retórica da agudeza

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LETRAS CLÁSSICAS, n. 4, p. 317-342, 2000. RETÓRICA DA AGUDEZA JOÃO ADOLFO HANSEN* Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas da Universidade de São Paulo RESUMO: O texto é uma exposição da doutrina seiscentista da agudeza. A agudeza é o efeito inesperado de sentido obtido pela condensação metafórica de conceitos extremos. Relacionando a prática da agudeza à racionalidade de Cor- te das monarquias absolutistas do século XVII, exemplifica com poetas, orado- res e preceptistas, como Góngora, Gracián, Donne, Shakespeare, Gregório de Matos, Vieira, Tesauro, Pallavicino, Peregrini etc., a apropriação e a aplicação das autoridades retóricas gregas e latinas na produção do “belo eficaz”. PALAVRAS-CHAVE: racionalidade de Corte; retórica; metáfora; agude- za; conceito. Nas preceptivas retóricas do século XVII, a agudeza é definida como a metáfora resultante da faculdade intelectual do engenho, que a produz como “belo eficaz” ou efeito inesperado de maravilha que espanta, agrada e persuade. A agudeza também pode resultar do furor e do exercício. Aqui, vou só falar das engenhosas, citando preceitos e exemplos de seus grandes teóricos seiscentistas, Matteo Peregrini, Sforza Pallavicino, Baltasar Gracián e Emanuele Tesauro. Quando definem suas várias espécies, propõem que a principal é a de artifício ou artificiosa, que busca a “formosura sutil”. Aliás, o primei- ro sinônimo do termo agudeza dado no Tesoro de la lengua castellana, editado em Madri em 1611 por Sebastián de Covarrubias Orozco, é “sutileza”. Em Agudeza y Arte de Ingenio, de 1644, Gracián apresenta a seguinte definição dela: “Consiste, pois, este artifício conceituoso em uma primorosa concordância, em uma harmônica correlação entre dois ou três cognoscíveis extremos, expressa por um ato do entendimento” (Gracián, 1960, p. 239). Conforme Gracián, há três espécies de agudezas artificiosas: 1. agudeza de “conceito”, que supõe a “sutileza do pensar”, ou, especificamen- te, o ato do entendimento que descobre correspondências inesperadas entre coisas;

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O texto é uma exposição da doutrina seiscentista da agudeza. Aagudeza é o efeito inesperado de sentido obtido pela condensação metafórica deconceitos extremos. Relacionando a prática da agudeza à racionalidade de Cortedas monarquias absolutistas do século XVII, exemplifica com poetas, oradorese preceptistas, como Góngora, Gracián, Donne, Shakespeare, Gregório deMatos, Vieira, Tesauro, Pallavicino, Peregrini etc., a apropriação e a aplicaçãodas autoridades retóricas gregas e latinas na produção do “belo eficaz”.

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  • LETRAS CLSSICAS, n. 4, p. 317-342, 2000.

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    RETRICA DA AGUDEZA

    JOO ADOLFO HANSEN*Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas

    da Universidade de So Paulo

    RESUMO: O texto uma exposio da doutrina seiscentista da agudeza. Aagudeza o efeito inesperado de sentido obtido pela condensao metafrica deconceitos extremos. Relacionando a prtica da agudeza racionalidade de Cor-te das monarquias absolutistas do sculo XVII, exemplifica com poetas, orado-res e preceptistas, como Gngora, Gracin, Donne, Shakespeare, Gregrio deMatos, Vieira, Tesauro, Pallavicino, Peregrini etc., a apropriao e a aplicaodas autoridades retricas gregas e latinas na produo do belo eficaz.PALAVRAS-CHAVE: racionalidade de Corte; retrica; metfora; agude-za; conceito.

    Nas preceptivas retricas do sculo XVII, a agudeza definida como a metforaresultante da faculdade intelectual do engenho, que a produz como belo eficaz ouefeito inesperado de maravilha que espanta, agrada e persuade. A agudeza tambm poderesultar do furor e do exerccio. Aqui, vou s falar das engenhosas, citando preceitos eexemplos de seus grandes tericos seiscentistas, Matteo Peregrini, Sforza Pallavicino,Baltasar Gracin e Emanuele Tesauro. Quando definem suas vrias espcies, propemque a principal a de artifcio ou artificiosa, que busca a formosura sutil. Alis, o primei-ro sinnimo do termo agudeza dado no Tesoro de la lengua castellana, editado em Madriem 1611 por Sebastin de Covarrubias Orozco, sutileza. Em Agudeza y Arte de Ingenio,de 1644, Gracin apresenta a seguinte definio dela: Consiste, pois, este artifcioconceituoso em uma primorosa concordncia, em uma harmnica correlao entre doisou trs cognoscveis extremos, expressa por um ato do entendimento (Gracin, 1960, p.239). Conforme Gracin, h trs espcies de agudezas artificiosas:

    1. agudeza de conceito, que supe a sutileza do pensar, ou, especificamen-te, o ato do entendimento que descobre correspondncias inesperadas entrecoisas;

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    2. agudeza de palavra ou verbal, que consiste nas correspondncias ines-peradas estabelecidas entre as representaes grficas , sonoras e conceituais;

    3. agudeza de ao, relativa a sentidos agudos produzidos por gestos enge-nhosos.

    A agudeza que resulta da comparao de conceitos a mais perfeita, encon-trando-se na base mesma da inventio retrica: ela raio e luz gerados pelo enten-dimento do autor discreto. Na comparao dos conceitos, o juzo os decompedialeticamente, no sentido dado ao termo dialtica no sculo XVII, anatomia ouanlise, para estabelecer semelhanas e diferenas entre eles. No caso, o juzo perspicaz, penetrando nas mais recnditas partes dos conceitos analisados. Simultane-amente, a versatilidade do autor sintetiza as semelhanas e diferenas que foram acha-das em uma forma nova e inesperada, que causa espanto ou maravilha. Essa forma uma metfora e, quando metfora continuada, uma alegoria. Como a agudeza resultade uma operao dialtica, como anlise, e de uma operao retrica, como elocuo,tropo ou figura, os preceptistas do sculo XVII costumam cham-la de ornato dialtico.E, quando hermtica, como ocorre na poesia magnfica de Gngora, ornato dialticoenigmtico.

    Bom exemplo de agudeza verbal o caso narrado por Baldassare Castiglioneem Il Libro del Cortegiano, de 1528, sobre um fidalgo castelhano que, vendo entrar nasala do trono um casal nobre vestido com roupas de damasco branco, o marido fessimoe a mulher belssima, diz para a rainha Isabel, a Catlica: Esta a dama, aquele oasco. A expresso aguda, pois resulta da decomposio ou anatomia da palavradamasco em dois conceitos metafricos, dama e asco, apropriados engenhosa-mente ocasio. Exemplo de agudeza de ao podia ser aqui o de outro espanhol, quecomandava um dos navios da armada que veio a Pernambuco em 1640 para combateros holandeses de Maurcio de Nassau. Seu barco bate em um recife e faz gua; enquan-to a tripulao foge, ele abre o livrinho das Metamorfoses e comea a comentar com oimediato o sentido de uma metfora, afundando com Ovdio. Segundo a opinio doscontemporneos, ele aproveitou a ocasio para fazer agudamente bem o que de qual-quer modo sempre acontece depois, nunca se sabe se mal. Um exemplo de agudezaque se pode achar na correspondncia de objetos o de um Acto Especulativo e Practicorealizado numa academia de Medicina da Universidade de Coimbra, em 3 de fevereirode 1733, em que foram feitas anatomias do Sol, da Lua, do Ar, da Luz e dos Olhos.Uma das proposies defendidas afirma o seguinte: Aclara-se que a luz cousaobscurssima, demonstrando-se que a luz visvel, clarssima, sombra, por ser emana-o ou criao de Deus, ao passo que o prprio Deus, por ser perfeito, luz absoluta,

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    mas invisvel, e, logo, escurssima. Mais um exemplo de agudeza, que mistura voz egesto e agrada muito, pois ao mesmo tempo move dois sentidos, dado pelo condeEmanuele Tesauro no seu tratado sobre o conceito engenhoso, Il CannocchialeAristotelico, de 1654, ele mesmo um texto agudssimo, pois Tesauro afirma t-lo escritoseguindo uma analogia de proporo: assim como Galileu aplicou a luneta recente-mente inventada na Holanda observao dos planetas, seu tratado a aplica Retricaaristotlica, para ver de perto o que o filsofo viu de longe, amplificando o que no textodo grego pequeno e observando vrias vezes o que viu uma s. A agudeza de que falei o exemplo de um histrio que, recitando para Nero e o Senado reunidos um versopattico de um poeta antigo,

    Heu mi Pater. Heu mea Mater. Orcus vos tenet,

    ao dizer Heu mi Pater, acompanhou as palavras com gesto de pessoa que bebe. E, dizen-do Heu mea Mater, fez o gesto de pessoa que nada, aludindo com eles aos dois crimes deNero, o do envenenamento do padrinho e o da me afogada. Dizendo depois Orcus vostenet, ergueu a voz e apontou Nero aos senadores, como se dissesse Eis o demnio quevos domina, sendo muito aplaudido. Pela agudeza de um gesto, um fato digno de lgri-mas tornou-se ridculo.

    * * *

    Nas prticas de representao do sculo XVII, h outros nomes para o ornatodialtico ou agudeza: conceito, concetto, concepto, conceito engenhoso, argcia, argutezza,acutezza, wit, Witz, pointe, entimema e silogismo retrico. Ento, sua doutrina e sua prti-ca so internacionalizadas e reciclam a Retrica aristotlica (principalmente o Livro III,1450, que trata da elocuo) e a Potica, XXI, alm de vrios autores latinos. Basica-mente, a doutrina retoma o pressuposto aristotlico, exposto no De anima, de quequalquer discurso por natureza metafrico, pois os noeta, os conceitos, so imagensmentais que substituem os aistheta, os objetos da percepo. Os signos verbais, orais eescritos, so entendidos como imagens das imagens mentais. Aristteles tambm dizem outro lugar que so prprias do orador e do poeta as metforas que tornam a obraaguda: Agudas, pois, so as expresses do pensamento que permitem um aprendizadorpido (Arist.,1410 b). Produzida proporcionalmente pelo engenho, a agudeza con-vm ao discurso civil: aristotelicamente, ela astia, termo traduzido por urbanitas, emRoma. No sculo XVII, ela define a civilidade ou o estilo prprio do corteso.

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    A agudeza deve ser formulada rapidamente, porque s tem efeito se a premedi-tao no for evidente; obtm-se a rapidez eliminando-se o conectivo da comparaodos conceitos, a prtase da similitude, como. Por exemplo, vamos supor a compara-o Esse papagaio do Brasil verde como o ms de abril da Europa, em que secompara o conceito /papagaio / com o conceito /abril/ por meio do conceito /verde/,que um gnero comum a ambos. A comparao, no caso, implica 3 termos: A(papagaio) B( verde) C( abril): Esse papagaio verde como abril. Se eliminamos a prtase dasimilitude, o conectivo como, podemos dizer: Esse papagaio abril, e, assim, pelaequivalncia A B, substituir o termo A(papagaio) por B(abril): Esse abril.Como se trata de /papagaio/, podemos propor, com agudeza: Esse abril falante, comoencontramos em um poema da Fnix Renascida, a grande antologia da poesia da agude-za feita em Portugal no sculo XVIII. A imagem resultante algo nonsense, como todametfora, mas agrada justamente pela dificuldade inicial de estabelecer a relao ime-diata entre os conceitos. A imagem obtida um entimema ou um silogismo retrico,como diz Quintiliano, quando retoma os Analticos de Aristteles (I,II,27, 70a 10):uma deduo baseada na semelhana de dois termos com um terceiro. Funciona comouma condensao rpida deles, efetuada como metfora engenhosa pela analogia deatribuio: A:B:C.

    O Annimo da Retrica para Hernio (IV, 19) e Ccero ( Partitiones oratoriaeVI,18,22; De oratore III) escrevem que o discurso ilustre ou brilhante obtido pelo usode palavras escolhidas (delecta), de metforas( traslata), de hiprboles (supralata) e desinnimos (duplicata). Tais palavras produzem a evidentia ou a visualizao imaginosada matria tratada no discurso. De novo, Aristteles: para estimular o pathos em simesmo e nos ouvintes, o orador que pretende qualificar determinado assunto produzrepresentaes chamadas phantasiai (Retrica, I,3,1358 b). Retomando Aristteles eCcero, Quintiliano escreve, na Institutio oratoria 6,2,29, que as imagens fantsticas soproduzidas pelo engenho e que este cultivado com o exerccio da imitao dasauctoritates dos vrios gneros. A figura das fantasias a evidentia, como disse, feitacomo descrio detalhada de um objeto por meio da enumerao ornada de suas par-ticularidades reais ou fantsticas. Na representao do sculo XVII, a evidentia prefe-rencialmente aguda. Por exemplo, no incio da Soledad Primera, como sabem, Gngorafigura Jpiter com imagens que nos fazem ver um touro que apascenta estrelas numcampo de safira:

    Era de el ao la estacin floridaen que el mentido robador de Europa media luna las armas de su frente,

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    y el Sol todos los rayos de su pelo-, luciente honor del cielo,en campos de zafiro pasce estrellas.

    Mais um belssimo exemplo de evidentia engenhosa o produzido por Vieiracomo alegoria de hipcritas, no sermo de Santo Antnio, que pregou no Maranhoem junho de 1654. Ouam, por favor, como vai desdobrando o termo polvo emimagens, para depois fornecer ao ouvinte o sentido que as interpreta:

    [...] temos l o irmo polvo, contra o qual tem suas queixas, e grandes,no menos que So Baslio e Santo Ambrsio. O polvo com aquele seucapelo, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, pareceuma estrela; com aquele no ter osso nem espinha, parece a mesmabrandura, a mesma mansido. E debaixo desta aparncia to modesta,ou desta hipocrisia to santa, testemunham contestamente os dous gran-des Doutores da Igreja latina, e grega, que o dito polvo o maior traidordo mar. Consiste esta traio do polvo primeiramente em se vestir, oupintar das mesmas cores de todas aquelas cores, a que est pegado. Ascores, que no camaleo so gala, no polvo so malcia; as figuras, queem Proteu so fbula, no polvo so verdade, e artifcio.

    * * *

    No sculo XVII, os preceptistas afirmam no s que a agudeza metfora, mas,principalmente, que a metfora o prprio fundamento da agudeza e, de modo geral,de toda representao. Como se l no tratado de Tesauro, a metfora :

    [...] Grande Me de todo engenhoso Conceito: clarssimo lume da Ora-tria, & Elocuo Potica: esprito vital das mortas Pginas:agradabilssimo condimento da conversao Civil, ltimo esforo doIntelecto: vestgio da Divindade no nimo Humano (Tesauro, 1670).

    As doutrinas italianas e ibricas da agudeza dos sculos XVII e XVIII que circu-laram nas colnias espanholas e portuguesas da Amrica, principalmente por meio dasordens religiosas, como a Companhia de Jesus e novamente lembro os tratados deMatteo Peregrini, Sforza Pallavicino, Emanuele Tesauro, Baltasar Gracin, FranciscoLeito Ferreira so uma interpretao neo-escolstica de Aristteles e de autoreslatinos. Todas elas incluem-se na racionalidade de Corte das monarquias absolutistas e

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    propem a agudeza como a forma prpria das maneiras de falar e agir do corteso.Lembro, com isso, que a agudeza deve ser entendida como uma categoria histrica, ouseja, como um modo de pensar e uma forma potica especficos do Antigo Regime,no como a futilidade afetada e vazia de que ainda vo falando os nossos manuais dehistria literria caudatrios do idealismo alemo.

    Acredita-se no sculo XVII que o intelecto humano um espelho sempreidntico a si mesmo e simultaneamente sempre vrio, que exprime imagens dos pen-samentos das coisas postas sua frente. Assim, o discurso interior do pensamento entendido como um contexto ordenado de imagens chamadas fantasmas, que exis-tem na mente antes da representao exterior; quando os fantasmas so exteriorizados,o discurso e outras formas so definidos como ordem de signos sensveis copiadosdas imagens mentais como tipos do arqutipo. Por isso, os signos, em geral, so en-tendidos como definio ilustrada, como encontramos no prefcio do tratado deCesare Ripa, Iconologia, de 1593. Obviamente, as representaes de que falo no socartesianas, por isso no fazem distino entre conceito e imagem. Todo signo ento definido como a metfora que relaciona o pensamento e a sua representaoexterior, ou, em termos seiscentistas, como a metfora que relaciona a argciaarqutipa e suas formas exteriores. As formas exteriores- pintura, escultura, poesia,msica, dana, emblemtica, vesturio, cores, gestos etc. so classificadas segundoo sentido antigo de graphein, verbo relativo faculdade do desenho, significando-secom a noo de desenho a forma interior ou o desenho interno que se produz naconscincia quando esta iluminada pela luz da Graa inata.

    Na representao, as metforas exteriores dramatizam o desenho internocomo a virt visiva dos preceptistas italianos do sculo XVI, aplicando-se agudamen-te a tcnica romana de evidentia por meio de letras, sons, linhas, volumes, cores egestos. Fala-se ento que a pintura realiza o desenho interno por meio da aritmtica,da geometria e da ptica, como commensuratio ou proportio, para produzir o fingi-mento de sombras, cores e volumes, enganando a vista do espectador pela perspec-tiva que faz com que coisas distantes paream menores e vice-versa, da mesma ma-neira como a poesia e as outras artes do discurso calculam, com proporo, os efeitosvisualizantes que movem os afetos. O pintor grego Timantes teria figurado o dedodo p de Polifemo com a mesma altura das colunas de um templo. A sindoque deTimantes engenhosamente aguda: vendo apenas a parte monstruosa, o observadorimaginaria a dimenso total do corpo ausente do cclope e o espanto lhe proporcio-nava prazer intelectual, pois tambm se maravilhava com o engenho e o artifcio dopintor.

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    Como disse, a metfora aguda evidencia para o destinatrio a excelncia do juzodo autor iluminado pela luz da Graa no estabelecimento de relaes inesperadas entrecoisas e palavras. No caso, o destinatrio capaz de refazer o processo de construo daagudeza to perspicaz e verstil, ou seja, engenhoso, como o autor; por isso, nas socie-dades de Corte do sculo XVII, a agudeza era um dispositivo poltico que conferia distin-o. Ou seja: as prticas seiscentistas da agudeza no so barrocas, como so classifica-das hoje; e nelas no h nenhuma noo modernista, moderna, vanguardista ou j ps-utpica de autonomia das artes ou de esttica. Nelas, como disse, a representao exte-rior imita as articulaes do pensamento, que so as das coisas, as res da inventio; por issomesmo, as artes que operam com agudezas pressupem uma lgica da imagem, sempredefinida como a imagem retrica que funciona nas obras como um argumento sensvelaplicado ao desenvolvimento das tpicas. No ato da inveno, quando o poeta improvisaoralmente ou escreve, a forma do conceito interior da sua mente recortada em umamatria, som da voz ou letra escrita com pluma de ganso. A forma tambm poderia serrecortada em uma substncia plstica, como pintura ou escultura, desde que obedecesseaos mesmos critrios mimticos do gnero. Os processos da inventio e da elocutio funda-mentam no uma esttica, que pressupe a psicologia do autor, a autonomia esttica ea livre-concorrncia da obra no mercado como a mercadoria originalidade apropriadapor pblicos dotados de autonomia crtica, mas uma tcnica, que um saber-fazer ou umacincia retrica dos preceitos, procedimentos tcnicos e efeitos verossmeis e decorososespecfica da racionalidade no-psicolgica da mmesis aristotlica reciclada neo-escolasticamente. Dizendo de outro modo, o conceito representado exteriormente oresultado de um juzo que atua no engenho como causa eficiente da imagem mental.Vejamos um exemplo dado por Gracin:

    [...] juntou [...] Ovdio, em uma pedra chamada onx em latim, e nonosso castelhano cornarina, este mote: Flamma mea, e a enviou assimsobrescrita, querendo dizer : O, nix, flamma mea!, que ainda em roman-ce diz agudeza: Oh, neve, chama minha! (Gracin, 1960, II).

    Ovdio agudo porque decompe, no vocativo: O, nix, com que se dirige amante, chamada Nix, /neve/, o nome da pedra: onix. E escreve, na mesma pedra, otermo flamma, chama, associado s noes de /fogo/ e /calor/ , em oposio a nix, termoassociado s noes de /brancura/ e /frio/. Com isso, alm de /frio/quente/, produzoutro contraste, /preto/branco/, ambos adequados a Eros.

    * * *

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    T. S. Eliot dizia sobre a poesia metafsica inglesa que os autores do sculo XVIIpossuam um mecanismo de sensibilidade que podia devorar intelectualmente qualquerespcie de experincia . Segundo Eliot, as imagens produzidas por poetas como Donneso caracterizadas por uma compulso da semelhana, que faz com que construam opoema como harmonia de dissonncias. Nesse mesmo sentido, podamos dizer que tam-bm outros grandes poetas do sculo XVII, como Gngora, Quevedo, Marino, D. Fran-cisco Manuel de Melo, Sor Juana Ins de la Cruz, Honor dUrf, Andreas Gryphius,Shakespeare, Marvell, Gregrio de Matos, estavam empenhados, em maior ou menorgrau, em encontrar equivalentes verbais para os mais variados estados da mente e dosafetos. Por isso, toda metfora que produzem intelectual; as paixes so naturais, masno informais, porque sua codificao retrica; por isso, tambm as agudas baseiam-seem temas e termos j conhecidos do costume annimo, ou seja, em elencos de tpicas,formas e gneros armazenados como uma memria coletiva de usos autorizados. Ospoetas sempre buscam a novidade da elocuo engenhosa, mas as tpicas com que traba-lham fazem parte do todo social objetivo. Geralmente, vo do conceito mais geral que sefaz do tema para conceitos por assim dizer perifricos, que tornam a leitura do poema umexerccio de dificultao crescente. O poema sempre corre o risco da incongruncia,mas, tratando-se de grandes poetas, a dificultao intelectualmente controlada: mes-mo as incongruncias resultam de um clculo. Assim, o intervalo semntico entre anoo abstrata ou conceito e a metfora que a representa exteriormente pode ser maiorou menor quanto maior for o intervalo, maior a novidade da combinao de coisas jconhecidas. Afinal, como lembrava Ricoeur, s h persuaso a respeito de coisas j co-nhecidas. A idia geral dos poetas e preceptistas do sculo XVII a de que o espritoliteralmente cai, quando posto em contato direto com a chateza e a chateao daverdade nua. Logo, Gngora. Como no jogo de xadrez, quando ocorre um lance inespe-rado, mas totalmente previsto por convenes, as metforas agudas operam em um in-tervalo semntico que as torna tendencialmente hermticas; como disse, sempre obede-cem a regras. Nenhuma psicologia, nenhum expressivismo, mas sempre a demonstraode uma idia prismaticamente dividida, redividida e metaforizada por seu gnero, espci-es e acidentes. A poesia da agudeza , quase sempre, uma expanso do discurso parazonas laterais e inesperadas de significao. Por exemplo, em um dos sonetos de Msicado Parnaso, Manuel Botelho de Oliveira trata do amor de Anarda, sua musa, escrevendo:A serpe, que adornando vrias cores, / com passos mais oblquos que serenos,/ entrebelos jardins, prados amenos,/ maio errante de torcidas flores. Ele compara serpe emaio, o rptil com o ms, por meio de uma metfora de proporo pela qual A:B::C:D:serpente est para movimento fsico assim como maio est para movimento temporal. Outroexemplo: Andrew Marvell, em The Coy Mistress, prope amante tmida que, se tives-sem mundo e tempo suficientes, o recato dela no seria crime; declarando em seguida

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    que a amaria dez anos antes do Dilvio e que ela, se isso a agradasse, continuariarecusando-se a entregar-se a ele at a converso dos Judeus, declara: My vegetable loveshould grow/ Vaster than empires and more slow... versos em que o amor vegetal quecresce, verde-ertico da esperana mais vasta que os imprios, e mais lento. No caso,o leitor tem que descobrir qual a relao semntica entre o adjetivo e nome emvegetable love. Ela no imediatamente evidente, apresentando-se com certaindeterminao conceitual; mas sua evidncia sensvel impe-se como natural. Outroexemplo: Gngora, em um soneto de 1583 dirigido a uma dama, prope-lhe que gozeo corpo e vrias partes dele, enquanto tempo, pois o ouro polido do cabelo, o lrio daface, o cravo dos lbios etc. se transformaro em violeta truncada, imagem que condensaas rugas da velhice e o roxo catlico das exquias, alertando-a de que tudo ser terra,p, cinza, fumo, nada. Um dos sonetos da lrica atribuda a Gregrio de Matos o imita;nele, a persona lrica dirige-se a uma dama chamada Maria. Para figurar a passagem dotempo e a morte no fim de tudo, substitui a transformao dos lrios e cravos da juven-tude na violeta da velhice, que encontramos em Gngora, pela figurao de um cavaloque trota, pisando cruelmente flores: goza da flor da mocidade/ que o tempo trota atoda ligeireza/ e imprime em toda flor sua pisada. Mais um exemplo: em Romeu eJulieta, Shakespeare figura a aproximao dos amantes por meio da alegoria de crian-as felizes que fogem dos livros escolares; simetricamente, a separao o olhar decrianas que vo escola com ar pesaroso : Love goes toward love as school-boys fromtheir books/ But love from love, toward school with heavy looks (Shakespeare, Romeo andJuliet, II, II).

    Todas as metforas desses versos so agudas, algumas agudssimas; sua avalia-o contempornea considerava, antes de tudo, se estavam de acordo com os precei-tos tcnicos da arte, ou seja, se estavam adequadas verossimilhana e ao decoroespecficos do gnero das composies em que aparecem. Por outras palavras, a mesmaagudeza podia ser classificada como inpcia e seu efeito de novidade seria tido comoafetao. Em todos os casos, o desempenho apto da agudeza caracteriza a emulaobem feita. Como sabem, a emulao a imitao que supera o modelo imitado. o queescreve Emanuele Tesauro:

    Chamo pois imitao uma sagacidade com a qual, quando para ti proposta uma metfora ou outra flor do humano engenho, considerasatentamente as suas razes e, transplantando-a em diferentes categoriascomo em um solo cultivado e fecundo, propagas outras flores da mesmaespcie, mas no os mesmos indivduos (Tesauro. Arguzie umane. IlCannocchiale Aristotelico; 1670).

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    Basicamente, a emulao visa a produzir, por outros modos e por outros meios,um prazer semelhante ou superior ao da obra imitada. Para isso, pretende produziragudezas mais agudas que as da obra imitada. Definindo a emulao, o cardeal SforzaPallavicino prope, em seu Arte dello Stile, ove nel cercarsi dell Ideal del scrivere Insegnativo,de 1647, um exemplo fornecido por Plato: na inveno da fbula, nos lugares em queos caracteres aparecem maiores, pode-se refigur-los, mas como caracteres diminu-dos, mantendo-se a mesma fbula. Assim, obviamente, h regras para emular os auto-res sem roub-los ou meramente imit-los. A primeira delas, como regra universal,consiste em procurar qual a propriedade ou o predicado que produz prazer na obraque se vai emular. Pallavicino adverte que tal predicado um gnero comum queinclui espcies muito diversas de invenes possveis. Depois que se descobre o gnero,o passo seguinte encontrar, com o engenho, uma das espcies que seja semelhante obra imitada quanto ao predicado, duma parte, e que, pelo fato de ser apenas seme-lhante, seja tambm diferente. A diferena deve ser de tal sorte que faa com que opredicado encontrado participe mais e melhor nela. Assim, o modo de produzir seme-lhanas e diferenas agudas distingue emulao de imitao servil, que lembra a imita-o escolar.

    Segundo esses critrios, as preceptivas seiscentistas so formuladas como umalgica de tpicas da inveno e da disposio e uma tcnica da sua elocuo aguda. Porexemlo, em 1639, em seu Delle Acutezze, Sobre as Agudezas, de que pretendo falaradiante, Matteo Peregrini prope muito minuciosamente 25 cautelas para o uso dasagudezas; em 1644, Baltasar Gracin formula, em seu Agudeza y Arte de Ingenio, vriascrisis, anlises, definies e exemplos de gneros, espcies e circunstncias da agude-za. Mas certamente Tesauro, em Il Cannocchiale Aristotelico, que dilata a proposiomodelar das tpicas, sistematizando a teoria da agudeza como teoremi pratici, teoremasprticos, que permitem, como afirma, produzir e usar as metforas agudas com propor-o.

    Para formular seus teoremas prticos, Tesauro compe um ndice categri-co, uma tabela, recorrendo s dez categorias aristotlicas. A aplicao engenhosa dascategorias permite formular ditos agudos, pois o engenho a capacidade intelectual depenetrar nas coisas da inventio por meio delas. So dez, como sabem: substncia, quantida-de, qualidade, relao, ao, paixo, situao, tempo, lugar e hbito. Cada uma delas, quandoaplicada a um tema determinado, permite fazer uma definio e, ao mesmo tempo,uma variao elocutiva dele. Por isso, a agudeza definida por Tesauro como ornatodialtico ou imagem produzida como sntese rpida de uma ou de vrias anlisescategoriais dos conceitos descobertos no tema tratado. Citando exemplos dados porTesauro, passo a falar das categorias e dos seus usos agudos.

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    Tesauro explica que, sob a categoria de substncia, vem Deus, ainda que estejaacima de toda categoria: as divinas pessoas da Trindade; a Idia; os deuses fabulosos.Os deuses celestes, areos, marinhos, terrenos, infernais; os heris, homens deificados.Anjos e demnios. O cu e as estrelas. Os signos celestes e as constelaes, ou imagensda oitava esfera. O Zodaco e todos os crculos e esferas imaginrios Os quatro elemen-tos, os vapores, que so fumos quentes, e as exalaes, frios. O fogo, a esfera gnea, osfogos subterrneos. O ar e seus meteoros, estrelas cadentes, cometas, raios, ventos,neves, chuvas. A gua e os mares, rios, fontes, lagos. A terra, campos, prados, solides,montes, colinas, promontrios, vales, precipcios. Os corpos, mistos inanimados, pe-dras, mrmores, gemas, metais, minerais, plantas, ervas, flores, rvores, arbustos, co-rais. Animais terrestres, feras, e aquticos, e areos, pssaros, e os monstros. Homem,mulher, hermafrodita... Existe tambm a substncia artificial, ou as obras de toda arte:nas cincias, livros, penas, tintas; na matemtica, globos, mapas-mundi, compassos,esquadros. Na arquitetura, palcios, templos, tugrios, torres, fortalezas. Na arte mili-tar, armas, escudos, espadas, tambores, tubas, cornetas, bandeiras, trofus. Na pinturae escultura, quadros, pincis, cores, esttuas, escalpelos. Alm da substncia fsica, oengenho tambm considera a substncia metafsica, como o Gnero, a Espcie, a Dife-rena, o Prprio, o Acidente em geral: o nome, o cognome e noes semelhantes.Aqui, Tesauro d um pequeno aviso: as metforas de acidente so mais convenientesque as metforas de substncia, porque implicam relaes mais adequadas represen-tao visualizante prpria da evidentia.

    Ainda, sob a categoria de quantidade, o engenho deve considerar a quantidadedo tamanho: pequeno, grande; longo, curto. A quantidade numrica: nenhum, um, doisetc., muitos, poucos. A quantidade de peso: leve, pesado. A quantidade de apreo: preci-oso, vil. E a quantidade em geral: medida, parte, todo: perfeito, imperfeito: finito, infini-to, divisvel, indivisvel, proporcionado, desproporcionado, maior, menor, igual etc.Pela categoria qualidade, so inventadas imagens que pertencem viso: visvel, invis-vel, aparente; belo, disforme; claro, obscuro: branco, negro, prpura etc. Ou que per-tencem audio: som, silncio, som harmnico e desarmnico. Ao olfato: suave,forte. Ao gosto: saboroso, insosso etc. Ao tato: quente, frio, seco, mido, liso, speroetc Aqui, temos tambm as qualidades figurais : direito, torto, redondo, quadrado, agu-do, obtuso etc. E o que Tesauro chama de qualidades exteriormente denominantes: fama,infmia; honra, desonra, fortuna, infortnio. Ou as qualidades internas naturais: so,doente, prazeroso, doloroso. Tambm existe a qualidade de paixes: alegria, tristeza,amor, dio, esperana, medo. E qualidades intelectuais: sabedoria, ignorncia, arte, inpcia.E, obviamente, qualidades morais: a virtude e a infinitude dos vcios.

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    A categoria de relao d conta do parentesco e da companhia, da amizade esimpatias, das inimizades e antipatias, dos semelhantes, dos contrrios, dos opostos, dosuperior, do inferior e tambm das causas das coisas: causa eficiente, efeito, causa ma-terial, forma, causa final, privao, nomes, ttulos, verdade e falsidade. Com as catego-rias de ao e paixo podemos pensar em: potente, impotente: fcil, difcil: nocivo,inofensivo: til, danoso etc. E em operaes naturais: nutrir, produzir. Em operaespolticas: reinar, julgar, guerrear, tiranizar. Em aes mecnicas: fazer, desfazer, cansao,cio, calma. Em aes cerimoniais: festivas, fnebres, sagradas etc. Quanto categoriade situao, lembramos : alto, baixo, plano, jacente, pendente, cruzado, direito, esquer-do, mdio, dentro, fora etc. E a com a categoria de tempo: momentneo, durvel, novo,velho, principiar, acabar. Quanto de lugar: pleno, vazio. Movimento: veloz, lento,direito, oblquo: de um lugar, por um lugar, perto de um lugar, em direo a um lugaretc. Quanto ao ter, ou posse: rico, pobre; vestes, empresas, divisas, armas, ornamen-tos, instrumentos.

    A aplicao das dez categorias aristotlicas a um tema determinado permiteinventar dez definies ilustradas ou conceitos bsicos, como disse; ao mesmo tempo,a versatilidade do autor encontra, para cada um dos conceitos obtidos, uma metforaadequada, a cada vez mais semanticamente distante, para produzir o espanto. Comodizia Marino com um hiprbato maravilhoso, do poeta o fim a maravilha. O espan-to pode ser intesificado, pois a combinao das categorias, que traduz cada uma das dezmetforas iniciais por outras semanticamente mais distantes, produz formulaesagudssimas. Imaginemos, por exemplo, que vamos compor um poema de gnero baixoe que resolvemos aplicar o termo ano para caracterizar o personagem como tipo rid-culo. Quando examinamos o termo repassando-o pelas categorias por exemplo, acategoria quantidade, que a primeira das acidentais podemos achar inmeras met-foras de coisas pequenas em coisas elementares, como tomo e gro de areia; emcoisas humanas, como pigmeu e unha; em animais, como formiga, pulga, mos-ca, caro, escama de peixe etc; em plantas, como gro de trigo, e, ainda, emobjetos; entre eles, os militares, como umbigo do escudo etc. Por meio da categoriaquantidade, podemos dizer, por exemplo, Esse umbigo do escudo para significar Esseano.

    A formulao aguda, mas tambm bastante hermtica e, por isso, corre orisco de ser apenas incompreensvel. No sculo XVII, o hermetismo no era sempreum defeito, como hoje, pois tambm distinguia os engenhosos capazes de produzir eentender a agudeza. Gngora foi acusado por seus inimigos, como Juregui, Quevedoe Lope de Vega, de ser obscuro e incongruente nas Soledades, pois tratou um assuntohumilde em estilo sublime. Como sabem, respondeu ter desejado escrever escurssimo,

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    em grego, declarando escribo no para muchos, para afirmar a concepo tipicamentearistocrtica segundo a qual o engenho inventa coisas agudas prprias para agudos,no para vulgares. Como sabem, data de 1624 a cunhagem do termo culterano, querelaciona culto e luterano, usado para classificar a poesia de Gngora como heresiapotica. Mas disso falamos depois, se for o caso. Saio agora de Gngora e deso nova-mente ao ano.

    Quando repassamos todas as coisas pequenas necessrias para inventar met-foras adequadas representao do tema, mais conveniente inventar uma formula-o ainda mais engenhosa e de maior dificuldade. Por exemplo, juntamos a um termoinventado pela categoria quantidade outro termo inventado por meio de outras catego-rias. Assim, quando j repassamos o ndice pequeno por todas as classes que pude-mos achar da categoria quantidade, ns o cruzamos com outras classes obtidas por meiodas outras categorias. Com termos da mesma categoria quantidade, podemos dizer, nacomdia ou na stira, que Esse umbigo do escudo uma pulga. Os gneros baixosadmitem, por definio, essas incongruncias inverossmeis que se tornam verossmeispara figurar a desproporo dos vcios e tipos viciosos. Os seiscentistas as chamavamde inconvenincias convenientes. A mesma metfora pulga, por exemplo, podeser a base de novas metforas ou de novos poemas. No de John Donne, The Flea, APulga, o animal traduzido pela metfora escuro templo, porque sugou o sangue dohomem que fala mulher tambm picada; como o casamento fuso de sangues e ossangues de ambos esto misturados no interior do animal, esto casados; e como ocasamento costuma ser oficiado em templos, a pulga que os picou um templo.

    Tesauro acompanha as receitas de duas advertncias: a primeira a de quenem todas as partes encontradas pela aplicao das categorias so sempre combinveisentre si de modo prazeroso, til e persuasivo, devendo-se evitar a mala affectatio, aafetao e a decorrente frieza. A no ser nos gneros baixos ou cmicos, como disse,em que a inverossimilhana aplicada de propsito, pois o excesso verossmil pararepresentar a falta de unidade dos vcios. Em um poema contra o governador Sousa deMeneses atribudo a Gregrio de Matos e Guerra, a persona satrica afirma: O que tevir ser todo rabadilha/ dir que te perfilha uma quaresma, chato percevejo, traduzin-do a figura do governador por rabadilha, termo que significa o cccix da galinha,aquele lugar onde nascem as penas da cauda da ave. uma figurao srdida e obsce-na, que nos faz ver um cccix que, enquanto anda, encolhe-se, pois est sendo chupa-do por um percevejo. No caso, a imagem do governador como rabadilha corresponde categoria aristotlica substncia material, que o poema vai cruzando com outras. Asegunda advertncia de Tesauro complementar: no se deve ficar totalmente presoao ndice e ordem das partes das categorias, pois elas podem ser misturadas, antepos-

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    tas ou pospostas. No caso, o juzo dos autores das agudezas que deve ser o compa-nheiro indivisvel do engenho (Tesauro, 1670, p. 112). Por exemplo, o mesmo poemaatribudo a Gregrio mistura as categorias hbito, qualidade e quantidade, para figurar ogovernador como um tipo vulgar, subserviente e puxa-saco, o tpico porteiro de pal-cio que conhecemos aqui e l: O rabo erguido em cortesias mudas/ Como quem pelocu tomava ajudas. Os versos talvez fiquem ainda mais divertidamente agudos, se noslembramos de que no sculo XVII o termo ajuda tambm significava clister.

    Assim, na poesia da agudeza, uma coisa ou tpica da inveno pode sersignificada por meio de trs espcies de signos e relaes: 1a. por mera conveno; 2a.pela relao de incluso ou sindoque entre a coisa significada e a significante; 3a. pelasemelhana entre elas. Pela simples conveno, prope-se a relao arbitrria de sig-nos que inicialmente no tm relao: por exemplo, assim como um traje vermelhorepresenta a guerra, muito usual o uso das metforas fsseis, como cristal, quepode significar qualquer coisa lisa, transparente, mida, fria ou lqida: gua, cu, ros-to, olhos, vidro, espelho,neve e cristal. Pela segunda relao, tm-se duas coisas queno tm semelhana entre si, mas que podem ser juntadas em um gnero comum,como causa, conseqncia, instrumento, hbito etc. o caso de sindoquesalegorizantes, como a espada pela guerra, a pena pela doutrina, o arado pela agricultu-ra etc. A terceira propriamente a relao de semelhana. Com ela, propem-se duascoisas semelhantes entre si, ambas fsicas, ou uma fsica e outra moral, ambas anima-das, ou uma animada e outra inanimada etc. Quanto prpria semelhana, pela qualum signo substitudo por outro, pode ser de trs espcies, de atribuio, de proporoe de proporcionalidade. Assim, por atribuio, tem-se a semelhana de duas coisas queparticipam em uma nica forma, chamada unvoca; por proporo, a semelhana deduas coisas que no tm uma forma comum, mas duas formas proporcionalmenteanlogas; por proporcionalidade, tem-se a mesma relao de proporo, mas operadacom conceitos distantssimos, que so entendidos como alegorias ou enigmas quecorrespondem s anamorfoses da pintura. Pela primeira dessas relaes, os poetas apro-ximam coisas diferentes em essncia, mas semelhantes segundo uma propriedade qual-quer em comum; por exemplo, o lrio e a neve, segundo a brancura; ou o fogo e o amor,fisicamente impetuoso o primeiro, moralmente o segundo, com transferncia de esp-cie a espcie: fala-se do amor como fogo do peito, do lrio como neve do prado, daneve como lrio do inverno. So as segundas e as terceiras, porm, as metforas deproproo e de proporcionalidade, que exigem maior engenhosidade, pois aproximamduas coisas diversas, dando mais prazer ao destinatrio quando este apto para enten-der as operaes artificiosas que condensam em um sentido duas coisas at entodistantssimas. Na Bahia do final do XVII, segundo o franciscano Frei Antnio do

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    Rosrio, em um sermo em que pregou a doura do amor de Cristo em forma demetforas de vinte e cinco frutas tropicais, o anans e a expresso latina Anna nasciturse relacionam por proporcionalidade; em Gregrio de Matos, tempo e cavalo, no poemaque referi, relacionam-se por proporo, por meio da metonmia trota o tempo trotaa toda ligeireza/ e imprime em toda flor sua pisada. Entre as metforas, o poeta engenhosoprefere a metfora de proporo, pela qual o copo o escudo de Baco, assim como oescudo o copo de Marte, como se pode ler na Potica. A metfora de proporo evi-dencia a erudio de coisas distantssimas, como prescreve Tesauro

    * * *

    Como disse, os preceptistas da agudeza propem que todo signo exterior metfora que substitui ou copia o conceito interior. Alguns dos signos exteriores sofalantes, outros mudos e outros compostos. Falantes so os orais e os escritos; signosmudos so as imagens das palavras pintadas e esculpidas; ou os gestos, que represen-tam o movimento; os signos compostos misturam as duas espcies anteriores, sendo aomesmo tempo falantes e mudos, como acontece com os emblemas, as empresas oudivisas. Na doutrina seiscentista da agudeza, h, portanto, seis maneiras bsicas pararepresentar um conceito agudo: 1o. por meio do conceito mental ou arqutipo; 2o. pormeio da voz; 3o. por meio de caracteres escritos; 4o. por meio de gestos; 5o.por meio derepresentao do objeto e, ainda, 6o. por meio de uma maneira misturada (Tesauro,1670; p.15). Passo a lhes falar delas.

    A agudeza arqutipa aquela que se desenha no nimo com o pensamento. Porexemplo, imaginamos, como o rei Lus XII de Frana imaginou, um animal, o ourio.Juntamente com a imagem do bicho, imaginamos uma inscrio em latim: Cominus eteminus. essa agudeza mental que tentamos comunicar ao esprito dos outros atravsde signos exteriores: no possvel comunic-la sem o recurso dos sentidos, que funda-mentam a prescrio retrica e as demais formas da sociabilidade. Quando falamosessa agudeza ou a escrevemos ou a desenhamos ou a pintamos ou a esculpimos ou aimitamos com gestos, comunicamos que, assim como o ourio tem espinhos, tambmtemos armas com que nos defendemos e atacamos de perto e de longe.

    Os Anjos podem, sem recorrer a nenhum meio sensvel, produzir a imagemespiritual de seus pensamentos em outro esprito, tornando-se um e outro ora pintorora pintura. Uma questo fundamental no sculo XVII foi a de saber se o Anjo podeconceber uma imagem ou se pode comunic-la a outro do mesmo modo que o homem.Parece bizantino para o nosso positivismo, mas metafsica crist: o Anjo fala no comos signos dos conceitos, mas com os prprios conceitos, de maneira que para ele uma

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    mesma coisa significante e significada. Por isso, nenhum Anjo pode ser poeta, umavez que a significao de uma coisa por outra a metfora que fundamenta a poesiae a representao em geral. Assim, os Anjos tambm no podem fabricar emblemas,empresas, divisas, hierglifos, cifras, rebus, charadas enigmticas, labirintos, metforas,alegorias, imagens, figuras, pinturas, discursos, sermes, poemas, aulas, palestras sobrea agudeza seiscentista etc. Na Bblia, porm, Deus demonstra que a natureza humanas se exprime como representao exterior, por isso inventa um Po voador, uma Esca-da que sobe ao Cu, um Livro fechado com Sete Selos e outras imagens como maneirametafrica ou alegrica de agir na mente exttica de seus Profetas. Dizia-se rotineira-mente no sculo XVII que prprio do homem amar o que admira, mas s admirar averdade vestida, no a verdade nua (Tesauro, 1670, p. 17). Logo, o amor das imagenstambm causa eficiente e instrumental das agudezas.

    Robert Klein demonstrou, quando estudou os livros de empresas italianos dosculo XVI, que os preceptistas teorizam as imagens por meio da comparao do inte-lecto humano com o intelecto anglico (Klein, 1998; p.117-140). Do mesmo modo,para os preceptistas do sculo XVII, a representao que define o homem. Tambmafirmam, com Aristteles, que uma inteligncia superior se caracteriza pela capacida-de de estabelecer relaes rpidas e inesperadas entre conceitos. A representao uma mediao; na poesia da agudeza, uma mediao agudamente indireta.

    A primeira espcie de representao exterior da agudeza a fala. A fala aguda dirigida ao ouvido, que goza com sua pintura, que tem o som por cor e a lngua porpincel. A agudeza vocal deve ser elptica e cheia de subentendidos, porque, nos ditosmuito claros, perde o brilho, assim como as estrelas, que necessitam da escurido parabrilhar. Pressupe-se, portanto, a condensao sutil e tendencialmente hermtica.Segundo os seiscentistas, h um duplo gozo nas agudezas vocais, pois quem as emitetem o prazer de dar vida no intelecto de outro a um efeito do seu e, o ouvinte, o prazerde encontrar o que estava oculto. Aqui novamente est implicada a pragmtica corte-s tpica das monarquias absolutistas do sculo XVII, que define os produtores deagudezas como tipos urbanos dotados de instrumentos dialticos e retricos proporci-onados pelo juzo prudente nas ocasies em que a elegncia discreta a primeira nor-ma da etiqueta. Por isso mesmo, o que especifica o sentido da agudeza vocal o decoro,que considera a circunstncia: uma mesma metfora aguda pode ser fineza, brincadei-ra, jogo, ironia, obscenidade, sarcasmo ou agresso, conforme a ocasio e as pessoascircunstantes, o que implica seu regramento por um sistema de decoros externos queespecificam as ocasies do uso conveniente e o sentido adequado em cada uma delas.Como exemplo de agudeza vocal engenhosa, lembro uma carta de Vieira, datada de1683, em que diz que a frota que naquele ano leva o acar da Bahia para Portugal

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    carrega mais queixas que caixas. Como exemplo de agudeza vocal imprudente, umcaso contado pelo licenciado Manuel Pereira Rabelo, que no sculo XVIII escreveuuma Vida do Excelente Poeta Lrico, o Doutor Gregrio de Matos e Guerra comonotcia sobre os poemas que compilou e atribuiu ao poeta. Um dia, em Salvador, ojovem Sebastio da Rocha Pita se aproxima de Gregrio de Matos e, depois de lhedizer que passou o dia todo tentando escrever um soneto, declara: falta uma rimapara mim , ao que Gregrio imediatamente responde capim. Segundo os preceptistas,as agudezas orais so argumentos urbanos falazes (Tesauro, 1670, p. 489). Nesse caso,a rima capim no propriamente urbana. uma agudeza perfeita, mas imprudente,porque feita expressamente com o propsito de ferir. Por isso mesmo, dizia-se no sculoXVII que o fim dos engenhosos costuma ser o hospital.

    A segunda representao aguda exterior, a agudeza escrita, uma imagem daagudeza vocal, como prope Aristteles. A agudeza escrita permite jogos ilimitados deconceitos e considerada superior vocal porque durvel. dela que surgem, porexemplo, as inscries agudas; os motes das empresas; as sentenas; as missivas lacnicas;os epigramas; os caligramas; os hierogramas e todos os variadssimos jogos do engenho.Como na divisa dos Sabinos, S.P.Q.R, Sabinis Populis Quis Resistet?, que os romanosmantiveram, mas eliminando os sabinos, como diz Tesauro com muita graa. Algumusou a letra A para significar um filsofo ignorante, pois o A significava Boi. Hracles,o orador, fez um panegrico a Ptolomeu com o ttulo grego PONU ENCOMION, isto, Encmio da Tolerncia; o rei apagou a primeira letra, escrevendo ONU ENCOMION,Encmio do Asno, para afirmar, brbaro, que a tolerncia virtude de jumento e no dereis. Nesse mesmo gnero ablativo, um antigo, depois de ser interrogado acerca dossinais pelos quais se reconhece o verdadeiro amigo, escreveu em latim a formulaoem eco:

    AMOREMORE

    ORERE

    Significava que o amigo se conhece pelo afeto, pelos costumes, pelas palavras epelas aes. Tambm se pode utilizar a escrita artificiosamente, de modo que o versoseja lido ao reverso, formando um palndromo, isto , desdizendo, quando lido dadireita para a esquerda, o que diz quando lido da esquerda para a direita , de modo queo louvor se torna censura. o que acontece nos versos annimos dirigidos a HenriqueVIII da Inglaterra, marido de adltera e adltero :

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    Coniugium tibi Rex foecundent Numina longosemine nec sterilis sit tibi progenies.

    Em Il Cannocchiale Aristotelico, no captulo em que trata da causa formal dasfiguras engenhosas, Tesauro lembra as parole finte, as palavras fingidas, citando umtrecho de Plauto (Pseud., 834-836) como exemplo de agudeza: Haec ad Neptuni pecudescondimenta sunt. Terrestres pecudes CICIMANDRO condio: Aut HAPPALOPSIDE, autCATARACTRIA. Mais excelentes exemplos de palavras fingidas acham-se nos so-netos de Quevedo contra Gngora. Neles, inventando barbarismos pardicos doscultimos das Soledades, ataca as inovaes de Gngora, imitando o estilo culto compalavras fingidas que fazem aluses obscenas. Por exemplo, assim comea um sonetoque acusa Gngora de estuprar os poetas neotricos latinos: Sulquivagante, pretemor deEstolo,/ pues que lo expuesto al Noto solificas/ y obtusas speluncas comunicas,/ despecho delas musas a ti solo,/ huye no carpa de tu Dafne Apolo/surculus slabros de teretes piscas,/porque con tus per-versos damnificas/ los institutos de su sacro Tolo.

    A agudeza escrita tambm pode ser pintura ou poesia, como argcia de corposfigurados. Tesauro e outros preceptistas afirmam que a pintura, pondo frente aos olhosos simulacros das coisas, pela imitao material produz o engano da maravilha queagrada, pois consiste em fazer crer que o fingido o verdadeiro, de modo que cenas quehorrorizam deleitam. Comentando um verso de Petrarca no qual um soldado sedentobebe a gua de um rio tinto do sangue dos mortos na batalha, o cardeal Sforza Pallavicinoreitera, em seu tratado Arte dello Stile, o intelectualismo da doutrina do conceito enge-nhoso, afirmando que o principal gosto do intelecto maravilhar-se, e no com amaravilha que decorre da ignorncia das causas do efeito, caso em que a agudeza uma imperfeio ou um tormento da razo, mas como meio de fazer ver o que antes seignorava (Pallavicino, Arte dello Stile, 1647, p. 181). A poesia, como imitao metaf-rica, serve-se da pintura do que se v para significar o que no se v. Assim, se aimitao feita pela pintura agrada pela maravilha de que um leo fingido seja verdadeiro,a imitao potica produz a maravilha pela qual um leo verdadeiro um homem forte ,como quando se diz Aquiles um leo (Tesauro, 1670, p. 16).

    Quantos aos gestos, dizia-se no sculo XVII que as palavras so gestos semmovimento e que os gestos so palavras sem rumor: todo o corpo uma pgina escritacom gestos prescritos segundo os gneros (Tesauro, 1670, p. 24), como podemos verna escultura religiosa, em que as vrias posies dos corpos dos santos figuram os vriosafetos da conformatio, o momento do contato exttico com o corpo mstico de Cristo.Em 1641, o oratoriano Snault dedicou ao Cardeal Richelieu um tratado, De lusagedes passions, em que ensina uma retrica de gestos adequados s mais variadas circuns-

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    tncias, lembrando o dito de Tibrio citado por Tcito nos Annales: Qui nescit fingere,nescit vivere (Snault, 1987). Como na oratria, em que as palavras so prprias emetafricas, naturais e vulgares, comuns e engenhosas: Quintiliano chamou de agudasas mos de Hortnsio. Tesauro lembra que tambm era metafrico o gesto de erguersobrancelhas, afetadamente severo e orgulhoso, do dumviro de Cpua, que Ccerointerpretou ironicamente como modo de fazer crer que sustentava a Repblica com asobrancelha, como Atlas sustenta o cu com os ombros. Conforme Tesauro, agudssimodiscurso de gestos metafricos foi a disputa do sbio grego com o romano estpido que contada por Acrcio, o jurista. Falando um ao outro com gestos, eles equivocavam-se; e do equvoco nascia o prazer dos observadores. Diz Acrcio, citado por Tesauro:

    Antes de os Gregos concederem as leis aos Romanos, mandaram um deseus sbios investigar se os romanos eram dignos de leis. Estes, depoisde se aconselharem, enviaram um homem estpido ao encontro dosbio grego(...). O Grego comeou a disputa e ergueu um dedo parasignificar Deus um s. E o nscio, acreditando que ele quisesse lhefurar um olho, ergueu dois, junto com o polegar, como naturalmenteocorre, para furar os dois olhos do Grego. Acreditou este que o Roma-no, com os trs dedos, quisesse dizer Deus Trino, e mostrou a palma damo aberta para significar Tudo est nu e aberto frente a Deus. O estulto,pensando que ele queria dar-lhe um bofeto, levantou o punho pararetribuir pancada com pancada. O Grego imaginou que quisesse dizerDeus segura tudo na mo e, admirando a agudeza do engenho romano,julgou que aquela Repblica era digna de leis (Tesauro, 1670, p. 25-26).

    Tambm se utiliza a simples cor, sem figura, conferindo-lhe sentido alegrico,como foi usado pelos pintores antigos: amarelo significa o Sol; branco, a Lua; azul,Jpiter; verde, Vnus; vermelho, Marte; violeta ou prpura, Mercrio; negro, Saturno.As mesmas cores, na pintura, nos emblemas ou referidas na poesia, so metforas: como amarelo, relacionado ao Sol, significa-se /esplendor do sangue e riquezas/; com obranco, lunar, /Inocncia e F/; com o azul, de Jpiter, /pensamentos altos e celestes/;com o verde, venreo, /prazeres esperados ou conseguidos/; com o vermelho, marcial,/Vingana e Valor/; com o prpura, ou violeta, mercurial ou hermtico, /Indstria eArte/; com o negro, saturnino, /pensamento profundo de dor/. Da mistura das corestambm se faz a mistura de pensamentos ou a indicao de propsitos, como os Rossi,os Bianchi e os Neri das faces guelfas e gibelinas do tempo de Frederico II. Quanto sempresas esculpidas, podemos lembrar, com Tesauro e outros, um elenco de objetostalhados em pedra, como os hierglifos egpcios, ou cunhados em metal, como as me-

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    dalhas; ou os feitos em relevo, como o escudo de Enias; e, ainda, os esculpidos emmrmore, marfim, ouro etc.; tambm os arcos, as colunas rostras, com imagens deinimigos encadeados, de rios e provncias subjugadas, de cidades vencidas, de coroas.Domesmo gnero so as esculturas da proa de navios, como a Quimera, e outros monstrosproduzidos para ameaar o mar; tambm so metforas frisos, capitis, caritides,mtopes e modilhes, na arquitetura.

    Agudezas que lanam mo de prottipo morto fazem com que o original setorne imagem: como a dos Argonautas que, como pintou Valrio Flaco, usavam despojosde Monstros e, como elmo, no simulacros, mas as prprias cabeas das feras que tinhamabatido. No caso, como prope Tesauro, os despojos so uma empresa em original.Alciato deu o exemplo de Marco Antnio, que levava lees sob o carro, significando quehavia domado os espritos mais ferozes do Senado de Roma. Da mesma maneira, conta-se que uma romana mandou uma lebre a Marcial, lembrando o provrbio latino Quemcome lebre fica belo, para significar /s feio/, ao que o poeta respondeu:

    Edisti nunquam Gellia tu leporem.

    Conta-se que, da mesma maneira, utilizando uma empresa em original, Petrarca en-viou a Laura algumas lebres acorrentadas, representando a si mesmo pelos animaisporque, perdida a liberdade com o amor, tinha-se tornado presa da amada, fazendo aslebres falar.

    Quanto s empresas figuradas por meio de personagem vivo ou de ao, comoensina Aristteles, as metforas representantes so mais agudas que as significantes, poiscom a ao trazem o objeto para a frente dos olhos. Ele as chama justamente deprosomaton, na frente do olho. Cita-se a sua admirao pelo engenho de Iscrates que,tendo de dizer a Grcia deve estar tristssima pela morte de seus cidados em Salamina,disse a Grcia deve cortar os cabelos sobre o tmulo dos seus cidados em Salamina.Por ser metfora continuada, a expresso uma alegoria, podendo ser representada napintura; por exemplo, pela imagem de uma mulher que corta os cabelos sobre o tmulodos filhos. Nas letras seiscentistas, uso muito valorizado, articulando-se na formula-o metafrica como pintura de tipos, aes e cenas, na medida mesma em que aimagem proposta como elemento da argumentao formulada como visualizaosensorialmente dramtica. Na medida em que a metfora representante implica umaao, pode ser usada como um entimema retrico, uma agudeza que funde o dito como fato. Tesauro cita o exemplo do msico de Bolonha que, tendo ido assistir apresen-tao de outro msico estrangeiro, que passava por um novo Orfeu, depois de longaespera ouviu uma voz fraca, trmula e desafinada. Imediatamente, ps uma capa de

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    chuva no ombro, o que significou para todos os assistentes o tempo de chuva porquea r coaxa, caso em que a capa, como uma metfora, tambm um entimema satrico(Tesauro, 1670).

    * * *

    As discusses seiscentistas da agudeza tm por objeto principal a verossimilhanae o decoro da sua aplicao: nelas sempre est em pauta a questo do efeito persuasivo.Em posies por vezes inimigas, os autores das polmicas concordam todos quanto aoartifcio. Para eles, que evidentemente no so idealistas alemes, romnticos adeptosdo realismo socialista, impensvel a crtica da instituio retrica; discordam quantoao limite dos usos. o caso, fundamental, de Matteo Peregrini, autor de Delle Acutezze,che altrimenti spiriti, vivezze e concetti volgarmente si appellano (1639), que j referi. Eleprope-se a teorizar lindiscreta affetazione delle acutezze, a indiscreta afetao dasagudezas, ou seja seu uso indecoroso. Por isso mesmo, admite seu uso, desde queregrado com proporo atenta verossimilhana e ao decoro.

    Como norma geral, Peregrini relaciona a agudeza com o gnero cmico paraprescrever que, nos ditos espirituosos, que visam o delectare, ela mais tolervel quenos argumentos srios ( Peregrini, 1639; XII). Assim, discutindo o decoro dos gnerosbaixos, afirma que lcito o uso de agudezas empoladas e frias, evidentemente preme-ditadas, para fazer rir. Adverte, porm, que o defeito do juzo ou a inpcia do motejador,de um lado, e a feira da coisa motejada, de outro, tornam a agudeza mais desprazerosaque o mero prazer da sua novidade. Composies viciosamente agudas no so agra-dveis, exceto para os que so privados de juzo e se deleitam com elas; por isso, aagudeza sempre louvada pela turba popular. Levada pelo efeito da novidade, aplebe incapaz de ajuizar seu artifcio e sua adequao. Tambm os adeptos do estilomoderno, como Peregrini chama o discurso dos praticantes do conceptismo enge-nhoso hoje classificado de barroco, os infarinatti di lettere, louvam a agudeza sem-pre, porque, com sua presuno de sempre saber tudo, aplicam-na a torto e a direito,demonstrando que tm o juzo muito corrompido e que efetivamente pouco ou nadasabem. Nos dois casos, ignorncia do vulgo e afetao de letrados, a agudeza criticadasegundo o critrio do decoro, que necessariamente implica o do juzo. Os que no tmo juzo perfeito admiram-na pela novidade, que grande, e que sempre produz o efeitode grandemente agradar. A feira do caso retrico necessita, contudo, para ser bemconhecida, uma discretezza giudiciosa, uma discrio judiciosa. No captulo XII deseu tratado, como disse, Peregrini expe 25 cautelas para o uso das agudezas. Voufalar delas rapidamente, porque so pertinentes para conceituarmos a recepo con-tempornea das representaes seiscentistas.

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    1. Devem ser evitados todos os gneros de agudezas viciosas. No caso, Peregrini levaem conta o decoro interno e externo na qualificao de vcio. O vcio uma inpciaque fere a verossimilhana.

    2. Deve-se evitar o excesso: guardarsi dalla copia. O preceito vale principalmen-te nos gneros baixos. No caso, Peregrini cita Ccero: A rareza dos ditos agudos distingueo orador do bufo

    3. Deve-se evitar a afetao: lacutezze hanno de esser lungi da ogni coloredaffettazione. A agudeza decorre da rapidez do engenho; na afetao, evidencia-se oestudo ou a premeditao do dito agudo , que fica frio e perde a graa. Obviamente,em gneros baixos, a afetao est prevista como ironia e sarcasmo por exemplo, nacomposio de tipos vulgares, como o palhao sem tato, que nunca pra de produzirditos agudos e maledicentes .

    4. Deve-se manter o decoro. Esta prescrio nuclear e Peregrini cita Quintilianocom ela: quem e sobre o qu e de quem e contra quem e o qu diga . tambm o caso dosermo sacro que, segundo Vieira, no sermo da Sexagsima, de 1655, transformadoem cena de Plauto ou Terncio quando as agudezas so dissociadas da teologia: Pregam palavras de Deus, mas no pregam a palavra de Deus, diz Vieira dos sermesde seus inimigos, os dominicanos do Santo Ofcio da Inquisio.

    5. Deve-se evitar a agudeza nos lugares-comuns afetuosos. No caso, Peregrini refe-re as agudezas que evidenciam a preocupao de ser engenhosas ou que tm sabor dezombaria. O uso de agudezas com esse sentido uma tpica corrente no sculo XVIIna constituio de tipos infames, que preferem perder amizades a perder a oportunida-de de mais uma vez demonstrar sua baixeza com ditos agudos que ferem. o modocomo o Licenciado Rabelo compe a personagem Gregrio de Matos como um tipoinfame, em seu Vida do Excelente Poeta Lrico, o Doutor Gregrio de Matos Guerra.Por exemplo, na anedota em que o poeta, conversando com um senhor de engenhopernambucano, v um boi com um s chifre. O animal pertence ao fazendeiro e Gregriodiz que seu destino ser o de sempre ser acusado de satrico, porque assim ser inter-pretado se, naquele momento, disser que o animal boi de um corno s. SegundoPeregrini, a brincadeira nos lugares-comuns de afeto no s torna seu autor ridculo eindecoroso, como tambm impede a comoo e estraga totalmente o efeito pretendidopela arte .Contudo, como ironia, a agudeza produzida muito eficaz, por exemplo, emdeclaraes de amor jocosas ou em stiras em que se finge a amizade para melhoragredir.

    6. Deve-se usar a agudeza para fim relevante. Ccero distingue o bufo do enge-nho desdenhoso pela freqncia do uso das agudezas.

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    7. Idem. Pessoas prudentes e graves usam pouco as agudezas jocosas e somentena conversao, quando respondem. Segundo Peregrini, produzi-las o tempo todo ndice de engenho ventoso.

    8. Deve-se evitar a agudeza em composio grave. Grave, no caso, aplica-se especificao da matria do discurso. Por exemplo, na oratria deliberativa e na judici-al, gneros geralmente srios, a agudeza no to prpria quanto no gnero demons-trativo, que grave, como louvor, e no-grave, como vituperao.

    9. No gnero demonstrativo ou sofstico, de assunto ameno e ligeiro, adostentationem compositum, e que s demanda a audientium voluptatem, impe-se a agu-deza jocosa. O que tambm acontece na stira por exemplo, em Quevedo, Caviedes,Lord Rochester e na poesia atribuda a Gregrio de Matos.

    10. Evita-se a agudeza no gnero doutrinrio puro (ou didtico), porque omestre sustenta uma persona grave, alheia a brincadeiras; contudo, admite-se a agude-za sria.

    11. Evita-se a agudeza no discurso narrativo, ou histrico, porque prejudica oprovvel, logo, o verossmil. Se Plutarco escrevesse a vida de Alexandre com agudezasjocosas, o argumento herico seria ridculo. Na obra histrica, vetada a agudezacomo obra do narrador, mas no a agudeza das prprias coisas narradas, devendo-seestabelecer diferena entre o objeto e a qualidade da sua eloqncia. Na narrativafantstica, contudo, admite-se, quase que por definio.

    12. Admite-se a agudeza como exerccio, como as composies feitas por jo-vens para adquirir destreza tcnica.

    13. A comdia, segundo a qualidade das personagens, admite todos os gnerosde agudezas, principalmente as jocosas e as pungentes.

    14. Agudezas srias so prprias de composies srias e so convenientes paraensinar e comover.

    15. As agudezas jocosas convm moderadamente na conversao; do contr-rio, tem-se a bufoneria .

    16. As agudezas pungentes usam-se em todos os lugares em que se acuse, re-preenda ou coisa do gnero. Lembro o poema atribudo a Gregrio de Matos que,atacando Antnio Sousa de Meneses, governador da Bahia entre 1682-1684, explicitao uso da variante cmica maledicentia: j velho em Poetas elegantes/ O cair emtorpezas semelhantes. O gnero demonstrativo no s admite tais torpezas agudas,mas as exige: no caso, Peregrini d como exemplo o Apocolocyntosis, de Sneca.

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    17. As agudezas puras, ou graciosas, no tm lugar em tema que no seja pornatureza apto para jogos e brincadeiras. Alis, inpcia no us-las quando o tema ldico.

    18. mais tolervel a abundncia de agudezas pungentes que o excesso depuros jogos, pois estes fazem do homem que os enuncia um tipo de engenho vo.

    19. Os motes e os ditos agudos ridculos devem ser usados com muitacircunscpeco no s quando escritos, mas em toda ocasio. Agudezas lascivas ouobscenas so prprias para pessoas vis .

    20. Composies breves, como epigramas, sonetos e madrigais, exigem agude-za proporcionada ao seu tema, grave se o tema grave; jocosa, se jocoso; irnica, seirnico; e ridcula ou maledicente, se o tema baixo. O que longo tem lugar paraoutros ornamentos e a falta da agudeza pode ser suplementada por eles. Por isso, nosdiscursos breves, a agudeza se impe porque, se no ocorre, o discurso parece ter sidofeito s para dizer a coisa, no para evidenciar o engenho.

    21. Quando o principal fim mover com o riso, as agudezas frias ou viciosaspodem ser usadas, mas deve ser claramente evidente que se destinam ao riso.

    22. O peso do afeto pode justificar o vcio da figura que porventura esteja naagudeza. No caso, Peregrini discute a paronomsia, ou trocadilho, dando como exem-plo um de Ccero contra Verres: Deverias ter exigido um navio que navegasse contraos predadores, no com a presa .

    23. As partculas temperadas podem justificar ou purgar o vcio no uso e nasubstncia das agudezas: quase; como; talvez; diria que; seja-me permitido;parece; por assim dizer etc. Como um remdio para o excesso, as partculas indi-cam o posicionamento da enunciao quanto ao tema e circunstncia do uso dodiscurso, revelando o conhecimento do defeito por parte da persona .

    24. Nas composies longas, escusvel algum tipo de agudeza viciosa. Liode Horcio, que afirma que nas composies longas permitido insinuar o sono.

    25. Nos recitativos, principalmente os feitos por jovens, tolera-se alguma li-cena na qualidade e na quantidade dos ditos agudos. O defeito do juzo, se a agudeza viciosa, facilmente perdoado, pois alega-se a idade juvenil, naturalmente impru-dente, segundo Peregrini e outros preceptistas.

    NOTA

    * Professor Doutor de Literatura Brasileira da FFLCH-USP.

  • LETRAS CLSSICAS, n. 4, p. 317-342, 2000.

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  • HANSEN, Joo Adolfo. Retrica da agudeza.

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    de la condensation mtaphorique de concepts eloigns. En tablissant la liaisonentre la pratique de la pointe et la rationalit de Cour des monarchies absoluesdu XVIIe sicle, le texte en donne des exemples avec des potes, orateurs etpreceptistes, comme Gngora, Gracin, Donne, Shakespeare, Gregrio deMatos, Vieira, Tesauro, Pallavicino, Peregrini etc., pour dmontrer avec euxlappropriation et lapplication des auctorits rhtoriques grecques et latines la production du beau fficace.MOTS-CLEFS: rationalit de Cour; rhtorique; mtaphore; pointe; concept.