de um novo modo de vida de características megalopolitanas. Por cobrirem um raio de 150 quilômetros a partir do centro da capital paulista, essas emissões radiofônicas englobam as chegadas e saídas de São Paulo e Campinas como se tratassem de um único complexo urbano, o que de fato está ocorrendo. Portanto, informam não somente o morador da megalópole, cuja referência do dia a dia abrange informações de um raio de hora e meia a duas horas, sobre transporte automotivo, como também todos aqueles que indiretamente são afetados por esse novo modo de vida.

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NOVOS PARÂMETROS DE MOBILIDADE E TRANSFORMAÇÕES ESTRUTURAIS DA METRÓPOLE

No passado recente, início do século XX, a circulação era feita predominantemen-te por bondes e pelos trens de subúrbio. Em razão do alto custo dessas modalidades e da baixa capacidade e rapidez de ampliação, a expansão urbana foi, por algum tempo, controlada por esses meios de transporte, gerando configurações urbanas relativamente compactas. Foi o que ocorreu no início com as expansões de São Paulo e Campinas. Com o declínio do transporte sobre trilhos e o advento do ônibus e do transporte individual, as cidades conheceram um crescimento mais espraiado, tendo ainda como base e referência os centros tradicionais das cidades.

Atualmente, a situação vem sendo modificada radicalmente. É certo que Campinas e São Paulo são cidades que ainda crescem vinculadas a modalidades de deslocamento indutoras de um crescimento com certo grau de continuidade e coesão – ônibus, metrô e trem de subúrbio (estes dois últimos, apenas para São Paulo) –, mas a extensão e a des-continuidade das metrópoles em seu funcionamento contemporâneo estão ligadas às redes viárias de circulação rápida e à disseminação do uso do automóvel e dos ônibus fretados, cuja circulação nas ruas dessas metrópoles já se tornou um novo problema urbano.5

Figura 3 – Região Metropolitana de Campinas: comparação da área urbanizada – 1989 e 2000.

Fonte: Base cartográfica: Embrapa. Interpretação do mosaico de imagens do satélite Landsat ETM 7, 1989 e 2000. In: Caiado, Maria Célia Silva & Pires, Maria Conceição Silvério, 2006.

No caso da metrópole de Campinas, em sua relação com a megalópole, a rede de circulação rápida toma corpo, principalmente, nas rodovias Anhanguera, Dom Pedro e Bandeirantes; esta última, por ser uma rodovia segregada, favorece ainda mais a expansão metropolitana de forma descontínua. A circulação por essas vias expressas, como é possível constatar pelo excesso de veículos divulgado nas emissões radiofônicas, aumentou muito nos últimos 20 anos, e dá a medida das possibilidades de colonização do ambiente metro-

5 No caso de São Paulo, em razão da dimensão al-cançada por esse tipo de transporte, a Secretaria Mu-nicipal de Transportes-SMT se viu obrigada, com a Por-taria n.58/09, a estabelecer regras específicas para a atividade de fretamento no Município.

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politano. Sua maior ou menor abrangência e extensão territorial estão condicionadas pela velocidade de deslocamento, que será tanto maior quanto maior for a velocidade, consi-derando um mesmo intervalo de tempo. Atualmente, a referência média desse intervalo para a região de Campinas varia entre uma hora e meia e duas horas, o que significa que a colonização a partir dessa metrópole chega facilmente até São Carlos e, evidentemente, até São Paulo.

Portanto, o alongamento dos deslocamentos cotidianos faz transparecer não apenas o crescimento e a expansão da metrópole, mas indica também a forma como ocorre esse crescimento: de um lado, por expansão da mancha urbanizada, mantendo ainda alguma continuidade e adicionando novos subconjuntos urbanizados e, por outro, com desconti-nuidade e mudança de escala da metrópole, regido por movimentos cotidianos e cíclicos.

Em razão desses processos, é possível encontrar e identificar elementos de natureza metropolitana em territórios não contíguos e aparentemente não metropolitanos. Isso é visível tanto na incorporação de municípios como Hortolândia, Indaiatuba, Valinhos, Sumaré, entre outros, ou situações mais recentes, como os novos condomínios situados no entorno de Campinas e municípios vizinhos.

Nesse contexto urbano, complexo e contemporâneo, é possível ampliar o debate sobre a esfera da vida pública contemporânea e suas relações com o sistema de espaços livres,6 o que se apresenta nos tópicos seguintes.

NOVAS DINÂMICAS ESPACIAIS: INDÍCIOS E HIPÓTESES

O objeto desta reflexão, como vimos, refere-se às novas formas de expansão e cres-cimento metropolitano. Como decorrência, procuramos associá-las às novas formas de expressão da esfera da vida pública, relacionando os fenômenos aqui descritos com formas de sociabilidade, modificações na vida pública urbana e suas sobredeterminações em rela-ção aos espaços de uso público.

Toma-se como hipótese que essas transformações não se resumem a novas denomi-nações para caracterizar um processo ampliado de urbanização – conurbação, urbanização dispersa, fragmentada, megalópole –, mas que constituem um modo de vida e de pro-dução específicos (Ascher, 1995, p.33), fundados nas novas redes de comunicação e nas novas práticas cotidianas cada vez mais individualizadas. Tudo isso em sobreposição de práticas espaço-temporais, em que o convívio, o encontro se dão em muitas esquinas, das ruas, das praças, das “praças de alimentação”, das redes de relacionamento na Internet. Esse espaço e tempo urbanos articulam e conflitam o novo e o velho, o lugar e o mundo, o público e o privado, o trabalho e o ócio, as ordens hegemônicas e as táticas para atravessá-las cotidianamente, os controles informacionais e as práticas comunicacionais.

Essa nova dinâmica, com suas manifestações sociais e individuais, estaria, por um lado, provocando transformações no uso do espaço público e, por outro, engendrando no-vos espaços de circulação e sociabilidade, colocando em xeque as tradicionais hierarquias urbanas: os sistemas de circulação e transportes, os sistemas de produção e consumo, e os sistemas de espaços livres.

Nas metrópoles que dispõem de sistemas de transportes rápidos, sua organização tende a favorecer a centralização dos fluxos a partir de grandes plataformas de circulação e transporte, gerando, com isso, novas organizações e hierarquias urbanas. Na medida

6 Adota-se o conceito de espaço livre conforme pro-posto por Magnoli (1982), ou seja, são todos os espa-ços abertos, livres de edi-ficação; neles se incluem, por exemplo: ruas, praças, parques, quintais, praias, mangues, florestas, dunas, etc. Tais espaços consti-tuem relações complexas, criando verdadeiros siste-mas, na acepção moriniana do termo; ou seja, dotados de organização, estrutura e dinâmica processual dialéti-ca (sistemas de sistemas – totalidade e particularidade).

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em que praticam o ponto a ponto, segundo o princípio do “efeito túnel” (Ascher, 1995), convergem para diminuir ou mesmo anular a importância das localizações intermediárias, favorecendo a concentração da dinâmica metropolitana sobre os nós desse sistema. Em metrópoles como Campinas, onde ainda não existe esse tipo de infraestrutura, a centra-lização dos fluxos tem menor influência relativa (terminais de ônibus urbanos e interur-banos), e as transformações das hierarquias tradicionais são influenciadas por elementos difusos, em razão do transporte individual, dos ônibus fretados e da individualização das práticas de produção e consumo. Portanto, as novas hierarquias apresentariam, no contex-to da metrópole de Campinas, uma complexidade distinta, difusa, tornando mais difícil tanto sua definição geográfica quanto sua representação.

Estas novas condições socioespaciais relativas à megalópole têm influência significa-tiva não somente no uso dos espaços urbanos, mas também na definição de quantidades, de localização e de concepção de novos espaços destinados às atividades que ocorrem cada vez mais em razão de uma nova mobilidade urbana. Com isso, os primeiros indícios nos indicam o enfraquecimento do significado dos espaços urbanos tradicionais de encontro, dos espaços públicos. Em contrapartida, estaria ocorrendo certa privatização da cidade, em que os espaços de vivência estariam sendo associados a espaços particulares, de caráter coletivo e gestão privada.

Portanto, ao relacionar os aspectos de apropriação contemporânea dos espaços de sociabilização, apontados por diferentes autores (Huet, 2001; Queiroga et. al., 2009; Reis, 2006), com o processo de uso e ocupação territorial em curso, é possível identificar indícios de novos paradigmas a serem considerados. Dentre os novos paradigmas, está, por exemplo, a questão da escala megalopolitana que, por sua própria natureza, não respeita os limites administrativos, os limites municipais. Por outro lado, a preocupação com os recursos naturais e a busca por um equilíbrio ambiental, valores que também não respeitam os limites municipais, tem emergido nos últimos anos como uma nova forma de influir diretamente sobre os processos de uso e ocupação do território, provocando transformações na paisagem e no ambiente.

PAISAGEM E AMBIENTE: A “NATURALIZAÇÃO” DAS ESCOLHAS

A metrópole ou megalópole, conforme descritas e definidas neste trabalho, do ponto de vista da gestão, é, no mínimo, complexa. Apesar de algumas tentativas de constituição de uma coordenação das atividades na escala da metrópole, nenhuma auto-ridade global de gestão existe de fato. Isso não é um problema exclusivo das metrópoles brasileiras, mas uma dificuldade que afeta indistintamente essa forma de aglomeração em diferentes países. No entanto, ela existe, e funciona, com crises, incoerências e custos sociais e ambientais.

Não há, porém, como negar que, nos últimos anos, a preocupação com o ambiente generalizou-se, e foi inserida em diferentes áreas da atividade humana. Na verdade, a preocupação ambiental não é assim tão recente; existe há algumas décadas, entretanto, por um bom tempo, sua manifestação foi marginal. As restrições ambientais não eram mandatórias. Atualmente, mesmo com dificuldades de diferentes níveis, é possível afirmar que elas começam a influenciar de forma objetiva e legal a ocupação do território. No que diz respeito ao urbanismo e ao planejamento urbano, as questões relativas à paisagem

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e ao ambiente têm estado presentes de forma crescente nos debates na academia e na so-ciedade. A esse respeito, Ascher (1995, p.257-8) nos dá algumas indicações de como essa transformação aproxima ambiente, paisagem e urbanismo:

[...] no momento em que as referências a uma cidade ideal perderam sua força e que os postulados ideológicos que forneciam os modelos de cidade estão em crise, os paisagistas aparecem como os únicos a ter princípios suficientemente gerais para fornecer os conceitos para as grandes operações estruturantes: o respeito à paisagem, a adequação à geografia do lugar, a consideração do lugar, a variedade de espécies, etc. Assim, a inscrição da cidade na “paisagem” e a integração da paisagem no projeto de urbanismo aparecem como os princípios urbanísticos largamente compreensíveis e aceitáveis pelos diversos atores.

De fato, no contexto francês, nas discussões mais recentes sobre “Le Grand Paris”, é possível encontrar diferentes manifestações nesse sentido, em que a paisagem ganha importância na definição do futuro da grande aglomeração.7

A propósito das afirmações citadas e tomando como base a realidade brasileira, o fato de atualmente existirem critérios e restrições legais relativos à preservação do am-biente natural, consubstancia, entre nós, a possibilidade de interferir efetivamente sobre o território. Entretanto, ainda estamos longe da definição de grandes partidos paisagísticos para a metrópole; os planos mais recentes para Campinas (2006), por exemplo, abordam de forma extremamente tímida esta questão. Portanto, a observação dos atuais critérios ambientais tem a qualidade de provocar a incorporação de quantidades significativas de espaços livres, principalmente nas áreas de expansão do território urbanizado. Por outro lado, esses mesmos critérios ambientais, em seu formato legal, não trazem implícitas as formas de incorporação desses novos espaços livres à estrutura urbana e à paisagem da ci-dade. Por enquanto, o que temos é uma nova complexidade: a preservação de espaços com critérios e qualidades ambientais e paisagísticos, sem que, com isso, estejam garantidas a existência da paisagem e sua publicidade. Preservam-se, portanto, espaços de futuro, espa-ços de possibilidade. Neste sentido, são importantes as acepções otimistas de Secchi, não exatamente como representação, mas principalmente como possibilidade de construção de um futuro (Secchi, 2006, p.179):

O futuro será provavelmente marcado por uma conscientização, cada vez maior, de nossas responsabilidades em relação ao ambiente, seja nos seus aspectos mais gerais e difusos, indica-dos normalmente com o termo global change, seja nos seus aspectos mais específicos e locais, como a tutela do risco hidrogeológico ou a defesa contra qualquer tipo de poluição. [...] Isso introduzirá, no espaço dilatado da cidade contemporânea, novos materiais, modificando-lhe a imagem. [...] Além do projeto de algumas vastas áreas protegidas, concebidas como grandes reservas naturais, e de uma rede de grandes corredores ecológicos que as interligam, talvez nos convençamos também a enfrentar o grande tema da naturalidade difusa.

Esta argumentação reforça a importância do momento atual, totalmente propício a “naturalizar” algumas escolhas e introduzir critérios socioambientais como parâmetros de um novo urbanismo. Os termos e os temas que a inserção da paisagem e do ambiente trazem implícitos – esfera da vida pública, espaços livres e paisagem – na era da megaló-pole são, entretanto, de complexidade bem maior que a simples definição de áreas livres, praças e largos. Ainda nos encontramos em debates tendo como referência a Lei Federal

7 Ver a esse respeito o número 376 da revista L’Architecture d’Aujourd’hui, fevereiro-março, 2010, total-mente dedicado às discus-sões sobre a “Grande Paris”, em que dez equipes de arqui-tetos e outros especialistas apresentam propostas para o futuro da megalópole.

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n.6.766/79, ou seja, um marco legal de parcelamento do solo desatualizado quando as questões envolvem ambiente, paisagem e a metrópole contemporânea. Assim, o estudo das transformações engendradas pela metrópole sobre o movimento cotidiano de seus ha-bitantes, sua relação com os novos espaços de vivência e de preservação é de fundamental importância quando o assunto é a paisagem e o sistema de espaços livres.

MEGALÓPOLE: ESFERA DA VIDA PRIVADA E ESFERA DA VIDA PÚBLICA

A discussão envolvendo a esfera da vida pública na contemporaneidade remete, necessariamente, ao seu complementar e aparente oposto, a esfera da vida privada. Do ponto de vista urbanístico, a “oposição” entre a esfera da vida privada (a habitação, a intimidade) e a esfera da vida pública, de meados do século XIX até início do século XX, evocou os espaços de uso público – em grande parte produzidos pelo setor público as passagens comerciais, as galerias, muito comuns no século XIX, eram espaços privados de uso público, gerados para a coletividade –, mas sem utilizar a denominação genérica de “espaço público”, e muito menos “esfera da vida pública”. Tratava-se mais propriamente de ruas, praças e parques.

Posteriormente, com a Carta de Atenas, o urbanismo moderno nos traz novas no-ções, introduzindo as de espaços verdes, superfícies livres, instalações comunitárias, espa-ços de lazer e recreação e, com elas, surgiu uma imprecisão até então inexistente entre os domínios privado e público, que em parte permanece até hoje. Os espaços livres públicos, ou os espaços de domínio público, até então, segundo Bernard Huet (2001, p.147-8), atuavam como estruturadores do espaço privado; eram ordenadores dos objetos arquite-tônicos. Com o urbanismo moderno, são transformados em espaços residuais.

No Brasil, segundo Sergio Luiz Abrahão, essa discussão envolvendo a expressão espaço público e seus diferentes significados aparece claramente nas apresentações do Seminário Internacional Centro XXI, realizado em São Paulo, em outubro de 1995. Participaram desse seminário “os principais mentores e articuladores de algumas das mais notórias intervenções ocorridas naqueles anos em cidades europeias, como Paris, com Bernard Huet e, principalmente, Barcelona, com Jordi Borja e Manuel de Solá-Morales” (Abrahão, 2008, p.44).

De modo geral, os autores das apresentações desse seminário deixam claras sua posição e a importância por eles atribuída ao espaço público enquanto elemento estru-turador da cidade. Entretanto, é importante ressaltar e diferenciar duas concepções que protagonizaram de forma marcante esse seminário, e que são importantes na reflexão proposta por este texto. Para Jordi Borja, o espaço público “não era o espaço residual, compreendido entre a fachada e a rua, nem o vazio considerado público apenas por ra-zões jurídicas e/ou ambientais, mas sim o ‘espaço cidadão’: espaço urbanístico, cultural e político, cuja configuração espacial considerava de fundamental relevância para a forma da cidade” (ibidem, p.48). Já Solá-Morales “defendeu a manutenção e requalificação de todos os espaços que conformavam o cotidiano de uma sociedade, independentemente de serem de domínio público ou não” (ibidem, p.55). Com este posicionamento, pro-punha intervir nos lugares por ele identificados como espaços coletivos: um tecido que, como os espaços públicos, configuravam os “itinerários mestres da vida do cidadão” (Solá-Morales, 2001, p.102).

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A introdução dessa questão ganha sentido, em nosso entender, quando constatamos que algumas dessas posturas em relação a espaço público e esfera da vida pública perdem relevância ou podem ser relativizadas quando se trata de manifestações contemporâneas. Nesse novo contexto, a “oposição” público-privado, em seu sentido mais amplo de esfera pública e esfera privada, vai muito além da oposição interior-exterior, espaço livre-espaço edificado. A relação da esfera da vida pública contemporânea com os espaços livres tor-nou-se mais complexa. A recomposição espacial das atividades de um cotidiano engendra-do como parte do significado de megalópole retira parte da inter-relação tradicional entre esfera da vida pública e os espaços livres de caráter público.

Esse novo entendimento da inter-relação entre esfera da vida pública e os espaços livres de uso público é visivelmente influenciado por uma série de elementos que caracterizam o modo de vida contemporâneo em universo megalopolitano. Essa distinção é fundamental para que não se generalizem soluções para universos e situações em que o problema ainda não existe. Isto posto, podemos indicar alguns dados e/ou elementos que têm concorrido para modificar a inter-relação entre esfera pública e espaços livres de uso público:• A incorporação ao ambiente privado, à habitação, de funções que em outros tempos

eram realizadas em espaços exteriores: 1) o trabalho, que mesmo para atividades terci-árias tradicionais (bancários, jornalistas, etc.), pode atualmente ser realizado em casa, no âmbito da esfera privada; 2) o lazer, em que a televisão toma lugar do cinema; 3) a Internet limitando os encontros físicos, tanto pessoais como comerciais.

• A mobilidade crescente de parte da população (estratos de renda A, B e parte da C) e o enfraquecimento das relações sociais de proximidade, tornando obsoletos, do ponto de vista da vivência e utilização, uma parte dos espaços públicos de vizinhança e os equipamentos de bairro. Não são raras as reclamações, sobretudo em bairros de renda média e alta de baixa densidade, de que praças são locais abandonados ou mal utiliza-dos, tornando-se perigosos e indesejáveis.8

Do ponto de vista da construção e da gestão dos espaços que gozavam de estatuto essencialmente público, também ocorrem redefinições significativas:• O desenvolvimento de novas infraestruturas possibilitando deslocamentos mais rápi-

dos, seja por meio de transporte individual, seja por meio de coletivo (rodovias e vias expressas);

• As concessões (cada vez mais numerosas) à iniciativa privada de serviços que eram essen-cialmente públicos. Com isso, os serviços e os espaços públicos a eles vinculados passam a ser geridos a partir de lógicas privadas (metrô, estações de trem, terminais de ônibus etc.).

Essas redefinições modificam substancialmente as formas de uso e os próprios es-paços relacionados com a vida pública, de modo que esses, muitas vezes, se assemelham a espaços privados de uso coletivo. Portanto, a concepção de Solá-Morales, ao conceder importância não exclusiva aos espaços públicos, mas aos espaços de uso coletivo que conformam a vida cotidiana dos cidadãos, parece-nos colocar a discussão em um patamar mais abrangente e pertinente a essa nova dinâmica urbana, megalopolitana, em que as no-ções de público e privado se transformam e são objeto de questionamentos e redefinições.

Os espaços públicos, ou melhor, os espaços que atualmente hospedam a vida pública – livre ou construído, de propriedade pública ou privada – dependem das práticas que acolhem, que tornam possíveis, ou ainda, práticas que esses mesmos espaços favorecem a existência. Assim, em um determinado espaço, são os passantes – fato que em nosso entender já constitui vida pública9 – que, em suas atividades e suas interações, podem caracterizar e diferenciar a esfera pública da esfera privada (Ascher, 1995, p.257-8).

8 As transformações ou, por assim dizer, as metamorfo-ses da inter-relação entre esfera pública e espaços livres públicos é um fenô-meno que afeta de forma generalizada os lugares nos quais se desenvolvem as práticas sociais na metró-pole contemporânea. Entre-tanto, o esvaziamento dos espaços públicos e o en-fraquecimento das relações sociais de proximidade ainda são visivelmente mais fortes nos espaços existentes em bairros onde predominam os estratos de renda A e B, apesar de serem estes os espaços mais qualificados e preservados existentes na cidade.

9 Para o conceito de esfera pública, toma-se como base a distinção e a relação pro-posta por Queiroga et. al. (2009) entre “esfera pública política” (a esfera pública em sentido estrito, arendtiano) e a vida em público, denomi-nada “esfera pública geral”, que envolve desde a escala cotidiana até os eventos pú-blicos de caráter político. A esfera pública política se constitui a partir da esfera pública geral, como a ponta de um iceberg, de tal modo que não se pode compre-endê-la de maneira isolada, mas dialeticamente relacio-nada à esfera do cotidiano.

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Nas situações metropolitanas contemporâneas, o coletivo assume de forma cada vez mais frequente o caráter de (uso) público, exprimindo certa privatização da cidade. Nesse contexto, é preciso questionar tanto o significado quanto a concepção dos espaços onde se desenvolve a vida pública, ou seja, onde se expressa de fato a esfera da vida pública. Por extensão, também devem ser colocados sob análise os espaços hoje destinados por lei como locus da vida pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – ESPAÇO PÚBLICO E ESFERA DA VIDA PÚBLICA

A relação entre espaço público e esfera da vida pública nos coloca questões de funda-mental importância. De um lado, o modo de vida diretamente influenciado pelo contexto megalopolitano sugere certo esvaziamento da vida pública nos lugares públicos tradicio-nais. Esta não é uma verificação recente, e sobre ela já se manifestaram vários autores.10 Levando em consideração essa afirmação sobre a perda de significado dos espaços públicos tradicionais, podemos inferir que as práticas e a própria legislação urbanística estariam superdimensionando as diferentes escalas de espaço público: da habitação, dos espaços de vizinhança aos espaços na escala metropolitana (Ascher, 1995, p.260). Nesta reflexão, é importante esclarecer que a consideração de superdimensionamento traz implícita a ideia de espaços destinados a funções de caráter público – lazer, diversão e encontro –, e que são espaços em que predomina, por vezes, o vazio social, o não uso.

Em uma primeira avaliação, portanto, restrita aos termos de sua função na esfera da vida pública, esses espaços não estariam cumprindo sua função social. Cabe ressaltar que essa não é a única função dentre as funções possíveis de um espaço livre público. Acrescentando maior complexidade a essa análise, a urbanização das cidades brasileiras, especialmente nas principais cidades e metrópoles, não ocorre de forma a constituir espaços edificados definitivos. São bastante comuns a verticalização e o adensamento de bairros inteiros concebidos inicialmente como áreas horizontais. Desse modo, o que em um primeiro momento da história de uma cidade poderia ser classificado como superdimensionado, em um segundo momento pode perder essa conotação ou mesmo mostrar-se exíguo.11

Outra questão igualmente relevante é o papel ambiental dessas áreas, que contri-buem para a permeabilidade e a drenagem urbana e, quando arborizadas, favorecem a amenização do microclima, podendo, inclusive, incrementar a biodiversidade.

Feitas essas considerações, também não podemos nos furtar ao que nos mostra a rea-lidade de vários desses espaços. No estudo dos espaços livres, quantos desses locais não se encontram totalmente abandonados e permanentemente vazios? Quantos desses espaços, apesar de propriedade pública, ainda aguardam por uma qualificação mínima?

Ver e constatar as características continuamente mutáveis da cidade contemporânea constitui, segundo Secchi (2006, p.148), uma operação complexa. Observar os lugares onde se desenvolvem as práticas sociais e daí fazer narrativas precisas é uma tarefa que im-plica em dificuldades enormes. Portanto, interrogar-se sobre as práticas urbanísticas toma-das até recentemente como verdades universais, tornou-se imprescindível. Qual a razão do abandono e do vazio a que foram confinados os espaços programados para o uso público?

Em uma primeira aproximação, poderíamos inferir sobre a incapacidade adminis-trativa de projetar e programar espaços com certa atratividade. Esta afirmação ganha

10 O “declinio do espaço pú-blico” tem sido uma temática recorrente nos últimos 100 anos, mesmo antes do ad-vento das novas condições de urbanização tratadas aqui neste texto. Choay, em seu livro O Urbanismo, refere-se a Camilo Sitte, um urbanista do final do século XIX, dan-do conta deste declinio do uso dos espaços públicos como esfera pública, e afir-mando que sua única razão de ser consistia em propor-cionar mais ar e luz. Mais recentemente, na segunda metade do século XX, Ri-chard Sennett, com o livro O Declínio do Homem Público, produz uma obra referencial argumentando sobre a perda de importância do espaço público.

11 Esta reflexão não tem correlação alguma com a fle-xibilização da Lei n.6.766/99 trazida pela sua atualização na forma da Lei n.9.785, de 1999, a qual permite ao poder público municipal redefinir diversas questões a respeito do parcelamento do solo. A flexibilização propos-ta na Lei n.9.785/99 respon-de, de forma mais explícita, aos interesses imobiliários locais, sem jamais entrar na discussão dos espaços públicos enquanto interesse público, enquanto função, qualificação e quantidade dos espaços de caráter e uso público no contexto da metrópole e, menos ainda, da megalópole.

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sentido, primeiro, pela incorporação recente de quantidades significativas de espaços livres públicos nas áreas de expansão urbana,12 e segundo, porque o sentido atual desses espaços não tem sido devidamente retomado e problematizado. Dito de outra maneira, poderí-amos indicar a inadequação desses em dar suporte a atividades coletivas ou públicas que passaram a ocorrer mediante novas formas e em locais distintos dos programados como espaços públicos.

Portanto, mais importante que se ater às predeterminações legais atualmente existen-tes sobre espaços e equipamentos de uso público, seria um questionamento se eles real-mente correspondem às práticas atuais e às necessidades da população, sejam elas oriundas de seu papel ambiental, de lazer ou de vida pública.

Por certo, não se trata de substituir ou negar a importância dos espaços tradicionais de uso público e dos contextos locais. A cidade e a vida urbana são frutos de conflitos e acumulações. Mesmo defendendo a importância dos espaços e das vivências derivadas da megalópole, não há como negar que é nas periferias mais ou menos consolidadas que vive parte significativa da população megalopolitana (rendas C, D e E), e é nas ruas, espaço público por excelência, nos campinhos de futebol e, eventualmente, nas praças e parques, quando existentes e implementados, que se realiza parte significativa dos encontros públi-cos dessa parcela da população, associados, sem dúvida, a bares, mercadinhos, lan houses, igrejas, bailes e similares.

Assim, não se trata, nesta reflexão, de contrapor e/ou descartar a necessidade de qua-lificação desses espaços públicos da periferia com a necessidade de valorizar igualmente os espaços da vida pública de natureza megalopolitana. Essas são, por assim dizer, as faces visíveis, o caso e o descaso da esfera pública contemporânea na megalópole do Sudeste.

Portanto, voltando ao foco central desta reflexão, se parte das relações de vizinhança se retrai é deslocando-se, de um lado, em direção ao “habitat”, à intimidade, à esfera privada, e, de outro, em direção à cidade, à vida pública e coletiva. O desenvolvimento das sociabilidades e das práticas megalopolitanas é o correlato daquele das práticas em domicílio: se é certo que, sob determinadas condições, os habitantes das megalópoles frequentam cada vez menos a vida pública existente nos seus bairros – os cinemas, os comércios, os bares, as igrejas –, provavelmente eles passam cada vez mais tempo em espaços ligados à atividade de circulação e deslocamento, e utilizam cada vez mais os espaços especificamente megalopolitanos: os centros comerciais integrados, os parques, os grandes equipamentos de lazer, os “centros” de negócios, as “zonas” de atividades, os “pólos” científicos e técnicos.

Se esse “declínio do espaço público” vem realmente ocorrendo, como afirmam di-ferentes autores,13 o futuro da cidade será marcado por uma profunda redistribuição do espaço público, diminuindo o uso de espaço de propriedade e gestão pública e aumentan-do aqueles de propriedade e/ou gestão privada. Essa privatização da cidade, do ambiente público, pode ter consequências bastante graves, no sentido de induzir, ou mesmo provo-car, processos cumulativos de inclusão-exclusão (Secchi, 2006, p.181).

Dessa situação é possível concluir que o sistema de espaços destinados à vida pública, livres ou edificados, públicos ou privados, adquire, na metrópole contemporânea, signi-ficados mais amplos e complexos. Com isso, urbanistas e administradores devem acordar em igual atenção a esses espaços da megalópole, pois são também lugares que, muito além da necessidade de qualificar, adaptar e resgatar, podem igualmente significar a manuten-ção de espaços democráticos. Portanto, a consideração da esfera da vida pública na análise dos sistemas de espaços livres públicos não pode, de forma alguma, manter-se reduzida

12 Segundo Secchi (2006, p.180), “a dilatação do espaço aberto e, em par-ticular, do espaço público que acompanhou progres-sivamente a formação da cidade contemporânea, deu origem, nos diversos pa-íses europeus, a algumas contradições fundamentais, de diferentes importâncias. Elas se manifestam como resultado das dificuldades da política fiscal e da política de despesas das administra-ções locais, que acabam não podendo sustentar os custos da organização e da gestão dos espaços públicos virtu-almente previsíveis. É essa a razão pela qual são cada vez mais numerosas e ex-tensas as áreas destinadas a práticas coletivas, ligadas ao esporte, ao lazer e às compras, de propriedade e gestão privada: shoppings malls e shoppings strips, es-tádios, áreas esportivas, par-ques temáticos, centros de congressos, salas de músi-ca, discotecas, museus etc.”

13 Assim como na nota de número 10, é possível indi-car vários outros autores, ainda não citados, constan-tes nas referências biblio-gráficas e que tratam dessa retração de uso e do declínio do espaço público: Ascher, F., Metapolis ou l’avenir des villes, 1995; Mongin, O., A condição urbana: a cidade na era da globalização, 2009; Secchi, B., Primeira lição de urbanismo, 2006.

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apenas aos seus papéis mais comumente destacados (lazer e conservação ambiental), mas se desenvolver também como locais que poderão garantir a inclusão e a democratização dos novos espaços no cotidiano dos habitantes da metrópole, lugares que dão suporte, comportam e importam na vida cotidiana: circulação, transbordo, comércio, trabalho, consumo, lazer e esporte, considerando a potencialidade e a qualidade de convívio público de todos esses espaços.

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Denio M. Benfatti é profes-sor doutor do Mestrado em Urbanismo, Pontifícia Univer-sidade Católica-Campinas. E-mail: [email protected]

Eugenio F. Queiroga é professor doutor da FAU-Uni- versidade de São Paulo; pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]

Jonathas M. P. Silva é pro-fessor doutor do Mestrado em Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica-Campi-nas. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em outubro de 2010 e aprovado para publicação em fevereiro de 2011.

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A b s t r a c t The paper reflects on new forms of metropolitan growth and expansion, associating them with equally significant changes in the sphere of public life. The daily expression of this process of expansion and growth can be perceived through two complementary mouvements. On the one hand, the growth in number and extent of daily displacements between communities within the same metropolitan area. On the other, reflecting changes in the metropolitan way of life, flexible schedules and individualization of production and consumption practices. Our focus is the metropolis of Campinas as part of the metropolization process that occurs in the vicinity of the capital – São Paulo. Our hypothesis is that these transformations are not restricted to new names for an extended process of urbanization, but that they have generated new patterns and spaces of sociability, and more than that, they have generated a specific ways of life and production. In this reflection, we are interested in showing how this new dynamic affects the sphere of public life and in discussing the definition and constitution of open space systems.

K e y w o r d s Megalopolis; fragmented urbanization; public life sphere; public space; open space system.

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PRESERVAÇÃO AMBIENTAL NO CONTEXTO URBANO

Cidade e Natureza na Ilha de Santa Catarina

A l m i r F r a n c i s c o R e i s

R e s u m o A Ilha de Santa Catarina, onde se situa a maior parte do município de Florianópolis, no sul do Brasil, tem cerca de 42% de seu território enquadrado como Área de Preservação Permanente, índice extremamente elevado, talvez único no país. Estas áreas constituem barreiras ao processo de ocupação, caracterizando de modo marcante o tecido descontínuo da cidade, apesar da intensidade das transformações por que vêm passando, a partir do desenvolvimento urbano-turístico. O presente trabalho, tendo por base aportes colocados pelo paradigma ambiental e a busca por uma cidade articulada por uma rede de espaços livres públicos densa e carregada de urbanidade, faz uma leitura histórica desse pro-cesso. Analisa os impactos sobre ecossistemas costeiros e reflete sobre possibilidades e limitações das áreas de preservação ambiental no contexto urbano.

P a l a v r a s - c h a v e Preservação ambiental; crescimento urbano-turísti-co; projeto urbano; Ilha de Santa Catarina; Florianópolis.

APRESENTAÇÃO

A busca por uma cidade socialmente justa e ambientalmente sustentável tem sido um dos principais focos do Planejamento Urbano no presente. Urbanidade – entendida como atributo do meio urbano de propiciar interações sociais intensas e diferenciadas – e preservação ambiental constituem aspectos extremamente importantes das cidades, e têm sido, muitas vezes, colocadas em oposição, jogando em campos aparentemente opostos defensores de uma ou outra dimensão urbana. Em termos da pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, essa inquietação tem consolidado linhas de estudo extremamente promis-soras, que relacionam práticas sociais a redes de espaços públicos e estudos cuja análise da cidade contemporânea percorre o viés do pensamento ecológico, no sentido de um desenvolvimento urbano mais sustentável.

Este artigo busca avançar essa discussão, relacionando aportes que o paradigma am-biental coloca, no presente, ao planejamento e ao projeto urbano, à busca por uma cidade articulada por uma rede de espaços livres públicos densa e carregada de urbanidade. Estu-dando especificamente a parte insular de Florianópolis, a Ilha de Santa Catarina, aqui se faz uma leitura das transformações urbano-ambientais atuais, a partir do desenvolvimento urbano-turístico, e se relaciona este crescimento com possibilidades e limitações dadas pela estrutura espacial adquirida em seu devir histórico. Além disso, refletindo acerca das espe-cificidades de uma cidade dispersa por sobre um sítio extremamente peculiar, são discutidas as relações estabelecidas entre tecido urbano e áreas de preservação ambiental no presente.

Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, vem apresentando altos índices de crescimento, com a afluência de significativo contingente migratório que expressam

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fluxos cuja origem se encontra na zona rural do estado. Além disso, a cidade vem se voltando cada vez mais para o turismo, em um ritmo e em uma intensidade que nos per-mitem afirmar que as grandes transformações socioambientais por que tem passado nos últimos tempos – especialmente em sua porção insular, a Ilha de Santa Catarina – tem nessa atividade seu motor principal.

Com grande riqueza ambiental e paisagística, a Ilha de Santa Catarina tem cerca de 42% de seu território (189,42 km2) enquadrados como Área de Preservação Permanente (APP), índice extremamente elevado, talvez único no Brasil. O conjunto dessas áreas constrói figura que se expande por toda a Ilha, se interpondo entre as diversas áreas com ocupação urbana e turística. Do correto agenciamento entre as áreas em que predominam as características naturais do espaço e aquelas em que predominam as adaptações feitas pelo homem, depende, certamente, a qualidade ambiental da cidade.

Na medida em que valores ambientais (relacionados com o potencial que os ecossis-temas têm, enquanto estruturas ecológicas que permitem a manutenção de seres vivos e seu inter-relacionamento) ou paisagísticos (que indicam a distinção de determinados luga-res em relação aos demais) decorrem de consensos histórica e socialmente determinados; entende-se, neste trabalho, que uma relação harmoniosa entre cidade e natureza se consti-tui como uma expectativa social e uma linha de atuação urbanística a ser perseguida. Tal postura implica nos ideais de manutenção dos processos ecológicos, dos suportes de vida essenciais, da diversidade genética e da sustentabilidade das espécies e dos ecossistemas naturais. Implica, outrossim, na busca da qualificação do espaço construído, componente fundamental desta paisagem, que pode ser pensado em sintonia com o quadro natural.

Estudar o processo de construção do espaço urbano implica trabalhar o tempo co-mo variável de análise, incorporando a história aos estudos urbanísticos. Neste trabalho, priorizamos as relações estabelecidas entre processos de crescimento urbano-turístico e estruturas territoriais decorrentes de adaptações ambientais anteriores, o que permitiu captar características bastante específicas do processo de transformação urbano-ambiental por que passa a Ilha de Santa Catarina. Esta leitura teve como base conceitual e metodo-lógica principal o trabalho “As Formas de Crescimento Urbano” (Sola-Morales, 1993), que propõe o estudo do processo de construção do espaço urbano a partir da sequência temporal em que acontecem as operações de transformação urbana e territorial, destacan-do o parcelamento da terra como variável analítica fundamental. Estas análises tiveram como referências, também, estudos que correlacionam cidade e natureza (McHargh, 2000; Spirn, 1995; Hough, 1998) ou, especificamente, desenvolvimento turístico e ecossistemas costeiros (entre outros, Vera, 1997), cuja abordagem comparece de modo implícito na formulação do trabalho. Estudos prévios da Ilha de Santa Catarina (em espe-cial Reis, 2002) permitiram o avanço ora apresentado, com a formulação de uma leitura panorâmica que incorpora aspectos históricos e ambientais, no sentido de refletir sobre o presente, e possibilidades futuras de qualificação dos processos de transformação por que passa a Ilha no presente.

O trabalho estrutura-se em duas partes interdependentes. A primeira delas apre-senta a estrutura ambiental da Ilha de Santa Catarina, caracterizando ambientes naturais e lendo o processo histórico de ocupação do território. Esta leitura histórica destaca as adaptações coloniais, em especial o parcelamento agrícola da terra, que condicionou enormemente a ocupação urbano-turística, as diferentes lógicas temporais dos processos de crescimento urbano-turístico, bem como o caráter dos impactos ambientais daí de-correntes. A segunda parte do trabalho discute o papel urbano e ambiental das áreas de

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preservação ambiental e infere diretrizes no sentido da qualificação de sua interface com o sistema urbano. As considerações finais do trabalho aprofundam as conclusões parciais elaboradas, discorrendo sobre possibilidades e limitações das APPs da Ilha de Santa Ca-tarina, entendidas como componente fundamental da estrutura de espaços públicos da cidade de Florianópolis.

A reflexão apresentada é resultado de inúmeras pesquisas e trabalhos de extensão realizados. Desde 1994 temos desenvolvido estudos relativos ao espaço costeiro catari-nense, em especial sobre a Ilha de Santa Catarina. Estes estudos levaram à elaboração de quadros bastante abrangentes acerca das formas e dos processos de transformação urbano-turísticos. Procedimentos de foto-interpretação permitiram acompanhar o processo de crescimento urbano, dimensionar e refletir acerca de seus impactos ambientais. O estudo do modo como as diferentes formas de crescimento urbano-turístico estabelecem interfa-ces com o meio natural permitiu destacar a especificidade das lógicas de impacto ambien-tal estabelecidas por crescimentos graduais ou instantâneos, planejados ou espontâneos, oficiais ou clandestinos.

Figura 1 – Ilha de Santa Catarina, localização nos contextos nacional e estadual.

Fonte: elaboração do autor.

ILHA DE SANTA CATARINA. TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS

O litoral catarinense, no trecho que vai da Baía de Babitonga ao Cabo de Santa Marta, em Laguna, apresenta uma costa extremamente recortada, com inúmeras saliências e reentrâncias, principalmente ao sul da foz do rio Itajaí-Açú. Estes recortes litorâneos devem-se, em grande parte, ao contato entre maciços rochosos, que compõem o embasa-mento cristalino (serras do leste catarinense) e as áreas de sedimentação (planícies litorâ-neas), evidenciando a predominância de ações e processos marinhos e eólicos.

A Ilha de Santa Catarina, onde se localiza a capital do estado, constitui marco extre-mamente importante no contexto deste litoral. Afastada da linha da costa por uma dis-tância de até 5 km, com 424,4 km2, a Ilha desenvolve-se entre as latitudes 27o22’e 27o50’, paralelamente ao litoral, com eixo longitudinal que mede aproximadamente 55 km na direção N-S. É separada do continente pelas baías Norte e Sul, que são unidas pelo Canal do Estreito, onde encontram-se as pontes que ligam a Ilha ao continente.

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O clima é bastante úmido, com precipitações médias de 1406 mm e temperatura média anual de 20oC. Em janeiro, alta estação, a temperatura média é de 24,3oC e, em julho, de 16,4oC. Os ventos têm um importante papel no clima local, sejam os mais frequentes, provenientes do quadrante nordeste, sejam os de maior intensidade, do qua-drante sul, que levam a súbitas mudanças de temperatura.

A formação geológica da Ilha revela um processo em que grandes blocos configu-raram inicialmente um arquipélago com cerca de 20 ilhas graníticas, atravessadas por diques basálticos. Estas ilhas foram posteriormente unidas por aluviões e sedimentos marinhos depositados em muitos milênios. A proximidade com o continente permite considerá-la uma ilha continental, configurada por uma imensa variedade de acidentes geográficos: praias, rios, morros, dunas, promontórios, lagos, ilhas. Caracteriza-se por um maciço cristalino central, dividido em duas porções pela planície do Campeche. Ao sul temos as maiores altitudes, que atingem seu ponto máximo no Morro do Ribeirão (519m). Os divisores de água destas elevações separam as diferentes planícies costeiras e bacias fluviais de pequeno porte.1

Figura 2 – Ilha de Santa Catarina – ambientes naturais originais. O maciço cristalino central, coberto por Mata Atlântica, leva a diferenciações notáveis nas faces leste (com o predomínio de restingas e dunas) e oeste (com o predomínio de manguezais).

Fonte: elaboração do autor a partir de informações obtidas em Klein e Coura Neto (1991), Rosa Filho (1984) e Caruso (1990).

1 Para uma leitura geomor-fológica da Ilha de Santa Catarina ver Cruz, 1998.

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Os Ecossistemas Naturais

Diferenciações notáveis acontecem nas faces leste e oeste da Ilha, divididas pelo maciço cristalino. A face leste, em contato com as águas tranquilas das baías norte e sul, possui elevações suaves e tem sua costa desenhada por pequenas enseadas e praias tranqui-las. As várias planícies costeiras aí existentes são drenadas por bacias fluviais terminadas em pequenos estuários, contendo manguezais em seus baixos e médios cursos. As demais bacias situadas nesta face, de menor porte, também apresentam manguezais e, em alguns casos, pequenas formações de dunas.

Já a face oeste, exposta ao mar aberto, às ondas oceânicas e aos ventos, apresenta planícies margeadas por praias bastante extensas. Apresenta também grandes lençóis de dunas, móveis ou já cobertas por vegetação. Cordões arenosos isolam lagoas e depressões úmidas, com destaque para a Lagoa da Conceição, de águas salgadas, e a do Peri, de águas doces. As contribuições fluviais são bem menores, representadas por pequenas ba-cias e pelos sangradouros das duas lagoas. Quando o mar atinge diretamente os maciços costeiros, desenvolvem-se costões abruptos, terminados em blocos e lajes de pedra de grandes dimensões.

Esta enorme diversidade morfológica e de tipo de solo propiciou o desenvolvimento de vários ambientes e diferentes ecossistemas naturais. A Mata Atlântica desenvolveu-se junto às encostas dos morros. Nas áreas planas e de solo arenoso desenvolveu-se vegetação de restinga formada, principalmente, por arbustos e ervas. Os manguezais, que têm seu limite austral no litoral catarinense, localizaram-se nas margens das baías e nas desemboca-duras dos principais rios. Somam-se a estes ambientes, campos de dunas, costões rochosos, baías, ambientes lagunares.

A concentração, em área bastante pequena, de tal diversidade de ambientes e habitats para a fauna, a flora e o homem é, certamente, a maior em todo o Estado de Santa Cata-rina e, de certa forma, sintetiza muitas das características ambientais de todo o seu litoral. A Ilha constitui patrimônio natural de valor inestimável, propiciando paisagens de grande beleza, que têm sido cantadas desde os primeiros viajantes que nela passaram. Variedade e beleza que têm constituído, também, o atrativo principal para os milhares de turistas que a cada verão deslocam-se para este ponto do Atlântico Sul.

Estes ambientes vêm sendo sistematicamente modificados pelo homem, seja em con-sequência das práticas agrícolas iniciadas com a colonização, seja com o ciclo econômico consolidado a partir dos anos 1970, desde quando o turismo associado à formação de bal-neários e à construção civil tem levado à urbanização de extensas faixas do seu território. As dificuldades colocadas à ocupação humana pelos ecossistemas costeiros (manguezais, dunas, elevações etc), associadas ao processo histórico de ocupação de seu território, têm contribuído de forma expressiva na consolidação descontínua de Florianópolis sobre a Ilha de Santa Catarina.

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Figura 3 – Ilha de Santa Catarina – ocupação colonial. A estrutura polinucleada de Flo-rianópolis constitui resposta tanto às dificuldades colocadas pelo sítio quanto ao processo histórico de desenvolvimento da cidade, cuja gênese evidencia vários núcleos relativamen-te autônomos.

Fonte: elaboração do autor.

A Ocupação do Território

A origem de Florianópolis, no século XVII, resulta da importância de sua localização no litoral meridional do Brasil, na metade do caminho entre o Rio de Janeiro e a Colônia do Santíssimo Sacramento, na foz no Rio da Prata. A construção, em 1678, de pequena capela dedicada a Nossa Senhora do Desterro, no sítio onde hoje se encontra o centro da cidade, marca a fundação da vila do Desterro, primeiro nome dado à localidade. Os conflitos entre Espanha e Portugal pelo domínio da Ilha levaram Portugal, a partir do século XVIII, a executar um projeto de ocupação e defesa, consolidado por ocupação mi-litar, construção de fortalezas e ocupação do território por imigrantes de origem açoriana.

Entre 1748 e 1756 chegaram à Ilha mais de 6.000 açorianos, fato que produziu repercussões culturais muito intensas, encontradas até hoje no cotidiano da cidade, na paisagem e no imaginário popular. Foram criados diversos núcleos, posteriormente pa-róquias (freguesias), e a partir deles, a ocupação do território se expandiu. Estes núcleos, associados aos diversos fortes e quartéis, foram unidos por uma rede de transportes e co-municações marítimas e terrestres. A vila do Desterro, localizada no ponto em que a Ilha mais se aproxima do continente, centralizou esta rede, concentrando o porto principal e o aparato político e administrativo.

Criando uma economia local baseada na pequena propriedade, com a ocorrência de diversos cultivos e atividades manufatureiras, a “ocupação colonial” levou à uma formação social que se manteve até há pouco tempo, principalmente no modo de espacialização

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sobre o território insular. Seu dinamismo foi se exaurindo a partir do início do século XX, com o desgaste dos solos, agravado pelo parcelamento indiscriminado e pelo desapareci-mento do porto.

Apesar das intensas transformações por que tem passado nas últimas décadas, o ter-ritório insular mantém ainda características básicas herdadas na sua história de ocupação, destacando-se os seguintes elementos estruturais:2

(i) uma rede de núcleos que articulou o território e permitiu sua ocupação extensiva;(ii) vias aquáticas e caminhos (estradas gerais) que interligaram esta rede, organizando o

parcelamento rural e desenvolvendo ocupações lineares;(iii) áreas agrícolas parceladas, que abrangiam a totalidade do espaço propício ao desen-

volvimento da agricultura, caracterizadas pelas pequenas propriedades longitudinais, perpendiculares aos caminhos;

(iv) propriedades comunais, distribuídas por toda Ilha, constituintes básicos do modo de vida que se instalou.3

A ocupação colonial da Ilha de Santa Catarina levou a uma transformação bastante radical dos ecossistemas costeiros. Apesar das diversas formas de exploração da vegetação (madeiras para construção naval, civil e exportação; lenha para usos domésticos, abasteci-mento dos navios, dos engenhos, curtumes, olarias etc), destaca-se a necessidade de solo para a agricultura como a grande transformadora dos ambientes insulares.

Os dois ecossistemas insulares mais impactados pela ocupação colonial foram a Mata Atlântica e as restingas, a partir da necessidade de solos para a agricultura. Os demais ecos-sistemas insulares sofreram de forma menos impactante os efeitos da ocupação colonial. No início dos anos 1970, período que marca a intensificação da difusão urbana e turística, a agricultura encontrava-se em plena decadência no interior insular. Sob o território ou-trora ocupado pelos diversos cultivos, os ambientes naturais se recuperando configuravam diversos focos de vegetação em diferentes estágios de regeneração. Em meio a este quadro de recuperação da Mata Atlântica e das restingas, por sobre encostas e planícies, instalou-se o crescimento urbano-turístico do presente.

Figura 4 – Ilha de Santa Catarina. A) Impactos da agricultura colonial sobre a Mata Atlân-tica. B) Impactos da ocupação urbano-turística contemporânea sobre a Mata Atlântica. O declínio da agricultura levou à regeneração espontânea da Mata Atlântica, com sua área de distribuição tendo se expandido por grande parte do maciço cristalino central, hoje coberto com floresta secundária ameaçada pela expansão dos usos urbanos.

Fonte: elaboração do autor.

2 Detalhes acerca da estru-tura territorial decorrente da colonização açoriana da Ilha de Santa Catarina podem ser vistos em Reis (2001). Obras que detalham a imigração açoriana ao litoral catarinen-se no século XVIII: Cabral (1950) e Piazza, (1992).

3 Destinadas ao uso comu-nitário, estas áreas situaram-se em terras consideradas não aptas para usos agrí-colas, constituindo um com-plemento das propriedades privadas. Campos (1991) estuda as terras comunais no litoral catarinense, em especial na Ilha de Santa Catarina, e sua relação com o modo de vida das popula-ções locais e o processo de privatização que vêm sofren-do nos últimos tempos.

A B

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O Desenvolvimento Urbano-Turístico

A procura do interior da Ilha de Santa Catarina e de suas praias iniciou-se a partir das praias mais próximas ao centro da cidade; em certos períodos, buscou as praias continentais, depois dirigiu-se às praias mais distantes das baías norte e sul e, finalmente às praias oceânicas situadas nas costas norte e ao leste. Nesse movimento, iniciado nos anos 1950, com a expansão de usos turísticos e segunda residência para as classes médias, a cidade se expandiu por toda a Ilha, rompendo o isolamento do in- terior insular, ocupando os espaços outrora destinados à agricultura, transformando as antigas localidades agrícolas e pesqueiras em balneários. Posteriormente, além da ocupação sazonal, muitos desses balneários passaram a abrigar, também, expressivo número de moradias permanentes.

De forma geral, os processos de crescimento urbano e desenvolvimento turístico vêm se manifestando sobre as preexistências territoriais herdadas da colonização açoriana, e apresentam as seguintes características:(i) núcleos e freguesias sofreram expansão construtiva e populacional, assim como exten-

são territorial;(ii) o parcelamento da terra tem guiado inúmeros crescimentos urbanos e turísticos, cujo

desenvolvimento se caracteriza pela absoluta espontaneidade: colocação gradativa das propriedades no mercado e inexistência de um plano que considere o conjunto;

(iii) a rede de caminhos coloniais (estradas gerais) passou também a estruturar muitos crescimentos urbanos e turísticos da Ilha, principalmente nos assentamentos origina-dos sob a base do parcelamento rural;

(iv) as áreas comunais propiciaram as grandes extensões não parceladas necessárias aos processos de crescimento mais globalizados e centralizados. Neste sentido, sofreram, no correr do tempo, fortes processos de apropriação privada.Estas constatações evidenciam a ocupação colonial como condicionadora das trans-

formações contemporâneas por que passa a Ilha de Santa Catarina, estabelecendo limites e possibilidades aos processos de crescimento, às formas urbanas resultantes, e definindo o caráter e a dinâmica dos impactos ambientais nos ecossistemas costeiros.

Dentre essas condicionantes, o parcelamento rural prévio da terra se destaca, ca-racterizando sobre o território diferentes processos de crescimento, tanto para expansões urbanas quanto para empreendimentos de caráter turístico. Na área onde ocorreu ocupa-ção agrícola intensiva estabeleceu-se uma dinâmica de transformação urbana bastante es-pontânea, caracterizada pelo somatório de inúmeros pequenos empreendimentos, alguns estabelecidos de forma legal (loteamentos, condomínios), e a maioria, de forma clandesti-na. Desse processo tem resultado o típico traçado em “espinha de peixe” que configura, a partir dos caminhos coloniais, ruas estreitas e longas, sem transversais.

Os empreendimentos de maior porte (grandes loteamentos, resorts e condomínios fechados) estabeleceram-se nas terras não parceladas, de uso comunal. Esses assentamentos estabeleceram-se, via de regra, através de empreendimentos legalizados, tendo produzido malhas regulares, embora nos empreendimentos mais recentes este padrão tenha sido substituído por malhas cada vez mais descontínuas.

As distintas lógicas espaço-temporais desenvolvidas nos processos de crescimento urbano-turístico apresentam, também, diferenciações notáveis em termos do modo como impactam os ambientes naturais da Ilha de Santa Catarina. A progressividade do crescimento de assentamentos de caráter espontâneo tem produzido impactos am-

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bientais diluídos no tempo; a existência de projeto de conjunto nos grandes empreen-dimentos coloca a possibilidade de estudos detalhados, no sentido de precisar as formas de ocupação.

No processo de recuperação dos territórios outrora ocupados por cultivo, o que se nota é uma recuperação bastante acelerada da cobertura vegetal, no caso específico das encostas. Áreas onde outrora existiam descampados, roças e rochas expostas, hoje se en-contram encobertas por florestas secundárias. Apesar das muitas ocupações clandestinas, o conjunto das encostas e topos de morros na Ilha, com sua vegetação em recuperação – hoje definidas como Áreas de Proteção Permanente pela legislação federal, estadual e municipal – voltam a formar uma ocupação florestal contínua, que se estende de norte a sul, marcando a paisagem e o ambiente urbano de Florianópolis.

Figura 5 – Ilha de Santa Catarina. Conjunto das áreas de preservação – áreas urbaniza-das. O tecido urbano de Florianópolis se espalha de forma descontínua por toda a Ilha, estabelecendo forte interface com os ecossistemas costeiros e áreas legalmente protegidas.

Fonte: elaboração do autor.

PROTEÇÃO AMBIENTAL E URBANIDADE NO PRESENTE DA ILHA DE SANTA CATARINA

Na Figura 5, as áreas em cinza mostram o conjunto das Áreas de Proteção Permanen-te da Ilha, correspondendo às encostas mais íngremes do maciço cristalino central da Ilha, cobertas por formações primárias ou secundárias de Mata Atlântica, somadas às dunas fixas e semi-fixas, às restingas inundáveis e aos manguezais. Esses ambientes delimitaram a ocupação humana, tanto na utilização agrícola do passado quanto no uso residencial e turístico do presente.

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Obviamente, nos dois momentos, estas áreas sofreram impactos, porém, de uma forma bem mais reduzida que no restante do território. No passado, propiciaram áreas agrícolas, usos coletivos e extrativos; no presente, a indefinição de propriedade tem in-duzido ocupações tanto por grupos de baixa renda quanto por altos extratos sociais, que buscam o contato direto com a orla ou as visuais propiciadas pelas encostas.

Às dificuldades colocadas por estas áreas a uma efetiva ocupação (que incluem tam-bém riscos de aceleração dos processos erosivos nas encostas, de desestabilização de dunas ou de inundações por marés e ressacas), se somam, no presente, sua valorização paisagís-tica, científica e ecológica, e seu potencial como mananciais de água e como lugares para lazer e recreação.

O Plano Diretor dos Balneários (IPUF, 1985) mapeou, pela primeira vez, o conjunto das Áreas de Preservação Permanente (APPs) da Ilha de Santa Catarina, demarcadas a par-tir da legislação ambiental (em instância federal, o Código Florestal e o Código de Águas), além das áreas já protegidas, como parques ou reservas. A aplicação dessas leis sobre a Ilha levou a que 42% de seu território ficassem enquadrados como APP (189,42km2). A existência de legislação em diversos âmbitos, assim como seu enquadramento como APP, não impediu a ocupação de muitas dessas áreas, evidenciando impotência e omissão por parte da administração pública e órgãos de fiscalização.

Os limites entre as áreas em que predominam as características naturais do espaço e aquelas em que predominam as adaptações feitas pelo homem, expressando a relação entre cidade e natureza sobre a Ilha de Santa Catarina, constituem interfaces fundamentais en-tre esses dois sistemas, devendo ser estudados em sua configuração e influências recíprocas.

A intensa dinâmica urbano-turística por que passa a Ilha de Santa Catarina e as pe-culiaridades de uma situação em que cidade e ambiente natural encontram-se relacionados de modo tão intenso, nos levam a algumas reflexões específicas no sentido da preservação ambiental e da qualificação urbana da cidade de Florianópolis. Tais reflexões podem sub-sidiar, localmente, políticas públicas e a ação dos diferentes atores envolvidos no processo (em especial, os órgãos ambientais e de planejamento urbano e os movimentos populares organizados), bem como oferecer referências metodológicas e condições para estudos comparativos com outras áreas costeiras que apresentam características semelhantes.

Patamares de Ocupação Adequados

A condição insular estabelece limites geográficos e grandes fragilidades ambientais. A comparação entre o desenvolvimento demográfico e a análise da legislação urbanística da cidade tem mostrado o quanto as previsões de crescimento realizadas até o momento têm ficado aquém do que vem acontecendo. Por outro lado, o modo como vem sendo planejado o espaço da cidade nos últimos tempos, a partir de modificações localizadas e não articuladas a um projeto global, demonstra uma total falta de critério para com limites estabelecidos ou desejáveis.

A continuidade do crescimento demográfico do município de Florianópolis, nos mesmos índices verificados na última década, levaria a cidade a dobrar sua população em cerca de 20 anos. Com uma taxa geométrica anual de crescimento de 8,80%, os índices de crescimento do interior insular são ainda maiores: a população dobraria a cada 8 anos. A manutenção das médias de crescimento do movimento de turistas faria dobrar o número de turistas em 10 anos. Estes dados, o caráter insular e as fragilidades ambientais do sítio tornam extremamente importante a discussão da intensidade de ocupação que a Ilha de

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Santa Catarina pode suportar, bem como dos instrumentos urbanísticos e legislativos necessários à manutenção desses limites. Mais que determinar um limite rígido, impor-taria identificar, a partir de determinados consensos, as condições ambientais, sociais e econômicas desejáveis. Entre as posições, extremas e inadmissíveis – limitar ao máximo o crescimento urbano e turístico ou incentivar o crescimento descontrolado – existem várias posições intermediárias, certamente mais exequíveis e mais adequadas à realidade da Ilha de Santa Catarina.

Neste contexto, desenhar cenários de futuro para Florianópolis significa perceber que a estrutura socioeconômica do Município não mostra possibilidades de, a curto ou médio prazo, eliminar sua dependência do turismo massivo ou reduzir drasticamente os índices de crescimento populacional, donde a necessidade de buscar uma maior diversificação das atividades econômicas e de qualificação da oferta turística. Significa, também, perceber a diversidade espacial da ilha, entendendo os recursos, necessidades, modos e intensidades diferentes de crescimento das várias localidades.

Figura 6 – O parcelamento agrícola da terra direcionando processos de crescimento urbano-turístico em áreas consolidadas e expansões contemporâneas da Ilha de Santa Catarina. A) Florianópolis, entorno da Avenida Beira Mar Norte. B) São João do Rio Vermelho, no interior insular.

Fonte: fotos do autor.

Os Diferentes Processos de Crescimento e Seus Impactos Ambientais Sobre as Áreas de Preservação Permanente

As distintas lógicas espaço-temporais, verificadas nos processos de crescimento urbano-turístico, apresentam diferenciações notáveis em termos do modo em que impac-tam os ambientes naturais da Ilha de Santa Catarina. Destacamos a progressividade do crescimento urbano gerado pelo gradativo parcelamento das propriedades coloniais, que produz impacto ambiental diluído no tempo e a existência de projeto de conjunto em loteamentos e grandes empreendimentos urbano-turísticos, o que coloca a possibilidade de estudos detalhados no sentido de precisar as áreas de ocupação e de preservação e as configurações urbanas adequadas.

Ocupando áreas já impactadas pela agricultura, o crescimento baseado no parce-lamento rural da terra avança em direção às áreas de preservação ambiental – costas, encostas, mangues, dunas. A progressividade produz situações em que, em uma mesma localidade, podem estar, lado a lado, faixas já urbanizadas, usos rurais, vegetação em

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recomposição e floresta primária. O resultado final do somatório de inúmeras atuações pontuais não planejadas, em sua maioria clandestinas, costuma ser desastroso em termos da paisagem e dos ecossistemas costeiros.

Os loteamentos e grandes empreendimentos contemporâneos apresentam níveis de progressividade muito menores. As transformações ambientais costumam ser bastante rápidas, variando desde os primeiros loteamentos, quando a abertura das ruas era gradual e a construção de infraestruturas e edificações desenvolviam-se em longos períodos de tempo, até os grandes empreendimentos balneários do presente, em que a transformação ambiental acontece de golpe, com a retirada de toda a cobertura vegetal original, retifica-ção de córregos, aterros e movimentos de topografia. Na Ilha, esse crescimento urbano, muitas vezes, desrespeitou critérios de preservação ambiental básicos, invadindo áreas protegidas por legislação federal, estadual e municipal. Como ponto positivo, destaque-se que a existência de projeto, e a necessidade de sua aprovação junto a órgãos públicos, permite a visualização de seus impactos, facilitando o controle pelo poder público e comunidades afetadas.

A observação das últimas polêmicas ambientais travadas na cidade mostra um certo aumento de controle do poder público, através de órgãos ambientais e de planejamento, sobre esses projetos, bem como da consciência empresarial sobre a necessidade de eles es-tabelecerem um relacionamento mais harmonioso com as preexistências ambientais. Este fato demonstra, também, o aumento da valorização paisagística e ambiental dos ambien-tes naturais, por parte da sociedade como um todo. Apesar das inúmeras aprovações, no passado, de empreendimentos que contradizem frontalmente esses valores, tal consciência aponta para um futuro mais respeitoso com os ecossistemas insulares.

Figura 7 – Grandes empreendimentos situados sobre áreas não parceladas previamente, as antigas “propriedades comunais”. A) Jurerê Internacional. B) Balneário Daniela.

Fonte: fotos do autor.

O Impacto das Redes de Infraestrutura e do Traçado Viário numa Estrutura Urbana Dispersa

O somatório dos crescimentos localizados vai transformando a totalidade do territó-rio da Ilha de Santa Catarina. Essas transformações, realizadas sem um planejamento glo-bal, em um primeiro momento utilizam os equipamentos e a infraestrutura preexistentes, exigindo, na sequência, intervenções que articulem o conjunto da ocupação e adaptem o território à realidade urbano-turística. O sistema viário tem sido o primeiro setor a sofrer

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colapso com o crescimento dos fluxos urbanos. Daí a necessidade de se especular alterna-tivas e formas de mobilidade mais adaptadas ao caráter insular da cidade.

No contexto da ocupação dispersa, o sistema viário tem um papel articulador fun-damental. O aumento progressivo de fluxos e trocas, agravados pela sazonalidade da mo-vimentação turística, sobrecarrega os caminhos rurais preexistentes e exige percursos mais curtos entre os distintos pontos do território. Daí a construção de novas vias para des-locamentos sobre a Ilha. Num sítio marcado por descontinuidades, essas vias, buscando caminhos alternativos e traçados mais diretos, cortaram áreas de preservação, impactaram a paisagem e aceleraram processos de crescimento locais.

Em Florianópolis, a ocupação urbana tem resultado do somatório de crescimen-tos locais, com o território progressivamente se adaptando à nova situação, a partir da construção e ampliação das redes de infraestrutura. Assim tem acontecido com o sistema viário: os sucessivos estrangulamentos produzem, durante a alta estação, engarrafamentos cada vez maiores, exigindo obras de grande envergadura e forte impacto ambiental. Estes estrangulamentos correspondem, via de regra, a situações-limite colocadas pelo sítio e reforçadas pela ocupação urbana: trechos estreitos entre a ocupação e a costa, travessia de mangues, elevações e dunas que acabam gerando grandes aterros, cortes topográficos, des-continuidades para as áreas ambientalmente protegidas, destruição de dunas e mangues.

Paradoxalmente, nessas situações, a melhoria da acessibilidade tem levado, também, ao aumento exponencial da velocidade de transformação do entorno. Estabelece-se um ciclo vicioso em que a ocupação leva à ampliação da capacidade viária, que, por sua vez, acelera o processo de transformação, exigindo novas obras. E, fundamentalmente, a ex-pansão do sistema viário e das redes de infraestrutura tem colocado em risco a continui-dade do sistema de áreas de preservação ambiental da cidade, o que levaria, fatalmente, à sua desestruturação, tanto em termos ambientais quanto paisagísticos.

As inúmeras transformações deste tipo em projetos ou em obras evidenciam a importância da questão no contexto da discussão das transformações por que passa o território insular. Extremamente importante, também, é o questionamento do enten-dimento dessas vias como simples eixos viários, dissociadas de seus efeitos enquanto elementos organizadores urbanos, tanto da Ilha como um todo, como das localidades que atravessam. Certamente, a consideração dos inúmeros papéis desempenhados por essas vias levaria a traçados bem mais adequados, tanto em termos urbanísticos quanto ambientais e paisagísticos.

Continuidade e Conectividade no Sistema de Áreas de Preservação Ambiental

A continuidade e a conectividade das áreas de preservação situadas na Ilha de San-ta Catarina encontram respaldo tanto em termos paisagísticos quanto ambientais. Em termos da paisagem urbana, estas áreas são elementos fundamentais da identidade da cidade de Florianópolis, se interpondo entre os diversos núcleos urbanos e caracterizan-do uma estrutura polinucleada. Em termos ambientais, constituem corredor ecológico, unindo diferentes ecossistemas e permitindo o livre trânsito de animais e a dispersão de sementes vegetais, bem como o fluxo gênico entre as espécies da flora e a conservação da biodiversidade.

Neste sentido, há que se destacar, primeiramente, as áreas de preservação situadas junto às encostas cristalinas. Este é o conjunto preservado de maior continuidade, esten-dendo-se no sentido norte-sul por praticamente toda a Ilha. Em estado de recuperação,

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com a regeneração vegetal por sobre solo outrora usado pela agricultura, encontra-se ame-açado a partir da ocupação de sua borda externa, onde acontece sua interface com o siste-ma urbano. Constituem grande ameaça à sua continuidade, também, as travessias viárias no sentido leste-oeste, que têm induzido à ocupação urbana e levado à sua fragmentação em recortes não comunicantes.

Os ecossistemas costeiros situados na planície sedimentar, próximos à orla (man-gues, dunas, restingas) têm, também, sofrido grandes perdas ambientais a partir das descontinuidades estabelecidas pelo sistema urbano. Essas obras têm sido extremamente impactantes, levando a inúmeros aterros, cortes topográficos e interferências brutais em praticamente todos os ecossistemas insulares.

A área mais transformada do território insular é constituída pela meia encosta, onde aconteceu a ocupação colonial, e onde hoje ocorre a maior dinâmica imobiliária. Se, em função de características geológicas e de declividade, constitui a área mais adequada à urbanização, sua ocupação de forma praticamente contínua tem levado à formação de uma barreira urbana que separa as áreas de preservação de encosta daquelas situadas nas planícies insulares. Separando a Mata Atlântica de restingas, dunas e manguezais, essa barreira tem efeitos ambientais extremamente danosos, impedindo o fluxo de energia e matéria entre ecossistemas naturais com profundas relações ecológicas. Certamente, um dos grandes desafios colocados pelo presente é a garantia desta relação, com a criação de corredores ecológicos que unam áreas preservadas de encostas e de planícies, garantindo o funcionamento conjunto dos ecossistemas costeiros.

Figura 8 – A problemática interface entre tecido urbano e Áreas de Preservação Per-manente no presente da Ilha de Santa Catarina. A) Crescimento urbano em direção às encostas cobertas pela Mata Atlântica, em processo de regeneração (Ribeirão da Ilha). B) Crescimento urbano em direção a dunas e restingas (Rio Vermelho).

Fonte: fotos do autor.

Delimitação Urbana: Interface entre Cidade e Natureza

A questão da delimitação entre área urbanizada e ambiente natural constitui tema bastante importante na atualidade da ocupação urbano-turística da Ilha. Em direção à encosta, o crescimento urbano-turístico é responsável por ocupações nocivas tanto aos ecossistemas naturais quanto ao ambiente urbano. A retirada da capa vegetal, a imper-meabilização dos terrenos por construções e a consequente aceleração da velocidade das águas têm provocado acidentes extremamente graves, com escorregamento de material das

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encostas, incluindo grandes blocos de pedra. A generalização da ocupação das encostas por esse processo de crescimento tem colocado a possibilidade de esses fatores de risco se expandirem por todo o território insular. Tais riscos, associados aos valores ambientais e paisagísticos, sugerem a preservação das encostas, bem como uma clara delimitação entre a ocupação urbana e áreas de preservação.

No movimento em direção à costa, a expansão urbana criou outra frente junto à orla marítima. O parcelamento aleatório das propriedades rurais propiciou a ocupação de frentes de mar em diversos pontos da Ilha, levando a uma urbanização espontânea e não planejada. Praias e costões sofreram impacto com a construção de edificações e com o despejo de efluentes domésticos. Em muitos casos, esta ocupação levou à obstrução do acesso à orla. Os casos em que a estrada geral passa em frente ao mar propiciaram a geração de via costeira, valorizando a paisagem e incentivando o uso público. O aumento do fluxo e obras de melhoramento viário, quase sempre com a realização de aterros sobre a água, constitui, neste caso, o principal impacto.

Quando o crescimento ocorre em direção aos manguezais, a situação é completa-mente inversa. Independente do tipo de ocupação (urbana ou turística), a imagem social negativa deste ecossistema tem gerado um fundo pouco valorizado, onde aterros e ocupa-ções irregulares avançam por sobre áreas alagadiças cobertas com a vegetação original. A deposição de lixo e esgoto deteriora suas qualidades ambientais, gerando graves problemas sanitários e ambientais.

Dunas móveis e fixas têm sido ocupadas, causando, muitas vezes, sua desestabiliza-ção. Além disso, interpondo-se entre as planícies sedimentares ocupadas por vegetação de restingas em regeneração e a costa, as dunas formam, via de regra, uma barreira que impede o escoamento direto das águas em direção ao mar. Dessa forma, no limite entre as dunas e a planície, ocorrem áreas de restingas úmidas e pequenas lagoas, importantes para a drenagem das áreas planas do entorno, além de possuir um notável valor paisagístico e ambiental. Com a ocupação urbano-turística, as ruas e servidões têm se estendido até essas áreas, muitas vezes ocupando-as completamente, o que implica profundas alterações do fluxo hidrológico preexistente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR UMA PRESERVAÇÃO AMBIENTAL ARTICULADA AO TECIDO URBANO

Estudando as estruturas urbanas e territoriais da Ilha de Santa Catarina de um modo dinâmico, através da análise de suas transformações no tempo, este trabalho realizou uma leitura que integra uma série de variáveis que vêm sendo estudadas de modo isolado: ecos-sistemas naturais, preexistências decorrentes de ocupações pretéritas, processos de cresci-mento urbano, formas urbanas resultantes e sua interface com os ecossistemas costeiros.

A Ilha de Santa Catarina, com seu sítio extremamente peculiar, que coloca inúmeros impedimentos a uma expansão urbana contínua, apresenta hoje diferentes processos de crescimento urbano-turístico. Dificuldades geográficas e adaptações advindas do processo histórico de ocupação de seu território têm colocado limites e possibilidades de expansão, definindo os vetores de expansão do tecido urbano de Florianópolis. Áreas definidas por um parcelamento agrícola extremamente peculiar ou grandes extensões não parceladas definiram diferentes lógicas para o crescimento urbano, para os impactos ambientais e para a escala dos empreendimentos imobiliários.

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Neste contexto, encostas, topos de morro, restingas, dunas e manguezais permeiam todo o tecido urbano, marcando de modo indelével a paisagem e a identidade da cidade. O fim das atividades agrícolas, ocorrido em paralelo ao início do desenvolvimento das ativi-dades turísticas, levou à recuperação da cobertura vegetal destas áreas, hoje definidas como de preservação permanente e novamente ameaçadas pela expansão urbana. Essa definição não tem garantido sua efetiva preservação ou uma interface positiva com o sistema urbano.

Certamente as condições geomorfológicas e paisagísticas da Ilha de Santa Catarina exigem cuidados especiais e o desenvolvimento de políticas públicas no sentido da preser-vação ambiental e da qualificação da interface entre a cidade e os ecossistemas costeiros. Tais políticas englobam diferentes escalas de atuação, desde aquelas de caráter amplo – contemplando o Município, com o estabelecimento de vetores prioritários para o cresci-mento urbano e a definição de limites claros na ocupação do território insular – até escalas extremamente locais, em que a definição de estratégias de integração e clara delimitação entre tecido urbano e áreas de preservação são prioritárias.

Continuidade e conectividade são estratégias fundamentais dessa política. O con-junto de Áreas de Preservação Ambiental da Ilha encontra-se ameaçado pelo crescimento do tecido urbano e consequente interrupção de sua continuidade. A conectividade entre os diferentes ecossistemas costeiros tem diminuído gradualmente, levando à criação, em muitos casos, de áreas estanques, caracterizadas pelo empobrecimento ecológico. Proble-mática tem sido, também, a interface que tem se estabelecido entre áreas urbanizadas e APPs, com a criação de áreas pouco controladas e pouco integradas ao cotidiano da cidade. Repensar esta interface implica desenvolver um processo de Planejamento Urbano que não se restrinja à aplicação das leis ambientais, mas que avance incorporando também diretrizes globais e alternativas de desenho local, comprometidas com a conectividade dos ecossistemas naturais.

As APPs desempenham um papel fundamental como núcleos de preservação dos ecossistemas costeiros da Ilha de Santa Catarina. Para tal, necessitam fazer parte de um sistema maior, que inclua áreas urbanas com diferentes níveis de proteção do sistema natural, desde aquelas destinadas à proteção ambiental até aquelas em que predominam características de urbanidade. Interligadas como conjunto, claramente delimitadas e es-tabelecendo uma interface amigável com a cidade, podem vir a constituir-se, também, em parte fundamental da estrutura de espaços públicos de Florianópolis. Neste sentido, se uma efetiva ocupação das áreas de preservação da Ilha de Santa Catarina é altamente condenável, sua apropriação para usos de lazer, recreação ou turismo pode ser recomen-dável, desde que realizada sob controle dos órgãos ambientais e de planejamento, a partir de limites determinados por estudos ambientais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Almir Francisco Reis é professor adjunto do Depar-tamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina; mestre em Planejamento Urbano pela Universidade Federal de Brasília; doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em janeiro de 2011 e aprovado para pu-blicação em março de 2011.

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A b s t r a c t Santa Catarina Island, which is a major part of the municipality of Florianopolis, has about 42% of its territory framed as Permanent Preservation Area, a very high rate, perhaps unique in Brazil. Despite the intensity of the contemporary urban growth processes in the island, these areas constitute barriers to the urban occupation process and strongly characterize the discontinuous fabric of the city. Based on environmental paradigms and searching for a city articulated by a network of public open spaces, the paper makes a historical reading of this process. It analyzes the impacts of urban and tourism growth on the coastal ecosystems and reflects on the possibilities and limitations of environmental preservation areas in the urban context.

K e y w o r d s Environmental preservation; urban and tourism growth; urban design; Santa Catarina Island; Florianópolis.

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INTERAÇÕES ESPACIAIS, TRANSPORTE PÚBLICO E ESTRUTURAÇÃO DO

ESPAÇO URBANO

M á r c i o R o g é r i o S i l v e i r aR o d r i g o G i r a l d i C o c c o

R e s u m o Para a construção de uma nova abordagem acerca das interações espaciais, que supere a visão clássica a ela atribuída de simples deslocamento, é necessário relacionar a natureza transformadora e dialética das interações ao espaço geográfico. O contato entre ele-mentos espaciais diferentes, combinados através do transporte, possibilita o surgimento de uma característica nova e superior às formações materiais que interagem, reforçando seu caráter dialético. No capitalismo, estas interações se dão segundo interesses hegemônicos de valorização, conformando desigualdades entre setores econômicos, ramos de atividades e espaços, distorcen-do as próprias interações que os alimentam. No espaço da cidade, tais processos se chocam e se combinam, manifestando um conflito de frações de capital incumbidas de estruturar este espaço, valorizando-se retroativamente em alguns momentos e manifestando antagonismos em outros. A relação entre o transporte e a estrutura da cidade é bastante apropriada para dar conteúdo a estas discussões.

P a l a v r a s - c h a v e Interações espaciais; transporte público; valor-trabalho; estruturação da cidade.

IN TRO DU ÇÃO

As interações espaciais efetuadas mediante uso de transporte público são amplamente determinantes para a produtividade do trabalho e para o desenvolvimento, assim como para a condução de um processo de estruturação da cidade mais justo no que se refere à acessibilidade dos segmentos sociais de baixa renda. Neste contexto, o movimento circula-tório do capital manifesta-se de modo contraditório, pois, se por um lado exige velocidade cada vez maior de concretização – cujo maior exemplo são as grandes somas direcionadas à valorização na ciranda financeira –, por outro lado, deixam a reboque dos grandes inves-timentos atividades econômicas de consumo peculiar, isto é, de consumo necessariamente coletivo e que, portanto, representam um problema para os investimentos do capital. Isto equivale a dizer que as interações espaciais efetuadas mediante transportes públicos são preteridas, ou seja, não há grande aporte de investimentos por parte de operadoras em re-novação da frota, maior emprego de tecnologia, treinamento da força de trabalho etc., vi-sando aumento dos níveis de serviço, assim como não há grande aporte e disponibilidade de recursos carreados especialmente para esta atividade, se compararmos a outros setores.1

Assim sendo, serviços de transporte coletivo de passageiros, sobretudo aqueles vei-culados por ônibus, são assumidos por capitais locais ou regionais cuja origem reside em

1 Entre os diversos casos de subinvestimento em trans-portes de passageiros, tem sido recorrente a menção à concessionária Supervia, do Rio de Janeiro. A empresa, administradora dos trens urbanos do Rio, opera 159 trens, dos quais, pelo menos um terço são máquinas afei-tas a panes não esclarecidas e a um serviço que opera em regime de superlotação. A revolta dos passageiros tem sido recorrente, assim como o uso da força por parte das autoridades e (indevida-mente) de funcionários da própria operadora.

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atividades mercantis, transportes rurais de carga, trabalho autônomo de transportador etc. Apesar de muitas destas empresas tornarem-se holdings de influência suprarregional, com aporte de tecnologia e investimento em algumas de suas atividades, no ramo dos trans-portes públicos que operam no espaço interno da cidade, mantêm baixíssimos níveis de operação dos serviços, escoradas na precariedade dos modelos de regulamentação vigentes, os quais não estimulam uma gestão de investimento.

O resultado deste cenário, em termos espaciais, é a manutenção de graves desi- gualdades de acessibilidade ao espaço da cidade e às suas atividades urbanas (trabalho, la-zer, compras etc.), devido à dificuldade de efetuar interações via transporte público – para algumas pessoas, a única possibilidade de transporte. Vale destacar que a baixa mobilidade de parcelas da população da cidade, devido à dificuldade de acesso econômico e espacial ao serviço, à precariedade das infraestruturas, dentre outros, mantém descontinuidades territoriais que impõem dificuldades à dinâmica das atividades econômicas.2 Estas des-continuidades – cujos danos às interações são agravados pela precariedade dos transpor-tes – têm sua gênese no interesse de capitais imobiliários e sua busca por novos habitats, amenidades naturais em descontinuidade com a mancha urbana e espaços com potencial de expansão da área edificada. É por essas razões que nossas análises devem compreender as relações – ora de conluio ora de descompasso – entre as diversas frações de capital que produzem o espaço da cidade.

Finalmente, ao empreender esta discussão, buscamos contribuir com as questões atinentes às relações entre a produção do espaço, a circulação do capital, e a circulação da mercadoria força de trabalho, cuja mobilidade é reduzida, se compararmos com a mobilidade assumida pelo capital-dinheiro e pelo capital-mercadoria no contexto atual. Contraditoriamente, a eficiência da mobilidade da força de trabalho – assim como da mobilidade para o consumo – é fundamental para a reprodução do próprio capital que, em geral, tende a negá-la.

POSSÍVEIS BASES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA NOÇÃO DIALÉTICA DAS INTERAÇÕES ESPACIAIS

O mainstream da ciência econômica, assim como de correntes quantitativas da Geo-grafia, tem avançado apenas timidamente no desenvolvimento da noção de interações espaciais, na medida em que vigoram postulados clássicos na abordagem e aplicação desta noção. Em linhas gerais, trata-se de uma concepção que representa as interações espaciais mediante modelos de gravitação, por analogia aos modelos da física newtoniana, referindo-se a elas como deslocamento no espaço (espaço como recipiente). Essa discus-são é realizada por Roberto Camagni (2005), em sua Economia Urbana, explorando esta interpretação mais conservadora das interações espaciais, remontando, para isso, a auto-res como E. G. Ravenstein (1885-1889), Zipf (1949), Reilly (1931), Wilson (1969) e Stouffer (1940), entre outros que traduzem as interações espaciais a partir de analogias com a gravitação universal. Para estes, as interações advêm da “atração” de determinados nós em relação a outros.

A partir de um viés mais geográfico, Edward Ullman (1972) define as interações espaciais como fluxos que se constituem mediante a diferenciação de áreas, um conceito desenvolvido por Hartshorne (1959) a partir de outros autores, e que se refere às barreiras

2 O caso do distrito de Lácio, na cidade de Marília (SP), é emblemático para estas questões. Trata-se de um espaço descontínuo da mancha urbana que possui indústrias importantes em termos de emprego de força de trabalho. A precariedade em infraestrutura viária e negligência da empresa ope-radora de transporte conduz a dificuldades de desloca-mento, tanto da força de tra-balho que não mora próximo ao distrito, quanto de seus moradores que trabalham e exercem atividades no cen-tro da cidade.

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geográficas como a origem das diferenças produtivas entre espaços. Estas diferenciações, por sua vez, tendem a gerar interações espaciais entre estas áreas, na medida em que haja entre elas ofertas e demandas complementares.3 Assim, foi discutindo as proposições de Hettner (1905) acerca das relações entre as áreas e entre fenômenos, isto é, das relações complexas existentes entre diferentes fenômenos, em um mesmo lugar, e as conexões entre fenômenos entre lugares diferentes, que Hartshorne passou a empregar e a defender o uso destas noções:

Com a introdução do homem na cena, esse aspecto dinâmico do caráter das áreas se torna muito mais importante, porque constitui um dos atributos particulares do homem o fato de que ele não apenas se desloca de um lugar para outro, mas também põe as coisas em movimento. Por conseguinte, é sobretudo em seus aspectos humanos que as áreas diferem não apenas em sua morfologia, mas, igualmente, no que Ritter denominou sua fisiologia. Entretanto, para evitar qualquer analogia com os organismos vivos, seria preferível usar a expressão “relações funcionais”, que envolve movimento de umas áreas para outras (Hartshorne, 1959, p.20).

As relações entre a noção empregada por Ullman (1972) e a disposição de Hartshor-ne (1959) não se deram sem certos atritos entre ambos os lados. No entendimento de Hartshorne, Edward Ullman propôs a “diferenciação de áreas” como um subconceito em favor da definição da Geografia como ciência das interações espaciais, sendo que, na visão do primeiro autor, os fenômenos de lugares diferentes postos em interação – quer este-jam eles no mesmo lugar, quer estejam em movimento – constituem parte do caráter de cada área em questão. Ou seja, tratar-se-ia do oposto: “são as variações de características estáticas, ou formas, e as variações de características de movimento, ou funções; quer na mesma área, quer entre ela e outra área, incluem-se ambas no conceito de variação espacial ou diferenças entre áreas” (Hartshorne, 1959, p.20). O próprio Ritter apregoa em seus trabalhos que ambos os aspectos são essenciais à Geografia.

Hartshorne (1959) esclareceria mais adiante que não se tratava de um exagero de Ullman (1972), pois o realce sobre a “interação espacial” seria uma reação importante à ênfase exagerada à morfologia, às formas e aos padrões em detrimento dos fluxos e funções, evidenciados na Geografia de seu tempo. Além disso, deve-se frisar que é inconcebível estudar o espaço capitalista sem considerar a mobilidade manifestada pelo próprio capital, que nada mais é do que um desdobramento de um tipo específico de interação espacial. Edward Ullman (1972),4 apesar de pouco contato com o marxismo – tendo inclusive, contribuído para o desenvolvimento da Escola de Washington (sob a liderança de William Garrison) e a subsequente “revolução quantitativa” (Sugiura, 1999) – já atestava que a interação possuía uma propriedade transformadora, na medida em que elementos de diferentes espaços eram “transportados” a outros, transformando-os, ou intensificando características preexistentes. Essa capacidade “transformadora” das interações espaciais se relaciona com a noção filosófica de “interação” no marxismo, como veremos a seguir.

A ideia de interação remonta à filosofia clássica e às diferentes correntes filosóficas que se desenvolveram ao longo da história. O primeiro filósofo a relacionar a causalidade à interação foi Platão, concebendo o aparecimento das coisas particulares como decorren-tes da interação do “não ser” (matéria) com o “limite” (categoria platônica que expressa a limitação matemática). Para os pré-marxistas, a ideia de causa ainda não se distinguia

3 A expressão “diferencia-ção de áreas” foi apresenta-da por Karl Sauer em 1925, inspirada no conceito de Geografia de Alfred Hettner. Posteriormente, muitos geó-grafos estadunidenses iriam empregar a expressão “areal differentiation”, dada a me-lhor adequação da mesma ao idioma inglês. A essência deste conceito provém dos estudos de Karl Richthofen sobre os pontos de vista de Humboldt e Ritter (Hartshor-ne, 1959). A despeito de sua importância, os críticos interpretaram a expressão “diferenciação de áreas” co-mo um conceito que limitava a Geografia a estabelecer diferenças entre uma área e outra, o que não é o caso.

4 Edward Ullman foi o geó-grafo incumbido de reno-var a Geografia (sobretudo aquela desenvolvida nos Es-tados Unidos) e resgatá-la do desprestígio pelo qual passava. Esta proposição levara, então, à construção da concepção da Geogra-fia como “ciência espacial”, ideia que irá competir com a caracterização da Geogra-fia elaborada pela Escola de Chicago, cuja vocação seria o estudo da “Região Funcio-nal” (Sugiura, 1999).

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do apeiron5 e, mesmo para Aristóteles, a causa do surgimento das coisas, das formações materiais, provinha de outras formações materiais.6 Mesmo Hegel, que recusara estas con-cepções afirmando que causa e efeito estão em interação, não obteve resposta definitiva à questão, concebendo a causa como uma “substância ativa” que age sobre uma “substância passiva”, ocasionando um retro efeito em ambos (Cheptulin, 1982).

Como é perceptível, o pensamento pré-marxista reduzia os laços de causa e efeito às ligações exteriores, à “superfície” das formações materiais, ignorando as interações entre aspectos internos e essenciais nestas formações. Os pré-marxistas também se equivocaram ao identificar a causa a algo possuidor de substância, enquanto em verdade:

Parece-nos mais correto definir a causa como a interação de dois ou mais corpos, ou ainda, como a interação de elementos ou aspectos de um mesmo corpo acarretando certas mudanças nos corpos, elementos ou aspectos, agindo uns sobre os outros, e o efeito, como as mudanças surgidas nos corpos, elementos e aspectos agindo uns sobre os outros, em decorrência de sua interação. Foi precisamente assim que os fundadores do materialismo dialético e, em parti-cular, Engels, definiram a causa: “[...] A ação recíproca é a verdadeira causa finalis das coisas” (Cheptulin, 1982, p. 231).

Deste modo, a interação (ação recíproca) é a causa do surgimento e transformação das coisas, e não a substância. O fato contundente é que a interação enquanto causa possui um duplo caráter que pode ser contingente ou necessário, segundo os diferentes aspectos ou coisas que interagem. Mesmo fenômenos (efeitos) e eventos contingentes têm causas que os produzem, mas a ligação desses fenômenos com as causas que os engendraram não são contingentes. Há uma interação necessária entre causa e efeito, seja em fenômenos contingentes ou em fenômenos necessários, ou seja, as formações materiais podem ou não entrar em interação (nisto reside seu caráter contingente), mas, ao entrarem, haverá necessariamente uma transformação, um efeito novo.7 A interação conduz, assim, à transformação dos corpos ou aspectos que entram em interação, tal como ao aparecimento de novas formações materiais e à passagem de um estado qua-litativo a outro. Exemplo disso é a interação das classes antagônicas condicionando o aparecimento do Estado, a mudança do sistema social e de estado e a passagem da socie-dade de uma formação socioeconômica a uma outra.8 Nesse sentido, Cheptulin (1982, p.249) aponta que:

A interação das formações materiais ou de seus elementos, de seus aspectos, pode tanto ser contingente, isto é, devido a um concurso de circunstâncias, quanto necessária, em razão de sua natureza específica. Por exemplo, na sociedade capitalista, o fato de que o operário venda ao empregador sua força de trabalho e de que este seja explorado pelo último não é nem contingente, nem devido a um concurso de circunstâncias exteriores, é necessário: isso é necessariamente condicionado pelo modo de produção dominante na sociedade capitalista e pela situação econômica do proletariado e da burguesia, que é determinada por esse modo de produção, isto é, pela própria natureza dos aspectos em interação; e o fato de que o operário trabalhe justamente para esse capitalista e justamente com esses operários, e não com outros, é um fenômeno contingente.

Deste modo, fica bastante claro o caráter espacial de algumas interações, isto é, mostra-se cabível a aplicação da noção de interações espaciais como um conceito

5 Espécie de princípio inicial das coisas, de tudo o que existe.

6 Na dialética materialista, diferentemente da matéria, a formação material não é eterna, ela se transforma constantemente; por isso, como alternativa à utilização do conceito de “matéria” pa-ra as coisas particulares, utiliza-se a expressão “for-mação material” (Cheptulin, 1982).

7 O materialismo dialético não entende por “causa” o objeto, mas a interação dos objetos ou dos elementos e dos aspectos que formam o objeto; e por “efeito”, as mu-danças, as transformações surgidas desse processo e que podem inclusive gerar um objeto novo (Cheptulin, 1982).

8 Outro exemplo é o da interação das classes an-tagônicas condicionando o aparecimento do Estado, a mudança do sistema social e de estado e a passagem da sociedade de uma for-mação socioeconômica a uma outra. Do mesmo mo-do, as interações espaciais casa-trabalho e seu objetivo fundamental – a troca desi-gual entre capital e trabalho – tendem a contribuir para o processo de acumulação na mesma medida que a mercadoria força de tra-balho tem sua reprodução social potencializada pelo sistema de transporte. Estas interações propiciam, assim, condições gerais de repro-dução da mercadoria força de trabalho.

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geográfico, ainda que o autor não destaque seu caráter espacial específico. Também é importante destacar que a contradição dialética necessita de interações, ou melhor, a contradição representa a interação de aspectos ou elementos contrários.9 O conteúdo dialético das interações espaciais é evidente, já que a interação leva a um estado novo, qualitativamente mais “elevado”, que se manifesta como parte do espaço geográfico. Trata-se, portanto, do próprio espaço em transformação. É neste sentido que Santos coloca:

[...] a Geografia poderia ser construída a partir da consideração do espaço como um con-junto de fixos e fluxos. Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultado direto ou indi-reto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que, também, se modificam. [...] fixos e fluxos, interagindo, expressam a realidade geográfica, e é desse modo que conjuntamente aparecem como ob-jeto possível para a Geografia (Santos, 1999).

Esta relação entre fluxos e fixos – com o fluxo entre fixos e subespaços represen-tando a própria interação espacial se manifestando – é a causa de novos fenômenos, de transformações dos elementos que compõem os fluxos, mas também dos fixos, dos obje-tos espaciais e subespaços que comunicam. No movimento de transformação em direção ao desenvolvimento, fluxos e fixos se complexificam, com as interações entre formações materiais se diversificando e os objetos técnicos se tornando cada vez mais artificiais. Assim sendo, é possível perceber que Santos, em seus trabalhos, já deixava clara a neces-sidade de conceber em nível de igualdade tanto fixos quanto fluxos, assim como a relação retroativa existente entre eles. Do mesmo modo, podemos conceber o espaço como a totalidade, como a extensão das formações materiais particulares associadas uma à outra, cuja duração e relação com as formações anteriores e posteriores tornam concretos, a um só momento, espaço e tempo (Cheptulin, 1982). Deste modo, o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário, mas também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, ou seja, de relações dialéticas entre estes objetos e entre objetos e ações, postas em curso mediante interações espaciais.10

Roberto Lobato Corrêa (1997) também busca qualificar a noção de interações espaciais, na medida em que a apresenta como componente do espaço geográfico, concei-tuando-a como um amplo e diverso deslocamento multidirecional de mercadorias, pes-soas, capitais e informações, com diversas densidades de fluxos e velocidades, segundo os propósitos a partir dos quais se estabelece e os meios com os quais se efetiva. Desta forma, não se trata de um simples deslocamento no espaço,11 mas de parte integrante do espaço, uma vez que as interações espaciais possuem a propriedade de atenuar ou inten-sificar processos preestabelecidos, assim como de transformá-los. Conclui-se, portanto, que a interação entre formações materiais é um dos elementos da categoria de causalidade dentro da dialética materialista, e possui a qualidade de transformar estas formações.

Vale destacarmos que, sob o modo de produção capitalista, as interações espaciais ganham uma nova tônica, servindo exponencialmente à lógica de acumulação capitalista e manifestando desníveis nas trocas empreendidas (a teoria das trocas desiguais de Marx), na medida em que se dão no contexto de uma divisão social e territorial do trabalho, com rebatimentos espaciais que manifestam profundas desigualdades em suas densidades

9 Sobre essa questão, Chep-tulin coloca que “a contradi-ção representa a interação dos aspectos e das tendên-cias contrárias. Essa inte-ração condiciona sempre, e ainda mais fortemente, quando ela se realiza entre os contrários, as mudanças constantes nos aspectos ou entre os corpos em inte-ração (...). Por exemplo, a interação da produção e do consumo, que são aspec-tos contrários da sociedade, condiciona uma mudança incessante neles mesmos e nos domínios corresponden-tes da vida social”. (Cheptu-lin, 1982, p.302)

10 Neste sentido, fica clara a ideia de ligação indissolú-vel do espaço e do tempo com a matéria (o todo) em movimento, posto que esta só pode se por em movi-mento quando encarnada em suas formações materiais particulares (a parte). A cate-goria movimento representa aqui o movimento ascenden-te das formações materiais em direção ao desenvolvi-mento, o qual, por sua vez, representa a mudança de um estado qualitativo a ou-tro, mediante o rompimento das medidas quantitativas (seu “extrapolar”). (Cheptu-lin, 1982). Este movimento é também espacial, na medida que pode expressar a pró-pria produção do espaço e, mais amplamente, a Forma-ção Socioespacial enquanto metaconceito da Geografia.

11 Não se trata, portanto, de simples deslocamento entre espaços ou setores cujo desenvolvimento é desigual e que tenderiam, por força das interações, a equalizar essa diferenciação como postula o mainstream da economia neoclássica. Uma das prerrogativas da ação capitalista no espaço é criar, pela combinação e integração à sua lógica, exatamente isto, ou seja, desenvolvimentos espaciais desiguais, polarizações, etc.

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de fluxos, em suas direções, padrões etc. (Corrêa, 1997).12 Ressalta-se que estas intera-ções espaciais não são “genéricas”, mas concretizam-se em mobilidades e acessibilidades diferenciadas segundo o tipo de modal, o modo de transporte e a “formação material” transportada, conformando espaços de fluxos desiguais em diferentes escalas. Assim, a uti-lização da noção de interação espacial agrega conteúdo crítico à discussão dos transportes, pois busca superar o estudo do “transporte pelo transporte”, com os deslocamentos de passageiros entre espaços distintos sendo tomados como uma simples questão de “deman-da” (fluxo a ser acomodado dentro do sistema de transporte) e “oferta” (quantidade de serviço e infraestrutura necessários para acomodar esses fluxos). Devemos compreender que as interações espaciais repercutem em transformações espaciais, com desenvolvimentos desiguais do espaço, no caso da concentração destas em determinadas áreas enquanto ocorre rarefação em outras. Passemos agora a discutir mais aprofundadamente a relação entre o caráter transformador das interações espaciais e as dificuldades que estas interações apresentarão, na medida em que são providas por um meio de consumo coletivo sujeito a restrições dentro do modo de produção capitalista, comprometendo, assim, a reprodução ampliada da força de trabalho.

TRANSPORTE PÚBLICO, MEIOS DE CONSUMO COLETIVO E REPRODUÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO

Os meios de consumo coletivos são aqueles que permitem que as necessidades da sociedade como um todo sejam coletivamente atendidas, como por exemplo, as neces-sidades de economia de tempo de transporte na efetivação de interações espaciais, que são providas graças aos transportes públicos coletivos (Lojkine, 1997). Ademais, meios de consumo coletivos como os transportes públicos – entre outros meios facilitadores da circulação e das trocas – devem propiciar a economia de despesas de consumo; acelerar o ritmo de distribuição de serviços públicos e, sobretudo, contribuir para a rotação do capital adiantado. As contradições inerentes à inserção destas ofertas coletivas de serviços no circuito das trocas mercantis capitalistas remetem ao seguinte:

[...] a socialização capitalista dos meios de consumo coletivos traz em si a mesma contradição que a socialização capitalista dos meios de produção e de circulação material; com efeito, a medida capitalista da utilidade desses novos valores de uso entra em contradição com sua natureza complexa, indivisível, e portanto pouco apta a inserir-se no processo de troca mercantil. Expliquemos esse ponto essencial: para ser trocado por seu valor, como mercadoria, um pro-duto deve de fato poder ser destacado e diferenciado dos outros produtos e dos processos aos quais está ligado, a fim de se apresentar no mercado, na esfera da circulação, como um objeto perfeitamente individualizado onde possa ser coagulado um quantum de trabalho abstrato que determinará seu valor (Lojkine, 1997 p.155).

Deste modo, objetos de valor de uso individual, como objetos de vestuário, alimen-tos etc., diferem dos centros culturais, dos hospitais públicos, da quadra poliesportiva pública, da habitação popular ou do próprio transporte público coletivo, pois seus valores de uso são “difusos”, de difícil quantificação e individualização, uma vez que só podem ser consumidos coletivamente. Outra dificuldade de inserção dos meios de consumo coletivo

12 Os desdobramentos deste cenário na macroes-cala são a constituição e manutenção de um centro hegemônico cujos países (os países da “tríade” nas palavras de François Ches-nais) conformam interações (trocas) em maior volume de capital do que entre os países da periferia do sistema (Chesnais, 1994). Este contexto se desdobra em discrepâncias inter e intra-regionais nas nações e, mesmo dentro das regiões, em diferentes locus ocupa-dos pelas cidades em sua rede urbana, segundo sua especialização. Trata-se dos desenvolvimentos espaciais desiguais (Harvey, 1990).

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no sistema capitalista reside na própria duração do seu consumo, isto é, na demora de sua obsolescência, o que corresponde a uma rentabilidade baixa. Todavia, o capitalismo resolve este problema “mutilando” os valores de uso coletivos a partir da precarização das infraestruturas de suporte dos serviços (equipamentos coletivos), mediante o emprego de estratégias logísticas, no caso de serviços de transporte público.13

A baixa produtividade destes meios de consumo coletivos deflagra na constitui-ção de investimentos seletivos a partir dos quais os agentes públicos e privados elencam suas “prioridades”. O fato relaciona-se à oposição aparente entre os meios de consumo coletivos, os quais estabelecem conexões indiretas com o processo produtivo, podendo ser considerados condições gerais de reprodução social (Topalov, 1979) – que garantem a reprodução ampliada da força de trabalho – e as condições gerais diretas de produção, como os meios de comunicação e transportes, utilizados, por exemplo, para o transporte do capital-mercadoria. O fato é que os meios de consumo coletivos em geral incorrem em baixas rentabilidades e grande necessidade de investimentos não resgatáveis em curto prazo, além de não poderem ser perfeitamente individualizados na sua oferta, ou seja, trata-se de uma oferta necessariamente coletiva.14 No caso dos transportes coletivos, isso é verificado na medida em que nem todas as linhas são plenamente rentáveis, ainda que só possam ser ofertadas coletivamente.

É por essas razões que sempre que se trata de prover estes serviços e infraestruturas, o Estado está direta ou indiretamente envolvido, seja para corrigir distorções na oferta, assumindo os encargos do capital – que se exime da fração “onerosa” e “não rentável” da atividade – ou provendo crédito, facilidades de financiamento das infraestruturas, parce-rias para investimento conjunto com o capital etc.

Ademais, na visão de certos capitalistas particulares e de seus ideólogos, os meios de consumo coletivo – ou condições gerais de reprodução social – se “opõem” às condições gerais de produção, na medida em que se tratam – em sua visão muitas vezes limitada, fragmentada – de investimentos “improdutivos”. Para esta corrente de pensamento, os transportes – seja de capitais-mercadoria ou da mercadoria-força de trabalho – são im-produtivos. De modo diverso, partilhamos da opinião de que se trata sim de atividades que produzem valor e mais-valia. Para desenvolver esta abordagem, recorreremos primei-ramente a uma comparação entre a formação do capital de transportes e a formação do capital comercial e a juros.

Neste caso, é importante frisar que Marx faz uma abordagem em um alto nível de abstração, supondo que uma só empresa realiza todas as etapas da cadeia produtiva de um determinado produto, desde a obtenção dos insumos iniciais até o transporte e deste à comercialização do produto. Posteriormente, passa-se às formas funcionais autonomizadas, quais sejam, o capital bancário, o capital industrial e o capital comercial, mais precisamen-te, o capital de comércio de mercadorias, advindos do fracionamento das atividades antes acumuladas pelo capital produtivo industrial (Carcanholo, 2007). A comercialização, na medida em que se trata simplesmente da transferência da propriedade do produto, não alterando quaisquer qualidades deste – seja ela tangível ou intangível – é considerada improdutiva. Por isso, os lucros comerciais advêm de uma “punção” no valor criado pelos trabalhadores produtivos15 da indústria e dos serviços. Isto se dá do mesmo modo se a atividade comercial for efetuada pelo próprio setor produtivo.16 Assim sendo:

A mudança de forma (M-D e D-M) custa tempo e força de trabalho, mas não para criar valor e sim para efetuar a conversão de uma forma do valor em outra, e em nada altera a natureza

13 A não rentabilidade (mercantil capitalista) dos transportes coletivos toma-da como um valor de uso complexo indivisível – apesar de dividida pelo modo capita-lista de produção – aparece como a expressão da 'rejei-ção' pelo sistema capitalista de um setor econômico que é alheio a uma pura medida mercantil clássica” (Lojkine, 1997, p.156).

14 Exigindo a presença do Estado no que tange ao crédito, ao financiamento, à regulação destes meios, etc.

15 Destaca-se inclusive, que o valor dos gastos de trabalho passado (capitais cristalizados fixos) usados nas atividades de comércio e a juros, não é transferido às mercadorias como no setor produtivo industrial e no se-tor produtivo de serviço de transporte de mercadorias, conformando gastos impro-dutivos da mais-valia total produzida pelo sistema.

16 Muitas atividades que o comerciante realiza não são comerciais, muito embora, a massa de seus lucros adve-nha da atividade comercial (improdutiva) e da redução da massa de mais-valia dos setores produtivos (Carca-nholo, 2007). Marx (1983, p. 325, L. III) coloca que “O capital comercial, des-pojado de todas as funções heterogêneas com ele rela-cionadas, como estocagem, expedição, transporte (...) e limitado a sua verdadeira função de comprar e ven-der (assim e somente assim) não criam valor e nem mais-valia”.

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da coisa [...]. Este trabalho acrescido pelas intenções maliciosas das duas partes não cria valor (Marx, 1983, p. 133, L.II).

Com relação ao trabalho industrial e ao trabalho nos serviços, deve-se salientar que ambos são produtivos. O fato é que a atividade industrial cria uma mercadoria tangível, enquanto os serviços criam a mercadoria intangível. No caso dos serviços de transporte, essa mercadoria é o deslocamento de um produto ou da mercadoria força de trabalho de um subespaço a outro. Sobre a questão do que é produtivo ou improdutivo, Marx expõe vários exemplos ao longo de sua obra, como o do cantor, do professor, entre outros, destacando que para ser produtivo, o trabalho não necessariamente deve produzir algo “palpável”, mas sim, participar da produção do “trabalhador coletivo” e que advém da divisão do trabalho no capitalismo. Daí a demonstração de exemplos como o que se segue:

El fabricante de pianos reproduce capital; El pianista cambia su trabajo solamente por um rédito. Pero El pianista produce música e satisface nuestro sentido musical; no produces en-tonces, en cierta manera? In fact lo hace: su trabajo produce algo [...] Por ejemplo, el pianista estimula la producción, em parte al imprimir más vigor y vitalidad a nuestra individualidad, o también en el sentido vulgar de que despierta una nueva necesidad, para cuya satisfación se aplica más diligencia en la producción material directa (Marx, 1971, p.246).

Assim, essa mercadoria intangível produzida pelo conjunto dos trabalhadores é o serviço, ou simplesmente a mercadoria-serviço, e caracteriza-se como a mercadoria cujo consumo deve ser realizado no instante de sua produção. Ernest Mandel (1982) teria divergido dessa opinião, colocando a necessidade de que a mercadoria – para que o trabalho seja produtivo – deveria ser necessariamente tangível. Segundo Reinaldo Car-canholo (2007), tal entendimento adveio de errônea interpretação do autor a respeito dos “Aditamentos” de Marx, os quais trazem uma “definição acessória” para o conceito de trabalho produtivo.

Em Marx, para se definir trabalho produtivo – conceito-chave para a compreensão da teoria do valor-trabalho –, deve-se considerar alguns aspectos da própria organização de sua obra. Em linhas gerais, trabalho produtivo é aquele que produz mais-valia, deven-do, por isso, ser indispensável sua subsunção ao capital, com recebimento de salário etc. Contudo, há dois momentos da obra de Marx que devem ser distinguidos: 1) Aquele que caracteriza o trabalho produtivo a partir dos aspectos comuns em qualquer época e sob quaisquer modos de produção, ou seja, que caracteriza o trabalho do ponto de vista “ge-ral” (nesse sentido, o trabalho produtivo é aquele que produz diretamente valores de uso); 2) Aquele que caracteriza o trabalho produtivo a partir do ponto de vista do processo de valorização capitalista e, neste caso, a concepção anterior torna-se insuficiente.

Neste segundo momento, para ser produtivo, o trabalho deve produzir mais-valia e ser subsumido diretamente pelo capital, recebendo deste um salário. Ademais, esta segunda concepção liberta o homem da necessidade de ele próprio, individualmente, in-tegralmente (mãos, mente e trabalho) agir sobre a matéria-prima ou sobre a matéria bruta para ser produtivo, sendo necessário apenas fazer parte do “trabalhador coletivo”, fruto da divisão do trabalho e sua organização cooperativa. Diante desta definição, exposta nos capítulos XIV e XVI do Livro Primeiro de O Capital, em momento algum Marx expõe como pré-requisito a “tangibilidade” da mercadoria como condição para definir o traba-lho que a originou como produtivo (Carcanholo, 2007). Esta interpretação, em especial,

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partilhada por autores como Ernest Mandel (1982), advém de uma interpretação diversa de trechos dos “Aditamentos” de Marx, tal como segue:

[...] podemos portanto supor que o mundo inteiro das mercadorias, todos os ramos da produção material [...] estão sujeitos (formal ou realmente) ao modo de produção capitalista (pois, essa tendência se realiza cada vez mais). De acordo com esse pressuposto, que denota o limite e assim tende a ser cada vez mais a expressão exata da realidade, todos os trabalha-dores ocupados na produção de mercadorias são assalariados [...] (Marx, 1983, p.403 apud Carcanholo, 2007).

O fato contundente é que Marx não está se referindo, nessa parte do texto, à oposi-ção entre riqueza material – “material” como sinônimo equivocado de “tangível”, tal co-mo interpreta Mandel – e riqueza intagível (serviços). Na verdade, Marx está se referindo à expansão empreendida pelo capitalismo e suas formas de valor (valores de troca) sobre a produção de valores de uso (Carcanholo, 2007). Ademais, ao considerarmos o método materialista histórico e dialético, verificamos que o sufixo “material” não representa a “substancialidade”, a “tangibilidade”. Para a visão dialético-materialista, a matéria repre-senta tudo aquilo que existe, que é conhecido ou não, e que é externo e independente da consciência humana, sendo essa matéria eterna e disposta em constante movimento, seja tangível ou intangível (Cheptulin, 1982). Já com relação ao trabalho de transporte, isto é, à atividade de serviço de transporte, Marx deixa clara sua qualidade de trabalho produtivo, que produz valor e mais-valia:

O transporte não aumenta a quantidade dos produtos. Se eventualmente altera as qualidades naturais destes, essa alteração não é efeito útil almejado, e sim mal inevitável. Mas, o valor de uso das coisas só se realiza com seu consumo, e esse consumo pode tornar necessário o deslocamento delas, o processo adicional de produção da indústria de transporte. Assim, o capital produtivo nela aplicado acrescenta valor aos produtos transportados, formado pela transferência de valor dos meios de transporte e pelo valor adicional criado pelo trabalho de transporte. Este valor adicional se divide, como em toda produção capitalista, em reposição de salário e em mais-valia (Marx, 2005, p.166).17

Destarte, as atividades de transporte aumentam a riqueza-valor da sociedade ao transferirem valor do capital constante consumido (veículos etc.) no transporte da mer-cadoria, além de adicionarem valor pelo trabalho de transporte, isto é, pelo serviço. Ao menos dentro do estudo da teoria marxista e marxiana, não há divergências quanto ao fato de que serviços ligados à reprodução social sejam igualmente produtivos. Assim, serviços como o de saúde, educação, transporte de passageiros etc., promovem a trans-formação da força de trabalho simples em força de trabalho potenciada ou complexa (Carca-nholo, 2007). No caso do transporte coletivo, efetua-se essa “potenciação” ao resguardar a força produtiva do trabalhador – sua energia física e mental – mediante acessibilidades temporais adequadas e em boas condições de conforto, além de prover uma mobilidade que possibilite ao trabalhador interações espaciais motivadas por outras formas de repro-dução social, como o transporte a hospitais, a escolas, a equipamentos de lazer etc. Outra questão que se coloca é a capacidade do trabalho de transporte coletivo em promover a valorização da terra urbana, mediante a criação de acessibilidades, que são valores de uso da terra. Nesse caso, os transportes geram novas acessibilidades, uma vez que reduzem os

17 Em tempo, é necessário um esclarecimento: a ativi-dade de transporte pode ser improdutiva, caso o trans-porte da mercadoria em questão não se refira ao transporte das mesmas até o local de seu consumo, e quando mediante interesses especulativos, pode, portan-to, reduzir a riqueza-valor da sociedade. Um exemplo dis-so é o do transporte de uma mercadoria de um espaço “A” para “B” e, posteriormen-te, na medida em que os preços de “A” vão se tornan-do favoráveis, a mercadoria é novamente transportada ao espaço “A” (Carcanholo, 2007).

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tempos de deslocamento e articulam subespaços de difícil acesso com a rede urbana local e regional. Esta é outra forma em que os transportes geram valor, e que trabalharemos mais pormenorizadamente a seguir.

O fato é que, em geral, as interações espaciais efetuadas mediante sistemas de trans-porte público são amplamente prejudicadas pela carência de investimentos e intervenções urbanas de apoio. Como veremos a seguir, este quadro de iniquidades redundará e se agravará pelas relações que estabelece com os processos de produção e estruturação do espaço urbano, assim como a morfologia urbana resultante desta estruturação, ou seja, os processos de dispersão urbana ligados aos interesses imobiliários. Ao longo do texto que segue, notemos o seguinte: a interseção entre transporte público e atividade imobiliária, na medida em que valoriza a terra mediante a acessibilidade e não à força de trabalho – afasta o serviço de seu caráter eminentemente produtivo, pois não está transportando nenhuma mercadoria força de trabalho a ser valorizada. Vejamos em que medida as raízes desse pro-blema se relacionam às diferentes origens dos capitais de transporte.

ESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E TRANSPORTE PÚBLICO

Antes de abordar as repercussões advindas das relações entre os transportes e a es-trutura urbana, devemos frisar que não objetivamos aqui escrutinar toda a história dos transportes públicos no Brasil, pormenorizando aspectos peculiares de sua origem nas diferentes cidades, mas sim expor exemplos de como ele pode se furtar de valorizar a mer-cadoria força de trabalho, uma vez que pode contribuir com a valorização da terra urbana mediante relações promíscuas com o capital imobiliário, ou seja, atuando na contramão da “valorização” do trabalhador, uma vez que não apenas os custos das tarifas podem aumentar o custo de reprodução social, mas os custos referentes aos espaços de moradia também. Também expomos que estas práticas têm origem arcaica, na esteira da formação das empresas de transporte no Brasil.

Deste modo, os sistemas de transporte urbano colocam-se no centro dos processos de estruturação e reestruturação do espaço urbano, isto é, nos padrões de distribuição das atividades econômicas e dos espaços residenciais, segundo os mecanismos de valorização da terra. A primeira demonstração de bases teórico-conceituais atinentes à questão do transporte e sua relação com estes processos foi explorada por Richard Hurd (1903) em sua obra Principles of City Land Values.18 Já naquela época, analisava, no contexto estadu-nidense, a importância das ferrovias urbanas para a reestruturação das cidades, na medida em que distribuíam a população em amplas áreas, afetando os preços das áreas adjacentes, e a possibilidade de acesso a novos distritos que passam a fazer parte da estrutura urbana, aumentando a oferta de terras urbanas valorizadas.

Com relação à noção de estrutura urbana, destaca-se o caráter precursor da Escola de Chicago (primeira fase), trazendo a noção de zoning (zoneamento), ainda amplamente utilizada nos dias de hoje por urbanistas e planejadores, e que se baseavam naquilo que denominavam de “unidades ecológicas”. Contudo, como se sabe, críticas a estas noções sobrevieram do fato de que naturalizavam processos sociais historicamente constituídos, não adentrando a essência dos mesmos.19

Posteriormente, intensifica-se o uso da quantificação e da modelização na Escola de Chicago (segunda fase) e, finalmente, com a Social Area Analysis, sobrevém um tratamento

18 Outros autores também abordaram o tema desenvol-vendo os princípios de Hurd, como Willian Alonso (1964), Wingo (1961) e Lowry (1964) (cf. Farret, 1984).

19 Em termos conceituais, exige-se a superação des-tas premissas, pois, como sabemos, o destacamento das localizações no espaço interno das cidades não é su-ficiente para se apreender o processo de estruturação e reestruturação, uma vez que a estrutura urbana é apenas um momento do processo continuado de estruturação (Sposito, 2004).

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relativamente mais social das questões urbanas. Não obstante seja um equívoco apegar-se de modo analítico à modelização, em certa medida esta pode contribuir para a descrição da realidade observada, ainda que, notadamente, não devamos tratar meramente da leitura da estrutura urbana.20 Em verdade, o esforço que deve ser empreendido é no sentido de conceber o processo de estruturação e reestruturação do espaço urbano em sua plenitude, alterado e intensificado pela ação transformadora das interações espaciais via transportes urbanos (público coletivo, coletivo fretado e individual), os quais podem reforçar certos usos da terra, mas também converter determinados usos em outros.

Ademais, dois valores de uso devem ser considerados nesta discussão: o da forma material tangível que é produzida (as ruas, os edifícios, as infraestruturas) e o do valor produzido pela aglomeração, valor que é proveniente da localização dos fixos edificados e articulados em um determinado arranjo, e que fazem desta localização um valor de uso. Assim como outros valores produzidos, Villaça (2001) atesta que “o valor da localização é também dado pelo tempo socialmente necessário para produzi-lo, isto é, para produzir a cidade inteira da qual a localização é parte”.

Assim sendo, o valor do espaço é diferente do valor dos elementos que o constituem, na medida que a terra urbana é apenas matéria-prima daquele produto. Lojkine (1997) defende que Marx reduz em O Capital o valor de uso do solo a duas funções: a de instru-mento de produção, no caso da agricultura e atividades extrativas (minas, quedas d’água etc.), e a de simples suporte passivo de meios de produção (usina), de circulação (arma-zém, bancos) ou de consumo (moradias etc.) (Villaça, 2001). Assim, urge acrescentar a estes valores um terceiro valor, nas palavras de Lojkine (1997), associado à capacidade de aglomerar meios de produção e meios de reprodução social. Todavia, como assevera Villaça (2001), este valor de uso – a acessibilidade – é produzido, e não dado.

Vale acrescentar que a acessibilidade – a qual pode ser provida pelo transporte pú-blico – é o valor de uso mais importante para a terra urbana, na medida em que confere acessos diversos a todo o conjunto da cidade, demonstrando a quantidade de trabalho socialmente necessário despendido na sua produção. Villaça apregoa, assim, a expressão “terra-localização”, que se soma às expressões “terra-matéria” e “terra-capital” de Marx.

Acresce-se que tais atributos da localização são amplamente explorados segundo os interesses de determinados agentes produtores do espaço (Farret, 1985).21 Neste caso, constitui-se o mercado imobiliário como que determinado por interesses de grupos e segmentos sociais, e não mais pela ação do indivíduo consumidor e sua suposta “escolha racional”, como apregoam os clássicos. O Estado também teria um papel pró-ativo de agente nestes processos, e não apenas de “árbitro”. Neste sentido, é interessante notar, no caso específico dos agentes que atuam sobre o espaço da cidade, suas origens, suas motivações e formas de acumulação, para que possamos entender as formas resultantes do processo de estruturação.

É interessante atentar para as relações entre estes agentes os quais, muitas vezes, re-presentam frações de capitais e setores conflitantes – caso exemplificado na relação entre os salários despendidos pelo empregador (sobretudo da indústria) à força de trabalho e os meios de reprodução ampliada da força de trabalho (capitais incumbidos dos transportes, da habitação etc.) (Smolka, 1987). Em outras palavras, trata-se do custo de reprodução da força de trabalho, do conflito instaurado entre setores empregadores de mão de obra que necessitam reproduzir sua força de trabalho a um baixo custo, mas que veem na inserção mercantil da habitação e dos serviços coletivos – como o transporte público – um entrave ao rebatimento destes custos. Assim, nos diz Smolka:

20 A noção de estrutura urbana refere-se à articula-ção dos diferentes usos do solo no espaço das cidades, como resultado da mudança nas localizações das ativida-des econômicas, da habita-ção, do lazer e das próprias interações espaciais que ar-ticulam as partes da cidade, que se transmutam segundo a modificação dos próprios sistemas de transporte da cidade (Villaça, 2001).

21 As ideias neoclássicas e da ecologia urbana veem na eficiência e competência dos indivíduos a resposta para a estruturação do espaço, despolitizando-o a partir do reducionismo teleológico da ação individual.

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Contudo, não se deve ser daí inferido que as relações entre o capital incorporador e os outros capitais envolvidos nos negócios imobiliários e mesmo entre estes últimos sejam essencial-mente funcionais e harmônicos, isto é, livres de contradições [...]. A natureza destas relações parece ser bem mais complexa, já que os interesses desses capitais não são os mesmos. Ao capital incorporador interessa acelerar a rotatividade das transações no mercado imobiliário com paulatino aumento no preço dos imóveis, o que gera um aumento na parcela do orça-mento destinado à moradia. Na medida em que isto repercuta nos salários, todos os outros capitais serão afetados (Smolka, 1987, p.67).

O fato crucial é que a carência de recursos públicos associada às relações entre o Estado brasileiro e os capitais internacionais fez com que este – sobretudo nas grandes cidades – recorresse às empresas privadas internacionais prestadoras de serviços públicos, as quais, como é historicamente atestado, raramente atendiam áreas carentes ou para a população como um todo; pelo contrário, serviam a novas ocupações para fins de valo-rização, em um mecanismo antecipatório de demanda dos transportes (alta valorização de imóveis atendidos por serviços de bondes, de energia elétrica etc.).22 Não obstante, há outros padrões regionais e locais de formação do empresariado de transportes, que se desenvolveram devido à deficiência de oferta dos capitais internacionais de transportes, ou à sua ausência.

Assim, historicamente e diversamente de outras realidades mundiais, evidenciou- -se no Brasil uma pujante oferta privada de transporte coletivo por ônibus, baseada na “concentração induzida” de pequenos transportadores individuais, ou empresas familia-res, convertidos em grandes empresas privadas de transporte público coletivo na esteira do processo de urbanização brasileiro que gerou uma grande demanda por transportes. Muitos elementos desse momento mais “arcaico”, “primitivo” da formação de empresas de transporte coletivo continuaram por força de relações políticas ou limites internos aos próprios capitais e aos sistemas de normas presentes, dificultando uma modernização mais efetiva do setor e prejudicando a consolidação de interações espaciais eficientes e necessárias ao desenvolvimento em amplo sentido.

Por exemplo, continua até os dias de hoje a proeminência da produtividade sobre a qualidade dos serviços nas práticas das operadoras privadas de transporte, com o gerencia-mento familiar predominando sobre a gestão moderna nos transportes coletivos. Assim, a típica formação social brasileira deu origem a uma estrutura de produção de serviços de transporte público “artesanal” que predominou até 1970, e só posteriormente evoluiu para uma concentração em grandes empresas. O resultado desse cenário é visível nos dias de hoje, em que, no espaço geográfico, evidencia-se uma profunda desigualdade de acessi-bilidade à cidade, que se reflete na constituição de fluxos demasiado desiguais de usuários, concentrados em origens-destino de grande demanda, bem como interações espaciais com baixos níveis de conforto e elevado tempo de deslocamento, em prejuízo do usuário.

Ainda com relação à formação das empresas, tratou-se de uma concentração e mo-dernização associadas ao fomento à indústria de material rodante rodoviário, com auxílio estatal, transformando o artesanato corporativo de transportes em empresariado moderno, organizado em poderosos grupos econômicos e holdings de transporte. Vale reforçar que a formação social influenciou sobremaneira esse contexto, bem como as características locais de cada cidade e de cada região influenciaram outras particularidades do processo, como uma maior ou menor participação do Estado, uma maior proeminência do capital privado local ou estrangeiro etc.

22 Os serviços eram assim, altamente elitizados por este conluio de interesses, ten-do sua provisão e acesso ofertados de modo dese-quilibrado, devido à grande participação de capitais pri-vados que lançavam mão de estratégias de mínimo investimento e grandes re-tornos financeiros, mediante a internalização de atributos de determinadas áreas via mercado imobiliário. Neste contexto, restava ao capital industrial organizar seu pró-prio serviço de transporte de trabalhadores ou, co-mo atualmente se verifica, a compra de serviços de transporte fretado.

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Como exemplo dessas peculiaridades, em São Paulo, o caráter singular da dicotomia histórica entre dominação estatal da CMTC – Companhia Municipal de Transportes Co-letivos (hoje SPTrans) – que durante 50 anos dominou o setor – e a constituição de um empresariado local (pequenos capitais) que sucedeu o capital estrangeiro a bondes, gerou um contexto contraditório que deflagraria, no futuro, conflitos entre a população, o poder público local e as empresas operadoras (Henry, 1999). O caso paulistano é interessante, na medida em que – similarmente ao Rio de Janeiro – ocorrera também certa relação com os agentes imobiliários.

Para citar o caso do Rio de Janeiro – cujo transporte coletivo foi operado pela Light, no início do século XX –, a concentração de serviços mais sofisticados em umas poucas áreas da cidade, voltados para uma demanda elitizada altamente solvável, contrastava com a quase ausência destes serviços na extensão da cidade como um todo, redundando em um agravamento dos processos de segregação, com redução das interações espaciais entre determinados espaços da cidade. Neste ponto, Smolka (1987) adere à discussão já referida da natureza indivisível dos valores de uso dos meios de consumo coletivos e a “mutilação” empreendida pelas frações de capital que dele se incumbem.23

Em São Paulo, após a saída de cena dos operadores privados internacionais (São Paulo Tramway Light & Power Company Co.), estes processos de valorização da terra prosseguiram nas mãos dos empresários operadores de ônibus, ordinariamente, resultando na dificuldade de acessibilidade de amplos contingentes populacionais à cidade. Caldeira (2000) faz um profícuo resgate destes fatos, imbricando-os à questão central de nossas úl-timas análises, ou seja, o conluio de certos interesses e o conflito de outros, muito antes da cena dos capitais modernos adentrarem os mercados dos empreendimentos imobiliários e serviços de transportes.

Assim, dado que os principais agentes incumbidos da expansão dos serviços de transporte por ônibus foram capitais com origens arcaicas e mercantis – os quais também atuavam na especulação imobiliária –, em São Paulo, o sistema de transporte operava, sobretudo, para atender a seus interesses particulares. Como bem coloca Caldeira:

O lançamento do sistema de transporte público baseado no ônibus foi fundamental para o desenvolvimento do novo padrão de urbanização. Embora o preço da terra na periferia fosse relativamente baixo e houvesse loteamentos à venda desde a década de [19]10, eles permaneceram desocupados principalmente devido à falta de transporte [...]. Ele tornou possível vender lotes localizados “no meio do mato” e ajudou a criar um tipo peculiar de espaço urbano no qual áreas ocupadas e vazias intercalavam-se aleatoriamente por vastas áreas. Não havia nenhum planejamento prévio, e as regiões ocupadas eram aquelas nas quais os especuladores tinham decidido investir. Sua estratégia era deixar áreas vazias no meio das ocupadas para que fossem colocadas no mercado mais tarde por preços mais altos (Caldeira, 2000, p.219-20).

Deste modo, se a “queima de etapas” (Smolka, 1987) empreendida pelo capitalismo brasileiro, ante uma grande escassez de recursos, foi ajudada pela complementaridade in-tersetorial (Oliveira, 1998) entre o setor secundário e o setor terciário, fazendo com que serviços urbanos assumissem parte dos encargos do capital desvalorizado. Isto é, opera-ções providas por “serviços urbanos pessoais de baixa remuneração” (Smolka, 1987), essa mesma “complementaridade” seria levada a cabo em determinadas realidades, para fins de subsidiar a rentabilidade mútua de empreendimentos imobiliários e serviços de transporte.

23 A pretérita fraca exi-gência do poder público no que tange à contrapartida de certo nível de operação sobre as concessionárias destes serviços, perpetuou--se até os dias mais recen-tes, com os operadores privados nacionais herdando tais práticas e, a partir daí, promovendo seu processo de acumulação capitalista, sob contratos de conces-são e permissões precárias iníquas do ponto de vista dos interesses da população (público).

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Não se pode, no entanto, generalizar esta composição de capitais, como aqui fazemos com relação à participação do capital de transportes em atividades imobiliárias, as quais, vale destacar, se verificaram em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro e, em menor escala, em algumas cidades do interior paulista.

Há outras características que ainda devem ser consideradas. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, houve o endosso da atividade reguladora pública, que apenas atuava no sentido de formalizar os movimentos empresariais ligados aos transportes e à valorização imobiliária – o que não ocorreu em outras realidades. Nos espaços metropo-litanos das capitais nordestinas, por seu turno, observara-se uma melhor articulação entre a empresa local privada de transportes e a empresa pública local. Em Recife, a unificação e concentração se deram sob os auspícios do próprio poder público na ação da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU/Recife). Há também casos diferenciados, como em Fortaleza, onde o próprio capital privado se hegemoniza sobre o espaço regio-nal metropolitano, estabelecendo um monopólio espacial privado de operação em escala regional. Diferenciam-se, assim, os agentes que atuam na modernização dos capitais de transportes, assim como a intensidade com que atuam nas diferentes regiões brasileiras (Brasileiro, 1999).

Após certa etapa de concentração – depois de conformarem-se como empresas ca-pitalistas de transportes –, a forma de atuação desses capitais se daria na forma de grupos econômicos. Estes são a expressão mais desenvolvida de um conjunto complexo de movi-mentos de concentração e centralização da propriedade capitalista, que têm início no final do século passado.24 Os grupos de transporte Áurea e Andorinha, congregando as ativida-des econômicas da família Constantino (família tradicional em Presidente Prudente (SP), originária do estado de Minas Gerais) – exemplificam cabalmente tais assertivas. O grupo e seus acionistas aplicam capitais em diversas atividades econômicas, assim como pos-suem uma rede de atuação nacional na provisão de transportes públicos “intraurbanos”, operando sistemas em Maringá-PR (TCCC), Presidente Prudente-SP (Pruden Express e TCPP), Marília-SP (Circular Cidade de Marília), Bauru-SP (Grande Bauru), Brasília-DF (Planeta), entre outros municípios brasileiros. Também são proprietários da Gol Linhas Aéreas, da Empresa Andorinha de transporte intermunicipal por ônibus e da holding Pau-ma, ligada à atividade imobiliária.25

Nesse caso, evidencia-se a peculiaridade do processo mineiro de desenvolvimen-to do setor de transportes públicos, no qual até hoje se verificam empresas de transporte coletivo de pequeno e médio porte com gerenciamento “artesanal” e familiar, conforman-do conflitos de capitais particulares pouco concentrados e esforços de intervenção por parte dos poderes públicos (Cançado, 1999). No entanto, a partir do caso desses grupos, verifica-se que o poder de influência do empresariado mineiro extrapola o cenário local, demonstrando grande habilidade na expansão de negócios para outras cidades brasileiras, cujo melhor exemplo recai sobre as holdings da família Constantino. Para casos como este, torna-se oportuno recorrer a Oliveira (1998), uma vez que o caso dos grupos Áurea e Andorinha é bastante singular. Esta singularidade recai sobre o fato de que, embora persistam práticas arcaicas no seio destas holdings, estas convivem com formas de gestão modernas. É o caso, por exemplo, da Gol Linhas Aéreas como contraponto às empresas de transporte coletivo do grupo, nas quais práticas arcaicas de gestão se mantêm.

Em linhas gerais, a “modernidade” limitada das empresas de transporte coletivo no Brasil – ou um “moderno que convive com o arcaico”, no caso de alguns grupos econô-micos – advém dessa formação social, ou socioespacial, que limita, em certa medida, a

24 A categoria grupo econô-mico foi estruturada a partir da noção de capital finan-ceiro por Rudolf Hilferding (1985), podendo ser definida como uma unidade de pro-priedade e controle que se estende por um conjunto de empresas (Oliveira, 1998). É a estrutura empresarial que imbrica centralização do poder e da acumulação com descentralização da gestão, dos espaços e setores de atuação.

25 Este grupo vem paula-tinamente adquirindo várias empresas de transporte público do país e ganhan-do licitações em diversos municípios, firmando-se co-mo um poderoso holding de transportes, constituído por 38 empresas de transporte terrestre distribuídas em se-te estados brasileiros mais o Distrito Federal, com gran-de penetração política nas diversas escalas de poder. Também detém participação em empresas concessioná-rias de rodovias, como a BRVias (34% das ações, com o restante dividido entre a Splice e a Walter Torre Jr.). Agrega tanto atividades de ponta, sobre as quais há aporte massivo de investi-mentos (setor aéreo), quanto atividades conhecidas pelo seu regime de desinvesti-mento (transporte público).

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modernização em determinados espaços, ramos e setores econômicos. Para citar alguns exemplos, inicialmente, os aspectos modernos no setor transparecem sobretudo no tama-nho da frota e no escopo das atividades da empresa e, mais recentemente, na introdução da informática nos “processos de garagem”. No entanto, a utilização dos chamados Sis-temas Inteligentes de Transporte (SIT), que podem compor as operações de planejamento de linhas, controle operacional, sistemas de integração e tarifas etc., mostra-se ainda frágil e, nesse sentido, esses sistemas são dependentes do Estado no que tange à formulação de sistemas de normas que incitem à modernização (Aragão, 1999). É neste cenário que gran-des investimentos e novos sistemas de normas tornam-se necessários no setor, assim como formas de planejamento que articulem o uso do solo e o transporte, visando a eficácia do transporte e efeitos positivos sobre a estrutura urbana, que repercutam em uma maior eficiência das interações espaciais da força de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos conciliar teorias que, a nosso ver, sustentam as proposições de nossa pesquisa, aliando discussões mais gerais e conceituais da episteme da Geografia a teorias que mais especificamente explicam o objeto de nosso estudo, isto é, o trans-porte público. Para levar a cabo este objetivo, iniciamos traçando um histórico da noção de interações espaciais, resgatando suas origens dentro da Geografia, suas concepções e definições, bem como levantando o contexto no qual seus principais idealizadores con-ceberam esta noção. Também buscamos lançar as bases para uma dialética das interações espaciais, haja visto o emprego inapropriado que tem sido feito do conceito.

A importância da noção de interações espaciais foi recorrentemente posta em desta-que, na medida em que a ideia de interação – relação indutora do desenvolvimento – se encontra no centro das discussões sobre o transporte e, em nosso caso, dos transportes de passageiros. Destarte, tencionamos edificar uma noção de interações espaciais que superasse o mainstream na qual fora elaborada, como sendo um simples deslocamento mobilizado por forças econômicas centrípetas, definição que demonstra a influência da física e das ciências naturais, a partir das quais a noção fora extraída pela Economia e pela Geografia. Contudo, asseveramos que é necessário revisitar esta construção con-ceitual para reedificá-la sobre bases materialistas e dialéticas, atentando para o caráter transformador da interação, no sentido de que, ao fazer interagir, o transporte propicia a combinação de elementos de um espaço com outros. Concluímos, portanto, que a inte-ração possui um atributo de conducente do desenvolvimento, se partirmos da concepção trotskista de que o desenvolvimento só pode advir da combinação de formações materiais (desenvolvimento desigual e combinado). O mesmo se aplica quando pensamos a noção de interação espacial no contexto dos transportes de pessoas, o que equivale dizer que, quanto maior a possibilidade das pessoas de interagir com espaços diversos, maiores serão as possibilidades de desenvolvimento. Isto é, maiores serão as possibilidades de acesso às oportunidades assentadas nestes espaços na forma de empregos, de equipamentos coletivos essenciais à qualidade de vida, de aprimoramento intelectual e profissional, de lazer etc.

Isto aplica-se tanto às pessoas, que ampliam suas possibilidades de desenvolvimento humano – o que inclui emprego e renda – quanto ao capital. Este tende a realizar-se mais eficientemente na medida em que sua rotação no momento “transporte da força de tra-

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balho” e “consumo” se efetuam com maior velocidade, segundo, obviamente, o nível de eficiência dos sistemas de transporte no espaço da cidade.

Também destacamos que as interações espaciais respondem por fluxos de outras naturezas que não o de pessoas, congregando o transporte de capital na forma de mer-cadorias, a emissão e recepção de informações, os fluxos financeiros entre espaços etc. Ao atentar para estas múltiplas formas nas quais se manifestam as interações, tornou- -se necessário explicar qual sua relação com as interações humanas, isto é, dos homens enquanto consumidores e enquanto capital variável na forma de força de trabalho. Ou seja, a discussão exigiu definir, diante do quadro mais amplo da circulação geral, o locus do transporte público de passageiros – o serviço que propicia as interações espaciais do homem na cidade, correspondendo aos momentos “consumo” e “trabalho” – dentro do movimento circulatório do capital, a velocidade da rotação de seu capital face à tendência que tem o capital de impor e buscar espaços, setores e atividades que imponham cada vez maiores velocidades à sua própria realização. Daí, por exemplo, a proeminência do financeiro como o setor privilegiado pelo grande capital.

Assim, nos diversos estágios do movimento circulatório, ficam patentes as também diversas mobilidades do capital, com as frações de capital que dispõem de maior mo-bilidade espacial e setorial, sobressalentes no cenário econômico em termos de pujança econômica, maior possibilidade de investimentos etc. Estas compõem, atualmente, modernos grupos econômicos ligados ao setor financeiro e às holdings que compõem grupos intersetoriais (congregando atividades industriais, comerciais e de serviços). Neste contexto, buscamos situar as atividades do setor de transportes públicos entre os meios de consumo coletivo, atividades que, do ponto de vista dos grandes capitais, ma-nifestam baixa velocidade de rotação, em virtude da natureza coletiva de seu consumo, ou seja, de sua difícil individualização, devido ao caráter difuso de sua demanda em termos espaciais e temporais.

Este caráter coletivo do consumo não é atrativo aos grandes investimentos, os quais focam-se mais detidamente em investimentos de rápida maturação e grande volume de retorno de capital. Contraditoriamente, o capital em geral necessita, para sua plena realização, dos meios de consumo coletivos – enquanto condições gerais de produção –, a princípio, preteridos pelo grande capital, que se furta de investir neles. Estes ficam então a cargo de frações de capital de menor envergadura ou sob responsabilidade direta do Estado.

Aqui começamos a nos aproximar dos problemas concretos que afetam os transportes públicos no espaço da cidade, quais sejam, os parcos investimentos reais sobre a circulação urbana e, sobretudo, sobre o serviço e as infraestruturas de suporte ao transporte público.Este é um dos grandes gargalos para o desenvolvimento nacional, uma vez que afeta os vários estádios da circulação do capital, dificultando o escoamento da produção e dos insumos em virtude de viscosidades de um espaço urbano inadequadamente planejado; prejudicando a produtividade da força de trabalho – já que o trânsito e o tempo dentro do sistema de transporte afetam sua disposição física e mental –; afetando diretamente a capacidade de arcar com os custos da força de trabalho por parte do empregador. A ques-tão tarifária também é importante e, na medida em que há aumento exorbitante de tarifas – muitas vezes fruto de pressão política por parte das operadoras privadas –, aumenta-se o custo da reprodução social da força de trabalho.

Com a capitulação dos capitais internacionais ligados ao setor de transporte público no Brasil, ficou patente a resistência destes capitais em investir em meios de consumo co-

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letivo, isto é, em equipamentos que compõem, segundo Topalov (1979), condições gerais de reprodução social, demonstrando que, de fato, o capital, em geral, evita se cristalizar em investimentos que, pela natureza coletiva de seu consumo, podem sofrer variações de rentabilidade, com baixas taxas internas de retorno etc. Nesse caso, não havendo condições de “mutilação” destes serviços – o que necessita de relações promíscuas com o Estado, com a concentração de oferta nos eixos de grande demanda e ausência nas áreas de menor demanda, e com controle sobre o custo da tarifa etc. –, o capital busca investimentos nos quais adquire maior mobilidade geográfica e setorial (os grandes in-vestimentos na “ciranda” financeira são exemplo típico desta busca por mobilidade por parte do capital).

Vale ressaltar que os monopólios espaciais mal regulamentados, com modelos de concessão arcaicos – que desobrigam uma gestão de investimento em qualidade – são, em parte, a raiz da manutenção de baixos níveis de serviço dos sistemas de transportes no Brasil. Assim, o grande capital internacional de então – não adaptado às exigências das demandas coletivas de um meio de consumo essencialmente coletivo – passa a “mutilar” o serviço coletivo, mediante uma oferta extremamente restrita espacialmente (atendendo a áreas específicas e, sobretudo no caso do Rio de Janeiro e São Paulo, promovendo si-nergias com empresas de urbanização) e também a uma clientela limitada (gerou-se um monopsônio altamente rentável à operadora, no qual o usuário de transporte público era, sobretudo, do segmento social médio).

A justificativa de que se trata de serviços assumidos por pequenos capitais locais já não corresponde mais à realidade, pois – embora de origem e práticas arcaicas – grupos de transporte de projeção supraregional atuam hoje no setor, vencendo licitações em todo o país. Finalmente, após o advento e consolidação do ônibus como transporte coletivo que substituiria as ferrovias urbanas, opera-se a clivagem derradeira entre os modos de transporte dos pobres (o transporte público veiculado por ônibus) e os automóveis do segmento médio e alto, fazendo emergir o problema do trânsito, agravando ainda mais a dificuldade de operação do transporte público em uma cidade cada vez mais alvejada pela carência de investimentos em infraestrutura urbana de circulação. Paradoxalmente, processos de produção do espaço urbano encabeçados por agentes incorporadores e pro-prietários fundiários têm promovido alto grau de dispersão do espaço urbano, imbuídos da necessidade constante de buscar novos espaços com atributos naturais ou locacionais que os valorizem ante os espaços já demasiados viscosos das áreas centrais. Nestes espaços, a dispersão coexiste com a concentração (ainda que pontual no espaço), com prejuízos à operação espacial dos serviços de transporte público – ainda operados por capitalistas de corte arcaico e que há décadas estão estabelecidos nos municípios em função de pressões e penetração sobre os poderes públicos locais.

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Márcio Rogério Silveira é professor adjunto do Depar-tamento de Geociências e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universida-de Federal de Santa Catarina (UFSC), da Universidade Fe-deral de Santa Catarina, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universi-dade Estadual Paulista (cam-pus de Presidente Pruden-te); pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]

Rodrigo Giraldi Cocco é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Geogra-fia da Universidade Estadual Paulista (campus de Presi-dente Prudente). E-mail: [email protected]

Artigo recebido em novem-bro de 2010 e aprovado para publicação em fevereiro de 2011.

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A b s t r a c t For the building of a new approach about spatial interactions that overcomes the classical view of simple displacement, it is necessary to relate the transforming and dialectic nature of interactions to geographic space. The contact between different spatial elements through transportation allows the emergence of a new and superior feature of material conformations that reinforce the dialectical character. In capitalism, these interactions occur according to hegemonic interests of recovery, shaping unequalities between economic sectors, branches of activities, and spaces, that distort the interactions that promote them. In urban space, such processes collide and combine, showing a conflict fractions of capital responsible for structuring the space of the city. The relationship between transportation and the structure of the city is quite appropriate to give substance to these discussions.

K e y w o r d s Spatial interactions; public transportation; labor value; city structure.

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A IMPORTÂNCIA DA MACROMETRÓPOLE PAULISTA

Como Escala de Planejamento de Infraestruturas de Circulação e de Transporte

M a r c e l o S a c e n c o A s q u i n o

R e s u m o Uma das características recentes do planejamento de sistemas de in-fraestrutura regionais em São Paulo é o reconhecimento da Macrometrópole paulista como recorte necessário para a análise de benefícios e de impactos de projetos. Este artigo examina a estruturação da metrópole de São Paulo e de seu espaço econômico expandido a partir de suas múltiplas escalas de planejamento, com destaque para o papel das infraestruturas de circulação e de transportes como fatores primordiais de transformação da dinâmica econômica regional. A partir da avaliação histórica e relacional desses planos e projetos infraestruturais aponta seus potenciais impactos na estruturação da macrorregião.

P a l a v r a s - c h a v e São Paulo; macrometrópole; infraestrutura; circula-ção e transportes; planejamento.

IN TRO DU ÇÃO

Uma das características recentes do planejamento de sistemas de infraestrutura regionais em São Paulo é o reconhecimento da Macrometrópole paulista1 como recorte necessário para a análise de benefícios e de impactos de projetos, mesmo que locali-zados. Este recorte regional, que extrapola os limites institucionais formais da Região Metropolitana de São Paulo, guarda importantes relações econômicas e funcionais com a metrópole.

Este artigo avalia de que forma a implantação de novas infraestruturas de circulação e de transporte, neste território amplo, contribuem para modificar a dinâmica de localiza-ção de novos polos de empreendimentos na metrópole de São Paulo. Buscamos entender, em que medida a implantação destas infraestruturas e o desenvolvimento de atividades logísticas criarão condições para a atração de novos empreendimentos, reorientando a instalação de novos polos, modificando a dinâmica dos fluxos na Macrometrópole e, por consequência, na própria Região Metropolitana de São Paulo, a partir da sua inserção neste contexto macrorregional, em que mantém estreitas relações funcionais com o seu espaço econômico expandido.

Neste artigo, trataremos de avaliar projetos públicos derivados da mesma abordagem de estruturação da circulação e do transporte no Estado de São Paulo, e que têm, histo-ricamente, a cidade de São Paulo como principal território de articulação de caminhos, e como principal ponto de origem e de destino destes fluxos.

Como conclusão desta análise, reafirmamos a necessidade de se cultivar o entendi-mento das diversas escalas de planejamento presentes em São Paulo, e da importância de se planejar a metrópole a partir destas escalas como estratégia fundamental para a cons-

1 Pacheco (1998), relaciona a formação da Macrometró-pole com o resultado das políticas de desconcentra-ção industrial em São Paulo, conduzidas a partir dos anos 1970. Com o espraiamen-to da localização industrial para as regiões de Soro-caba, Campinas, Jundiaí, São José dos Campos e Baixada Santista, reconhece este entorno como a mesma região econômica, agora fisi-camente maior que a Região Metropolitana de São Paulo, conformando-se um chama-do campo aglomerativo que corresponde ao espaço re-gional identificado atualmen-te como a Macrometrópole.

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trução do território, relacionando os grandes projetos de infraestrutura, seus benefícios e impactos, com a política urbana local.

Figura 1 – Rede urbana paulista com suas regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e centros urbanos principais. A Macrometrópole paulista corresponde ao território situa-do em torno de 150 km da capital, reunindo as Regiões Metropolitanas de São Paulo, Campinas e Baixada Santista, e as aglomerações urbanas de Sorocaba, Jundiaí e São José dos Campos.

Fonte: São Paulo (Estado) e Fundação Seade (2006).

Se a formação da metrópole de São Paulo esteve relacionada à industrialização brasi-leira no século XX, a consolidação da Macrometrópole paulista pode ser entendida, cada vez mais, como a consolidação do espaço econômico atual, contemporâneo ao processo de globalização econômica e a seus efeitos no território, como a desconcentração indus-trial e a dispersão urbana de núcleos de habitação e trabalho.2 É desta forma que uma série de planos e de projetos públicos associados a um processo de desenvolvimento eco-nômico nesta macrorregião deverão ser avaliados como possíveis indutores de processos de relocalização de distritos de negócios, a partir da relação funcional entre a metrópole de São Paulo e a Macrometrópole.

AS ESTRUTURAS DE CIRCULAÇÃO INTRAURBANA E REGIONAIS POTENCIALIZANDO O CARÁTER DE SÃO PAULO COMO POLO ARTICULADOR DE CAMINHOS

A importância de se planejar a metrópole de São Paulo a partir de uma escala ampla esteve presente nos projetos de infraestrutura desde as primeiras décadas do século XX. Historicamente, os principais projetos de circulação e transporte para a capital, desde os anos 1930, trataram de conectar as estruturas de circulação intraurbana com as estruturas regionais e nacionais, potencializando o caráter da cidade como polo articulador de cami-

2 Mongin (2009) relaciona conceitos como “arquipé-lago econômico” à confor-mação de um novo espaço territorial multipolar que transcende a ideia da me-trópole industrial como polo econômico do período an-terior à globalização. Neste arranjo, os novos polos pas-sam a se articular em rede e a apresentar o incremento de fluxos no sentido “perife-ria-periferia”, reservando-se à antiga metrópole industrial o caráter de centralidade desta nova organização eco-nômica.

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nhos. Neste percurso histórico destacamos, especialmente, o Plano de Avenidas, nos anos 1930, o Plano de Melhoramentos, nos anos 1950, o Plano de Vias Expressas, nos anos 1970, e os estudos para uma rodovia perimetral metropolitana, nos anos 1990, que resul-taram no Rodoanel. O que caracterizou estes planos públicos, propostos ora pela esfera municipal e ora pela esfera estadual, foi o entendimento de que rompiam com o simples caráter de embelezamento urbano, ou de abertura de novas vias para o desenvolvimento urbano, para se organizarem em uma lógica de circulação regional, articulando-se e conectando-se com as macroestruturas de circulação estadual e nacional existentes, como as ferrovias e as rodovias, e suas conexões com o porto de Santos.3

O principal corredor de exportação do Estado, que é também o mais importante do país, é o do porto de Santos. Este corredor foi formado historicamente no Estado de São Paulo pela organização das redes ferroviária (desde o final do século XIX) e rodoviária (desde o final dos anos 1940) de forma radial com o centro, em São Paulo, e a partir da capital, acessando o porto de Santos. Em São Paulo, as primeiras grandes rodovias – Dutra, Anhanguera e Anchieta – reproduziram ligações então atendidas pelas ferrovias Santos-Jundiaí e Central do Brasil, reproduzindo o desenho histórico de São Paulo como nó de caminhos principais.4

Figura 2 – Estrutura das redes de transporte no Estado de São Paulo. A comparação entre a estruturação da rede de ferrovias, à esquerda, e da rede de rodovias, à direita, mostra a manutenção de São Paulo como polo principal de articulação destes sistemas no Estado, e como passagem obrigatória em direção ao porto de Santos.

Fonte: Asquino (2009).

Se, até o início dos anos 1970, a Região Metropolitana de São Paulo apresentava uma impressionante concentração industrial, respondendo por mais de 90% do Valor Adicionado da Indústria no Estado, dos anos 1970 aos anos 1990, os efeitos da reestrutu-ração produtiva, além dos incentivos públicos e da expansão dos sistemas de infraestru-tura, produziram a chamada desconcentração concentrada da metrópole, com os mesmos 90% do Valor Adicionado da Indústria no Estado distribuídos nesta macrorregião que hoje reconhecemos como a Macrometrópole.

3 Conforme analisamos em Asquino (2009), apesar de estes planos mencionados não terem sido integral-mente implantados, suas diretrizes de circulação prevaleceram no posterior desenvolvimento de projetos e obras viárias e rodoviárias, e alguns de seus traçados originais resultaram em im-portantes vias expressas urbanas e rodovias metropo-litanas implantadas ao longo destas décadas, como as avenidas Marginais dos rios Tietê e Pinheiros, Roberto Marinho, Aricanduva, Jacu- -Pêssego, Cupecê, corredor ABD e o trecho inicial da rodovia Ayrton Senna.

4 A formação do sítio de São Paulo e a relação entre os aspectos geográficos e econômicos que orientaram a conformação das redes de transporte paulista são abor-dadas em Ab’Saber (2004) e Prado Junior (1972).

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Tabela 1 – Participação percentual no Valor Adicionado da Indústria (base: Estado de São Paulo = 100)

1960 1970 1975 1977 1980 1987 1996 2001

Região Metropolitana de São Paulo

73,8 75,3 69,2 67,2 62,9 60,0 57,3 52,4

Macrometrópole (inclui RMSP)

92,0 93,6 93,7 92,8 92,0 91,7 91,2 90,1

Fonte: São Paulo (Estado) e IPT (2007). A concentração industrial nesta macrorregião é, ainda, acompanhada de uma

concentração populacional e econômica na Macrometrópole, correspondendo a 75% da população do Estado e 83% do PIB estadual, ou o equivalente a 16% da população brasileira e 28% do PIB nacional.5 É neste território que se concentram as principais infraestruturas de transporte rodoviário, ferroviário, portuário e aeroportuário.

Esta região é polo de atração de viagens com origens nas mais variadas loca-lidades do Estado e do país, reunindo diversos f luxos que competem pelas mesmas infraestruturas de circulação e transporte. A circulação na Macrometrópole paulista, que atrai cerca de 50% dos f luxos totais de transporte do Estado, também influencia a circulação na Região Metropolitana de São Paulo. Isto demanda, necessariamente, soluções para esta intensa circulação de mercadorias pelo modal rodoviário, uma vez que este responde por cerca de 93% do total das viagens de transporte no Estado.6 Cerca de 80% da carga que circula pela Macrometrópole é considerada carga geral, ou seja, produtos intermediários em suprimento ou escoamento de processos industriais, e produtos para consumo final. Como as instalações de produção e os estabelecimentos de consumo se encontram dispersos por esta região, a logística desta carga torna-se, portanto, de difícil planejamento.

A estrutura das redes de transporte existentes obriga que as principais cargas do país passem dentro da área urbana da capital. Especialmente em relação ao transporte de cargas regional, boa parte do interior da metrópole permanece como ligação rodo-viária e ferroviária entre o interior do estado e do país e o Porto de Santos, principal estrutura de transporte relacionada ao comércio exterior – e responsável por mais de um quarto de todas as transações internacionais brasileiras.7 Devido a esta estrutura, e à importância do Porto de Santos no contexto da economia brasileira, com sua ex-tensa área de influência,8 a dinâmica de circulação e transporte da metrópole de São Paulo afeta diretamente o desempenho da economia nacional, ou, pelo menos, compõe suas “deseconomias”. Neste sentido, qualquer transformação no nível das atividades portuárias impacta o dia a dia da metrópole de São Paulo, principalmente nas vias urbanas que se conectam aos eixos rodoviários dos sistemas Anhanguera/Bandeirantes e Anchieta/Imigrantes.

Como alternativa estratégica para a organização das atividades logísticas no Estado de São Paulo, a esfera estadual busca consolidar um corredor de exportação alternativo no porto de São Sebastião, para potencializar o escoamento da produção paulista, sem competir com o porto de Santos. Com a delegação do porto de São Sebastião obtida em 2007, foram programados investimentos em sua ampliação e modernização para funcio-nar como um terminal dedicado a cargas específicas e de alto valor agregado.

5 São Paulo (Estado), DAEE e Cobrape (2009).

6 São Paulo (Estado), Dersa e FESPSP (2004).

7 Cf. PLANO... (2009). Em 2004, o porto movimen-tou perto de 68 milhões de toneladas, registrando um valor de exportação de US$ 26,90 bilhões, corres-pondendo a 27,9% do total nacional. As importações atingiram US$ 16 bilhões, ou seja, 25,5% das importa-ções brasileiras. Toda esta movimentação é ainda valo-rizada pelo fato de o porto não movimentar apenas pou-cos produtos específicos, mas um leque completo de insumos e manufaturados, desde carga geral solta ou conteinerizada, automóveis, granéis sólidos e líquidos.

8 Cf. PLANO... (2009). A hin-terlândia do Porto de Santos compreende o Estado de São Paulo, norte do Paraná, sul de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, sul do Mato Grosso e Goiás. O Porto de Santos, situado em uma região do país cujo mer-cado corresponde a 55% do PIB nacional, 45% do mercado consumidor e 49% da população brasileira, é um porto estratégico para o desenvolvimento do comér-cio exterior. Assim, o Porto de Santos, por ser o mais próximo do centro econômi-co do país, deveria possuir melhor acessibilidade para garantir eficiência em tem-po, segurança e produtivi-dade. Fatores estes que são importantes na composição dos custos dos produtos co-mercializados nesta região.

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Figura 3 – Corredores de Exportação no Estado de São Paulo. O corredor do porto de Santos captura os fluxos provenientes do interior do Estado e do país pelos eixos dos siste-mas rodoviários Anhanguera/Bandeirantes e Imigrantes/Anchieta, passando por dentro da metrópole de São Paulo até a conclusão do Trecho Sul do Rodoanel. O corredor do porto de São Sebastião pretende capturar, preferencialmente, os fluxos provenientes do interior do Estado e do país pelos eixos rodoviários Dom Pedro I e Tamoios.

Fonte: Google Earth (2010), elaboração do autor.

Outra prioridade estratégica é a continuidade de construção de alternativas para a transposição logística da metrópole de São Paulo. A transposição logística da metrópole significa o esforço de promover a segregação dos diversos tráfegos de passagem que atual-mente a atravessam, retirando-os do conflito urbano provocado pelo compartilhamento das mesmas infraestruturas de circulação e de transporte no interior da região. Está relacionada especialmente aos fluxos na ligação Campinas/São Paulo/Porto de Santos, atendidos pelos sistemas Anhanguera/Bandeirantes, Rodoanel e Anchieta/Imigrantes, no modal rodoviário, e MRS/CPTM (MRS Logística S.A./Companhia Paulista de Trens Metroplitanos), no modal ferroviário, que atualmente cruzam a metrópole no sentido norte-sul, atravessando trechos densamente urbanizados, e a área central do Município de São Paulo.

A transposição da metrópole vem sendo estudada na esfera estadual desde os anos 1950, quando os primeiros projetos de um anel viário em São Paulo fizeram surgir, nos anos 1970, as Avenidas Marginais dos rios Tietê e Pinheiros. Nos anos 1980, com a sa-turação destas avenidas, optou-se pela utilização do sistema viário intraurbano existente, com a complementação por novos trechos de vias urbanas de caráter expresso, presentes nos projetos do Pequeno Anel e do Anel Viário Metropolitano. Estas benfeitorias tiveram efeito limitado, potencializando o congestionamento das vias urbanas, e o conflito entre os tráfegos local e de passagem no interior da metrópole.

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A CONVERSÃO DA LOGÍSTICA DE TRANSPORTES DE CARGA NA METRÓPOLE: DE RADIAL PARA ANELAR

No início dos anos 1990, prevaleceu a opção pelo desafio de construção de uma no-va rodovia metropolitana, localizada externamente à mancha urbana, a partir dos estudos da Via de Interligação Rodoviária (VIR).9

Em 1992, o projeto da Via de Interligação Regional (VIR) propunha uma interven-ção de porte passando por extensas porções de mananciais ao norte e ao sul da metrópole. A VIR deveria estabelecer uma alternativa de tráfego às grandes avenidas metropolitanas, retomando a proposta de implantação de uma via circular externa ao trecho urbanizado da metrópole de São Paulo. Foi concebida para permitir a interligação das rodovias radiais e para permitir acesso ao Porto de Santos sem atravessar o interior da mancha urbana, desviando o tráfego de passagem; reduzindo o uso das avenidas Marginais Pinheiros e Tietê e o congestionamento nos trechos iniciais das rodovias; melhorando, ao mesmo tempo, o desempenho dos sistemas rodoviário e viário urbano. Em suas diretrizes, os tre-chos atravessados pela rodovia seriam objeto de ocupação urbana planejada e incentivada pela infraestrutura, tratando de desconcentrar a metrópole e organizar suas atividades ao longo do novo anel proposto.

Em 1997, a esfera estadual reestruturou o projeto da VIR para a proposta de implan-tação do Rodoanel Mário Covas. O processo de discussão pública do programa levou a uma considerável revisão da diretriz em relação à proposta inicial da VIR. A partir da pressão pública contra a indução de processos de ocupação urbana em Áreas de Proteção aos Mananciais que poderiam ser desencadeados pela atratividade da nova rodovia, a es-fera estadual optou pela solução de uma rodovia fechada para o Rodoanel, contando com o menor número de ligações com o viário metropolitano existente.

Assumida a alternativa técnica pela implantação de uma rodovia fechada, passou-se a defender a infraestrutura como uma barreira física ao crescimento da mancha urbana nas porções externas ao anel, principalmente nos tramos sul e norte, com o compromisso de remoção de ocupações irregulares nos trechos atravessados pela obra e sua realocação, dificultando-se o avanço contínuo da ocupação urbana sobre as Bacias dos Reservatórios Billings e Guarapiranga, no trecho sul, e sobre Áreas de Proteção da Serra da Cantareira, no trecho norte.

Assim, dentro da lógica do Plano Diretor de Desenvolvimento dos Transportes (PDDT),10 o Programa Rodoanel, incorporado à implantação do Ferroanel e de Centros Logísticos Integrados, configuraria uma articulação de projetos para a Região Metropo-litana de São Paulo que permitiria converter a logística urbana de transportes de carga na metrópole de radial para anelar, modificando-se uma estrutura historicamente carac-terizada por eixos rodoviários e ferroviários que convergiam para o centro da região com o objetivo de realizar suas transações intermodais ou alcançar seu destino final.11 Esta proposta de organização da logística pretendia deslocar as transferências modais para o entorno da região, utilizando-se de veículos menores e mais adequados ao viário urbano para alcançar o destino final no interior da metrópole.

9 São Paulo (Estado), Dersa, Vetec e Vence (1992). A solução técnica da VIR, por sua vez, derivou de diver-sos estudos técnicos que abordaram a questão do projeto de uma via de con-torno externo à RMSP, como São Paulo (Estado), Dersa e Reyes (1992), São Pau-lo (Estado), Dersa e Jesus (1992), São Paulo (Estado) e Dersa (1991). Cabe des-tacar, também, a proposta de construção de trechos de uma Via Perimetral Metro-politana, iniciada em 1987, com características urbanas e foco na acessibilidade dos grandes conjuntos habitacio-nais periféricos.

10 São Paulo (Estado), Se-cretaria dos Transportes e Dersa (2003).

11 São Paulo (Estado), Der-sa e FESPSP (2004).

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Figura 4 – Modelo para a conversão da logística na RMSP, segundo o Programa Rodoanel. Com a implantação completa do Rodoanel e do Ferroanel, propunha-se a relocalização preferencial dos polos logísticos (indicados por círculos) em regiões externas aos anéis metropolitanos de transporte.

Fonte: Emplasa (2007).

Como benefícios indiretos, extensas áreas dedicadas às atividades logísticas no inte-rior da metrópole poderiam ficar disponíveis para receber usos urbanos mais adequados a regiões altamente urbanizadas. Com a opção pelo Ferroanel, a malha ferroviária intrarre-gional poderia ser utilizada exclusivamente para o transporte de passageiros pela CPTM, com o deslocamento do tráfego de trens de carga para o contorno externo na metrópole, beneficiando-se, assim, ambas as operações.

Desde o final dos anos 1990, a transposição metropolitana pelo modal rodoviário tem avançado com investimentos das esferas estadual e federal, em detrimento da trans-posição metropolitana pelo modal ferroviário, em virtude da ausência de uma solução acordada entre as esferas de governo, e com os interesses das concessionárias ferroviárias.

Atualmente, a transposição ferroviária da metrópole permanece sem solução defini-tiva. A manutenção ou potencialização do transporte ferroviário de cargas no interior da mancha urbana comprometerá a possibilidade de reconversão das faixas ferroviárias para usos urbanos, alternativa estudada desde os anos 1930.12

Mesmo sem uma decisão técnica definitiva, permanece a diretriz de que o conflito carga-passageiros existente no transporte ferroviário na Região Metropolitana de São Paulo deva ser eliminado, para se evitar que a redução dos intervalos dos trens da CPTM, em decorrência de todos os investimentos que vêm sendo realizados na modernização de suas linhas, estações e sistemas, não reduza ainda mais as janelas existentes para o tráfego de carga.13 O compartilhamento das mesmas linhas pelas composições de carga e de pas-sageiros compromete o aumento da velocidade operacional dos trens, porque a movimen-tação constante das composições de carga provoca desgaste e avarias nas linhas utilizadas, impedindo o aumento de velocidade das composições de passageiros por questões de segurança operacional. Desta forma, a segregação das linhas, mesmo que na mesma faixa ferroviária que atravessa o espaço intraurbano da metrópole, é absolutamente necessária.

12 Em Asquino (2009) abor-damos a diretriz de remane-jamento das linhas férreas de dentro da área central do município de São Paulo pre-sente no Plano de Avenidas, em 1930, e a sua retomada pelo Projeto do Departamen-to Nacional de Estradas de Ferro - DNEF-02/71, que defendia o desvio das fer-rovias que atravessavam a região urbanizada de São Paulo para a Asa Sul do cha-mado Anel Ferroviário. Esta medida eliminaria o serviço suburbano de passageiros e disponibilizaria faixas re-manescentes para a cons-trução do Metrô, permitindo a reurbanização das áreas que margeavam as ferrovias dentro da cidade.

13 Cf. CPTM... (2009).

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A opção pelo desvio das composições de carga para um contorno ferroviário externo permitiria projetar novos usos urbanos nos trechos remanescentes das faixas e dos pátios ferroviários, que poderiam ser utilizados pelo próprio sistema metro-ferroviário para a implantação de empreendimentos associados com usos comerciais, habitacionais e de ser-viços. Na área central de São Paulo, a requalificação urbana da chamada orla ferroviária representaria uma oportunidade de recuperação da densidade de habitação e de empre-gos em distritos centrais dotados de infraestrutura urbana e de sistemas de transportes públicos de massa.

A opção pela manutenção e potencialização do transporte ferroviário de cargas, cru-zando internamente a metrópole de São Paulo, mantém a dúvida sobre o balanço de bene-fícios e de impactos da utilização deste modal em grande escala para o abastecimento do mercado consumidor da metrópole, que absorve metade dos fluxos de transporte totais.14 O transporte ferroviário de produtos a granel ou conteinerizados até as proximidades da área central do município demandaria a manutenção de pátios de movimentação e de redistribuição da carga para vans e caminhões de pequeno porte que, por sua vez, fariam uso da malha viária central existente para a distribuição final. A opção por terminais intermodais a serem localizados fora da área intraurbana, como proposta pelo PDDT, preferencialmente junto às rodovias radiais localizadas nas proximidades do Rodoanel, parece-nos mais adequada, pela maior disponibilidade de glebas e de estruturas de circu-lação com maior capacidade operacional, que podem resultar em menores conflitos com usos urbanos existentes.

A permanência de terminais intermodais rodo-ferroviários dentro da metrópole contribui para a permanência dos conflitos na utilização das linhas entre o transporte de cargas e de passageiros. Ao mesmo tempo, a ainda grande presença do setor industrial na metrópole contribui para a manutenção destes serviços ferroviários no espaço intraur-bano. Dados recentes da Fundação Seade e do IBGE demonstram que a concentração da atividade econômica na Macrometrópole aumentou entre 2002 e 2007. Na Região Metropolitana de São Paulo, em 2007, produzia-se cerca de 55% do Valor Adicionado da Indústria do Estado, com a capital respondendo por 25% do total. Com o processo de desenvolvimento dos chamados serviços produtivos na metrópole,15 e dos serviços espe-cializados voltados à produção e à indústria, houve uma concentração de tal magnitude deste setor na Região Metropolitana de São Paulo que, em 2007, a capital respondia por nada mais que 40% de seu Valor Adicionado total no Estado.16

14 São Paulo (Estado), Der-sa e FESPSP (2004).

15 Serviços que original-mente cohabitavam as plan-tas industriais, e que foram terceirizados e separados fisicamente a partir da con-solidação do processo de reestruturação produtiva, nos anos 1980.

16 Segundo São Paulo (Estado) e Fundação Sea-de (2009), a concentração econômica no Município de São Paulo foi ainda extrema-mente significativa em 2007. Neste ano, a economia da capital representou 12% do PIB do Brasil, sendo maior do que o PIB de todos os demais Estados brasileiros individualmente, maior que o PIB da Região Norte, da Região Centro Oeste, e re-presentando cerca de 92% do PIB da Região Nordeste.

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Figura 5 – Terminais intermodais na RMSP. Conjunto de terminais (indicados por qua-drados) situados no interior da mancha urbana metropolitana, junto às linhas ferroviárias da CPTM, em operação compartilhada entre o transporte de cargas e o de passageiros.

Fontes: FERROANEL... (2009) e Google Earth (2010). Elaboração do autor.

Neste sentido, é difícil imaginar uma opção clara por apenas um tipo de modal para o abastecimento de um mercado urbano complexo e diversificado. Entretanto, os grandes volumes de cargas que circulam no Estado, tanto pelo modal rodoviário quanto pelo fer-roviário, e que são destinados a operações do mercado externo, correspondendo a fluxos de passagem pela metrópole, deveriam ser retirados do espaço intraurbano.17

DISPERSÃO E FRAGMENTAÇÃO DOS NÚCLEOS URBANOS E DE SERVIÇOS NO ESPAÇO MACRORREGIONAL

Se nos parece indefinida, na atualidade, a opção pela consolidação de infraestru-turas de transporte que realizem a transposição da metrópole externamente à mancha urbana, a opção corrente pela expansão das estruturas de circulação viária e rodoviária no interior da metrópole é sempre justificada pela característica de São Paulo como a principal cidade da rede urbana brasileira e como o maior mercado consumidor do país.

São Paulo detém especialidades nos setores de comércio e de serviços que con-tribuem decisivamente para a sua atratividade e para o grande número de viagens e de deslocamentos de pessoas provenientes das cidades em sua rede de influência, com abrangência macrorregional e nacional.18 Na rede de cidades brasileiras, é considerada o centro de uma macrorregião conhecida como Centro-Sul, que reúne os principais polos de atividade econômica do país. Estes polos estão interligados por uma rede de rodovias, ferrovias, e outras infraestruturas, sendo que o trecho mais dinâmico desta macrorregião compreende dois eixos com origem em São Paulo – o primeiro partindo em direção ao Rio de Janeiro, e o segundo partindo em direção a Campinas, Ribeirão Preto, Uberlân-dia e Belo Horizonte.19

17 Cf. São Paulo (Estado), Dersa e FESPSP (2004). O alívio do tráfego de pas-sagem é estimado em até 24% das viagens totais, em que 12% correspondem aos fluxos de comércio interre-gional de São Paulo com os demais Estados, 6% consti-tuem cargas de passagem pelo Estado e 6% restantes constituem cargas destina-das ao comércio exterior.

18 Cf. IPEA, IBGE e Uni-camp (2001), em fase de atualização. Os mais recen-tes estudos sobre a rede urbana brasileira confirmam esta condição, como Brasil e MPOG (2008), no Estudo da Dimensão Territorial para o Planejamento, e Brasil e IB-GE (2008), na atualização da pesquisa Regiões de Influên-cia das Cidades.

19 São Paulo (Estado) e Fundação Seade (2006).

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Figura 6 – Eixos econômicos principais no Estado de São Paulo. A distribuição das uni-dades locais da indústria no Estado (indicadas por círculos) segue a lógica de localização dos principais centros regionais, das infraestruturas de transporte, e reflete na distribuição do PIB paulista.

Fonte: São Paulo (Estado) e Fundação Seade (2006).

Com o processo de implantação da transposição rodoviária da metrópole em curso nos últimos dez anos, e com a complementação de capacidade dos grandes sistemas de circulação rodoviária no entorno da metrópole, estes projetos têm contribuído para a formação de novos distritos de negócios junto aos eixos rodoviários e seus principais entroncamentos, notadamente relacionados ao setor logístico. Este setor representa uma oportunidade de relocalização de atividades e de conformação de novos polos de negó-cios relacionados ao desenvolvimento da logística na metrópole e na Macrometrópole. A expectativa principal do setor público estadual é de que esta relação, entre o provimento de infraestrutura e o desenvolvimento de serviços relacionados à logística, possa desenvol-ver as chamadas plataformas logísticas, entendidas como empreendimentos de negócios relacionados ao processamento final de produtos, estocagem, transbordo, além da co-localização de serviços financeiros, aduaneiros, fiscais e administrativos.20

Em 2010, a partir do início da operação conjunta dos trechos Oeste e Sul do Ro-doanel, observamos que os empreendedores privados têm se dirigido preferencialmente para glebas situadas junto às rodovias troncais, localizadas próximo o suficiente dos trevos de interligação ao Rodoanel. Entretanto, esta movimentação do setor tem se organizado segundo a lógica do mercado, uma vez que o setor público não dispõe de iniciativas espe-cíficas que conduzam o mercado de glebas disponíveis para estes fins.21

O mercado, aproveitando-se da percepção de oportunidades de novos negócios junto às rodovias e vias implantadas e modernizadas na metrópole, vem privilegiando as localizações próximas aos acessos do sistema Anhanguera/Bandeirantes, desde Louveira e Jundiaí até a altura dos municípios de Cajamar e Campo Limpo Paulista, ou próximas do Rodoanel, que vêm movimentando o mercado de terras e de galpões para logística nas proximidades de seus entroncamentos com a Rodovia Régis Bittencourt, no Embu, e com o sistema Anchieta/Imigrantes, no Grande ABC. Neste último, a própria empresa conces-

20 Braga (2007) e Santos (2004) apresentam os con-ceitos relacionados a Termi-nais Intermodais de Carga e Plataformas Logísticas, e su-as diretrizes para implanta-ção, com atenção ao caráter multiplicador de atividades proporcionado pelas plata-formas, enquanto estruturas complexas diferenciadas de apoio à atividade produtiva.

21 São Paulo (Estado), Der-sa e BUPEC (1989). Nos anos 1980, os projetos de Terminais Intermodais de Carga eram conduzidos pela esfera estadual dentro de uma política nacional de transportes estabelecida na década anterior.

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sionária do sistema implantou um Centro Logístico de grandes dimensões na altura da interligação com o Rodoanel, em parceria com investidores imobiliários.22

No Vale do Paraíba, a perspectiva de ampliação do Porto de São Sebastião, e de du-plicação da Rodovia dos Tamoios com a construção de um contorno rodoviário de acesso ao Porto, tem desencadeado estudos para a implantação de uma plataforma logística no município de São José dos Campos, como estrutura complementar ao desenvolvimento de um corredor de exportação alternativo ao Porto de Santos, em São Sebastião. A própria eficiência de funcionamento do Porto de São Sebastião não depende apenas da moder-nização de seu cais, ou da construção de um contorno rodoviário de alta capacidade que desvie o tráfego dos trechos urbanos, mas também da condição de se estabelecer áreas adequadas de retroporto no planalto, uma vez que glebas para este fim no Litoral Norte, sem restrições ambientais ou urbanas, são escassas. Neste sentido, a posição estratégica do município de São José dos Campos é fator de atração destes equipamentos, por estar situ-ado no entroncamento dos principais acessos rodoviários pelas rodovias Dutra, Carvalho Pinto e Tamoios, pela presença das linhas férreas operadas pela MRS e pelo aeroporto, além da sua característica urbana, como um centro regional dotado de um importante parque industrial, tecnológico e educacional.

Na Macrometrópole, a reorganização das atividades logísticas também deverá acompanhar o desenvolvimento da cadeia de petróleo e gás no Estado de São Paulo, que já se iniciou com a implantação de plantas de tratamento e condicionamento de gás natural em Caraguatatuba, ou com a futura construção da sede corporativa da Pe-trobras relacionada à administração da Bacia de Santos, no centro histórico de Santos, e nos investimentos privados industriais e de serviços especializados que poderão ser atraídos para a região.23

O que caracteriza esta perspectiva de desenvolvimento é que, diferentemente do processo de indução à desconcentração industrial em São Paulo, conduzida por meio de políticas públicas no âmbito federal e estadual nos anos 1970, não existe atualmente no setor público um programa de investimento em infraestrutura urbana e equipamentos sociais voltado especificamente para o desenvolvimento de novos polos de atividades. Atualmente, apesar de não se constituir em uma política oficial, a perspectiva de re-alização destes projetos e investimentos públicos na Macrometrópole pode contribuir, indiretamente, para uma reorientação funcional entre polos dentro da macrorregião, principalmente pelo favorecimento da dispersão e fragmentação dos núcleos urbanos e de serviços neste espaço macrorregional, à medida em que a capacidade de comunicação, circulação e transporte permaneçam em níveis de alto desempenho, permitindo fluxos diários rotineiros entre os locais de moradia, lazer, estudos e trabalho.

A questão reside, então, em tentar entender qual a capacidade de transformação urbana que pode ser provocada por este movimento de realocação das atividades no território, se serão indutores da formação de novos polos metropolitanos ou se serão ati-vidades que não agregam outras funções urbanas ao seu entorno, mas apenas estruturas funcionais de transporte, com significativo impacto no sistema viário local.

Por outro lado, não é possível afirmar se a relocalização das atividades produtivas trará impactos significativos na tendência demográfica ou migratória. No caso dos gran-des empreendimentos públicos e privados, a tendência é de que estes fluxos migratórios ocorram de maneira temporária, motivados inicialmente pela mobilização dos setores da construção civil. Se não estamos falando em fluxos migratórios que provoquem o aden-samento significativo de novos polos, com o aumento da demanda por equipamentos de

22 Uma breve visão desta movimentação do mercado privado pode ser conhecida em Boechat (2008), Melo (2009) e Rodrigues (2008).

23 Cf. São Paulo (Estado) e Cespeg (2008).

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educação, saúde e habitação, podemos supor apenas uma relocalização temporária, ou alterações e incrementos da circulação temporários.

A própria dinâmica demográfica do Estado de São Paulo, no período recente, tem mostrado taxa de fecundidade em acentuada redução, e a expectativa de vida ao nascer, em ascensão. O movimento migratório, cujo dimensionamento é mais complexo, tem seu impacto hoje bem menor que no passado. Em consequência dessas tendências, a taxa de crescimento da população do Estado de São Paulo diminuiu de 3,5% na década de 1970, para 1,8% na de 1990, e deverá chegar a apenas 1,4% entre 2000-2010.24 A des-peito dessas tendências gerais da dinâmica populacional, as estruturas demográficas no Estado de São Paulo ainda são heterogêneas segundo condição socioeconômica e espaço territorial, o que nos leva a entender que as dinâmicas regionais devam ser analisadas com atenção específica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: POTENCIAIS EFEITOS DO INCREMENTO DA MOBILIDADE NA MACROMETRÓPOLE PAULISTA

Com a complementação de investimentos em rodovias organizando o transporte na Macrometrópole, a perspectiva de implantação de uma ligação ferroviária expressa entre São José dos Campos, São Paulo e Campinas – e com os investimentos em transporte metropolitano feitos internamente às regiões metropolitanas paulistas –, podemos espe-rar por um significativo incremento da mobilidade na Macrometrópole, o que permite intensificar os fluxos regionais, mesmo que isto não represente, neste caso, a mudança de localização de contingentes de população e de setores de atividades entre regiões. A perspectiva de consolidação, no médio prazo, de um sistema eficiente e integrado de transporte metropolitano deve ser fator fundamental para a consolidação desses polos metropolitanos, se não do ponto de vista de novos distritos industriais ou de serviços pro-dutivos especializados na metrópole, mas da potencialização de uma gama de atividades distribuídas por esta região que configuram a “cidade metropolitana”.25

A melhoria da mobilidade intrametropolitana não está apenas centrada nos pro-jetos viários, mas também na expansão, melhoria e franca integração dos sistemas metro-ferroviários na Região Metropolitana de São Paulo, e na construção de sistemas estruturais de transporte público metropolitano nas regiões metropolitanas de Campi-nas e da Baixada Santista. Este incremento da mobilidade nas regiões metropolitanas está orientado pelas diretrizes do Plano Integrado de Transportes Urbanos (PITU), com visão de longo prazo e atualização para o ano 2025.26 Na Região Metropolitana de São Paulo, os principais resultados esperados com a implantação dos projetos relacionados ao PITU são a reversão da tendência de diminuição da participação do transporte co-letivo para o motorizado, que passaria a representar 52%, a redução das viagens a pé em 24%, o aumento da participação do sistema sobre trilhos no coletivo chegando a 33%, e a diminuição do tempo de viagem em 30%. Sob a perspectiva deste plano, a malha convencional de trens metropolitanos dobraria sua capacidade de atendimento em relação aos índices de 2006. A modernização da rede metroferroviária proporcionaria a diminuição do intervalo médio entre os trens em 25%. Com a modernização, a rede sobre trilhos operando com qualidade de metrô na Região Metropolitana de São Paulo deveria atingir 240 quilômetros, dos quais, 160 quilômetros em trilhos da CPTM. Com

24 São Paulo (Estado) e Secretaria de Economia e Planejamento (2008). Estes valores aguardam confirma-ção, com a publicação oficial dos resultados do Censo De-mográfico IBGE 2010.

25 Conceito apresentado por Borja e Castells (1997) e que Meyer, Grostein e Bi-derman (2004) identificam em São Paulo a partir da pesquisa sobre a caracte-rística locacional das sedes das empresas, do comércio e dos serviços especializa-dos na metrópole. Neste sentido, a metrópole de São Paulo não se apresenta mais como uma aproximação fí-sica e funcional de diversos núcleos urbanos com suas características particulares, mas compreende atualmente um espaço de urbanização contínua, onde se organiza uma realidade econômica, social, cultural e funcional de ampla abrangência.

26 A evolução do PITU é conhecida pela comparação das propostas presentes em São Paulo (Estado) e Secre-taria dos Transportes Metro-politanos (1999, 2006).

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uma estrutura composta por 337 trens e 154 estações, a previsão de atendimento passaria a ser de até 7,5 milhões de passageiros/dia.

Figura 7 – Pontos de integração do sistema metroferroviário. A análise integrada dos pro-jetos viários, rodoviários e metro-ferroviários realizada no âmbito do PITU 2025 indicou localidades potencialmente favoráveis à formação de polos metropolitanos (indicadas por quadrados).

Fonte: São Paulo (Estado) e Secretaria dos Transportes Metropolitanos (2006).

A integração plena dos sistemas do Metrô e da CPTM sela a opção de transformar definitivamente os antigos serviços de trens de subúrbio em um sistema de alta perfor-mance, opção descartada no início do planejamento da rede, há cerca de 40 anos atrás.27 A inclusão do projeto do Trem de Alta Velocidade neste contexto, com desenvolvimento a cargo da esfera federal, poderá atender as ligações Campinas/São Paulo e São Paulo/São José dos Campos em trechos a serem percorridos em apenas 30 minutos,28 tempo menor que muitas das viagens diárias intrametropolitanas percorridas no sistema metro--ferroviário de São Paulo.

O deslocamento de núcleos habitacionais e de polos de negócios deve ser influencia-do, também, pela capacidade ou não de se promover melhorias habitacionais e urbanas fora da Região Metropolitana de São Paulo, especialmente nas cidades litorâneas afetadas pelos grandes investimentos tanto na Baixada Santista quanto no Litoral Norte, onde a cobertura por redes de drenagem, saneamento ambiental, transporte urbano e estrutura viária ainda são insuficientes, mesmo para atender satisfatoriamente suas atuais popula-ções. Em Santos e São Sebastião, o desafio é planejar a expansão dos portos a partir da sua inserção urbana, integrando-o à vida da cidade, em uma visão desta infraestrutura não mais como área de segurança nacional, isolada do contexto urbano em que se inseria. Em centros urbanos mais desenvolvidos como Campinas, Santos, Jundiaí ou São José dos Campos, mesmo que ocorra um incremento do número de núcleos habitacionais e de polos de negócios em seus territórios, será preciso desenvolver outros atributos relacionados

27 São Paulo (Estado) e Cia. do Metrô (1987).

28 PROJETO ... (2009).

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a uma autêntica metrópole, como o desenvolvimento de um setor terciário funcional e mo-derno, além dos setores relacionados aos campos da cultura, do conhecimento e da tecno-logia,29 para competir com a grande atratividade que é ainda proporcionada por São Paulo.

Na cidade de São Paulo, por sua vez, como centralidade deste espaço econômico expandido, mas também como território de articulação de caminhos, os desafios são conter a fragmentação e dispersão do território, principalmente provocados pela implan-tação de grandes infraestruturas de caráter regional. Estas, não devem fazer prevalecer os fluxos sobre os lugares, mas contribuir para que o espaço urbano possa ser poten-cializado pela presença destas infraestruturas, no sentido da resignificação, coesão e articulação da metrópole.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Marcelo Sacenco Asquino é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-Univer-sidade de São Paulo e as-sessor técnico da Secretaria de Estado de Planejamento e Desenvolvimento Regional. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em outubro de 2010 e aprovado para publicação em fevereiro de 2011.

29 Cf. Cano (2007) e Meyer (1991).

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M A R C E L O S A C E N C O A S Q U I N O

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A I M P O R T Â N C I A D A M A C R O M E T R Ó P O L E P A U L I S T A

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SÃO PAULO (Estado); SECRETARIA DE ECONOMIA E PLANEJAMENTO. Plano Plurianual 2008-2011: Lei n.º 13.123 de 8 de julho de 2008. São Paulo: SEP, 2008.SÃO PAULO (Estado); SECRETARIA DOS TRANSPORTES; DESENVOLVIMEN-TO RODOVIÁRIO S.A. PDDT Vivo 2000-2020: 2.ª Versão. São Paulo: ST, 2003.SÃO PAULO (Estado); SECRETARIA DOS TRANSPORTES METROPOLITANOS. Pitu 2020: Plano Integrado de Transportes Urbanos para 2020. São Paulo: STM, 1999.__________. Pitu 2025: Plano Integrado de Transportes Urbanos – Síntese. São Paulo: STM, 2006.

A b s t r a c t One of the characteristics of recent regional infrastructure planning systems in São Paulo is the recognition of São Paulo Macrometropolis as the spatial area required for the analysis of benefits and impacts of projects.The paper examines the structure of São Paulo metropolis and its expanded economic region considering its several scales of planning. In this analysis, the role of transportation and circulation infrastructures as key factors to transform the regional economic dynamic are focused. From the historical and relational evaluation of those infrastructural plans and projects, their potential impacts on the macro-regional organization are highlighted.

K e y w o r d s São Paulo; macrometropolis; infrastructure; transportation and circulation; planning.

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PANORAMA DA MUNICIPALIZAÇÃO DA

POLÍTICA HABITACIONAL em Pequenos Municípios de Minas Gerais

A l i n e W e r n e c k B a r b o s a d e C a r v a l h oA n a C a r l a d e A l m e i d a F a g u n d e s

R i a n e R i c c e l i d o C a r m oG e r a l d o B r o w n e R i b e i r o F i l h o

R e s u m o Este artigo apresenta um panorama geral do processo de municipalização da política habitacional em Minas Gerais, tomando como objeto de estudo os municípios com população inferior a 20.000 habitantes e como marco temporal o ano de 2004, quando foi aprovada a Política Nacional de Habitação. Procura-se refletir sobre as peculiaridades dessa categoria municipal, quando comparada à realidade de outros municípios brasileiros, para o enfrentamento do processo de municipalização da política habitacional decorrente da redis-tribuição de competências entre as esferas governamentais pela Constituição Federal de 1988. Os resultados apresentados são oriundos de pesquisa bibliográfica e documental, bem como de levantamento de campo realizado mediante aplicação de questionários aos agentes responsáveis pela implementação de ações na área de habitação. Como ocorreu com outras áreas, a muni-cipalização da política habitacional nos pequenos municípios mineiros começa a se estruturar lentamente, em atendimento ao modelo descentralizador-participativo vigente.

P a l a v r a s - c h a v e Municipalização; descentralização; gestão munici-pal; pequenos municípios; política habitacional; habitação de interesse social.

IN TRO DU ÇÃO

A trajetória da política habitacional no Brasil tem sido marcada por mudanças nas concepções e nos modelos de intervenção do poder público, desde a primeira iniciativa oficial de provisão de moradia pelo Estado – a Fundação da Casa Popular –, nos idos da década de 1940, até o momento atual, caracterizado pela descentralização entre os níveis governamentais e pelo novo papel do Estado na provisão dos serviços à população.

Com a aprovação da Constituição Federal de 1988, a descentralização torna-se um dos pontos principais do modelo proposto para as políticas públicas, as competências são redefinidas e a gestão de programas sociais – dentre eles, os de habitação – passa a ser atribuição dos Estados e Municípios, seja por iniciativa própria, seja por adesão a algum programa proposto por outro nível de governo (Carvalho, 2000).

Data desta época a adoção de um modelo institucional que privilegia a iniciativa e a autonomia dos Estados e Municípios. No caso da habitação, esses passaram a dividir com a União a responsabilidade pela promoção de programas de construção de moradias e pela melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. Cabe ainda, como com-

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petência comum aos três níveis de governo, o combate às causas da pobreza e aos fatores de marginalização, visando à promoção da integração social dos setores desfavorecidos. Em outras palavras, no novo modelo descentralizador, o provimento de habitação passa a integrar as competências das instâncias municipais. Neste contexto, cabe às administra-ções municipais organizar-se institucionalmente para formular sua política habitacional e participar dos programas e linhas de financiamento que são colocados à disposição pelos governos federal e estadual.

A avaliação do desempenho da política habitacional nos municípios mais populosos e nas metrópoles tem sido objeto de vários trabalhos acadêmicos.1 Entretanto, faltam estudos sobre a municipalização das políticas habitacionais que enfoquem municípios de pequeno porte demográfico. Além disso, a maioria das pesquisas concentra-se no eixo Rio-São Paulo. Por outro lado, é conhecido o quadro de carência de recursos humanos e de desestruturação organizacional e financeira das pequenas unidades locais no Brasil, o que pode comprometer o acesso dos municípios menos estruturados aos meios disponibi-lizados pelo Governo Federal. Essa situação torna-se particularmente importante quando se analisa o quadro municipal do Estado de Minas Gerais, em que é muito significativo o número de municípios com população inferior a 20.000 habitantes (cerca de 80% dos municípios mineiros, segundo dados do Censo do IBGE, de 2000).

Ainda que o problema habitacional nos pequenos municípios assuma menores proporções comparativamente ao que se vê nas metrópoles, a renda muito baixa que ca-racteriza a população nestes municípios e a menor capacidade de alavancagem de recursos (internos ou externos) indicam a necessidade de desenvolvimento de políticas eficazes por parte do poder púbico municipal no sentido de garantir condições mínimas de habitabi-lidade à população local.

No caso específico dos municípios com população inferior a 20.000 habitantes – objeto deste artigo –, a inserção nos programas e linhas de financiamento para habitação é dificultada por características próprias dessa categoria municipal, que envolvem pequena capacidade financeira para realizar as contrapartidas exigidas, bem como falta de estru-turação administrativa e de recursos humanos que lhes permitam submeter propostas, executar e acompanhar adequadamente as ações contratadas (Urushibata, Carvalho e Almeida, 2008).

Diante dessas considerações, o objetivo deste artigo consiste em apresentar um panorama geral do processo de municipalização da política habitacional em municípios com população inferior a 20.000 habitantes em Minas Gerais, no âmbito do modelo de descentralização proposto pela Constituição de 1988. Contém o levantamento e avalia-ção da atuação das prefeituras municipais na provisão da habitação de interesse social neste universo de municípios mineiros, tendo como recorte temporal o período 2004-2009, cujo marco inicial refere-se à aprovação da atual Política Nacional de Habitação.

Para o recorte temporal e espacial proposto, foi possível identificar as políticas, os programas e as ações implementados pelas administrações municipais para atender às demandas por habitação de interesse social no âmbito do território municipal; identifi-car o instrumental jurídico-institucional disponível no âmbito de cada localidade para a municipalização da política habitacional; conhecer a estrutura administrativa das prefei-turas municipais e sua capacidade (recursos humanos e organizacionais) para formular e implementar as políticas habitacionais; identificar a origem dos recursos financeiros e as formas de financiamento das políticas, programas e ações implementados pelos mu-nicípios, abrangendo o perfil dos programas, projetos ou ações implementados quanto

1 Ver Cardoso et. al. (1997); Arretche (2002); Cardoso e Abiko (2000), entre outros.

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A. W. B . CARVALHO, A . C . A . FAGUNDES, R . R . CARMO, G. B . RIBEIRO FILHO

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à modalidade, data de contratação dos financiamentos ou de início das ações e valores dos investimentos.

Estes dados foram obtidos por meio de questionários enviados às prefeituras dos municípios que compõem o universo da pesquisa, contudo, apenas 140 questionários retornaram preenchidos. Adotando-se um nível de confiança igual a 95,5%, obteve-se um erro amostral de 6,5%. Assim, para minimizar algumas inconsistências decorrentes do tamanho da amostra, os dados foram complementados com informações fornecidas pela gerência regional da Caixa Econômica Federal e obtidas no site da COHAB-MG.

Inicialmente, apresentam-se algumas características dos municípios tomados como objeto de estudo. Em seguida, configura-se o contexto de descentralização das políticas públicas pós-1988, que fundamenta as relações entre os níveis governamentais na condu-ção da política habitacional brasileira a partir dos anos 1990. Finalmente, apresentam-se os resultados da pesquisa empírica, conformando um panorama geral das condições dos municípios diante do processo de municipalização da política habitacional em curso.

DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO: CARACTERIZAÇÃO GERAL DOS MUNICÍPIOS COM POPULAÇÃO INFERIOR A 20.000 HABITANTES EM MINAS GERAIS

A população da pesquisa totalizou 671 unidades locais, ou seja, cerca de 78% dos municípios mineiros, conforme ilustrado na Tabela 1.

Tabela 1 – Número e percentual de municípios de Minas Gerais por categoria popula-cional (2009)

Categoria Populacional Número de Municípios % de MunicípiosAté 20.000 671 78,7

20.000 a 50.000 117 13,7

50.000 a 100.000 38 4,5

100.000 a 350.000 21 2,5

Acima de 350.000 6 0,7

Total 853 100

Fonte: tabela elaborada pelos autores, a partir de dados demográficos do IBGE.

De acordo com classificação realizada pelo IBGE, esses municípios estão distribuídos entre 12 mesorregiões geográficas: Campo das Vertentes, Central Mineira, Jequitinhonha, Metropolitana de Belo Horizonte, Noroeste de Minas, Norte de Minas, Oeste de Minas, Sul/Sudoeste de Minas, Triângulo Mineiro/Vale do Paranaíba, Vale do Mucuri, Vale do Rio Doce e Zona da Mata (Figura 1).

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Figura 1 – Mesorregiões geográficas de Minas Gerais

Fonte: adaptada pelos autores, a partir de dados do GeoMinas, 2010.

Em geral, o estudo dos municípios brasileiros depara-se com algumas barreiras, devido à escassez de informações quantitativas, à carência de indicadores qualitativos e, ainda, à dificuldade de incorporar as especificidades locais. No caso de Minas Gerais, a grande extensão territorial e a diversidade socioeconômica, geográfica, histórica e cultural do Estado determinam diferenças significativas entre os municípios, em função da sua localização regional, o que torna ainda mais difícil uma caracterização geral dos pequenos municípios. Sabe-se que as regiões Norte, Noroeste, Jequitinhonha e Mucuri apresentam--se como as regiões mais deprimidas do Estado, e seus municípios compõem o quadro dos piores indicadores sociais e econômicos de Minas Gerais. Os municípios com indicadores sociais e grau de urbanização médios estão concentrados nas regiões de Campo das Ver-tentes, Central Mineira, Vale do Rio Doce e Zona da Mata, embora esta última constitua uma região com fortes desigualdades econômicas e sociais internas, cuja importância econômica no Estado vem apresentando uma trajetória descendente nos últimos anos. Por fim, a presença de aglomerações produtivas nas regiões do Triângulo Mineiro, Oeste, Sul/Sudoeste e Região Metropolitana de Belo Horizonte resulta em municípios com bons indicadores sociais e econômicos, além de relevante grau de urbanização.2

Entretanto, alguns indicadores, como o baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), podem ser atribuídos à maioria das pequenas unidades locais. Essa característica enfatiza suas carências no que diz respeito à prestação de serviços básicos, como saúde e educação. De acordo com o ranking de desenvolvimento humano dos municípios, rea-lizado pelo PNUD no ano 2000, cerca de 88% dos municípios mineiros com população inferior a 20.000 habitantes apresentavam IDH abaixo da média brasileira (0,769). Este percentual é ainda mais significativo na faixa de 2.000 a 10.000 habitantes (Tabela 2).

2 A respeito das regiões do Estado de Minas Gerais, ver: Fontes e Fontes (2005). Mais precisamente sobre a Zona da Mata, ver: Carvalho (2000) e Rocha (2008).

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A. W. B . CARVALHO, A . C . A . FAGUNDES, R . R . CARMO, G. B . RIBEIRO FILHO

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Tabela 2 – Número e percentual de municípios de pequeno porte de Minas Gerais com IDH abaixo da média brasileira (2000)

Categoria Populacional

Total de Municípios

Nº de municípios com IDH abaixo da

média brasileira

% de municípios com IDH abaixo da

média brasileira0 a 2.000 17 14 82,4

2.000 a 5.000 208 186 89,4

5.000 a 10.000 264 241 91,3

10.000 a 20.000 182 149 81,9

Total 671 590 87,9

Fonte: tabela elaborada pelos autores, a partir do Censo Demográfico do IBGE e de dados do PNUD.

Outro ponto que merece ser destacado consiste na capacidade financeira dessas uni-dades locais para enfrentar o processo de descentralização intergovernamental. Nesta ca-tegoria municipal, o maior percentual dos recursos origina-se das transferências do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). A importância do FPM na composição das receitas municipais é inversamente proporcional ao porte demográfico do município, o que é um indicativo das dificuldades financeiras encontradas pelas pequenas unidades locais para implementar um processo de municipalização das políticas públicas sem o apoio de outras esferas governamentais (Figura 2).

Figura 2 – Composição da Receita Municipal por faixa populacional

Fonte: Finanças dos Municípios Mineiros, ano 5, 2009, Aequus Consultoria.

Por outro lado, é interessante destacar que os municípios com até 10.000 habi-tantes vêm apresentando um comportamento positivo da renda média per capita em relação às demais categorias populacionais. Dados de 2008 indicam que os municí-pios mineiros dessa categoria populacional apresentaram renda per capita superior à da média do Estado, embora estivessem abaixo da média da Região Sudeste, que foi de R$ 1.682,70.

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P A N O R A M A D A M U N I C I P A L I Z A Ç Ã O

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O estudo intitulado “Sistema Nacional de Informações das Cidades – Tipologia das Cidades Brasileiras” classifica as cidades brasileiras em 19 tipologias, de acordo com o seu tamanho populacional e sua inserção na rede urbana. De acordo com este estudo, as cidades em municípios com menos de 20.000 habitantes situados fora de aglomerações metropolitanas foram agrupadas em seis tipos, a partir de duas variáveis: a proporção da PEA em atividades primárias, indicando em que medida a cidade é um agrupamento de trabalhadores rurais ou desempenha algumas funções urbanas, e a localização dos muni-cípios em regiões rurais mais ou menos prósperas. Em função dessas duas variáveis, as tipologias propostas são: pequenas cidades com relevantes atividades urbanas em espaços rurais prósperos (Tipo 14); pequenas cidades com poucas atividades urbanas em espaços rurais prósperos (Tipo 15); pequenas cidades com relevantes atividades urbanas em es-paços rurais consolidados, mas de frágil dinamismo recente (Tipo 16); pequenas cidades com poucas atividades urbanas em espaços rurais consolidados, mas de frágil dinamismo recente (Tipo 17); pequenas cidades com relevantes atividades urbanas em espaços rurais de pouca densidade econômica (Tipo 18); pequenas cidades com poucas atividades urba-nas em espaços rurais de pouca densidade econômica (Tipo 19).

Observando-se o mapa do Estado de Minas Gerais (Figura 3), em que aparecem assi-naladas as sedes dos municípios com população inferior a 20.000 habitantes separados por suas respectivas tipologias, é possível constatar a diversidade municipal, uma vez que nele podem ser identificadas todas as tipologias de cidades citadas anteriormente, até mesmo as que são mais representativas de outras regiões do país. Os municípios classificados nas ti-pologias 14 e 16 localizam-se predominantemente na porção Sul do Estado (mesorregiões Sul/Sudoeste, Oeste, Zona da Mata, Campo das Vertentes, Central Mineira e Triângulo/Vale do Paranaíba). Os municípios das tipologias 17, 18 e 19 localizam-se predominante-mente na porção norte do Estado (mesorregiões Norte, Noroeste, Jequitinhonha, Mucuri, Vale do Rio Doce e parte da Zona da Mata).

Figura 3 – Tipologias das cidades mineiras abaixo de 20.000 habitantes

Fonte: Ministério das Cidades. Tipologia das cidades brasileiras.

A Tabela 3 também ilustra essa classificação, na qual desponta o maior percentual de pequenos municípios classificados nos tipos 14, 16 e 18, que correspondem a localidades com relevantes atividades urbanas, embora localizadas em espaços rurais diferenciados economicamente (espaços rurais prósperos, consolidados, mas de frágil dinamismo, ou de pouca densidade econômica).

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A. W. B . CARVALHO, A . C . A . FAGUNDES, R . R . CARMO, G. B . RIBEIRO FILHO

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Tabela 3 – Número e percentual de municípios de Minas Gerais com população inferior a 20.000 habitantes por tipologia3 – 2005

Tipologias Número de municípios % de municípios

Tipo 14 144 21,6

Tipo 15 3 1

Tipo 16 214 26,8

Tipo 17 140 22

Tipo 18 64 11,8

Tipo 19 73 8,4

Total 638 100

Fonte: elaborada pelos autores, a partir de dados do estudo Tipologia das Cidades Brasileiras.

O crescimento da população urbana nos pequenos municípios, em decorrência da migração das áreas rurais, vem sendo observado no Estado desde a década de 1970. Entretanto, este processo de urbanização também tem características peculiares, pois, ao contrário do que ocorreu nas grandes cidades e metrópoles, não vem acompanhado de um processo de industrialização ou de fortalecimento das atividades produtivas, o que se tra-duz, na maioria das vezes, em uma população urbana sem oportunidades de emprego e em uma estrutura urbana frágil, sem os serviços sociais e equipamentos urbanos adequados.

Além disso, Carvalho (2000) aponta que os pequenos municípios apresentam outras características que os distinguem das demais categorias municipais, tais como: baixo nível de urbanização (não tanto pelo grau, mas pela característica da urbanização, que ocorre sem modernização dos processos produtivos); base econômica local, em geral, agrícola ou extrativa; baixa renda da população e baixo nível de alfabetização.4

Esses aspectos, por sua vez, interferem no padrão de gestão municipal dos pequenos municípios, cujas características podem ser assim resumidas:

[...] gestão municipal não planejada; falta de racionalidade técnica; falta de racionalidade par-ticipativa (sistema centralizado de tomada de decisões); falta de políticas locais de desenvolvi-mento; carência de instrumentos de caráter institucional, financeiro e técnico-administrativo capazes de acompanhar o seu crescimento; problemas financeiros relacionados à geração de rendas; problemas na gestão dos recursos financeiros; inércia dos governos municipais em buscar soluções alternativas para o desenvolvimento urbano e do município; dificuldade na prestação dos serviços de interesse local; predomínio dos interesses das lideranças políticas locais e inexpressivo poder de reivindicação da população (Carvalho, 2000).

As condições locais de desenvolvimento e o padrão de gestão municipal que carac-terizam os pequenos municípios de Minas Gerais constituem sérios obstáculos a uma descentralização municipal que se queira efetiva e benéfica.

4 Essas características ocor-rem na maioria das vezes, embora ocorram situações isoladas de municípios que apresentam dinâmica econô-mica distinta, em decorrên-cia de fatores produtivos e locacionais específicos.

3 O estudo utilizado para a elaboração desta tabela foi realizado em 2005, o que explica a diferença no núme-ro total de municípios com população inferior a 20.000 habitantes.

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A DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Descentralização Entre os Níveis Governamentais e a Municipalização

A Constituição Federal de 1988 ampliou a autonomia político-administrativa dos municípios brasileiros, independente de seu tamanho, função ou posição hierárquica na rede de cidades. O novo texto constitucional redefiniu as competências e a distribuição dos recursos públicos entre os vários níveis governamentais, e adotou a descentralização como um dos pontos principais do modelo proposto para as políticas públicas (Carva-lho, 2000).

A descentralização das políticas públicas pressupõe a transferência de autoridade no planejamento e na tomada de decisões. No caso do setor público, há um repasse do poder decisório do nível nacional (federal) aos níveis subnacionais – estadual, municipal. Neste sentido, a municipalização das políticas públicas, expressa no texto constitucional pela transferência para o nível municipal da responsabilidade pela prestação de serviços de interesse local e pela execução de políticas sociais como saúde, educação, saneamento básico, entre outras, é uma das principais estratégias institucionalizadas a partir de 1988 para efetivar o processo de descentralização intergovernamental (Carvalho, 2000).

Como estratégia de descentralização, a municipalização deve ser abordada sob três pontos de vista: o das competências, o da descentralização fiscal e o das condições técnicas e institucionais das prefeituras. Além disso, a municipalização deve ser enfocada como parte da reforma do Estado, abrangendo outros temas, como a revisão do papel do Estado, o aperfeiçoamento das relações intergovernamentais, a modernização da Administração Pública e a criação de bases institucionais que viabilizem a participação da sociedade na formulação de políticas públicas, no controle de sua execução, na avaliação de seus resul-tados e na apuração das responsabilidades dos agentes públicos.

Do ponto de vista das relações intergovernamentais, o processo de descentralização implica a redefinição das competências das três esferas de governo, atribuindo-se à União as funções de coordenação e estabelecimento de normas gerais, e aos Estados e Municí-pios a coordenação dos programas e sua execução, inclusive com a gestão financeira dos serviços de interesse local e regional. Entretanto, no contexto brasileiro de descentralização político-administrativa, a municipalização deve representar também a efetiva mobilização dos agentes do poder local – governo, comunidade e empreendedores privados – para atuarem no sentido de efetivar a oferta do serviço, garantindo o controle social sobre sua prestação e o interesse público, cabendo ao governo municipal liderar esta mobilização. Além disso, o fato de se municipalizar uma política não deve significar o afastamento dos governos federal e estaduais. Ao contrário, “é necessário que se estabeleçam relações de cooperação com o município, ajudando-o a superar dificuldades técnicas, gerenciais e financeiras” (Netto, 1993).

Em síntese, a municipalização de serviços públicos hoje, no Brasil, vem se dando segundo um formato único e setorializado, fundamentado na descentralização fiscal, na transferência de encargos e serviços aos municípios e na institucionalização da participação popular na gestão municipal através da criação de conselhos municipais. Este “modelo” de descentralização/municipalização/participação tem dado origem a uma nova forma de proposição, elaboração e execução de políticas públicas, o que, por sua vez, exige que os municípios adotem uma nova lógica organizacional, baseada no planejamento de suas

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ações e na organização institucional das prefeituras para a descentralização, sob o risco de responder apenas formalmente às exigências da descentralização e, consequentemente, não usufruir de seus benefícios (Carvalho, 2000).

A Descentralização da Política Habitacional

No Brasil, durante muito tempo, o modelo de políticas públicas urbanas caracteri-zou-se por uma forte intervenção do poder público e pela centralização da gestão – desde o Estado Novo (1937-45), consolidando-se no Regime Militar (1964-85). Neste modelo, a ação do Banco Nacional da Habitação (BNH) pode ser considerada, do ponto de vista quantitativo, a mais importante intervenção governamental sobre as cidades brasileiras. O BNH centralizava praticamente todos os recursos disponíveis para o investimento em ha-bitação e grande parte dos destinados ao saneamento. Representou um modelo de política habitacional baseado no financiamento à produção e no equilíbrio financeiro do sistema, produzindo moradias cada vez menores e mais precárias (Bonduki, 1997).

Com a aprovação da Constituição Federal de 1988 e a adoção de um modelo descentralizador de políticas públicas, atribuiu-se aos Estados e Municípios a gestão de programas sociais, dentre eles os de habitação.5 Ambos passaram a dividir com a União a responsabilidade pela promoção de programas de construção de moradias e pela melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, fosse por iniciativa própria, fosse por adesão a algum programa proposto por outro nível de governo. Bonduki (1997) ressalta este aspecto ao pontuar dentro do novo modelo de gestão municipal (que ele denomina “ambiental-participativo”) iniciativas como: inversão de prioridades para garantir o direito à habitação e à cidade, parceria entre poder público e organizações não governamentais para o desenvolvimento de programas e projetos, busca de barateamento da produção habitacional e reconhecimento da cidade real. A gestão municipal teria, ainda, “a virtude de ser o nível de governo que permitiria uma maior integração entre as políticas de pro-visão de moradias e as políticas fundiárias e de controle do uso e ocupação do solo, o que ampliaria mais suas possibilidades de eficácia/eficiência” (Ministério das Cidades, 2004).

No período compreendido entre a extinção do BNH e a criação do Ministério das Cidades, a ausência de uma repartição clara e institucionalizada de competências e res-ponsabilidades deixou o setor habitacional à deriva, passando por vários ministérios e se-cretarias sem que se conseguisse definir um padrão de política pública a ser implementado (Ministério das Cidades, 2004).

Em 1994 foram lançados os programas Habitar Brasil e Morar Município, este último voltado para municípios de pequeno porte. Os recursos eram oriundos do Orça-mento Geral da União (OGU) e do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras (IPMF). No entanto, o montante de investimentos realizados ficou aquém das expectati-vas, e as mudanças institucionais que se sucederam nos anos seguintes levaram à redução dos quadros técnicos e à perda de capacidade de formulação de políticas por parte do go-verno federal. Se, por um lado, esta situação gerou uma forte restrição ao acesso a recursos financiados pelo Estado, por outro, levou muitos Estados e Municípios a empreenderem iniciativas de ações locais baseadas em modelos alternativos, destacando-se, entre eles, os projetos de regularização fundiária e urbanização de favelas e loteamentos periféricos.

O período de desmantelamento das instâncias institucionais e de indefinição das políticas habitacionais só voltou a se alterar a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, quando a provisão habitacional voltou a ser “planejada” e a afirmar-se como

5 Artigo 23 da Constituição Federal de 1988: “É com-petência comum da União, dos Estados, do Distrito Fe-deral e dos Municípios: [...] IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de sanea-mento básico; X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavo-recidos”.

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interesse de diversos setores, como o poder público municipal, o setor privado e a própria sociedade civil, através dos mutirões, dos movimentos de moradia, ONGs etc. Segundo Cardoso (2006),

Esse universo incluiu programas ou experiências “alternativas” (assim consideradas a partir de seu potencial de inovação) no campo da provisão de oportunidades habitacionais – cons-trução ou reforma de unidades, provisão de lotes urbanizados, fornecimento de materiais de construção – ou em outras esferas de atuação habitacional – urbanização de assentamentos, regularização fundiária ou, ainda, utilização de instrumentos normativos visando a facilitar o acesso a terra.

Objetivou-se descentralizar a destinação de verbas federais e permitir a atuação da iniciativa privada na prestação de serviços, assim como introduzir linhas de crédito que seriam concedidas diretamente ao beneficiário. Dentre as novas atribuições dos governos estaduais estava a possibilidade de movimentar com maior autonomia as parcelas que lhes cabiam do FGTS. Entretanto, as facilidades ao nível municipal e estadual foram reduzi-das, em função do endurecimento das exigências para o financiamento feitas em âmbito federal (Arretche, 2002). Tais financiamentos consistiam no Programa Pró-Moradia, semelhante ao modelo instituído anos antes pelo BNH, destinado à população com renda até 3 salários mínimos, e no Programa Carta de Crédito, voltado à população com ren-da até 12 salários mínimos, com o financiamento concedido diretamente ao mutuário final. Ambos os programas foram criados no primeiro ano do governo FHC. Os recursos do FGTS foram concedidos, em sua grande maioria, ao Programa Carta de Crédito, nas modalidades individual e associativa.

Esta gestão seletiva do financiamento contava com o apoio dos potenciais beneficiá-rios dessa política habitacional. De acordo com Arretche (2002), “o desfinanciamento das empresas públicas fez parte de uma estratégia cujo objetivo central era introduzir mecanis-mos de mercado na gestão das políticas de desenvolvimento urbano”.

A reconstrução da política habitacional a partir do final dos anos 1990 pode ser vista como um somatório de avanços institucionais. Em 2003, já no governo do Presidente Lula, começam a ser implementadas mudanças no quadro geral que caracterizava a si-tuação institucional da política habitacional no Brasil. Cria-se o Ministério das Cidades, que passa a ser o órgão responsável pela Política de Desenvolvimento Urbano e, dentro dela, pela Política de Habitação, ampliando-se os investimentos nos setores da habitação e saneamento ambiental, e adequando-se os programas existentes às características do déficit habitacional e de infraestrutura urbana, que é maior junto à população de baixa renda.

Nesse período são criados programas e ações no âmbito federal implantados em par-ceria com os municípios, como o Programa da Habitação de Interesse Social (HIS), o Pro-grama de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH) e o Programa de Arrendamento Residencial (PAR). Esses programas habitacionais são geridos pelo Ministério das Cidades e financiados com recursos do Orçamento Geral da União (OGU), do Fundo de Garan-tia do Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), abrangendo as seguintes ações: construção de habitações; aquisição de habitação nova; aquisição de habitação usada; conclusão, amplia-ção, reforma ou melhoria da unidade habitacional; aquisição de material de construção; aquisição de lotes urbanizados; produção de lotes urbanizados; requalificação de imóveis urbanos; urbanização de assentamentos precários e desenvolvimento institucional. Além

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dos programas de natureza permanente, entrou em operação em 13 de abril de 2009 o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), cuja meta inicial consistia na construção de 1 milhão de habitações, priorizando, mediante subsídio, o atendimento a famílias com renda mensal igual ou inferior a três salários mínimos.

Com a criação do Ministério das Cidades em 2003 e os avanços empreendidos na política habitacional brasileira – como a aprovação da Política Nacional de Habitação e do Plano Nacional de Habitação, a criação do Sistema e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS e FNHIS) – e com o lançamento do Programa Minha Casa, Mi-nha Vida, a política habitacional passa a ocupar um lugar de destaque na agenda nacional.

A MUNICIPALIZAÇÃO DA POLÍTICA HABITACIONAL NOS PEQUENOS MUNICÍPIOS DE MINAS GERAIS

Os tópicos seguintes contêm um panorama geral do processo de municipalização da política habitacional nos municípios adotados como objeto de estudo.

Dentre os principais problemas apontados pelos municípios da pesquisa despontam a falta de moradias na área urbana – déficit quantitativo –, a precariedade do padrão de construção das moradias e da infraestrutura na área urbana – déficit qualitativo – e a falta de títulos de propriedade dos imóveis. Estas características são comuns a todas as mesorre-giões, embora sobressaiam naquelas onde se situam os municípios com piores indicadores econômicos e sociais.

Condições da Demanda por Moradia

Em relação ao levantamento da demanda habitacional, verificou-se que grande parte dos municípios não possui cadastro, e alguns o apresentam parcialmente preenchido ou desatualizado. Embora a maioria dos informantes dos municípios afirme possuir levan-tamento desta demanda, a responsabilidade pela organização desses dados fica a cargo de funcionários ligados principalmente aos setores de Assistência Social e de Obras Públicas, ou ligados diretamente ao Prefeito, como o chefe de gabinete ou funcionário de sua con-fiança. A falta de dados cadastrais e de transparência do processo de seleção das famílias a serem beneficiadas pelos programas habitacionais ou por outras ações da Prefeitura, a cargo de funcionários da confiança do prefeito, sem critérios pré-estabelecidos e sem um processo participativo, dá margem ao clientelismo político.

Por outro lado, um aspecto positivo a ser observado refere-se ao fato de 69,8% dos municípios que possuem levantamento da demanda habitacional investirem na constru-ção de unidades habitacionais. Tal ocorrência demonstra que a maioria dos municípios tem procurado solucionar a demanda por habitação, trabalhando com a perspectiva de diminuição do déficit habitacional local.

Estrutura Administrativa das Prefeituras para a Gestão da Política Habitacional

Quanto à responsabilidade pelas questões concernentes à habitação, em todas as me-sorregiões há predominância dos setores de Assistência Social e de Obras. Com exceção do município de Pedra Dourada, em que se indica a existência de um Setor de Habitação de

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Interesse Social, em todos os demais municípios da amostra não há um órgão (secretaria, departamento ou setor) responsável especificamente pela política habitacional.

Assim, as ações dessa área são desempenhadas por funcionários de órgãos que tratam especialmente da assistência social e de obras e infraestrutura, além de outros setores, co-mo administração e engenharia. Isto evidencia que a provisão de habitação ainda é tida, pelas instâncias municipais, como uma medida de caráter assistencialista, em vez de ser concebida como parte da política pública municipal, assim como é feito em outras áreas, como as de Educação e Saúde, por exemplo.

A maioria dos municípios (119, ou seja, 85%) não possui profissionais contratados para atuar especificamente na área de habitação. Os poucos municípios que se apresentam relativamente bem estruturados para a municipalização da política habitacional estão lo-calizados, sobretudo, nas regiões mais desenvolvidas do Estado e com melhores condições econômicas e sociais (Sul/Sudoeste de Minas e Metropolitana de Belo Horizonte).

Essa situação permite configurar, qualitativamente, o quadro de escassez de recursos humanos especializados nas prefeituras dos municípios da amostra. Mesmo nas mesorre-giões onde se constata a maior frequência de profissionais contratados para operar exclu-sivamente na área de habitação, o montante é muito pequeno, o que evidencia a preca-riedade da estrutura institucional.

Com a falta de recursos humanos e de setores especializados para a gestão da políti-ca habitacional, impera um padrão de gestão não planejada, que centraliza a tomada de decisões na figura do prefeito ou em pessoas que ocupam cargos de sua confiança, dificul-tando, inclusive, a participação da população.

Instrumental Jurídico-Institucional Disponível no Âmbito dos Municípios Para a Municipalização da Política Habitacional

Enquanto 43,6% dos municípios dispõem de Conselho Gestor de Habitação de In-teresse Social (CGHIS), este percentual é bem inferior quando se trata da existência de Pla-no Municipal de Habitação (PMH) e de Fundo Gestor de Habitação de Interesse Social (FGHIS). Dos 61 municípios em que consta a criação do CGHIS, apenas 7 possuem os três instrumentos referidos acima; 40 possuem CGHIS e FGHIS; 5 têm CGHIS e PMH e em 9 municípios foi criado apenas o CGHIS. Em 12 questionários indicou-se a existência de PMH e/ou de FGHIS sem a correspondente criação do Conselho, demonstrando a fragili-dade e, até mesmo, a incoerência das estruturas municipais, uma vez que o CGHIS é a base institucional para se elaborar o PMH e para receber os recursos do FGHIS, assim como é pré-requisito para obtenção de financiamento junto a alguns programas estaduais e fede-rais, como o Programa Minha Casa, Minha Vida e o Programa Lares-Habitação Popular, da COHAB-MG. Porém, seria necessário realizar uma pesquisa de campo para caracterizar o grau de implementação destes instrumentos, isto é, se estão em funcionamento.6

Políticas, Programas e Ações Implementados pelas Administrações Municipais para Atender as Demandas por Habitação de Interesse Social

As principais ações apontadas pelos municípios pesquisados para a implementação da política habitacional correspondem a iniciativas isoladas na área de habitação, exis-tência do Conselho Gestor de Habitação de Interesse Social e elaboração de projetos na área de habitação. Cerca de 20% dos municípios da amostra afirmaram possuir política

6 Outras pesquisas dos au-tores têm se dedicado a es-tudos de casos, com maior aprofundamento qualitativo.

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habitacional (na maioria das vezes, referindo-se às linhas de financiamento contratadas pelo município), e 45% apresentam diagnósticos das condições habitacionais.

Perfil dos Programas, Projetos ou Ações Implementados

Em relação aos programas, projetos e ações relacionados com a política habitacional, implementados pelas prefeituras municipais no período 2004-2009, sobressaem a doação de materiais de construção e a implantação de infraestrutura em bairros residenciais, como redes de água, esgoto, luz elétrica, drenagem e pavimentação, visando atender à população de baixa renda (Tabela 4).

Tabela 4 – Programas, projetos e ações implementados pelos municípios com população inferior a 20.000 habitantes – Resultados da amostra 2004-20097

Programas, Projetos e Ações Número de municípios

Percentual em relação ao total de municípios

respondentes Construção de Unidade Habitacional

86 61,4

Oferta de Lotes 50 35,7

Implantação de Infraestrutura 98 70

Assessoria Técnica 52 37,1

Doação de Materiais 105 75

Outras ações 19 13,6

Total de municípios da amostra 140 100

Fonte: elaborada pelos autores.

Observa-se, novamente, o caráter assistencialista das políticas habitacionais adota-das pelos governos municipais, em que a ocorrência de doação de materiais de constru-ção repete-se com maior frequência que a assessoria realizada por técnicos da Prefeitura Municipal na construção de moradias e, até mesmo, que a própria construção de uni-dades habitacionais.

Para a realização das ações citadas na Tabela 5, 52,1% dos municípios que respon-deram aos questionários afirmaram dispor de alguma linha de financiamento do governo federal ou estadual, enquanto o restante alega utilização de recursos próprios. Dentre os que dispõem de linhas de financiamento, sobressaem os da mesorregião Sul/Sudoeste de Minas. A partir da obtenção dessas informações, verificaram-se dois fatos que se revelam de grande importância para o traçado do panorama da política habitacional dos peque-nos municípios do estado de Minas Gerais. O primeiro refere-se às ações realizadas pelas administrações municipais que declaram o uso de recursos próprios para executá-las. A predominância da doação de materiais de construção evidencia a atitude assistencialista do poder público municipal, que atua prioritariamente “prestando favor” às famílias de baixa renda, em detrimento da elaboração de políticas efetivas para enfrentar o problema habi-tacional no âmbito local. O segundo fato aborda os municípios que dispõem de alguma linha de financiamento para implementar os mencionados programas, projetos e ações. Como observado anteriormente, embora a maioria dos municípios que responderam

7 O item “outras ações” compreende: reforma de moradias, pagamentos de aluguel, nivelamento de ter-reno e contenção de encos-tas, oferta de mão de obra para construção de unida-des, construção de módu-los sanitários, regularização fundiária, eletrificação rural, repasse de recursos para ONG municipal que atua na área de habitação.

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aos questionários esteja presente nesta categoria, observou-se que muitos deles utilizam financiamentos para a realização de medidas relacionadas à implantação de infraestrutura, sendo a provisão de habitação ainda pouco frequente. Cabe ressaltar que esta situação repete-se em todo o Estado de Minas Gerais.

Observou-se também que apenas 39 dos 73 municípios que possuem alguma linha de financiamento, ou seja, 53,4% têm levantamento da demanda habitacional, e esta situação pode contribuir para o menor número de aquisições de financiamentos, visando suprir os déficits habitacionais municipais.

Com relação aos financiamentos obtidos junto ao governo estadual através da COHAB-MG (Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais), apresentam-se o Programa Lares – Habitação Popular (PLHP) e o Programa Minas Solidária. Quanto às linhas de financiamento obtidas junto à Caixa Econômica Federal, estão presentes várias modalidades, dentre elas, o Programa Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH), o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) e várias ações para apoio à produção de unidades habitacionais, melhoria das condições de habitabilidade de assentamentos precá-rios, apoio à elaboração do Plano Habitacional de Interesse Social, entre outras.

Os dados apresentados até aqui referem-se àqueles obtidos a partir dos questionários. Entretanto, foi possível complementá-los a partir de informações oficiais disponibilizadas pela gerência regional da Caixa Econômica Federal. De acordo com essas informações, apenas 25% dos 671 municípios que compreendem o recorte desta pesquisa apresentam contratações de programas habitacionais disponibilizados pelo governo federal e operacio-nalizados pela Caixa Econômica Federal, sejam eles de natureza eventual ou permanente. Estes municípios totalizam 240 unidades, no entanto, constata-se que 102 destes apresen-tam mais de uma contratação.

Conforme se observa na Tabela 5, os programas habitacionais que apresentam o maior número de contratações são: Carta de Crédito Individual, Habitação de Interesse Social (HIS) e Carta de Crédito Associativo Entidades, correspondendo a aproximada-mente 34%, 31% e 16%, respectivamente. É importante ressaltar que o Programa Carta de Crédito Individual visa conceder financiamentos a pessoas físicas, porém, conforme orientações do Ministério das Cidades, é desejável que haja a participação do poder público nos casos de operações coletivas. Em relação aos demais programas contratados, verifica-se que o número de contratações é muito pouco significativo, variando entre 0,25% e 6%.

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Tabela 5 – Número de contratações das linhas de financiamento federal por municípios com população inferior a 20.000 habitantes em Minas Gerais (2004-2009)

Programa e Ações Habitacionais Número de contratações

Apoio ao Poder Público para Construção Habitacional para Famílias de Baixa Renda

3

Carta de Crédito Associativo Entidades 65

Carta de Crédito Associativo COHAB 27

Carta de Crédito Individual 139

Habitação de Interesse Social – HIS 127

Resp. Desastres 8

Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários

9

Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social – PSH 24

Programa Minha Casa, Minha Vida 1

PRO-MUN-PEQ POR 1

Programa de Arrendamento Residencial 1

Total 405

Fonte: elaborada pelos autores, a partir de dados fornecidos pela Caixa Econômica Federal.

No que se refere aos tipos de ações implementadas através dos programas listados, verifica-se que a construção de unidades habitacionais compreende a ação predominan-te, configurando 76% do total, seguida pela reforma de unidades habitacionais (13%). Também se destaca o número de contratações de reformas, o que é uma característica dos pequenos municípios (Tabela 6).

Tabela 6 – Tipos de ações implementadas pelos municípios com população inferior a 20.000 habitantes em Minas Gerais (2004-2009)

Tipo de ação implementada Número de contratações

Construção de Unidades Habitacionais 306

Elaboração de Plano Municipal de Habitação 23

Assistência Técnica 20

Construção e Reforma de Unidades Habitacionais 2

Reformas de Unidades Habitacionais 54

Total 405

Fonte: elaborada pelos autores, a partir de dados fornecidos pela Caixa Econômica Federal.

Em relação ao ano de contratação dos programas e ações habitacionais, constata-se que o número de contratações foi crescente no período 2005-2008, e que em 2008 houve o maior número de contratações, sendo equivalente a 26% do total (Tabela 7). É possível inferir que esse fato decorre de questões políticas, pois o impacto no número de programas e ações contratados deriva, sobretudo, de emendas parlamentares.

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Tabela 7 – Número de contratações de programas e ações habitacionais do Governo Federal pelos municípios com população inferior a 20.000 habitantes por ano em Minas Gerais (2004-2009)

Ano de contratação Número de contratações

2004 53

2005 45

2006 71

2007 90

2008 105

2009 41

Total 405

Fonte: elaborada pelos autores, a partir de dados fornecidos pela Caixa Econômica Federal.

Quando confrontadas as informações obtidas nos questionários com aquelas dispo-nibilizadas pela Caixa Econômica Federal, novamente constatam-se algumas contradições. Acredita-se que estas divergências ocorram devido à aquisição recente de algumas linhas de financiamento, que estariam, ainda, em fase de contratação. Ainda referente às infor-mações disponibilizadas pela Caixa Econômica Federal, cabe destacar a pouca expressi-vidade atingida pelo Programa Minha Casa, Minha Vida nos municípios de pequeno porte demográfico do Estado de Minas Gerais, responsável pela construção de apenas 487 moradias, até o momento.

Em se tratando dos demais programas adotados pelos municípios, não se contabili-zou o número de unidades habitacionais construídas devido à inexistência de informações completas. No entanto, analisando os dados existentes, verifica-se que, na maioria dos municípios, o número de moradias contratadas por financiamento encontra-se abaixo de 50, sendo poucas as ocorrências de municípios que constroem entre 50 e 100 unidades habitacionais e acima de 100 unidades.

Quanto aos investimentos realizados pela Caixa Econômica Federal nos programas referentes à habitação, os valores concentram-se entre R$ 100.000,00 e R$ 500.000,00, havendo empreendimentos com valores abaixo e acima dos limites citados, porém, em menor proporção. Cabe ressaltar que os financiamentos que possuem valor de investimen-to acima de R$ 1.000.000,00 ocorrem com pouca frequência.

Quanto à origem dos recursos, tem-se que os principais são depósitos do FGTS e do OGU. Os financiamentos com recursos do OGU incluem as seguintes modalidades: Apoio à Melhoria das Condições de Habitabilidade de Assentamentos Precários, que inclui o Programa Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários; Apoio ao Poder Público para Construção Habitacional para Famílias de Baixa Renda, respon-sável pelo Programa Habitação de Interesse Social; Programa Habitar Brasil; e Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH). Já o FGTS é utilizado como recurso nos programas Carta de Crédito Individual, Carta de Crédito Associativo, Programa de Apoio à Produção de Habitações e Programa de Atendimento Habitacional Através do Setor Público (Pró-Moradia). Há ainda, embora com menor expressividade, a presença de recursos oriundos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) – responsável pela implantação do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) – e do Programa Nacional de Habitação Rural.

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A. W. B . CARVALHO, A . C . A . FAGUNDES, R . R . CARMO, G. B . RIBEIRO FILHO

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Ainda referente à análise dos dados disponibilizados pela Caixa Econômica Federal, constatou-se a utilização dos financiamentos para elaboração de Planos Habitacionais de Interesse Social em 21 municípios. A elaboração desses planos constitui linhas de ação do Programa Habitação de Interesse Social, que conta com recursos do OGU.

CONCLUSÕES

Neste artigo, apresentou-se um quadro geral do desempenho dos pequenos municí-pios de Minas Gerais na condução do processo de municipalização da política habitacional.

Mesmo assumindo proporções muito menores, os problemas habitacionais apon-tados pelos pequenos municípios da amostra assemelham-se àqueles encontrados nos grandes centros urbanos, como precariedade e falta de moradias na área urbana, falta de titularidade dos imóveis, falta ou inadequação da infraestrutura urbana. Entretanto, quando se trata da estrutura institucional e administrativa, a situação de precariedade e inadequação é evidente. Assim, foram identificados aspectos já apontados por Carvalho (2000) como característicos da gestão municipal nos pequenos municípios, tais como a centralização do processo de tomada de decisões, decorrente da inexistência de políticas locais de habitação e de um efetivo processo participativo, e a carência de recursos técnicos necessários à condução das ações na área de habitação.

Com relação à existência de órgãos e/ou departamentos, concluiu-se que a falta de um setor específico para tratar da política habitacional é o quadro presente em todos os municípios. Na maioria, os setores ou secretarias de Obras Públicas e Assistência Social são os responsáveis pela contratação de financiamentos, pela gestão e acompanhamento da implantação de programas habitacionais e por outras ações empreendidas nesta área. Da mesma forma, faltam profissionais habilitados para atuar especificamente na área de habitação, quase sempre conduzida por assistentes sociais, engenheiros de obras, chefes de gabinete ou outros funcionários de confiança do prefeito. Esta situação coloca em evidência o caráter assistencialista das políticas habitacionais adotadas pelos pequenos municípios, além do risco de clientelismo político, facilitado pelas relações de proximida-de entre o chefe do Executivo e os funcionários responsáveis pela condução das ações na área de habitação.

A ausência de recursos humanos capacitados é um dos principais fatores responsáveis pela dificuldade institucional das prefeituras para o enfrentamento adequado das exigên-cias decorrentes da municipalização da política habitacional. Apesar disso, verificou-se que os pequenos municípios têm concorrido a linhas de financiamento junto ao governo federal ou estadual para construção de novas moradias e implantação de infraestrutura urbana. No tocante aos programas de infraestrutura, este é um resultado positivo, uma vez que o conceito de habitação extrapola a simples construção de moradias, incluindo a noção de habitabilidade, que abrange dotar as moradias de infraestrutura urbana, contri-buindo para o bom funcionamento da cidade e para a integração dos seus moradores, de modo que possam exercer sua cidadania plenamente.

Apesar de ocorrer em menor proporção do que os financiamentos para infraestru-tura, cerca de metade dos municípios com população inferior a 20.000 habitantes dispõe de alguma linha de financiamento do governo federal ou estadual para construção ou reforma de moradias. Na maioria das vezes, o número de moradias contratadas em cada financiamento é muito pequeno, e raramente excede mais de 100 unidades. Da mesma

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P A N O R A M A D A M U N I C I P A L I Z A Ç Ã O

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maneira, são baixos os valores dos financiamentos contratados. Porém, a iniciativa de contratação de linhas de financiamento habitacional pelos governos municipais é um primeiro indicativo de mudança de postura das administrações dos pequenos municípios, historicamente dependentes unicamente das transferências de recursos financeiros oriun-dos do Fundo de Participação dos Municípios.

Por fim, os pequenos municípios têm empreendido esforços para a criação de ins-trumentos de gestão da política habitacional, como o Plano Municipal de Habitação, o Conselho Gestor de Habitação de Interesse Social e o Fundo de Habitação de Interesse Social, embora se questione o grau de implementação desses instrumentos.

Em atendimento ao modelo descentralizador proposto pelo governo federal, a mu-nicipalização da política habitacional nos pequenos municípios começa a se estruturar lentamente, assim como ocorreu em outras áreas (Saúde, Educação e Assistência Social). Embora ainda muito incipientes, essas ações representam os primeiros passos no sentido da institucionalização da política habitacional nessa categoria de municípios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Aline Werneck Barbosa de Carvalho é professora associada do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa; engenheira arquiteta; mestre e doutora em Arqui-tetura e Urbanismo pela FAU – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Ana Carla de Almeida Fa-gundes é aluna do Curso de Arquitetura e Urbanismo; bolsista PIBIC-CNPq. E-mail: [email protected]

Riane Ricceli do Carmo é estudante do curso de Arqui-tetura e Urbanismo da Uni-versidade Federal de Viçosa; bolsista PROBIC-FAPEMIG. E-mail: [email protected]

Geraldo Browne Ribeiro Filho é professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa; engenhei-ro civil; mestre em Urba-nismo pelo PROURB; doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em outubro de 2010 e aprovado para publicação em fevereiro de 2011.

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A. W. B . CARVALHO, A . C . A . FAGUNDES, R . R . CARMO, G. B . RIBEIRO FILHO

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A b s t r a c t This paper presents an overview of the decentralization of housing policy in municipalities with less than 20,000 inhabitants in the Brazilian state of Minas Gerais after 2004, when the National Housing Policy was approved. It attempts to discuss the particularities of these municipalities compared to the reality of other municipalities. The methodology involved bibliographic and documentary research and field survey through ques-tionnaires to the staff responsible for the municipal action in the housing sector. It concludes that the municipalization of housing policy in the small municipalities of Minas Gerais is taking shape in a slow process of adaptation to the current Brazilian model of decentralization and participation.

K e y w o r d s Decentralization; public management; small municipalities; hou-sing policy; social housing.

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PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ÁGUA E ESGOTOS EM

SETE LAGOAS-MG “O SAAE é Nosso” ou “Que Venha a Copasa”?

T a r c i s i o T . N u n e s J r . L é o H e l l e r

P r i s c i l a L u i z a d a S i l v aS o n a l y R e z e n d e

A n t ô n i o L e i t e A l v e s R a d i c c h i

R e s u m o A decisão municipal acerca do modelo mais adequado de gestão dos ser-viços de saneamento básico ainda é objeto de controvérsias e disputas. Com a perspectiva de compreender o processo político de tomada de decisão, o artigo apresenta e analisa o debate ocorrido em Sete Lagoas (MG) entre a possibilidade de concessão dos serviços para a Compa-nhia de Saneameto de Minas Gerais (Copasa) ou a manutenção do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE). Informações foram levantadas junto à Prefeitura, Câmara dos Vereadores e jornais locais, somadas às entrevistas realizadas com alguns dos principais atores do debate, de modo a recriar o cenário, com suas motivações e interesses acerca dessa importante decisão. Não obstante, o desfecho provisório do caso difere da maioria de tantos outros que vêm ocorrendo no país, a partir da criação das Companhias Estaduais de Saneamento Básico. A falta de po-sicionamento explícito dos representantes públicos do município e a bipolarização da opinião pública entre o desejo da melhoria dos serviços e, por outro lado, os receios de aumento das tarifas e do desemprego, deram o tom da discussão e culminaram em uma decisão inesperada: o encerramento do debate e a continuidade do SAAE.

P a l a v r a s - c h a v e Saneamento básico; gestão; concessão; política; par-ticipação.

IN TRO DU ÇÃO

O saneamento básico é um serviço essencial e de responsabilidade do poder pú-blico. Mesmo que os serviços sejam prestados por uma companhia pública estadual ou por uma empresa privada, cabe ao município concedente zelar por sua adequada gestão, assegurando o envolvimento e a participação da sociedade, uma vez que a au-sência ou inadequação desses serviços se traduz em riscos à saúde pública e impactos ao ambiente físico.

Uma questão ainda objeto de controvérsias e de conflitos refere-se à escolha, por parte do município, do mais adequado modelo de prestação de serviços e da natureza do prestador. Se, em alguns casos, municípios tendem a delegar os serviços pela sua insus-tentabilidade financeira, em outros, ao contrário, há disputas entre entes federativos ou empresas pela conquista do direito de prestá-lo. Fatores como o capital político e finan-

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P R E S T A Ç Ã O D O S S E R V I Ç O S D E Á G U A E E S G O T O S

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ceiro envolvidos nessa prestação explicam, em geral, tais disputas, que podem resvalar para conflitos (Heller et al, 2008).

Com base nesse quadro, o presente estudo tem como objetivo geral analisar o debate ocorrido em 2007, entre a possibilidade de concessão dos serviços de água e esgotos de Sete Lagoas (MG) para a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) ou a manutenção do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE). Para tanto, outros objetivos específicos foram delineados: analisar a situação do abastecimento de água e coleta de esgotos no município; compreender a motivação do Poder Executivo em criar um projeto de lei que autorizasse o município a transferir a concessão para a empresa estadual; e, de forma análoga, entender sua motivação em retirar o projeto de lei após o período de deba-te; e ainda, analisar as consequências dessa decisão para as condições sanitárias municipais.

A seleção deste estudo de caso ocorreu a partir da análise de atas dos Conselhos Municipais de Saúde (CMS) e de Meio Ambiente (Codema) dos 51 municípios da bacia do rio das Velhas no período 1999-2008, no âmbito da pesquisa “Movimentos sociais e mecanismos de controle social em políticas públicas de saneamento: uma avaliação na bacia do rio das Velhas, Minas Gerais”. A repercussão do debate ocorrido em Sete La-goas no ano de 2007, identificado nas atas do Codema, chamou a atenção do grupo de pesquisa, que elegeu este caso para maior aprofundamento. Para o desenvolvimento do estudo, foram consultados e analisados documentos produzidos pela Prefeitura e Câmara Municipal à época do debate, além de reportagens veiculadas em jornais locais relaciona-das às audiências públicas promovidas pela Prefeitura. Em um segundo momento foram realizadas entrevistas semiestruturadas com nove pessoas-chave envolvidas no debate em questão. Buscou-se detalhar os canais de ação, posições, atores e suas preferências, tornan-do possível a visualização de como as decisões foram tomadas e a política de saneamento construída, tendo como foco os aspectos do “jogo político”, pressões exercidas por insti-tuições, empresas, prefeituras, governo do estado e sociedade em geral. Cabe ressaltar que as entrevistas foram realizadas a partir de roteiros de perguntas abertas, que passaram por avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, voltado à proteção dos participantes de pesquisas no âmbito da universidade.

A indagação teórica central do caso de Sete Lagoas reside em se explorar os porquês de a tomada de decisão se encaminhar na direção da não alteração do modelo de presta-ção de serviço local, a despeito das forças em direção contrária e das tendências históricas para mudanças, como a cogitada no município. Diversos imperativos contemporâneos determinaram a entrada, na agenda política local, do debate sobre a mudança do modelo de gestão. A necessidade de assegurar condições mais adequadas de acesso aos serviços, como a mais aceitável qualidade da água e a regularidade no seu abastecimento, inseriam--se em uma perspectiva dos direitos sociais, mais especificamente do direito universal à água. Mas, talvez mais importante, a completa ausência de tratamento dos esgotos, em uma cidade de médio porte, vizinha a uma região metropolitana, remete para o tema dos conflitos ambientais.

Nesse contexto, a tentativa de compreensão da tomada de decisão sobre a manuten-ção do SAAE insere-se no campo teórico das políticas públicas, mais particularmente no subcampo da análise de políticas públicas (John, 2002), buscando “se entender melhor como e por que o governo faz ou deixa de fazer alguma ação que repercutirá na vida dos cidadãos” (Souza, 2006, p.28), avaliação que requer conhecimento dos objetivos e per-cepções dos atores e de suas visões técnico-científicas e legais ao longo do tempo (Sabatier, 2007, p.4). Tal campo oferece diversas teorias para compreender os processos políticos,

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T. T. NUNES JR. , L . HELLER, P. L . DA SILVA, S . REZENDE, A. L . A . RADICCHI

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dentre as quais as que encontram sua origem na corrente da escolha racional, as que se filiam na corrente institucionalista e aquelas que se baseiam nas redes políticas. Dentre essas últimas, a teoria da coalizão de defesa (advocacy coalition framework – ACF) (Sabatier, 2007) vem se mostrando, em outros estudos, promissora para a compreensão das opções por modelos de gestão em saneamento no Brasil.1

Em síntese, a ACF considera vários fenômenos na análise das mudanças políticas, como a importância de comunidades políticas, redes, subsistemas que envolvem atores de instituições públicas e privadas, e de múltiplos níveis de governo; a importância da informação substantiva da política pública; o papel crítico exercido pelas elites da política pública em comparação com o público em geral; diferenças no comportamento político através dos tipos de políticas públicas. O modelo organiza-se a partir de três sustentácu-los: no nível macro, o pressuposto é que a maior parte dos processos de políticas públicas ocorre entre especialistas dentro de um subsistema de política pública, mas que seus comportamentos são afetados por fatores no amplo sistema político e socioeconômico; no nível micro, o “modelo do individual” é fortemente desenhado pela psicologia social; a convicção, em um nível intermediário, de que o melhor caminho para percorrer com a multiplicidade de atores envolvidos em um subsistema é agregá-los dentro de uma “coa-lizão de defesa” (Sabatier e Weible, 2007, p.191-192).

A abordagem da ACF propõe-se ainda a entender os processos políticos não mera-mente como lutas entre interesses antagônicos, mas como processos de aprendizagem. Defendendo suas crenças, os agentes entram em processos de aprendizagem e tentam traduzir seus ideais em políticas (Aicher e Diesel, 2004). As crenças funcionam com variáveis dependentes, que podem ser influenciadas por processos de aprendizagem. A teoria ACF oferece importantes elementos para a compreensão dos processos políticos que conduziram ao desfecho da situação em Sete Lagoas, com base nas evidências em-píricas levantadas.

SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL: MODELOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E SEUS CONFLITOS

No início dos anos 1970, foram criadas as Companhias Estaduais de Saneamento Básico – CESBs,2 como meio de viabilizar a execução do Plano Nacional de Saneamento – Planasa, que apresentava o ambicioso objetivo de atender 80% da população urbana com serviços de água e 50% com serviços de esgotos até 1980. Tais companhias eram reguladas pelo antigo Ministério do Interior e pelo extinto Banco Nacional de Habitação (BNH). Sua acelerada expansão e desenvolvimento estiveram associados à exclusividade na obtenção de empréstimos do BNH, com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), para a execução de obras. Nesse sentido, as CESBs, além de incorporarem os órgãos dos governos estaduais que eram responsáveis diretos pelos serviços, deveriam obter as concessões junto aos municípios. Tal tarefa, em alguns casos, como nas capitais,3 foi lograda sem grande esforço, uma vez que as companhias contavam com o respaldo do autoritarismo do governo federal e seus mecanismos de pressão política e chantagem econômica. Os prefeitos e vereadores da maioria dos municípios brasileiros se viram, portanto, sob o jugo e interesses das CESBs. Dentre os quatro mil municípios existentes à época, apenas mil “escaparam do rolo compressor e mantiveram a autonomia na gestão e operação dos seus serviços de saneamento” (Peixoto, 1994, p.7).

1 A análise da mudança no modelo de gestão dos serviços de saneamento em Belo Horizonte, no início dos anos 2000, aplicando a ACF, é desenvolvida em Oliveira, A.P.V. A relação en-tre municípios e prestadores estaduais de serviços de sa-neamento: o caso de Belo Horizonte. Belo Horizonte: UFMG, 2009. Qualificação [Doutorado] – Programa de Pós-Graduação em Sane-amento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos, Belo Ho-rizonte, 2009).

2 Por alguns autores, mais propriamente, denominados de Companhias Estaduais de Água e Esgotos, em vista da abrangência restrita em sua atuação.

3 A única capital que não aderiu ao Planasa foi Porto Alegre, sendo que a adesão maciça pode ser explicada pelo fato de, no período, os prefeitos serem de livre no-meação pelos governadores de Estado.

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O argumento dos agentes financiadores do Planasa era de que a transferência dos serviços de saneamento dos municípios às CESBs propiciaria a uniformização da Política Nacional de Saneamento, alcançada, dentre outros meios, a partir da centralização das ações e “eliminação do peso das pressões locais que impediam a adoção de tarifas realistas” (Rezende e Heller, 2008, p.244).

O Planasa, desde o início, apresentava alguns problemas em sua sustentação, mas, foi a partir da crise de acumulação financeira iniciada no final da década de 1970 – que acarretou o crescimento vertiginoso da inflação, a queda da arrecadação do FGTS e a utilização de capitais das empresas estatais para impedir a elevação dos preços – que come-çaram a aparecer sinais da insustentabilidade do modelo. Na década de 1980, ainda havia recursos do FGTS disponíveis, porém a crise do Planasa e os problemas básicos do setor se mantiveram e continuaram a contribuir para a precária situação do saneamento no País. Em decorrência desse cenário – falência do BNH e crise econômica, com alto volume de saques do FGTS em virtude do crescente desemprego –, o Planasa desmantelou-se.

Rezende e Heller (2008) destacam que apesar do Planasa ter sido implementado de forma autoritária e excludente, trouxe significativos avanços quanto à ampliação dos siste-mas de saneamento, principalmente no que se refere ao aumento da cobertura por abas-tecimento de água. Não obstante, a falta de ações integradas referentes ao abastecimento de água tratada, coleta e tratamento de esgoto e resíduos sólidos, controle de vetores e drenagem, assim como a predominância de investimentos nas regiões mais desenvolvidas – Sul e Sudeste, e nos centros urbanos – agudizaram ainda mais o quadro de disparidades sociais no país. “O critério para a alocação dos recursos passou a ter como parâmetro o retorno dos investimentos, ficando a melhoria da saúde pública e da qualidade de vida relegada a um plano secundário” (Rezende e Heller, 2008, p.244).

O colapso do sistema Planasa acarretou uma séria crise institucional e financeira no setor de saneamento. Concomitantemente ao processo de redemocratização, instituições como a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), Asso-ciação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (AESBE) e Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) discutiam com a sociedade e o governo federal um novo modelo para a política pública do setor. Um quadro inédito se desenhou a partir da Constituição de 1988, marcado pela descentralização político-administrativa e fiscal, na qual o governo sinalizava uma disposição em constituir inovadores modelos gerenciais, pautados pela integração do planejamento e implementação de políticas públicas nas três esferas de governo. Além disso, a titularidade dos serviços foi expressa na Constituição como atribuição dos municípios, de acordo com o inciso V do artigo 30, embora alguns governos estaduais venham questionando esta definição para as regiões metropolitanas.

Na década de 1990, as soluções para o setor recaíram na privatização de algumas empresas e serviços, fomentada, sobretudo, no governo Fernando Henrique Cardoso, e na continuidade da concessão dos serviços municipais às CESBs, que devido às restrições de acesso aos recursos do FGTS, desviados para amortização dos juros da dívida federal, tive-ram de angariar empréstimos internacionais, principalmente do Banco Mundial (BIRD) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), além negociar parte de suas ações no mercado financeiro. Este processo acarretou ainda, a elevação das tarifas, como meio de financiamento próprio para a universalização dos serviços.

Apesar da sua extinção oficial, o modelo centralizador do Planasa ainda marca a prática técnica e operacional do setor de saneamento (Rezende e Heller, 2008). Devem se destacar as relações por vezes conflituosa entre as CESBs e os municípios, por um lado

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e, de outro, as dificuldades técnica, financeira e gerencial de parte dos municípios que optaram pela autonomia. Apesar do quadro de insatisfação por que muitos municípios vêm passando diante das posturas autoritárias das CESBs, uma parte deles não se acha em condições, ou não tem disposição, de assumir a operação direta dos serviços. Há ainda um conjunto de municípios que solicita às companhias estudos para a transferência de concessão, tendo em vista a ineficiência dos serviços municipais e a periódica carência de linhas de crédito.

A supremacia das Companhias Estaduais na concessão dos serviços de abasteci-mento de água continua e é confirmada por dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2008 (PNSB) (IBGE, 2010), que revelam estar presentes em 68% dos muni-cípios brasileiros, e em mais de 70% dos municípios das regiões Sudeste e Sul. Apenas nos municípios da Região Norte é que não há predominância das CESBs, que estão em 31% deles. E a lógica do Planasa, de investir em abastecimento de água e preterir o esgotamento sanitário, ainda prevalece. Os dados da PNSB de 2008 apontam a baixa participação das CESBs na gestão do esgotamento sanitário, já que estas atuam em apenas 19% dos municípios brasileiros e em cerca de 35% dos municípios onde é responsável pelo abastecimento de água.

Os municípios que mantiveram o controle sobre seus sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário realizam sua gestão sob os modelos da administração indireta autárquica, por meio dos Serviços Autônomos de Água e Esgoto (SAAEs), por exemplo, ou pela administração direta municipal. A principal vantagem da autarquia, quando com-parada à administração direta, diz respeito à autonomia administrativa e financeira, que permite melhor controle e desempenho operacionais (Peixoto, 1994).

Os municípios autônomos, ao contrário daqueles servidos pelas CESBs, não conta-ram com o apoio financeiro e institucional, além da assistência técnica, dos Estados e da União, desde a formulação do Planasa até o início dos anos 2000, ressalvado o suporte fornecido pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Tendo em vista que foram rene-gados pelo Planasa, a capacitação técnica e gerencial de seus quadros ficou limitada, com a concorrência do mercado privado e das CESBs, que atraíram os seus profissionais mais capacitados com melhores condições salariais (Peixoto, 1994). A exceção ficou por conta das cidades mais organizadas. As deficiências orçamentárias têm dificultado a ampliação e a melhoria do abastecimento de água e do esgotamento sanitário nos municípios menores.

Dados da PNSB de 2008 (IBGE, 2010) mostram que as administrações autárquicas apresentam uma atuação conjunta em abastecimento de água e esgotamento sanitário nos municípios da região Sudeste onde são responsáveis pela gestão (13% e 12%, respectiva-mente). Nas demais regiões do País, esse modelo de gestão atua predominantemente no abastecimento de água (em 10% dos municípios) e menos no esgotamento sanitário (5%). É importante destacar que as administrações diretas municipais estão presentes em 32% dos municípios brasileiros na gestão dos serviços de esgotamento sanitário4 e que cerca de 2.300 municípios (40% do total) não informaram nada sobre essa gestão ou informaram não existir gestão desse serviço (IBGE, 2010), o que reafirma a forte presença do modelo Planasa no saneamento brasileiro até os dias atuais.

Apesar da hegemonia política e econômica das CESBs há que se ressaltar os bons resultados obtidos pelas autarquias na gestão dos serviços de água e esgotos. Em estudo dos determinantes da cobertura de redes de água e esgotos em municípios brasileiros, no ano 2000, Rezende et al (2007) mostraram as chances de cobertura domiciliar associadas a cada modelo de gestão e, a despeito da ampla atuação e destacada captação de recursos,

4 Considerando que a PNSB de 2008 apresenta infor-mações sobre a gestão do esgotamento sanitário de aproximadamente 60% dos municípios brasileiros.

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as companhias estaduais aparecem com chances de cobertura de redes de água e esgotos inferiores às das autarquias. As chances de domicílios situados em municípios cujo mode-lo de gestão é do tipo autarquia possuirem ligações de redes de abastecimento de água e esgotamento sanitário são 2,7 e 2,3 vezes as chances de domicílios situados em municípios com gestão do tipo administração direta. Para as companhias estaduais, essas chances são 1,8 e 1,9 vezes as chances relativas ao modelo de administração direta, respectivamente. De modo semelhante, Heller et al (2006) sugerem, a partir de estudos quantitativos, que o modelo autárquico tem revelado um desempenho no mesmo patamar ou superior ao das companhias estaduais. A maior proximidade com os usuários e com a administração pública e suas políticas intersetoriais locais, mais efetivas, quando comparada com o dis-tanciamento que as CESBs geralmente apresentam em relação aos municípios onde atua, pode ser responsável por esse panorama favorável relativo à atuação das autarquias.

A melhoria dos serviços sanitários prescinde de uma gestão baseada no exercício pleno da titularidade e da competência municipal, além da implementação de instâncias e instrumentos de participação e controle social sobre a prestação de serviços em nível local, qualquer que seja a natureza dos prestadores, de modo a promover serviços de saneamento básico justos do ponto de vista social. Cabe aos municípios que optaram pela autonomia, buscar a capacitação do serviço, lisura no trato político e alternativas de financiamento que atendam às crescentes demandas sociais e ambientais postas na atualidade.

Esse sucinto recorte histórico, cujo intento não é abarcar a completude da evolução do saneamento ambiental no Brasil, esclarece alguns elementos notórios na atualidade quanto a dificuldades em que se encontra parte dos municípios que gerenciam seus pró-prios sistemas. E justifica, em certa medida, o quadro analítico-descritivo acerca da gestão promovida pelo SAAE de Sete Lagoas.

O CASO DE SETE LAGOAS: SAAE OU COPASA?

Sete Lagoas está localizada na região central do estado de Minas Gerais, distando aproximadamente 70 km da capital, na direção noroeste. O município integra o deno-minado colar metropolitano.5 Sua população é de aproximadamente 221 mil habitantes, sendo 98% caracterizada como urbana (IBGE, 2008). Os principais cursos d’água que cortam o município são o ribeirão Jequitibá e o córrego Vargem do Tropeiro, que in-tegram a bacia do rio São Francisco. O abastecimento de água e a coleta de esgotos são prestados pela prefeitura, por meio da autarquia Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), criada em 1965. Segundo informações do SAAE, 100% das residências da área urbana possuem abastecimento de água tratada e 95% da população é atendida pela coleta dos esgotos. O município não dispõe de Estação de Tratamento de Esgotos – ETE, sendo a totalidade dos seus esgotos lançada in natura nos cursos d’água. O setor de obras da prefeitura é responsável pelas intervenções relacionadas à drenagem pluvial e gestão dos resíduos sólidos urbanos.

O abastecimento de água no distrito sede é realizado integralmente a partir de fontes subsuperficiais. Há em toda a cidade cerca de 110 poços em operação, que servem água de origem calcária, contendo quantidades relativamente elevadas de minerais dissolvidos, o que acarreta alguns transtornos à população, tais como paladar desagradável, entupimento de chuveiros e acúmulo de crostas brancas em panelas. A dependência do abastecimento em relação às fontes subterrâneas é motivo de preocupação, devido à inexistência de estu-

5 “Art. 21 – O Colar Metro-politano da Região Metropo-litana de Belo Horizonte é constituído pelos Municípios de Barão de Cocais, Belo Va-le, Bonfim, Fortuna de Minas, Funilândia, Inhaúma, Itabiri-to, Itaúna, Moeda, Pará de Minas, Prudente de Morais, Santa Bárbara, São José da Varginha e Sete Lagoas.” (Lei complementar 63, de 10/01/2002, alterando os arts. 7º e 21 da LC 26, de 14/01/1993)

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do hidrogeológico que avalie a real disponibilidade hídrica do município. Mas, apesar da falta de um estudo, a maioria dos entrevistados acredita na existência de água subterrânea em abundância, o que alguns associam ao interesse já explicitado da instalação de uma fábrica de cervejas da Ambev (Companhia de Bebidas das Américas) no município.

Segundo um entrevistado, a água é potável, mas em virtude de seu gosto ruim, a maioria da população consome água mineral. O tratamento da água pelo SAAE consiste na desinfecção por cloro e adição de flúor. Outro problema informado pelos entrevista-dos associado ao abastecimento é sua intermitência. A falta de água em alguns bairros, principalmente em períodos de seca, deve-se à precariedade da infraestrutura da rede de abastecimento da cidade. Há deficiências nos sistemas de reservação e adução, observadas em relatos que caracterizam a insuficiente interligação entre os reservatórios. Há casos de abundância de água nos reservatórios de alguns bairros e falta em outros, como se hou-vesse “distintas cidades” dentro de Sete Lagoas, conforme declaração de um entrevistado. Além disso, por ser a rede muito antiga, há problemas de obstrução e vazamentos, o que faz com que o bombeamento dos poços não ocorra em sua máxima capacidade. Segundo um entrevistado, já foi realizado um projeto para a construção de grandes reservatórios, que seriam interligados por uma adutora, possibilitando a pressurização do sistema 24 horas por dia, o que eliminaria a falta de água na cidade. Foi mencionada pelos entrevista-dos a recorrência de internações hospitalares em virtude de contaminação por doenças de veiculação hídrica. Entrevistados relataram também a possível contaminação da água para consumo humano pelos esgotos, tendo em vista a precariedade das tubulações.

A falta de tratamento de esgotos é o problema mais latente, polêmico e debatido nos últimos anos no município, cujos efluentes são a principal fonte poluidora do ribeirão Jequitibá e um dos maiores responsáveis pelo lançamento de esgotos na bacia do rio das Velhas. Apesar de coletar 97% dos esgotos, sua totalidade é lançada nos córregos Diogo, Matadouro e dos Tropeiros, além do rio Paraopeba, sem qualquer tratamento. Segundo um entrevistado, há forte indignação nas populações dos municípios a jusante de Sete Lagoas em relação ao descaso quanto ao tratamento dos esgotos: “Eles exercem uma pressão e dizem que Sete Lagoas é a privada da região”. Outro entrevistado afirmou que “Os mu-nicípios vizinhos declaram que não há nem como criar gado mais próximo ao rio, por causa dos esgotos”. Isso leva a uma situação de injustiça ambiental, na qual outros municípios suportam os danos e riscos dos efluentes emitidos por Sete Lagoas, instalando no quadro regional uma situação de conflito ambiental (Ascerald, 2004). Apesar da alarmante situa-ção, ainda não há previsão para instalação de uma ETE no município, não obstante já ter sido requerido junto ao governo federal, recursos para tal investimento.

O SAAE Sete Lagoas A avaliação que os entrevistados fizeram do SAAE é de que este perdeu a sua capaci-

dade operacional há alguns anos, em parte justificada pela ingerência política da prefeitura sobre sua autarquia, como também é percebido entre as conclusões do Relatório Final da Comissão Especial para Análise e Levantamento de Dados, realizado por alguns vereado-res com o auxílio da direção do SAAE, em maio de 2007:

problemas, tais como: administração centralizada e verticalizada; inoperância da Diretoria de Estudos e Projetos nos últimos anos; enorme lacuna de planejamento, em que a inexis-tência de estudos, planos e projetos é uma constante; falta de técnicos especializados, como

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engenheiros e geólogos; deficiências gerencial e organizacional da Diretoria de Operações; desperdício de recursos e custos elevados, descuido na manutenção e ampliação dos serviços de água e esgotos; funcionamento da autarquia no limite da capacidade instalada.

Alguns entrevistados relataram que há funcionários do SAAE que trabalham em outras funções na Prefeitura ou na Câmara dos Vereadores, além de pedidos de isenção de pagamento de contas feitos por gestores municipais e vereadores em benefício próprio ou do eleitorado. Segundo os entrevistados, a autarquia atua amadoristicamente e está fortemente sujeita às interferências do poder público local.

O SAAE passa por dificuldades orçamentárias para a realização dos investimentos necessários no município, que durante muitos anos deixaram de ser realizados em função do desvio de recursos da autarquia. O mesmo relatório aponta que houve pagamento dos serviços de limpeza urbana pelo SAAE, no período 1998 a 2005, sem a cobrança da correspondente taxa à população, totalizando R$ 20 milhões. Esse desvio acarretou a descapitalização do SAAE, que até 1998 apresentava situação financeira favorável e reali-zava investimentos em seu sistema. Desse período à atualidade, sobreveio uma situação deficitária em termos de infraestrutura, maquinário e pessoal, em geral sem adequada remuneração e falhas quanto à capacitação.

O problema da ingerência política se reflete em perdas de arrecadação e privilégios. Segundo um entrevistado:

Há inadimplência de pagamento em cerca de 10% (dos usuários), mais nos setores de médio e alto consumo, e há perdas estimadas em 20%, incluindo os “gatos”. O SAAE tem pouca condição de evitar os “gatos”. Só permite atrasar dois meses a conta, mas se forem pessoas de alto consumo e empresas, eles podem ficar mais tempo sem pagar, por causa da questão política por trás. Ele está sujeito à ingerência política e tem uma autonomia limitada.

Outro entrevistado corrobora a situação, que dilapida a arrecadação e prejudica a imagem da empresa junto à população, ao afirmar que “Os ‘gatos’ não são feitos por pessoas de baixa renda não, é pra gente rica encher piscina”.

Por fim, o relatório produzido pela comissão especial da Câmara ressalta a necessi-dade imperiosa de reforma administrativa da autarquia, adoção de novas práticas sociais, políticas e administrativas sintonizadas com as demandas ambientais que visam ao aten-dimento da Meta 2010, de despoluição da bacia hidrográfica do rio das Velhas, o que segundo o próprio relatório, “não se fará sem o urgente tratamento de 100% dos esgotos do município”. Para tanto, o relatório insiste na necessidade de minimizar “a notória ingerên-cia política” sobre o SAAE.

O SAAE contava com cerca de 300 funcionários efetivos e 200 contratados à época do relatório (2007). Atualmente, segundo um entrevistado, o SAAE está apenas com os efetivos, uma vez que os contratados foram dispensados, como meio de enxugar a folha de pagamentos e reduzir as despesas da autarquia. Segundo o mesmo entrevistado, não há necessidade de ter funcionários contratados, e o que a autarquia precisa realizar ur-gentemente é a capacitação do seu quadro e a realização de concurso público voltado aos profissionais de nível superior especializados.

Além do elevado gasto com folha de pessoal antes das demissões, outro dado que chama atenção é o valor gasto com energia elétrica. Isto se deve ao bombeamento inin-terrupto de água dos poços, por não haver reservatórios suficientes para armazená-la. A

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empresa não possui um plano de utilização racional da energia elétrica, concentrando esta atividade apenas no período em que há redução do valor cobrado, e com isso há meses em que são desembolsados R$ 500 mil nessa despesa, situação que poderia ser minimizada a partir da construção de novos reservatórios e interligação do sistema.

A arrecadação mensal do SAAE está em torno de R$ 2,3 milhões e sua tarifa resi-dencial, segundo um entrevistado, é de R$ 19,00 por 10m3 de água, sobre a qual incide um acréscimo de 50% referente à coleta de esgotos. O mesmo entrevistado declarou que considera o SAAE viável, do ponto de vista financeiro, desde que não haja ingerência política. No entanto, afirmou que a capacidade de investimento da autarquia restringe-se apenas a pequenos e médios investimentos, o que impossibilita a construção de sistemas de tratamento de esgotos. Somente por meio de empréstimos ou repasses dos governos estadual e federal isso seria possível.

Na opinião de alguns dos entrevistados, a maioria da população mostra-se insatisfeita quanto aos serviços prestados pelo SAAE e clama por melhorias. Nas falas dos entrevis-tados ficam explícitos os sentimentos de saudosismo em relação ao período em que o SAAE apresentava uma adequada condição financeira e prestava o abastecimento de modo satisfatório. Esses sentimentos somam-se ao notório orgulho setelagoano decorrente das características de vanguarda da constituição e evolução da cidade no passado, relatados por Nogueira (2003) e fortemente presente nas entrevistas.

A breve descrição das condições do abastecimento e esgotamento sanitário em Sete Lagoas visa situar o contexto em que antecedeu o debate, não obstante a atual situação não se diferenciar da apresentada em 2007. Importante compreendê-la, tendo em vista que esta foi o estopim do debate entre a possibilidade de concessão dos serviços à Companhia Estadual ou a manutenção do SAAE.

Início do Debate: SAAE ou Copasa? O debate teve início a partir da conclusão e divulgação pública dos estudos realizados

pela Copasa em Sete Lagoas. No Ofício de Gabinete 041 da Prefeitura, de 11 de janeiro de 2007, consta que “A Prefeitura Municipal de Sete Lagoas, com o apoio do Governo do Estado de Minas Gerais, solicitou à Copasa um levantamento das condições de abastecimento de água e esgotamento sanitário do município de Sete Lagoas”. O documento não esclarece, no entanto, se foi a prefeitura quem procurou o governo do Estado ou se foi este quem demonstrou interesse em expandir a área de concessão de sua empresa. Segundo um dos entrevistados, o interesse partiu da Copasa, que contatou o prefeito por intermédio do Projeto Manuelzão.6 No entanto, os demais entrevistados dividem-se entre os que afirmam que a iniciativa partiu do ex-prefeito, que procurou a Copasa para realizar um diagnóstico da cidade; e aqueles que identificam o início do debate apenas quando os resultados do diagnóstico foram apresentados publicamente. O entrevistado da Copasa declarou que a empresa “não pode procurar os municípios, ela serve como um braço de gover-no. Os municípios que devem procurá-la se precisarem: é o que diz a Lei de Saneamento. O município quem fez uma solicitação formal”.

No mesmo ofício citado, consta que a Copasa havia encerrado seu estudo e apre-sentado à prefeitura. Por esta julgar o “assunto de interesse público de grande relevância para a sociedade setelagoana...”, afirma que “qualquer decisão tanto do executivo quanto do legislativo deverá passar por um amplo debate com a população”. Neste sentido, o ex-prefeito convocou duas audiências públicas e promoveu um seminário, aberto a toda a sociedade.

6 “O Projeto Manuelzão nas-ceu em 1997, por iniciativa de professores da Faculdade de Medicina da UFMG. As diretrizes do Projeto Manuel-zão são: lutar por melhorias nas condições ambientais e, assim, garantir a promoção da qualidade de vida, tendo por objetivo principal promo-ver a revitalização da bacia do rio das Velhas. Para isso, o projeto incentiva a partici-pação e o comprometimento da comunidade, constrói re-lações com o poder público e com o empresariado, além de atuar na educação am-biental e na pesquisa” (http: //www.manuelzao.ufmg.br).

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O Seminário intitulado “O saneamento ambiental no município de Sete Lagoas e a Meta 20107 para o rio das Velhas”, ocorreu no dia 13 de fevereiro de 2007 e contou com apresentações do Projeto Manuelzão, de um especialista em hidrologia e meio ambiente, do Secretário Municipal de Meio Ambiente à época, além de representantes da FEAM – Fundação Estadual do Meio Ambiente, SAAE e Copasa. Chamam a atenção os temas das palestras, que versavam sobre a Meta 2010: riscos da exploração de água subterrânea em regiões cársticas; a Deliberação Normativa – DN 96/2006 (que determina que todos os municípios mineiros implantem um sistema de tratamento de esgotos eficiente e que atenda, no mínimo, a 80% da população urbana); a situação do saneamento básico no município de Sete Lagoas e a política de investimento do SAAE e, por fim, palestra intitu-lada “Proposta do Estado e da Copasa para o saneamento básico de Sete Lagoas e a Meta 2010”. Presume-se, portanto, que as primeiras palestras contextualizaram a problemática da situação setelagoana, para em seguida apresentar os ditames legais e finalizar com a “solução” do Estado.

Apesar da incerteza quanto às reais motivações do ex-prefeito em transferir a conces-são, foi unânime a percepção entre os entrevistados de que a situação sanitária no muni-cípio se tornou insustentável e que havia forte pressão dos municípios vizinhos, governo do Estado, Projeto Manuelzão e sociedade local quanto à tomada de medidas urgentes que buscassem atender à DN 96/2006 e à Meta 2010. Um dos entrevistados afirmou que a motivação poderia estar relacionada justamente à incapacidade sentida pela prefeitura e SAAE em “prestar o serviço com a devida qualidade”. Esta situação decorre da ingerência política citada anteriormente, mas apresenta, ainda, forte vinculação à descapitalização provocada pelas medidas adotadas pelo governo federal ao instituir o Planasa e desmotivar a autonomia municipal na gestão desses serviços, conforme discutido anteriormente.

De modo a complementar as hipóteses apresentadas, seguem as falas de dois entre-vistados:

Acho que o estopim é também a pressão sobre Sete Lagoas como a maior poluidora da bacia do Jequitibá. A pressão do Manuelzão e dos municípios vizinhos. Eles exercem uma pressão e dizem que Sete Lagoas é a privada da região. Pra mim, esses são ingredientes anteriores ao estopim. Teve sim uma motivação política: o prefeito da época queria apoio do governo do Estado para sua reeleição. Uma forma de ter este apoio seria conceder os serviços de abasteci-mento de água para a Copasa. Assim, ele se relacionaria mais próximo ao governador e teria apoio para sua reeleição. Além da motivação estrutural.

As falas refletem a complexidade de entendimentos acerca da motivação do ex- -prefeito em promover a discussão da concessão: teriam sido as inúmeras pressões sofridas, interesses políticos eleitoreiros, ou uma combinação entre ambas?

No caput do Projeto de Lei Nº 013/2007, enviado à Câmara Municipal pelo ex--prefeito Leone Maciel, constava que:

Autoriza o poder executivo a celebrar convênio de cooperação com o Estado de Minas Ge-rais, para delegação ao Estado das competências de organização, regulação, inclusive tarifária, planejamento, fiscalização e prestação dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e esgotamento sanitário, bem como da competência para selecionar empresa para prestar tais serviços, por meio de contrato de programa a ser celebrado entre o município, o Estado e a empresa.

7 “A Meta 2010: revitali-zação da bacia do rio das Velhas tem como objetivo a despoluição do trecho mais degradado do rio, entre os municípios de Itabirito e Je-quitibá, para assim permitir a recuperação de toda a bacia hidrográfica. Em ter-mos técnicos, a proposta visa conseguir reenquadrar o trecho do Velhas que passa pela Região Metropolitana de Belo Horizonte para classe 2, de acordo com classifica-ção prevista pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente. Em 2007, a Meta 2010 foi adotada pelo Governo de Mi-nas como um de seus Proje-tos Estruturadores, passan-do a figurar entre as ações prioritárias para o Estado”. (http://www.manuelzao.ufmg.br/meta2010)

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Dessa forma, a prefeitura declarou publicamente seu interesse em transferir a concessão ao Estado, pelos próximos 30 anos, que naturalmente está representado pela Copasa.

O estudo feito pela Copasa no município gerou uma proposta para o serviço de concessão, que foi apresentada inicialmente à prefeitura e posteriormente em seminário e audiências públicas. A proposta da Copasa previa a necessidade de investimentos totais da ordem de R$ 162 milhões, sendo R$ 64 milhões em esgotamento sanitário e R$ 98 mi-lhões em abastecimento de água. Deste montante, R$ 138 milhões seriam aplicados nos três primeiros anos. A indenização da Copasa ao município, em virtude da transferência dos ativos necessários à implantação dos sistemas, foi estimada em R$ 12 milhões, valor considerado baixo por alguns entrevistados. A proposta previa uma fase de transição de três anos, na qual a Copasa assumiria o SAAE e continuaria operando os sistemas, utili-zando toda sua estrutura de máquinas, equipamento e o pessoal que fosse indispensável. Durante esta fase “as tarifas do SAAE serão mantidas e corrigidas na mesma data e pelos índices das tarifas praticadas pela Copasa em Minas Gerais, de acordo com os preços autoriza-dos pelo Governo do Estado de Minas Gerais”. Ao término desse prazo de implantação dos novos sistemas, a Copasa assumiria, portanto, a operação pelo prazo de 30 anos. A em-presa comprometeu-se, ainda, a assumir em seu quadro de pessoal apenas os empregados efetivos. Quanto aos contratados, não foi assegurada qualquer garantia.

A Copasa foi muito hábil em sua apresentação, na qual deu informações gerais sobre a empresa e fez um comparativo entre a situação dos serviços de água e esgotos ofereci-dos pelo SAAE, apresentados de modo negativo, e o novo panorama possível, caso esta assumisse os serviços. Fez, ainda, a comparação entre as tarifas doméstica e industrial do SAAE e as da Copasa, com esta última apresentando o menor valor. Ressaltou, também, a existência da tarifa social, na qual os consumidores de até 6 m3 teriam descontos em suas contas, o que o SAAE não oferece. Demonstrou, ainda, que com a concessão a cidade re-ceberia mais investimentos e instalação de novas empresas, em virtude da garantia de uma água de melhor qualidade, pois, segundo eles, a presença ineficiente do SAAE afugentaria novos investimentos.

A convincente apresentação da Copasa, cuja equipe de comunicação está altamente treinada e acostumada a lidar com esse tipo de situação, soube defender a ideia de que a melhor opção seria transferir os serviços à estatal. Além das apresentações realizadas no seminário e em duas audiências públicas, a empresa investiu fortemente em publicidade nas mídias locais. Segundo um dos entrevistados, “Ela fez um investimento pesado em rádio, televisão e jornais. Gastou quase R$ 2 milhões em propaganda, durante seis meses, toda hora anunciando nos jornais e rádios”.

Audiências Públicas

Nos debates sobre a possibilidade de concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, o posicionamento dos diversos atores envolvidos deu-se de modo diverso. No entanto, os entrevistados não podem ser divididos simplesmente entre aqueles que defendem a continuidade do SAAE e os que defendem a sua saída. A complexidade do caso demonstrou inúmeras possibilidades de percepção e posicionamen-to por seus envolvidos, que ultrapassam meros antagonismos, tal como entendido por Sabatier (2007). Entre os entrevistados existem aqueles que defendem uma reestruturação completa do SAAE, e aqueles que preferem sua substituição pela Copasa, em uma clara

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demonstração de descrédito à autarquia e crença na melhoria dos serviços caso eles sejam prestados pela estatal. Mas, mesmo estes últimos mostram-se receosos com um possível aumento de tarifa e com as demissões de funcionários públicos, efetivos e contratados. Esses diferentes grupos constituíram redes políticas, de modo a direcionar as mudanças na política de saneamento do município de acordo com interesses próprios.

Os debates foram claras demonstrações de um jogo político que envolveu relações de poder, interesses pessoais e sérias consequências sociais. Em geral, estes espaços tendem a acirrar o posicionamento de seus participantes, tornando-os mais evidentes. Não obs-tante, neste caso, muitos de seus envolvidos preferiram a escusa de um posicionamento declarado, evitando embates diretos e tendo em vista o possível desgaste político que tal decisão poderia acarretar.

O Codema (Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente), atendendo à so-licitação do então prefeito, Leone Maciel, convocou a comunidade para participar das audiências públicas referentes ao processo de concessão. Nas audiências, houve apresenta-ção dos estudos realizados no município pelo SAAE e pela Copasa. Foi solicitado que os interessados em se manifestar verbalmente durante as audiências comparecessem à sede do Codema para inscrição prévia. De acordo com um entrevistado, “Nunca teve um assunto tão debatido publicamente. A população participou muito”. Segundo um entrevistado, o debate “Não foi a toque de caixa, exatamente pra sedimentar bem. Por que senão o seguinte: se o prefeito toma uma medida e dá certo, tudo bem, se dá errado é um desgaste incrível... Então, ninguém queria errar”. Apesar da obrigação legal em promover audiências públicas em casos como este, ao que parece, o poder público hesitou em tomar esta importante decisão e preferiu dividir a responsabilidade com a sociedade.

Os auditórios, segundo um dos entrevistados, estavam lotados e a prefeitura teve de instalar um telão do lado de fora da Casa da Cultura, de modo a possibilitar o acompa-nhamento da discussão pelos interessados que não couberam no lado interno. No entanto, segundo o jornal Boca do Povo de 16/02/2007, de circulação em Sete Lagoas, “A garantia de permanência ou não dos servidores do SAAE em seus empregos foi o ponto principal da au-diência pública”. Os entrevistados corroboram essa informação ao declararem que a maior parte dos presentes era composta de funcionários e seus parentes, temerosos por seus empregos. Conforme apresentado anteriormente, a posição da Copasa em relação a essa questão foi a promessa de contratação apenas dos efetivos do SAAE. Intencionalmente ou não, a convocação feita pela prefeitura aos funcionários do SAAE, para que participassem ativamente dos debates, serviu como espaço de manobra política por aqueles que temiam a concessão à Copasa. A consequência disso foi o deslocamento da discussão sobre sanea-mento para a questão do funcionalismo público, relegando-a a um plano secundário.

O jornal Boca do Povo de 17/02/2007 noticiou que “A população também teve voz e vez durante a audiência pública realizada”. Contudo, o depoimento de um entrevistado auxilia na compreensão acerca do tipo de participação observada durante os debates nas audiências realizadas:

Na cidade nós temos problema de participação popular. Agora que estamos começando com audiências públicas [...] Lotou a Casa de Cultura, mas lá é pequeno e por que o prefeito convocou os funcionários públicos. Houve muita participação dos funcionários do SAAE também, pra verem como ficaria o caso dos efetivos e contratados. Chegou um momento em que a discussão quase perdeu o foco do saneamento e ficou muito em questões de funciona-lismo. Então, a casa enchia de funcionários com medo de serem mandados embora.

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O outro ponto polêmico do debate tem relação com a tarifa que seria praticada pela Copasa, apesar de a empresa afirmar que sua tarifa seria próxima e até menor, nos casos da tarifa social, em relação à do SAAE. Segundo um entrevistado, “O que existia em relação à tarifa era especulação. Vereador pegava cópia de conta da Copasa cobrada em outro muni-cípio e cópia de conta do SAAE e fazia comparativo, mas que não sabíamos se era a realidade mesmo”. No entanto, a população temia o aumento das contas, pois, segundo outro en-trevistado, “Tinha gente que montava conta. Pegava conta de pessoa jurídica e mostrava que aquela seria a taxa mínima, que era quase o dobro, daí o povo ficava assustado”. Assim, vê-se que diversos meios, legítimos ou não, foram utilizados por ambos os lados na tentativa de convencimento da população e do poder público.

Dentre as propostas apresentadas pela Copasa, caso assumisse a concessão, figurava a desativação da captação de água subterrânea e sua substituição por água superficial, a ser bombeada do rio das Velhas ou Paraopeba até o tratamento e deste para um reservatório com capacidade para 20 milhões de litros (Boca do Povo, 16/02/2007). Tal opção deve- -se ao risco de tragédias associadas a possíveis solapamentos do terreno cárstico, conforme apresentados pela empresa na audiência. Segundo o jornal Sete Dias (16/02/2007):

Todos os estudos mostram que corremos risco: nosso subsolo está cada vez mais frágil. Os constantes afundamentos de ruas e residências não são à toa. Há o risco de a rede de esgoto vazar para o lençol freático e aí a qualidade da nossa água estará irremediavelmente compro-metida.

No entanto, este foi outro ponto polêmico da discussão, pois muitos creem que os poços apresentam ainda grande capacidade armazenada e boa qualidade do recurso. Esta percepção está associada, como citado anteriormente, ao interesse manifestado pela Ambev de se instalar no município. Segundo um entrevistado,

Eles falam o seguinte: a Ambev está vindo pra Sete Lagoas e eles sabem onde que tem água. Não tem estudo hidrogeológico na cidade, mas eles sabem que tem água em abundância na re-gião que eles escolheram. Sabem que acima de 100m de fundura a água é cristalina e em abun-dância. Então, será que vamos ter que pegar água do rio das Velhas? Ou será que os lençóis têm água suficiente? Para que partir para uma água superficial poluída e problemática? Nós tínhamos que ser mais cautelosos. Tinha que ter um estudo hidrogeológico muito bem feito.

A opinião da população, segundo um entrevistado, oscilou entre uma maioria que preferia a manutenção do SAAE e, em outros momentos, predominava o apoio à instala-ção da Copasa no município. O caráter de indecisão da população pode estar associado à falta de posicionamento explícito do poder público, temeroso pelas consequências de sua opção no julgamento popular e nas futuras eleições. Ao que parece, não houve acirramen-to de posições de modo simplista entre os pró-Copasa e os pró-SAAE, tendo em vista as consequências políticas desta decisão e a complexidade do caso.

Apesar de não ter havido uma pesquisa de opinião, os entrevistados afirmaram que o posicionamento da população dependia dos argumentos apresentados pelos lados diver-gentes, evidenciando que na medida em que surgiam novos dados, as variáveis analisadas para a escolha de um modelo de gestão também mudavam, complexificando a posição dos atores no processo. Em relação aos vereadores, um entrevistado afirmou que “Poucos se manifestaram pró-SAAE e poucos pró-Copasa, muito ficaram na beira, escutando e partici-

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pando”. A fala de um entrevistado elucida sua percepção acerca da opinião popular quanto a esta decisão:

Antes do debate, eu sentia que a população era insatisfeita com o serviço do SAAE: falta de água, resíduos de terra na água [...] A população tinha a vontade de mudar o serviço, não exatamente de tirar o SAAE e trocar pela Copasa, mas um desejo de melhoria. Durante o debate, eu sentia a angústia da população pela melhora do serviço. A Copasa pode ser uma referência de qualidade de serviço, mas a população tinha medo da tarifa.

Interessante notar, pela fala dos entrevistados, suas percepções em relação à opinião da população. Apesar de esta variar, auxilia na compreensão da repercussão de uma série de condicionantes sobre a percepção popular: os problemas sanitários do município; a situação financeira, política e estrutural do SAAE; os receios da população em relação ao futuro; o marketing promovido pela Copasa; o temor quanto ao desemprego dos funcionários do SAAE e em relação à tarifa a ser praticada, dentre outros. A fala de um entrevistado demonstra bem essa situação:

Pelas audiências, a gente via que tava mais pra manter o SAAE, depois a Copasa, com um marketing bem feito, sem agressão... aí começou a virar um pouquinho, sentíamos que tava meio a meio. Depois voltou um pouquinho pro SAAE outra vez. Se quiser falar: o SAAE é viável, lucrativo e tem condições de investir, creio que a maioria ficaria a favor do SAAE, mas ele deixava a resposta no ar. Perguntaram ao presidente do SAAE se ele era viável. Aí ele falou que só pra deixar como estava, que para dar um choque de gestão e modernizar, ele não tinha como fazer a curto prazo. Apenas manter precariamente como estava.

Essa resposta, além de demonstrar a oscilação da opinião pública, demonstra ainda algo presente nas respostas dos demais entrevistados: o orgulho setelagoano e a preocu-pação com o patrimônio municipal. Conforme destacado anteriormente, a história da cidade e a elite local exercem significativa influência sobre a personalidade da população setelagoana, que percebe a concessão à Copasa como uma frustração, por não ter tido condições de gerir seu próprio sistema e ter que entregar um patrimônio local. Falas co-mo “O SAAE é nosso” e “Não devemos entregar nosso patrimônio” foram comuns entre os entrevistados e citados por eles como palavras de ordem muito utilizadas nas audiências.

Um dos importantes ganhos que este debate proporcionou, independente de seu resultado final, foi ter colocado em pauta de discussão uma questão que pouco é discutida, mas que exerce uma significativa influência sobre a qualidade de vida da população. A fala de um entrevistado reflete essa percepção:

É impressionante! O assunto “como eu tenho água na minha casa” não costuma ser discutido pela população, ao contrário de outros assuntos como carro, celular. Então, quando você dá opor-tunidade para as pessoas perceberem que têm um problema e que pode ser resolvido, o primeiro é um susto, por achar que todo lugar é como Sete Lagoas, em que tem que comprar água mineral pra cozinhar e beber. Elas acham que é a mesma rotina de BH e Nova Lima, por exemplo. Quan-do elas tomam contato com essa realidade, começam a questionar o que acontece em Sete Lagoas.

Esse comentário ressalta a importância que teve a discussão em Sete Lagoas, de um problema antigo na cidade, mas que ainda não havia sido, de fato, percebido pela popu-

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lação e publicamente debatido. De certo modo, surge a possibilidade de um acompanha-mento mais próximo da população acerca dessa problemática, além de tê-la capacitado a compreender melhor as nuances do debate e questionar sua realidade local.

Retirada do Projeto de Lei da Pauta de Discussão

O pessoal falava que o SAAE é nosso, que é lucrativo, que poderia ter mais lucro se não fosse sucateado. O pessoal foi pensando em melhor atendimento e abastecimento a taxas menores, mas sempre fica um pé atrás, desconfiado, nunca confiança total. A população ficou dividida. Acho até que foi por esse motivo que o prefeito, que estava muito entusiasmado no início, depois tirou o projeto da Câmara, pois estava em véspera de época eleitoral. Daí ele pensou: pode ser um suicí-dio político. Eu trago a Copasa, a maior parte da população é contra e isso vai refletir na votação.Depois dessa audiência, parecia que a coisa ia começar a caminhar por outro viés. Então, o prefeito recuou e tirou o projeto de volta, sem explicação nenhuma. Da mesma forma que entrou, saiu sem grandes explicações.

Fato intrigante diz respeito à súbita retirada do projeto de lei pelo então prefeito Leone Maciel. Alguns entrevistados o associam a receios quanto ao desgaste político com a população, um ano antes das eleições municipais. Este possível motivo soma-se à pro-messa de recursos federais feita pelo deputado federal Márcio Reinaldo, influente político da região. Um entrevistado comenta o contexto vivenciado pelo ex-prefeito:

O prefeito Leone já tinha feito acordo. Mas isso é muito frágil, pois a Copasa é muito visada, pelo aumento de tarifa. Os vereadores titubearam. E nesse contexto entrou o deputado fede-ral Márcio Reinaldo que sempre dizia que tinha recurso federal pra resolver o problema... os famosos R$ 15 milhões, via Câmara Federal. Então, ele entrou e desestabilizou o processo. O prefeito vacilou e preferiu trabalhar com o SAAE.

O possível desgaste político e o fato de a prefeitura poder perder sua autarquia, que lhe possibilitava manobras políticas, foram reforçados por outro entrevistado:

Foi muito por causa de pressão política, pois quase 40% das casas não têm hidrômetro e têm muitos gatos e abatimento de contas de pessoas que pedem a vereadores e grupos políticos. Então, esses grupos começaram a fazer pressão junto ao prefeito pela retirada. Pois não po-deriam fazer mais com a entrada da Copasa.

Além disso, o mesmo entrevistado salientou outra perda e desgaste político para a prefeitura:

Uma das críticas que se fazia na época era que a prefeitura tinha um inchaço. Isso talvez fosse um dos pontos mais críticos em relação ao prefeito. Então, ele já estava inclusive pensando em fazer uma reforma administrativa que teria que reduzir a máquina. Ele teria mais desgaste, pois o SAAE era a válvula de escape para contratar as pessoas. Ele teria que mandar umas 200 pessoas para a rua com a eleição se aproximando. Seria muito complicado. Pressões de toda ordem, receios políticos e promessas de recursos deram o tom do

contexto final do debate, em que o ex-prefeito, sem dar explicações à sociedade, decidiu

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adiar a discussão, tentar recuperar o SAAE e buscar a reeleição do próximo ano, fato em que não logrou êxito.

Empréstimos, Investimentos e Situação Atual A promessa de recursos para a recuperação do SAAE e investimento na melhoria

do abastecimento e na construção de um eficiente sistema de coleta e tratamento de esgotos da cidade, após este período, não se concretizou. Apesar de o recurso não ter sido liberado integralmente, este foi o estopim de outros debates e questionamentos. Segundo um entrevistado: “Este empréstimo veio depois da discussão e, com isso, gerou um novo questionamento na Internet e mídia: por que abrimos mão da Copasa se o SAAE precisa de empréstimo?”

Em suma, houve amplo debate da questão e, em função de recursos federais prometi-dos, a discussão se esvaziou. As declarações de um entrevistado auxiliam na síntese quanto ao entendimento do processo entre a proposta de concessão e a atualidade:

A intenção era que a Copasa chegasse de imediato e assumisse mesmo. Mas a Câmara barrou. Como a gente foi barrando e criando maior discussão, através da comissão de análise, Lei de Saneamento Básico... a coisa vinha rápida e deu uma freada, foi discutindo... e nesse meio da discussão veio a verba do PAC, que foi a gota d’água pro projeto ser retirado. A discussão passava mais pela questão do esgoto e a Copasa vinha com o discurso que iria tratar todo o esgoto pra atender à Meta 2010. Daí entrou o governo federal e liberou a verba do PAC. Daí a gente pensou: se vem essa verba, pra que então a gente vai utilizar da Copasa? Desses recursos, veio só um pouquinho pra iniciar, ainda não veio todo. E agora, o dinheiro não veio e os problemas continuam e vão agravando. Os recursos do PAC são da ordem de R$ 32 milhões para a construção de reservató-

rios e adutoras, com a finalidade de melhorar o atual sistema de abastecimento, enquanto os outros R$ 72 milhões estão previstos para um projeto de captação de água do rio das Velhas. No entanto, de acordo com os entrevistados, ainda não houve investimento nem melhorias na cidade, como pode ser observado nas respostas a seguir:

Não melhorou do debate pra cá, inclusive piorou. Aumentou drasticamente os pedidos de desconto em contas, pelos vereadores. O prefeito na ocasião prometia uma administração diferente pro SAAE. O próprio presidente do SAAE, que na época era o Lairson Couto, também não conseguiu reverter este quadro administrativo, em uma demonstração explícita que a ingerência política é gritante.Do que avaliamos com a comissão em 2007 até hoje, nada foi feito. Não houve a gestão dese-jada e necessária. O SAAE não pegou nenhum empréstimo, ficou tudo no sonho da verba do PAC. A liberação dessa verba está vinculada à transposição da água do rio das Velhas. Ainda está no ar a insegurança em relação ao fornecimento de água: se precisa realmente pegar água de superfície ou se a água subterrânea dá conta do abastecimento. Meu discurso atual é para não tomar nenhuma providência ou obra de 72 milhões sem antes fazer um diagnóstico hidrogeológico, sobre nosso fornecimento de água.

A promessa de recursos foi apontada como uma das principais motivações para a retirada do Projeto de Lei. Como o financiamento ainda não foi liberado, frustrou-se

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quem apoiou a continuidade e recuperação do SAAE. Questionamentos quanto ao endi-vidamento municipal, lentidão na concessão dos recursos e se a decisão de não ter cedido à Copasa foi a melhor opção permeiam as atuais discussões.

Perspectivas Futuras Ainda há muita incerteza em relação ao futuro do saneamento em Sete Lagoas e

não há previsão quanto à rediscussão do assunto SAAE ou Copasa. Não obstante, as especulações começam a aflorar no início de 2009, em virtude da eleição de um prefeito do mesmo partido do governador do Estado, Aécio Neves, do PSDB. Os entrevista-dos apontam que há um novo contexto com a mudança da prefeitura e ajuízam que provavelmente o prefeito cederá às pressões do governo do Estado, Copasa e Projeto Manuelzão. Segundo um dos entrevistados, “O governo este ano já começou com uma pressão ferrenha no estado inteiro pra tentar atingir a Meta, obviamente pelas pretensões eleitorais do governador”. No entanto, poucos dias após a confirmação da vitória nas urnas, o prefeito eleito, Mário Márcio Campolina, em entrevista cedida ao jornal Sete Dias (24/11/2008), quando questionado “Há possibilidade de voltar a ser discutida a vinda da Copasa?”, respondeu:

Não há assunto proibido. Mas não retomarei essa discussão polêmica enquanto não estiver de posse de todas as informações relacionadas ao SAAE e não tiver avaliado, à exaustão, o potencial do SAAE em operar o sistema, dentro de outro modelo de gestão, profissional e comprometido com resultados. Pessoalmente, quero dizer que acredito, dentro desse novo modelo, na viabilidade do SAAE e na autonomia municipal.

Como pode ser constatado, o prefeito preferiu ainda não tomar um posicionamento público em relação a essa questão, preferindo primeiro avaliar as condições do SAAE, antes de tomar qualquer decisão. Segundo um entrevistado, “Agora tem outro contexto, o prefeito eleito é do PSDB e talvez haja uma retomada do processo com a Copasa. Mas é lógico que ele não vai arriscar querer fazer isso agora, pois tem que ter cacife pra isso, pra ele não ser taxado depois”.

Pouco foi feito do debate de 2007 até o presente momento, frente aos inúmeros problemas a serem sanados. Segundo um entrevistado:

Só o que fala desta época pra cá é em choque de gestão do SAAE, pois ele é um cabide de empregos. Ele não precisa de 500, 600 funcionários. Precisa de uma gestão arrojada e ma-quinários novos. O SAAE de lá pra cá tem deixado muito a desejar. Na época da seca tem faltado água demais. Com esta chuva toda está faltando água, por incompetência de capaci-dade de bombeamento. Às vezes acontece algum vazamento e tem que furar quatro buracos pra saber onde está. Além disso, há problemas com o calibre da tubulação, que muitas vezes não aguenta a pressão da água. Vira e mexe o pessoal questiona: será que não seria melhor ter deixado a Copasa entrar?

O sentimento de insatisfação com as condições de saneamento parece repercutir sobre a opinião pública e a decisão tomada pelo ex-prefeito. Ao que parece, a situação não melhorou, o que agrava o descontentamento, pois as esperanças quanto às significativas mudanças desejadas não se concretizaram.

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O SAAE está tendo sua chance de demonstrar competência para cuidar do abasteci-mento de água e do esgotamento sanitário e, caso não logre êxito, ao que tudo indica, será substituído pela Copasa. Como apontou um dos entrevistados,

Estão tentando ver se o SAAE funciona melhor primeiro. Acredito que dentro de um a dois anos, se não funcionar e continuar decadente como está, terá praticamente que entregar. Mas acho que não vão entregar antes de tentar.

Outro entrevistado corrobora com esta percepção ao declarar que:

Esperamos é que as medidas sejam tomadas. De cara, acho que o estudo hidrogeológico pre-cisa ser feito. Em relação ao retorno da discussão sobre a Copasa, o prefeito faz um discurso que é favorável ao SAAE e que deve haver um trabalho para que o SAAE se fortaleça. Mas ele é do PSDB e o Aécio deve estar por trás. O governo de Sete Lagoas é o mesmo governo que tem interesse na expansão da Copasa. E aí, como ele vai aguentar essa pressão? O discurso é um só: temos que tentar reorganizar o SAAE e se ficar provado que não tem jeito, então: Copasa. Aí é entregar e deixar clara nossa incompetência. Fazendo uma leitura subjetiva da questão, tem uma paixão e um orgulho nisso aí. Tem esse lado: entregar...!?

Como pode ser inferido a partir da fala do entrevistado, há um misto de esperança, crédito ao SAAE e sentimento de orgulho, que nega o fracasso e estimula a continuidade de esforços em busca de soluções para não entregar o patrimônio que há tempo compõe um dentre tantos símbolos de orgulho setelagoano. Mudanças nas precárias condições de saneamento ou possíveis discussões futuras a respeito de concessão dependem do arranjo de esforços, pressões políticas e da conjuntura que irá se delinear.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O caso de Sete Lagoas não difere muito de tantos outros municípios que sofreram o

“rolo compressor” de um Estado que prefere centralizar gerências, recursos e ações, como aponta Peixoto (1994). A uma gestão autônoma, que associa ingerência política, admi-nistração ineficiente e falta de capacidade estrutural e humana, com anos de ausência de apoio e investimento federal, se coloca como alternativa a “entrega”, pelo município, de sua autonomia na prestação dos serviços de saneamento básico. Mesmo com tais maze-las, provavelmente Sete Lagoas não apresenta ainda situação sanitária nem mais precária nem melhor que a média dos municípios brasileiros, independente do modelo de gestão adotado. Talvez o que difira o caso estudado de outros, seja o modo como o processo ocorreu. Primeiramente, porque na maioria dos municípios não há sequer debate quando uma prefeitura decide ceder a concessão dos serviços de água e esgotos a outra empresa. Ademais, o modo como o debate foi conduzido e o posicionamento de seus participantes, ou mesmo sua ausência, refletiu em uma decisão que surpreendeu e contrariou o resulta-do comum nesse tipo de discussão. A decisão final do ex-prefeito refletiu em uma cidade dividida entre a insatisfação de um serviço inadequado prestado por uma autarquia com forte ingerência política e a concessão a uma empresa “estranha”, “de fora”, que traz o novo e que pode se concretizar em melhoria dos serviços, mas que pode ocasionar intran-quilidades quanto à elevação das tarifas e ao desemprego. A hesitação do ex-prefeito foi

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a hesitação de uma cidade orgulhosa por gerir de modo autônomo suas águas, apesar das notórias deficiências, e relutar em entregar o que é seu. A decisão foi fruto de um debate em que se posicionar poderia incorrer em riscos políticos e, portanto, a falta de posicio-namento foi uma postura assumida.

A oscilação da opinião pública demonstrou a complexidade do caso e da decisão a ser tomada. A falta de um posicionamento explícito dos representantes do poder pú-blico, sobretudo dos vereadores, que preferiram não levantar bandeiras claramente, do tipo “fora SAAE” ou “venha Copasa”, de certo modo refletiu na população. Mesmo os favoráveis à Copasa não representavam necessariamente posição contrária ao SAAE. Lon-ge de qualquer visão maniqueísta, os diversos lados apresentavam argumentos favoráveis e contrários a ambas as opções, sem que isso incorresse em contradição. Nesse sentido, talvez um posicionamento claro pudesse ter mudado o tom da discussão e resultado em outra “decisão”. Afinal, a retirada do projeto de lei não representou uma decisão, mas apenas o adiamento de um debate necessário e da tomada de medidas urgentes que so-lucionem os problemas locais.

O caso em tela pode ser analisado, ainda, como um processo de aprendizagem, no qual não houve embate claro de grupos com interesses antagônicos e excludentes. A pecu-liaridade do caso reside no profundo debate político que evidencia posições com diversas variáveis. A opinião dos envolvidos evoluía em consonância com a aprendizagem no pro-cesso, seja pela aquisição de novas informações ou a consideração de novas variáveis que influenciavam na decisão a ser tomada (Sabatier, 2007).

A importância do caso estudado reside, sobretudo, na compreensão de um processo recorrente na área de saneamento básico e que tende a ampliar sua frequência com o no-vo marco legal e institucional do setor: a escolha do melhor modelo para a prestação dos serviços. Auxilia no entendimento de que esta decisão é inseparável de um processo polí-tico complexo e não linear, que opera com racionalidades distintas de mero cotejamento maniqueísta entre uma boa e uma má opção. Como discutido, orgulho municipalista, interesses clientelistas e sindicais, olhares eleitoreiros, pressões por parte da esfera estadual de governo, apelos ambientalistas e ambições empresariais8 constituem ingredientes para prefeitos, governadores, dirigentes e técnicos da empresa estadual, dirigentes do serviço municipal, a elite municipal, políticos locais, trabalhadores, movimentos sociais e a popu-lação em geral localizem seus campos, nos termos de Sabatier (1991), nos quais a arena decisória tem lugar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AICHER, C.; DIESEL, V. “Políticas Ambientais na Europa: Leitura a partir da Perspec-tiva do ‘Advocacy Coalition Framework’”. Revista Extensão Rural, DEAER/CPGExR, jan-dez de 2004.ACSELRAD, H. “Justiça ambiental – ação coletiva e estratégias argumentativas”. In: AC-SELRAD, H.; PÁDUA, J. A.; HERCULANO, S. (Orgs.) Justiça ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2004, p.23-39.ASSEMAE/FNS. 1º Diagnóstico Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento. 2ª. ed. Brasília: ASSEMAE – Fundação Nacional de Saúde, 1996.CÂMARA MUNICIPAL DE SETE LAGOAS. Relatório Final da Comissão Especial para Análise e Levantamento de Dados do SAAE, 16 de agosto de 2007.

8 A Copasa, com parte significativa de seu capital em mãos de investidores privados, tem operado com uma lógica cada vez mais empresarial e, certamente, enxerga, em uma cidade com mais de 200.000 habi-tantes, significativo potencial de lucro na sua gestão.

Tarcisio T. Nunes Jr. é ba-charel, mestre e doutorando em Geografia pelo Instituto de Geociências da Univer-sidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

Léo Heller é professor as-sociado do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais; engenheiro civil; doutor em Epidemiologia. E-mail: heller @desa.ufmg.br

Priscila Luiza da Silva é bacharel em Geografia pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal de Mi-nas Gerais. E-mail: priscila [email protected]

Sonaly Rezende é profes-sora adjunta do Departamen-to de Engenharia Sanitária da Universidade Federal de Minas Gerais; engenheira civil; mestre em Saneamen-to; doutora em Demogra-fia. E-mail: [email protected]

Antônio Leite Alves Ra-dicchi é professor asso-ciado do Departamento de Medicina Preventiva e So-cial, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais; graduado em Medicina; doutor em Medici-na Preventiva. E-mail: alalves @medicina.ufmg.br

Artigo recebido em abril de 2010 e aprovado para pu-blicação em dezembro de 2010.

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T. T. NUNES JR. , L . HELLER, P. L . DA SILVA, S . REZENDE, A. L . A . RADICCHI

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A b s t r a c t In Brazil, municipalities’ decision concerning the most adequate model for water and sanitation management is still a controversial issue and a field for frequent conflicts. Addressing the perspective of understanding the policy process on decision-making, this paper presents and analyzes the debate that took place in Sete Lagoas (Minas Gerais) about the possibility of transferring the WSS services to the Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) or keeping it in municipal hands, through the Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE). Information was collected in the City Hall, City Council and local newspapers, as well as through interviews with the main stakeholders, aiming at understanding the political picture, motivations, and interests around the debate. However, the provisional outcome of the case is different than many others that have been taking place elsewhere, after the creation of state companies for water supply and sanitation in Brazil. Public representatives’ lack of a clear political opinion and the divide of the population in two positions – wish for services improvement and fear for tariffs increase and for unemployment – were determinants for the unexpected decision: end of the debate and continuity of the SAAE.

K e y w o r d s Water supply; sanitation; management; concession; participation.

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Resenhas

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DE NOVA LISBOA A BRASÍLIA. A INVENÇÃO DE UMA CAPITAL (SÉCULOS XIX E XX)Laurent Vidal Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009

Carlos Roberto Monteiro de Andrade Professor Doutor do Instituto de Arquitetura e

Urbanismo da Universidade de São Paulo/São Carlos

O cinquentenário de Brasília, completado no ano passado, suscitou a publicação de novos títulos sobre nossa já não tão Nova Capital, ampliando, assim, a historiografia sobre aquela que talvez tenha sido a rea-lização mais emblemática do urbanismo moderno, não apenas em plagas tropicais, mas em âmbito internacio-nal. Dentre os livros lançados, ainda em 2009, destaca--se o do historiador francês Laurent Vidal, que trata dos projetos de mudança da Capital que antecederam a construção da cidade, desde sua primeira formulação no início do século XIX, até os planos elaborados para o concurso de 1957, que resultou na escolha do plano de Lucio Costa e sua imediata implantação. Percorre, assim, um arco cronológico que vai da vinda para o Brasil da família real e boa parte da nobreza, até a inau-guração da cidade, com a materialização – ainda que incompleta – do projeto e, portanto, seu fim.

O livro, publicado originalmente em 2002 (Paris: IHEAL Éditions, 344 p.), tem sua origem, como infor-ma o autor em seu Prólogo, na sua tese de doutorado defendida na Universidade de Paris III em 1995 – sob orientação de Guy Martinière da Universidade de La Rochelle, onde Vidal é professor atualmente – intitu-lada “Um projeto de cidade: Brasília e a formação do Brasil moderno, 1808-1960” (tradução nossa). No en-tanto, no livro, Vidal amplia seu estudo, aprofundando as temáticas de três dos sete capítulos, de modo que temos “um trabalho bastante diferente da tese” (p.9), além de incluir uma bibliografia mais atualizada.

Como outros estudos recentes sobre Brasília feitos por pesquisadores estrangeiros, este de Vidal também procura iluminar questões que a historiografia nacional sempre tergiversou, como a da construção do mito da Nova Capital e, em especial, nesse sentido, a contribui-ção da arquitetura e do urbanismo modernistas, bem

como o papel de Juscelino Kubitschek, que apenas recentemente têm sido revistos. A epopeia nacional que foi a construção de Brasília, vivida como tal por muitos de seus construtores – Oscar Niemeyer foi um dos que se entregou de corpo e alma a essa epopeia, ao lado de tantos outros, todos se vendo como candangos em um canteiro de obras que estava longe de ser uma utopia –, contamina ainda hoje as análises de autores brasileiros, de tal modo que sempre foram poucas e restritas as crí-ticas a Brasília, e quando existiram, foram rapidamente postas de lado.

Lembremos, nesse sentido, as críticas aguçadas e pertinentes de Gilberto Freyre, que desancavam as justificativas dos defensores do plano de Lucio Costa, incluindo o próprio, em relação à ausência de uma abordagem em escala regional, mas que não encontra-ram maiores ressonâncias. Não é de hoje que um certo descompromisso do olhar estrangeiro permite uma visão mais crítica sobre a arquitetura e o urbanismo de Brasília. Já em fins dos anos 1950, diversas vozes, sobretudo italianas, manifestavam pontos de vistas destoantes da unanimidade nacional. De Bruno Zevi, com seu discurso ácido e pouco gentil, a Giulio Carlo Argan, estocando sutilmente a genialidade criativa de Niemeyer, foram diversas as críticas dos italianos à arquitetura e ao urbanismo de Brasília, em especial em 1959, por ocasião do Congresso Internacional Extraor-dinário de Críticos de Arte. Em relação ao urbanismo, vale destacarmos as consistentes críticas de Cesare Chiodi em seu último texto – “Brasília (impressões urbanísticas)”, de 1969 – na mesma linha daquela de Freyre, interpelando a ausência de uma perspectiva regional no plano de Costa.

No entanto, Vidal, ao contrário daqueles críticos do calor da hora, esgrimando argumentos no ardor de polêmicas, disputas políticas e estéticas, busca realizar um trabalho de historiador, distanciado dos aconteci-mentos, até por conta de sua situação como estrangei-ro. Assim, sua investigação apresenta uma perspectiva claramente genealógica das propostas de construção de uma nova capital para o Brasil. Procura reconstituir o percurso de século e meio (1810 a 1960), em que regis-tra seis momentos de formulação do projeto de mudan-ça da Capital, procedendo à análise de cada um deles, relacionando-os a seus contextos históricos específicos, mas também ao “mesmo número de ambições políticas e sociais diferentes” (p.17). O primeiro momento de

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invenção da Capital assinalado por Vidal foi quando da presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro, e nele o autor destaca a proposta do Conselheiro Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira, incluída na sua “Memó-ria sobre o Melhoramento da Província de São Paulo”, apresentada em 1810 ao Príncipe Regente Dom João, e publicada em 1822 pela Tipografia Nacional. Apesar de sua posição destacada na administração real, em uma colônia com ¾ da população negra e em pleno regime escravista, o Conselheiro Oliveira propunha a liberdade do ventre 60 anos antes da Abolição. O mesmo espírito vanguardista, presente no projeto do Conselheiro ainda sob o jugo colonial, para a criação do que seria a Capital de uma corte exilada, reaparece durante o período da Independência por meio de José Bonifácio, já com forte marca iluminista. Tratava-se, então, de construir uma cidade das Luzes, com o nome de Pedrália.

Um terceiro momento que Vidal assinala é o do projeto elaborado no período Imperial pelo diplomata e historiador Francisco Adolfo de Varnhagem para o que seria a Cidade Imperatória. Com o advento da República, temos outro momento, no qual a transfe-rência da Capital é inscrita na Constituição e se cria uma comissão para determinar o local daquela que se chamaria Tiradentes. Durante o Estado Novo, a ideia é retomada com o plano de Theodoro Figueira de Almeida para a construção de Brasília, “a cidade histórica da América”, em 1930. Em 1955 é formula-do o projeto de Vera Cruz pela equipe de arquitetos e engenheiros da comissão encarregada da localização da Nova Capital, coordenada pelo Marechal José Pessoa. Como as propostas anteriores, esta também não vinga, mas, em 1957, sob o Governo do Presidente Juscelino Kubitschek, um concurso de projetos resulta na esco-lha do plano do arquiteto Lucio Costa e, finalmente, Brasília é construída, e inaugurada em abril de 1960. Completa-se então o ciclo de invenção da Nova Capi-tal. E, como destaca Vidal na sua conclusão: “O fim do projeto retira toda a dinâmica de Brasília”. A epopeia durara três anos e pouco, em um processo acelerado de construção preocupado apenas com a data da inaugu-ração marcada previamente.

Antes de enveredar pela história da invenção de Brasília, Vidal assinala uma questão de método, sem, no entanto, aprofundá-la. Partindo da pergunta “para que serve uma cidade quando ela não existe ?” (p.11),

Vidal demarca seu interesse pelo “tempo da cidade como projeto” e, portanto, pelos projetos de cidades. Mas, ao se referir à historiografia, a esse respeito men-ciona apenas Lavedan, Benevolo, Reps e Tafuri, lan-çando a todos no mesmo fosso teórico, e afinando-se com Jean-Claude Perrot em seu “julgamento bastante duro dessa metodologia” (p.12), do qual menciona seu importante trabalho sobre Caen. Vidal pretende cons-truir o objeto “projeto de cidade” no campo da história urbana, alinhando-se à historiografia urbana francesa que vai do período dos Annales e do legado de Braudel, no início dos anos 1970, aos trabalhos de Bernard Le-petit – orientando de Perrot, por sinal – até meados dos anos 1990, com o desaparecimento súbito de Lepetit. Vendo aí uma nova abordagem da história urbana, Vidal quer desvelar, por trás da cidade em projeto, não apenas uma manifestação utópica, mas “o estado de uma sociedade, suas ambições, suas angústias, também suas capacidades, suas sensibilidades” (p.13). Vale di-zer, Vidal se alinha aos estudos em que a cidade deixa de ser contexto material ou cenário da história para ser apreendida como protagonista da história.

Percorrendo os diversos momentos da invenção da Nova Capital, de Nova Lisboa, passando por Ci-dade Pedrália, Imperatória, Tiradentes, Vera Cruz, até Brasília, Vidal aponta no projeto de cidade, enquanto projeto de sociedade, tanto um símbolo de integração social, quanto uma “vocação identitária”, ou, como afirma: “O projeto de cidade é, dessa forma, o vetor de uma refundação nacional” (p.288). Como forma material, mas também como forma simbólica, a cidade, em sua forma primeira, “sua forma projetada”, só pode ser conhecida de modo mais aprofundado a partir de enfoques políticos e culturais, nos seus cruzamentos, como pretende fazer Vidal em relação a Brasília. Finali-zando seu livro, Vidal explicita sua abordagem em dois tempos de um projeto de cidade, “indo da sociedade para a cidade, e da cidade para a sociedade” (p.289).

Sem dúvida, a reconstituição de um processo de projetação que se desenrola ao longo de século e meio, cujos projetos de nova capital surgiam “em momentos de transição ou de ruptura, de questionamentos das relações sociais e culturais que fundamentam a cole-tividade e a identidade nacionais” (p.288), apesar de certo viés estruturalista, permitiu a Vidal iluminar os principais momentos de invenção de Brasília. Algumas lacunas, no entanto, precisam ser apontadas.

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Vidal aborda a construção de Brasília de modo bastante superficial, até porque não é esse exatamente seu objeto de estudo. No entanto, o esquecimento das péssimas condições de trabalho no canteiro de obras, bem como da brutal repressão da polícia – criada es-pecialmente para vigiar e controlar os operários – às tentativas de revolta contra uma situação muitas vezes insuportável para os trabalhadores, impedem, assim nos parece, o aprofundamento dos objetivos do estudo de Vidal. Outra lacuna do livro é não mencionar a realização em Brasília, mas também em São Paulo e Rio de Janeiro, em 1959, do Congresso Internacio-nal Extraordinário de Críticos de Arte, cujo tema foi “Cidade Nova: síntese das artes”. Fundamental para a divulgação e, principalmente, reconhecimento e apro-vação em âmbito internacional do projeto de Brasília, entendemos que esse evento mereceria ser analisado em uma tese que procure desvendar o processo oficial de mitificação de Brasília.

Também o projeto da engenheira Carmem Por-tinho, de 1936, para uma nova capital do Brasil, foi deixado de lado por Vidal, embora tenha sido pioneiro em incorporar os princípios corbusianos no âmbito da cultura urbanística moderna no Brasil. E, ainda, o papel desempenhado pelo Escritório Coimbra Bueno nos anos 1940-50, em insistir para que a mudança da capital se fizesse para território goiano, tampouco foi tratado por Vidal.

Por outro lado, há passagens do livro de Vidal, co-mo, na sua conclusão, aquela referente ao movimento “Rio Capital”, em que confere peso desmedido a um determinado fato – no caso, tal movimento que, con-venhamos, não foi muito além das areias entre as praias de Leblon e Copacabana. Fica então o tom de um olhar estrangeiro, de quem vive nossa história de outro ponto de vista, acentuando em demasia uma manifestação pontual e localizada, conferindo um caráter universal a um localismo. É esse mesmo olhar estrangeiro, des-prendido, mas atento, sobretudo, à documentação exis-tente, que também vai permitir a exploração de novas questões historiográficas sobre Brasília, contribuindo, assim, para a desconstrução de um mito que marcou a história do Brasil e balizou toda a cultura arquitetônica e urbanística do País.

Os inventores de Brasília talvez não pudessem imaginar que sua cria chegaria em seu cinquentenário como a quarta maior cidade brasileira em população,

tendo crescido mais de 20% na última década. Tal crescimento avassalador, para uma cidade que, ainda canteiro de obras, registrava em julho de 1957 apenas 6.283 moradores, tem se dado, sobretudo, nas cidades satélites. É nelas que um capitalismo selvagem prospe-ra, nas barbas do Poder, ao arrepio das leis, ocupando e devastando áreas de preservação ambiental, cons-truindo ilhas da fantasia da especulação imobiliária com seus condomínios-presídios, alcançando elevados graus de violência urbana em todos os seus sentidos, das carências dos serviços públicos à criminalidade sem peias. Nesse quadro de capitalismo urbano primitivo, marcado por casos de corrupção e prisões de autorida-des públicas em pleno ano do cinquentenário, as come-morações foram pálidas e, mesmo no meio acadêmico e profissional da arquitetura e do urbanismo, poucas foram as manifestações. O livro de Vidal ajuda, assim, a desfazermo-nos de certas interpretações apologéticas de Brasília, vendo na cidade modernista seus sentidos mitificadores e, nos discursos de muitos de seus perso-nagens, cargas semânticas marcadamente ideológicas, quando não sustentados por legitimidade divina, que ainda impregnam nossa historiografia.

Para encerramos esta resenha, citemos o refrão do novo “hino” para a cidade em seu cinquentenário, feito pelo rapper GOC a pedido do jornal Folha de São Paulo, e chamado “Outros 50!”:

“Brasília outros 50, Brasília outros 50!O que isso realmente representa?De olho no presente, super concentradoPor um futuro bem melhor que o passadoRomper é dar basta ao que nos acorrentaEducação a principal ferramentaLiberta, refrigera, acelera a missãoOutro Plano bem bolado vem de ‘Fora do Avião’”

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FORDLÂNDIA. ASCENSÃO E QUEDA DA CIDADE ESQUECIDA DE HENRY FORD NA SELVAGreg Grandin Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2010

Fania Fridman Professora Associada do Instituto de Pesquisa

e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq

O livro do historiador e professor da Universidade de Nova York Greg Grandin é uma narrativa da saga da Ford Motor Company na Amazônia brasileira desde o final da década de 1920 até meados dos anos 1940. Não por acaso o autor utilizou no subtítulo as mesmas expressões de Bertolt Brecht em sua peça escrita no final da década de 1920, “Ascensão e queda da cidade de Mahagonny” – onde tudo é permitido desde que se tenha muito ouro –, e do jornalista William L. Shirer em seu livro “Ascensão e queda do Terceiro Reich” publicado em 1960 e resultado de minuciosa busca em documentos, diários, discursos, relatórios e em ar-quivos do regime nazista alemão. O livro de Grandin, escrito com objetividade jornalística, também faz um relato factual muito bem documentado, e vale a pena recuperar aqui os principais acontecimentos daquela epopeia na selva.

O projeto de Henry Ford de plantar seringueiras não se restringiu à busca por alternativas mais baratas para aquisição da borracha, monopolizada pelas colô-nias inglesas na Ásia, necessária à fabricação de pneus, mangueiras, válvulas e outros componentes de seus carros modelos T (o “Ford Bigode”) e A. Este homem, por ter juntado a linha de montagem sincronizada com a produção em massa barateando os custos, era admi-rado por Thomas Edison, Harvey Firestone, Lênin, Trotski, Hitler, Mussolini e o muralista Diego Rivera. No Brasil, sua autobiografia My life and work foi lida por industriais, políticos e escritores, entre os quais, Monteiro Lobato, que a traduziu e prefaciou. No en-tanto, o antissemita e inimigo confesso dos sindicatos que disseminou o medo em suas fábricas nos Estados Unidos por meio de esquadrões armados, assumiu a missão de civilizar os povos atrasados, já que dizia estar

seu país corrompido por sindicatos, políticos, judeus, advogados, militaristas e banqueiros de Wall Street, e onde isto não seria mais possível. A Fordlândia, locali-zada às margens do rio Tapajós, seria um núcleo mo-delo no qual deveriam ser mantidas as virtudes rurais e corrigidos os males urbanos.

Antes da Amazônia, Ford quis cultivar seringuei-ras na Flórida em 1924. No entanto, divulgada tal intenção, ocorreu uma grande especulação no preço da terra, ocasionando o abandono do programa. A escolha deslocou-se para o Brasil, que até o final do século XIX havia sido o maior produtor de borracha do mundo. Além disso, uma Comissão organizada pelo Departamento do Comércio do governo Hoover em 1923 já havia apontado em seu estudo a viabilidade ali de produção de látex. Em termos da concepção “um pé na agricultura e outro na indústria”, a primeira experiência da Companhia Ford se deu em Iron Moun-tain (Michigan) a partir de 1919, com a aquisição de grandes extensões para extração de madeira a ser utilizada nos veículos, e a edificação de uma serraria, três fábricas de peças e uma represa para fornecimento de energia elétrica. A empresa tornou-se responsá-vel pelo saneamento, escolas, energia, pavimentação, construção de igrejas e de salas de recreação, incluindo cinemas, e a reforma dos vilarejos, que assumiam de fato funções municipais. Greg Grandin relata que a Ford criou durante os anos 20 inúmeras cidadezinhas neste “pastoralismo industrial”, o modelo implantado em Fordlândia.

As terras poderiam ter sido obtidas gratuitamente, já que em 1925 o governador do estado do Pará pro-metia doações a quem se dispusesse cultivar seringuei-ras, e em 1926, o prefeito da cidade de Belém oferecia 10 milhões de hectares no Baixo Vale do rio Tapajós. Ainda assim, no ano seguinte, a transação tornou- -se uma negociata quando metade do 1,5 milhão de hectares teve de ser comprada por 125 mil dólares de Jorge Dumont Villares, e a outra metade, constituída por terras públicas, foi recebida sem ônus. A concessão foi ratificada pelo legislativo estadual em setembro de 1927, apesar das críticas dos periódicos de tendência nacionalista tanto da capital do país quanto do Pará.

Ao serem iniciadas as atividades em Fordlândia, assentada na aldeia Boa Vista, de propriedade da família Franco e vendida à empresa, os salários dos trabalhadores variavam de 25 a 50 centavos de dólar,

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enquanto nos EUA os operários da mesma companhia ganhavam os famosos “cinco dólares por dia”. Em 1928 ocorreu a primeira rebelião, conhecida como “A Revolta de quebra-panela”, originada pela comida es-tragada que era servida e pela implantação do sistema self service. No início de novembro, armados de facões e machados, os trabalhadores invadiram e saquearam a cozinha e o depósito, além de ameaçarem os ame-ricanos. Houve um acordo entre as partes, mas este episódio, assim como notícias de suborno e de desvio de verbas, foram publicados no jornal do Partido Comunista e, a seguir, na grande imprensa carioca. As autoridades brasileiras deslocaram soldados armados para manter a ordem.

Em 1929, quando mais de um milhão de dólares já havia sido investido, o número de trabalhadores alcançou em torno de 1.000 pessoas, vindas das al-deias de nativos da região, da seca no Maranhão e no Ceará, dos remanescentes da construção da ferrovia Madeira-Mamoré e do canal do Panamá, da Jamaica, de Barbados e de Santa Lúcia. Adicionando os familia-res, havia cerca 5.000 habitantes em uma Fordlândia de infraestrutura precária. O autor se refere à “favela na selva”, a casas de jogos, bordéis, bares e a lojas de mantimentos, “todos imundos” à beira do rio, ao hos-pital que havia afundado, à serraria com problemas e ao gerador inoperante. Neste mesmo ano começou a tomar forma a cidade, com a colocação de tubulações para água e esgoto e do sistema elétrico. A serraria e a usina geradora foram concluídas, assim como o novo refeitório, o hospital, as estradas e uma ferrovia ligando a serraria aos acampamentos de derrubada de árvores. Todos os equipamentos foram trazidos da matriz norte-americana por navio.

Quanto à habitação, os trabalhadores solteiros não qualificados ainda viviam em galpões coletivos ou nas aldeias próximas, e os casados, nos barracos à margem do Tapajós. Os melhor remunerados alojavam-se em casas de madeira com teto de palha. Os engenheiros, supervisores e os funcionários da serraria – europeus, americanos e alguns brasileiros – viviam em pequenos bangalôs ao longo da Riverside Avenue, da Hillside e da Main Street. Os funcionários americanos mais graduados moravam em casas com varandas e jardins em uma rua larga, a Palm Avenue, à sombra de man-gueiras, com calçadas, hidrantes pintados de vermelho e com iluminação pública. Neste bairro, distante 2 km

da doca, foram erguidos um clube, um hotel, uma quadra de tênis, um cinema e um campo de golfe. Perto desta “vila americana” ficavam de prontidão um rebocador e uma lancha para qualquer emergência.

E a emergência ocorreu ao final de 1930. Com os problemas se acumulando, em um dia em que foi mais demorada a entrada no refeitório, ocorreu um motim. Os trabalhadores destruíram o prédio do escritório, a usina de força, a serraria, a garagem, a estação de rádio e a recepção, cortaram as luzes, atearam fogo nas oficinas, queimaram arquivos, saquearam depósitos e quebraram caminhões, tratores e carros. Quando estavam avançando para o bairro dos americanos, estes fugiram para a lancha. Na manhã do dia seguinte, um destacamento militar do exército controlou a situação, e uma comissão dos trabalhadores apresentou uma lista de reivindicações que incluía: a escolha do local para as refeições dos solteiros; permissão para frequen-tar bares (a bebida alcoólica era proibida); criação de dormitórios mais cômodos; oferta de comida de me-lhor qualidade no refeitório; e suspensão do trabalho na chuva e dos exames periódicos e obrigatórios no hospital. A companhia reagiu com a demissão em massa (com poucas exceções), o fechamento de bares e bordéis e a expulsão dos moradores.

Apesar de encontrar-se à venda, Fordlândia em ruínas não encontrou compradores. A empresa reconstituiu sua força de trabalho e, em seis meses, já se encontravam admitidos 1.500 novos funcionários, que eram obrigados a carregar consigo um livreto com foto, impressão digital do polegar e prontuário policial. Na cidade, onde circulavam carros Ford, surgiram um centro cívico e, na rua principal, lojas como perfumaria, padaria, barbeiro, sapataria, al-faiataria, mercearias, açougue; mercados de verduras, legumes e peixes. Do plano inicial de 400 moradias, ergueram-se inicialmente cem casas de adobe com te-to de palha servidas por água e eletricidade. Em 1933, já somavam 200 habitações com cobertura de metal revestido de amianto e piso de concreto, extremamen-te quentes para o clima local. Cada família recebeu mil metros quadrados de terreno para plantar flores e verduras. A recreação para espantar o tédio, a solidão e a depressão tornou-se assunto urgente – abriram-se playgrounds para crianças, quadra de tênis, campo de golfe, e organizaram-se caçadas, times de futebol, cor-ridas, lutas de boxe, show de variedades, leituras, festas

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de danças, concursos “para o melhor jardim”, além da projeção de filmes.

Mas as seringueiras adoeceram e, apesar de várias tentativas, entre elas os enxertos, a aquisição de semen-tes na aldeia dos índios mundurukus assistidos pelos franciscanos e a descoberta de novos inseticidas, 202 mil ha de Fordlândia foram trocados por uma área em Belterra, distante 115 km rio abaixo e localizada a 48 km de Santarém, em 1934. Quando, no ano seguinte, as plantações encontravam-se tomadas por fungos, Fordlândia, onde já haviam sido investidos 7 milhões de dólares, tornou-se um centro de pesquisa e de vi-veiros para híbridos. Para continuar com o seu projeto de “arcádia industrial”, Ford exigiu que Belterra fosse erguida rapidamente. Em 1936 já havia uma praça com igreja, salão de recreação, cinema ao ar livre, campo de golfe, piscina, caixa d’água, geradores de eletricidade, bangalôs para moradia, jardins e um moderno hos-pital. Vargas visitou-a em outubro de 1940, quando pronunciou um discurso afirmando que “se houvesse neste mundo mais homens como o sr. Ford, não seria necessária nenhuma legislação social”.

Durante o período da guerra, os presidentes bra-sileiro e americano assinaram um tratado garantindo a venda de toda a borracha brasileira para os EUA. No entanto, àquela ocasião, os custos operacionais de Bel-terra e Fordlândia continuavam muito altos, apesar de estarem ali cultivadas, com sementes trazidas do Acre e do Ceilão, quase 4 milhões de árvores do tipo hevea. Henry Ford II, o novo dirigente da empresa e neto do fundador, decidiu vendê-las ao governo brasileiro por 244.200 dólares, o montante equivalente às indeniza-ções devidas aos trabalhadores, quando provavelmente valeriam mais de 8 milhões de dólares (sem contar os 20 milhões até então investidos). As plantações e benfeitorias foram entregues ao Instituto de Pesquisa Agrária do Norte (atual Embrapa) chefiado pelo pro-gressista agrônomo Felisberto Camargo, que sugeriu a criação de cooperativas de seringueiros, ideia retomada bem depois por Chico Mendes. Hoje, as terras de Ford- lândia fazem parte da Floresta Nacional do Tapajós.

Desde 1939, quando Gastão Cruls publicou um artigo na Revista Brasileira de Geografia sobre a Com-panhia Ford Industrial do Brasil, passando pelo roman-ce Bandeirantes e pioneiros, de Clodomir Vianna Moog, de 1954, a saga fordista na Amazônia vem sendo abor-dada em inúmeros trabalhos no Brasil e no exterior.

A estes vem se somar o detalhado e valioso registro de Greg Grandin sobre aquela que Henry Ford pretendeu comunidade modelo ao retomar, a seu modo, a utopia oitocentista de união cidade e campo.

Indicações bibliográficas sobre o tema

DEAN, W. A luta pela borracha no Brasil. Um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989.COSTA, F. A. Grande capital e agricultura na Amazô-nia. A experiência Ford no Tapajós. Belém: Editora da Ufpa, 1993.LOURENÇO, E. Americanos e caboclos. Encontros e desencontros em Fordlândia e Belterra. Dissertação de Mestrado em Geografia. Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, 1999.VICENTINI, Y. Cidade e história da Amazônia. Tese de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 1994.WEINSTEIN, B. A borracha na Amazônia. Expansão e decadência, 1850-1920. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1993.__________. Visões norte-americanas da Amazônia às vésperas da Guerra Fria. Revista do IEB (45), set. 2007.

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ou editores da obra, por exemplo: SOUZA, J. C. (Ed.). A experiência. São Paulo: Vozes, 1979; ou ainda, a expressão “et al.” (SOUZA, P. S. et al.).

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