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Resumo do livro “Teoria Geral do Processo”. Autor: Luiz Guilherme Marinoni. Realizado pelo Grupo Resumos MPF, em 2006, sob a coordenação de Alessandra de Abreu Minadakis Barbosa. Teoria Geral do Processo Luiz Guilherme Marinoni. Páginas: 21 a 39. Elaborado por: Eliza Adir Coppi Parte I - A Jurisdição no Estado Constitucional 1.Introdução A concepção do direito tem sofrido diversas transformações com o passar dos tempos, notadamente no campo atinente à posição de supremacia conferida à lei, que atualmente, cedeu espaço à Constituição. Encontrando-se “amarrada”, substancialmente, aos direitos positivados na Constituição, deve estar em conformidade com os direitos fundamentais. Nas palavras do autor “a assunção do Estado constitucional deu novo conteúdo ao princípio da legalidade.” “Esse princípio agregou o qualificativo ‘substancial’ para evidenciar que exige conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais”. Diante desse quadro não mais se sustentam, no Estado contemporâneo, as clássicas teorias “de que a jurisdição tem a função de atuar a vontade concreta da lei (de Chiovenda) e de que o juiz cria a norma individual para o 1 Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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Page 1: Resumo Teoria Geral Do Processo Marinoni - MPF

Resumo do livro “Teoria Geral do Processo”.Autor: Luiz Guilherme Marinoni.Realizado pelo Grupo Resumos MPF, em 2006, sob a coordenação de Alessandra de Abreu Minadakis Barbosa.

Teoria Geral do Processo

Luiz Guilherme Marinoni.

Páginas: 21 a 39.

Elaborado por: Eliza Adir Coppi

Parte I - A Jurisdição no Estado Constitucional

1.Introdução

A concepção do direito tem sofrido diversas transformações com o passar dos tempos, notadamente no campo atinente à posição de supremacia conferida à lei, que atualmente, cedeu espaço à Constituição.

Encontrando-se “amarrada”, substancialmente, aos direitos positivados na Constituição, deve estar em conformidade com os direitos fundamentais.

Nas palavras do autor

“a assunção do Estado constitucional deu novo conteúdo ao princípio da legalidade.”

“Esse princípio agregou o qualificativo ‘substancial’ para evidenciar que exige conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais”.

Diante desse quadro não mais se sustentam, no Estado contemporâneo, as clássicas teorias “de que a jurisdição tem a função de atuar a vontade concreta da lei (de Chiovenda) e de que o juiz cria a norma individual para o caso concreto, relacionada com a tese da ‘justa composição da lide’ (Carnelutti)”.

Necessário se torna o surgimento de um novo tipo de magistrado e de direito processual civil, comprometidos com a nova realidade criada.

2. A influência dos valores do Estado Liberal de Direito e do Positivismo Jurídico sobre os conceitos clássicos de jurisdição

1Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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2.1. A concepção de direito no Estado liberal

É de nosso conhecimento que o Estado Liberal surgiu no intuito de frear os desmandos do regime absolutista anterior.

Assim, como fundamento da sua imposição, erigiu o princípio da legalidade, que, por sua vez tornou da lei um ato supremo.

Segundo Marinoni, “a administração e os juízes, a partir dele, ficaram impedidos de invocar qualquer direito ou razão pública que se chocasse com a lei”.

No entanto, o que ocorreu, realmente, foi mera substituição de regimes, sem, contudo, alterar a essência da concentração do poder.

Segundo o autor, “na Europa continental o absolutismo do rei foi substituído pelo absolutismo da assembléia parlamentar”.

Isso se deu na medida em que os parlamentos reservaram a si o poder político (antes do monarca) mediante a fórmula do princípio da legalidade, restando ao executivo e ao judiciário posições de clara subordinação.

Conforme destacado pelo autor, à época, “o ‘poder de julgar’ deveria ser exercido através de uma atividade puramente intelectual, não produtiva de ‘direitos novos’. O poder dos juízes ficaria limitado a afirmar o que já havia sido dito pelo legislativo, pois o julgamento deveria ser apenas ‘um texto exato da lei’. Por isso Montesquieu acabou concluindo que o ‘poder de julgar’ era, de qualquer modo, um ‘poder nulo’”.

No sistema anterior (absolutista), o direito advinha da jurisprudência e da doutrina, havendo grande pluralidade de fontes, Com efeito, isso não significa que era melhor.

Bem verdade que a supremacia da lei sobre o judiciário conteve inúmeras arbitrariedades que ocorriam mediante a atuação de juízes imorais e corruptos, extremamente comprometidos com o poder feudal.

Conclui-se que “o ideal da supremacia do legislativo era o de que a lei e os códigos deveriam ser tão completos que apenas poderiam gerar uma única interpretação(...). A lei era bastante e suficiente para que o juiz pudesse solucionar os conflitos, sem que precisasse recorrer às normas constitucionais.

2.2. O positivismo jurídico

Conforme Marinoni, o positivismo jurídico consiste em “uma tentativa de adaptação do positivismo filosófico ao domínio do direito”.

Sob este rótulo pretendeu-se criar uma ciência jurídica utilizando-se os mesmos métodos das ciências naturais (com objetividade da observação e da experimentação). “Se o

investigador das ciências naturais pode realizar experimentos com base em procedimentos lógicos até concluir a respeito a respeito da verdade ou da falsidade de

uma proposição”, o jurista poderia seguir a mesma lógica.

A simples observação e descrição da norma caracterizam a essência do positivismo jurídico que, por sua vez, ‘não apenas aceitou a idéia de que o direito deveria ser reduzido

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à lei, mas também foi o responsável por uma inconcebível simplificação das tarefas e das responsabilidades dos juízes, promotores, advogados, professores e juristas, limitando-as a uma aplicação mecânica das normas jurídicas na prática forense, na universidade e na

elaboração doutrinária.”

Diante desse quadro, conclui Marinoni que “o positivismo jurídico, originariamente concebido para manter a ideologia do Estado Liberal, transformou-se, ele mesmo, em

ideologia”.

2.3. A jurisdição como função dirigida a tutelar os direitos subjetivos privados violados

Como visto, no final do século XIX, a jurisdição encontra-se totalmente comprometida com os valores do Estado Liberal e do positivismo jurídico. Ocorre que, sob a influência do Estado Liberal de Direito, com os valores da igualdade (formal), da liberdade em voga, passou-se a conferir importância à interação entre esses mesmos valores e a própria concepção de jurisdição.

Conforme o autor, “a tendência de defesa da esfera de liberdade do particular aliada à tese de que apenas a supremacia da lei seria capaz de proteger esses direitos deram naturalmente à jurisdição a função de proteger os direitos subjetivos dos particulares mediante a aplicação da lei”. Em outras palavras, “a jurisdição tinha a função de viabilizar a reparação do dano, uma vez que, nessa época, não se admitia que o juiz pudesse atuar antes de uma atuação humana ter violado o ordenamento jurídico” (não esquecer que o conceito de jurisdição nessa época não englobava a necessidade de. tutela preventiva!!!). “Se a liberdade era garantida na medida em que o Estado não interferia nas relações privadas, obviamente não se podia dar ao juiz o poder de evitar a prática de uma conduta sob o argumento de que ela poderia violar a lei (se ele assim agisse, a sociedade da época interpretaria como um atentado à liberdade individual).

Deve-se frisar que não apenas a questão da observância da liberdade individual conferiu a conotação repressiva da jurisdição à época, mas, também, o próprio princípio da separação dos poderes contribuiu para negar a tutela preventiva aos direitos, sob o fundamento de que cabia à administração (à polícia administrativa, mais precisamente) e não ao juiz, a função de prevenção diante da ameaça de não observância da lei.

Por fim, deve-se consignar que o surgimento da idéia de reparação do dano pelo equivalente em pecúnia igualmente influenciou a concepção de jurisdição ora em exame. Segundo as palavras de Marinoni, “se todos os direitos podiam ser convertidos em pecúnia (a jurisdição precisava apenas manter em funcionamento os mecanismos do mercado) (...), logicamente, não era necessária manter a prestação jurisdicional preventiva, bastando aquela que pudesse colocar no bolso do particular o equivalente monetário”.

2.4. Da teoria da proteção dos direitos subjetivos privados à teoria da atuação da vontade da lei

A diferença entre as teorias da proteção dos direitos subjetivos privados (1) e da atuação da vontade da lei (2) reside no fato de que a segunda preocupa-se em salientar que a jurisdição exerce um papel direcionado em afirmar o direito objetivo ou o ordenamento jurídico. Nessa linha, a jurisdição, antes de qualquer coisa, passa a ter um

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caráter publicista e não apenas um compromisso com a proteção dos particulares (direitos subjetivos privados).

Responsável pela transição entre a escola exegética e a escola histórico-dogmática (chiovendiana): Lodovico Mortara.

OBS: Lembrar que o pensamento de Mortara, apesar de trazer os alicerces para a afirmação na da natureza pública do processo, não se livrou dos valores do Estado liberal (juiz subordinado ao legislador – mero aplicador da vontade da lei).

2.5.A teoria de Chiovenda: a jurisdição como atuação da vontade concreta da lei

Em conferência proferida no ano de 1903 Giuseppe Chiovenda proferiu Conferência que marcou o fim da era privatista no processo, reafirmando a tendência iniciada por Mortara (realce publicista da jurisdição).

Conforme explicitado por Marinoni, “a jurisdição, mergulhada no sistema de Chiovenda, é vista como função voltada à atuação da vontade concreta da lei”. Conforme palavras do próprio Chiovenda, “(...) a jurisdição, no processo de conhecimento, ‘consiste na substituição definitiva e obrigatória da atividade intelectual não só das partes, mas de todos os cidadãos, pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não existente uma vontade concreta da lei em relação às partes’”.

Necessário notar, contudo, que o fato de Chiovenda ter dito que o juiz aplica o direito (vontade da lei) ao ‘caso concreto’ não significou que entendia que o juiz assim, cria a norma individual ou a norma do caso concreto, como o fez Carnelutti e os simpatizantes da teoria unitária do ordenamento jurídico (obs: Kelsen foi o grande mestre desta última teoria). Para isso, basta lembrar que Chiovenda era adepto da teoria que separava radicalmente as funções legislativas das judiciárias. Não podemos confundir, portanto, “aplicação da norma geral ao caso concreto com criação da norma individual do caso concreto”.

Conclui-se, por fim, que a escola de Chiovenda contribuiu deveras para o desenvolvimento da natureza publicista do processo, no entanto manteve-se, ainda, fiel ao positivo clássico. E não poderia ser diferente, afinal, seus princípios básicos tiveram inspiração no modelo institucional do Estado de direito liberal, “revelando uma continuidade ideológica em relação ao pensamento dos juristas do século XIX”.

2.6. A doutrina de Carnelutti: a justa composição da lide

Francesco Carnelutti partiu da idéia de lide (conflito de interesses qualificado pela pretensão resistida) para definir a existência de jurisdição. Só haveria jurisdição se presente uma lide para dirimir. A lide, no sistema de Carnelutti, ocupa o lugar da ação no sistema chiovendiano.

Segundo Marinoni, “é evidente que o ângulo visual de Carnelutti revela uma compreensão privatista da relação entre a lei, os conflitos e o juiz. Enquanto Chiovenda procurava a essência da jurisdição dentro do quadro das funções do Estado, Carnelutti via na especial razão pela qual as partes precisavam do juiz –no conflito de interesses - a característica que deveria conferir corpo à jurisdição. Carnelutti estava preocupado com a finalidade das partes; Chiovenda com a finalidade do juiz. Por isso, é possível dizer que Carnelutti enxergava o processo a partir de um interesse privado e Chiovenda em uma perspectiva publicista”.

4Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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É necessário frisar que as concepções de Chiovenda (‘atuação da vontade concreta do direito’) e de Carnelutti (‘justa composição da lide’) são pólos antagônicos quando examinados sob o enfoque da função da sentença dentro do ordenamento jurídico.

Neste norte, detalha Marinoni que “para Chiovenda, a função da jurisdição é meramente declaratória; o juiz declara a vontade da lei. Carnelutti, ao contrário, entende que a sentença tona concreta a norma abstrata e genérica, isto é, faz particular a lei para os litigantes.”

Para Carnelutti a sentença cria uma regra ou norma individual, particular para o caso concreto, que passa a integrar o ordenamento jurídico, enquanto que para a teoria de Chiovenda, a sentença é externa (está fora) ao ordenamento jurídico”.

Conclusão: Carnelutti - teoria unitária ou constitutiva do ordenam. jurídico;

Chiovenda – teoria dualista ou declaratória do ordenam. jurídico.

Pergunta-se: Quando Carnelutti adota a teoria unitária, significa dizer que ele admite que a sentença cria um direito que ainda não existe??

R: não, não é isso. Quer dizer que o juiz, depois de racionalizar, concretiza a norma já existente, a qual, dessa forma, também é declarada.

“A lei abstrata se individualiza por obra do juiz” (Piero Calamandrei) e isso de dá no momento em que a sentença ganha a roupagem de coisa julgada material, então, não quer dizer que a sentença crie direito, ou que não é fiel à lei que preexiste ao processo. Ainda segundo Calamandrei, igualmente adepto à teoria unitária, “assim como a lei vale enquanto está em vigor, não porque corresponda à justiça social, senão pela autoridade de que está revestida”, também a sentença, se transitada em julgado, terá validade não por critérios de justiça, mas porque a coisa julgada material tem força de lei entre as partes ali envolvidas.

Na verdade, Calamandrei e Carnelutti não se desligaram totalmente da idéia de que a função do juiz é de subordinação ao legislador, devendo declarar a lei. Concluindo, Marinoni expõe que “a distinção entre a formulação de Chiovenda e as de Carnelutti/Calamandrei está em que, para a primeira, a jurisdição declara a lei, mas não produz uma nova regra, que integra o ordenamento jurídico, enquanto, para as demais, a jurisdição, apesar de não deixar de declarar a lei, cria uma regra individual que passa a integrar o ordenamento jurídico.

3. NEOCONSTITUCIONALISMO

3.1- A dissolução da lei genérica, abstrata, coerente e fruto da vontade homogêneo do parlamento

A idéia de lei genérica e abstrata, fundada pelo Estado legislativo, supunha uma sociedade homogênea, composta por Homens “livres e iguais”. Obviamente que essa pretensão foi rapidamente negada pela dimensão concreta da vida em sociedade.

5Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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A lei genérica ou universal, assim como a sua abstração ou eficácia temporal ilimitada, somente seriam possíveis em uma sociedade formada por iguais, ou em uma sociedade em que o Estado ignorasse as desigualdades sociais para privilegiar a liberdade, baseando-se na premissa de que essa somente seria garantida se os homens fossem tratados de maneira formalmente igual.

O verdadeiro fundamento da lei genérica está quando o Estado liberal resolveu tratar todos de forma igual perante a lei, que, por sua vez, também teve repercussão sobre a função da jurisdição.Pois, se a lei não poderia considerar determinados bens ou posições sociais, também o juiz estava proibido de interpretar a norma considerando as diferenças entre pessoas.

Com a neutralidade ou a falta de conteúdo da lei e da jurisdição, percebeu que a igualdade social constituía requisito para o desenvolvimento da sociedade. Conclui-se, que a liberdade somente poderia ser usufruída por aquele que tivesse o mínimo de condições materiais para ter uma vida digna.

Surge, então, o Estado preocupado com as questões sociais que impediam a “ justa” inserção do cidadão na comunidade.Com ele nascem grupos de pressão, por exemplo, sindicatos, associações de profissionais liberais, que nessa linha passam a fazer pressão sobre o legislativo.

Após essa fase, as casas legislativas deixam de ser o lugar da uniformidade, tornando-se o local da divergência, em que diferentes idéias acerca do papel do direito e do Estado passam a se confrontar.

A cada dia leis mais complexas e obtusas são criadas, fruto de ajustes e compromissos entre os poderes sociais em disputa até por causa da falta de conhecimento do direito e da tentativa de desprezo de direito básicos e indisponíveis, por parte dos grupos de pressão.

É evidente que, diante disso, as características da impessoalidade e da coerência da lei deixam de existir. A vontade legislativa passa a ser a vontade dos ajustes do legislativo, determinada pelas forças de pressão.

Perceba-se que, quando se afirma que a lei é fruto do pluralismo das forças sociais e, muitas vezes, da coalizão dessas forças, não se nega que a sua fonte de produção seja o estado, mas, quando se desloca a perspectiva do pluralismo de fonte, evidencia-se que o direito não tem mais apenas origem no poder estatal. Com isso se enterra outra marca do positivismo clássico, que via o direito na lei editada pelo Estado.

3.2- A nova concepção de direito e a transformação do princípio da legalidade

Diante do atual contexto de formação da lei e das novas fontes de produção de direito, não há mais como pensar em norma geral, abstrata, coerente e fruto da vontade homogênea do parlamento

Houve uma transformação do princípio da legalidade, à época do positivismo clássico que implicou na redução do direito à lei cuja legitimidade dependia apenas da autoridade que emanava. Hoje, se reconhece que a lei é o resultado da coalizão das forças dos vários grupos sociais.

Tornou necessária resgatar a substância da lei e,mais do que isso, encontrar os instrumentos capazes de permitir a sua limitação e conformação aos princípios de justiça.

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Ao se dizer que a lei encontra limite e contorno nos princípios constitucionais, admite-se que ela deixa de ter apenas uma legitimação formal, ficando amarrada substancialmente aos direitos positivados na Constituição. A lei não vale mais por si, porém depende de sua adequação aos direitos fundamentais. Se antes era possível dizer que os direitos fundamentais eram circunscritos à lei, torna-se exato afirmar que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais.

Por isso, o princípio da legalidade que era visto em uma dimensão formal, agora ele tem conteúdo substancial, pois requer a conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais.

Contudo, essa leitura constitui um reducionismo do significado da subordinação da lei à Constituição ou uma incompreensão das tensões que conduziram à transformação da própria noção de direito e de jurisdição.

3.3- Compreensão, crítica e conformação da lei. O pós-positismo

Se a lei passa a se subordinar aos princípios constitucionais de justiça e aos direitos fundamentais, a tarefa da doutrina deixa de ser a de simplesmente descreve a lei. Cabe agora ao jurista compreender a lei à luz dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais.

A obrigação do jurista não é mais apenas a de revelar as palavras da lei, mas sim a de projetar uma imagem, corrigindo-a e adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais.

Não há como negar, hoje, a eficácia normativa ou a normatividade dos princípios de justiça. atualmente, esses princípios e os direitos fundamentais têm qualidade de normas jurídicas e ,assim, estão muito longe de significar simples valores.

É fácil concluir que tais princípios e direitos conferem unidade e harmonia ao sistema, não dando alternativa ao juiz e ao jurista senão colocar a lei na sua perspectiva.

O neoconstitucionalismo exige a compreensão crítica da lei em face da Constituição para ao final fazer surgir uma projeção ou cristalização da norma adequada, que também pode ser entendida como “ conformação da lei”.

Isso faz que haja uma transformação da ciência jurídica, ao dar ao jurista uma tarefa de construção e não mais de simples revelação.

4- A FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

4.1- Normas jurídicas: princípios e regras

A doutrina, especialmente após as obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy, tem feito a distinção entre princípios e regras. Enquanto as regras se esgotam em si mesmas, na medida em que descrevem o que se deve, não se deve ou se pode fazer em determinadas situações, os princípios são constitutivos da ordem jurídica, revelando os valores ou os critérios que devem orientar a compreensão e a aplicação da regras diante das situações concretas.

7Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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De acordo com Alexy, as regras contêm determinações em um âmbito fático e juridicamente possível, ao passo que os princípios podem ser realizados em diferentes graus, consoante as possibilidades jurídicas e fáticas.

A realização dos princípios que depende das possibilidades jurídicas e fáticas., que são condicionados pelos princípios em colisão segundo as circunstâncias aos casos concretos.

4.2 O problema da compreensão do direito dos princípios

É claro que a compreensão do direito por meio dos princípios implica em uma ruptura com o positivismo do Estado liberal, que se expressava em um direito constituído por regras.

Na linha do positivismo clássico, não é possível aceitar que o juiz passa aplicar uma norma que revele mediante o seu próprio texto e que, ao contrário exija do intérprete margem de subjetividade para a definição do seu significado. A aplicação ou a declaração da regra, própria da jurisdição daquela época, não se concilia com a atribuição de significado que caracteriza a metodologia dos princípios.

As Constituições que seguiram a segunda guerra mundial instituíram uma série de princípios materiais de justiça. Tais princípios logo foram atacados sob o argumento de que, ao expressarem aspirações éticas e políticas mediante fórmulas não precisas, constituíam normas incompatíveis com a certeza e a segurança do direito.

Porém, o Estado contemporâneo, caracterizado pela força normativa da Constituição, obviamente não dispensa a conformação das regras aos princípios constitucionais e sabe que isso apenas pode ser feito com o auxílio da jurisdição. Não há qualquer dúvida, hoje, de que toda norma constitucional independentemente do que seu conteúdo ou da forma da sua vazão, produz efeitos jurídicos imediatos e condicionam o “ modo de ser” das regras.

4.3 Princípios constitucionais, naturalismo e pós-positivismo

Como os princípios aludem aos direitos humanos e aos princípios materiais de justiça e, a partir daí, revelam valores que devem conformar a realidade e orientar a compreensão e a aplicação das leis é possível encontrar no direito por meio dos princípios algo parecido com o que se propõe no direito natural.

Não é errado pensar que as normas constitucionais refletem uma “ordem natural”, desde que a essa expressa se atribua o significado de situação histórica e concreta de uma sociedade pluralista e participativa que conduziu a uma “ concordância” em um momento de cooperação.

Agora, é evidente que a idéia de direito por princípios não tem nada a ver com o direito natural nos moldes em que ele é tradicionalmente concebido.

Portanto, a compreensão da lei a partir da Constituição expressa uma outra configuração do positivismo crítico ou pós-positivismo, pois submete o texto da lei a princípios materiais de justiça e direitos fundamentais, permitindo que seja encontrada uma norma jurídica que revele a adequada conformação da lei.

8Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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4.4 Princípios constitucionais e pluralismo

Os princípios expressam concepções e valores que estão indissociavelmente ligados ao ambiente cultural. Mas, como a sociedade evolui todos os dias, os princípios deve ser redimensionados nessa mesma intensidade e velocidade.

Os princípios são fruto do pluralismo e marcado pelo seu caráter aberto ( É bom ressaltar aqui que não se aplica ao modelo dos princípios de Ronald Dworking. Em Dworking os princípios revelam o que há de comum a todos e não a divergência entre grupos). Bem por isso são avesso à lógica que governa a aplicação das regras e a à hierarquização.

A idéia de que um princípio prevalece sobre o outro, em uma perspectiva abstrata, afronta a condição pluralista da sociedade.

Os princípios,por sua natureza, devem conviver. A sua pluralidade, e a conseqüente impossibilidade de submetê-los a uma lógica de hierarquização faz com que haja a ponderação dos princípios ou da aplicação da “ proporcionalidade” como regra capaz de permitir a sua coexistência ou de fazer prevalecer um princípio diante do outro sem que um deles tenha que ser eliminado em abstrato, ou sem que o princípio não proferido em determinada situação tenha que ser negado como capaz de aplicação em outro caso concreto.

Peter Häberle ao anotar que o princípio da proporcionalidade adquiriu grande relevância constitucional, adverte que ele deve ser diferenciado do princípio da ponderação dos bens, argumentando que a pergunta a respeito da proporcionalidade somente importa quando já houver sido dado lugar à ponderação de bens.

Afirma-se que no caso de conflito de regras o problema é de validade, enquanto na hipótese de colisão de princípios a questão é de peso.

Ronald Dworking afirma que as regras obedecem á lógica do “ tudo ou nada”, enquanto os princípios à do “peso” ou da “importância”.

Quando há colisão de princípios, um deve ceder diante do outro, conforme as circunstâncias do caso concreto. De modo que não há como se declarar a inviabilidade do princípio de menor peso, uma vez que ele prossegue íntegro e válido no ordenamento, podendo merecer prevalência, em face do mesmo princípio que o procedeu, diante de outra situação concreta.

CAPÍTULO 5- O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE PELO JUIZ SINGULAR NO DIREITO BRASILEIRO

5.1 Qualquer juiz, no sistema brasileiro, tem a obrigação de controlar a constitucionalidade da lei

A transformação da concepção de direito obviamente repercutiu sobre a função do juiz e, portanto, exige uma nova conceituação de jurisdição.

Agora, o juiz é o projetor de um direito que torna em consideração a lei à luz da Constituição e,assim, faz os devidos ajustes para suprir as suas imperfeições ou encontrar uma interpretação adequada, podendo chegar a considerá-la inconstitucional.

9Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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Ricardo Guastini afirma que a rigidez da Constituição e a sua garantia jurisdicional são “ condições necessárias” para se pensar na Constitucionalização do ordenamento jurídico. É fácil perceber que o neoconstitucionalismo depende do controle jurisdicional da lei.

No direito brasileiro o controle de constitucionalidade pode se dar mediante ação direita ou no curso de qualquer ação voltada à solução de um conflito de interesses ou que não tenha o fim específico de buscar a declaração de inconstitucionalidade da lei.

A constituição da lei também pode ser controlada incidentalmente em qualquer processo que não gerará a anulação da lei, diferentemente da ação direta de inconstitucionalidade, pois nesse caso a lei declarada inconstitucional é extirpada do sistema jurídico.

Quando a causa chega ao STF em razão do recurso extraordinário, o controle da constitucionalidade continua sendo incidental ao julgamento da causa.

Contudo, a idéia de que a decisão proferida em razão de recurso extraordinário atinge apenas as partes tem sido mitigada na prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. Isso ocorreu, inicialmente, após a fixação do entendimento de que, após o Supremo ter declarado, na via incidental, a inconstitucionalidade de uma lei, os demais tribunais estão dispensados de observar a reserva de plenário, podendo a inconstitucionalidade da lei, nesse caso, ser reconhecida pelos órgãos fracionários de qualquer tribunal. E, recentemente, surgiu no STF orientação que nega expressamente a equivalência entre controle incidental e eficácia da decisão restrita às partes do processo. Essa tese sustenta que mesmo decisões tomadas em sede de recurso extraordinário, quando objeto de manifestação do Plenário do STF gozam de efeito vinculante em relação aos órgãos da administração e aos demais órgãos do Poder Judiciário.

Como se vê, qualquer juiz, no sistema brasileiro, tem o poder de controlar a constituição de uma lei.

5.2 Outras formas de controle da constitucionalidade da lei

Ao lado do controle da constitucionalidade da lei foram desenvolvidas outras técnicas de controle da constitucionalidade. Trata-se das chamadas “ interpretação conforme a Constituição” e “ declaração parcial de nulidade sem redução de texto”.

A interpretação conforme é oportuna no caso em que a lei, ao ser aplicada segundo várias, mas não todas, as suas possibilidades significativas, conduz a um juízo de nulidade. Porém, quando a inconstitucionalidade deriva de específicas interpretações decorrentes do texto da lei, sem por em causa o próprio texto, a hipótese é de “declaração parcial de nulidade”.

O STF, nessas formas de controle, não declara a lei inconstitucional. Na interpretação conforme, afirma-se qual das possíveis interpretações do texto da lei se revela compatível com a Constituição. Na declaração parcial de nulidade, declara-se a inconstitucionalidade de alguma interpretação da lei, deixando-se outras a salvo.

Na declaração parcial de nulidade, os órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública ficam proibidos de se valer das interpretações declaradas inconstitucionais, enquanto, na interpretação conforme, o Judiciário e a Administração ficam impedidos de realizar outra interpretação que não aquela que foi declarada como a única constitucional pelo STF.

10Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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O STF, em ação direta de inconstitucionalidade, poderá julgar parcialmente procedente o pedido para declarar inconstitucional algumas interpretações, que devem ser estabelecidas no acórdão (declaração parcial de nulidade sem redução de texto) ou para declarar possível um única interpretação que também deve ser sublinhada no acórdão(interpretação conforme).

Essas duas formas de controle também conferem a qualquer juiz de primeiro grau as possibilidades de, respectivamente: i) deixar de declarar a lei inconstitucional e realizar a única interpretação conforme a constituição; ii) entender inconstitucional determinadas interpretações da lei.

O juiz de primeiro grau, além de poder fazer o controle da constitucionalidade objetivamente,pode considerar a compatibilidade da lei em face da Constituição no caso concreto, uma vez que aplicação de uma lei pode conduzir a um resultado incompatível com a Constituição.

Como a interpretação conforme e a declaração parcial de nulidade permitem à parte prejudicada chegar ao STF mediante o recurso extraordinário, é certo que esse Tribunal, também nessas modalidades de controle incidental, poderá dar a última palavra.

De qualquer forma, o que importa deixar claro é que o juiz pode e deve controlar a constitucionalidade da lei.

5.3 O juiz e o controle da constitucionalidade da falta da lei

Se há normas que violam os princípios de justiça e os direitos fundamentais, existem também omissões, ou ausências de normas, que agridem esses mesmos princípios e direitos.

Por isso, não há razão para entender possível o controle da constitucionalidade da lei e julgar inviável o controle da constitucionalidade da falta de lei.

As omissões que invalidam direitos fundamentais evidentemente não podem ser vistas como simples opções do legislador, pois ou a Constituição tem força normativa ou força para impedir que o legislador desrespeite os direitos fundamentais, e assim confere ao juiz o poder de controlar a lei e as omissões do legislador.

A omissão constitucional não se resume apenas à hipótese em que a norma constitucional outorga ao legislador o dever de legislar, mas também aos casos em que a omissão do legislador nega o próprio direito fundamental. De modo que para esses casos, não se pode sequer cogitar sobre os instrumentos técnico-processuais instituídas para a correção da omissão do dever constitucional de legislar, como o mandado de injunção.

Veja-se que um direito fundamental pode depender de uma regra que lhe dê proteção.Nessa hipótese, configurando-se a omissão legislativa, há verdadeira omissão de proteção, devida pelo legislador. Essa omissão pode ser de proteção, devida pelo legislador. Essa omissão pode ser reconhecidas judicialmente, quando o juiz deverá determinar a supressão da omissão para dar proteção ao direito fundamental.

Já a omissão da regra processual é ainda mais fácil de ser assimilado. Considerando-se a natureza instrumental da regra processual, percebe-se sem dificuldade quando a sua ausência ou insuficiência impede a efetiva tutela do direto material.

11Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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6- A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

6.1 Introdução

Compreendida a nova concepção de direito e as principais características do Estado Constitucional, entre elas, a subordinação da leias normas Constitucionais, e a plena eficácia jurídica das suas normas, resta agora tratar da função que a nova ciência jurídica emprestou aos direitos fundamentais, construindo uma teoria que faz de tais direito não só um suporte para o controle das atividades do Poder Público.

O desenvolvimento das várias teorias dos direitos fundamentais concebidos por inúmeros juristas conduziu a questões bastante intricadas, como as da eficácia imediata dos direitos fundamentais sobre os particulares.

È preciso pensar na relação entre o direito fundamental à tutela jurisdicional e o “ modo de ser” da jurisdição,ou melhor, entre o direito fundamental processual do particular e a capacidade de o Estado efetivamente prestar a tutela jurisdicional.

O “modo de ser” da jurisdição influi sobre o resultado da sua atividade. Isso porque não basta dizer que a jurisdição implica na conformação da lei à Constituição de acordo com as peculiaridades do caso concreto, se o juiz não pode, por exemplo, utilizar um meio executivo imprescindível para a prestação da tutela jurisdicional.

6.2 Conceito de direitos fundamentais

Os direitos fundamentais podem ser vistos nos sentidos material e formal. Nesse último sentido, pensa-se nos direitos fundamentais catalogados sob o Título II da CF. Porém, admite-se a existência de direitos fundamentais não previstos nesse título, por exemplo, como o direito ao meio ambiente. Tais direitos seriam fundamentais porque repercutem sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade, quando se diz que possuem uma fundamentabilidade material.

Ressalte-se, contudo, que, para a caracterização de um direito fundamental a partir de sua fundamentabilidade material., é imprescindível a análise de seu conteúdo, isto é, da circunstância de conter, ou não, uma decisão fundamental sobre a estrutura do estado e da sociedade, de modo especial, porém, no que diz com a posição nesse ocupada pela pessoa humana.

6.3- A teoria dos direitos fundamentais como teoria dos princípios

Segundo Robert Alexy, as teorias dos direitos fundamentais podem ser formuladas, em vez de como teoria dos princípios, como teorias dos valores ou como teorias dos fins dos direitos fundamentais.

Robert Alexy lembra que Böckenförde distingue cinco teorias dos direitos fundamentais: i) liberdade ou burguesia do estado de direito; ii) a democrática-funcional; iii) a do Estado social; iv) axiológica; e v) institucional.

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As teorias dos direitos fundamentais, quando classificadas em liberal, democrática e do Estado social, também podem ser pensadas como teorias dos princípios e dos fins dos direitos fundamentais.

Adverte Alexy, ainda, que uma teoria axiológica livre de suposições insustentáveis e supérfluas pode ser formulada como teoria dos princípios, e, supondo-se um conceito amplo de fim, é possível expressá-la através de terminologia dos fins.

Uma teoria axiológica não se realiza sem os princípios . Na verdade, a teoria dos princípios pressupõe uma teoria axiológica.

As teorias liberal, democrática e do Estado social não podem ser classificadas ao lado,por exemplo, da teoria axiológica. Isso porque as teoria liberal, democrática e do Estado social já pressupõem determinados valores.

Alexy aborda a teoria institucional dos direitos fundamentais, desenvolvida mais amplamente por Haberle. Para essa teoria os direitos fundamentais devem ser institutos. Alexy, no entanto, demonstra que o conteúdo normativo da teoria institucional dos direitos fundamentais deve ser interpretado axiologicamente. Além disso, sublinha que a característica epistemológica mais marcante de uma teoria aberta ou encobertamente axiológica ou dos princípios é ponderação, a qual tem papel central na “teoria institucional” de Peter Haberle. Diante disso conclui Alexy que o conteúdo normativo da teoria institucional dos direitos fundamentais consiste em uma teoria dos princípios ou valores.

Segundo Peter Haberle, aplicação do princípio da valoração dos bens se vincula com o caráter institucional dos direitos fundamentais.

A abordagem dessas teorias dos direitos fundamentais demonstra que todas elas são teorias de princípios, ou que as teorias materiais dos direitos fundamentais são teorias de princípios.

Alexy argumenta em favor de uma teoria que considera vários princípios que, embora não possam ser rigidamente hierarquizados,podem ser colocados em ordem mediante uma relação de prioridade “ prima facie”. Admite-se, assim, que os princípios da liberdade e da igualdade jurídica têm uma prioridade “ prima facie”.

Mas Alexy esclarece que não se deve supervalorizar o conteúdo material da prioridade prima facie, pois a existência dessa prioridade não exclui a possibilidade de o princípio da liberdade ceder ou ser deslocado diante de princípios opostos.Parece, assim, que, quando se fala de princípios com prioridade prima facie, deseja-se aludir a princípios que possuem uma força argumentativa prévia em seu favor.

A idéia de prioridade pima facie dos princípios da liberdade e da igualdade institui uma estruturação da argumentação segundo os princípios.

Não se pode admitir uma teoria dos direitos fundamentais capaz de dar uma única solução correta a cada caso, e os princípios podem colidir diante das diversas situações concretas, a única saída é pensar no controle da racionalidade da argumentação capaz de fazer um princípio em face do outro.

6.4 A perspectiva objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais

Quando se afirma a dupla dimensão objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais, deseja-se realçar que as normas que estabelecem direitos fundamentais, se podem ser subjetivadas, não pertinem apenas ao sujeito,mas sim a todos aqueles que 13

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fazem parte da sociedade. Ou seja, os direitos fundamentais não apenas garantem direitos subjetivos, mas também fundam princípios objetivos orientadores do ordenamento jurídico.

As normas de direito fundamental afirma valores que incidem sobre a totalidade do ordenamento jurídico e servem para eliminar as tarefas dos órgãos judiciários, legislativos e executivos.

O Estado fica obrigado a proteger os direitos fundamentais mediante prestações normativas(normas) e fáticas(ações concretas).

6.5 A multifuncionalidade dos direitos fundamentais

Como adverte Konrad Hesse, o sentido complexo dos direitos fundamentais, como elementos da ordem objetiva, pode ser reduzido quando esse significado é entendido como o estabelecimento de “uma ordem de valores objetivos”,pois uma compreensão limitada ao aspecto “ordem de valores” pode ocultar a multiplicidade de funções e conexões que envolvem os direitos fundamentais e a importância de uma classificação que considere as funções que esses direitos podem assumir.

Se entre as mais importantes classificações funcionais estão as de Alexy e Canotilho, destaca-se, no Brasil, a classificação difundida por Ingo Wolfgang Sarlet. Essas três classificações dividem os direitos fundamentais em dois grandes grupos: os direitos de defesa e os direitos a prestações.

Canotilho divide o grupo dos direito a prestações, inicialmente, em direito ao acesso e utilização de prestações do Estado. Esses são divididos em direitos originários a prestações e direitos derivados a prestações. A existência de direitos originários a prestações seriam: 1) a partir da grande constitucional de certos direitos; 2) se reconhece, simultaneamente, o dever do Estado na criação dos pressupostos materiais indispensáveis ao exercício efetivo desses direitos; 3) e a faculdade de o cidadão exigir, de forma imediata, as prestações constitutivas desse direitos. Já os direitos derivados a prestação, Canotilho esclarece que à medida que o Estado vai concretizando as suas responsabilidades no sentido de assegurar prestações existenciais dos cidadãos, resulta, de forma imediata, para os cidadãos, por exemplo, o direito de igual acesso, o direito de igual quota-parte nas prestações fornecidas por estes serviços ou instituições à comunidade.

Canotilho prossegue em sua classificação afirmando que os direitos a prestação também devem ser vistos como direito à participação.

Alexy, no entanto, divide o grupo dos direitos a prestações em direitos a prestações em sentido amplo e direitos a prestações em sentido estrito. Os direitos a prestação em sentido estrito são relacionados aos direitos às prestações sociais, enquanto os direitos a prestações em sentido amplo apresentam outra divisão: direito à proteção e direito à participação na organização e através de procedimentos.

A classificação de Ingo Wolfgang igualmente destaca os direito à proteção, à participação na organização e através do procedimento e às prestações sociais( ou em sentido estrito), colocando-os como um grupo o dos direitos a prestações ao lado dos direitos de defesa.

6.6 As eficácia horizontal e vertical dos direitos fundamentais14

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As dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais não podem ser confundidas com as suas eficácias vertical e horizontal. A demonstração das dimensões objetiva e subjetiva tem por fim explicar que as normas de direitos fundamentais, além de poderem ser referidas a um direito subjetivo, também constituem decisões valorativas de ordem objetiva. Por isso, é plenamente possível pensar nas dimensões objetiva e subjetiva direitos fundamentais quando consideradas as relações entre particulares e o Poder Público( eficácia vertical) ou apenas as relações entre os particulares( eficácia horizontal).

O problema que se coloca diante da eficácia horizontal é o de que nas relações entre os particulares há dois ou mais titulares de direitos fundamentais, e por isso nelas é impossível afirmar uma vinculação( eficácia) semelhante àquela que incide sobre o Poder Público. Realmente, há uma grande discussão sobre a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, sustentando alguns que esses direitos fundamentais não tem eficácia imediata sobre os particulares, mas sim apenas mediata dependendo, nesse sentido, da mediação do Estado.

A lei que impede a realização dos direitos fundamentais constitui um obstáculo visível que deve ser suprimido, enquanto a omissão de lei, ao impedir a efetividade desses mesmos direitos, não deve deixar de ser considerada apenas porque, em uma primeira perspectiva, aparece como inviável. Tal invisibilidade é apenas aparente, porque se faz concreta quando o juiz conclui que a omissão representa uma negação de proteção a um direito fundamental.

Nesses casos, com também naquele em que atua mediante o preenchimento das cláusulas gerais, o juiz deverá atentar para a necessidade de harmonização entre os direitos fundamentais, pois a tutela de um direito fundamental, como a supressão da omissão legal, poderá atingir outro direito fundamental.

No direito brasileiro é importante aceitar a incidência direta do direito fundamental sobre as relações privadas independentemente da atuação judicial. É inquestionável,por exemplo, que os direitos fundamentais têm grande importância na regulação das relações entre o empregador e o empregado, o que somente pode significar uma eficácia imediata e direta dos direitos fundamentais sobre os privados.

6.7 Eficácias vertical, horizontal e vertical com repercussão lateral

A eficácia vertical tem a ver com a incidência dos direitos fundamentais sobre o Estado e a eficácia horizontal com a repercussão dos direitos fundamentais sobre os particulares. Ninguém discute que a eficácia vertical é sempre direta ou imediata. O que se questiona, é se a eficácia horizontal pode ser direta ou imediata ou se é sempre indireta ou mediata, dependendo, nesse último caso, da lei ou da decisão jurisdicional.

Frise-se, portanto, que a eficácia horizontal direta ou imediata não exclui a eficácia horizontal mediata ou indireta. Na verdade, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais deve ser mediata pela lei e, assim, deve ser indireta ou mediata. Apenas quando o legislador se omite, negando vida ao direito fundamental e então há que se pensar na supressão da omissão, é que se tem de admitir a sua eficácia direta sobre os particulares.

A eficácia direito fundamental sobre os particulares deve ser mediata pela lei.

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Não se pode esquecer que quando se diz que direitos fundamentais incidem verticalmente sobre o Estado, afirma-se que eles geram um dever de proteção ao legislador, ao administrador e ao juiz.

Quando o juiz dá tutela ao direito fundamental não protegido pelo legislador, ou pelo administrador, a sua decisão repercute sobre os particulares, quando então não há que se pensar em eficácia vertical, mas,sim, em eficácia horizontal mediata pela decisão jurisdicional, isto é, em eficácia horizontal mediata.

O direito fundamental se projeta sobre os sujeitos privados. Trata-se, portanto, de uma eficácia sobre os particulares e, assim, horizontal mediata pelo juiz e, por isso, mediata ou indireta. No caso há eficácia vertical em relação ao juiz e eficácia horizontal mediata sobre os particulares, mas eficácia vertical derivada do direito fundamental material que confere ao juiz dever de proteção, e quando acaba tendo repercussão horizontal quando se projeta, através da decisão sobre os privados.

Já o direito fundamental à tutela jurisdicional tem eficácia apenas sobre o órgão estatal,pois se presta unicamente a vincular o modo de atuação da jurisdição, que possui a função de atender não apenas aos direitos fundamentais,porém sim a quaisquer direitos.

Na realidade, o direito fundamental à tutela jurisdicional, ao recair sobre a atividade do juiz, pode repercutir “ lateralmente” sobre o particular, conforme o maior ou menor “ grau de agressividade” da técnica processual empregada no caso concreto. Mas nunca “ horizontalmente”, uma vez que esse direito não se destina, conforme já explicado, a regular as relações entre os sujeitos privados.

Enquanto o direito fundamental material incide sobre os particulares através da decisão (eficácia horizontal mediata pelo juiz) à tutela jurisdicional incide apenas sobre a jurisdição. No primeiro caso o juiz atua porque tem o dever de proteger os direitos fundamentais materiais e, assim, de suprir a omissão de proteção do legislador. No segundo, porque tem o dever de dar tutela efetiva a qualquer tipo de direito, ainda que a lei processual não lhe ofereça técnicas adequadas.

No caso da eficácia horizontal mediatizada pela decisão jurisdicional a ponderação é feita para que o direito fundamental tenha eficácia sobre os particulares. Já no caso da eficácia vertical com repercussão lateral não há que se falar em ponderação ou em sopesamento, mas em um teste de adequação, em um teste de necessidade ou lesividade mínima, vez que essa eficácia pode se refletir ou repercutir sobre a parte, e por isso sua legitimidade tem ser submetida à análise de direito de defesa.

O que realmente importa, porém, é que as definições de eficácia horizontal mediata e de eficácia vertical com repercussão lateral permitem que se compreenda a possibilidade de a jurisdição suprir a omissão do legislador em proteger um direito fundamental material e em dar ao juiz os instrumentos ou as técnicas processuais capazes de conferir sejam fundamentais ou não, sem que com isso se retire da parte atingida pela atuação jurisdicional o direito de fazer com que os seus direitos sejam considerados diante do caso concreto.

6.8 Direitos fundamentais e democracia. O problema do controle do juiz sobre a decisão da maioria

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Depois da abordagem da fundamentalidade formal e material dos direitos fundamentais, das suas dimensões e das suas eficácias, é inevitável colocar no centro da discussão a relação entre os direitos fundamentais e a democracia.

Como a lei deve ser compreendida à luz dos direitos fundamentais, o que significa que o juiz também controla a constitucionalidade das leis a partir daí,é evidente que esses direitos podem se sobrepor à maioria parlamentar. Daí se falar em uma verdadeira luta pela interpretação dos direitos fundamentais e se advertir que o árbitro dessa luta não é o povo, de onde emana o poder, mas sim o juiz, perguntando-se se isso não colocaria em risco o princípio democrático.

Ao juiz é necessário, quando da afirmação de inadequação da lei a um direito fundamental, argumentar que a decisão do parlamento interfere sobre o bem que foi excluído da sua esfera de disposição. Não se trata simplesmente de opor o direito fundamental à lei, mas antes de tudo de demonstrar, mediante adequada argumentação, que a decisão legislativa contraste com o direito fundamental. Ou seja, a mera oposição entre direito fundamental e lei, que colocaria em rota de colisão os direitos fundamentais com a democracia, passa a significar uma oposição entre a argumentação jurisdicional em prol da sociedade e a decisão tomada pelo legislativo. Existiria, assim, uma representação argumentativa a cargo da jurisdição em face de uma representação política concretizada na lei.

O controle da lei dos direitos fundamentais somente é viável quando a representação argumentativa em prol desses direitos suplanta a representação política identificada na lei. Por isso, a representação argumentativa está muito longe se significar uma mera sobreposição do juiz sobre o legislador,pois essa representação, antes de controlar a lei, deverá ser capaz de convencer os cidadãos da sua racionalidade.

Páginas: 90 a 139.Elaborado por: Luciane Deriquehem

Capítulo 7 – A JURISDIÇÃO NO ESTADO CONTEMPORÂNEO

7.1 Crítica à teoria que afirma que o juiz atua a vontade concreta da lei.

Tal teoria, atribuída a Chiovenda, insistia que o direito nada mais era do que a lei, ou seja, apenas caberia ao Juiz aplicar a norma geral, esta, por sua vez, criada pelo legislador.

Seguindo tal linha de raciocínio, pensava-se que o ordenamento jurídico seria completo, coerente – ou seja – pleno.

Entretanto, se a legislação realmente assim o fosse, o que aliás lhe daria a capacidade de fazer com que a jurisdição simplesmente atuasse conforme a vontade da lei, o juiz não poderia levar em consideração a interpretação da lei conforme a Constituição, até porque à época do Código de Napoleão, não havia ainda um liame entre a lei em si e os princípios constitucionais, bem como aos direitos fundamentais também.

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7.2. Crítica à teoria de Carnelutti e à teoria que sustenta que o juiz cria a norma individual que dá solução ao caso concreto.

Carnelutti, por sua vez, afirmava que a função do magistrado é a composição da lide e, desta forma, cria a norma individual para cada caso concreto. Aqui, a composição da lide ocorre quando a sentença torna a norma geral algo particular para as partes.

Ocorre que a teoria de Chiovenda (o juiz apenas aplica a norma geral) e a teoria de Carnelutti (o juiz cria a norma individual ao resolver o litígio) não está na tese de que o magistrado pode esculpir ou produzir a norma geral, fato este que o desamarra das algemas do positivismo acrítico.

Lembremos que, para Kelsen, o juiz cria a norma individual com base na norma geral, pois toda norma tem fundamento numa norma superior, galgando degraus na conhecida pirâmide kelsiana até se chegar ao topo, isto é, à norma fundamental.

Assim, o legislador, que está subordinado à Constituição, produz as normas gerais para que o Juiz, unido à lei, á norma geral, crie as normas individuais a cada sentença sua proferida e fundamentada. Ora, de uma certa forma, ambas as teorias estão igualmente vinculadas ao princípio da supremacia da lei.

Neste ponto, Kelsen diz que o Juiz cria direitos, mas numa simples constatação não nos é possível concordar com isso, pois um magistrado não cria direito quando atua com base numa norma superior geral.

Sim, é fato que uma sentença, ao apreciar particularidades do caso concreto, as quais não poderiam ser encontradas na norma geral (por esta considerar apenas o lado abstrato), mas, ainda assim, não nos parece existir uma significativa diferença entre a declaração da norma geral no caso específico e concreto e a criação de norma individual perante a singularização da norma geral para as partes envolvidas no processo.

Na verdade, o que distingue as duas teorias mencionadas anteriormente é que devemos considerar as particularidades da situação litigiosa. Tanto um como outro conceito exigem isso, o que nos leva a deduzir a importância do modo de apreciação de tais particularidades.

Todavia, as idéias de Kelsen jamais se diferenciaram-se da teoria clássica da jurisdição por avaliar a realidade do caso concreto sob um prisma mais aprofundado.

Em uma sociedade legalmente igualizada, não há dificuldade em se distinguir as peculiaridades dos casos conflitivos.

7.3. O pluralismo e a necessidade de compreensão dos casos concretos.

Sabe-se que, ao exercer suas funções em cada caso levado á sua análise, é fundamental que o Juiz não se afaste da realidade em que vive. O discernimento de novas situações, advindas do avanço tecnológico e cultural da sociedade, bem como a percepção de novos fatos sociais que alvejam a família, a empresa, o trabalho também é indispensável a atribuição de uma visão contemporânea, atual em relação a velhas situações.

Na questão de uma nova elaboração legislativa, a responsabilidade recai muito sobre o juiz, posto que o legislador, por sua vez, é lerdo em comparação à velocidade da

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evolução social. Assim, o surgimento de novos casos e fatos sociais conferem ao juiz legitimidade para construir novos casos e re-construir o significado dos já existentes, num novo dinamismo e forma de visão.

7.4. A Conformação da lei exige a prévia atribuição dê sentido ao caso concreto, mas a definição do caso concreto requer a consideração da lei.

Os novos fatos sociais são vitais para a compreensão do direito ou ainda para a conformação da lei.

Convém destacar que nunca é demais pensar na lei, ou seja, de que forma o caso é analisado por meio desta, como também pelas interpretações dos tribunais.

7.5. A jurisdição, após delinear o caso concreto, deve conformar a lei.

Com o caso concreto em mãos, já delineado, cabe ao Juiz observá-lo através da lei, mas, entretanto, diferente do longínquo Estado liberal, não mais prevalece o princípio da supremacia da lei. Esta não é mais vista como algo perfeito, acabado, intocável.

Sim, hoje, no Estado constitucional, a lei é submissa às normas constitucionais, devendo ser norteada pelos princípios constitucionais da Justiça e pelos direitos fundamentais. Aliás, a função mais significativa do constitucionalismo contemporâneo é iluminar a compreensão do ordenamento jurídico, com ferramentas como por exemplo os princípios materiais de justiça.

Tudo isto significa em dizer com segurança que o juiz não é tão somente um funcionário público que tenciona solucionar as lides mediante a afirmação do texto da lei e sim um agente de poder fazendo valer os princípios constitucionais de Justiça e os direitos fundamentais.

7.6. A decisão a partir dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais.

A visão atualizada da lei perante o Estado constitucional, anteriormente descrita, bem como a importância do papel do juiz, aponta-nos também que o absolutismo do legislador caminha a passos largos rumo à sua finalização. A força normativa dos direitos fundamentais faz com que a Constituição Federal deixe de ser vista como algo abandonado à maioria parlamentar. Muito ao contrário: a vontade do legislador, agora, está submetida à vontade suprema do povo, melhor dizendo, à Constituição e aos direitos fundamentais. Esta é a Justiça do Estado constitucional !!!

Nenhuma lei pode contrariar os princípios constitucionais e os direitos fundamentais. Caso o juiz encontre mais de uma solução para o caso concreto á sua frente, a partir dos critérios clássicos da interpretação da lei, obrigatoriamente deve escolher aquele que imponha mais efetividade á Constituição Federal.

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Quando não há possibilidade deste fato acontecer – não haver uma interpretação de acordo com a legislação constitucional – há a necessidade então do controle de constitucionalidade da lei.

Nesse caso, o juiz de primeiro grau poderá denunciar sua inconstitucionalidade ou, ainda mergulhado na técnica de interpretação de acordo com a Constituição Federal, declarar a única interpretação da lei que não obrigue à declaração de sua inconstitucionalidade. Na primeira situação hipotética, o juiz terá que afastar, como alternativa, a leitura que lhe pareça inconstitucional, valendo-se de outras que, ao contrário, sejam constitucionais. Aqui, é a aplicação da técnica conhecida como “técnica da declaração parcial de nulidade sem redução de texto.”

Entretanto, a jurisdição no Estado Contemporâneo, é a possibilidade de o juiz controlara constitucionalidade por omissão no caso concreto. Há normas constitucionais que obrigam a um dever de legislar e há também direitos fundamentais que, mesmo advindos de normas que silenciam sobre essa espécie de dever, dependem, para sua realização ou proteção, de regramento infra-constitucional.

Os direitos fundamentais devem ser tutelados pelo Estado, não apenas pelo legislador e, no caso concreto, prático, é imperioso verificar se a omissão normativa resultou numa tutela negada ao direito fundamental em questão e, se sim, admitir que o juiz preencha a falta de proteção devida pelo legislador.

É bom lembrar aqui, nesse ítem, no tocante aos limites de um direito fundamental de liberdade. Exemplificando: se o direito à honra ( que é um direito fundamental de personalidade) colide com o direito à liberdade de expressão, questiona-se então a extensão, o âmbito de dois exemplos de direito fundamental, quais sejam: o direito da personalidade (= à honra) versus o direito de liberdade (quanto à expressão livre desta). Verifica-se que ocorreria um choque de direitos fundamentais, neste exemplo dado, o qual teria que ser solucionado pela regra de balanceamento.

Aqui, os princípios e direitos fundamentais não só são a essência orientadora do ordenamento jurídico como também são instrumentos para:

i. a interpretação do acordo;ii. declaração de inconstitucionalidade da lei (ou seja, a eliminação

desta);iii. adequação da lei à Constituição Federal;iv. geração de regra necessária para que o direito fundamental seja feito

valer (controle de omissão de inconstitucionalidade);v. a proteção de um direito fundamental perante outro (por meio da

regra de balanceamento, conforme já explicitado anteriormente).

7.7. Conformação da lei e sentido da criação da norma jurídica pelo juiz.

Convém ressaltar que a expressão “conformação da lei” não quer significar somente interpretação de acordo ou adequação da lei à Constituição Federal. Não ! Tanto é que nas hipóteses de (1) declaração de inconstitucionalidade e (2) de supressão de omissão constitucional há também uma conformação da legislação às normas constitucionais.

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Tal conformação da lei leva o juiz a criar uma norma jurídica; justificando sua decisão mediante a interpretação ou o controle da constitucionalidade.

Esta norma jurídica não é apenas a expressão da interpretação da lei, mas também o produto, o resultado no controle de constitucionalidade. Além do mais, e justamente por isso, está muito longe de significar uma particularização da norma geral (da lei). Destina-se a fundamentar a parte dispositiva (que define o litígio) da sentença.

É necessário discernir que a criação da norma jurídica perante a confirmação da lei e da legislação pode ser dita uma norma jurídica criada diante do caso concreto, mas não uma norma individual que regula o caso concreto.

O mais importante aqui é apontar que esse novo significado da criação da norma jurídica pelo juiz serve para fazer compreender, aclarar não só a conformação da lei isolada, mas também da legislação aos princípios constitucionais de justiça e aos direitos fundamentais.

7.8. O significado da norma jurídica que tutela um direito fundamental diante de outro direito fundamental.

De acordo com o exemplo referido anteriormente, não é correto afirmar que a norma jurídica é criada para conformar a legislação às normas constitucionais.

Leciona Robert Alexy (Teoría de los derechos fundamentales – p. 540-552) que aos direitos de liberdade é atribuída uma prioridade – conhecida como prima face – sobre os demais direitos fundamentais. Entretanto, tal prioridade pode ser superada conforme as circunstâncias do caso concreto e acompanhada de embasamentos e fundamentações fortes o suficientes para mostrar a necessidade de proteção ao direito fundamental que não é detentor de prioridade.

Em momentos nos quais não há possibilidade de hierarquizar os direitos fundamentais em ter si, resta procurar um meio racional para balancear os direitos fundamentais que colidam em situações concretas.

Assim, vê-se que o sistema de balanceamento não se presta ao papel de conformação da lei ou da legislação e sim para a solidificação clara, direta e imediata da própria Constituição.

Quando a prestação jurisdicional sinaliza o resultado do balanceamento dos direitos fundamentais, a norma jurídica está atuando somente em nome dos direitos fundamentais, não dando atenção à conformação da legislação.

7.9. A criação da norma jurídica em face das teorias clássicas da jurisdição.

Se nas teorias clássicas de Chiovenda e Carnelutti, o juiz apenas declarava a lei ou criava a norma individual a partir da norma geral, agora, sob a ótica da jurisdição no Estado contemporâneo, o juiz constrói a norma jurídica a partir da interpretação de acordo com a Constituição Federal, do controle de constitucionalidade e da adoção da já citada regra do balanceamento dos direitos fundamentais no caso concreto, posto que sua função é a de solidificar com clareza os ditames constitucionais.

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7.10 A teoria de que a jurisdição pode criar a norma geral.

Eugenio Bulygin, catedrático de Filosofia do Direito na Universidade de Buenos Aires, sustenta a tese de que os juízes podem criar o direito em determinadas situações excepcionais.

Bulygin contesta a doutrina de Kelsen, no sentido de que o juiz, ao criar a norma individual do caso concreto, cria o direito. Segundo oeste professor argentino, ainda que se aceite a idéia de que o juiz dita a norma individual nos termos kelsenianos, não se pode admitir que o juiz cria o direito, pois tal norma individual se funda em uma norma geral criada pelo legislador. Nesta linha de raciocínio, a conclusão de Kelsen somente estaria certa se o juiz criasse a própria norma geral.

Ele afirma ainda que Kelsen não aceitou a idéia de que o juiz cria a norma geral quando valora a norma legislativa ou a sua ausência como muito inadequada ou injusta, mas sim de que nesse caso ele aplica a norma geral que lhe pareça justa e adequada.

Ou seja: no raciocínio de Kelsen, essa norma geral seria aplicada, ao invés de criada, em razão de que o juiz não pode criar a norma geral, e seria não-positiva por não ter sido criada pelo legislador.

Ora, se a positividade decorre do fato da norma ter sido criada por ato humano, nada poderia impedir que o juiz, em tal caso, na realidade crie a norma geral, sendo essa, conseqüentemente, dotada de positividade.

7.11. A teoria de que a jurisdição pode criar o direito diante do constitucionalismo contemporâneo.

Hodiernamente, com a transformação do conceito de direito e os novos horizontes que a jurisdição segue, o importante é saber como o juiz constrói uma norma jurídica para o caso concreto quando a norma geral: (1) não existe OU (2) está em desacordo com os princípios constitucionais de justiça e com os direitos fundamentais.

A norma jurídica cristalizada mediante a conformação da lei e da legislação ou do balanceamento dos direitos fundamentais pode ser dita uma norma jurídica criada diante das peculiaridades do caso concreto, mas está longe de ser uma simples norma individual voltada a concretizar a norma geral, ou mesmo de representar a criação de um direito.

Convém destacar aqui que, nos casos de interpretação de acordo, de interpretação conforme e de declaração parcial de nulidade sem redução de texto, a norma geral é visivelmente conformada – em menor (no primeiro caso) ou maior medida (nos demais casos) – pelas normas constitucionais.

A jurisdição está apenas cuidando, zelando para que os direitos sejam tutelados constitucionalmente, para que sejam protegidos e efetivados, mesmo que ignorados pelo legislador e para que tais direitos sejam tutelados no caso concreto mediante a aplicação da regra do balanceamento.

Ao agir assim, o juiz cumpre a tarefa que lhe foi atribuída no constitucionalismo contemporâneo e ainda, diante da transformação do próprio conceito de direito, apenas o aplica. Ora, como se a aplicação do direito ou a atuação jurisdicional não estivesse vinculada aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais !!

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7. 12. Ainda que o juiz criasse a norma geral, essa não teria a mesma eficácia de uma norma geral criada pelo legislador.

A norma geral, criada pelo legislador é obrigatória para todos. Mas, ainda que se aceitasse que o juiz pode criar uma norma geral, ela não seria obrigatória sequer para o juiz que é seu vizinho, embora a reiteração de casos perante o judiciário pudesse fazer surgir uma jurisprudência que a solidificasse. E mesmo assim, ainda nessa hipótese, sempre seria possível que um juiz, por vontade própria, divergisse frontalmente da jurisprudência que se formou.

Não há como deixar de identificar a grande diferença, em termos de eficácia vinculante, entre a norma criada pelo legislador e a norma geral que seria capaz de ser criada pelo juiz.

7.13. A grande peculiaridade da norma criada pelo juiz: a necessidade da sua fundamentação.

A sentença, de acordo com o Código de Processo Civil (art. 458), é composta por três partes, a saber:

i. o relatório (aqui, o juiz expõe a situação conflitiva, o pedido do autor e os argumentos das partes, provas,etc);

ii. a fundamentação;iii. a parte dispositiva (expressa a decisão do juiz).

O juiz, como agente do poder não legitimado pelo voto, não pode deixar de justificar as decisões que emite. Enquanto a decisão legislativa ( = a lei) expressa o resultado entre o embate travado por parlamentares, a decisão jurisdicional, por sua vez, embora possa ser aperfeiçoada através de recursos e de formação jurisprudencial, pode ser tomada apenas por um juiz.

E não basta o juiz estar convencido – deve ele demonstrar as razões do seu convencimento. Isso permite o controle das atividades do juiz pelas partes ou por qualquer cidadão, já que a sentença deve ser resultado de um raciocínio lógico capaz de ser demonstrado mediante a relação entre o relatório, a fundamentação e a sentença (a parte dispositiva).

A fundamentação da sentença, diante de sua importância, é obrigatória pela Constituição Federal em seu artigo 93, inciso IX, o que caracteriza uma brutal e absoluta diferença entre a norma já criada pelo legislador e a sentença. A norma geral não é justificada. Uma lei, para ser válida, não precisa trazer em seu corpo os fundamentos que levaram à sua edição, o que é uma diferença marcante entre os processos legislativo e judicial.

7.14. A teoria de que a jurisdição se define pelo seu dever de concretizar os valores públicos.

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Owen Fiss, estudioso norte-americano a respeito do tema, afirma que a função da jurisdição (aí chamada de adjudicação – “adjudication”) é atribuir significado concreto à aplicação aos valores constitucionais.

A doutrina de Fiss é preocupada com a proteção das minorias. Ele parte do princípio de que nenhum regime constitucional pode se legitimar apenas pela obediência à regra da maioria e, conseqüentemente, por meio do predomínio das instituições político-representativas majoritárias em detrimento dos órgãos jurisdicionais. Owen Fiss critica a teoria que coordena a relação entre os tribunais e as outras agências de governo com base no que ele chama de critério do “defeito legislativo” (legislative failure).

Segundo a teoria do defeito legislativo, os tribunais devem deferência ao Poder legislativo, em questões constitucionais, a menos que haja alguma razão para assumir que o processo legislativo esteja funcionando inadequadamente.

O juiz, em vez de pretender falar em nome das minorias, deve conferir significado aos valores constitucionais. Isso porque não teria sentido dar ao juiz a função de representante das minorias, mas sim a possibilidade de descobrir o que é verdadeiro, justo ou correto a partir do texto da Constituição, da história e das idéias sociais.

Se é certo que o juiz deve compreender a lei na medida da Constituição, isso não quer dizer que lhe basta atribuir sentido aos seus valores (da Constituição). Para realizar a função jurisdicional, o juiz, consciente do significado da Constituição, deve atribuir sentido ao caso concreto e, a partir daí, dar tutela concreta ao direito material. Por isso, é fundamental compreender adequadamente o que Owen Fiss entende por “dar sentido aos valores públicos”.

Para ele, “os tribunais existem para dar sentido aos nossos valores públicos, não para resolver disputas. A jurisdição constitucional é a mais viva manifestação dessa função, mas ela também parece verdadeira para a maior parte dos casos civis e criminais.”

Como bem pontua Owen Fiss: “A tarefa não é apenas declarar quem está certo e quem está errado (...) a tarefa é remover a condição que ameaça os valores constitucionais.”

Muito mais do que atribuir significado a uma norma, cabe à jurisdição realizar, no caso concreto, o que foi por ela prometido.

7.15. A idéia de que a jurisdição tem por objetivo a pacificação social.

Fala-se, também, que a jurisdição tem por objetivo a pacificação social.

Tal idéia está relacionada com três questões, a saber:

i. a existência do juiz dá aos litigantes a consciência de que os seus conflitos têm uma forma de resolução instituída e estatal, o que elimina as tentativas de soluções privadas arbitrárias e violentas;

ii. a jurisdição acomoda as disputas, evitando a potencialização e o agravamento das discussões;

iii. ainda que um dos litigantes não se conforme com a decisão, ele já sabe que, perante a impossibilidade de levar novamente ao juiz o conflito já solucionado, nada mais lhe resta a fazer e, assim, seria improdutivo e ilógico continuar sustentando a sua posição.

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Ocorre que essas três características, as quais serviriam para identificar um fim de pacificação social na jurisdição, são completamente neutras e indiferentes à substância da função ou da decisão jurisdicional que conduziria à pacificação.

Na realidade, a pacificação social nada mais é do que uma mera conseqüência da existência de um poder de resolução dos conflitos que se sobreponha sobre os seus subordinados, e não um resultado particular e próprio do Estado constitucional.

Assim, parece não ser adequado concluir que a jurisdição se caracteriza pelo fim da pacificação social, pois é preciso, antes de mais nada, analisar de que forma esse fim é obtido ou, em outras palavras, verificar a legitimidade do poder de resolução dos conflitos e das decisões destinadas a regulá-los.

7.16. A jurisdição deve responder às necessidades do direito material.

Como o juiz deve dar sentido ao caso diante da lei, da realidade social e da Constituição, ele obviamente não pode formular a norma jurídica do caso concreto olhando apenas para a Constituição. Para a prestação da tutela jurisdicional é indispensável a consideração das necessidades do direito material, uma vez que as normas constitucionais devem iluminar a tarefa de tutela jurisdicional dos direitos.

É por isso mesmo que a teoria que afirma que a jurisdição tem o objetivo de concretizar os valores constitucionais não é bastante para explicar a complexidade da função do juiz. Na verdade, a jurisdição tem o objetivo de dar tutela às necessidades do direito material, compreendidas à luz das normas constitucionais e, apenas por consequência desta sua missão, é que pode gerar o efeito da pacificação social.

7.17. A tutela dos direitos transindividuais.

O Estado contemporâneo realçou a existência de direitos transindividuais, assim compreendidos os direitos que não pertencem a uma, mas sim a várias pessoas. O Código de Defesa do Consumidor definiu a existência de direitos difusos e coletivos. Afirmou que “ambos são transindividuais, de natureza indivisível”, mas enquanto os difusos são pertencentes a “pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”, os coletivos são do “grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si com a parte contrária por uma relação jurídica base” (art. 81, parágrafo único, I e II, CDC).

Para a proteção desses direitos, o legislador instituiu técnicas ou modelos processuais diferenciados, isto é, voltados a atender as suas especificidades. (artigos 82 e 103, CDC).

Mas, para efeito da compreensão da “jurisdição”, mais do que a constatação da existência de tais direitos e de técnicas processuais voltadas à sua tutela, importa identificar a razão de ser da idealização desses novos modelos processuais dirigidos à tutela jurisdicional.

As “ações coletivas” – como podem ser chamados os modelos concebidos para a tutela dos direitos transindividuais – têm importante relação com os direitos fundamentais prestacionais. Tais ações permitem a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais que exigem prestações sociais (direito á saúde, etc) e adequada proteção, 25

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mas além disso tudo, constituem condutos vocacionados a permitir ao povo reivindicar os seus direitos fundamentais materiais.

Assim, podemos observar que as ações coletivas são verdadeiros instrumentos de uma faceta muito especial dos direitos fundamentais, pois estes requerem a possibilidade da participação na estrutura social e no poder mediante instrumentos e procedimentos adequados.

A ação coletiva é, por si só, uma resposta aos direitos fundamentais, ou melhor, a realização de uma prestação por parte do legislador, destinada a viabilizar a participação da sociedade na reivindicação dos direitos fundamentais.

Portanto, a jurisdição estimula, fomenta a participação para a proteção dos direitos fundamentais e para o controle das decisões tomadas pelo Poder Público. Mas não é certo concluir que a jurisdição apenas colabora para a participação, pois ela “decide”, vale dizer, exerce o seu poder ao decidir sobre os direitos transindividuais e sobre a lisura na gestão do bem público.

De modo que as ações processuais que garantem a participação, seja na proteção dos direitos fundamentais, seja no controle das decisões públicas, conferem um plus à função jurisdicional, sobretudo porque a jurisdição toma o seu lugar para a efetivação da democracia, que necessita de técnicas de participação “direta” para poder construir uma sociedade mais justa.

7.18. Dar tutela aos direitos não é simplesmente editar a norma jurídica do caso concreto.

Não basta ao juiz compreender e conformar a lei de acordo com as normas constitucionais, concluindo que o autor tem um direito que deve ser tutelado. Cabe à jurisdição dar tutela aos direitos, e não apenas dizer quais direitos merecem proteção. O que agora interessa é saber o que significa dar tutela jurisdicional aos direitos.

Ora, dar tutela aos direitos nada mais é do que lhe outorgar, lhe conceder proteção.

É fácil perceber que a discussão em torno do significado de tutela jurisdicional obriga a uma ruptura com a idéia de que a função jurisdicional é cumprida com a edição da sentença (da declaração do direito ou da criação da norma individual), exigindo que, para a compreensão do significado da prestação jurisdicional, se caminhe um pouco mais além.

Frise-se que o direito de ação foi concebido, já há bastante tempo, como direito a uma sentença de mérito. Acontece que a sentença que reconhece a existência de um direito, mas não é suficiente para satisfazê-lo, não é capaz de expressar uma prestação jurisdicional efetiva, uma vez que não tutela o direito, o que não permitiu que o juiz se desincumbisse de seu dever perante a sociedade.

Diante disso, não há dúvida de que a tutela jurisdicional só se aperfeiçoa, nesses casos, com a atividade executiva . Portanto, a jurisdição não pode significar mais apenas “dizer o direito” ou iuris dictio. Na verdade, mais do que direito à sentença, o direito de ação, hoje, tem como corolário, como conseqüência o direito ao meio executivo adequado.

A tutela jurisdicional é prestada quando o direito é tutelado e, dessa forma, realizado, seja através da sentença (quando ela é bastante para tanto), seja através da

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execução. Passa a importar, sob essa perspectiva, o modo como a legislação e o juiz devem se postar para que os direitos sejam efetivamente tutelados (ou executados).

7.19. A jurisdição a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional.

O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva recai sobre o legislador e o juiz, ou seja, sobre a estruturação legal do processo e sobre a conformação dessa estrutura pela jurisdição.

Entretanto, não basta parar na afirmação supra citada, pois supor que o legislador sempre atende às tutelas prometidas pelo direito material e às necessidades sociais de forma perfeita constitui ingenuidade inescusável.

Aliás, se o legislador atuasse de maneira ideal e perfeita, jamais haveria necessidade de subordinar a compreensão da lei à Constituição, mesmo quando a lei se refere ao direito material.

A obrigação de compreender as normas processuais a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional confere ao juiz o poder-dever de encontrar a técnica processual adequada e capaz de proporcionar proteção (ou à tutela) do direito material.

O encontro da técnica processual adequada exige a interpretação da norma processual de acordo com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva através de técnicas de interpretação conforme e da declaração parcial de nulidade sem redução de texto, ou seja, para não se declarar a inconstitucionalidade de uma regra processual, adequando o significado do seu texto, conformando-o com a Constituição.

Cumpre ressaltar aqui que o legislador está consciente, hoje, de que deve dar aos jurisdicionados e ao juiz maior poder para utilização do processo. É por isso que institui normas processuais abertas (como a do artigo 461 do CPC), ou seja, normas que oferecem um leque de instrumentos processuais, dando ao cidadão o poder de construir o modelo processual adequado e ao juiz, por sua vez, de utilizar a técnica processual idônea, apta à tutela da situação concreta.

Além disso, as necessidades do caso concreto podem reclamar técnica processual não prevista em lei, quando o juiz poderá suprir a omissão que dificulta a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional mediante o que se pode denominar de técnica de controle da inconstitucionalidade por omissão.

7.20. As regras processuais abertas como decorrência do direito fundamental à tutela jurisdicional.

Com o passar do tempo, tornou-se necessário munir os litigantes e o juiz de uma maior elasticidade quanto ao poder, seja para permitir que os jurisdicionados pudessem utilizar o processo de acordo com as novas situações de direito material e com as realizações concretas, seja para dar ao juiz a efetiva possibilidade de tutela-las.

Tal necessidade levou o legislador não só a criar uma série de institutos dependentes do preenchimento de conceitos indeterminados – como a tutela antecipatória fundada em “abuso de direito de defesa” (artigo 273, II, CPC) -, admitindo o seu uso na generalidade dos casos, mas também a fixar o que chamo de normas processuais abertas (artigo 461, CPC).27

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Cabe lembrar que a lei processual, evidentemente, não pode antever as verdadeiras necessidades de direito material, uma vez que essas não apenas se transformam diariamente, mas igualmente assumem contornos variados, conforme os casos concretos. Diante disso, chegou-se naturalmente à necessidade de uma norma processual destinada a dar aos jurisdicionados e ao juiz o poder de identificar, ainda que dentro de sua moldura, os instrumentos processuais adequados à tutela dos direitos.

Se antes o controle do poder jurisdicional era feito a partir do princípio da tipicidade, ou da definição dos instrumentos que podiam ser utilizados, hoje esse controle é mais complexo e sofisticado.

O artigo 461 do CPC afirma que o juiz poderá impor multa diária ao réu para constrangê-lo ao cumprimento de uma ordem de fazer ou de não fazer, seja na concessão da tutela antecipatória, seja na sentença definitiva da tutela final (artigo 461, §§ 3º e 4º) ou, ainda, determinar, para dar efetividade a qualquer uma dessas decisões, as “medidas necessárias”, que são exemplificadas, pelo § 5º do artigo 461, com a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva.

Assim, para a adequada aplicação da norma do artigo 461, o juiz é obrigado a identificar e precisar as necessidades de direito material particularizadas no caso concreto.

Contudo, quando se pensa na técnica processual capaz de garantir a efetividade da tutela do direito, não se pode esquecer da esfera jurídica do réu. Não há como admitir que a escolha de técnica processual possa prejudicar o demandado. Isso quer dizer que a utilização da técnica processual, diante da norma processual aberta, tem a sua legitimidade condicionada a um prévio controle, que considera tanto o direito do autor, quanto o direito do réu.

Esse controle pode ser feito a partir de duas sub-regras da regra da proporcionalidade, isto é, das regras da (1) adequação, que é a que se apresenta faticamente idônea à proteção do direito e da (2) necessidade, que é a providência jurisdicional faticamente efetiva para a tutela do direito material, sendo a mais suave ou menos lesiva. Tais sub-regras, embora façam parte do raciocínio decisório, pois viabilizam a decisão, naturalmente que não podem ser ignoradas quando da justificativa. Até porque tais sub-regras servem muito mais para que se possa justificar a decisão de um modo racional, permitindo-se seu controle pelas partes, do que para facilitar tal decisão.

7.21. A ausência de regra processual capaz de viabilizar a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional.

Resta ainda tratar dos casos de ausência de regra ou técnica processual ou de previsão de técnica processual para uma situação diferente da contemplada no caso concreto. Tome-se como exemplo o caso da execução da tutela antecipatória de soma em dinheiro. Ao examinarmos os artigos 272, § 3º, do CPC junto ao artigo 461, § 4º e § 5º e artigo 461-A, conclui-se que esta norma se omitiu em relação à forma de execução da tutela antecipatória de soma em dinheiro.

Essa omissão, no entanto, pode ser seguramente suprida quando se tem consciência de que a técnica processual depende apenas da individualização das necessidades do caso concreto. Ou seja, se o juiz identifica a necessidade de antecipação de soma em dinheiro, e concede a tutela antecipatória, acaba lhe sendo fácil

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identificar a necessidade de um meio executivo capaz de dar efetivo atendimento à tutela antecipatória.

Para que a jurisdição possa exercer a sua missão – que é tutelar os direitos – e para que o cidadão realmente possa ter garantido o seu direito fundamental á tutela jurisdicional, não há outra alternativa a não ser admitir ao juiz a supressão da omissão inconstitucional, posto que é evidente que a omissão do legislador não justifica a omissão do juiz.

7.22. A subjetividade do juiz e a necessidade de explicitação da correção da tutela jurisdicional mediante a argumentação jurídica.

É evidente que a necessidade de compreensão da lei a partir da Constituição aumenta o risco de subjetividade, de individualismo à sua justificação. Já foi dito, inclusive, que “justificar uma decisão judicial consiste em dar-lhe as razões apropriadas.” (Jersy Wróblewski).

Assim, o problema de legitimidade de tutela jurisdicional, no Estado contemporâneo, está em verificar se é possível justificar a decisão do juiz. O certo é que não se pode isentar o juiz do dever de demonstrar que a sua decisão é racionalmente aceitável, isto é, a melhor que poderia ser proferida diante da lei, da Constituição Federal.

Acontece, entretanto, que uma decisão não é racional em si, pois a racionalidade não é uma característica sua. Uma decisão “se mostra” racional ou não. Para tanto, necessita de “algo”, isto é, da racionalidade da argumentação que a fundamenta. Tal argumentação, a cargo da jurisdição, é que pode demonstrar a racionalidade da decisão e, nesta perspectiva, a decisão correta.

De acordo com Carlos Santiago, para justificar suas decisões, os juízes devem recorrer a razões justificatórias, que são, em verdade, princípios morais considerados válidos,

Mesmo quando exista uma norma jurídica precisa para justificar a decisão que se deve adotar, ela não pode incorporar-se, como tal, ao raciocínio justificatório com independência de juízes valorativos. Quando os juízes apóiam suas decisões em normas jurídicas, fazem-no através de juízos de “adesão normativa”, que consistem em juízos valorativos que se inferem de princípios morais que prescrevem obedecer a ordem jurídica e de proposições descritivas dessa “ordem jurídica”. É esta a conclusão de Carlos Santiago.

7.23. O método do balanceamento dos direitos fundamentais, a interpretação de acordo e as técnicas de controle de constitucionalidade diante da argumentação jurídica.

Embora os princípios não possam ser hierarquizados, eles podem ser colocados em ordem mediante uma relação de prioridade prima facie. Essa prioridade significa que os direitos de liberdade e igualdade preferem, em princípio, aos demais direitos fundamentais. Em outras palavras, tal prioridade ou preferência faz com que os direitos fundamentais não estejam em um mesmo plano, na perspectiva da argumentação, quando se chocam em um caso concreto.

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Quando, por exemplo, o direito de liberdade de expressão colide com o direito à honra, já existe em favor do direito de liberdade uma carga argumentativa implícita. Assim, caso a argumentação em favor do direito da personalidade não seja capaz de demonstrar que o direito de liberdade deva ceder, isso não ocorrerá. Para que um princípio possa se sobrepor ao princípio da liberdade é preciso uma argumentação mais forte do que a necessária para sustentá-la.

Como é fácil perceber, ao se outorgar prioridade aos princípios da liberdade e da igualdade, articula-se uma forma de argumentação que se diferencia de acordo com a natureza do direito fundamental, estruturando-se uma argumentação jurídica segundo os princípios.

Aqui, não basta salientar que a argumentação é estruturada segundo a natureza do direito fundamental – é preciso deixar claro que essa argumentação deve recair nas características concretas que sejam capazes de sustentar tal argumentação.

Daqui por diante, não é difícil seguir para a “interpretação de acordo”. Quando são encontradas, a partir dos métodos clássicos, duas ou mais interpretações, o raciocínio deve buscar a que melhor se ajusta às normas constitucionais.

Não é preciso alegar contra ou a favor da lei, mas apenas em prol da sua melhor interpretação, isto é, da solução que confira a maior efetividade aos direitos fundamentais.

O mesmo não ocorre nos casos de controle de constitucionalidade. Aí não há como interpretar alei de acordo, pois a lei não é compatível com a Constituição.

Perante o emprego de tais técnicas é possível encontrar uma norma jurídica capaz de impedir a declaração de inconstitucionalidade, argumentando-se, na interpretação conforme, ser essa a interpretação capaz de fazer valer a Constituição, e, na declaração parcial, que as interpretações propostas são contrárias à Constituição, mas uma é adequada ao caso concreto, ainda que existam outras que, abstratamente , sejam viáveis na compreensão constitucional.

A direção da argumentação volta a se modificar no caso de omissão constitucional. Nessa hipótese é necessário argumentar que o direito fundamental necessita de uma lei para implementá-lo ou para protegê-lo. Como é óbvio, não se tratar de se alegar contra a lei – pois ela não existe -, mas sim de demonstrar que a ausência de lei impede a realização suficiente do direito fundamental segundo o mínimo constitucionalmente exigido.

Mas não basta apenas demonstrar de que forma a argumentação incide diante da estrutura do balanceamento, da interpretação de acordo e das técnicas de controle da constitucionalidade, sendo também necessário precisar em que termos a lei e os direitos fundamentais sujeitam a argumentação.

Por outro lado, sabe-se que a lei, em princípio, é considerada de acordo com a Constituição. Por isso de declaração da inconstitucionalidade da lei exige que a argumentação tenha um peso capaz de demonstrar a sua incompatibilidade com os direitos fundamentais.

7.24. A argumentação jurídica em prol da técnica adequada ao direito fundamental à tutela jurisdional.

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Quando se trata de argumentação em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental à tutela jurisdicional, é preciso relacionar a argumentação com as modalidades da compreensão da lei, a saber:

i. interpretação de acordo alega-se em favor de uma interpretação que, sendo capaz de atender às necessidades do direito material, confira a devida efetividade ao direito fundamental à tutela jurisdicional.

ii. Interpretação conforme argumentação que a lei, consideradas as necessidades do caso concreto e o direito fundamental á tutela jurisdicional, precisa de “um ajuste” para não ser dita inconstitucional;

iii. declaração parcial de nulidade aqui, o argumento deve ser no sentido de que determinadas interpretações inviabilizam o efetivo atendimento das necessidades do direito material e, por consequência, a atuação do direito fundamental, mas há uma interpretação que se ajusta perfeitamente ao caso.

iv. concretização da norma geral a necessidade de justificar a utiização da técnica processual é, antes de mais nada, decorrência da própria estrutura dessa modalidade de norma, instituída para dar ao juiz poder necessário para atender ás variadas situações concretas.

Lembre-se que ao aplicar as normas processuais abertas, o juiz tem o dever de encontrar uma técnica processual ou um “modo” processual que seja capaz de atender ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Sim, o juiz deve alegar que o “modo” encontrado, além de dar efetividade, eficácia ao direito fundamental à tutela jurisdicional, é o que gera a menor restrição possível ao demandado.

v. omissão da regra constitucional nesta hipótese ou na de inesxistência de técnica processual adequada ao caso concreto, a diferença, em termos de argumentação, é a de que o juiz deverá demonstrar que as necessidades de direito material exigem uma técnica que não está prevista pela legislação processual.

Está evidente que o uso das técnicas processuais idôneas para lhes dar proteção obviamente devem ser precisamente justificados.

Antes de partir para o encontro da técnica processual adequada, o juiz deve demonstrar as necessidades de direito material, indicando como as encontrou no caso concreto. O discurso jurídico é, em outros termos, um discurso que tem a sua base em um discurso de direito material.

Já o discurso de direito processual não representa qualquer ameaça à segurança jurídica, na medida em que parte de um discurso que se apóia nos fatos e no direito material. O discurso processual objetiva atender a uma situação já demonstrada pelo discurso de direito material, com a técnica processual mais suave, ou seja, a que, tutelando o direito, cause a menor restrição possível ao réu.

7.25. A definitividade.

As decisões jurisdicionais que julgam os conflitos , e assim colocam fim aos processos, são revestidas do atributo da definitividade ou são dotadas das características da indiscutibilidade e da imutabilidade.

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Por isso, a jurisdição não é apenas um meio de resolver litígios, mas fundamentalmente uma manifestação estatal voltada a elimina-los, ou melhor, a solucioná-los definitivamente, fazendo com que os envolvidos reconheçam seu fim.

A decisão jurisdicional, além de resolver os conflitos, deve se impor, tornando-o imutável e indiscutível. Isso não apenas para que a autoridade do Estado possa se afirmar, mas também porque os cidadãos têm a necessidade de ver os seus conflitos solucionados de forma definitiva.

Direito fundamental à tutela jurisdicional não significa apenas direito fundamental à resolução adequada do litígio, pois está fora de qualquer dúvida que esse direito tem como corolário, como consequência ou teorema o direito à definitividade do conflito.

Para se dizer que a decisão jurisdicional que resolve os litígios não pode ser negada ou rediscutida, afirma-se que ela produz coisa julgada material. E a Constituição Federal, sabedora desse instituto para a caracterização do Estado e para a plena conformação do direito fundamental à tutela jurisdicional estabelece em seu artigo 5º, inciso XXXVI, que a lei não prejudicará a coisa julgada (além do direito adquirido e do ato jurídico perfeito).

A coisa julgada material, além de se constituir em pilar do Estado Democrático de Direito, é corolário do direito fundamental à tutela jurisidcional efetiva.

7.26. Conclusões acerca da concepção contemporânea de jurisdição.

Diante da transformação da concepção do direito, não há mais como sustentar as antigas teorias da jurisdição, que reservavam ao juiz a função de declarar o direito ou de criar norma individual, submetidas que eram ao princípio da supremacia da lei e ao positivismo acrítico.

Sim, o Estado constitucional inverteu os papéis da lei e da Constituição, deixando claro que a legislação deve ser compreendida a partir dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais. Expressão concreta disso são os deveres de o juiz interpretar a lei de acordo com a Constituição, de controlar a constitucionalidade da lei, especialmente atribuindo-lhe adequado sentido para evitar a declaração de inconstitucionalidade, e de suprir a omissão legal que impede a proteção de um direito fundamental.

O juiz está sujeito às normas constitucionais e, portanto, se pode conformar a lei e a legislação ou mesmo tutelar os direitos que colidem no caso concreto, a sua atividade não implica em “criação do direito”.

A importãncia da perspectiva do direito material fica ainda mais nítida quando se percebe que a função do juiz não é apenas a de editar a norma jurídica, mas sim a de tutelar concretamente o direito material, se necessário mediante meios de execução.

O direito fundamental à tutela jurisdicional, além de ter como teorema o direito ao meio executivo adequado, exige que os procedimentos e a técnica processual sejam estruturados pelo legislador segundo as necessidades do direito material e compreendidos pelo juiz de acordo com o modo como essas necessidades se revelam no caso concreto.

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Não há dúvida de que a jurisdição, atualmente, tem a função de tutelar (ou proteger) os direitos, especialmente os direitos fundamentais. Isto não quer dizer, como é óbvio, que a jurisdição não se preocupe em garantir a idoneidade da defesa ou a adequada participação do réu. O que se deseja evidenciar aqui é que a função jurisdicional é um conseqüência natural do dever estatal de proteger os direitos, o qual constitui a essência do Estado contemporâneo.

Sim, o Estado possui o dever de proteger determinados direitos, mediante normas e atividades fático-administrativas, em razão de sua relevância social e jurídica. Trata-se do dever de tutelar os direitos fundamentais. Mas não é só. O Estado também tem o dever de tutelar jurisdicionalmente os direitos fundamentais, inclusive suprindo eventuais omissões de tutela normativa(relativa a preceitos), além de ter o dever de dar tutela jurisdicional a toda e qualquer espécie de direito – em razão do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (artigo 5º, XXXV, CF/88).

O Estado tem o dever de prestar a proteção jurisidicional prometida pelos direitos – transindividuais ou individuais.

Mais importante do que isso é atentar para o fato que toda posição jurídica deve ser devidamente protegida ou tutelada.

Uma posição jurídica é protegida quando tem ao seu dispor formas de tutela dos direitos, especialmente formas de tutela jurisdicional.

Como se vê, o direito à tutela jurisdicional do direito não tem qualquer relação com a noção clássica de direito subjetivo. Nenhum particular tem poder para vincular a outro. O direito á tutela do direito não resulta de um vínculo estabelecido entre sujeitos, em que um deles pode exigir do outro certa prestação, mas sim da existência de uma posição jurídica protegida.

Convém ressaltar que a diferença básica é a de que, na nova concepção de jurisdição, a lei é atuada em uma dimensão mais profunda, mais complexa e sofisticada, e com a meta de permitir a tutela ou a proteção dos direitos, a qual decorre de uma posição jurídica e é devida pelo Estado a partir do direito material – note-se bem.

O que se quer é evitar que a inidoneidade técnica do processo ou a falta de compreensão constitucional do juiz impeçam a efetiva proteção das diferentes necessidades do direito material – como, por exemplo, a tutela preventiva (a tutela inibitória) de um direito da personalidade.

Trata-se, para se dar a última palavra, de costurar os planos do processo e do direito material mediante as linhas da Constituição e dos direitos fundamentais, utilizando-se especialmente o instrumento conceitual das “tutelas dos direitos”, e sem evidentemente negar que a jurisdição faz a integração entre as esferas material e processual.

Páginas: 140 a 182

Elaborado por: Mariana Gama ([email protected])

8 Jurisdição Voluntária, Distribuição da Atividade Jurisdicional (Competência) e Arbitragem

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8.1 Jurisdição voluntária

As questões da chamada jurisdição voluntária, que não objetivam a solução de conflitos de interesses, são submetidas à jurisdição em função de sua repercussão social. A elas contrapõem-se os “procedimentos especiais de jurisdição contenciosa”, reguladores de conflitos envolvendo situações de direito substancia.

Assim, a jurisdição, em alguns casos, não atua para resolver um conflito de interesses, mas somente para zelar por algumas situações de direito material que, diante da sua relevância social e ao ver do legislador, não podem ficar entregues apenas aos particulares envolvidos, ou ainda ser recepcionadas por uma autoridade administrativa ou por um sujeito privado.

Ao se referir à jurisdição voluntária como “administração pública de interesses privados” a doutrina o faz com base no argumento de que a jurisdição, nessas hipóteses, não julga um conflito de interesses. Partindo a doutrina da premissa de que a jurisdição se limita a resolver conflitos de interesses, conclui, de forma completamente acrítica, que não se pode admitir que, no âmbito da jurisdição voluntária, haja: i) ação; ii) processo; iii) partes e iv) coisa julgada material.

A jurisdição não pode ter a sua dimensão reduzida a resolver conflitos, especialmente agora, diante do espaço reservado ao juiz no Estado contemporâneo. Tampouco há que se dizer que uma atividade pelo simples fato de ser confiada a um juiz, assume natureza jurisdicional.

O dever jurisdicional de proteção certamente não pode ser resumido a um dever de tutela do direito ameaçado ou violado, pois ninguém pode negar que o legislador, ao estabelecer um procedimento de jurisdição voluntária, atua exatamente para garantir a proteção de um direito socialmente relevante.

Considerada a dimensão da jurisdição do Estado constitucional, ou seja, o fato de que não vale mais o princípio da supremacia da lei e que, portanto, muito mais do que fazer atuar a lei não observada, a jurisdição tem o dever de dar proteção aos direitos (especialmente aos direitos fundamentais e aos de maior relevância social), não há como negar que a função do juiz, na chamada jurisdição voluntária, é evidentemente de natureza jurisdicional. Isso pela simples razão de que o juiz, na jurisdição voluntária, é incontestavelmente chamado para dar proteção aos direitos (como exemplo podemos citar a atuação do magistrado na separação consensual, em que há a relevância do bem ou do direito que pode ser agredido diante dos efeitos que podem ser produzidos pela manifestação de vontade de ambas as partes interessadas. O juiz é assim convocado para proteger o bem ou o direito que, na ausência da participação da jurisdição, ficaria entregue à vontade dos particulares ou à recepção de uma autoridade administrativa ou de um sujeito privado).

Para Chiovenda, o provimento de jurisdição voluntária, como ato de pura administração, não produz por si coisa julgada. Assim, para Chiovenda só há jurisdição onde há provimento capaz de produzir coisa julgada material. Entretanto, a idéia de ligar jurisdição a coisa julgada material, que deu origem “ao mito da coisa julgada”, está destinada a desaparecer em vista das novas exigências do mundo contemporâneo, que não mais podem esperar a “coisa julgada material” (isto é, a declaração relevante, que somente pode ser produzida pela cognição exauriente) para a realização dos direitos.

Além disso, obviamente não se diz o mesmo quando se afirma que a coisa julgada, no processo voltado a dirimir conflitos, é uma característica da jurisdição e que sem coisa julgada não há jurisdição. Uma coisa é se afirmar que a coisa julgada é

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imprescindível para dar estabilidade às decisões que julgam os litígios; outra, completamente diferente, é se concluir que não existe jurisdição sem coisa julgada material. A jurisdição não é indissociável da coisa julgada material. O que é essencial para a decisão jurisdicional é a sua potencialidade à estabilidade. E não há como negar que as decisões da “jurisdição voluntária”, embora não sujeitas à coisa julgada material, são dotadas dessa potencialidade. Basta lembrar que a parte não satisfeita com a decisão de jurisdição voluntária transitada em julgado, embora não adstrita aos limites da ação rescisória, está submetida à ação de desconstituição, incidindo o art. 486 do CPC.

8.2 Distribuição da atividade jurisdicional (competência)

Na estrutura do Poder Judiciário brasileiro pode-se vizualizar uma divisão entre a chamada “justiça comum”, que se divide e em “justiça federal” e “justiça estadual”, e a chamada “justiça especial”, que se divide em justiça do trabalho, justiça eleitoral e justiça militar.

A repartição da atividade jurisdicional implica no dimensionamento da jurisdição em face dos vários órgãos de prestação da justiça, o que conduz à idéia de que tais órgãos exercem “parcela de jurisdição”. Mas, na verdade, tais “parcelas” nada mais são do que as atividades jurisdicionais atribuídas aos órgãos judiciários, o que se denomina de “competência”.

8.3 A Arbitragem

A arbitragem surgiu para combater a demora e o despreparo do Estado para o julgamento de determinados conflitos. No Brasil, o instituto foi consolidado com o advento da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/96 – LA) e poderá ser contratada pelas pessoas capazes para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis os quais serão julgados por qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes (art. 13/LA).

Não se pode afirmar a inconstitucionalidade da Lei de Arbitragem argumentando-se que não é possível excluir da jurisdição (aqui entendida como Poder Judiciário) o julgamento de um conflito, pois, para a o doutrina, o que a LA em verdade fez foi ampliar as dimensões da jurisdição, conferindo legitimidade constitucional ao julgamento do árbitro.

Marinoni critica este posicionamento ensinando que a filosofia da arbitragem relaciona-se exclusivamente à autonomia da vontade, sendo correto dizer que a LA teve apenas propósito de regular uma forma de manifestação da vontade, o que nada tem a ver com as essências da jurisdição e da arbitragem.

A arbitragem existe porque o princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV) não proíbe que pessoas capazes possam excluir a possibilidade de o Poder Judiciário rever conflitos seus que digam respeito a direitos patrimoniais disponíveis. Todavia, não é por isso que se pode falar em arbitragem jurisdicional. Assim, a autonomia da vontade permite que pessoas capazes escolham entre duas formas distintas de solução de conflitos, abrindo mão de uma série de garantias que lhes são constitucionalmente atribuídas.

Para diferenciar ambos os institutos, há que se lembrar da essência da jurisdição e do princípio da unidade da jurisdição. Com efeito, neste caso há que se lembrar que a jurisdição, dentre outros, é marcada pelo princípio da investidura, da indelegabilidade e do juiz natural. Assim, a jurisdição somente pode ser exercida por uma

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pessoa investida na autoridade de juiz, após concurso público de provas e títulos1. Ademais, a jurisdição é indelegável, pois nenhum dos “Poderes” pode delegar os poderes que lhe foram atribuídos pela Constituição. A jurisdição ainda confere ao cidadão um juiz natural2, constitucionalmente independente e imparcial3. Tais garantias são reforçadas e supervisionadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CF, art. 92, I-A e art. 103-B, § 4º), criado pela EC n. 45/04, cuja competência abrange a de controlar o “cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”.

Também não se pode dizer que a jurisdição é caracterizada pela “pacificação social”, seja porque esta não decorre necessariamente de uma decisão justa ou porque inúmeras atividades privadas podem conduzir à pacificação social e nunca foram qualificadas como jurisdição.

A mistura da atividade do árbitro com a atividade da jurisdição, ou o superdimensionamento do conceito de jurisdição, além de desqualificar a essência da jurisdição no quadro do Estado constitucional, coloca no mesmo patamar objetivos que nada têm em comum, pois não há como relacionar o dever estatal de proteção dos direitos com a necessidade de se conferir a determinados conflitos julgadores dotados de conhecimento técnicos particulares (a especialização do árbitro na matéria do conflito é um dos motivos que levam às partes a contratar a arbitragem).

Há também que se lembrar que os árbitros são escolhidos pelas partes, são pagos partes e influenciados por uma série de práticas (como uma relutância em redigir opiniões ou gerar precedentes) que localizam ou privatizam a decisão. A função do juiz, por outro lado, deve ser compreendida em termos inteiramente diferentes: ele é um agente público, não é escolhido pelas partes, mas pelo público ou seus representantes (ou por concurso público de provas e títulos) e investido pelos órgãos políticos (no Brasil, exceto pelo primeiro grau de jurisdição), para criar e impor normas de amplitude social como um meio de dar sentido aos nossos valores públicos.

Ressalte-se, por oportuno, que a arbitragem exclui do controle do Estado parte relevante de conflitos privados, exatamente dos conflitos sensíveis a uma classe privilegiada, o que pode significar a intenção de afastar o Estado do controle de certos interesses e relações jurídicas.

A ausência de controle estatal, até mesmo sobre os conflitos, caracteriza o projeto neoliberal, que deseja a mínima interferência possível do Estado e, assim, pressupõe as idéias de auto-regulação e auto-resolução de conflitos.

Todavia, a construção de um lugar próprio para a solução dos conflitos faz surgir, como conseqüência natural, o desinteresse dos donos desses conflitos pela efetividade do Poder Judiciário, especialmente quando se percebe que os litigantes dos casos entregues à arbitragem podem ser os réus nas demandas propostas pelos particulares e pelo próprio Estado perante a jurisdição, fazendo surgir duas classes de justiça, a privada e a estatal, ambas igualmente servindo a uma mesma classe social, em

1 Nesse sentido, ver o art. 93, I/CF.2 Exige-se também do juiz que ele seja objetivo, isto é, que não expresse suas preferências ou crenças pessoais, ou as dos demais cidadãos, sobre o que é correto e justo, mas a empenhar-se na busca constante do verdadeiro sentido constitucional. Dois aspectos da função judicial dão a ela este molde especial: um é a obrigação do juiz de participar de um diálogo e a segunda é a sua independência.3 Sobre as garantias de um juiz natural, imparcial e independente no direito pátrio, ver a CF/88, art. 95, I, II e III (juiz independente) e art. 95, parágrafo único, I, II, III, IV e V (juiz imparcial). São garantias da independência: i) vitaliciedade no cargo; ii) impossibilidade de remoção injustificada do juiz; e iii) impossibilidade de redução de seus vencimentos.36

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um local preocupada com a efetividade e com a tempestividade e no outro apostando na inefetividade e na demora.

Além do mais, o perigo de excluir da jurisdição parcela dos direitos não está apenas em negar a devida atenção à justiça estatal, mas também em permitir a relativização do conceito de direito indisponível, viabilizando a sua acomodação às intenções daqueles que querem se livrar do controle do Estado.

Parte II - A AÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

1 As Teorias da Ação e a Posição do CPC. Primeiros Apontamentos para uma Concepção Adequada ao Estado Constitucional e a Realidade Normativa Brasileira

1.1 A época em que a ação se confundia com o direito material

Ação é a contapartida natural da proibição da tutela privada, ou seja, é o instrumento de que o particular passou a fazer uso diante da eliminação da justiça de mão própria.

Até meados do século XIX não havia separação científica entre direito material e direito processual, sendo conhecidas as definições romanistas, com a de Celso, que dizia que “a ação nada mais é do que o direito de alguém perseguir em juízo o que lhe é devido”.Na França e na Itália houve uma ampliação desta definição, para explicitar que a “ação não é não apenas o direito de alguém perseguir em juízo o que lhe é devido, mas também o que é seu”, deixando claro que a definição abrangia os direitos reais e não apenas os obrigacionais4.

1.2 A polêmica entre Windscheid e Muther

Na Alemanha, ao contrário do que acontecia na Itália e na França, não importava apenas a actio romana, mas também a Klage ou Klagerecht, que pode ser compreendida como direito de queixa ou direito de ação. A actio e a Klage, embora ligadas à busca da realização do direito por intermédio do juiz, permitiam diferenciação, pois a actio era voltada contra o obrigado e a Klage se dirigia contra o Estado.

Savigny, ainda que sem desvincular o direito material do direito de ação, via esse último (Klagerecht) como o direito à tutela judicial nascido da lesão de um direito material, compreendendo-o como o direito no qual o direito material se transforma ao ser lesado. Para Savigny o direito de ação era um direito resultante da “transformação” pela qual o direito material passaria após ter sido lesado. Daí o motivo pelo qual propôs o conceito de “metamorfose” para ilustrar tal situação.

A doutrina anterior à polêmica entre Windscheid e Muther admitia a Klage, mas não vislumbrava qualquer separação entre a ação e o direito material.

4 Esse conceito é herança da concepção processual do direito romano. Os autores clássicos consideravam que a ação e o direito eram somente uma e mesma coisa sob ângulos diferentes: para Demolombe, a ação “é o direito posto em movimento, é o direito em estado de ação em vez de ser o direito em estado de descanso, o direito em guerra em vez de o direito em paz”.37

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1.3 O direito de agir “abstrato”

Firmada a autonomia do direito de agir em relação ao direito material, alguns juristas passaram a pensar sobre a existência do autor que, movimentando o juízo, chega a uma sentença que nega a existência do direito material. Plósz e Degenkolb entenderam que o direito de agir não excluiu a possibilidade de uma sentença desfavorável, que então restou qualificado por Plósz como “direito abstrato”. Para esses juristas, o direito de agir, é, além de autônomo, independente do reconhecimento do direito material.

Para Degenkolb o que obriga o réu a participar do processo é o direito de agir, que nada tem a ver com o direito material. O fundamento desse direito de agir é a própria personalidade do autor, porque dessa vem a consciência ou a convicção subjetiva ao direito, ou mais precisamente a aspiração ao direito, o direito ao direito, em relação ao qual a efetiva existência do direito material é meramente acidental.

Tais juristas sustentam que o direito de agir é antecedente ao seu exercício, que se daria através da demanda. Mas somente tem esse direito aquele que reclama a restituição de um direito afirmado em lei e não, por exemplo, o pagamento de uma dívida de jogo.

1.4 Ainda a ação como direito abstrato. A teoria de Mortara

A teoria de Mortara se assemelha às de Degenkolb e Plósz. Mortara também sustenta que o direito de agir não reclama o reconhecimento da existência do direito amterial e, nesse ponto, coloca-se ao lado das teorias de Degenkolb e de Plósz. Porém entende que a ação se funda na mera afirmação de existência do direito e, portanto, que não é preciso dizer que a ação somente existe quando exercida conscientemente ou de boa-fé.

Mortara inicia argumentando que o direito subjetivo necessita, para ser reconhecido, da vontade do sujeito que poderia ter interesse em negá-lo. Havendo a negação por parte desse sujeito, surge a necessidade da ação e da relação jurídica processual, quando então aparecem duas pretensões, ambas aspirando transformação em direito subjetivo. Nenhuma dessas pretensões é direito, pois esse apenas se apresentará àquele que obtiver a sentença favorável. Mas, para o exercício do direito de agir, basta que a realização do direito subjetivo tenha sido obstaculizada por alguém, que então passa a ser réu. A afirmação dessa oposição é o bastante para configurara a ação.

Mortara anuncia, assim, que o direito de agir, além de nada ter a ver com o reconhecimento do direito material, dispensa a idéia de boa-fé do autor, fundamentando-se em uma afirmação de direito que decorre do contraste de duas posições ou da negação da vontade indispensável ao reconhecimento do direito subjetivo.

1.5 A pretensão à tutela jurídica. A teoria de Wach

1.6 A ação como poder em face do adversário. A teoria de Chiovenda

Apesar de tecer elogios à teoria de Wach, Chiovenda a criticou argumentando que Wach não conseguiu demonstrar que a ação se dirige contra o Estado.

Para Chiovenda, somente é investido da ação aquele cuja demanda é acolhida. Portanto, a ação é um poder em face do adversário que depende de uma sentença

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favorável, isto é, que necessita de uma sentença que declare a vontade da lei, uma vez que é dela que serão projetados efeitos jurídicos.

A ação, ao levar à atuação da lei (na hipótese de sentença de procedência) e, por conseqüência, fazer produzir efeitos jurídicos sobre o réu, estabelece uma relação de poder entre o autor e réu. Ao precisar o seu conceito de ação, Chiovenda esclarece que a ação é um poder em face do adversário, mais do que um poder contra o adversário. Com isso quer dizer que a ação não exige obrigação alguma, pois o adversário, diante da ação, não é obrigado a nada, mas apenas fica sujeito aos efeitos jurídicos da atuação da lei (em caso de sentença favorável). A ação seria assim um direito potestativo, ou seja, um direito que não tem como conteúdo uma obrigação alheia; a ação é um poder que sujeita o adversário, portanto um poder em face do adversário.

1.7 A ação como direito de petição. A teoria de Couture

Couture, por volta de 1940, elaborou a sua teoria onde a ação é apresentada como uma forma típica do direito de petição.

Sustenta Couture que o direito de petição, configurado como garantia individual na maioria das Constituições escritas, e considerado pelos escritores clássicos de direito constitucional como uma expressão formal, é inseparável de toda organização em forma de Estado, e exerce-se indistintamente diante de todas e quaisquer autoridades.

Argumenta que a ação civil não difere, em sua essência, do direito de petição em relação à autoridade. O direito de petição é o gênero do qual a ação civil é a espécie. Porém, quando o direito de petição é exercido diante do Poder Judiciário sob a forma de ação civil, esse poder jurídico não só resulta virtualmente coativo para o demandado, que tem de comparecer para se defender se não deseja sofrer as conseqüências prejudiciais da confissão ficta, como também resulta coativo para o juiz, que deve obrigatoriamente se pronunciar, de uma forma ou de outra.

Para Couture o direito de ação é assegurado pela Constituição gerando ao cidadão um direito de acesso à jurisdição (que nada tem a ver com o reconhecimento do direito material) e ao Estado o dever de prestar a tutela jurisdicional. Assim, a ação deve ser vista como uma garantia individual do cidadão diante do Estado.

1.8 As condições da ação. A teoria de Liebman

Liebman também destaca a existência de um direito constitucional que garante que todos os cidadãos podem levar as suas pretensões ao Poder Judiciário. Tal garantia é o reflexo da instituição dos tribunais pelo Estado, que têm a tarefa de dar justiça a quem a pedir. Porém, esse direito de agir constitucionalmente garantido não se confunde com a ação. Esta, embora fundada em direito constitucional de acesso aos tribunais, nada tem de genérico. Mas guarda relação com uma situação concreta, decorrente de uma alegada lesão a direito ou a interesse legítimo do seu titular e identifica-se por três elementos bem precisos: os sujeitos (autor e réu), a causa petendi (i.e., o direito ou relação jurídica indicada como fundamento do pedido) e finalmente o petitum (que é o concreto provimento judicial postulado para a tutela do direito lesado ou ameaçado).

A ação não depende do reconhecimento do direito material ou de uma sentença favorável, mas constitui apenas direito ao julgamento do mérito, sendo satisfeita com uma sentença de procedência ou de improcedência. O que importa, para a configuração da ação, é a presença das suas condições, em princípio delineadas por

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Liebman como legitimação para agir, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido, e posteriormente por ele reduzidas apenas à legitimidade para agir e ao interesse.

O interesse de agir é representado pela relação entre a situação antijurídica denunciada e o provimento que se pede para debelá-la mediante a aplicação do direito. Deve essa relação consistir na utilidade do provimento, como meio para proporcionar ao interesse lesado a proteção concedida pelo direito. Não significa que o reconhecimento da ocorrência do interesse de agir dê ao autor razão; quer apenas dizer que o seu pedido se apresenta merecedor do exame. As questões de fato e de direito relativas à procedência do pedido relacionam-se apenas ao mérito.

A legitimação para agir é a titularidade (ativa e passiva) da ação. É uma condição para o pronunciamento sobre o mérito do pedido: indica, pois, para cada processo, as justas partes, as partes legítimas. Entre a existência do interesse de agir e a sua pertinência subjetiva, esta é que deve ter precedência, porque só em presença dos dois interessados diretos é que o juiz pode examinar se o interesse exposto pelo autor efetivamente existe e se ele apresenta os requisitos necessários.

As condições da ação seriam assim requisitos para a sua existência (ou “requisitos constitutivos da ação”). Quando ausentes, há carência de ação.

Liebman tentou se colocar na metade do caminho daqueles que, de um lado, entendem que a ação depende do efetivo reconhecimento do direito material, e daqueles outros que sustentam que a ação é um direito de agir totalmente abstrato, decorrente da mera capacidade jurídica. Ou seja, a ação não depende de uma sentença favorável, mas requer a presença das condições da ação.

Concluiu, ainda, que quando o juiz reconhece que as condições da ação não estão presentes, e assim se nega a julgar o mérito, não há verdadeiro exercício da jurisdição, pois entre a ação e a jurisdição existe correlação, não podendo uma existir sem a outra.

1.9 A posição adotada pelo Código de Processo Civil

A petição inicial não só tem elementos que espelham ou identificam a ação, mas também requer a presença de outros requisitos imprescindíveis à petição inicial, mas que não dão conteúdo à ação (art. 282/CPC), como, por exemplo, o juiz ou o tribunal a que é dirigida e o valor da causa. De todos os requisitos do art. 282, somente compõem a ação apenas aqueles mencionados nos incisos II, III e IV, isto é, as partes, os fatos e fundamentos jurídicos do pedido (a causa de pedir) e o pedido. Tais requisitos são os mesmos constantes do art. 301, § 2º, que aponta quando uma ação é idêntica à outra.

Autor é quem propõe a ação e réu é quem se defende, contradizendo os fatos e/ou os fundamentos de direito e/ou articulando fatos e fundamentos de direito novos, para que o pedido não seja julgado procedente. Vale lembrar, nos termos do art. 324/CPC, que o réu contesta a ação e não apenas o pedido.

Tanto a ação quanto a defesa são fundadas em afirmações de fatos (arts. 326 e 332/CPC). A circunstância de a ação se fundar em afirmações de fato não quer dizer que a ação exija que os fatos sejam reconhecidos no processo. A ação tem o objetivo de permitir o julgamento do pedido. Para tanto deve se fundar em afirmações de fato e fundamentos de direito. Contudo, o reconhecimento desses fatos e fundamentos importa apenas para a procedência do pedido e não para o acolhimento da ação.

O autor, ao propor a ação, pretende algo, um bem que faz parte da realidade da vida. É para demonstrar o direito de obter esse bem que o autor apresenta as

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alegações de fato e os fundamentos de direito. Porém, o pedido não se identifica apenas a partir do bem pretendido, mas também a partir da medida processual que o autor requer para viabilizar a sua obtenção.

O CPC apresentou três condições da ação: a possibilidade jurídica5, a legitimidade das partes e o interesse processual.

A legitimidade para agir pergunta sobre a relação de identificação entre o autor e o réu com o direito material em litígio. É legitimado ativo o titular do direito material e legitimado passivo aquele que, também no plano do direito material, contra esse direito pode se opor. Todavia, conjugando-se os arts. 267, VI e 6º, temos que ninguém pode propor ação para pedir a proteção de direito alheio, salvo nas hipóteses excepcionais em que se autoriza alguém a fazê-lo6.

O autor tem interesse de agir quando necessita da jurisdição para ter o seu direito material protegido. Mas como essa necessidade diz respeito à proteção de determinada situação concreta, é preciso que o modelo procedimental escolhido ou apresentado como apto para tutelá-la ou protegê-la seja realmente adequado para tanto.

A possibilidade jurídica do pedido, quer dizer que o autor não pode formular um pedido juridicamente impossível, que é aquele que não é viável, seja por estar expressamente proibido por uma norma, seja por estar obstaculizado pelo sistema jurídico7.

1.10 Primeira apreciação crítica

Atualmente, a antiga idéia de que a ação e o direito material constituem uma só coisa não merece prosperar.

A separação entre ação e direito material começou a ser delineada com a polêmica entre Windscheid e Muther. O primeiro concluiu que a pretensão é o equivalente moderno da actio, afirmando que a pretensão é distinta do direito subjetivo, do qual é uma simples emanação que confere ao autor a possibilidade de exigir a sua realização, e do próprio direito de agir contra o Estado (direito de se queixar ou klagerecht).

Windscheid ainda mantinha a ação presa ao plano do direito material, identificando-a como uma ação de direito material e não como uma ação processual.

Muther, ao se contrapor à tese de Winscheid, sustentou a existência de um direito de agir contra o Estado. Na concepção de Muther existiam dois direitos: o direito material e o direito de agir contra o Estado.

Esse direito de agir, de acordo com Muther, dá ao Estado o direito de exercer contra o réu a coação necessária para alcançar o cumprimento da sua obrigação diante do autor. Isso revela de modo bastante claro que, embora Muther tenha delineado um direito de agir contra o Estado, esse direito restou absolutamente vinculado à realização

5 Notar que no art. 267, VI, ao dizer que “extingue-se o processo, sem resolução de mérito”, “quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica...”, o CPC não faz menção à possibilidade jurídica do pedido, mas somente à possibilidade jurídica. 6 Nesse sentido, o art. 1º, da Lei n. 4.717/65 (Lei da Ação Popular) e art. 82 do CDC, etc. 7 Liebman excluiu a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação quando se instituiu o divórcio na Itália, em 1970. Como com a edição da nova lei não havia mais como se dizer que o divórcio era juridicamente impossível, e esse era o seu exemplo de impossibilidade jurídica do pedido, Libeman entendeu por bem abandonar tal categoria, a qual, também no direito brasileiro, não tem muita razão de ser, pois o exemplo dado pela doutrina para exemplificá-la, isto é, o da cobrança de dívida de jogo, certamente poderia ser pensada como ausência de interesse de agir.41

Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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do direito material. Isso para não falar no equívoco de se supor que o Estado tem um direito contra o teu criado pelo direito de agir do autor. Alguns argumentos de Muther foram aceitos por Windscheid, que acabou admitindo uma ação processual ao lado da pretensão de direito material.

Essa polêmica foi importante para evidenciar a separação entre os planos do direito material e do direito processual.

Vinte anos mais tarde, as teorias de Degenkokb e Plósz pretenderam elaborar uma base para justificar as ações que levam não apenas a sentenças favoráveis, como também a sentenças desfavoráveis ao autor. Ambos partiram da premissa de que o direito de agir não exclui a possibilidade de uma sentença desfavorável e, com base nesse argumento, Plósz concluiu que esse direito de agir seria um direito não somente “autônomo”, mas também abstrato.

Esses juristas, para explicarem a possibilidade de alguém ter direito de agir contra o Estado, ainda que sem direito material, o fazem com base nas idéias da boa-fé e da consciência da existência do direito, para com isso se livrarem da acusação de que estariam criando um direito sem conteúdo e limites. Todavia, ao se preocuparem com a boa-fé, ainda vinculam a ação ao direito material.

A teoria de Mortara8 é mais consentânea com a própria idéia de um direito abstrato, pois desvincula completamente o direito de agir do direito material, baseando-se apenas na afirmação (ou na opinião) da existência do direito material, no que mais tarde foi seguido por Couture, que argumentou que, mesmo os que conscientemente sabem que não possuem qualquer direito material, têm abertas as vias de acesso à jurisdição.

As teorias de Degenkolb, Plósz e Mortara estavam subordinadas aos valores do Estado legislativo e ligadas às concepções de direito e de jurisdição das suas épocas. Assim, para os primeiros, somente tinha o direito de agir aquele que afirmava uma lei.

Wach elaborou a teoria do direito à tutela jurídica, o qual se dirige contra o Estado (obrigado à sua concessão) e contra o adversário (obrigado a suportar os efeitos da tutela jurídica estatal). Mas Wach demonstrou que o direito material não é um pressuposto necessário do direito à tutela jurídica, como deixam claro as ações declaratórias de existência e inexistência de relação jurídica, nas quais não se pede a satisfação de um direito subjetivo, exigindo-se apenas um interesse na declaração. Aliás, para Wach o próprio réu tem direito à tutela jurídica. Todavia, o direito à tutela jurídica, no raciocínio de Wach, significa direito à sentença favorável ou à execução ou ao seqüestro, todos representando atos de proteção jurídica. Assim, a tutela está vinculada a um ato de proteção concreta (sentença favorável).

Isso significa que o direito à tutela jurídica na concepção de Wach, não tinha a dimensão de um direito à tutela jurisdicional, que também é concedida a quem não consegue demonstrar que tem direito a uma sentença favorável.

Chiovenda, contrapondo-se a Wach, disse que a ação, mas do que provocar o Estado à prestação da tutela jurídica, constituiu um poder em face do réu. Segundo Chiovenda, a ação requer uma sentença favorável e, nesse caso, produz os efeitos da atuação da lei em face do adversário. Portanto, o réu, diante da ação, fica sujeito aos efeitos jurídicos derivados da sentença favorável ao autor. Essa sentença ou tais efeitos jurídicos dependem do exercício da ação, vista como um poder em face do adversário, isto é, como uma ação que, quando acolhida, sujeita o adversário a determinados efeitos.

8 A doutrina de Mortara é reconhecida no direito italiano como precursora dos estudos publicistas do processo.42

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De modo que a ação, para Chiovenda, está muito longe de constituir um direito contra o Estado, sendo um poder (ou um direito potestativo) em face do réu.

O autor não pode sujeitar o réu, mas apenas criar os pressupostos para a sua sujeição perante o Estado. É evidente, portanto, que o autor tem um direito contra o Estado e não em face do réu. Nesse sentido se pode dizer que a ação, antes de ser um direito a um fim, é um direito a um meio. Antes de alcançar diretamente o réu, dirige-se contra o Estado, para que esse, reconhecendo o direito material, atue diante do réu.

Para que a sentença de procedência seja proferida ou um ato executivo emanado, é necessário que o autor se dirija contra o Estado, exercendo um direito seu (o direito de ação) contra ele. Contudo, tal direito exige não penas que o Estado pratique atos que façam gerar os efeitos da lei sobre o réu, mas antes de tudo que o Estado verifique qual das partes tem razão. Por isso, ao contrário do que sustentou Chiovenda, a ação é um direito do autor contra o Estado, que atinge o réu apenas na hipótese de sentença de procedência, mas é exercido em caso de sentença de procedência ou improcedência.

Couture concluiu que o direito de ação é assegurado pela Constituição como uma espécie de direito de petição; é dirigido contra o Estado e independente do reconhecimento do direito material. Mas faltou a Couture acrescentar ao direito de ação atributos capazes de lhe dar o status de direito a uma efetiva tutela jurisdicional.

Faz-se ainda necessário analisar a teoria de Liebman e a posição adotada pelo CPC. Liebman distingue o direito de ação, garantido constitucionalmente, e a ação delineada pelo CPC, ambas voltadas contra o Estado. Para Liebman, esta última tem como requisitos a legitimidade para agir, o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido, tendo posteriormente inserido este último requisito na categoria do interesse de agir.

A ação, na sua concepção, não depende de uma sentença favorável, mas existe apenas quando as condições da ação estão presentes. Na falta de uma das condições delas não há ação e exercício de jurisdição.

Contudo, não há fundamento algum para se admitirem duas modalidades de ação, uma com assento na Constituição e outra no CPC. A ação é uma só, sendo as suas condições apenas requisitos para o seu integral exercício (apreciação do pedido).

Com efeito, o art. 263/CPC diz que “considera-se proposta a ação, tanto que a petição inicial seja despachada pelo juiz, ou simplesmente distribuída, onde houver mais de uma vara...”, e o art. 267, VI, do mesmo Código afirma que o juiz deve extinguir o processo sem resolução de mérito “quando não concorrer qualquer das condições da ação”. Quer dizer que a sentença que reconhece a inexistência de uma das condições da ação extingue o processo que foi instaurado pela própria ação, o que significa que essa sentença, ainda que de extinção do processo, admite que o processo foi instaurado e a ação proposta e que ambos se desenvolveram até um determinado instante, embora não tenha sido possível a apreciação do pedido.

Assim, é inegável que a jurisdição atuou e a ação foi exercida. Aliás, a jurisdição atuou porque a ação foi proposta. Isso significa que não é correto dizer que só existe ação e jurisdição quando estão presentes as chamadas “condições da ação”.

O direito de ação de base constitucional não pode ser limitado a um ato de provocação da jurisdição, pois deve dar ao cidadão a possibilidade de obter a efetiva proteção do direito material violado ou ameaçado de lesão. Porém, para que o autor possa obter a tutela do direito material, ele deve exercer a ação. Nesse sentido, a ação não é meramente proposta, mas sim exercida, desenvolvendo-se com o fim de permitir o

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julgamento do mérito e, no caso de reconhecimento do direito material, a tutela jurisdicional que seja realmente capaz de protegê-lo.

De modo que as condições da ação somente podem ser requisitos para o seu pleno exercício. Esses requisitos têm relação com o mérito e, dessa forma, não podem ser considerados requisitos para a existência da ação.

As condições da ação, no entendimento de Liebman, não resultam da simples alegação do autor, mas da verdadeira situação trazida a julgamento. De acordo com Liebman, as condições da ação não devem ser aferidas apenas em razão da afirmação do autor, cabendo também a sua análise diante das provas, pouco importando a fase processual em que isso possa ocorrer no processo.

Todavia, não há lógica e utilidade em admitir uma sentença de extinção do processo sem julgamento do mérito ao final do processo, quando o juiz pode reconhecer que o autor não é o titular do direito material (legitimidade para a causa) ou que o autor não pode exigir o pagamento de uma dívida por ela não estar vencida (ausência de interesse de agir). Se a ação se desenvolve até a última fase do processo, chega-se a um momento em que o juiz está apto para reconhecer a existência ou a inexistência do direito material ou para julgar o mérito ou o pedido, de modo que não há racionalidade em sustentar que a sentença, nessa ocasião, pode simplesmente extinguir o processo sem julgamento do mérito.

A menos quando se vê o preenchimento das condições da ação como uma garantia de que o processo não se desenvolverá de forma inútil. As condições da ação estariam, assim, ligadas ao princípio da economia processual.

É por isso que as condições da ação devem ser aferidas com base na afirmação do autor, ou seja, no início do desenrolar do procedimento. Não se trata de fazer um julgamento sumário (fundado em conhecimento sumário) das condições da ação, como se elas pudessem voltar a ser apreciadas mais tarde, com base em outras provas. O que importa é a afirmação do autor, e não a correspondência entre a afirmação e a realidade, que já é problema de mérito. Melhor explicando: a legitimidade para a ação de reivindicação deve ser aferida segundo o que é arrimado na petição inicial, mas, quando as provas e os argumentos trazidos ao processo demonstram que o autor não é o proprietário, o seu pedido deve ser julgado improcedente.

Liebman afirma, ainda, só tem direito à tutela jurisdicional aquele que tem razão. Mesmo que Liebman entenda que a ação constitui direito ao julgamento do mérito, que portanto não depende de uma sentença de procedência, vincula o direito à tutela jurisdicional ao reconhecimento do direito material. Assim, no caso de sentença de improcedência, inexistiria tutela jurisdicional; haveria ação, jurisdição, mas o autor não obteria tutela jurisdicional.

É correto dizer que, no caso de improcedência, não se presta tutela jurisdicional ao direito material, em função de seu não reconhecimento. Mas a sentença de improcedência constitui resposta ao pedido de tutela jurisdicional do autor. Caso o direito à tutela jurisdicional dependesse do reconhecimento do direito o direito material, ele seria um direito concreto. Ou melhor, agora a ação seria abstrata, mas o direito à tutela jurisdicional, concreto. Contudo, as mesmas razões que conferem natureza abstrata à ação impõem natureza abstrata ao direito à tutela jurisdicional. Vale dizer: o autor tem direito à tutela jurisdicional efetiva ainda que o seu direito material não exista ou não seja reconhecido.

Aliás, o art. 2º do CPC afirma que “nenhum juiz prestará tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais”. Diante do CPC, portanto, somente seria possível concluir que a sentença de improcedência não 44

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presta tutela jurisdicional caso fosse admitida a idéia de que o autor que a obtém não requer a tutela jurisdicional “nos casos e nas formas legais”. Como esse argumento é pouco mais do que absurdo, o CPC impõe a conclusão de que a tutela jurisdicional também é prestada à parte que é reconhecida como não tendo razão.

Páginas: 183 a 226

Elaborado por: Gustavo Henrique Timler – Campo Grande/MS

2 A INFLUÊNCIA DOS VALORES DO ESTADO SOCIAL SOBRE O DIREITO DE AÇÃO

2.1 O direito de ação como direito de acesso à justiça

À época do Estado liberal, apenas ingressavam em juízo aqueles que pudessem suportar os custos de uma demanda, já que as desigualdades sociais não eram preocupação do Estado, e o fato de o mais necessitado não possuir meios financeiros para fazer face a um processo não importava ao Estado.

No entanto, tal situação evoluiu, até que as Constituições do século XX encararam o direito de ação como “direito de acesso à justiça”, objetivando a concreta participação do cidadão na sociedade.

A imprescindibilidade de um real acesso à justiça se tornou mais evidente quando da consagração constitucional dos “novos direitos”. Os novos direitos sociais e econômicos, caso destituídos de mecanismos que viessem a impor o seu respeito, assumiriam a configuração de meras declarações políticas, sem o mínimo resultado prático.

O direito de ação passou a enfrentar um novo questionamento não apenas porque se percebeu que o exercício da ação poderia ser comprometido por obstáculos sociais e econômicos, mas também porque se tomou consciência de que os direitos voltados a garantir uma nova forma de sociedade, identificados nas Constituições modernas, apenas poderiam ser concretizados se garantido um real – e não ilusório – acesso à justiça.

Assim o direito de ação passou a ser pensado como um “direito de acesso à justiça”, perdendo a característica de instituto indiferente à realidade social.

Ver o direito de ação como direito de acesso à justiça é indispensável à configuração do Estado, já que não há como se pensar em proibir a auto tutela, sem que sejam dados a todos integrantes da sociedade, a possibilidade de efetivo acesso ao Poder Judiciário. Assim, para garantir-se a participação de todos os cidadãos na sociedade, e dessa forma a igualdade, é imprescindível que o exercício de ação não seja obstaculizado, até porque ter direitos e não poder tutelá-los é o mesmo que não os ter.

2.2 Os problemas que conduziram à questão do acesso à justiça

2.2.1 O custo do processo

O “custo do processo” é o mais óbvio obstáculo para um efetivo acesso à justiça. Esse problema se relaciona com as custas judiciais devidas aos órgãos jurisdicionais,

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com as despesas para a contratação de advogado e com aquelas necessárias para a produção de provas.

O custo do processo pode impedir o cidadão de propor a ação, ainda que tenha convicção de que o seu direito foi violado ou está sendo ameaçado de violação. É evidente que não adianta outorgar direitos e técnicas processuais adequadas e não permitir que o processo possa ser utilizado em razão de óbices econômicos.

Por essa razão é que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXXIV, afirma que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Além do preceito constitucional, a própria legislação infraconstitucional, desde 1950 (Lei 1.060/50), prevê o que chamou de assistência jurídica aos necessitados, garantindo a isenção não apenas dos honorários de advogado, como também dos honorários do perito, das custas judiciárias, inclusive em relação a serventuários da justiça, e das despesas com as publicações de atos oficiais, entre outras.

2.2.2 A demora processual

Além do problema com o custo, importa o significado que o tempo assume, em especial como o tempo repercute sobre a efetiva proteção do direito material.

Em grande parte dos casos o autor pretende alterar uma situação que se estabilizou em favor do réu. Busca-se assim, nessas situações, reverter uma vantagem que está sendo usufruída pelo demandado. Assim, por exemplo, quando o autor pede uma soma em dinheiro ou uma coisa móvel, quanto mais o processo dura mais o autor tem de esperar para obter o bem que lhe pertence e, em contrapartida, mais tempo o réu tem para usufruir o bem que vem mantendo na sua esfera patrimonial.

Assim é fácil verificar que o autor com razão é prejudicado pelo tempo da justiça na mesma medida em que o réu sem razão é por ela beneficiado. Assim o autor cuja vida depende do bem em litígio pode se sentir obrigado a ceder à demora do processo, o que confere ao réu condições para a estruturação de estratégias de protelação e, em outras palavras, a possibilidade de abusar do seu direito de defesa.

Da mesma forma, em relação aos direitos não patrimoniais, como os direitos de personalidade e o direito ao meio ambiente. Tais direitos não podem se dar ao luxo de esperar o “tempo normal da justiça”, sob pena de serem transformados em direitos à indenização.

Não há como esquecer a importância das várias modificações que o legislador recentemente fez no CPC com o objetivo de dar ao juiz e às partes instrumentos destinados a conferir maior tempestividade à tutela jurisdicional – a tutela antecipatória contra o receio de dano (CPC, arts. 273, I, e 461, III)-, inclusive disciplinando técnicas de distribuição do ônus do tempo do processo entre os litigantes – as tutelas antecipatórias com base em abuso de direito de defesa (CPC, art. 273, II) e em incontrovérsia de parcela da demanda (CPC, art. 273, § 6º). Estas duas modalidades de tutela antecipatória, aliás, constituem técnicas processuais nunca antes vistas em ordenamento jurídico algum no mundo. Tais idealizações legislativas devem ser adequadamente utilizadas pelos advogados – responsáveis pelos direitos dos cidadãos – e pelos juízes, que têm o dever político e social de, valendo-se de todos os instrumentos que estão ao seu dispor, prestar a tutela jurisdicional de forma tempestiva e efetiva.

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3 O DIREITO DE AÇÃO NO QUADRO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.1 O direito de ação diante da evolução da funcionalidade dos direitos fundamentais

À época do Estado liberal clássico os direitos fundamentais eram vistos como direitos de liberdade e de defesa. Nessa época não existia separação entre a ação e o direito subjetivo material, e era aceita a idéia de que a ação nada mais é do que o direito de alguém perseguir em juízo o que lhe é devido.

Essa ação não era dirigida contra o juiz, mas contra o réu, significando que tal ação estava bem longe de constituir um direito contra o Estado-juiz.

No final do século XIX, quando foi identificada a autonomia da ação diante do direito material, aceitou-se a idéia de que o cidadão tinha um direito de ação contra o Estado, mas nesse momento ainda não se admitia que dos direitos fundamentais decorriam direitos a prestações. Os direitos fundamentais continuavam sendo vistos como direitos de defesa ou de liberdade. Nessa fase, portanto, o direito de ação, ainda que instrumentalizando um direito privado qualquer, chegou a ser concebido como a expressão de um direito de liberdade em face do Estado. Ou seja, como a garantia de o cidadão poder se socorrer dos tribunais estatais em razão da proibição da tutela privada.

O desaparecimento do Estado liberal clássico e o surgimento dos Estados sociais fizeram eclodir novos direitos fundamentais, os quais passaram a exigir do Estado, além de um simples não fazer, ações ou prestações positivas.

Atualmente ninguém mais duvida que o cidadão tem um direito de ação, indiferente ao direito material, contra o Estado-juiz. Esse direito de ação assume valor, como direito fundamental de defesa, quando visto como procedimento especialmente diferenciado para a obtenção de tutela jurisdicional do Estado-juiz contra a violação ou a ameaça de violação de direito praticada pelo Estado-réu.

Como exemplo podemos citar o mandado de segurança, que é uma ação dotada de técnica processual diferenciada para a imediata e efetiva proteção de direitos do cidadão ameaçados ou violados pelo Poder Público.

Assim o Estado social fez com que os direitos fundamentais passassem a ser vistos também como direitos a prestações que então foram classificadas como direitos: 1) a prestações sociais, 2) a prestações de proteção e 3) a prestações destinadas a viabilizar a participação no poder e na organização social.

Tais direitos originários a prestações, têm sua exigibilidade assegurada mediante a ação. A ação portanto serve para obrigar o Estado a prestar e se constituir em própria prestação viabilizadora da democratização da democracia, ou seja, da participação.

O exercício da ação configura em si mesmo, a participação, enquanto o fim que com ela se busca, isto é, a tutela jurisdicional, é a prestação constitutiva do direito social. Note-se que a participação depende apenas do exercício da ação, enquanto a prestação social exige a concessão da tutela jurisdicional ao autor.

A participação através da ação judicial é somente uma forma de participação. As participações através da técnica do referendum popular, em órgãos decisórios de escolas públicas e em órgãos voltados a questões de interesse de grupos sociais constituem formas de participação fundamentais para a democracia contemporânea.

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A ação coletiva tem o objetivo especial de permitir a tutela de direitos difusos e coletivos – e, por isso mesmo, também pode ser utilizada para se buscar uma prestação constitutiva de direito social. A proteção judicial desses direitos é regulada por um micro sistema composto pela Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e pelo Titulo III do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). O Código de Defesa do Consumidor define os interesses ou direitos difusos como sendo “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato” (art 81, I), e os interesses ou direitos coletivos como “ os transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” (art. 81, II).

O art. 82 do CDC confere legitimidade para a propositura de ação para a tutela de direitos difusos e coletivos para: 1) o Ministério Público; 2) a União, os Estados, os Municípios e o DF; 3) as entidades e órgãos especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos difusos e coletivos; e 4) as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos difusos e coletivos.

Ao se dar legitimidade às associações acentua-se a possibilidade de participação dos grupos na defesa dos direitos transindividuais.

O mandado de segurança coletivo também objetiva a proteção de direitos difusos e coletivos, podendo ser impetrado por “partido político com representação no Congresso Nacional” (CF art. 5º LXX, a) e “organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados” (CF art. 5º, LXX, b).

Reveste-se, portanto, o mandado de segurança coletivo de importante instrumento para que órgãos de representação de grupos possam exigir a proteção jurisdicional de direitos transindividuais.

Já a ação popular, ao dar o direito ao cidadão de pedir a correção de desvios na gestão da coisa pública, caracteriza-se como verdadeiro direito de participar na administração do patrimônio público.

A ação de inconstitucionalidade, diante da sua própria natureza de controle de um ato de poder, constitui outra ação judicial de grande importância para a democracia participativa.

Perceba-se que as ações judiciais, quando expressam direitos políticos, e assim viabilizam a participação no poder e na tutela de direitos difusos e coletivos, têm o seu efeito de participação vinculado à legitimação ativa, ou melhor, à abertura deferida para a propositura da ação. Ou seja, quanto mais se alarga a legitimidade para a propositura dessas ações, mais se intensifica a participação do cidadão – ainda que representado por entidades – e dos grupos no poder e na vida social.

O Estado tem o dever de proteger, mediante normas, os direitos fundamentais. Tais normas proíbem condutas, ou desejam impedir a sua prática, pois as consideram como potencialmente causadoras de danos à saúde e ao consumidor. Cite-se como exemplo a norma que proíbe a venda de remédio ou de produto com determinada composição, ou ainda, a norma que proíbe que se faça barulho perto de um hospital.

O mesmo acontece em relação ao meio ambiente, quando se proíbe construções em área próxima a um mangue, situação na qual as normas proíbem condutas, mas objetivam evitar que elas provoquem danos.

Além de editar normas proibindo condutas contrárias aos direitos fundamentais, o Estado não pode se eximir da obrigação de instituir regras procedimentais instituintes de 48

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técnicas capazes de permitir a atuação efetiva e tempestiva do desejo de tais normas. Enfim, o Estado tem o dever de editar normas materiais e procedimentais para a proteção dos direitos fundamentais.

A Lei da Ação Civil Pública, as normas procedimentais do CDC, as diversas modalidades de técnica antecipatória (CPC, art. 273, I, II e § 6º) e a norma que objetiva viabilizar a “tutela específica” (CPC, art. 461; CDC, art. 84), são exemplos de como o legislador se desincumbe de seu dever de oportunizar a efetiva tutela jurisdicional dos direitos fundamentais e a “específica” realização dos “desejos” das normas materiais de proteção.

No entanto, não basta a proteção normativa, são necessárias também medidas fáticas. Não basta ao Estado editar normas proibidoras ou impositivas de condutas – é necessário que tome providências concretas tendentes a impor a sua observância e a eliminar ou a corrigir os efeitos concretos produzidos pelos atos que as violarem. É necessário então que o Estado atue de modo a fiscalizar o cumprimento das normas e a punir os seus eventuais infratores.

Como os direitos fundamentais obrigam o Estado a proteger os direitos fundamentais nas relações entre os particulares, a omissão de proteção do legislador, no grau mínimo constitucionalmente determinado, quando invocada pela ação e detectada pelo juiz, obriga-o a supri-la. Vale dizer que, no caso de inexistência ou insuficiência da proteção normativa, o juiz deve, a partir da consideração do direito fundamental, conferir a tutela esquecida pela lei e exigida pela Constituição. De modo que a ação, diante do direito à proteção estatal dos direitos fundamentais, tem grande importância para evitar a violação da norma de proteção ou para eliminar os efeitos concretos produzidos pelo ato que a violou e, ainda, para remediar a omissão de proteção do administrador e da própria omissão de proteção do legislador. Mas, para tanto, deve se estruturar sobre um conjunto de técnicas processuais especialmente voltadas a permitir a efetiva e tempestiva proteção desses direitos, como a técnica antecipatória e todas as técnicas processuais instituídas nos arts. 461 do CPC e 84 do CDC.

3.2 O direito de ação como direito fundamental

O direito de ação é um direito fundamental processual, e não um direito fundamental material, como são os direitos de liberdade, à educação e ao meio ambiente. Portanto, ele pode ser dito o mais fundamental de todos os direitos, já que imprescindível à efetiva concreção de todos eles.

O direito de ação surge no momento em que o Estado proíbe a tutela privada ou o uso da força privada para a realização e a proteção dos direitos. A partir daí o Estado assume o monopólio da solução dos conflitos e da tutela dos direitos e, por conseqüência lógica, dá ao privado o direito de acudir a ele. Esse último direito, antes denominado de direito de agir e agora chamado de direito de ação, é a contrapartida da proibição da realização privada dos direitos e, portanto, é devido ao cidadão como um direito à proteção de todos e quaisquer direitos. Ou seja, é um direito fundamental não apenas à tutela dos direitos fundamentais, mas sim à proteção de todos os direitos, como o direito de receber quantia em dinheiro devida em razão de um empréstimo ou como o direito de cobrar os aluguéis que não foram pagos pelo locatário.

É exatamente por isso que o direito de ação não pode ser obstaculizado por entraves como o do custo do processo. Mas não adianta simplesmente proclamar que o direito de ação não pode ser inviabilizado por questões sociais. Na verdade, o direito

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fundamental de ação requer uma postura ativa do Estado não somente voltado à supressão dos obstáculos sociais ao seu uso, mas também à sua plena efetividade e tempestividade.

3.3 O direito fundamental de ação e seus efeitos

A razão de ser do estudo dos efeitos do direito fundamental de ação está em se precisar de que forma esse direito incide sobre o Estado e, ainda, se ele tem algum efeito em relação ao réu.

O direito fundamental de ação se destina a regular a relação entre o Estado prestador e o particular, ao passo que os direitos fundamentais materiais de proteção, como o direito do consumidor, incidem sobre o Estado para obrigá-lo a protegê-los diante das relações privadas.

O direito fundamental de ação, assim como acontece com os direitos fundamentais no Estado constitucional, exige prestações estatais positivas voltadas a sua plena realização concreta.

O direito fundamental de ação obriga o Estado a prestar tutela jurisdicional efetiva a todo e qualquer direito que possa ter sido violado ou ameaçado. Ele não é um direito que exige que o Estado atue para protegê-lo, mas sim um direito que requer que o Estado exerça a função jurisdicional de maneira adequada ou de forma a permitir a proteção efetiva de todos os direitos levados ao seu conhecimento.

Tudo isso significa que o direito fundamental de ação, ao contrário do que acontece, por exemplo, com o direito do consumidor, não é um direito que deve incidir nas relações privadas mediante a intermediação do Estado, mas sim um direito que recai sobre a forma da sua atuação jurisdicional. Por isso mesmo, o direito fundamental de ação não tem efeitos sobre o réu; o que tem efeito sobre o réu é o direito fundamental material mediatizado pela decisão jurisdicional.

Contudo o direito fundamental de ação não incide somente contra o Estado-juiz, mas igualmente sobre o legislador. Como a jurisdição não pode atuar se não tiver a seu dispor uma estrutura administrativa adequada e técnicas processuais que realmente lhe permitam prestar a tutela jurisdicional de forma efetiva, o direito fundamental de ação, antes de exigir algo do juiz, fica na dependência do legislador.

Na perspectiva da necessidade de técnicas processuais, o direito fundamental de ação pode ser concebido como um direito à fixação das técnicas processuais idôneas à efetiva tutela do direito material. Trata-se de um direito que vincula o legislador, obrigando-o a traçar as técnicas processuais capazes de permitir a proteção das diversas situações conflitivas. Por técnicas processuais cabe entender procedimentos, sentenças e meios executivos, assim como as técnicas de antecipação da tutela e de seu acautelamento.

Olhe-se, por exemplo, para as normas dos artigos 273 e 461 do CPC e 84 do CDC, a primeira instituindo meios técnicos para a antecipação da tutela em caso de receio de dano (art. 273, I), abuso de direito de defesa (art. 273, II) e incontrovérsia de parcela do pedido ou de um dos pedidos cumulados (art. 273, § 6º) e as outras duas, além de também preverem a técnica de antecipação da tutela no caso de “receio de ineficácia do provimento final”, estabelecendo a possibilidade de o juiz trabalhar com sentenças e meios executivos diferenciados para adequá-los às necessidades dos casos concretos.

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O procedimento e as técnicas da Lei dos Juizados Especiais, por outro lado, objetivam permitir que a tutela jurisdicional seja prestada de forma mais rápida e efetiva a determinadas causas, como as de valor não superior a quarenta vezes o salário mínimo, embora o seu objetivo maior devesse ser o de facilitar o acesso à justiça das pessoas menos favorecidas economicamente.

A ação pode ser vista como o conjunto das técnicas processuais capaz de atender às necessidades do caso concreto.

O legislador tem a obrigação de instituir técnicas processuais que permitam ao cidadão exercer a ação de maneira efetiva. Ou melhor, o legislador tem o dever de dar ao cidadão as ferramentas que lhe permitam construir e utilizar a ação adequada e idônea à proteção do seu direito material. O que quer dizer que o direito de ação não se volta somente contra o Estado-juiz.

As normas legais devem ser dimensionadas a partir dos direitos fundamentais. Nesse sentido, merecem cuidado as normas que obstaculizam ou dificultam o acesso à justiça, as normas que são insuficientes para permitir a efetividade da tutela jurisdicional e, especialmente, a falta de norma processual que impede a adequada tutela do direito.

Para exemplificar, cabe tomar o exemplo da execução da tutela antecipatória de soma em dinheiro. Como a norma que regula a execução da tutela antecipatória não alude a execução de soma em dinheiro, vislumbra-se aí uma omissão capaz de impedir a efetiva prestação da tutela jurisdicional. Mas essa omissão pode ser seguramente suprida quando se tem em mente a natureza instrumental da norma processual, ou melhor, que essa norma tem a finalidade de viabilizar a tutela do direito material.

Para se obrigar alguém a pagar soma em dinheiro imediatamente, é preciso utilizar meios executivos de coerção psicológica, como a multa.

Ora, como o direito fundamental de ação incide especialmente sobre a jurisdição, é obvio que a omissão de lei não justifica a omissão do juiz. Até porque a omissão do legislador, nesse caso, também estaria negando ao juízo o poder necessário para exercer a sua função. Na verdade, a ausência de técnica processual para a tutela dos direitos constitui, a um só tempo, violação do direito fundamental de ação e obstáculo à atuação da jurisdição. Portanto, para que o cidadão possa efetivamente exercer o direito de ação e para que a jurisdição não se apresente destituída dos meios necessários para atuar, não há como negar ao juiz a possibilidade de suprir a ausência de lei que inviabiliza a efetiva tutela jurisdicional do direito.

O direito fundamental de ação, portanto, incide diretamente sobre o juiz, obrigando-o a suprir a omissão legislativa para poder exercer a sua função de maneira adequada, situação que é completamente diferente daquela em que o juiz supre a omissão do legislador para dar proteção a um direito fundamental material.

Ao contrário, o direito fundamental de ação não incide sobre os particulares, porém apenas sobre o Estado, pois esse é o único obrigado diante dele. O Estado, em razão desse direito fundamental, é obrigado a prestar tutela jurisdicional efetiva a todos os direitos, e não apenas aos direitos fundamentais materiais. A obrigação da jurisdição, nesse caso, é a de prestar a tutela jurisdicional, e não a de proteger o direito fundamental material que passou despercebido ao legislador.

4. O CONTEÚDO DO DIREITO DE AÇÃO A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO

4.1 O direito à tutela jurisdicional efetiva

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O art. 5º, XXXV, da CF, diz que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Quando a norma fala em lesão e em ameaça a direito, obviamente está se referindo a afirmação de lesão e de ameaça a direito, pois uma lei somente pode pretender excluir uma afirmação de lesão ou ameaça, uma vez que, quando se invoca a jurisdição, apenas se afirma um direito.

No entanto, a falta das condições da ação obstaculiza a apreciação da afirmação de lesão ou ameaça, mas não exclui o direito de pedir essa apreciação. A sentença que reconhece a ausência de uma das condições da ação apenas impede que a ação continue a se desenvolver, mas não nega que a ação foi exercida.

Então o direito de ação não é apenas o direito de afirmar um direito material em juízo ou o direito de formular um pedido de tutela do direito material com base em fundamento de fato e de direito.

A ação é exercida e, portanto desenvolve-se com o objetivo de permitir o julgamento do mérito, e no caso de reconhecimento do direito material, ainda se mantém presente para exigir que os meios executivos da sentença de procedência propiciem a efetividade da tutela do direito material.

Assim, o direito de ação, muito mais do que o direito ao julgamento do pedido, é o direito à efetiva tutela jurisdicional. Como efetiva tutela jurisdicional, deve-se entender a efetiva proteção do direito material, para a qual são imprescindíveis a sentença e o meio executivo adequados.

Não há mais como aceitar as teorias clássicas sobre a ação, inclusive a teoria de Liebman, já que a ação não pode mais se limitar ao julgamento do mérito.

Mas, além de tudo isso, a ação ainda exige a técnica antecipatória, a tutela cautelar e o procedimento adequado à tutela jurisdicional pretendida no plano do direito material, o que também sempre foi ignorado pelas teorias da ação.

Do direito de ação decorrem, portanto, os direitos à antecipação e à segurança da tutela do direito material, eventualmente ameaçado de lesão no curso do processo.

Portanto, a norma constitucional que afirma que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito significa, de uma só vez que: 1) o autor tem o direito de afirmar lesão ou ameaça a direito; 2) o autor tem o direito de ver essa afirmação apreciada pelo juiz quando presentes os requisitos chamados de condições da ação pelo art. 267, VI do CPC; 3) o autor tem o direito de pedir a apreciação dessa afirmação, ainda que um desses requisitos esteja ausente; 4) a sentença que declara a ausência de uma condição da ação não nega que o direito de pedir a apreciação da afirmação de lesão ou de ameaça foi exercido ou que a ação foi proposta e se desenvolveu ou foi exercitada; 5) o autor tem o direito de influir sobre o convencimento do juízo mediante alegações, provas e, se for o caso, recurso; 6) o autor tem o direito à sentença e ao meio executivo capaz de dar plena efetividade à tutela jurisdicional por ela concedido; 7) o autor tem o direito à antecipação e à segurança da tutela jurisdicional; e 8) o autor tem o direito ao procedimento adequado à situação de direito substancial carente de proteção.

4.2 O direito à duração razoável do processo e aos meios que garantam a celeridade da sua prestação

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Para deixar expresso que o Estado tem o dever de prestar a justiça em prazo razoável e o cidadão o direito de obter a tutela jurisdicional de modo tempestivo, a Emenda Constitucional nº 45/2004 agregou ao art. 5º inciso LXXVIII que institui o direito fundamental à duração razoável do processo e aos meios que garantam a celeridade da sua tramitação. Diz tal inciso que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da sua tramitação”.

Esse direito fundamental, além de incidir sobre o Executivo e o Legislativo, incide sobre o Judiciário, obrigando-o a organizar adequadamente a distribuição da justiça, a equipar de modo efetivo os órgãos judiciários, a compreender e a adotar as técnicas processuais idealizadas para permitir a tempestividade da tutela jurisdicional, além de não poder praticar atos omissivos ou comissivos que retardem o processo de maneira injustificada.

Cite-se por exemplo as técnicas processuais capazes de possibilitar a antecipação da tutela em caso de “fundado receio de dano”, “abuso de direito de defesa” e “parcela incontroversa da demanda” (CPC, art. 273, I, II e § 6º).

O acúmulo de serviço, assim como a falta de pessoal e instrumentos concretos, pode desculpar o juiz e eventualmente o próprio Judiciário, mas nunca eximir o Estado do dever de prestar a tutela jurisdicional de forma tempestiva.

Vemos que o legislador tem o dever de instituir técnicas processuais voltadas à divisão do tempo processual e o juiz o dever de adequadamente compreendê-las e de sobretudo bem utilizá-las.

Quando o autor se desincumbe do ônus da prova do fato constitutivo, e o réu alega, de forma infundada, um fato impeditivo, modificativo ou extintivo (que lhe incumbe provar), a demora acarretada pela necessidade de produção de prova não deve ser suportada pelo autor. A tutela antecipatória abre oportunidade para a distribuição do tempo na medida em que o réu pode abusar do seu direito de defesa, apresentando uma defesa de mérito indireta (fato impeditivo, modificativo ou extintivo) somente para protelar o momento da tutela do direito material. Além disso, o autor tem o direito de obter a tutela do direito material quando esse se torna incontroverso, ainda que o processo deva continuar (art. 273 § 6º).

Note-se que, se o autor tem o direito de obter a imediata tutela do direito evidenciado no curso do processo, também tem o direito à execução imediata da sentença que reconhece o direito material.

A sentença, até prova em contrário, é um ato legítimo e justo. Por isso, é o recorrente ou o réu que deve pagar pelo tempo de demora do processamento do recurso. Não há como respeitar o direito fundamental à duração razoável sem atribuir efeitos concretos à sentença, ou melhor, sem dar à sentença a possibilidade de interferir na vida das pessoas.

É por isso que deve ser aprovada a norma constante de projeto de reforma do CPC em tramitação no Congresso Nacional – que altera o art. 520, dizendo que a apelação deve ser recebida, em regra, somente no efeito devolutivo, podendo ser recebida no efeito suspensivo apenas para evitar dano irreparável à parte.

Páginas: 227 a 303

Elaborado por: Tatiana Fernandes de Oliveira

53Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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5 Da ação abstrata e uniforme (ação única) à ação adequada à tutela do direito material e ao caso concreto

1. A Repercussão da Dicotomia Tutela pelo Equivalente Tutela-Específica sobre a Efetividade da Ação

O presente resumo refere –se ao tratamento da evolução da ação abstrata e uniforme, tida como ação única, à ação adequada à tutela do direito material e ao caso concreto.

O direito de ação, assegurado pela Constituição, não pode mais ser visto pela ótica das teorias clássicas9, como um ato isolado solitário, pelo qual se busca a prestação jurisdicional, mas sim como um procedimento10 que se desenvolve com várias técnicas processuais, que devem ser adequadas e específicas ao direito material que se busca tutelar. A separação da ação do direito material resta superada, embora o direito de ação, na esfera processual, mantenha sua autonomia face à aquele.

Hoje é assente na doutrina que o direito de ação tratado na Constituição Federal não se trata da ação de forma abstrata, desligada do direito material, e por isso única para proteger qualquer dos direitos, como queria a doutrina processual clássica. Trata-se da ação a ser construída no caso concreto, de acordo com as necessidades do direito material lesado ou ameaçado, fato que reafirma a atipicidade da ação e não compromete a autonomia da mesma. Diz-se que a ação é autônoma por ser distinta do direito material, embora a ele ligado, e atípica porque não depende de uma forma preestabelecida, pela legislação para que seja exercida.

A compreensão do direito de ação pela visão constitucional consiste em vê-la como ente autônomo, por ser distinta do direto material, embora a ele ligado, e atípico, por não depender de forma ou fórmulas pré-estabelecidas para ser exercido.

Este direito de ação, garantido pela Constituição no rol das garantias fundamentais, consiste no direito à entrega da tutela jurisdicional efetiva e este, por sua vez, culmina na proteção jurisdicional do direito material. Para Marinoni, existem duas formas de proteção ao direito material, sendo elas: a tutela específica e a tutela pelo equivalente monetário.

Tutela Específica: vela pela integridade dos direitos. É adequada à visão do direito de ação no Estado Constitucional de Direito. Para a tutela ser realmente efetiva, ela requer sentença e meios executivos diferenciados. E isso só foi implementado a partir da edição do art. 84 CDC e do art. 461 CPC, que foram os dispositivos pioneiros de formação do Estatuto da Tutela Específica. Para isso, é necessário que haja a técnica processual adequada.

Tutela pelo equivalente monetário: protege o direito material mediante a entrega de indenização em pecúnia ou da entregado valor equivalente ao da obrigação descumprida. Foi idealizada com base nos valores liberais, pois no Estado de Direito, a lei trata a todos de forma igual, sem considerar as desigualdades materiais, de forma que tudo o que importava era manter a liberdade política conquistada pela burguesia. Assim, o Estado possuía dever de se abster de tolher a liberdade dos indivíduos, respeitando um

9 Como a de Chiovenda, de Liebman, Eduardo Couture, Plóz e Degenkolb, dentre outros.10 Para Marinoni, é importante se ater à forma procedimental, pois é necessário que o direito de ir à juízo se desenvolva de forma regular. Para ele, o procedimento é mais que uma seqüência de atos: é uma verdadeira conformação da forma de agir das partes e do órgão julgador a fim de que se obtenha a adequada apreciação, pelo Poder Judiciário, do direito que se alega estar lesado ou ameaçado de lesão.54

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rol de direitos fundamentais, os de primeira geração. Não podia obrigar os cidadãos a nada, por isso transformar a prestação devida em seu equivalente era ideal para manter essa liberdade. Tem como técnica processual adequada a sentença condenatória seguida de expropriação – permite a realização do direito de crédito ou da indenização)

O ressarcimento em pecúnia, como única forma de proteção ao direito material, não está de acordo com os valores do Estado Constitucional de Direito, pois neste existe a preocupação de se proteger diretamente a integridade dos direitos, principalmente os direitos fundamentais, como o direito ao meio-ambiente, à saúde, direitos do consumidor, e não de forma indireta, transformando-os no valor equivalente. Isto, pois a natureza desses direitos não admite que sejam convertidos em pecúnia11, por isso exigem a proteção estatal – que engloba a tutela jurisdicional, administrativa e normativa – na forma específica, e não na forma ressarcitória pelo equivalente. Esta modalidade de tutela é corrolária do Estado de Direito, ou Estado Liberal Burguês, enquanto aquela é parte da estrutura inaugurada com a ordem constitucional atual.

Com a afirmação da ação ser autônoma e atípica, não se cogita mais que a tutela específica seja viável apenas para algumas espécies de direitos, como resquício da época em que as ações eram típicas, mas sim a qualquer deles. O problema que se enfrenta hoje é a admissão das tutelas específicas atípicas, i. e., a aceitação da tutela específica para qualquer tipo de direito material lesado ou violado e também a falta de instrumentos, técnicas processuais adequadas a essa tutela. A sentença condenatória seguida da expropriação não é um instrumento adequado à proteção direta da integridade do direito, mas apenas forma de atingir o patrimônio do sujeito passivo, tornando o direito algo equivalente à pecúnia.

“A técnica processual expressa pelo binômio sentença condenatória-ação de execução liga-se diretamente à idéia que fez supor que a tutela ressarcitória pelo equivalente poderia substituir a tutela específica do direito material.”

Tutela específica exige sentença e meios de execução diferenciados. A entrega da tutela jurisdicional não está mais amarrada às ações típicas (deixaram de existir em razão da autonomia reconhecida às ações), em razão de ser autônoma, mas sim à implementação de técnicas processuais adequadas. A tutela específica só depende da implementação de técnicas processuais adequadas para ser de fato efetiva.

São exemplos de técnicas processuais o procedimento da Lei dos Juizados Especiais, visando garantir o acesso da população economicamente carente à Justiça; os procedimentos especiais em relação às ações possessórias, aos direitos difusos (ação civil pública, ação popular, etc); e especialmente as sentenças diferenciadas, os vários meios de execução delas (p. ex. busca e apreensão, art. 84 CDC e 461 CPC), e as técnicas de antecipação de tutela (art. 273 CPC, art. 84 CDC e art. 461 CPC).

Técnicas processuais são as técnicas que servem à prestação jurisdicional, englobando as sentenças (declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental, executiva) e meios executivos a elas correlatos. Elas são o modo com que o direito processual tutela os direitos. São caminhos para o exercício da efetiva prestação jurisdicional dos direitos por meio das várias tutelas, p. ex., tutela inibitória, ressarcitória na forma específica, etc.

11 Boa parte da doutrina de direito civil, como Sílvio de Salvo Venosa e Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, entende que os direitos fundamentais, principalmente os da personalidade, não têm conteúdo patrimonial direito, mas apenas reflexo, surgido do direito à indenização por danos aos mesmos. Os direitos e garantias fundamentais são inalienáveis, por isso, impenhoráveis e indisponíveis.55

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É a especificidade da tutela jurisdicional, delineada a partir do direito material invocado pelo autor, que torna a tutela efetiva. Exercida dessa forma por juiz e partes é que se pode dizer que fato houve exercício do direito de ação, nos moldes da Constituição.

Técnica processual é diferente da tutela ao direito. A técnica é meio que permite dar efetividade à tutela do direito material. Para que se tenha uma tutela de fato efetiva, é necessário observar como se comporta o direito material, pois é sabendo das necessidades deste que se constrói a ação específica para fazer cessar ou impedir a lesão ou ameaça ao direito. Observar as necessidades do direito material sempre implica em formas diferenciadas de tutela.

A crítica à efetividade da ação é baseada na distinção entre tutela específica e tutela pelo equivalente monetário. Somente quando esta for preterida pelo uso central daquela é que o direito de ação não mais será visto como algo abstrato, indiferente à proteção das pessoas e direitos, mas da forma com que reza a Constituição, ou seja, como um direito que deve ser criticado para que seja efetivo, e assim ocupe o posto de direito fundamental garantidor de todos os direitos.

“A conversão da tutela específica em tutela pelo equivalente em dinheiro faz com que a ação não necessite de se diferenciar. Se as tutelas dos direitos perdem suas características quando são transformadas em tutela pelo equivalente monetário, imediatamente deixa de existir razão para técnicas processuais diferenciadas. A redução das tutelas dos direitos a uma única tutela (pelo equivalente) faz com que passe a ser suficiente um único modelo de ação – a ação que, muito mais que autônoma, é indiferente ao que acontece no plano do direito material. A diferenciação das técnicas processuais e, por conseqüência, da ação é uma decorrência de distintas necessidades no plano do direito material12”

2. A Ação Única como decorrência do Princípio da tipicidade das Formas

Pelo princípio da tipicidade das formas, são técnicas processuais capazes de levar a ação adiante apenas os meios que estiverem tipificados na legislação. Esse princípio coaduna com a idéia de ação atípica, mas vincula a existência deste tipo de ação à existência de formas processuais expressamente previstas em lei. É impraticável pela visão do direito de ação do atual Estado Constitucional, pois este direito exige técnicas processuais capazes de permitir a tutela do direito material. Técnicas que são construídas em cada caso concreto, não de forma abstrata e única, não dependendo de previsão em lei para ser feita.

Isso é resquício do Estado Liberal, pois neste a preocupação maior era conferir segurança jurídica aos cidadãos, e isso apenas se fazia restringindo o poder de discricionariedade do juiz, submetendo-o à subsunção pura e direta da lei ao caso apresentado, por meio de um procedimento único, utilizado para toda e qualquer ação. O princípio em voga é decorrência do princípio da liberdade, oriundo da concepção jusnaturalista e do racionalismo iluminista, implementado com a queda do Antigo Regime (Regime Absolutista). Em suma, o rigor das formas processuais, neste contexto, visava proteger a liberdade dos cidadãos e essa necessidade levou a doutrina a eleger o princípio da tipicidade dos meios de execução como regedor à atuação da jurisdição.

A necessidade de proteção da liberdade contra o arbítrio estatal foi fundada na definição de uma forma processual única e invariável característica à “certeza do direito” e

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voltada à segurança jurídica. E a idéia de procedimento único foi pautada na desnecessidade, oriunda dos valores da liberdade e da economia liberal, de tratamento diferenciado dos direitos, visando tirar do processo qualquer mancha de direito material.

“O princípio da tipicidade das formas processuais, ou a existência de um procedimento único, elimina a possibilidade de vinculação da ação ao direito material e ao procedimento e a técnicas processuais, culminando na inefetividade da ação.” Isto, pois, a ação efetiva, para os moldes do atual paradigma de Estado, i. e. Estado Democrático de Direito, está longe de ser a ação pensada no Estado Liberal Burguês. Com tal mudança, o direito de ação deve se adequar, passando do modelo de ação única e abstrata, pregado pela doutrina clássica, ao modelo de ação concreta, específica e, por isso, efetiva por ser construída a partir das necessidades do direito material a ser tutelado.

O direito de ação tem fundamento ou contrapartida a proibição da tutela privada. Logo, deve ser exercido de forma que o Estado, no exercício de atividade substitutiva, alcance os mesmos resultados que o particular alcançaria, prestando, por conseqüência, tutela efetiva aos direitos. Para isso, à luz das necessidades da atual conjuntura da sociedade e dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição, deve se valer de procedimentos e técnicas processuais idôneos, construídos em cada caso concreto, pois cada espécie de direito material reclama uma forma de tutela.

Basta lembrar, de forma esquemática que Ação adequada ao caso concreto = ação específica = ação efetiva = cumprimento da função substitutiva da jurisdição.

Em razão da necessidade de tratamento diferenciado das diversas situações de direito material, o conceito de ação única, estabelecido com base no princípio da tipicidade das formas e dos meios executivos, é rompido.13

3. O escopo de tutela aos Direitos

A finalidade de proteger a integridade dos direitos vem expressa na Constituição Federal. Logo, não se admite que o processo, parte integrante do direito de ação, seja neutro em relação ao direito material, sob pena do processo não possuir qualquer valor.

O processo engloba o direito de ação traçado na Constituição, visto já estar superada a teoria tradicional de que a ação é um ato isolado pelo qual se pede a prestação jurisdicional, mas sim um complexo de atos por meio dos quais se busca a efetiva proteção, tutela do direito material lesado ou ameaçado. Efetividade em nome da qual a ação, sendo abstrata e atípica, conforma-se às necessidades do direito material, pois são estas necessidades que revelam a forma de tutela ideal ao direito.

Tratar o processo de forma independente ao direito material, i.e, de modo neutro, é admitir a incapacidade do processo em atender às necessidades de proteção aos direitos fundamentais, pois ele faz parte do direito de ação e este direito, nos moldes da Constituição, não mais é visto como neutro, mas como independente e interligado ao direito material para melhor protegê-lo. Isto, pois, a função primordial da jurisdição é a tutela jurisdicional aos direitos, não apenas a tutela jurisdicional.

A finalidade de se proteger os direitos é dar efetividade aos mesmos, partindo de várias formas de tutela a cargo do Estado para isto: a tutela normativa, tutela administrativa e tutela jurisdicional. Isto tem maior relevo quando se trata da proteção aos direitos e garantias fundamentais, em razão do caráter multifuncional deles.

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Para se chegar à efetividade, é preciso ver o processo como parte integrante do direito de ação e ambos ligados às formas de tutela ideais para cada direito. Essas tutelas são oriundas dos próprios direitos materiais e no caso concreto revelam quais os meios necessários para a defesa do direito de que derivaram. Por exemplo: a venda de um produto nocivo à saúde do consumidor requer não apenas que seja paga uma indenização por este ato contrário ao direito, mas que os produtos sejam retirados de circulação. Este é um exemplo de exercício do direito de ação, previsto de forma autônoma, atípica, abstrato pela Constituição, mas com um plus também assegurado pela Constituição, ou seja, o plus de adequação da ação ao caso concreto para que a ação proteja o direito ameaçado ou lesado.

4. TÉCNICA PROCESSUAL E TUTELA DOS DIREITOS

TUTELA DOS DIREITOS

a. Normativa = oriunda do dever imposto ao Estado de tutela normativa dos direitosb. Administrativa = atua impondo a observância da norma, removendo os efeitos vindos

da inobservância dela, sancionando o descumpridor, etc...c. Jurisdicional = pode até substituir a tutela normativa, quando por omissão do poder

competente falta norma para proteger o direito. É a forma de tornar efetivos os direitos.

A forma de tutela a um direito decorre da própria natureza da norma violada. A violação exige o cumprimento da norma violada e não um remédio para proteger o sujeito que sofreu o dano, i.e., tutela ressarcitória.

Um bom exemplo: prevê o art. 5°, XI, a inviolabilidade da honra, intimidade e vida privada, assegurando o direito à indenização por danos morais e materiais pela violação. Nesta norma constitucional, além de serem previstas formas de os proteger: tutela inibitória (para qualquer tipo de ameaça) e tutela ressarcitória em pecúnia (pelos danos). E também é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo (tutela ressarcitória específica).

As formas de tutela são garantidas pelo direito material, mas elas não são o mesmo que os direitos ou as necessidades deles. É preciso partir dos direitos, ver as necessidades deles para então encontrar as formas aptas a atender a tais necessidades. Nesse diapasão, entra o processo estruturado de forma tecnicamente capaz a permitir as formas de tutela material, não se cogitando falar em procedimento único, assim como ação única, mas em procedimento construído à luz das necessidades do direito material, para que o direito de ação, no qual engloba-se o procedimento, seja efetivo.

É a partir do binômio técnica processual-tutela dos direitos que se chega a uma postura dogmática preocupada com a as posições jurídicas protegidas e com as formas de tutela necessárias para lhes dar efetividade.

“A crítica à efetividade do processo e da ação também se assenta na verificação da idoneidade dos meios ou técnicas processuais para prestar as formas de tutela pretendidas pelo direito material.”

5. AS TUTELAS JURISDICIONAIS DOS DIREITOS

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São necessárias, pois sem elas de nada valem as normas que atribuem os direitos. Para cada direito, existe uma norma que garante o respeito ao mesmo. A forma ideal de proteção ao direito é a que evita a lesão ao mesmo. As formas de tutela não dependem do processo. Este é que deve se adequar a elas a elas, instituindo técnicas processuais que viabilizem a obtenção da tutela prometida pelo direito material.

5.1. Tutela Inibitória

Não precisa estar prevista na legislação processual, pois pertence ao campo do direito material.

Decorre naturalmente da norma que atribui o direito, pois não há direito que não tenha uma forma de proteção quando ameaçado ou violado, principalmente quando se trata de dir. não patrimoniais, como o dir. ao meio ambiente sadio.

É uma forma de proteção ao direito material.

Finalidades:

a. impedir ou inibir a violação da norma;b. impedir ou inibir a repetição da violação do direito;c. impedir ou inibir a continuação de uma atividade ilícita;

Pressupostos Básicos:

a. a probabilidade da prática de ato contrário ao direito;b. norma que tutele o direito;

1. Tutela de Remoção do Ilícito

É imprescindível para a jurisdição dar atuação específica às normas de proteção dos direitos fundamentais. Sem ela, o dir. de proteção normativa aos direitos seria inútil e a defesa dos direitos, principalmente os fundamentais, impossível, pois ela atua quando não há dano, mas uma situação antijurídica, restabelecendo a situação anterior à violação da norma.

“Enquanto a probabilidade da prática de ato contrário ao direito é pressuposto da tutela inibitória, para a tutela de remoção do ilícito basta a ocorrência da violação da norma. Não é necessário, em nenhuma dessas tutelas, que haja a probabilidade ou que ocorra dano ou até culpa, pois esta só é necessária para a imposição de indenização (tutela ressarcitória).”

2. Tutela Ressarcitória

Visa remediar o dano, por isso é diferente da tutela de remoção do ilícito, que visa eliminar a fonte do dano, ainda que ele não tenha ocorrido.

Divide-se em duas espécies:

a) T. R. Pelo Equivalente Monetário = visa dar ao lesado o valor equivalente ao da diminuição patrimonial sofrida ou o valor equivalente ao do custo para a reparação do dano ou o valor cogitado como resposta a dano a direito não patrimonial (indenização por danos morais). Não visa a reparação in natura.

b) T. R. na Forma Específica = visa restabelecer a situação que existiria caso o dano não houvesse sido causado, i. e, uma reparação que se aproxime da reconstituição do estado anterior ao dano. Nem sempre é viável, mas quando é possível, deve ser a

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primeira opção cogitada, só se afastando se o sujeito legitimado a requerê-la optar pelo ressarcimento na forma monetária. É mais usada para direitos não patrimoniais, como dir. ao meio ambiente sadio, dir. do consumidor, dir. à saúde, etc. O dir. material coloca como prioridade o ressarcimento na forma específica: Só não será usado se o lesado não quiser ou se for impossível ou excessivamente oneroso em face do caso concreto. Pode ser feita mediante uma prestação de fazer ou prestação de entrega de coisa. Esta tutela consiste no poder que o lesado possui de obrigar o lesor à observar a norma, não a ter um direito de crédito.

3. Tutela Contra o Inadimplemento da Obrigação Contratual

Também é cabível a tutela inibitória e qualquer outra forma de tutela específica em relação às obrigações contratuais, pois elas também encerram direitos. Todos os direitos, não apenas os fundamentais ou os dir. reais, devem ser protegidos. Já passou a época em que apenas os direitos reais possuíam proteção efetiva, hoje tendo o mesmo valor as tutelas que visam assegurar o específico cumprimento das obrigações contratuais.

É preciso ficar que é cabível a tutela específica para as obrigações contratuais, porque quando o credor contrata uma obrigação de fazer ou de entrega de coisa, ele busca a realização de uma prestação pelo devedor, e não o direito de crédito sobre o patrimônio do devedor. A própria natureza da obrigação é dar ao credor o direito a uma prestação (atividade humana voltada a um fim) e não lhe conferir um valor em dinheiro. O pagamento da prestação, que é objeto da obrigação, feito na forma equivalente, considera a obrigação como um fato gerador de poder do credor sobre o patrimônio do devedor e não como o direito ao recebimento da prestação contratada, pois em caso de inadimplemento, vai-se buscar não o cumprimento da obrigação, mas sim o pagamento pelo equivalente em pecúnia.

Quando a obrigação não puder mais ser cumprida, a tutela deverá prestar o equivalente ao valor da prestação inadimplida. Isso é diferente da tutela pelo equivalente ao valor do dano. Isso é a tutela da obrigação pelo equivalente ou tutela pelo equivalente ao valor da obrigação.

4. Tutelas específicas voltadas à obtenção da coisa, com base no dir. à posse, ao domínio e à posse esbulhada, bem como tutela de manutenção da posse e de interditos proibitórios.

São ditas tutelas tradicionais, pois protegem a posse. Para a doutrina clássica, eram admitidos apenas os procedimentos especiais relativos à defesa dos direitos reais, não para as obrigações ou para os direitos fundamentais. Com a mudança da visão do direito de ação, essas espécies de tutela continuam existindo, mas não são as únicas.

Dir. Material (Dir. Real) Alegado Tutela Específica

Entrega14 de coisa móvel Imissão na posse

Entrega de coisa imóvel Imissão na posse

Defesa de propriedade “Ação” reivindicatória

Defesa da posse em caso de esbulho Ação de Reintegração de posse

14 Obrigação para a entrega de coisa móvel, baseada em documento que comprove o direito à posse. De toda forma, o que se alega é a propriedade posse.60

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Defesa da posse em caso de turbação Ação de Manutenção de posse

Em caso de ameaça à posse ou propriedade Ação de Interditos Proibitórios

5. Separação das sentenças das formas de tutela

A tutela inibitória, cominatória, as Tutelas específicas voltadas à obtenção da coisa, com base no dir. à posse, ao domínio e à posse esbulhada, bem como tutela de manutenção da posse e de interditos proibitórios são todas são formas de tutela que não dependem de sentenças satisfativas, mas de meios de execução específicos para prestar tutela aos direitos materiais invocados.

Ocorre confusão quando se trata da tutela declaratória e constitutiva e das sentenças declaratórias e constitutivas. Tais sentenças são as técnicas de prestação destas tutelas.

1. a influência do direito sobre a ação

O direito de ação não depende da existência do direito material invocado pelo autor para que seja exercido, pois a ação é autônoma. Mas em prol de ser efetiva, se valendo da especificidade para isso, a ação não pode se desenvolver de modo abstrato, mas sim de forma atenta às necessidades do direito material lesado ou ameaçado invocado pelo autor. Para a doutrina clássica, o direito material não podia de forma alguma influir na ação, tampouco no procedimento, motivo pelo qual a ação era vista como única e o procedimento padronizado, com raras exceções, como para os direitos reais, em que foi desenvolvido para situações específicas. Entretanto, essa visão caiu e o direito de ação vem com nova roupagem, dada pela Constituição.

A ação continua sendo vista como atípica e abstrata, mas com o já falado plus de adequação ao caso concreto. Isso, pois é necessidade a aproximação da ação com as tutelas prometidas pelo direito material e com o caso concreto, para que de fato e de direito haja a prestação jurisdicional, ainda que não haja a tutela jurisdicional do direito.

A ação adequada é a conformada a partir da tutela jurisdicional do direito. Isso implica em admitir várias ações adequadas a cada uma das tutelas jurisdicionais, independente de procedimentos especiais.

“Diante das cláusulas processuais abertas dos art. 461 CPC e 84 CDC, da generalização das técnicas de tutela antecipatória, e especialmente da impossibilidade de que a ausência de procedimento especial possa constituir obstáculo à efetividade da tutela jurisdicional do direito, a ação adequada deve ser construída no caso concreto, ou seja, a partir da pretensão à tutela jurisdicional do direito e da causa de pedir.

“A ação, garantida pela Constituição, concretiza-se a partir da tutela jurisdicional do direito objeto do pedido. A dimensão da extensão da cognição do juiz, dos limites do debate e da produção probatória, assim como a definição da sentença e dos meios executivos idôneos, que são as características que tornam a ação adequada, dependem da natureza da tutela jurisdicional do direito.

A tutela jurisdicional do direito requer a exposição da causa de pedir que com ela é compatível, pois a causa de pedir é um pressuposto do próprio pedido de tutela jurisdicional do direito. É a tutela jurisdicional do direito (não a mera tutela jurisdicional, de forma abstrata, única, uniforme) que determina a extensão dos debates e da produção

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probatória, que são o objeto da cognição do juiz e, assim, determina qual a espécie de sentença ou do meio executivo adequado para a situação concreta. Esse é o verdadeiro teor da ação para a Constituição, não mais o que rezava a doutrina clássica.

Características que tornam a açÂo adequada

1. dimensão da extensão da cognição do juiz

2. dos limites do debate

3. produção probatória

4. escolha da sentença e dos meios executivos idôneos

2. tutela jurisdicional do direito e tutela jurisdicional

Não se confunde tutela jurisdicional com tutela jurisdicional do direito. Esta somente existe quando a sentença é procedente ao pedido do autor e vem munida com os meios de execução adequados para proteger o direito que se acha lesado ou ameaçado de lesão. Já a tutela jurisdicional existe a partir do momento em que os sujeitos processuais expõem as suas pretensões em juízo, delimitam o campo de discussão e exercem o contraditório, chegando a uma determinada solução jurídica que não seja a de respaldo ao direito material alegado.

Pode-se dizer que a tutela jurisdicional é um caminho para a tutela jurisdicional do direito, pois esta é mais completa ou ampla que aquela, pois ambas têm como parâmetro o direito material, mas apenas uma o tutela, ampara de fato.

“A tutela jurisdicional é a resposta da jurisdição ao direito de participação em juízo das partes. Mas o juiz apenas presta a tutela jurisdicional do direito quando a sentença é de procedência.15”

3. O exercício da ação para a obtenção da tutela do direito

O direito de ação assegurado pela Constituição deve ser entendido como o direito de se construir, para cada caso em análise, a ação adequada para a tutela do direito material em tese alegado.

O direito de ação não depende do reconhecimento do direito material e não se esgota com a sentença de procedência, a não ser quando a tutela pretendida seja de declaração ou de constituição de certa relação ou situação jurídica. Nessas duas situações, as sentenças declaratória e constitutiva, respectivamente, são suficientes para a tutela requerida, independendo de meios de execução. Mas para as demais espécies de pretensão, a sentença é apenas o início da tutela, não o termo final do processo, tendo em vista as necessidades do direito material, descobertas da análise do próprio direito material. Assim são as sentenças mandamental e executiva, com boa base de fundamento nos art. 461 e 461-A do CPC e art. 84 CDC, pois com base em tais dispositivos legais pode o julgador determinar na sentença de procedência as medidas executivas consistentes em fazer, não fazer ou dar algo para proteção ao direito cuja existência foi reconhecida.

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Há no CPC e no CDC atuais um verdadeiro estatuto da tutela específica, encontrado nos art. 461, art. 461-A CPC e art. 84 CDC, de sorte a solidificar o argumento de que desde 1994, ano em que operou-se uma mini-reforma no CPC, não se admite como verdadeira a alegação de que a sentença de procedência seja o instrumento, via de regra, que finda o processo. Tanto que a Lei n.° 11.232/2005, ao alterar o art. 162 do CPC, expressamente consignou esse ponto no texto legal deste artigo.

Os art. 461 e 461-A permitem que o autor se valha de procedimentos e dos meios executivos (medidas executivas) necessárias que assegurem a tutela específica ou o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

As ações fundadas nos art. 461, art. 461-A CPC e art. 84 CDC, por tutelarem a integridade do direito, permitem que o autor, após a sentença de procedência, continue exercendo poderes e atos concretos, após a sentença, para a proteção específica desse direito. Do mesmo modo a Lei n.° 11.232/2005, pois após tal lei não se admite que ação voltada para a entrega de quantia em dinheiro finde com a publicação da sentença, mas com a definitiva entrega da quantia em dinheiro, sendo a execução por expropriação uma técnica processual inserida na ação de conhecimento (não mais uma ação própria) para a efetivação desta tutela.

“A grande novidade, em termos de teoria de ação é que a ação não se exaure com a sentença de procedência e, por isso, o direito de ação não pode mais ser visto como direito a uma sentença de mérito. O direito à ação é o direito à ação capaz de permitir a obtenção da tutela ao direito.16 ” Direito de ação é o direito de obter a tutela capaz de proteger o direito e não o direito a uma sentença de mérito, pois nem sempre o processo finda com uma sentença de procedência.

“A ação é exercida para permitir o julgamento do pedido e o reconhecimento da pretensão à tutela jurisdicional do direito, assim como para exigir o uso dos meios executivos capazes de propiciar a obtenção da tutela do direito reconhecida pela sentença como devida ao autor. A ação é meio – meio adequado à tutela da situação concreta.”17

8.1. Mudanças trazidas pela Lei n.° 11.232/2005 – Extinção da Ação de Execução

Tal legislação operou uma reforma profunda no processo de execução, tendo em vista que substituiu o paradigma criado pela doutrina clássica de duas ações (ação de conhecimento + ação de execução) para a obtenção de uma mesma forma de tutela prometida pelo direito material (tutela jurisdicional ressarcitória, e não condenatória). Para a implementação da sentença condenatória não há mais ação execução.

A ação voltada para a entrega de quantia em dinheiro não finda mais com a sentença condenatória, conforme a nova redação do art. 463 CPC, pois a Lei n.° 11.232/2005 inseriu no processo de conhecimento a fase chamada de “cumprimento de sentença”, substituindo o processo de execução, pois nesta determina-se que a sentença condenatória seja executada no próprio processo de conhecimento.

4. O direito de ação como direito ao procedimento próprio à participação e ao plano do direito material

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O direito de ação, como dito, exige técnicas processuais capazes de tutelar o direito material. E isso é feito por meio de um procedimento, que nada mais é que um caminho para permitir os direitos à participação e à efetividade do dir. material. Participação efetiva significa poder alegar, provar, participar da produção da prova e falar sobre o seu resultado.

A possibilidade de participação é dada ao autor e ao réu por meio do contraditório, pois dele deriva o dir. de usar os meios e recursos adequados, como os meios de prova (right to evidence) para influir no convencimento do juiz. O contraditório não se refere apenas à defesa, como pode induzir a leitura do art. 5°, LV da CF/88, mas à qualquer das partes como poder de influir no desenvolvimento e resultado do processo. E deve ser entendido com limites.

É exercido com limites na matéria objeto da cognição judicial, pois não importa à efetiva tutela jurisdicional do direito que o processo seja onerado com questões alheias à tutela prometida pelo direito material. É preciso estabelecer o campo de relação entre as alegações, as provas e o objeto de cognição judicial com a situação de direito substancial.

“A restrição da possibilidade de discussão de uma questão é legítima quando necessária para permitir a tutela jurisdicional que decorre do direito material.”18 O maior problema está no momento de restringir a matéria objeto de cognição do juiz, sem um procedimento específico. Problema, pois a doutrina ainda se prende à idéia de procedimento único ou de somente aceitar os procedimentos previstos em lei para conduzir a ação.

Entretanto, diante do Estado Constitucional, marcado pela ruptura do princípio da supremacia da lei e pela normatividade dos direitos fundamentais, não apenas pode como deve o juiz construir o procedimento adequado à cada caso concreto, pois o legislador não pode prever todas as situações materiais que serão levadas ao Judiciário. Assim, o juiz pode identificar a matéria a ser debatida e assim fixar o ponto de discussão, os limites de exercício do contraditório.

5. O DIREITO Á TÉCNICA PROCESSUAL ADEQUADA À TUTELA DO DIREITO E AO CASO CONCRETO

Como dito acima, as técnicas processuais são instrumentos que servem à prestação jurisdicional, englobando as sentenças (declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental, executiva) e meios executivos a elas correlatos. Elas são o modo pelo qual o direito processual tutela os direitos. São caminhos para o exercício da efetiva prestação jurisdicional dos direitos por meio das várias tutelas, p. ex., tutela inibitória, ressarcitória na forma específica, etc. São exemplos de técnicas processuais o procedimento da Lei dos Juizados Especiais, visando garantir o acesso da população economicamente carente à Justiça; os procedimentos especiais em relação às ações possessórias, aos direitos difusos (ação civil pública, ação popular, etc); e especialmente as sentenças diferenciadas, os vários meios de execução delas (p. ex. busca e apreensão, art. 84 CDC e 461 CPC), e as técnicas de antecipação de tutela (art. 273 CPC, art. 84 CDC e art. 461 CPC).

As sentenças declaratória e constitutiva são auto-suficientes, pois não necessitam de meios executivos para serem efetivas. Com a mera prolação de tais sentenças, o direito material que reclamava ser declarado ou constituído já está protegido. O mesmo não se dá com as sentenças condenatória, executiva e mandamental, ligadas a

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pretensões maiores que declarar ou constituir, pois estas exigem meios executivos idôneos, construídos a partir do direito material, para efetivamente protegerem este direito. Sentença executiva é a que se vale de meio executivo bastante, enquanto a sentença mandamental é a que ordena determinada prestação sob pena de multa.

TUTELA PELO EQUIVALENTE MONETÁRIO E TUTELA DE PAGAR QUANTIA EM DINHEIRO

Sentença Condenatória impõe o pagamento de quantia em dinheiro, valendo-se da técnica processual (não mais uma outra ação, que seria de execução) da execução de seu teor no próprio bojo do processo de conhecimento em que foi prolatada. Tal sentença é idônea à tutela pelo equivalente e a tutela específica da obrigação de pagar pecúnia, tendo meios executivos tipificados no CPC (art. 475-J e ss). Não é adequada às tutelas específicas de imposição de um fazer ou não fazer, pois a sentença condenatória tem por objeto dinheiro, não uma prestação específica, razão pela qual pode prestar a tutela pelo equivalente monetário, mas não a de forma específica.

TUTELAS ESPECÍFICAS

Já para as tutelas específicas que requerem a imposição de um fazer, não fazer há as sentenças mandamentais e as executivas, fundadas em cláusula processual aberta, que é o art. 461 CPC, que institui técnicas processuais sem vinculá-las a situações específicas de direito material, ficando na condição de instrumentos a serem usados pelo juiz quando provocado a prestar a devida tutela jurisdicional. Lembrar que tutela jurisdicional é diferente de tutela jurisdicional do direito, conforme tópico acima. Tal norma visa permitir a tutela específica e, quando não for possível, a obtenção do resultado prático equivalente, sempre atenta à integridade do direito, cf. se depreende do art. 461 § 1° CPC, que diz que a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor assim requerer ou se for impossível a tutela específica ou a obtenção de resultado prático correspondente.

A norma do art. 461 visa dar ao autor a possibilidade de pedir um fazer ou um não fazer do réu, não necessariamente o cumprimento de uma obrigação de fazer ou de não fazer. A redação do artigo é um pouco confusa e pode conduzir à confusão entre o objeto ou o conteúdo de direito material com a técnica processual necessária à tutela do direito, qual seja: a tutela específica ou o resultado prático correspondente, de qualquer espécie de direito material. Tanto que o art. 461 CPC é tido como a base processual de tutela aos direitos da personalidade, da proteção contra a concorrência desleal, etc. Isso é muito importante.

O art. 461, §4° CPC prevê como meio executivo a multa. Como meio executivo, a multa é maleável, conformável ao caso concreto, e visa obrigar o réu a cumprir a obrigação a ele imposta via sentença ou decisão judicial. Tem fim coercitivo, não punitivo. Pode ser diária ou mesmo de uma vez só, de acordo sempre com o caso concreto, para evitar a repetição de determinado ato, por exemplo, podendo ter valor fixo ou incidência progressiva.

O art. 461, §5° CPC permite ao juiz e ao autor o uso dos meios executivos necessários para a obtenção da tutela específica ou do resultado prático equivalente. São exemplos a imposição de multa, determinação de busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, etc. Com o intuito mais que evidente de proteger a integridade do direito material, por meio da tutela adequada ao mesmo, com meios executivos adaptados do direito que reclama proteção. Por meio das sentenças assim, o autor e o réu

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TÉCNICA DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS MATERIAIS DA TUTELA

Também faz parte do conceito do direito de ação, pela ótica constitucional, por atender à necessidade de proteção à integridade do direito material frente ao tempo dispendido pelo julgador para a formação de sua convicção. Não se trata de mera forma de aceleração do trâmite processual, mas de verdadeira técnica preocupada em evitar o perecimento do direito em tese alegado.

Opera de três formas distintas, mas com igual fim. A primeira consiste na tutela baseada em fundado receio de dano ou ineficácia do provimento final, com a antecipação dos efeitos da tutela mediante o perigo de perecimento do direito frente ao trâmite ordinário do processo, desde que a alegação feita pelo autor conduza o julgador, mediante prova inequívoca, a um juízo positivo, mas não exauriente, da possibilidade de ser verdade o alegado. Trata-se, conforme Freitas Câmara diz, de uma cognição não ampla, pautada em juízo de probabilidade, somente admitido diante da urgência da situação. “É necessária não apenas para permitir que o juiz aprecie a ameaça de lesão de forma tempestiva, mas também para permitir a tempestividade da tutela de remoção do ilícito e até mesmo da tutela ressarcitória.”

A segunda forma consiste na tutela antecipada em razão do abuso do direito de defesa, que é a antecipação dos efeitos da tutela quando o réu abusa do direito de defesa, invocando teses meramente protelatórias. Neste caso, o provimento pedido pelo autor é antecipado, competindo ao réu, que alega um fato, o ônus de prová-lo.

A terceira forma consiste tutela antecipada em razão de existir parcela incontroversa, que é a antecipação, mas sem caráter de provisoriedade, dos efeitos materiais da tutela requerida quando parte do pedido se mostrar incontroverso. É medida de economia processual, pois permite que as parcelas do pedido já resolvidas sejam de imediato deferidas, como se houvesse julgamentos em bloco. Incontroverso não é apenas o que não foi contestado, mas o que já se acha devidamente instruído, maduro para julgamento.

Para o autor, estas duas últimas técnicas permitem que se faça no processo a distribuição da instrução da causa, regra que parte da própria regra do ônus da prova entre as partes, numa leitura dinâmica do art. 333 CPC. Se o autor desincumbiu-se de provar determinado fato, mas o processo deve prosseguir para elucidar fato alegado pelo réu, não há razão para fazer o autor suportar o tempo de espera desse fato se o mesmo é infundado, meramente protelatório, pois a defesa indireta é dilação temporal desarazoada.

Em suma, o autor tem direito a: I) obter a tutela do seu direito no momento em que o mesmo se tornar incontroverso, ainda que o processo prossiga; II) obter a tutela do direito quando o fato constitutivo restar evidenciado e uma defesa de mérito indireta infundada obrigar o processo a prosseguir.

6. O DIREITO À CONSTRUÇÃO DA AÇÃO ADEQUADA AO CASO CONCRETO

O conceito tradicional de ação, que remonta ao século XIX (Degenkolb, Plóz e Mortara) e de meados do século XX (Couture e Liebman) está muito distante do direito de ação previsto na Constituição Federal, no art. 5°, XXV, e assegurado nos art. 83 e 84 do CDC e nos art. 273 e 461 CPC (normas dotadas de significado aberto): o direito à ação adequada ao caso concreto, construída em cada caso a partir do direito material invocado. A ação, neste sentido, não é um ato isolado de se pedir a jurisdição, mas sim

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de fazê-la atuar, produzindo provas, influindo no convencimento judicial, a fim de ser exercido o contraditório.

O direito de ação hoje assegurado pela Constituição não se divide em dois planos, como pensou Liebman: uma ação assegurada pela Constituição, de forma abstrata e indeterminada, verdadeira forma de proteção do cidadão frente ao Estado (e nisto coaduna com Couture) e outra prevista na lei processual, exercida mediante a presença de alguns requisitos, para ele chamados de condições da ação: interesse de agir, legitimação para a causa e possibilidade jurídica do pedido. O exercício deste direito mediante estas condições teve o mérito de demonstrar que o direito processual não pode ser exercido de forma indiferente ao direito material e ao caso concreto, idéia ampla hoje defendida pela doutrina moderna, mas não adstrita apenas às tais condições da ação, mas sim às “condições” do direito material e da situação concreta levada a juízo. Preocupou-se em não abrir mão da garantia constitucional de ação, mas sem permitir que a ação fosse exercida de forma completamente indiscriminada.

Citado autor é contestado, pois hoje a doutrina admite que a ação não se divide para ser exercida, e não é única, no sentido de ser abstrata, idêntica, para todos os casos levados à cognição judicial, incólume ao direito material.

Na época de Liebman e de Couture, o direito de ação possuía a natureza de um direito a um não fazer do Estado, i.e., do Estado não impedir a apreciação do Judiciário de qualquer lesão ou ameaçada de lesão a direito. Com a atual base constitucional, o direito de ação, dinâmico por natureza, é compreendido como o direito do cidadão em exigir prestações do Estado-Legislador como a edição de procedimentos e técnicas processuais idôneas às variadas situações de direito material e do Estado-Juiz em compreender, partindo dos direitos fundamentais processuais, as normas processuais e a própria função do processo a partir do direito material e da situação concreta.

As condições da ação, na teoria de Liebman, são elementos capazes de aproximar o processo da situação material, mas apenas no que tange à legitimidade de ação, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido. Tais condições, entretanto, não constam em nosso CPC como requisitos para a existência da ação. Elas servem apenas para impedir que a ação se desenvolva de forma arbitrária e inútil, sendo por isso, requisitos do pedido, e não elementos constitutivos da ação. Assim, torna-se frágil a teoria de Liebman, neste aspecto.

Para Marinoni, separar a base constitucional da base processual da ação, colocando a primeira como apenas o direito de ir à juízo, é negar a efetividade que a Constituição preza para tutela jurisdicional, pois isto vai mais além que o mero direito de ir à juízo ou do direito de pedir a tutela jurisdicional, de acordo com a doutrina clássica. Esta é a crítica maior à teoria de Liebman.

Em razão de sua relatividade histórica, o direito de ação deve levar em conta os valores do Estados, os princípios constitucionais e a legislação infraconstitucional. Por isso é que o conceito deste direito muda e deve ser construído a partir de cada ordenamento. Marinoni defende que seja construído um conceito de direito de ação no Brasil. E inicia sua tese alegando que o autor tem direito à construir a ação adequada ao caso concreto, partindo da legislação infraconstitucional presente nos art. 83 e 84 do CDC e do art. 461 CPC, elencando tais normas como as mais comprometidas com o direito fundamental de aç

Para o autor, o direito de ação vai mais além, pois o sistema processual foi dotado pelo legislador de cláusulas processuais abertas, gerais, e de técnicas processuais dotadas de conceitos indeterminados, com o fito de permitir que o cidadão construa a ação adequada ao seu caso concreto. Isto vem expresso no art. 83 CDC , que

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admite todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos trazidos no CDC. A inteligência deste artigo, à luz da Constituição, significa que o autor tem direito a propor uma ação estruturada em técnicas processuais que permitam a efetiva tutela do direito material.

Têm-se no ordenamento infraconstitucional um verdadeiro Estatuto da Tutela Específica, composto por três importantes normas, que abrangem quase todas as necessidades das novas tutelas jurisdicionais: tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos e a tutela especifica de direitos individuais, deixando escapar as formas tradicionais de proteção aos direitos individuais. O art. 83 e 84 CDC são comprometidos com a tutela específica ao consumidor e aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. E a norma do art. 461 CPC instrumentaliza a ação, assim como o art. 84 CDC, para permitir a adequada e efetiva tutela ao direito em juízo.

O direito à ação adequada não significa direito a uma ação concreta, i. e. com sentença de mérito favorável. Mas o direito de se construir uma ação de fato relacionada ao direito material e que

“As novas regras processuais, partindo do pressuposto de que o direito de ação não pode ficar na dependência de técnicas processuais ditadas de maneira uniforme para todos os casos ou para alguns casos específicos, incorporam normas abertas, isto é, normas voltadas para a realidade, deixando claro que a ação pode ser construída conforme as bases do caso conflitivo.”

7. LEGITIMIDADE DA CONSTRUÇÃO DA AÇÃO SEGUNDO A TUTELA JURISDICIONAL DO DIREITO

Tal tópico alude à escolha do meio executivo de fato adequado à tutela pretendida. Isto, pois ao autor compete o direito de optar pelo modo de execução do que foi pedido, com base nos permissivos dos art. 461 e art. 461-A CPC e art. 84 CDC, mas tal escolha, à luz do que ocorre no processo de execução, deve-se dar no meio menos oneroso ao réu, gerando o mesmo efeito prático.

8. A AÇÃO DE DIREITO MATERIAL, FORMAS DE TUTELA DOS DIREITOS E AÇÃO ADEQUADA

Marinoni não admite a existência da ação de direito material, pois para ele o que existe é o exercício de pretensão à tutela jurisdicional do direito, como direito de ir à juízo e obter a efetiva tutela do direito alegado. A sustentação da ação de direito material é válida quando usada para justificar a necessidade de moldar a ação processual ao direito material, mas a compreensão dessa necessidade pode ser melhor explicada diante do entendimento das categorias de formas de tutela do direito material.

Tanto as formas de tutela, quanto as ações de direito material estão no plano material. Para aquelas, certa pessoa só é titular de uma posição jurídica de vantagem se para tal direito houver uma forma adequada de proteção.

A ação de direito material é exercida por meio da ação, pois é por meio desta, i.e., da pretensão à tutela jurisdicional, que se chega à pretensão à tutela jurisdicional do direito. A doutrina desenvolveu esta teoria na época em que o direito processual se

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achava completamente alheio às necessidades do direito material, negando qualquer relação com as situações concretas. Tem como expoente

9. CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES, DAS SENTENÇAS E DAS TUTELAS JURISDICIONAIS DOS DIREITOS

Pontes de Miranda foi o grande doutrinador que efetuou a classificação das ações de direito material em ação declaratória, ação constitutiva, condenatória, mandamental e executiva, alegando que o direito processual deve atender às necessidades do direito material. Mas com impropriedade, pois o mesmo as classificou segundo as suas eficácias perante o direito material e isso só tem relevância se for admitido que o autor exerce ação de direito material. Para quem não aceita o exercício da ação de direito material, mas sim o exercício da tutela jurisdicional do direito, o correto é efetuar a classificação das tutelas jurisdicionais dos direitos e não as ações. A não aceitação da teoria da ação de direito material implica na formulação de uma nova teoria que explique dogmaticamente as relações entre o processo e o direito material.

A construção de uma teoria que suplante a teoria da ação de direito material deve ser capaz de explicar as relações entre o direito processual e o direito material e demonstrar o modo com que este influi naquele para a obtenção da tutela prometida. Por isso se entende que o conceito de tutela jurisdicional deve ser buscado nas formas de tutela do direito material, e que a pretensão à tutela jurisdicional do direito deve influir na formação da ação adequada ao caso concreto.

O que existe é a tutela jurisdicional do direito, i. e. , à tutela inibitória, mandamental, etc, e não ações assim. Ao lado disto, existe o direito de construção da ação adequada ao caso concreto, autônomo em relação ao direito material, mas dependente da tutela jurisdicional do direito em termos de legitimidade, pois a teoria da ação indiferente ao plano material não coaduna com os valores do Estado Constitucional.

Isso implica em não admitir que a prolação da sentença esgota a tarefa jurisdicional, caso contrário, toda a teoria de construção da ação adequada cairia por terra.

Páginas: 307 a 331.

Elaborado por: Alexandre Flávio

PARTE III. A DEFESA NO ESTADO CONSTITUCIONAL.

1. Conceito de Direito de Defesa.

É fácil perceber que o direito de defesa constitui um contraponto ao direito de ação. A jurisdição, para responder ao direito de ação, deve necessariamente atender ao direito de defesa. Isso pela simples razão de que o poder, para ser exercido de forma legítima, depende da participação dos sujeitos que podem ser atingidos pelos efeitos da decisão. É a participação das partes interessadas na formação da decisão que confere legitimidade ao exercício da jurisdição. Sem a efetividade do direito de defesa, estaria comprometida a própria legitimidade do exercício do poder jurisdicional.

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Note-se que a defesa está relacionada aos efeitos da decisão sobre a liberdade ou o patrimônio do réu. Não há sentido em se impor uma “sanção definitiva” ao réu sem dar a ele o direito de se defender.

É claro que o direito de defesa, assim como o direito de ação, não pode ser pensado como um direito à obtenção da tutela ao direito material. O réu não tem direito à tutela do direito. Ao exercer o direito de defesa, o réu não objetiva tutela do direito, mas apenas a tutela jurisdicional que negue a tutela do direito solicitada pelo autor. Ou seja, o réu, assim como o autor, tem direito à tutela jurisdicional, mas ao contrário do autor, não possui direito à tutela do direito19.

Porém, isso não significa que o direito de defesa não se articule com a tutela do direito. A idoneidade da defesa depende da possibilidade de o réu efetivamente poder negar a tutela do direito.

Caso determinado procedimento restrinja o direito de o réu alegar alguma forma de defesa, essa alegação obstaculizada deve ser passível de afirmação pelo réu, como autor, através do direito de ação. O direito de defesa é o direito de efetivamente poder negar a tutela do direito, o qual apenas poderá ser limitado em hipóteses excepcionais, racionalmente justificadas pela necessidade de efetiva tutela jurisdicional do direito.

Nessa perspectiva, não há como deixar de perceber que o direito de defesa também consiste no direito de influir sobre o convencimento do juiz. E isso mediante alegações, requerimento de provas, participação na sua produção, consideração sobre os seus resultados, etc.

Ademais, assim como o direito de ação exige técnicas processuais adequadas à tutela do direito, o direito de defesa também possui como corolário o direito à pré-ordenação dos meios adequados ao exercício da defesa. A diferença é a de que o direito de defesa requer técnicas processuais adequadas à defesa, ao passo que o direito de ação necessita de técnicas processuais idôneas à obtenção da tutela do direito.

A lei, ao limitar o exercício do direito de defesa (reservando alegações para outra demanda), ao limitar o exercício do direito à prova, ou ainda ao inverter o ônus da prova, deve estar atenta às necessidades do direito substancial e aos valores constitucionais. O réu também tem direito ao procedimento adequado.

Por outro lado, se o autor tem direito à técnica antecipatória por ter direito à efetiva e tempestiva tutela do direito, o réu certamente deve ter a sua disposição um meio adequado e célere para impugnar a sua concessão. Tal meio deve dar ao réu a oportunidade de exigir do tribunal a apreciação do seu pedido de cassação da tutela antecipatória sem delongas, já que a tutela antecipada incide sobre a sua esfera jurídica de modo imediato.

Como se vê, assim como o direito de ação não se exaure com a propositura da ação, o direito de defesa não se satisfaz com a apresentação da contestação, constituindo-se na possibilidade de o réu efetivamente agir (ou reagir) em juízo para que seja negada a tutela do direito, e para que a sua esfera jurídica, no caso de reconhecimento do direito, não seja invadida de maneira indevida.

19 A tutela do direito é prestada no caso de sentença de procedência, mas a sentença de improcedência não concede tutela de direito material ao réu. Isso apenas poderia acontecer se o réu formulasse pedido de tutela do direito. Como ele apenas se defende, pleiteando a não concessão da tutela requerida pelo autor, não há como pensar que a sentença de improcedência lhe presta tutela ao direito material.70

Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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2. O Direito de Defesa e Acesso à Justiça.

o direito de acesso à jurisdição – visto como direito do autor e do réu – é um direito à utilização de uma prestação estatal imprescindível para a efetiva participação do cidadão na vida social, e assim não pode ser visto como um direito formal e abstrato – ou como um simples direito de propor a ação e de apresentar defesa –, indiferente aos obstáculos sociais que possam inviabilizar o seu efetivo exercício.

A questão do acesso à justiça, portanto, propõe a problematização do direito de ir a juízo – seja para pedir a tutela do direito, seja para se defender – a partir da idéia de que obstáculos econômicos e sociais não podem impedir o acesso à jurisdição, já que isso negaria o direito de usufruir uma prestação social indispensável para o cidadão viver harmonicamente na sociedade.

Como é intuitivo, o direito à assistência judiciária gratuita, isto é, o direito a advogado, o direito à isenção de custas e despesas processuais, assim como o direito à produção de provas de forma gratuita, importa não apenas ao autor, mas também ao réu.

3. O Direito de Defesa na Constituição.

É preciso, antes de tudo, analisar o que se pretende dizer com a palavra “ampla”, que qualifica a defesa garantida pela norma constitucional.

Ter ampla defesa não é, evidentemente, possuir uma possibilidade de defesa que supere o limite da dimensão de participação que se deve dar ao réu para que ele possa efetivamente influir sobre o juízo e evitar que a sua esfera jurídica seja invadida de forma não adequada ou necessária. Por ampla defesa se deve entender o conteúdo de defesa necessário para que o réu passe a se opor à pretensão de tutela do direito (à sentença de procedência) e à utilização de meio executivo inadequado ou excessivamente gravoso.

Porém, não é preciso esforço para concluir que a defesa ampla é a que não é limitada. A intenção da norma é evitar que a lei ou o juiz limitem a defesa, restringindo a possibilidade de o réu alegar, provar, etc. Entretanto, há situações em que a limitação da defesa é necessária para permitir a efetividade da tutela do direito. Assim, por exemplo, diante da necessidade de tutela urgente, é possível postecipar a realização da plenitude da defesa para momento posterior ao da produção de efeitos sobre a esfera jurídica do réu. Por outro lado, quando, no procedimento da ação expropriatória (art. 20, Dec.-lei 3.365/41), afirma-se que a contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço oferecido pelo bem objeto da desapropriação, isto é justificado pela necessidade de se dar tutela ao direito de desapropriar do Poder Público. Porém, se tal limitação é legítima para viabilizar a desapropriação, é evidente que qualquer outra questão que poderia impedir a tutela do direito deve poder ser apresentada pelo réu em ação autônoma, proposta em face do autor da ação de desapropriação.

Os direitos de ação e de defesa têm de estar em equilíbrio, e não em simetria absoluta. A eventual restrição do direito de defesa, caso justificada racionalmente, não fere o direito constitucional de defesa. O que importa é evitar que a restrição da defesa, nessa ocasião, redunde em “prejuízo definitivo”, retirando do réu a oportunidade de exercer a defesa em fase posterior à decisão proferida no curso do processo ou mesmo através do exercício de ação autônoma.

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O contraditório é a expressão técnico-jurídica do princípio da participação, isto é, do princípio que afirma que todo poder, para ser legítimo, deve estar aberto à participação, ou que sabe que todo poder, nas democracias, é legitimado pela participação, de modo que o contraditório, como expressão técnico-processual do princípio da participação, diz respeito não apenas ao réu, mas também ao autor.

É possível dizer que o contraditório exterioriza a defesa, ou que a defesa é fundamento do contraditório. Porém, tais conceitos, ainda que corretos, são incompletos, uma vez que o direito de ação também necessita do contraditório. A confusão certamente deriva da circunstância de que a defesa, para ser exercida em sua fase inicial, isto é, diante da petição inicial apresentada pelo autor, requer a efetivação do contraditório, que tecnicamente pressupõe a informação e a possibilidade de reação. Ou seja, relaciona-se defesa com contraditório porque o réu necessita ser informado e ter a sua disposição os meios técnicos (prazo adequado, advogado) capazes de lhe permitir a reação.

A restrição ao uso do recurso tem justificativa na desnecessidade de se dar oportunidade de dupla revisão a determinada situação de direito substancial. Se a eliminação do recurso é justificada pela situação de direito substancial, não há que se pensar em violação do direito de defesa, uma vez que a norma constitucional diz claramente que são assegurados os meios e recursos “inerentes” ao contraditório, isto é, à ação e à defesa.

A norma constitucional não garante o direito de recorrer, impedindo o legislador de estabelecer um procedimento que não dê às partes o direito de recorrer contra o julgamento. Ao contrário, ela afirma que estão garantidos o contraditório, a ampla defesa e os “recursos a ela inerentes”. Caso o desejo da norma fosse o de garantir, em todo e qualquer caso, o direito de recorrer, teria apenas dito que aos litigantes são assegurados o contraditório, a ampla defesa, e os recursos, e não o contraditório, a ampla defesa, e os meios e recursos a ela inerentes. Ora, se são assegurados o contraditório, a ampla defesa e os recursos a ela inerentes, é porque os recursos nem sempre são inerentes ao contraditório e a ampla defesa.

Embora o duplo grau possa ser considerado importante para uma maior segurança da justiça de decisão, a verdade é que ele não é vital para o bom funcionamento da justiça civil. Em algumas hipóteses, é racional e legítima a dispensa do duplo grau, especialmente em nome do direito fundamental de ação, ou, mais precisamente, de uma maior qualidade e tempestividade da tutela jurisdicional.

O procedimento do mandado de segurança não permite a produção de prova diferente da documental, seja pelo autor, seja pelo réu. Tal procedimento é colocado ao dispor do autor que tem “direito líquido e certo” – isto é, que pode provar as suas alegações mediante prova documental –, para lhe permitir a obtenção de tutela jurisdicional mais tempestiva. Caso o autor não tenha “direito líquido e certo”, e assim necessite produzir prova distinta da documental, ele não poderá utilizar o mandado de segurança, devendo se valer do procedimento comum, que permite o uso de todas as provas. De modo que o réu fica vinculado à opção do autor, isto é, submetido a um procedimento que não admite a produção de prova diversa da documental. Mas essa vinculação não implica em lesão ao direito de defesa, pois o fato litigioso afirmado no mandado de segurança, justamente por ter de ser passível de demonstração através de documento, não pode sequer abrir margem para elucidação mediante as provas testemunhal e pericial. Isso significa que a garantia de prova documental e de questionamento da falsidade do documento apresentado pelo autor é suficiente para preservar o direito de defesa.

72Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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4. A Defesa no Código de Processo Civil.

4.1. A citação para a defesa e as alternativas do réu.

Como toda comunicação às partes do processo, a citação obviamente deve ser efetiva. Além de ter de observar vários requisitos formais, deverá levar ao conhecimento do réu a íntegra do contido na petição inicial, como deixam ver o art. 223, caput – no caso de citação pelo correio – e o parágrafo único do art. 225 do CPC – na hipótese de citação por oficial de justiça.

O CPC admite as citações sob as formas pessoal e ficta. Na primeira a ciência do réu é certa, enquanto na segunda incide presunção legal de conhecimento. A citação pessoal é feita diretamente ao réu que tem poderes para representá-lo judicialmente. A citação ficta é cabível nas situações em que não é possível citar o réu de maneira direta e inequívoca, seja porque ele se esconde, seja porque o local em que poderia ser localizado é inacessível, etc. o CPC admite a citação ficta mediante duas formas: I) por edital (arts. 231-233) e por hora certa (art. 227-229). Nas duas, embora a ciência do réu não posse ser considerada como certa, a lei considera o réu como citado.

No caso em que o réu, citado de forma ficta, não comparece em juízo para contestar, o CPC, zelando pelo direito de defesa, impõe a nomeação de curador especial para apresentar defesa em nome do revel citado por edital ou por hora certa (art. 9º, II, CPC). Tal providência toma em consideração o fato de que a citação, embora necessária nas circunstâncias, é ficta. Por isso mesmo, o CPC, para facilitar a atuação do curador especial, outorga-lhe o poder de apresentar a chamada defesa por negativa geral (art. 302, § único, CPC).

Além disso, como o direito de defesa – assim como o direito ao contraditório – tem como corolário o direito ao prazo adequado, os arts. 223 e 225, VI, exigem que a citação pelo correio e por oficial de justiça mencionem expressamente o prazo para a defesa20.

A defesa, no processo civil, é apenas oportunizada, não sendo obrigatória. O réu não possui o dever de apresentar defesa. O art. 319 do CPC estabelece que “se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor”.

Porém, o art. 320, logo a seguir, afirma que a não-apresentação de contestação não induz o efeito mencionado no art. 319: “I – se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II – se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III – se a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato”.

Tal estrutura demonstra que o CPC não dá o mesmo tratamento aos direitos disponíveis e indisponíveis. O art. 320 excetua os direitos indisponíveis da regra de presunção do art. 319, deixando claro ser ala aplicável apenas aos direitos disponíveis.

De qualquer forma, como o art. 319, mesmo em relação aos direitos disponíveis, não pode retirar do juiz em estado de dúvida o poder de determinar o esclarecimento dos fatos, cabe-lhe mandar o autor especificar prova ou mesmo

20 Como regra, o CPC concede o prazo de 15 (quinze) dias para que o réu adote alguma atitude frente à demanda proposta (art. 297). Esse prazo, no entanto, pode ser alterado por diversas circunstâncias, algumas de ordem subjetiva (pela presença, por exemplo, de litisconsórcio passivo no processo com advogados diferentes), outras de ordem objetiva (decorrentes do tipo de procedimento adotado).73

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determiná-la de ofício. Embora esse entendimento possa, em uma primeira leitura, contrastar com o art. 324, não há como aceitar que o simples não comparecimento em juízo, diante do quadro social brasileiro, possa ser admitido como fonte automática e irreversível de prejuízo ao réu.

É certo que, diante de tal contexto, seria possível argumentar que o réu que não contesta não sofre sequer ônus. Mas não é bem assim. A não apresentação de contestação retira do réu a principal oportunidade de oferecer ao juiz os argumentos de defesa. Só por isso não é razoável pensar que o réu nada sofre ao não contestar.

Quando o réu reconhece juridicamente o pedido, o juiz é obrigado a resolver o mérito, nos termos do art. 269, II, do CPC. Nesse caso o réu não se limita a reconhecer os fatos, mas sim a procedência da própria pretensão à tutela do direito. O réu reconhece o direito do autor, e não apenas um fato. Portanto, o efeito do reconhecimento do pedido logicamente não é o de apenas reduzir a massa dos fatos controvertidos, mas na realidade o de dispensar o juiz de formar convicção sobre as alegações de fato e sobre os fundamentos de direito, isentando-o da necessidade de definir quem tem razão.

O reconhecimento da procedência do pedido, como é intuitivo, apenas é possível em relação aos direitos disponíveis; não diante dos direitos indisponíveis. Embora o art. 269, II, fale em resolução de mérito, isto não quer dizer que o juiz tenha que julgar o resolver o mérito, já que o reconhecimento jurídico do pedido o vincula, não lhe dando qualquer outra alternativa.

Mas o réu não quer permanecer inerte ou reconhecer a procedência do pedido, ele pode apresentar “resposta”.

O CPC institui três espécies de resposta, sendo que uma delas – a reconvenção – não constitui defesa, mas propriamente uma ação do réu contra o autor.

4.2. Resposta e defesa.

A contestação é o instrumento através do qual o réu se opõe à pretensão à tutela do direito – discutindo fatos ou fundamentos de direito – e/ou argúi vícios relativos ao processo ou à ação.

A defesa apresentada através da contestação pode ser dividida em defesa de mérito e defesa processual. A defesa de mérito diz respeito à tutela do direito, assim como aos seus fundamentos de direito e de fato, enquanto a defesa processual argúi vícios que impedem a apreciação do mérito, por dizerem respeito ao processo e à ação, os quais devem obedecer a determinados requisitos para permitir o julgamento da pretensão à tutela do direito.

Embora sejam defesas processuais, já que não dizem respeito à tutela do direito ambicionada pelo autor, as chamadas exceções de incompetência relativa de juízo (art. 112), de impedimento (art. 134) e de suspeição devem ser deduzidas em petição que formará procedimento próprio, destacado do procedimento em que é apresentada a contestação.

Prevista pelo CPC como resposta, a reconvenção abre oportunidade para a análise de uma questão muito interessante diante dos direitos de ação e de defesa.

Através da reconvenção o réu não se defende, porém age, formulando pedido de tutela do direito em face do autor. A reconvenção é espécie de resposta em que o réu deixa a sua posição passiva, assumindo postura ativa. Essa opção poderia dar origem a

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processo distinto, mas por conta da conexão que guarda com o litígio objeto do processo já instaurado, é admitida nos mesmos autos da ação inicialmente proposta.

O réu, quando contesta, não pede tutela do direito, mas apenas tutela jurisdicional. O réu apenas pede tutela jurisdicional do direito quando apresenta reconvenção, isto é, quando age, mediante o exercício da ação, ainda que na direção inversa da ação proposta pelo autor, para tentar obter a tutela do direito.

De modo que das três espécies de resposta previstas no art. 297, apenas duas – a contestação e a exceção – constituem formas de defesa, já que a reconvenção é ação do réu em face do autor.

4.3. Defesa de mérito direta e indireta.

A defesa sobre o mérito é direta quando nega o fato constitutivo do direito, e indireta quando articula um fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Na verdade, em um caso a defesa nega o fato do qual se pretende extrair o efeito jurídico pretendido, e no outro argúi um fato que “indiretamente” impede o reconhecimento da pretensão à tutela do direito.

É visível, por exemplo, que o empréstimo é fato constitutivo do pedido de pagamento – tutela da obrigação contratual em dinheiro. Se o empréstimo é pago ou a dívida é parcelada, e ainda assim a ação é proposta, o réu pode, em vez de negar o empréstimo, argüir o pagamento ou o parcelamento da dívida. Nesses casos a contestação não nega o fato constitutivo, mas alega um fato extintivo (pagamento) ou um fato modificativo (parcelamento).

O conceito de fato impeditivo é mais difícil de ser precisado. Assim, por exemplo, quando o autor pede o pagamento de valor devido em virtude de contrato, possui direito ao pagamento, alegar que não pagou em razão de o autor não ter cumprido com sua parte no contrato. Trata-se da chamada exceção de contrato não cumprido. A mesma situação ocorre quando o réu, sem negar a entrega de mercadoria ou a prestação do fazer, afirma que o adimplemento ocorreu de modo imperfeito – exceção de contrato mal cumprido ou exceção de adimplemento imperfeito.

Perceba-se que os dois últimos exemplos revelam fatos que impedem a conformação do direito à tutela do crédito.

A defesa de mérito direta não se dirige apenas contra o fato alegado, podendo também se voltar contra o efeito jurídico que o autor deseja retirar desse fato. De modo que o réu pode simplesmente contestar o fato constitutivo, mas também negar o efeito jurídico que o autor pretende extrair do fato afirmado, sendo que em ambas as hipóteses estará exercendo defesa de mérito direta.

4.4. Restrições ao direito de defesa e à prova diante da defesa de mérito indireta.

O art. 326 possui dois equívocos visíveis, pois o réu, além de não precisar reconhecer o fato constitutivo para alegar fato impeditivo, modificativo ou extintivo, não pode ter reduzido o seu direito de produzir provas apenas à prova documental.

Não se discute que a defesa de mérito não é logicamente incompatível com a defesa processual – por exemplo, alegação de incompetência absoluta (art. 301, II, CPC), 75

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ou de falta de interesse de agir, hipótese de carência de ação (art. 301, X, CPC) –, assim como é certo que a defesa de mérito direta que nega apenas os efeitos jurídicos que o autor pretende extrair do fato jamais será contraditória com a aceitação desse fato na defesa de mérito indireta.

Diante do direito de defesa tem expressão o chamado princípio da eventualidade, que dá ao réu o direito de argüir uma defesa para a eventualidade de outra não ser acolhida. Esse princípio tem relação com a necessidade de todas as defesas – processuais e de mérito, de mérito direta e indireta – serem apresentadas em um único instante, ou seja, na contestação.

Não há como pensar em incompatibilidade entre a defesa processual e a defesa de mérito, ou entre a defesa de mérito indireta e a defesa de mérito direta que nega os efeitos jurídicos que o autor pretende extrair do fato que alegou. O real problema se apresenta quando se pensa na alegação de fato impeditivo, modificativo ou extintivo que possa ser incompatível com a negação do fato constitutivo.

O réu, ao alegar fato extintivo, modificativo ou impeditivo (defesa indireta), assume comportamento processual que equivale, normalmente, à não-contestação dos fatos constitutivos, uma vez que a defesa indireta pressupõe, em regra, a existência dos fatos constitutivos.

Contudo, o réu pode, adotando o princípio da eventualidade, articular defesa de mérito indireta – em que o fato constitutivo poderia ser dito “implicitamente aceito” – e, ao mesmo tempo, apresentar defesa de mérito direta – negando expressamente fato o constitutivo.

Assim, por exemplo, o réu pode alegar que o crédito afirmado pelo autor, caso existisse, estaria prescrito, situação em que o réu alega (defesa indireta) mas não admite o fato constitutivo (defesa direta).

Em suma, não se pode restringir a defesa de mérito indireta, ou melhor, a alegação de fato impeditivo, modificativo ou extintivo, à não-contestação do fato constitutivo, como se poderia supor a partir de certa compreensão do art. 326 do CPC.

Porém, também não se pode limitar a prova que pode ser utilizada para a demonstração de fato impeditivo, modificativo ou extintivo. O art. 326 diz que o juiz deve facultar o réu, nessa situação, a produção de prova documental.

Tais fatos podem necessitar de quaisquer provas, conforme as particularidades do caso concreto. Portanto, como o réu também tem o direito de influir sobre o convencimento do juiz e de produzir as provas necessárias para tanto, não há outra saída senão concluir que a parte do art. 326 (facultando-lhe o juiz a produção de prova documental) viola o direito fundamental de defesa.

4.5. Os fatos litigiosos e ônus da prova. Distinção entre contraprova e ônus da prova dos fatos articulados na defesa indireta.

Segundo o art. 333 do CPC, o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo e ao réu em relação à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo. Essa regra, ao distribuir o ônus da prova, funda-se na lógica de que o autor deve provar os fatos que constituem o direito que afirma, mas não a não existência daqueles que impedem a sua constituição ou determinam a sua modificação ou a sua extinção. Não há racionalidade em exigir que alguém que afirma um direito deva ser obrigado a se referir a

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fatos que impedem a sua tutela. Isso deve ser feito por aquele que pretende que a tutela do direito não seja concedida, isto é, pelo réu.

Afirma-se que a regra do ônus da prova se destina a iluminar o juiz que chega ao final do procedimento sem se convencer sobre como os fatos se passaram. Nesse sentido, a regra do ônus da prova é um indicativo para o juiz se livrar do estado de dúvida e, assim, definir o mérito. Tal dúvida deve ser paga pela parte que tem o ônus da prova. Se a dúvida paira sobre o fato constitutivo, essa deve ser suportada pelo autor, ocorrendo o contrário em relação aos demais fatos.

A regra do ônus da prova não se dirige apenas ao juiz, mas também às partes, com o fim de dar-lhes ciência de que a prova dos fatos constitutivos cabe ao autor, e a prova dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos ao réu. É certo que o juiz pode julgar favoravelmente à parte que não cumpriu o ônus da prova, uma vez que o julgamento pode se basear em provas produzidas de ofício ou mesmo em provas produzidas pela parte contrária. Mas isso não retira a importância de que as partes sabiam, de forma prévia, a quem incumbe o ônus da prova, pois, se esse ônus não precisa ser necessariamente observado para que a parte obtenha um resultado favorável, não há como negar que a parte deve ter ciência prévia do que deve fazer para ter um julgamento favorável independentemente de outras provas, produzidas de ofício ou pela parte contrária. O ônus da prova indica que a parte que não produzir prova se sujeitará ao risco de um resultado desfavorável. Ou seja, o descumprimento desse ônus não implica, necessariamente, num resultado desfavorável, mas no aumento do risco de um julgamento contrário.

O réu não tem o ônus da prova na defesa direta, mas apenas na defesa indireta. Em outros termos, o réu não faz prova, e sim, contraprova, através da defesa direta.

Note-se que a contraprova não é apenas a que objetiva invalidar formalmente a prova do fato constitutivo, como a que visa demonstrar a falsidade do documento que prova o fato constitutivo. A contraprova diz respeito ao próprio fato constitutivo, e não somente à sua prova. A contraprova pode demonstrar o contrário do que o autor alegou como fato constitutivo. Assim, por exemplo, se o autor afirmou que o réu atravessou o sinal vermelho, causando um depoimento testemunhal para demonstrar que tal fato não é verdadeiro.

Perceba-se que não é pela razão de que o ônus da prova do fato constitutivo incumbe ao autor que o réu não poderá produzir prova em relação a ele.

No que concerne ao tema que aqui importa, vigora o princípio da aquisição da prova, que significa que essa, uma vez requerida, adquire autonomia em relação à parte que pediu a sua produção, passando a importar ao juízo. Por isso, o juiz, ao analisar o conjunto probatório, pode valorar a prova em desfavor da parte que pediu a sua produção, ainda que essa não tivesse o ônus de produzi-la. Nesse sentido, mesmo que a prova tenha sido requerida pelo réu, o juiz somente pode homologar o seu requerimento de desistência de admissão ou de produção da prova após consultar a parte adversa.

Mas o fato de o réu requerer a produção de uma prova cujo ônus não é seu não significa um desejo de assumir o ônus da prova que grava o autor, mas sim a vontade de influir sobre o convencimento do juiz para demonstrar que o fato constitutivo não existe.

O réu pode requerer, para negar o fato constitutivo, a prova pericial necessária para o autor demonstrá-la. Isso porque tal prova, dependendo do seu resultado, pode demonstrar ou negar o fato constitutivo.

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A parte assume o risco do resultado da prova ou o ônus da prova no instante em que requer a sua produção.

4.6. Direito de defesa e inversão do ônus da prova.

Existem situações de direito material que, embora não permitam a formação da convicção de verossimilhança, exigem a inversão do ônus da prova na audiência preliminar ou na sentença.

A inversão do ônus da prova, em princípio, deve dar à parte que originariamente não possui o ônus da prova a oportunidade de produzi-la. Nessa lógica, quando se inverter o ônus é preciso supor que aquele que vai assumi-la terá a possibilidade de cumpri-lo, sob pena de a inversão do ônus da prova significar a imposição de uma perda, e não apenas a transferência de um ônus. A inversão do ônus da prova, nessa linha, somente deve ocorrer quando o réu tem a possibilidade de demonstrar a não existência do fato constitutivo.

O fato de o réu ter condições de provar a não existência do fato constitutivo não permite, por si só, a inversão do ônus da prova. Isso apenas pode acontecer quando as especificidades da situação de direito material, objeto do processo, demonstrarem que não é racional exigir a prova do fato constitutivo, mas sim exigir a prova de que o fato constitutivo não existe. Ou seja, a inversão do ônus da prova é imperativo de bom senso quando ao autor é impossível, ou muito difícil, provar o fato constitutivo, mas ao réu é viável, ou muito mais fácil, provar sua existência.

Em outros casos, porém, a produção da prova é impossível às partes, e assim não há razão para inversão do ônus da prova na audiência preliminar. Nesses casos, diante da impossibilidade da produção da prova, o juiz não consegue formar sequer uma convicção de verossimilhança. Há uma situação de “inesclarecibilidade” que deve ser suportada pelo autor, isto é, por aquele que tem o ônus da prova.

Quando há uma situação de inesclarecibilidade que pode ser imputada ao réu, a sentença deve inverter o ônus da prova. Nessa hipótese, como não há convicção de verossimilhança, a dúvida tem de ser paga por uma das partes. Mas não há racionalidade em imputá-la ao autor quando o risco da inesclarecibilidade do fato constitutivo é assumido pelo réu.

Ou seja, o juiz deve procurar uma convicção de verdade e, por isso, quando está em dúvida – isto é – quando o autor não o convencer da existência do fato constitutivo –, em regra deve julgar com base na regra do art. 333. Porém, algumas situações de direito material exigem que o juiz reduza as exigências de prova, contentando-se com convicção de verossimilhança. Ao lado disso, há situações em que o autor é impossível, ou muito difícil, a produção da prova do fato constitutivo, mas ao réu é viável, ou mais fácil, a demonstração da sua inexistência, o que justifica a inversão do ônus da prova na audiência preliminar. Mas ainda há casos em que a prova é impossível, ou muito difícil, para ambas as partes, quando então não há como inverter o ônus probatório na audiência preliminar e o juiz não consegue chegar sequer a uma convicção de verossimilhança ao final do procedimento. Nessas situações, determinada circunstância de direito material pode permitir a conclusão de que a impossibilidade de esclarecimento da situação fática não deve ser paga pelo autor, quando a inversão do ônus da prova deve ocorrer na sentença.

Nesses casos, não há que se pensar em violação ao direito de defesa. O julgado com base em verossimilhança, a inversão do ônus da prova na audiência 78

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preliminar em decorrência de estar o réu, e não o autor, em condições de produzir a prova e a inversão do ônus da prova na sentença diante da inesclarecibilidade da situação fática por motivo que não pode ser imputado ao autor, mas sim ao réu, devem poder ser racionalmente justificadas pelo juiz diante das particularidades do caso concreto.

Porém, seguindo-se essa mesma lógica, torna-se evidente que o julgamento com base em verossimilhança e a inversão do ônus da prova sem a presença de critérios justificadores e sem a devida racionalização através da motivação viola do direito de defesa, pois faz pesar sobre o réu um ônus que não lhe pertence.

Páginas: 334 a 384

Elaborado por: Teresa Melo

Capítulo 5 - O Direito Fundamental de Defesa diante do Direito Fundamental de Ação

5.1. Primeiras considerações

Os direitos de ação e de defesa, em razão de sua natureza processual, têm uma evidente peculiaridade em relação aos demais direitos fundamentais. Muitas vezes, quando se supõe um conflito entre eles, o juiz está apenas diante da necessidade de considerar os direitos em litígio, concretizando uma limitação feita pelo legislador ao direito de defesa (art. 273, CPC).

Por outro lado, quando o legislador, a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, dá ao juiz poder para determinar a modalidade executiva adequada ao caso concreto (arts. 461, CPC e 84, CDC), a única forma de se conceber alguma restrição é compreendendo-se a defesa como direito de não ter a esfera jurídica invadida por meios de execução não tipificados em lei.

Mesmo quando o juiz supre a omissão de lei com base no direito fundamental de ação, isso não quer dizer que esteja limitando o direito de defesa. O juiz, mesmo na ausência de lei, sempre deve raciocinar sobre os direitos de ação e de defesa a partir da natureza da tutela do direito. O juiz não supre a omissão legal apenas com base no direito de ação, pois para individualizar a própria omissão deve se fundar na tutela do direito pretendida pelo autor, para somente depois concluir que a omissão de lei atenta contra o direito fundamental de ação. Ou seja, a admissão de omissão violadora do direito fundamental de ação deve se apoiar nas necessidades de tutela do direito material.

Acontece que o juiz, ao atentar para as necessidades do autor, não pode esquecer das regras da adequação e da necessidade, e assim do direito de defesa.

5.2. As relações entre os direitos fundamentais de defesa e de ação na perspectiva do legislador

A necessidade de efetividade do direito buscada por intermédio do direito de ação pode impor a limitação do direito de defesa.

Admite-se a afetação de posições jurídicas situadas no “âmbito de proteção” do direito de defesa desde que fundamentada no direito fundamental de ação. É o que ocorre, por exemplo, na hipótese de antecipação de tutela.

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Assim, não há qualquer violação ao núcleo essencial do direito de defesa quando se postecipa, para momento posterior ao da concessão da tutela, a plenitude do exercício do direito de defesa. Nesse caso, embora a esfera jurídica do réu seja atingida pelos efeitos da decisão, não lhe é eliminado o direito de defesa ou a possibilidade de demonstrar ao juiz a inexistência do direito que foi suposto existente quando da concessão da antecipação da tutela.

Nessa mesma dimensão pode ser analisada a questão da execução na pendência dos recursos especial e extraordinário (arts. 542, par. 2º e art. 475-O, CPC). Nessa hipótese, a norma não tem fundamento na necessidade de se dar efetividade ao direito material submetido a uma situação de urgência, mas sim na racionalização da distribuição do ônus do tempo do processo, e, assim, no direito à tempestividade da tutela jurisdicional.

O direito de ação, que evidentemente se liga ao direito fundamental à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII,CF), justifica a execução da condenação na pendência dos recursos especial e extraordinário. Mas, para viabilizar a tempestividade sem deixar o réu desamparado, o art. 475-O, III, exige caução suficiente e idônea, providência essa última que se destina, em determinada perspectiva, a salvaguardar o direito de defesa.

Tais exemplos demonstram a possibilidade de limitação ao direito fundamental de defesa, desde que racionalmente justificadas a partir do direito fundamental de ação.

5.3. As relações entre os direitos fundamentais de defesa e de ação na perspectiva do juiz

A necessidade de concretizar uma ponderação já feita pelo legislador está presente, embora não seja percebida, diante da tutela antecipatória. É freqüente se dizer que o juiz, ao decidir sobre a tutela antecipatória, faz uma ponderação entre os direitos de ação e de defesa. Acontece que essa ponderação foi feita pelo legislador, ao instituir o art. 273 no CPC.

Portanto, o raciocínio do juiz, no caso, deve passar longe da possibilidade de limitação da defesa em face da ação, restringindo-se apenas a preencher os requisitos para a priorização de um sobre o outro, a qual já foi expressamente admitida pelo legislador.

De modo que, diante da tutela antecipatória, não há qualquer razão para aplicar a regra do balanceamento como critério de solução de conflito entre os direitos fundamentais de ação e de defesa. Isso pela simples razão de que o conflito não existe no caso concreto, pois já foi resolvido pelo legislador.

Em tal hipótese, como é óbvio, estabelece-se uma relação entre os direitos materiais em litígio, a qual tem a ver com colisão entre direito de ação e direito de defesa.

Em outro caso, o legislador, para permitir a efetividade do direito de ação, outorga ao juiz o poder de determinar a modalidade executiva adequada à tutela do direito, conforme a necessidade do caso concreto (par. 5º do art. 461, CPC). Tal norma representa uma expressa opção pela efetividade do direito de ação diante da segurança jurídica e, em determinada perspectiva, do direito de defesa. A idéia de que somente podem ser admitidos os meios executivos tipificados em lei deriva da necessidade de garantir a liberdade do litigante, e, nesse sentido, o direito de defesa contra a possibilidade de arbítrio do juiz.

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A norma do par. 5º do art. 461, ao conferir ao juiz tal poder, não lhe deixa margem para limitar o direito de defesa em face do direito de ação ou para aplicar a regra da proporcionalidade em sentido estrito. A norma já ponderou o que havia para ser ponderado, optando por dar ao juiz o poder de agir de acordo com as necessidades concretas.

A atividade do juiz deverá levar em conta a tutela de direito material objetivada pelo autor, individualizando o meio executivo capaz de lhe dar efetividade, isto é, o meio executivo idôneo à tutela do direito material. Mas, como a tutela do direito deve ocorrer através do meio de execução menos gravoso, é evidente que a existência de mais de um meio idôneo obriga à escolha do meio capaz de trazer a menor restrição possível ao réu.

Tal maneira de proceder, como é evidente, não expressa qualquer limitação do direito de defesa em razão do direito de ação, mas apenas uma forma de dar efetividade ao direito de ação sem descurar o direito de defesa. É possível dizer que o legislador, ao outorgar ao juiz a possibilidade de escolher o meio executivo, obriga-o a harmonizar – através das regras da adequação e da necessidade (meio idôneo e menor restrição possível) – o direito de ação com o direito de defesa.

Porém, essas duas situações são diferentes daquela em que o juiz, ao raciocinar a partir do direito fundamental de ação, identifica uma omissão de regra processual ou técnica processual diante de uma necessidade de tutela do direito material.

No caso em que o juiz, com base no direito de ação, supre a omissão legal, é evidente que ele deve cuidar para não violar o direito de defesa – porque a atuação judicial, nessa situação, sempre é feita em face do réu.

Acontece que, em tal hipótese, mais uma vez não há que se pensar em balanceamento dos direitos de ação e de defesa, mas apenas na aplicação das regras da adequação e da necessidade. O que diferencia esse último caso dos dois primeiros é que agora não há norma limitando o direito de defesa diante do direito de ação (tutela antecipatória) ou norma que expressamente aumenta a latitude de poder do juiz para permitir a concretização do direito de ação (medida executiva necessária), mas sim falta de norma, significando obstáculo para a realização do direito de ação.

Veja-se, por exemplo, a hipótese dos embargos de declaração com efeitos infringentes. Talvez ninguém imagine que os tribunais, nesse caso, venham suprindo a omissão da legislação processual em nome dos direitos fundamentais de ação e de defesa.

É preciso perceber, porém, que, quando se atribui aos embargos de declaração efeitos modificativos da decisão ou efeitos infringentes, admite-se uma forma de impugnação das decisões não prevista pelo legislador. Os embargos de declaração com efeitos infringentes incrementam a possibilidade de participação do autor e do réu, dando maior efetividade aos direitos de ação e de defesa.

Porém, ao se admitir o caráter modificativo dos embargos de declaração, a questão do direito à sua impugnação exige redimensionamento. Qualquer forma de impugnação que possa modificar uma decisão deve poder ser respondida pela parte que foi por ela beneficiada e pode ser prejudicada pela nova decisão a ser tomada. Nesse sentido, é importante registrar que a jurisprudência do STF e do STJ tem afirmado, de forma pacífica, a imprescindibilidade da intimação da parte contrária.21

21 Embora seja costume associar o direito de responder com o direito de defesa, o direito afetado pela impossibilidade de resposta não é necessariamente o direito de defesa. Basta atentar para o fato de que a decisão pode prejudicar o réu, abrindo-lhe a possibilidade do uso dos embargos de declaração com efeitos infringentes. Ora, o réu, ao impugnar a decisão, obviamente continua exercendo o direito de defesa. Do mesmo modo, o autor, ao responder os embargos de declaração, prossegue exercendo o seu direito de 81

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A oportunidade de resposta aos embargos constitui o desdobramento da própria admissão dos embargos de declaração com efeitos infringentes. Porém, o que realmente tem relevância teórica é a circunstância de que, ao assim atuar, o Judiciário admite a incidência imediata dos direitos fundamentais de ação e de defesa, ou melhor, a supressão da omissão legal a partir desses direitos fundamentais, o que revela, ainda que possa passar imperceptível, uma criação judicial do procedimento adequado a partir da Constituição. E nesse caso também não há qualquer restrição do direito de defesa ou do direito de ação.

Entretanto, há uma outra situação em que a norma constitucional ponderou entre o direito à descoberta da verdade e os direitos da personalidade, proibindo a prova obtida de modo ilícito (art. 5º, LVI, CF). A questão, porém, é saber se essa opção excluiu a possibilidade de uma posterior ponderação judicial entre o direito que se pretende fazer valer por meio da prova ilícita e o direito material por ela violado. Na verdade, importa definir se a norma que proibiu a prova ilícita ponderou tudo o que havia a ponderar, fechando as portas para qualquer ponderação por parte do juiz, ou se ainda está aberta para certos casos concretos.

A proibição da prova ilícita não exclui – nem poderia – a radical diferença entre os direitos que compõem os diferentes processos (processo civil e processo penal principalmente). Por isso, a norma que proíbe a prova ilícita, ainda que tenha feito uma ponderação – como fazem, aliás, várias outras normas que consagram direitos fundamentais –, não se libertou da sua reserva imanente de ponderação com outros direitos.

Isso quer dizer que a norma do art. 5º, LVI, da CF é complementada pela opção do processo penal, mas, quando pensada em face do processo civil, apenas pode se ligar a uma falta de opção, ou melhor, à necessidade de que essa opção seja feita diante do caso concreto. Melhor explicando: a proibição da prova ilícita não se choca com a realidade do processo penal, pois aí se faz nítida opção, inclusive fundada em outros direitos fundamentais, pelo direito de liberdade em face da pretensão punitiva estatal, mas pode vir a colidir com os direitos fundamentais objeto de tutela através do processo civil.

Frise-se que o art. 5º, LVI, da CF apenas ponderou entre o direito à descoberta da verdade e o direito material violado pela prova. Mas no processo penal ocorreu uma segunda ponderação, preferindo-se o direito de liberdade em face do poder de punir do Estado, ao passo que no processo civil, ao contrário, por serem diversificados os direitos que podem ser tutelados, não há sequer como pensar em uma segunda ponderação normativa.

Diante do processo civil, o conflito pode se dar entre o direito fundamental a ser tutelado e o direito fundamental violado pela produção da prova. Trata-se de colisão entre dois direitos que não foram – nem poderiam ser – objeto de prévia ponderação normativa. Dizer que a descoberta da verdade não pode ocorrer por meio de prova ilícita não é o mesmo que afirmar que um direito fundamental não pode ser demonstrado através de uma prova prima facie ilícita.

No processo civil, o uso da prova prima facie ilícita pode ser admitido, segundo a lógica da regra da proporcionalidade em sentido estrito, conforme as circunstâncias do caso concreto. Deixe-se claro, porém, que nesse caso se está muito longe de ponderação entre direito de ação e direito de defesa, ou mesmo entre direito à descoberta da verdade (ou de produzir prova) e direito de não ter a esfera jurídica atingida pelos efeitos de prova obtida por meio ilícito. A ponderação deverá ocorrer entre o direito fundamental objeto de tutela e o direito fundamental violado com a obtenção da prova.

ação. 82

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Capítulo 6 – Problematização do Direito Fundamental de Defesa

6.1. Julgamento antecipado do mérito e defesa

O julgamento antecipado do mérito (art. 330, CPC) nada tem a ver com o instituto da tutela antecipatória. No caso de julgamento antecipado da lide não há juízo de verossimilhança ou definição de apenas parcela da demanda. O julgamento antecipado é de todo o mérito e com base em convicção de verdade.

Nos casos previstos no inciso I do art. 330, CPC, não há propriamente julgamento antecipado, mas sim julgamento imediato diante da desnecessidade do prosseguimento da fase de conhecimento do processo. Não há julgamento antecipado ou “resolução” prematura do mérito – o mérito é julgado no momento devido. Caso houvesse o contrário, ou seja, caso fosse realizada audiência de instrução, é que o julgamento se daria de forma inexplicavelmente retardada.

Porém, o julgamento antecipado também é previsto no caso de revelia. Embora o art. 330, II, afirme que o juiz conhecerá diretamente do pedido quando ocorrer a revelia, impõe-se a interpretação de que essa norma quis dizer que o julgamento antecipado da lide apenas é possível quando da revelia decorrer o efeito previsto no art. 319, CPC.

É que esse efeito, em razão das próprias normas do CPC (art. 320, por exemplo), não deriva necessariamente da ausência de resposta. Contudo, o problema não é este, mas sim o de saber se, quando os efeitos da revelia, de acordo com o CPC, não são excluídos pelas normas de exceção, o juiz obrigatoriamente deve julgar antecipadamente a lide.

Portanto, o que realmente importa é saber se, diante da ausência de resposta, o juiz deve obrigatoriamente admitir como verdadeiro o fato que pode ser verdadeiro ou falso, ou se, havendo dúvida sobre a veracidade do fato, deve mandar o autor especificar prova ou mesmo determiná-la de ofício. É preciso, nesse contexto, ter presente a diferença entre comparecer em juízo e não apresentar resposta e simplesmente não comparecer. Não há como admitir, como regra de presunção, que o não-comparecimento pode ser identificado como rebeldia ou descaso do réu. É por isso que não é possível equiparar o não-comparecimento com a não-contestação de parte da demanda e com a não-apresentação de resposta por parte daquele que compareceu no processo. Se é sabido que a maioria da população tem sérios problemas financeiros e culturais, o não-comparecimento faz presumir impossibilidade de contratação de advogado, desconhecimento da assistência judiciária ou, ainda, falta de preparo cultural capaz de permitir a compreensão da necessidade da contestação. Por outro lado, a finalidade de eliminação do conflito de interesses sem maiores delongas não pode servir de justificativa para a instituição do julgamento antecipado em caso de revelia, pois não há nada que justifique a imediata solução do litígio quando não se vê na falta de atendimento à citação uma simples rebeldia do réu ou um descaso em relação à demanda e ao Poder Judiciário.

Quer dizer que o entendimento de que o juiz é obrigado a admitir como verdadeiros os fatos não contestados atribui ao não-comparecimento um efeito que não está de acordo com a realidade social brasileira, já que equipara o não-comparecimento à vontade de não se defender.

6.2. Urgência da tutela e defesa

83Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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Em situações de maior urgência, a tutela cautelar e a antecipação da tutela podem ser imprescindíveis ainda que o réu não tenha sido citado ou tido oportunidade para se defender. A concessão de tutela urgente antes da ouvida do réu, para ser justificada, deve admitir que o tempo necessário para o demandado poder apresentar resposta é incompatível com a urgência de tutela do direito.

O CPC não poderia vedar a concessão da tutela antes da ouvida do réu, pois nenhuma norma tem o condão de controlar as situações de perigo. A tutela de urgência não pode ser eliminada onde é necessária para evitar um prejuízo irreparável.

Embora aí exista limitação do direito de defesa, não há violação do seu núcleo essencial, uma vez que a liminar inaudita altera parte é provisória. A provisoriedade da liminar permite que o réu apresente defesa e recurso contra o seu deferimento. A postergação do contraditório é obviamente legítima, pois atende à efetividade do direito fundamental de ação.

É importante lembrar, porém, que a concessão a liminar pode trazer danos ao réu, especialmente quando mantida eficaz sem justificativa. De modo que é importante extrair equilíbrio da relação direito de ação-direito de defesa, já que a efetividade da ação é um valor a ser perseguido com decisivo empenho, com a condição de que não seja pago o preço do direito de defesa.

6.3. Abuso de direito de defesa, parcela incontroversa da demanda e distribuição do ônus do tempo do processo através da técnica antecipatória

A preocupação exagerada com o direito de defesa, fruto de uma visão excessivamente comprometida com o liberalismo clássico, não permitiu, por muito tempo, a percepção de que o tempo do processo não pode ser jogado nas costas do autor, como se ele fosse o culpado pela demora inerente à verificação da existência dos direitos.

O sistema processual civil, para atender aos direitos fundamentais de ação e de defesa, dando tratamento igualitário ao autor e ao réu, deve tratar o tempo como um ônus, e não como algo indiferente e neutro às posições das partes no processo. Nessa dimensão deve se preocupar com a distribuição racional do ônus do tempo do processo, pois de outra forma será impossível alcançar um processo que espelhe o princípio da isonomia. Ex.: art. 273, II e art. 273, par. 6º, CPC. Essas duas técnicas de tutela antecipatória são capazes de conferir uma adequada distribuição do tempo, viabilizando o equilíbrio entre os direitos de ação e de defesa.

Se o ônus da prova é repartido entre o autor e o réu na medida do que alegam (art. 333, CPC), cabe perguntar por que o tempo do processo também não é dividido de acordo com essa mesma regra. Ou seja, se o réu tem o ônus de provar o fato impeditivo, modificativo ou extintivo, por que o autor deve suportar o tempo necessário à produção de uma prova que interessa o réu?

A tutela antecipatória baseada no art. 273, II, CPC, transfere o ônus do tempo do autor para o réu, o que é absolutamente legítimo. É uma resposta ao direito constitucional à tempestividade da tutela jurisdicional. Não viola o direito de defesa, pois não pode ser deferida antes da ouvida do réu. Além disso, após a concessão da tutela, o réu continua a se defender no processo, atuando para que a sua defesa indireta seja acolhida (tutela concedida com a reserva da cognição da defesa, ou “condenação ou reserva” do direito italiano e do direito alemão).

Ainda mais evidente é a necessidade da pronta tutela da parte da demanda que se tornou incontroversa no curso do processo (art. 273, par. 6º, CPC). Evidenciando-se

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parcela da demanda no curso do processo, o direito à tutela jurisdicional tempestiva impõe a fragmentação da tutela jurisdicional do mérito.

Não há aqui lesão ao direito de defesa. Na verdade, o ordenamento jurídico que impede a imediata tutela da parcela incontroversa da demanda é que viola o direito de ação, constituindo um ordenamento despreocupado com a efetividade da tutela dos direitos.

6.4. Mandado de segurança e defesa

Quando se pensa em direito líquido e certo, procura-se identificar a qualidade de uma afirmação de direito em termos probatórios. Se uma afirmação não requer instrução aprofundada – ou melhor, prova distinta da documental – essa afirmação de direito pode ser identificada de forma distinta daquelas que exigem, por exemplo, prova testemunhal, e nesse sentido se diz que o direito é líquido e certo. O mandado de segurança constitui um procedimento que tem o exame do mérito condicionado à existência de prova documental.

A técnica da cognição exauriente secundum eventum probationis, além de viabilizar o julgamento do mérito de forma mais tempestiva, não elimina a possibilidade de o jurisdicionado recorrer ao procedimento ordinário (Súmula 304 do STF).

Embora o réu esteja proibido de produzir provas testemunhal e pericial, isso não constitui violação ao direito de defesa. É que tal restrição é legítima, pois o autor também está circunscrito à produção de prova documental. O direito líquido e certo do impetrante não pode ser demonstrado através de prova testemunhal ou pericial realizada antecipadamente. Não só porque tais provas não constituem prova documental (porém provas documentadas), mas também porque, se a prova testemunhal for admitida como suficiente para a demonstração de “direito líquido e certo”, ocorrerá lesão ao direito de defesa, na medida em que o réu não tem oportunidade de produzir prova para contrapor à prova antecipadamente realizada pelo autor, uma vez que somente pode valer-se de prova documental.

No caso de o documento ser apontado como falso, a opção correta é a de admitir a investigação da falsidade. A objeção seria a de que o procedimento estaria sendo desnaturado e alargado. Porém, o procedimento não estará sendo desnaturado, já que a prova, por óbvio, não terá por objeto o fato que o documento pretende representar, mas sim a própria idoneidade do documento. Vale dizer: o procedimento continuará com a sua natureza – que é documental – intocada. Por outro lado, a questão do prejuízo com o alargamento do procedimento implica a consideração da eterna problemática posta pelo binômio “celeridade-segurança”. Nesse caso, seria dada prioridade ao valor segurança em detrimento do valor celeridade, apenas porque o procedimento do mandado de segurança permite a concessão de liminar. Demais, as provas requeridas por abuso poderiam ter resposta na imposição de pena por litigância de má-fé.

6.5. Procedimento monitório e defesa

O procedimento monitório objetiva a formação do título executivo sem as delongas do procedimento comum, deixando ao devedor ou ao obrigado o juízo de oportunidade sobre a instauração de embargos, isto é, de um procedimento que lhe permite exercer plenamente a sua defesa. A não apresentação de embargos faz surgir o título executivo, ficando o juiz impedido de determinar a produção de prova tendente à averiguação da existência do direito afirmado, que, então, é considerado existente por ficção legal. Em outras palavras, a inércia do demandado dispensa a cognição, viabilizando a imediata execução (art. 1.102a, CPC). 85

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Entretanto, o fato de a formação do título executivo se dar independentemente da apresentação dos embargos não significa ter um procedimento que viole o direito de defesa ou um procedimento de cognição sumária. No procedimento monitório a ampla defesa é oportunizada, não havendo sequer a transferência de parcela da defesa para procedimento posterior, o que não permite a sua inserção na classe dos procedimentos de cognição sumária. O procedimento monitório pode ser pensado como procedimento formalmente sumário, isto é, como procedimento abreviado, mas jamais como um procedimento que restringe a possibilidade de discussão das partes e de convencimento do juiz – dito procedimento de cognição sumária.

É certo que a possibilidade da definição do direito do autor diante da não apresentação de embargos ao mandado poderia ser comparada à situação do julgamento antecipado do mérito em caso de revelia. Entretanto, há entre as duas hipóteses uma importante diferença. Enquanto no procedimento comum não há qualquer elemento capaz de justificar um tratamento diferenciado ao autor, no procedimento monitório o autor deve ter “prova escrita” da sua alegação. Assim, o eventual risco que a defesa corre é justificado pela necessidade de dar tratamento diferenciado àquele que pode provar, desde logo, a existência do seu direito.

6.6. Procedimento de cognição sumária e defesa

A concessão da tutela jurisdicional do direito, no caso de urgência, pode ser admitida no curso do processo de cognição exauriente (de participação plena) ou como o resultado de uma ação em que a cognição é sumária (participação limitada). Porém, a legitimidade da tutela jurisdicional, em ambas as hipóteses, depende de se dar ao réu a oportunidade para exercer a defesa, seja no próprio processo em que a tutela foi concedida, seja na ação de cognição exauriente (de conhecimento) que deverá seguir a ação de cognição sumária que culminou na concessão da tutela.

Mas, se é possível a concessão da tutela no curso do processo de cognição exauriente (antecipação de tutela), há pouca razão para aceitar uma ação de cognição sumária seguida de uma ação de cognição exauriente (ação de conhecimento). Não há motivo para admitir uma ação de cognição sumária apenas porque ainda não foram reunidas todas as provas necessárias para a propositura da ação de conhecimento. Se a urgência realmente estiver presente, a dificuldade em reunir a prova documental poderá interferir com a mesma intensidade na tutela urgente na ação de cognição sumária e na tutela urgente na ação de cognição exauriente. Basta aceitar a produção de prova documental em momento posterior ao da propositura da ação de cognição exauriente, isto é, no curso do processo.

Por outro lado, quando se quer afastar a necessidade de a atividade jurisdicional prosseguir após a concessão da tutela satisfativa (antecipatória) de cognição sumária, pensa-se na estabilização da tutela diante do silêncio do demandado. Essa estabilização pode ser concebida no curso do processo de conhecimento ou ao final da ação de cognição sumária. Tal estabilização seria dependente da inércia do réu em ambos os casos.

Porém, a técnica da estabilização da tutela, que se realiza mediante a inversão do ônus da propositura da ação principal, não pode deixar de atentar para a problemática do ônus da prova. No caso de a lei não diferenciar as situações de direito substancial que podem ser objeto dessa técnica, o ônus da prova terá de ser pensado conforme o caso concreto.

Na verdade, ao se manter a regra de que “o ônus da prova é do autor”, a inversão do ônus da propositura da ação principal viola o direito de defesa, pois o fato de o réu 86

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manifestar a sua vontade de prosseguir discutindo o litígio não deve lhe impor o ônus da prova na ação principal – da qual passa a ser autor. Ou seja, o réu (da ação sumária) não deve ser obrigado a demonstrar, apenas porque passa a ser o autor da ação principal, que os fatos que foram admitidos como verossímeis na ação sumária – e por isso permitiram a concessão da tutela – não são verdadeiros. É que o ônus de demonstrar os fatos constitutivos do direito é de quem pede a tutela jurisdicional do direito. Ora, quem pede a tutela jurisdicional do direito é o autor da ação de cognição sumária, uma vez que o autor da ação principal, como é óbvio, deseja apenas a revogação da tutela do direito, ou a declaração de que ela não deveria ter sido prestada.

6.7. Mitigação da regra da adstrição da sentença ao pedido e defesa

O juiz está impedido de proferir sentença de natureza diversa ou prestar tutela do direito distinta das pedidas (art. 460, CPC). Porém, de acordo com os arts. 84 do CDC e 461 do CPC, o juiz pode conceder a tutela específica ou o chamado “resultado prático equivalente ao do adimplemento. Além disso, confere-se ao juiz o poder de impor multa ou determinar a medida executiva necessária sem requerimento da parte.

A ruptura da regra da tipicidade dos meios de execução, isto é, da regra de que o autor e o juiz poderiam se valer dos meios executivos expressamente definidos na lei, não implicou apenas na possibilidade de uso de meio executivo não previamente estabelecido, mas também na mitigação da regra da adstrição da sentença ao pedido.

Vale dizer que, diante das cláusulas gerais executivas, além de a lei não definir o meio executivo que deve ser utilizado, o juiz não está mais adstrito ao meio executivo solicitado, podendo determinar aquele que lhe parecer o mais adequado ao caso concreto.

O juiz não pode admitir ou determinar a forma e o meio executivo para a tutela do direito olhando apenas para o direito de ação, como se isso não importasse ao réu. A legitimidade da forma e do meio executivo para a prestação da tutela jurisdicional depende da consideração dos direitos de ação e de defesa em um só tempo, através das regras da adequação e da necessidade.

A adequação se coloca no plano dos valores, querendo significar que a “forma” não pode infringir o ordenamento jurídico para proporcionar a tutela. A necessidade, por sua vez, tem relação com a efetividade da “forma, isto é, com a sua capacidade de realizar – na esfera fática – a tutela do direito. É por isso que ela se divide em outras duas: a do “meio idôneo” e a da “menor restrição possível”.

Porém, o que importa é deixar claro que, diante da mitigação da regra da adstrição da sentença ao pedido, é imprescindível conciliar o direito fundamental de ação com o direito fundamental de defesa.

6.8. Princípio da concentração dos poderes executivos e defesa

Após o trânsito em julgado da sentença, não tendo sido cumprida a determinação judicial que concedeu a tutela do direito, o juiz, de ofício ou a requerimento do autor, poderá determinar outra “forma” no lugar da primitivamente imposta. Porém, o novo meio idôneo deve ser adequado e, dentre todos os que restaram como capazes de viabilizar a tutela do direito, constituir aquele que gera a menor restrição possível.

De outra parte, o meio executivo também pode ser modificado após o trânsito em julgado da sentença. Nesse caso devem ser consideradas especialmente as regras do meio idôneo e da menor restrição. Nessa dimensão, a única forma de se controlar o

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exercício do poder será através da análise da justificação da decisão. O juiz deverá justificar a razão pela qual, por exemplo, a determinação da instalação do equipamento antipoluente ou a aplicação da multa não tiveram êxito, e porque acredita que uma outra forma para a tutela do direito ou um outro meio executivo poderão permitir a efetiva tutela do direito.

6.9. A legitimidade do procedimento de cognição parcial e da restrição à matéria de defesa

Quando o procedimento limita a matéria de defesa, reservando determinados pontos litigiosos pra uma outra demanda, há uma limitação do conflito de interesses (ou da lide, para quem identifica conflito de interesses com lide), e, assim, a construção de um procedimento de “lide parcial”. O procedimento de lide parcial é um procedimento que limita a cognição do juiz sobre a “lide total”, podendo ser dito, assim, procedimento de cognição parcial (Ex.: procedimento da ação de desapropriação – art. 20, Dec.-lei 3.365, de 21.06.1941; e procedimento da ação possessória – art. 923, CPC).

Se um procedimento pode restringir o direito de alegação e prova para dar efetividade à tutela do direito material, isso não quer dizer que o direito de defesa, considerado em relação a esse procedimento, tenha sido violado, desde que se permita ao réu invocar tal questão por meio de ação inversa posterior. A simples restrição do direito à alegação não pode ser dita inconstitucional. A violação ao núcleo essencial do direito de defesa somente se dará se a lei impedir a parte de invocar a alegação excluída perante o Poder Judiciário.

O procedimento de cognição parcial privilegia os valores “certeza” e “celeridade” – ao permitir o surgimento de uma sentença definitiva (com força de coisa julgada material) em um tempo inferior àquele que seria necessário ao exame de toda a extensão da situação litigiosa –, mas deixa de lado o valor justiça material.

O conceito de processo de cognição parcial permite a visualização dos valores contidos nos procedimentos especiais, demonstrando a insuficiência da análise do direito de defesa a partir de uma perspectiva apenas interna ao procedimento ou que não considere as necessidades do direito material.

O que se deve verificar, portanto, é se a situação de direito material privilegiada pelo legislador merece tratamento diferenciado em face das tutelas dos direitos e das normas constitucionais. É o que acontece com a ação de desapropriação e com a ação possessória. Mas inocorre, por exemplo, com a execução privada do Dec.-lei 70/66 (arts. 31 e 32) e com o procedimento da busca e apreensão do Dec.-lei 911/69 (art. 3º, caput e par. 1º)22, que não têm legitimidade nessa perspectiva.

Alguém poderia dizer que, nesses casos, não há violação ao direito de defesa, uma vez que o réu, após a alienação ou a apreensão do bem, poderá discutir a questão que foi afastada pela limitação do direito de defesa, bastando para tanto propor ação contra o credor (no caso do leilão) ou prosseguir defendendo (na hipótese da liminar de busca e apreensão). Porém, o que interessa perguntar é se é justificável dar tempestividade à tutela (privada, no caso do Dec.-lei 70/66) do credor à custa da protelação da defesa do devedor. Ou ainda, mais especificamente: se há racionalidade em retirar o bem do devedor, dando-lhe, somente após, o direito de apresentar as suas alegações. Não é difícil perceber que se trata de inversão que não encontra justificativa, pois a postergação

22 O mero inadimplemento não pode servir de justificativa para a retirada forçada do bem e a consolidação da propriedade e da posse, pois o não pagamento pode ter fundamento. A busca e apreensão liminar, como qualquer outra tutela antecipada, requer a “verossimilhança da alegação”. 88

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da defesa não é imprescindível para a efetividade da tutela do direito, não havendo qualquer legitimidade em subordinar o direito do devedor apresentar defesa à entrega do bem objeto do contrato.

Mas há uma questão ainda mais delicada. O juiz pode estabelecer as balizas da defesa ainda que na ausência de lei limitadora?

Na verdade, não é possível permitir ao réu alegar, em sua defesa, questões que não tenham nenhuma pertinência com a tutela do direito ou com o litígio. Por isso, não é preciso lei que exclua a possibilidade de discussão em torno de questões que não podem inviabilizar a tutela do direito buscada pelo autor. O problema é que determinadas situações de direito material – especialmente aquelas que abrem oportunidade às novas formas de tutela dos direitos (tutelas inibitória e de remoção do ilícito) – ainda não são do conhecimento pleno dos operadores do direito, o que leva a uma mistura das questões realmente pertencentes ao litígio ou à tutela do direito com outras que não lhe dizem respeito.

Páginas: 387 a 450.

Elaborado por: Sárvia de Jesus Vasco

O PROCESSO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

1.PROCEDIMENTO E PROCESSO NA DOUTRINA CLÁSSICA

1.1 O processo nas concepções privatísticas - A natureza jurídica do processo foi compreendida pela doutrina, em épocas remotas, a partir do direito privado, particularmente com base na idéia de contrato.

O processo no direito romano dependia de prévio consenso das partes. As partes levavam seu conflito ao pretor - fixando os limites do litígio e do objeto que deveria ser solucionado – e perante ele se comprometiam a aceitar a decisão que viesse a ser tomada. Esse compromisso que firmavam recebia o nome de litis cotestatio. O Estado não se impunha sobre os particulares ou não era capaz de sujeitar os litigantes à sua decisão. Então, era preciso que as partes se submetessem voluntariamente à solução estatal. Na litis contestatio - quando as partes firmavam compromisso – as partes escolhiam um árbitro de sua confiança que recebia do pretor o encargo de decidir o litígio.

Através da litis contestatio, as partes assumiam o compromisso de participar do processo e acatar o julgamento da lide.

A função da litis contestatio era de fixar os pontos litigiosos, definindo os limites da futura sentença que seria proferida pelo iudex.

A litis contestatio produzindo um efeito análogo a uma novação, impedia que a obrigação primitiva pudesse voltar a ser alegada em Juízo.

Esse compromisso assumido pela parte foi qualificado pela doutrina como negócio jurídico de direito privado ou como um contrato. O contrato era estabelecido pela contestatio. Então, atribuiu-se ao processo natureza contratual – contrato judicial.

Surgiu doutrina que atribuiu ao processo natureza de quase-contrato – processo não se enquadrava perfeitamente na noção de contrato, mas algo parecido com o contrato.

A partir do momento em que os particulares passaram a se sujeitar à jurisdição se tornou impossível cogitar a respeito de acordo das partes para definição de processo ou

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não passar a ver a sua imprescindibilidade para o Estado exercer o seu poder, e, portanto, a sua natureza de direito público.

1.2. O processo enquanto procedimento na época anterior à teorização da autonomia do direito processual civil – o processo nada mais era do que um procedimento ou um rito, visto como mera seqüência de atos, destinado a permitir a aplicação do direito material violado.

1.3. A distinção entre processo e procedimento diante da “descoberta” do caráter público do processo – Assim como a jurisdição o processo continuou a depender da iniciativa dos particulares. O processo requer o interesse das partes, mas a jurisdição, que nele se exprime, é fundamental ao Estado.

A solução dos conflitos depende da força do Estado, isto é, da jurisdição, em relação à qual os litigantes estão submetidos. O processo não é mais um mero contrato ou um meio através do qual as partes, a partir da autonomia privada, exercem os seus direitos. O processo é colocado pelo Estado à disposição das partes. Sabem as partes que estão submetidas ao poder jurisdicional, dele não podendo escapar.

Quem decide - de forma imperativa - sobre o litígio dando razão a uma das partes é o juiz.

O objetivo do Estado é resolver os conflitos através da afirmação da vontade do ordenamento jurídico.

O processo é instaurado em razão da provocação da parte, mas tem o fim de permitir a atuação da lei, exprimindo, através de todos os seus poros, o poder estatal.

A autonomia do direito de ação foi afirmada por Wach e Chiovenda – fez com que a ação fosse colocada no plano do direito público. A ação dirige-se contra o Estado, dele exigindo a solução de conflito. Daí se conclui que a ação foi concebida como um direito autônomo de natureza pública.

O processo é instaurado em razão de um litígio, mas com ele não se confunde. O litígio é o direito material de contorno privado e o processo – através do qual a jurisdição atua.

O processo possui natureza pública, além de autônomo em relação ao direito material.

O fundamento teórico da autonomia e da publicização do direito processual, realizada pela doutrina italiana – que muito influenciou o direito processual brasileiro-, implicou substituição da doutrina francesa pela doutrina alemã de meados do século XIX, particularizada pelas obras de Wach – em relação à ação – e de Büllow – sobre a natureza jurídica do processo.

A doutrina da época de Büllow utilizou dois métodos para observar o processo e o procedimento – não distinguiu os objetos em si. O processo foi visto a partir do seu fim de atuação da lei. O procedimento foi encarado como algo eminentemente formal ou como mera seqüência de atos. Não foi atribuído qualquer fim ao procedimento. Igualmente, o processo e o procedimento seriam duas faces de uma única realidade, é possível dizer que o procedimento seria a forma de algo que somente adquiria relevância quando considerado a partir do seu objetivo.

1.4. O delineamento da relação jurídica processual – Uma das mais importantes tentativas de explicar a natureza do processo deve-se a Oskar Büllow. A sua teoria – que se tornou conhecida como a teoria da relação jurídica processual - é a preferida pela doutrina clássica e pela totalidade os processualistas brasileiros de hoje. Büllow publicou em 1868 a obra intitulada Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias através da qual deu conteúdo teórico à idéia de que no processo há relação jurídica, dez anos após a polêmica travada entre Windscheid e Muther.

90Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni.

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A importância da obra de Büllow foi a de sistematizar a existência de uma relação jurídica processual de direito público, formada entre as partes e o Estado, evidenciando os seus pressupostos e os seus princípios disciplinadores.

Para chegar a esta conclusão, Büllow enfrentou a questão das chamadas exceções dilatórias – vistas como alegações através das quais o réu denunciava a existência de vícios atinentes ao processo, deixariam clara a existência de uma relação jurídica que nada teria a ver com relação jurídica material. A relação jurídica material estaria inserida na lide ou constituiria a base do pedido endereçado ao juiz, enquanto que a relação processual se formaria a partir da instauração do processo.

Como a existência do direito material não era pressuposto para a ação, demonstrou-se que ele também não era imprescindível para a formação do processo e da relação processual.

A relação jurídica processual teria sujeitos – juiz, autor e réu, objeto – prestação jurisdicional e pressupostos próprios – propositura da ação, capacidade para ser parte e investidura na jurisdição daquele a quem a ação é dirigida.

A teoria da relação jurídica processual foi negada por James Goldsmidt, que edificou a teoria do processo como situação jurídica.

1.5. O ambiente de concepção da teoria da relação jurídica processual. O conceitualismo – O Code Napoleon ignorou o “homem concreto” – as suas debilidades econômicas – sendo constituído a “epopéia burguesa do direito privado” ou o código preocupado unicamente com o “burguês, a sua família e o seu patrimônio”. Não foi por outra razão que o processo civil francês e o processo civil italiano, assim como os seus conceitos básicos – que ainda influenciaram a doutrina processual brasileira – não tiveram qualquer preocupação com os direitos não patrimoniais, privilegiando uma forma processual neutra (o procedimento ordinário).

O conceito da relação jurídica processual sofre exatamente das mesmas mazelas da sua congênere – a relação jurídica de direito privado – dada a sua fonte comum, a pandectista alemã.

2.BASES PARA UM NOVO CONCEITO DE PROCESSO

2.1. A crise do conceito de relação jurídica processual – O conceito de relação jurídica, dado o seu caráter geral-abstrato, neutraliza a substância da própria relação em vida. A pretensa neutralidade do conceito da relação jurídica processual certamente escamoteou a realidade concreta, permitindo a construção de uma ciência processual que se queria bastante ou supunha que poderia viver imersa em si mesma, sem olhar para a realidade de direito material e para a vida dos homens.

Acontece que nenhum Estado é neutro - todo Estado tem fins e projetos, que dever ser realizados a partir dos s valores.

O conceito de relação jurídica processual é avesso ao de legitimidade, seja de legitimidade pela participação no procedimento, de legitimidade do procedimento e de legitimidade da decisão. Esse conceito não permite sequer a pergunta a respeito da legitimidade do procedimento (do módulo legal) e da legitimidade da decisão, uma vez que a idéia de legitimidade a partir dos direitos fundamentais simplesmente não existe em um sistema de conceitos que prima pela abstração e pela neutralidade.

É evidente que se pode dizer que a relação jurídica, hoje, pode se abrir a isto ou àquilo outro, ou pode captar a realidade social. Todavia, é importante deixar claro: a impossibilidade de se tomar a teoria da relação jurídica processual, infiltrada pelos propósitos dos seus edificadores do final do século XIX, como algo prestável a uma teoria processual compatível com o Estado constitucional.

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A crítica à teoria da relação jurídica processual, portanto, volta-se à sua assimilação neutra e descompromissada com a realidade da vida do homem, isto é, da parte, e à sua transparência em relação à legitimidade do poder, do procedimento e da própria decisão.

O processo, como instrumento através do qual o Estado se desincumbe do seu dever de prestar tutela aos direitos, deve ser focalizado sob diversos ângulos, todos eles imprescindíveis à concretização do processo adequado ao Estado contemporâneo.

O processo requer a legitimidade do exercício da jurisdição e a efetividade da participação das partes.

Embora importante à participação das partes no procedimento, é insuficiente para garantir a legitimidade da jurisdição. Além do direito à participação no processo, à parte possui o direito ao procedimento adequado à tutela do direito material. Esse direito incide sobre o legislador, obrigando-o a instituir procedimentos idôneos assim como sobre o juiz, especialmente em razão das normas processuais abertas, que dão à parte o poder de estruturar o procedimento segundo as necessidades do direito material e do caso concreto.

Para legitimidade da jurisdição não basta a participação e a adequação o procedimento às necessidades do direito material, sendo ainda necessária a legitimidade do procedimento diante os direitos fundamentais.

É ilegítimo, nessa linha, o procedimento que restringe as alegações do réu, no que toca ao direito material, em desatenção aos direitos fundamentais – não apenas processuais, como o direito ao contraditório, mas sim materiais.

As necessidades do direito material, para legitimarem a restrição às alegações do réu, devem guardar consonância com a substância dos direitos fundamentais.

A legitimidade da jurisdição não depende apenas da legitimidade da participação dos seus destinatários e da legitimidade do procedimento através do qual atua, mas também da legitimidade da sua própria decisão.

Os seguidores da teoria de Luhmann (legitimação pelo procedimento), a legitimidade para alguns desses seguidores, não se apresenta como questão autônoma. Para esses é viável apenas discutir o problema da legitimação da jurisdição, já que não há objetividade possível em questões normativas. Nesse contexto, o problema da legitimidade da decisão é consumido pelo da legitimação através do procedimento.

Uma das questões mais importantes para a teoria do direito contemporâneo é a da legitimidade da decisão jurisdicional, especialmente quando o juiz confronta a lei infraconstitucional diante dos direitos fundamentais, tarefa que lhe é imprescindível no Estado constitucional.

Parece certo que a legitimidade da jurisdição, e assim do processo, não pode descartar a necessidade de que a decisão esteja legitimada pelos direitos fundamentais, embora sobre a questão controvertam no mínimo três grandes correntes de pensamento, isto é, os textualistas, os procedimentalistas e os substancialistas, cada uma dando sua solução ao problema da legitimidade da decisão.

A decisão é o ato máximo de positivação do poder jurisdicional, isto é, a razão do seu acontecimento e desenvolvimento. O processo, ao culminar em decisão que coloca o direito fundamental em confronto com a lei infraconstitucional, requer abertura à participação e observância de desenvolvimento argumentativo peculiares, inclusive do juiz.

Não constitui instrumento idôneo ao Estado constitucional, um processo que termine em decisão ilegítima, ou que não se estruture de modo a propiciar uma decisão legítima.

O processo não deve ser visto apenas como relação jurídica, mas sim como algo que tem fins de grande relevância para a democracia, e, por isso mesmo, deve ser

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legítimo. O processo deve legitimar – pela participação -, deve ser legítimo – adequado à tutela dos direitos e aos direitos fundamentais – e ainda produzir uma decisão legítima.

2.2. O realinhamento das noções de processo e procedimento – O processo destina-se a atender a objetivos e a necessidades específicas.

O procedimento – em abstrato – tem evidente compromisso com os fins da jurisdição e com os direitos dos cidadãos. O exercício da jurisdição depende do modo como o procedimento é fixado em abstrato – pelo legislador – e é aplicado e construído no caso concreto e, assim, compreendido pelo juiz.

No Estado liberal, cabia ao juiz dizer apenas as palavras da lei. Para o desenvolvimento da sociedade, aspirava-se a um direito previsível ou à chamada “certeza do direito”. Desejava-se uma lei abstrata, que pudesse albergar quaisquer situações concretas futuras, e assim eliminasse a necessidade da edição de novas leis.

A generalidade e a abstração da lei, desejadas pelo Estado liberal, impediam o juiz de considerar as circunstâncias concretas. É que tal possibilidade, inegável ao juiz contemporâneo, obscurecia a previsibilidade e a certeza do direito, pensados como indispensáveis para a manutenção da liberdade dos cidadãos, a qual, como se sabe, constituía a preocupação essencial do Estado liberal.

No escrito de Montesquieu o poder de julgar era um “poder nulo”, já que concebido para reafirmar o fruto do exercício do poder do legislador.

No Estado constitucional, a jurisdição caracteriza-se a partir do dever estatal de proteger os direitos. A idéia de proteção aos direitos não tem a ver com a antiga e remota concepção de tutela dos direitos privados, própria à época anterior à afirmação da autonomia do direito processual. O Estado constitucional tem o dever de proteger os direitos fundamentais, seja através de normas, atividades fáticas administrativas ou da jurisdição.

A jurisdição, no Estado contemporâneo, tem o dever de proteger todas as espécies de direitos, com isso se querendo evidenciar que o juiz, muito mais do que simplesmente aplicar a lei, tem o dever de compreendê-la a partir dos direitos fundamentais, no caso concreto.

O juiz da época do Estado liberal não precisava e não podia outorgar valor ao caso, bastava a sua subsunção à norma geral mediante mera aplicação lógica.

Hoje, para a aplicação da lei diante do caso concreto, diante do pluralismo que caracteriza a sociedade contemporânea, é imprescindível compreender o caso concreto. Antes de aplicar a lei é preciso atribuir sentido e valor ao litígio – a jurisdição não mais se limita a tornar a lei, abstrata e genérica, particular quando da resolução do caso concreto, pois necessariamente deve atribuir sentido ao caso concreto par interpretar a lei e solucionar o litígio, exatamente por ser indiscutível que a sociedade e os casos concretos não podem ser regulados sem se considerarem as suas especificidade.

A necessidade de compreender o caso litigioso, interpretar a lei e controlar a sua constitucionalidade a partir dos direitos fundamentais não permite que se diga que a jurisdição continua a ter a função de atuar a vontade da lei.

A transformação do princípio da legalidade, provocada pelo Estado constitucional e operada pelo neoconstitucionalismo, fez com que a doutrina aludisse a uma segunda revolução, contraposta à gerada pela afirmação do Estado liberal. Essa segunda revolução substituiu o princípio da legalidade formal pelo princípio da estrita legalidade ou da legalidade substancial.

A subordinação da lei à Constituição não pode ser vista como uma mera “continuação” dos princípios do Estado legislativo, pois significa uma “transformação” que afeta as próprias concepções de direito e de jurisdição.

Foram instituídas pelo legislador normas processuais abertas – arts. 461 e 273 do CPC e 83 e 84 do CDC) - conferindo ao autor e ao juiz uma ampla latitude de poder para

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a utilização da técnica processual adequada para a estruturação do procedimento idôneo ao caso concreto.

O processo não está mais preso à limitada função de dar atuação à lei, nos moldes do princípio da legalidade do direito liberal. É visível a importância do procedimento para o exercício da jurisdição ou para que a jurisdição possa cumprir o papel que a ela foi reservada pelo Estado constitucional. Essa nova dimensão alcançada pelo procedimento decorre do direito do autor à tutela jurisdicional efetiva e do dever do juiz de dar proteção aos direitos ou de prestar a tutela jurisdicional adequada ao caso concreto.

O procedimento deve se abrir às necessidades do direito material e também aos demais direitos fundamentais processuais, especialmente aos direitos fundamentais de defesa e ao contraditório.

O processo, além de outorgar à jurisdição a possibilidade de proteger os direitos, deve ser legítimo, espelhando os valores que fazem do Estado uma democracia ou que conferem ao exercício do poder natureza democrática.

O processo dever ser aberto ao contraditório ou estar aberto à participação dos particulares que a ele recorrem e são afetados em suas esferas jurídicas pelos atos de positivação de poder do Estado-juiz.

Hoje, ao contrário de outra época, o processo não pode se desligar de um procedimento com essas qualidades. O processo necessita de um procedimento que seja, além de adequado à tutela dos direitos, idôneo a expressar a observância dos direitos fundamentais processuais, especialmente daqueles que lhe dão a qualidade de instrumento legítimo ao exercício do poder estatal. Destarte, o processo é o procedimento que - adequado à tutela dos direitos, confere legitimidade democrática ao exercício do poder jurisdicional.

2.3. Jurisdição e processo – O processo é instrumento da jurisdição, porém não é o mesmo de épocas passadas.

O princípio da supremacia da lei era próprio do Estado liberal. O legislador cometia abusos, tornando impossível o seu controle, uma vez que a legitimidade dependia exclusivamente de ter emanado de autoridade dotada de competência normativa.

A “substância” da lei precisou ser resgatada por meio de instrumentos, capazes de permitir a sua limitação e conformação aos princípios de justiça de modo racional e democrático.

A lei perde a sua posição de supremacia, passando a se subordinar aos direitos fundamentais e aos princípios da justiça contidos na constituição. Para que isso acontecesse, tais princípios tinham de gozar de uma posição de superioridade. Então, foram eles postos nas Constituições, que passaram a ter plena eficácia normativa.

O processo deixou de ser um instrumento voltado à atuação da lei para passar a ser um instrumento preocupado com a proteção dos direitos, na medida em que o juiz, no Estado constitucional, além de atribuir significado ao caso concreto, compreende a lei na dimensão dos direitos fundamentais.

O processo é um instrumento através do qual o Estado exerce o poder-dever de dar proteção jurisdicional aos direitos.

2.4. A participação como fator de legitimação da jurisdição – A participação é a essência da democracia. Essa participação pode ser direta ou indireta.

A participação direta do cidadão no processo de decisão está prevista na Constituição de 1998 – prevendo o referendo popular e reafirmando o instituto da ação popular – que permite que o cidadão aponte diretamente os desvios na gestão da coisa pública – participação direta no poder. A ação popular já existe no constitucionalismo brasileiro, desde o Império, mantida no art. 5º, LXXIII da CF/88.

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O princípio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação do governo. As primeiras manifestações da democracia participativa consistiram nos institutos de democracia semidireta, que combinam instituições de participação direta com instituições de participação indireta, tais como: iniciativa popular (art. 14, III, regulada no art. 62, § 2º da CF/88), referendo popular (art. 14, II, competência exclusiva de o Congresso Nacional autorizá-lo, art. 49, XV CF/88). Referendo – é uma consulta popular e caracteriza-se no fato de que projetos de lei aprovados pelo legislativo devam ser submetidos à vontade popular. O projeto só será aprovado se receber votação favorável do corpo eleitoral. O referendo versa sobre aprovação de textos de projetos de lei ou de emenda constitucional, já aprovado, ratifica ou rejeita o projeto aprovado. De outra banda, o plebiscito é também uma consulta popular que visa decidir previamente uma questão política ou institucional, antes de sua formulação legislativa. O plebiscito autoriza a formulação da medida requerida.

José Afonso da Silva (curso de direito constitucional positivo) aponta outras formas participativas, como as consagradas nos arts. 10, 11, 31, § 3º, 37, § 3º, 74, § 2º, 194, VII, 206, VI, 216, § 1º.

A participação indireta acontece no processo legislativo, em que o ato de positivação do poder – a lei – é fruto da participação de membros eleitos.

O exercício do poder, no processo jurisdicional, não depende da técnica representativa e não se assenta nos fundamentos da democracia participativa, ou seja, nas idéias voltadas a permitir a participação direta do cidadão no poder.

As decisões do juiz podem ser impostas, uma vez que o poder jurisdicional é inevitável, pouco importando a vontade do particular, que não pode se subtrair ao poder do juiz.

Será atingido pelos efeitos das decisões proferidas no processo quem toma parte em um litígio. E, mais especificamente pela coisa julgada material.

O contraditório é o mecanismo técnico jurídico capaz de expressar o direito de alguém participar de um processo que o afeta em sua esfera jurídica, presente na CF/88 na qualidade de direito fundamental ( art. 5º, LV, CF). Todavia, esse mecanismo não é suficiente para garantir a legitimidade do processo jurisdicional. A fundamentação das decisões do juiz é de vital importância, além da imprescindibilidade da publicidade dos atos do juiz.

No Estado constitucional, a jurisdição exige a compreensão da lei à luz dos direitos fundamentais.

Ao decidir, cabe ao juiz demonstrar argumentação adequada e capaz de convencer, que a decisão legislativa viola ou não viola o direito fundamental. Fundamentação que explicite, ou que exteriorize uma argumentação adequada e capaz de convencer.

O direito de participar não é só o direito de influir sobre o convencimento do juiz, mas também o direito de estar junto a ele ou de estar cuidando para que a atividade jurisdicional não seja arbitrária. A participação requer a publicidade e a fundamentação explicitada através da fundamentação das decisões que consideram a lei diante dos direitos fundamentais.

O processo requer um procedimento aberto à participação. O processo é o procedimento em contraditório que não dispensa a publicidade e a argumentação explicitada através da fundamentação.

2.5. Significado de contraditório no Estado constitucional – À época do direito liberal, o contraditório era visto como mera garantia de conteúdo formal. Não havia como se falar, assim, em efetividade ou em realização efetiva do contraditório e nem em obstáculos sociais capazes de impedir a participação no contraditório. O direito de ação era visto como o direito formal de propor uma demanda.

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A legitimação do exercício de jurisdição depende da participação que tem importante expressão no princípio do contraditório. A legitimidade do processo se liga a uma possibilidade real, e não meramente formal, de participação.

O legislador e o juiz estão obrigados a estabelecer as discriminações necessárias para garantir e preservar a participação igualitária das partes – seja – atentando para as particularidades do direito material e do caso litigioso.

Paridade de armas – a doutrina, sobretudo italiana em paridade de armas para expressar a noção de participação em igualdade de condições. As partes não têm apenas o direito de participar no processo, como também o direito de participar em paridade de armas.

Segundo Mauro Cappelletti: “No campo dos direitos humanos fala-se em direitos sociais como direitos humanos de segunda geração. Estes são os direitos que se destinam a fazer com que os direitos tradicionais ou de primeira geração (entre os quais se incluem as garantias constitucionais do processo) tornem-se efetivos e acessíveis a todos ao invés de se projetarem como uma simples figuração para a parte menos favorecida”.

O Código de Defesa do Consumidor no seu art. 6º, VIII contempla: constitui direito básico do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no CPC, quando, a critério do juiz, for verossímil a legação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.

O Marinoni cita o seguinte exemplo: No caso em que o autor alega que um defeito no sistema de freios do seu veículo lhe acarretou um acidente com danos materiais e pessoais, e o fabricante não demonstra a inexistência desse defeito, a dificuldade no preciso esclarecimento de que o dano foi gerado pelo defeito não pode ser suportada pelo consumidor, bastando-lhe, assim, fazer o juiz a acreditar na verossimilhança de que esse defeito tenha provocado o dano. A dificuldade no esclarecimento da relação de causalidade, diante do risco probatório assumido pelo fabricante, que produziu o sistema de freios com defeito, deve ser imputada a ele. Portanto, basta que a verossimilhança ou, como quer o art. 6º, VIII, do CDC, que o juiz inverta o ônus da prova com base na verossimilhança, o que deve ocorrer na sentença.

Há hipossuficiência técnica para produção da prova, quando a prova é impossível ou muito difícil ao consumidor, porém mais fácil ao fabricante ou ao fornecedor. A inversão do ônus da prova se destina a dar ao réu a oportunidade de produzir a prova que, de acordo com a regra do ar. 333 do CPC incumbiria ao autor. Aqui não se trata de inverter o ônus da prova para legitimar, na sentença, a incompletude da prova, mas de transferir do autor para o réu o ônus de produzi-la, o que deve ser feito na audiência preliminar.

Pode acontecer que a produção da prova pode ser impossível às duas partes, e assim não há razão para inversão do ônus da prova na audiência preliminar. Contudo, diante da impossibilidade da produção de prova, o juiz não consegue formar sequer uma convicção de verossimilhança. Nessa hipótese, com não há convicção de verossimilhança, a dúvida tem de ser paga por uma das partes. Mas não há racionalidade em imputá-la ao autor quando o risco da inesclarecibilidade do fato constitutivo é assumido pelo réu, que, por exemplo, a violar um dever legal, abriu oportunidade para a produção do dano.

A norma do art. 333 do CDC permite a participação efetiva do consumidor no processo.

O fato de existir norma expressa no art. 333 do CDC permitindo o ônus da prova não exclui a existência de outras situações no direito material. Exemplo: nas chamadas atividades perigosas ou na responsabilidade pelo perigo e nos casos em que a responsabilidade se relaciona coma a violação de deveres legais, quando o juiz não pode

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aplicar a regra do ônus da prova com se estivesse frente a um caso “comum”, exigindo que o autor prove a causalidade entre a atividade ou a violação do dever e o dano.

Assim, não há motivo para supor que a inversão do ônus da prova somente é viável quando prevista em lei.

É necessário considerar a questão dos prazos para a efetividade da participação, pois não basta à comunicação ser adequada se o prazo conferido à prática do ato processual é insuficiente ou trata as partes de forma não isonômica.

A interpretação do que é “justa causa” no art. 183 do CPC que reza: “Decorrido o prazo, extingue-se, independentemente de declaração judicial, o direito de praticar o ato, ficando salvo, porém, à parte provar que o não realizou por justa causa” – dever ser realizada, a partir do direito fundamental de a parte efetivamente participar do processo e da idéia de que a participação no processo deve se dar em igualdade de condições.

Constituem normas que objetivam potencializar a participação do autor no processo: as chamadas normas processuais abertas, instituídas para dar ao autor a oportunidade de utilizar a sentença e os meios de execução segundo as necessidades do caso concreto (art. 84, CDC e 461, CPC), assim, como a norma que generalizou a possibilidade de utilização da técnica antecipatória baseada em “perigo na demora” e as normas que estabeleceram as novas técnicas antecipatórias ancoradas em “abuso de direito de defesa” e “parcela incontroversa da demanda” (art. 273, I, II e § 6º, do CPC).

A paridade de armas não quer dizer que as partes de um mesmo processo devam ter os mesmos poderes, até porque isso seria ignorar a obviedade de que elas podem ter diferentes necessidades. O que importa é que tais poderes tenham fundamento racional na diversidade das necessidades das partes e que, diante de qualquer poder conferido a uma delas, outorgue-se à outra o correlato poder de reação.

2.6. A intensificação da atuação do juiz em prol da legitimidade do processo – A figura do juiz no direito liberal era inerte. Estava proibido de assumir uma postura ativa no processo. Chegou-se a proibi-lo de interpretar a lei em nome da liberdade do indivíduo.

A inércia do juiz, ou o abandono do processo à sorte que as partes lhe derem, tornou-se incompatível com a evolução do Estado e do direito. A democracia social intensificou-se a participação do Estado na sociedade. Cabendo ao juiz zelar por um processo justo, capaz de permitir uma adequada verificação dos fatos e a participação das partes em um contraditório real, a justa aplicação das normas de direito material, e a efetividade da tutela de direitos.

Para Cadiet: o contraditório, porque tem uma função voltada ao esclarecimento do litígio, não se impõe apenas às partes, mas também ao juiz.

A produção das provas não é mais monopólio das partes. A atuação do juiz é mais intensa, cabe-lhe lembrá-la do ônus da prova, sobre a importância de manifestar-se sobre determinado fato, e, ainda, quando necessário, determinar provas ex officio com o objetivo de elucidar os fatos.

A atuação do juiz, se é que pode ser vista como uma forma de participação, não deve ser confundida com a participação das partes. O juiz deve participar para garantir que a participação das partes seja igualitária e, assim, para que eventual falha na participação de uma delas possa ser suprida. Portanto, a participação do juiz se dá em nome da participação das partes e, por decorrência, para legitimar a sua própria atuação.

O contraditório é fortalecido com a postura ativa do juiz.O princípio da imparcialidade do juiz não é obstáculo para a participação ativa do

julgador na instrução. Ao contrário, supõe-se que parcial é o juiz que, sabendo que uma prova é fundamental para a elucidação da matéria fática, se queda inerte.

Há quem entenda que o juiz somente deve produzir prova de ofício no caso de direito indisponível, e não de direito disponível. Não há razão para associar a atuação do juiz na instrução da causa com a natureza do direito material posto à sua solução.

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Entender que o juiz dever produzir prova de ofício apenas nos casos de direitos indisponíveis é o mesmo que admitir que a jurisdição não se importa com o que acontece nos processos em que se discutem direitos disponíveis.

2.7. O processo capaz de permitir o acesso das camadas mais pobres da população – Sendo indispensável o processo, o legislador é obrigado diante da garantia constitucional do acesso à justiça (art. 5º, XXV, CF) a instituir procedimentos e justiças especializadas para permitir o acesso dos mais pobres ao Poder Judiciário.

2.8. O procedimento adequado às necessidades do direito material – A teoria da

relação jurídica processual, quando assimilada pela doutrina italiana, especialmente por Chiovenda, foi utilizada para evidenciar a existência de uma ciência processual autônoma. Chiovenda fez questão de salientar que “não constituem uma e a mesma coisa a relação processual e a relação jurídica substancial deduzida em juízo”. Esta é objeto daquela. Diferentes são as leis (processuais – substanciais) que regulam uma e outra.

A definição de processo coerentemente não se desliga do próprio conceito que Chiovenda atribuiu à jurisdição (a atuação da vontade da lei). No Estado constitucional, o conceito de jurisdição é bem diverso. Hoje, o juiz deve compreender a lei a partir dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais de justiça. Pelas mesmas razões, as regras processuais devem ser aplicadas conforme as tutelas prometidas pelo direito material e segundo as necessidades do caso concreto. A jurisdição no Estado constitucional, é marcada pelo próprio dever estatal de proteção aos direitos e pela imprescindibilidade de o juiz atribuir sentido ao caso concreto.

No Estado contemporâneo, o processo tem de ser estruturado não apenas consoante às necessidades do direito material, mas também dando ao juiz e à parte a oportunidade de se ajustarem às particularidades do caso concreto. É nesse sentido que se diz que o direito fundamental à tutela jurisdicional, além de constituir uma garantia ao titular do direito material, incide sobre o legislador e o juiz.

O processo, atualmente, é o próprio procedimento. Para que o processo seja capaz de atender ao caso concreto, o legislador deve dar à parte e ao juiz o poder de concretizá-lo ou de estruturá-lo. O processo não dever apenas atender às expectativas do direito material, mas também deve dar ao juiz e às partes o poder de utilizar as técnicas processuais necessárias para atender às particularidades do caso concreto.

No Estado constitucional, o processo está muito longe de poder ser visto como um mero “complexo de atos coordenados ao objetivo da atuação da vontade da lei”, como queria Chiovenda à época em que a doutrina processual ainda era influenciada pelas filosofias liberais do final do século XLX.

2.9. Procedimento e técnica processual – O motivo de se ligar a técnica processual com as tutelas dos direitos é demonstrar que o processo não pode ser pensado de forma isolada ou neutral, pois só possui sentido quando puder atender às tutelas prometidas pelo direito material, para o que é imprescindível compreender a técnica processual (ou o processo) a partir dos direitos fundamentais e da realidade do caso concreto. Ao se ajuntar a técnica processual com a tutela dos direitos se dá vida ao processo.

Não basta que o procedimento viabilize a participação efetiva das partes. É necessário que as regras processuais outorguem ao juiz e às partes os instrumentos e as oportunidades capazes de lhes permitir a tutela do direito material e do caso concreto.

O procedimento passa a ser visualizado diante das normas que conferem às partes o poder de utilizar as técnicas processuais necessárias à tutela do direito material e deixa de ser compreendido apenas a partir das normas que concretizam o direito de a parte influir sobre o convencimento judicial – alegando, produzindo provas, participando da sua produção, considerando sobre o seu resultado, recorrendo etc.

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Há uma diferença entre a norma que concretiza o direito de a parte influir sobre o convencimento do juiz e a norma que realiza o direito ao procedimento adequado à tutela do direito material e do caso concreto. Ambas podem ser vistas como normas destinadas a viabilizar a participação, mas apenas a primeira é ligada ao conceito de contraditório. Para que haja a efetiva participação é imprescindível a consideração das necessidades do direito material e do caso concreto, pena de se ter uma participação formal e completamente destoante dos direitos de ação e de defesa típicos do Estado constitucional.

A relação que ora se faz entre o procedimento e a técnica processual deseja evidenciar que essa última, do mesmo modo que o contraditório, é necessária para legitimar a jurisdição, pois o Estado, seja como legislador ou juiz, não pode se desincumbir do seu dever de prestar tutela ao direitos sem outorgar à parte a técnica processual idônea à tutela do direito material.

2.10. Tutela dos direitos e procedimento – O conceito de situação jurídica é, originariamente, de Kohler, que o tratou no plano da teoria do direito, levando-o a migrar para vários ramos da dogmática jurídica. Goldschmidt entendia a situação jurídica como uma expectativa ao ingressar no processo.

O direito à tutela jurisdicional do direito tem o dever de a jurisdição prestá-la como correlato. O processo sendo um instrumento que dispõe a jurisdição para cumprir o seu dever e exercer o seu poder, deve ser estruturado de modo a permitir a outorga das tutelas prometidas pelo direito material. Portanto, a situação jurídica aqui tratada, acaba sendo o fundamento do processo adequado à tutela de direito material.

2.11. A ilegitimidade do procedimento único – A doutrina chiovendiana preocupou-se em isolar o direito processual do direito material e em construir uma ciência processual autônoma, culminando por erguer os seus conceitos em torno de uma idéia de ação una e abstrata que foi posta como verdadeiro pólo metodológico do novo direito processual que se inaugurava.

A ânsia doutrinária de criar uma ciência processual autônoma em relação ao direito material e a desconsideração das diferenças entre pessoas e os bens levaram à identificação entre autonomia e neutralidade do processo. Essa identificação - fez supor que o procedimento poderia ser completamente independente em relação às necessidades do direito substancial – fruto de uma confusão entre o que é autônomo e o que é neutro.

A idéia de procedimento puro ou de procedimento neutro abriu espaço à tentativa de instituição de um procedimento comum ou de um procedimento ordinário para tratar de todo e qualquer caso conflitivo.

Esse procedimento não permitia a antecipação da tutela e desembocava exclusivamente nas sentenças declaratória, constitutiva e condenatória. Tal procedimento admitia a concessão da tutela do direito somente após a plena realização do princípio do contraditório, quando as alegações e as provas estivessem esgotadas. A sentença de procedência – quando não era auto-satisfativa (declaratória e constitutiva) – apenas abria oportunidade, no caso de inadimplemento, ao uso dos meios de execução por sub-rogação expessamente tipificados em lei.

A classificação trinária das sentenças expressa os valores de um modelo institucional de Estado de matriz liberal e os princípios que presidiram a formação da escola sistemática. A classificação chiovendiana das sentenças recebeu influência das doutrinas liberais do final do século XIX. O Estado liberal fez surgir um juiz despido de poder de imperium e que deveria apenas proclamar as palavras da lei. As sentenças da classificação trinária, todas elas lato sensu declaratórias, refletem esta idéia, já que não permitem ao juiz dar ordens. Como desejou Montesquieu: o juiz era a boca da lei.

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Na linha do direito liberal, o juiz para não representar ameaça à liberdade dos cidadãos, deveria julgar após ter encontrado a “plena certeza jurídica” ou a “verdade”.

De qualquer forma, o procedimento ordinário clássico era uma garantia da pretendida “neutralidade” do juiz, ou melhor, uma garantia de que o juiz somente poderia julgar após estar “iluminado pela verdade”. O princípio jurídico que expressa a proibição dos juízos de verossimilhança, ou, mais precisamente, a proibição de invasão da esfera jurídica do réu antes da realização plena do contraditório, pode ser expresso através da regra nulla executio sine titulo. A certeza jurídica ou a coisa julgada material foram consideradas pela doutrina clássica como pressupostos da execução.

O princípio da nulla executio sine titulo teve por fim deixar claro que a execução não poderia ser iniciada sem título e que este, no caso de sentença condenatória, deveria obter em si um direito já declarado ou não mais passível de execução.

A existência do direito material, e mesmo a realização dos direitos fundamentais, depende da instituição de procedimentos capazes de permitir a obtenção de formas de tutelas jurisdicionais adequadas às necessidades dos casos concretos.

Portanto, se hoje é possível falar em resquício, esse certamente ao é ligado ao imamentismo, mas sim à época em que os juristas confundiram autonomia com neutralidade do processo.

2.12. A utopia dos procedimentos diferenciados – Corrija-se a impropriedade de se falar em tutelas jurisdicionais diferenciadas no lugar de procedimentos (técnicas) jurisdicionais diferenciados, uma vez que, conforme já amplamente demonstrado, a tutela é o resultado, no plano jurídico-substancial, proporcionado pelo procedimento. A necessidade de “tutelas diferenciadas aos direitos” é que demonstrou a insuficiência de um único “procedimento” para a “tutela” dos direitos, e, assim, a necessidade de “procedimentos diferenciados”.

O que importa diante da reação doutrinária à pretensão de uniformidade procedimental está em saber se a instituição de procedimentos diferenciados é realmente a melhor saída para dar à jurisdição condições efetivas de tutelar os direitos.

Mesmo os procedimentos construídos de forma diferenciada em razão das tutelas prometidas pelo direito material não são capazes de atender aos reais motivos que desaconselham um procedimento uniforme e neutro. Ainda que o legislador edite um procedimento adequado a uma situação de direito substancial, isto jamais bastará para atender às circunstâncias do caso concreto.

2.13. A criação do procedimento adequado ao caso concreto – Normas processuais abertas, voltadas a permitir a concretização das técnicas processuais adequadas no caso concreto, foram editadas pelo legislador, uma vez que não pode antever as necessidades do direito material e as circunstâncias que apenas podem ser reveladas no caso concreto.

Essas normas processuais abertas (arts. 273 e 461 do CPC) contêm conceitos jurídicos indeterminados ou expressamente conferem à parte e ao juiz o poder de converter a tutela específica na tutela pelo equivalente ou optar pela técnica processual adequada ao caso concreto.

A conversão da tutela específica em tutela pelo equivalente e a opção pela técnica processual adequada dependem de uma justificativa atenta às circunstâncias do caso concreto.

O autor não ter o poder absoluto de converter a tutela específica do direito material em tutela pelo equivalente. No caso da obrigação contratual, o credor não pode exigir dinheiro no lugar da prestação pactuada, pois não lhe é possível transformar a obrigação ou exigir do juiz uma novação da obrigação. Isso implicaria em uma espécie de novação unilateral objetiva. A tutela específica da obrigação contratual apenas poderá ser

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convertida em dinheiro se a sentença de procedência não for cumprida pelo demandado ou, quando a prestação se tornar objetivamente impossível ou inútil ao devedor.

De outra banda, tratando-se de dano, embora o lesado, em caso de direito individual, possa optar pelo equivalente em dinheiro em vez do ressarcimento na forma específica, isso não pode ocorrer quando o pagamento de dinheiro gerar onerosidade excessiva.

O valor da multa será fixado dependendo das peculiaridades do caso e da capacidade econômica do demandado.

Tratando-se de direito transindividual, como o direito ao meio ambiente sadio, o legitimado não tem o poder de optar pela tutela ressarcitória pelo equivalente no lugar da tutela ressarcitória na forma específica.

O poder de adequação procedimental do juiz não é restrito às normas processuais abertas, uma vez que a falta de previsão legal de técnica processual idônea à tutela do direito material ou mesmo a fixação de técnica inidônea obrigam o juiz a identificar a técnica processual adequada a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

2.14. A participação através do processo. O dever estatal de viabilizar a participação mediante o processo judicial – As ações coletivas ( ex: mandado de segurança coletivo) e a ação popular são autênticas vias de participação popular. São instrumentos ligados à idéia de democracia participativa ou de incremento da participação direta no poder e na vida social.

O particular participa, ainda que indiretamente, através das ações coletivas, na busca de tutela dos direitos transindividuais. Se não fossem essas ações, ficariam sem instrumentos judiciais capazes de lhes dar proteção.

Os procedimentos judiciais são indispensáveis à participação do cidadão em defesa dos seus direitos fundamentais e do patrimônio público.

O processo assume a condição de via ou conduto de participação e não apenas de tutela jurisdicional. Além de instrumento de jurisdição para a tutela de direitos na perspectiva dos direitos fundamentais, o processo passa a ser instrumento para que o cidadão possa participar em busca da realização e da proteção dos seus direitos fundamentais e do patrimônio público.

2.15. O processo e a legitimidade da decisão - Funda-se basicamente no problema da legitimidade do juiz para controlar a decisão da maioria parlamentar, o debate em torno da legitimidade do controle da constitucionalidade da lei. Isso porque a lei encontra respaldo na vontade popular que elegeu o seu elaborador.

Parte da doutrina contemporânea afirma que a legitimidade do juiz para controlar a decisão do parlamento advém do procedimento. A legitimação através do procedimento supõe que a observância dos parâmetros fixados pelo legislador para o desenvolvimento do procedimento que leva à edição da decisão é a melhor maneira para se dar legitimidade ao exercício do poder. O uso dos termos legitimação e legitimidade, presentes nessa passagem não devem ser confundidos. A legitimação está relacionada ao fato de uma decisão ser tomada por seus destinatários como dotada de autoridade. A legitimidade, diversamente, exige que uma determinada decisão se apresente em conformidade com algum padrão de justiça ou correção. Num caso está em jogo um juízo fático; noutro um juízo normativo.

A doutrina processual mesmo a mais moderna, não mostra qualquer preocupação em relação à legitimidade da relação juiz versus legislador.

Segundo Elio Fazzalari, os estudiosos dos processos jurisdicionais (os “processualistas”), talvez pela própria imponência do fenômeno objeto das suas meditações, e porque demasiadamente imersos, dentro do “processo”, não conseguiram, por um longo período de tempo, colher a imagem da “seqüência de atos”, isto é, do perfil

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que mais recentemente outros juspublicistas e cultores do procedimento para a sistematização das atividades jurisdicionais, e puderam abandonar o desgastado e inadaptado clichê da “relação jurídica processual”.

Fazzalari não está preocupado com o controle da lei a partir dos direitos fundamentais, até porque o controle de constitucionalidade, na Itália, é reservado à Corte Constitucional, tendo a jurisdição italiana uma feição bem distinta da brasileira.

A doutrina de Fazzalari não renega a substância das decisões por pressupor a indeterminabilidade dos direitos fundamentais. A sua teoria está em um estágio mais primitivo ou em outro patamar, pois não se mostra preocupada com a legitimidade da decisão, mas apenas em legitimar a jurisdição pela participação em contraditório.

A teoria de Fazzalari tem dois problemas. Em primeiro lugar, não se preocupa com o direito ao procedimento adequado à tutela do direito ou com a necessidade de o procedimento estar atento às necessidades do direito material, o que é imprescindível para a legitimidade do processo. Em segundo lugar, não passa sequer perto do problema da legitimidade da atuação jurisdicional que assevera os direitos fundamentais diante da decisão da maioria parlamentar.

Cândido José Dinamarco (A instrumentalidade do processo), busca apoio à doutrina do processo como procedimento qualificado pela participação em contraditório (de Fazzalari), a teoria de Luhmann. Afirma-se que a observância racional do procedimento legitima o resultado do exercício do poder, além disso, que o procedimento tem o valor social de enfraquecer o confronto ou reduzir o conflito.

Luhmann é ligado à teoria sistêmica, vendo o procedimento judicial como um subsistema social. Para ele a função da decisão é absorver a insegurança e o objetivo do procedimento é proporcionar aceitabilidade das decisões, evitando resistências que ocasionariam desestabilização ao sistema.

As teorias de Fazzalari e de Luhmann se situam em planos completamente distintos. Embora a legitimação pelo procedimento, na teoria de Luhmann, também invoque um legitimação através da participação, há uma distinção entre os significados de participação em Luhmann e Fazzalari. Luhmann, ao tratar da participação, está preocupado com a aceitação das decisões e em “tornar inevitáveis e prováveis decepções em decepções difusas” e não apenas com a efetividade do direito de a parte participar do processo, influindo sobre o convencimento judicial, o que, segundo Fazzalari, legitimaria o exercício da jurisdição.

Fazzalari, por sua vez, se mostra preocupado com o procedimento como garantia da participação do contraditório.

O procedimento, na teoria de Luhmann, não tem a finalidade ou a pretensão de alcançar decisões justas, devendo apenas propiciar uma decisão aceitável. Na concepção de Luhmann, a legitimação da decisão a partir do procedimento renega a tutela dos direitos fundamentais. O procedimento de Luhmann é alheio ao que se passa fora dele, impedindo o ajuste do direito à realidade social e, por maior razão, a adequação do procedimento judicial às necessidades do direito material.

Se a doutrina de Fazzalari, embora de cunho normativista, realça a necessidade do princípio político da participação, através do contraditório, mas não cuida da legitimidade da decisão diante dos direitos fundamentais, a teoria de Luhmann é explícita em negar qualquer ligação com a idéia de que a decisão judicial deve concretizar os direitos fundamentais e compreender e controlar a lei a partir desses direitos.

Fazzalari busca a legitimidade do exercício da jurisdição no procedimento realizado em contraditório, não entra na seara da legitimidade da decisão pelos direitos fundamentais. Por sua vez, a teoria de Luhmann, ao absorver a questão da legitimidade da decisão na legitimação pelo procedimento, afirma que o procedimento, por si, é

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suficiente para garantir a legitimação da jurisdição, entendendo ser equivocado relacionar a legitimidade da jurisdição com os direitos fundamentais.

A razão de ser e o objetivo das duas teorias são completamente distintos. A moderna doutrina processual brasileira adota as teorias de Fazzalari e de Luhmann, e, com base em ambas, sustenta a imprescindibilidade de decisões justas (nesse sentido Cândido Rangel Dinamarco), como se fosse possível adotar a teoria da legitimação pelo procedimento, devida a Luhmann, e, ao mesmo tempo, insistir na justiça das decisões. Luhmann ao propor a legitimação pelo procedimento, nega o problema da legitimidade da decisão. O procedimento na teoria de Luhmann, não tem a pretensão de alcançar uma decisão justa, mas sim, uma decisão aceitável.

Não há dúvida de que as teorias de Fazzalari e de Luhmann não são adequadas a uma idéia de Estado cujo principal dever é o de dar tutela aos direitos na dimensão da Constituição.

A legitimação da jurisdição não pode ser alcançada apenas pelo procedimento em contraditório e adequado ao direito material, sendo imprescindível pensar em uma legitimação pelo conteúdo da decisão.

Para explicar a legitimidade da decisão, aparecem as teorias textualistas, procedimentalistas (a segunda perspectiva procedimental antes da referida, distinta da de Luhmann) e substancialistas. As teorias textualistas propõem uma interpretação textualista da Constituição, atrelando a legitimidade da jurisdição ao literalismo das normas constitucionais. As teorias procedimentalistas buscam dar legitimidade a jurisdição destacando seu papel de reforço no processo democrático de elaboração da lei. Já as substancialistas dão ênfase ao conteúdo material dos preceitos constitucionais, advindo a legitimação da jurisdição do fato de os juízes aplicarem as cláusulas amplas da Constituição de acordo com uma concepção atraente dos valores morais que lhes servem de base.

O textualismo é incapaz de dar legitimidade à decisão jurisdicional, uma vez que as normas constitucionais, especialmente as que afirmam direitos fundamentais, têm natureza aberta e indeterminada. Para concretizar os direitos fundamentais e bem situar e controlar as normas infraconstitucionais é necessário delinear os conteúdos dos direitos fundamentais, o que não pode ser feito através de uma interpretação textual da Constituição. Os textualistas têm de apelar para fora do texto constitucional para solucionar dúvidas interpretativas. Essa é uma teoria que reproduz a sua própria crítica.

As teorias procedimentalistas criticam a busca de um conteúdo substancial na tutela dos direitos fundamentais com base no argumento de que inexistem valores fundamentais aceitos por todos os cidadãos de forma pacífica. Para estas teorias, diante da natureza aberta das normas constitucionais, não se deve dar ao juiz o poder de escolher os valores substanciais nelas contido, pois isso poderia gerar a tirania dos tribunais.

Se parte das teorias procedimentalistas faz preponderar a participação popular sobre os direitos fundamentais, a teoria de Habermas, ao contrário das outras teorias procedimentalistas, permite a infiltração da decisão por paradigmas ético-morais, mostrando-se preocupada com a formação de um consenso a respeito dos direitos fundamentais, em um espaço público no qual deva se desenvolver o debate popular. Para habermas, os juízes constitucionais devem agir de modo a garantir as condições do processo democrático de legislação. Não obstante, a teoria de Habermas tem sido atacada pela doutrina brasileira, talvez sem razão, sob o argumento de que a sua base, identificada em um espaço público como alicerce para as decisões da jurisdição constitucional, é difícil de ser concretizada no Brasil.

As teorias substancialistas entendem que a jurisdição encontra a legitimidade no conteúdo dos direitos fundamentais. Apontam para o fim da decisão, e não para a forma de sua construção, como os procedimentalistas. Esse fim é o de propiciar a concretização

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dos valores contidos nas normas constitucionais, particularmente nos direitos fundamentais.

A definição dos valores é o grande problema, o que é necessário para permitir à jurisdição atuar de modo racionalizado diante dos casos concretos. Este problema encontra origem na natureza aberta e indeterminada dos direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais se relacionam com normas restritivas e conformadoras. As normas restritivas restringem ou limitam posições que estão inseridas no âmbito

de proteção do direito. A admissão das normas restritivas não é circunstância aos casos em que as próprias normas constitucionais expressamente as autorizam, mas igualmente á hipóteses de “restrição imanente”, que ocorre quando há colisão entre direitos fundamentais. Essa forma de restrição imanente decorre da necessidade de concordância entre os direitos fundamentais.

O “núcleo essencial” do direito fundamental não pode ser afetado pela norma restritiva, embora possa afetar uma posição jurídica situação no “âmbito de proteção”. Admite-se apenas um análise objetiva e abstrata entre a norma restritiva e o direito fundamental por ela atingido, para se verificar se uma norma atenta contra o “núcleo essencial”. Jamais será possível considerar as circunstâncias do caso concreto para afrouxar os limites do “núcleo essencial” de um direito fundamental, ainda que a essa análise possa ser realizada pelo juiz singular, ou controle difuso de constitucionalidade.

A norma conformadora tem o objetivo de densificar ou concretizar o direito fundamental. Pode acontecer que em algumas situações venha atingir a esfera de outro direito fundamental. É o que ocorre com a norma que prevê a antecipação da tutela fundada em perigo e “verossimilhança da alegação”. Não existe, nesse caso, violação ao núcleo essencial do direito fundamental de defesa. Ainda que a esfera jurídica do réu seja atingida pelos efeitos da decisão baseada na “verossimilhança”, não lhe é eliminado o direito de defesa ou a possibilidade de demonstrar ao juiz a inexistência do direito que foi admitido como verossímil quando da concessão da tutela antecipada. A postecipação do exercício do direito de defesa se funda na necessidade de se impedir lesão ao direito do autor, que deve ser verossímil, e assim, ao direito fundamental de ação.

A teoria de que os direitos fundamentais têm função de mandamento de tutela (ou de proteção), obrigando o juiz a suprir a omissão ou a insuficiência da tutela devida pelo legislador, facilita a compreensão da possibilidade de a jurisdição poder cristalizar a regra capaz de dar efetividade aos direitos fundamentais. No caso de insuficiência ou inexistência da proteção normativa, o juiz deve outorgar a tutela do direito fundamental.

Contudo, a ação do juiz, no suprimento de uma omissão legislativa, não tem a mesma amplitude da ação do legislador. Ao legislador ordinário, em princípio, é possível uma ampla margem de manobra entre as proibições da insuficiência e do excesso. Essa margem, contudo, não é a mesma que está franqueada ao juiz. Ao juiz cumpre apenas o controle de insuficiência, não pode ir ele além disso. Ex: art. 7º, XVI da CF/88 que garante aos empregados urbanos e rurais remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal. Caso não haja nenhuma lei trabalhista infraconstitucional que regule a remuneração das horas de trabalho, ou haja uma lei que estabeleça valores remuneratórios inferiores a cinqüenta por cento, cabe o Poder Judiciário reconhecer a insuficiência da proteção legal do trabalhador e assegurar o mínimo de proteção jurídico-constitucionalmente exigido. Não cabe aos juízes dar aquela proteção que eles considerem a melhor para o trabalho extraordinário, mas apenas garantir o mínimo de proteção determinado pela constituição. O legislador, por sua vez, pode ampliar a proteção constitucional, desde que não atinja o extremo da intervenção excessiva.

O juiz para definir o conteúdo substancial de um direito fundamental, deve argumentar de modo racional com o objetivo de convencer.

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2.16. A legitimidade da definição legislativa do procedimento judicial a partir dos direitos fundamentais - É preciso destacar a legitimidade material do procedimento a partir dos direitos fundamentais, além da legitimidade pela participação em contraditório, pela adequação procedimental às tutelas dos direitos e pela pertinência do conteúdo da decisão com os direitos fundamentais.

Diante do procedimento de cognição parcial, é preciso verifica a legitimidade da restrição à alegação do réu. Essa restrição não pode buscar respaldo simplesmente no direito à tempestividade da tutela jurisdicional ou no direito fundamental à duração razoável do processo. É necessário que a situação de direito substancial legitime a restrição.

O direito material que está sendo tutelado de forma diferenciada deve justificar a restrição. Essa restrição deve encontrar amparo na necessidade de tutela dos direitos e na Constituição Federal.

A própria noção de necessidade de tutela do direito material pode se mostrar dúbia quando não relacionada com os direitos fundamentais e com os princípios constitucionais da justiça. As necessidades do direito material, para legitimarem a restrição, devem guardar consonância com a substância dos direitos fundamentais.

2.17. A argumentação como fator de legitimação – Os direitos fundamentais, num sistema de controle judicial de constitucionalidade das leis, necessariamente estabelecem um confronto entre o juiz e o legislador. A superação da lei pelos direitos fundamentais obriga o juiz a se pautar por critérios objetivadores. Todavia, tais critérios não são capazes de permitir uma segurança absoluta na delimitação dos conteúdos que devem subordinar a lei.

O juiz ao afirmar a inadequação da lei a um direito fundamental, deve argumentar que a lei interfere sobre o bem que foi excluído da sua esfera de disposição. Trata-se de demonstrar mediante adequada argumentação, que a lei deve significar oposição entre uma argumentação jurisdicional em prol da sociedade e a decisão tomada pelo legislativo. Como diz Alexy, de uma representação argumentativa a cargo da jurisdição em face de uma representação política concretizada na lei.

Justifica-se o controle judicial de constitucionalidade quando os juizes demonstram publicamente que seus julgamentos estão amparados em argumentos que são reconhecidos como bons argumentos, ou, ao menos, como argumentos plausíveis.

O controle da lei a partir dos direitos fundamentais significa que a jurisdição tem o poder-dever de argumentar e convencer a sociedade quando surge a divergência sobre se uma decisão do legislador se choca com um direito fundamental.

Páginas: 451 a 481Elaborado por: Ezileide Miranda Pitanga Dias (Bahia)

PARTE 4.3. O PROCESSO NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

3.1.Primeiras considerações.

O processo não pode mais ser visto como uma relação jurídica processual. A sua existência da revelaria apenas o aspecto interno e estático do processo, o que importa muito pouco diante do estágio que o direito processual atingiu no Estado constitucional.

É evidente que há alguma relação entre as partes e o juiz, pouco importando se existe uma única relação que se desenvolve ou várias relações ou se essas relações

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decorrem de situações jurídicas ou de uma única situação jurídica. Essa questão possuía relevo na época em que os doutrinadores se preocuparam em elaborar o que acontecia no plano da aplicação do direito ou do direito processual a partir da formulação de conceitos gerais-abstratos, como o da relação jurídica.

É indiscutível que a jurisdição, por constituir manifestação do poder estatal, deve revelar os fins do Estado constitucional. Portanto, se a jurisdição atua por meio do processo, não há como negar a importância dos fins do processo.

Deixar de relacionar o processo com os fins da jurisdição somente teria cabimento caso fosse ele visto em uma dimensão interna e não externa, ou melhor, caso o processo fosse compreendido isento dos seus fins e independentemente dos objetivos da jurisdição.

O processo não pode ser alheio ao seu produto, isto é, à legitimidade da decisão. O processo deve produzir decisões legítimas, ou seja, decisões adequadas aos direitos fundamentais. Pensar que o processo apenas prepara a decisão, e por isso nada tem a ver com a sua legitimidade faria com que a legitimidade da decisão fosse absolvida pela legitimação da jurisdição pelo procedimento. Ao se admitir essa última idéia, não importaria a legitimidade da decisão, mas apenas a legitimidade do procedimento, que seria suficiente para legitimar a decisão. Porém, não basta um procedimento legítimo. No Estado constitucional, a jurisdição realiza os seus fins apenas quando a lei é aplicada na dimensão dos direitos fundamentais.

Exatamente porque o processo deve ser visto em uma dimensão externa, de atuação dos fins do Estado, é que ele deve se desenvolver de modo a propiciar a efetiva participação das partes. Do contrário, não tem qualquer condição de legitimar o exercício da jurisdição e a realização dos seus fins. Um procedimento incapaz de atender ao direito de participação daqueles que são atingidos pelos efeitos da decisão está longe de espelhar a idéia de democracia, pressuposto indispensável para a legitimidade do poder.

O procedimento, visto como garantia de participação das partes, relaciona-se com o “devido processo legal”(em sentido processual). Somente é o “devido processo legal” o procedimento que obedece aos direitos fundamentais processuais ou às garantias de justiça processual esculpidas na Constituição, tais como o contraditório, a imparcialidade do juiz, a publicidade e a motivação. A observância do “devido processo legal” ou do “procedimento legal” legitima o exercício da jurisdição e, de outro ângulo, constitui garantia das partes diante do poder estatal.

O procedimento também deve ser idôneo às necessidades de tutela dos direitos, além de respeitar, em sua conformação, os direitos fundamentais materiais. Ou seja, o procedimento não pode ser tecnicamente inidôneo às tutelas prometidas pelo direito material - deixando de prever, por exemplo, meio executivo adequado - ou negar, em seu próprio desenho legal, os direitos fundamentais materiais - retirando do réu, por exemplo, o direito de discutir as cláusulas contratuais, cujo inadimplemento é pressuposto para o autor obter o bem que está na posse do demandado. O procedimento, além de legitimar a jurisdição a partir da participação, deve ser legítimo à luz do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva - isto é, para a tutela dos direitos - e sob o foco dos direitos fundamentais materiais.

Além disso, o procedimento não deve se diferenciar apenas para atender às diferentes necessidades de tutela dos direitos, mas também para permitir o acesso das populações economicamente menos privilegiadas ao Poder Judiciário. Um processo que não garante a todos, independentemente das suas posições financeiras, o acesso à justiça possui um déficit de legitimidade.

De outra parte, o procedimento também pode ser visto como verdadeiro canal para a participação popular no poder e na sociedade, concretizando os ideais da democracia participativa. É quando se pensa na ação popular e nas ações coletivas, as quais podem ser compreendidas como condutos para a participação do cidadão na

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gestão da coisa pública(ação popular) e para a participação, ainda que mediante entes legitimados - por exemplo, uma associação de defesa do meio ambiente -, na reivindicação de concretização e de proteção dos direitos fundamentais(ações coletivas). Nesse sentido o procedimento atende ao direito de participação reclamado pelos direitos fundamentais.

Isso tudo demonstra a importância do procedimento, revelando as várias formas e fins que ele deve assumir diante do exercício da jurisdição no Estado constitucional dando significado ao processo, tornando inseparável um e outro, uma vez que os propósitos do Estado constitucional nada mais é do que o processo jurisdicional do Estado contemporâneo.

2. A LEGITIMAÇÃO PELA PARTICIPAÇÃO NO PROCEDIMENTO.

No procedimento participam o juiz e as partes. O juiz exerce o poder jurisdicional, enquanto as partes são atingidas pelos seus efeitos, particularmente pelos efeitos da decisão final, que constitui a expressão mais importante do exercício do poder pelo juiz.

É evidente que esse poder deve ser legítimo. Porém, a questão da legitimidade da decisão não é algo pacífico.

Se a decisão deve estar de acordo com os direitos fundamentais e o juiz tem o dever de negar aplicação à lei que com eles se choca, o problema está em como delinear o conteúdo substancial desses direitos - cujas normas tem textura aberta e indeterminada - ou os valores que não estão presentes nas leis infraconstitucionais.

Há quem entenda que não há como pensar em legitimidade da decisão, uma vez que não existe objetividade possível em questões normativas, e há quem - embora admitindo o problema da legitimidade da decisão - suponha que a decisão só pode ser racionalmente avaliada a partir de critérios procedimentais. Para os primeiros é possível falar apenas em legitimação pelo procedimento, e não em legitimidade da decisão. Para os últimos, embora seja viável aludir a legitimidade da decisão, essa legitimidade dependeria da observância de um procedimento em que fossem observadas as condições asseguradoras da correção do seu resultado. De qualquer forma, enquanto os primeiros falam somente em legitimação, os últimos admitem que a legitimidade decorre da observância do procedimento,isto é, que a decisão é legitima quando são observadas as premissas e as características do procedimento, especialmente a participação.

Quando a legitimidade da decisão não importa, há apenas legitimação do exercício do poder pelo procedimento. Mas, no caso em que se entende que a decisão deve ser legítima, a observância das regras do procedimento é imprescindível para se ter uma decisão legítima. Apenas nesse último caso, e não no primeiro, é que importará saber se a observância do procedimento é capaz de assegurar uma decisão justa ou conforme o conteúdo material dos direitos fundamentais.

A ênfase à participação no procedimento tem o objetivo de legitimar a decisão e o exercício do poder jurisdicional.

Porém, é lógico que o conteúdo dessa participação deve variar conforme as particularidades do caso completivo. A participação deve dar às partes plena oportunidade de alegar, requerer provas, participar da sua produção e considerar sobre os seus resultados. Numa palavra: a parte deve ter a oportunidade de demonstrar as suas razões e de se contrapor às razões da parte contrária.

Muitas vezes o litígio, para ser solucionado, exige a elucidação de um fato através de prova pericial(art.420 e ss.,CPC), na qual um perito, indicado pelo juiz(art.421, CPC), enuncia, a partir de demonstração lógica, a sua conclusão. Essa situação tem uma particularidade muito relevante.

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Nesses casos, a decisão se fundará na conclusão da prova pericial. Nessas hipóteses, o juízo sobre os fatos fica circunscrito a uma análise técnica a ser realizada pelo perito judicial. Nessa perspectiva, a decisão judicial dependerá da “decisão” do perito, o que certamente coloca em risco o princípio do juiz natural e os princípios da participação e do contraditório, indispensáveis para se ter uma decisão judicial legítima.

Como a resposta do perito vai ter grande influência sobre a sua decisão, o juiz deve escolhê-lo com muita cautela, certo da sua idoneidade técnica e moral.

Nesse caso, mais do que em outros, o juiz deve se preocupar com a fonte da conclusão que servirá de suporte à sua decisão.O juiz deve aferir a credibilidade do perito quando da sua indicação, no curso do procedimento probatório e diante das conclusões por ele oferecidas. Como as partes, como manifestação do contraditório, têm o direito de participar da produção da prova - até mesmo requerendo quesitos suplementares(art.425, CPC) - e o direito de falar sobre as suas conclusões - inclusive pedindo esclarecimentos sob a forma de quesitos(art.435, CPC) -, o juiz tem ampla oportunidade para interferir sobre a atuação do perito. Aliás, caso a prova pericial pareça obscura ou incompleta, o juiz deve determinar uma “segunda perícia”, mesmo de ofício, conforme obriga o art.437 do CPC.

Sem a efetiva participação das partes e a adequada atuação do juiz, nos vários momentos do procedimento probatório, não há como pensar em legitimação pela participação e, por conseqüência, em legitimidade da decisão.

A parte tem o direito de assistir às audiências e aos julgamentos, além de exigir a adequada fundamentação das decisões. É nesse sentido que se diz que a participação, além do direito de influir sobre o convencimento do juiz e de se opor ao adversário, requer a publicidade dos atos processuais e a fundamentação das decisões.

A participação através do contraditório e da publicidade dos atos processuais confere à parte a oportunidade de interferir sobre a formação da decisão, garantindo a sua justiça.

Por outro lado, a fundamentação ou a motivação é imprescindível para garantir a adequada consideração das alegações e das provas produzidas. O juiz deve demonstrar, na fundamentação, a origem e as razões da sua convicção quanto aos fatos, bem como evidenciar os seus raciocínios em relação às provas e aos fundamentos jurídicos, assim como esses raciocínios se interpenetraram quando do raciocínio “decisório”. A fundamentação ou a motivação, portanto, igualmente garante a justiça da decisão.

Perceba-se, porém, que o contraditório, a publicidade e a motivação são, antes de tudo, garantias de um processo justo, e apenas nessa dimensão garantem a justiça da decisão. Tais garantias processuais de justiça, ao lado da garantia de imparcialidade do juiz, são imprescindíveis ao “devido processo legal” ou a um “procedimento legal”. É apenas como conformadoras do devido processo legal que garantem a justiça da decisão.

A LEGITIMIDADE DA DECISÃO A PARTIR DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, A OTIMIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCEDIMENTO E A ARGUMENTAÇÃO JUDICIAL.

Quando a legitimidade da decisão depende da identificação judicial do conteúdo material dos direitos fundamentais, deixa-se de lado qualquer forma genuína de procedimentalismo, ou mais precisamente a idéia de que a legitimidade da decisão decorre unicamente da observância dos parâmetros fixados pelo legislador para o desenvolvimento do procedimento.

Nessa perspectiva, ainda que a participação tenha grande importância, entende-se que a jurisdição deve dar ênfase ao conteúdo material dos direitos

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fundamentais, aplicando-se de acordo com uma concepção atraente dos valores morais que lhe servem de fundamento.

Não é possível aplicar a lei na dimensão dos direitos fundamentais através de uma interpretação da Constituição que pretenda ser textualiza. Isso pela simples razão de que as normas constitucionais que afirmam direitos fundamentais têm natureza aberta e indeterminada, e assim são insuscetíveis de captação por meio dessa forma de interpretação.

Quando se frisa a observância do procedimento como critério para a legitimidade da decisão, pode-se estar negando a possibilidade de o juiz identificar o conteúdo substancial dos direitos fundamentais. Isso ocorre quando a identificação judicial do conteúdo material do direito fundamental é integralmente substituída pela participação no procedimento. Que não deve ser contraposta à proteção do conteúdo substancial dos direitos fundamentais como critério de legitimidade da decisão judicial. A participação não é capaz de permitir que se deixe de lado o poder-dever de o juiz apontar para o conteúdo substancial dos direitos fundamentais para dar tutela jurisdicional aos direitos ou para proteger a sociedade contra as decisões do parlamento.

A observância do procedimento ou a participação não são suficientes para conferir legitimidade à decisão.É preciso que a jurisdição tenha o poder de apontar para o fundamento material do direito fundamental para poder negar a lei que com ele se choca. Por outro lado, não há como o juiz exercer isoladamente o ofício de delimitar o conteúdo aberto das normas de direitos fundamentais e dos valores constitucionais.

O juiz deve examinar os conteúdos das normas controvertidas em conexão com os pressupostos comunicativos e condições procedimentais do processo legislativo democrático. Segundo Habermas, a jurisdição deve buscar legitimidade assegurando que o processo de gênese da lei seja receptivo àquilo que os cidadãos estabelecem como consenso no espaço público.

Uma maior possibilidade de participação, ou de uma participação mais vinculada à idéia de formação de um resultado a partir do debate popular, existe no processo de controle abstrato de constitucionalidade, atrav´´ES do que se chama de amicus curiae. O art.7o, §2o da Lei 9.868/99, admite a intervenção de um terceiro, qualificado de amicus curiae, cuja intervenção é admitida sob o pressuposto de ter ele representatividade e interesse objetivo em relação à controvérsia constitucional.

O fundamento dessa intervenção é a de propiciar a ouvida dos diversos setores de sociedade que têm interesse na controvérsia constitucional.STF, ADIn n.2.130/SC.

A referida norma do art.7o, §2o, da Lei 9.868/99, ao abrir oportunidade para a intervenção processual do amicus curiae, objetiva fundamentalmente pluralizar o debate constitucional, vendo o terceiro como um amigo da Corte, ou melhor, como alguém que possa falar em nome de um setor social cuja palavra tenha importância para a formação do debate em torno da controvérsia constitucional.

Isso, porém, não esgota o problema. É preciso atrelar a legitimidade da decisão a critérios objetiva dores da compreensão da questão constitucional e dos direitos fundamentais, tomando-se em conta determinadas regras, como as do “núcleo essencial” e do “mínimo imprescindível”. E, além disso, exigir do juiz uma justificativa capaz de evidenciar o emprego de tais critérios em seu raciocínio decisório.

Nas hipóteses em que o juiz nega uma norma infraconstitucional em razão de um direito fundamental, o seu raciocínio decisório, expresso na justificativa, deve ser capaz de convencer que a lei desconsidera o valor social guardado no direito fundamental.

A LEGITIMIDADE DO PROCEDIMENTO.

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De lado a importância da participação e da identificação do conteúdo material dos direitos fundamentais para a legitimidade da decisão, não há como ignorar a necessidade de adequação do procedimento às situações de direito substancial carentes de tutela e aos direitos fundamentais materiais.

Não há dúvida de que a jurisdição, para poder se desincumbir do seu dever de prestar tutela aos direitos, deve dar ao titular de uma posição jurídica carente de tutela jurisdicional o procedimento que seja idôneo à sua obtenção.É a partir daí que se pensa nos procedimentos diferenciados, aptos a permitir a efetiva tutela jurisdicional dos direitos. Os procedimentos se diferencial na exata medida das situações substanciais carentes de tutela, motivo óbvio pelo qual o processo civil deve estruturar procedimentos diferenciados, e não tutelas diferenciadas.

A impossibilidade da definição de tantos procedimentos quantos sejam as situações substanciais carentes de tutela levou o legislador a editar normas que abrem oportunidade para a construção do procedimento adequado ao caso concreto. O direito à construção do procedimento adequado ao caso concreto, derivado do direito de ação - já que igualmente se pode falar em direito à construção da ação adequada ao caso concreto - , relaciona-se com o dever de a jurisdição prestar efetiva tutela jurisdicional aos direitos.

A legitimidade do procedimento tem relação com a sua estrutura em consonância com os direitos fundamentais, especialmente com o direito à igualdade. Não é legítimo o procedimento que nega ao réu o direito de alegrar fundamentos ancorados no direito material sem que isso tenha por objetivo viabilizar a proteção de determinada situação de direito substancial, logicamente digna de tutela diante das normas constitucionais.

Ao se aludir à adequação do procedimento às situações substanciais carentes de tutela e aos direitos fundamentais materiais, certamente também se sabe que não haverá uma decisão legítima fora dessas condições. A diferença é que a atenção não se volta para a legitimidade da decisão, mas sim para a legitimidade do procedimento que resulta na decisão, com o que a doutrina processual clássica jamais se preocupou.

A UNIVERSALIDADE DO ACESSO À JURISDIÇÃO. A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO.

O direito de acesso à justiça é um direito básico, certamente um dos mais relevantes direitos fundamentais, na medida da sua importância para a tutela de todos os demais direitos.

Esse direito nada mais é do que manifestação do direito à tutela jurisdicional efetiva, esculpido no art.5o, XXXV, da CF. O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, além de dar ao cidadão à técnica processual adequada à tutela do direito material, igualmente confere a todos o direito de pedir ao Poder Judiciário a tutela dos seus direitos.

É fácil perceber que o direito à técnica processual adequada constitui uma preocupação mais avançada em relação ao direito de pedir a tutela jurisdicional, até porque só pode se preocupar com técnica processual idônea quem pode pedir a tutela jurisdicional.

O direito de acesso à justiça não depende somente da eliminação dos óbices econômicos e sociais que impedem ou dificultam o acesso.

O direito de acesso à justiça não é apenas necessário para viabilizar a tutela dos demais direitos, como imprescindível para uma organização justa e democrática. Não há democracia em um Estado incapaz de garantir o acesso à justiça. Sem a observância desse direito um Estado não tem a mínima possibilidade de assegurar a democracia.

É por isso que o direito de acesso à justiça (art.5o, XXXV, CF) incide sobre o legislador - que resta obrigado a traçar “formas de justiça”(órgãos jurisdicionais

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diferenciados) e procedimentos diferenciados para permitir o efetivo acesso ao Poder Judiciário das camadas da população economicamente menos favorecidas- e sobre o juiz, atribuindo-lhe o dever de compreender as regras processuais à luz do direito de acesso à justiça.

As leis que tratam dos Juizados Especiais(Lei 9.099/95 - Juizados Especiais Estaduais e Lei 10.259/2001 - Juizados Especiais Federais) devem ser vistas como respostas do legislador ao seu dever de instituir órgãos judiciários e procedimentos capazes de permitir o efetivo acesso ao Poder Judiciário.

O objetivo é garantir o acesso com o mínimo de custo econômico possível, assim como propiciar, na medida do possível, celeridade, uma vez que o pobre tem menor resistência do que o rico para esperar pela justiça. Além disso, busca-se simplificar e tornar menos formal o procedimento, obviamente que sem prejuízo das garantias processuais, pretendendo-se, com isso, facilitar a participação no processo.

A PARTICIPAÇÃO ATRAVÉS DO PROCEDIMENTO.

O procedimento deve viabilizar o acesso dos menos favorecidos economicamente ao Poder Judiciário. Esse é um dever do Estado, que deve ser observado pelo legislador e pela jurisdição.

Porém, o Estado ainda tem o dever de permitir a participação através do procedimento.

Está intimamente ligada à idéia de democracia participativa. A influência da técnica representativa, ou da participação nas eleições para os cargos de representação popular, fez com que se percebesse a necessidade de incentivar e viabilizar formas de participação direta da população direta da população nos processos de decisão estatal.

A Constituição Federal adotou várias formas de democracia participativa - art.10, art.31,§3o, art.37,§30, art.74,§2o, art.194, parágrafo único, VII, art.206,VI, art.216,§1o.

No que diz respeito à participação através do processo jurisdicional, a Constituição Federal no art.LXXIII, reafirmou a ação popular - existente no constitucionalismo brasileiro a época do Império e regulada pela Lei 4.717/65.

A proclamação dos direitos fundamentais reclama, ao seu lado, a possibilidade de participar no poder e na sociedade de modo a exigir a sua implementação e proteção. Para tanto é imprescindível a via jurisdicional, e assim o procedimento ou o processo jurisdicional como conduto capaz de permitir a participação. Consciente do dever de viabilizar a participação popular em busca da efetivação e da proteção dos direitos fundamentais, o legislador construiu o procedimento da ação coletiva, inicialmente através da Lei da Ação Civil Pública(Lei 7.347/85) e, posteriormente, mediante o Código de Defesa do Consumidor(Título III da Lei 8.078/90).

O sistema de tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, integrado substancialmente por essas duas leis, confere legitimidade ativa a determinados entes para representar a vontade da coletividade e de determinadas esferas da população, tornando os efeitos benéficos da sentença extensíveis à coletividade ou ao grupo.

O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO ADEQUADO AOS FINS DO ESTADO CONSTITUCIONAL.

Não há como pretender ver o processo apenas como uma relação jurídica processual. A relação jurídica processual, nos moldes pensados pela doutrina clássica, nada diz sobre o conteúdo do processo. Tal relação jurídica processual pode servir a

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qualquer Estado e a qualquer fim. Daí a sua evidente inadequação quando se pretende explicar o processo diante do estado constitucional e dos direitos fundamentais.

O processo é o instrumento através do qual a jurisdição tutela os direitos na dimensão da Constituição. É o modulo legal que legitima a atividade jurisdicional e, atrelado à participação, colabora para a legitimidade da decisão. É a via que garante o acesso de todos ao Poder Judiciário e, além disto, é o conduto para a participação popular no poder e na reivindicação da concretização e da proteção dos direitos fundamentais. Por tudo isso o procedimento tem de ser, em si mesmo, legítimo, isto é, capaz de atender às situações substanciais carentes de tutela e estar de pleno acordo, em seus cortes quanto à discussão do direito material, com os direitos fundamentais materiais.

É evidente que o procedimento,quando compreendido nessa dimensão, é atrelado a valores que lhe dão conteúdo, permitindo a identificação das suas finalidades. Isso pela razão óbvia de que o procedimento, à luz da teoria processual que aqui interessa, não pode ser compreendido de forma neutra e indiferente aos direitos fundamentais e aos valores do Estado constitucional. Nesse momento não há razão para tentar penetrar na essência de outro processo que não importa à jurisdição do Estado contemporâneo.

PARTE 4.

4 - O PROCESSO CIVIL CONTENPORÂNEO E OS CHAMADOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS.

4.1.OS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS NO CPC.

O art.267, IV, do CPC faz referência a pressupostos relacionados ao processo, apontando para pressupostos de constituição e para pressupostos de desenvolvimento válido e regular. Portanto, supôs a existência de duas espécies de pressupostos processuais, necessários para a existência e para a validade do processo.

4.2. OS PRESUPOSTOS PROCESSUAIS DE EXISTÊNCIA E DE VALIDADE NA DOUTRINA.

São apontados, como pressupostos de existência, o pedido, a investidura na jurisdição daquele a quem o pedido é endereçado e as partes, salientando-se, inclusive, a necessidade da citação do réu, sob o pressuposto de que sem ela não existiria relação jurídica processual e, assim, processo propriamente dito, mas apenas uma relação jurídica entre o autor e o juiz. Também é adicionada, como pressuposto de existência, a capacidade postulatória, ou a exigência de que a parte postule por meio de advogado, salvo as exceções estabelecidas em lei.

Como pressupostos de validade são elencados: i)uma petição inicial regular, isto é, apta a produzir os seus regulares efeitos, viabilizando a defesa e a prolação da sentença; ii) a competência do juízo e a imparcialidade do juiz, entendendo-se que o pressuposto processual da competência só não é atendido em caso de incompetência absoluta e que o pressuposto processual de imparcialidade apenas não está presente no caso de impedimento(art.134,CPC); e iii) a capacidade de estar em juízo(art.7o, CPC), atribuída a todo aquele que tem capacidade de gozo e exercício dos seus direitos.

4.3. OS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS NA TEORIA DE BÜLLOW

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Büllow identificou o processo como uma relação jurídica processual. Embora na época do direito romano já se falasse de uma relação entre o juiz, o autor e o réu - judicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei(Búlgaro) - , deve-se a Büllow a tentativa de sistematização dessa relação. Büllow partiu da relação jurídica privada para conceitualizar, ou melhor, exprimir em conceitos gerais e abstratos, o que acontecia entre o juiz e as partes.

Büllow construiu a teoria da relação jurídica processual. A base da argumentação de Büllow se encontra nas chamadas “exceções dilatórias”. Através dessas alegações o réu denunciava a existência de vícios atinentes ao processo, e isso, segundo Bullow, serviria para demonstrar a existência de uma relação jurídica que nada teria a ver com a relação jurídica material, pois o eventual reconhecimento de vício na relação processual deixaria intacta a relação jurídica material, ao passo que o reconhecimento da inexistência do direito material não implicaria na negação da relação jurídica processual. Ou seja, as exceções dilatórias foram utilizados por Büllow para evidenciar a autonomia da relação processual, embora tenham valor apenas para demonstrar a autonomia do processo diante do direito material.

O valor atribuído por Büllow às exceções dilatórias e à sua importância para a demonstração de uma relação jurídica processual ao lado da relação jurídica material obrigaram-no a retomar o processo romano, que era dividido em duas fases, uma destinada à constituição do processo, ou melhor, à verificação dos pressupostos para a constituição do processo, e outra para a análise da relação material. Uma in iure, outra in iudicium.

Na primeira fase, denominada empiore, o pretor verificava se estavam presentes os pressupostos processuais, necessários para a constituição da relação processual ou do processo. Nessa primeira fase, o pretor podia conceder ou não a actio, conforme estivessem ou não presentes os pressupostos processuais. Concedida a actio e, portanto, constituída a relação processual ou o processo, havia a chamada litiscontestatio, através da qual as partes delimitavam o litígio que deveria ser analisado na segunda fase do processo, agora pelo iudex.

Büllow concluiu que a separação entre essas duas fases ou entre esses dois processos, um servindo à verificação dos pressupostos processuais e outro à análise do direito material, firmou-se na evolução legislativa.

Büllow procurou não só evidenciar a existência de uma relação jurídica processual independente da material, como também deixou claro que a relação material apenas poderia ser julgada após a constatação da presença dos pressupostos processuais, isto é, da constituição da relação processual. Para Büllow, os pressupostos processuais são elementos constitutivos da relação processual. Para ele só existe relação jurídica processual ou processo quando os seus pressupostos estão presentes, de modo que não haveria como ter uma fase processual ou um processo destinado ao julgamento do mérito na ausência de pressuposto processual, pois nesse caso o processo não teria sido constituído.

4.4. A SUPERAÇÃO DAS DUAS FASES E A INSTITUIÇÃO DO PROCESSO ÚNICO DIANTE DOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS.

A existência de uma fase ou de um procedimento reservado unicamente à aferição dos pressupostos processuais, e assim para a constituição do iudicium ou do processo já no direito romano se deixou de lado.

Mas a doutrina, surpreendentemente, não se deu conta de que um pressuposto do processo não pode ser aferido nele próprio. Isso é logicamente inviável. O pressuposto é um antecedente imprescindível de outro. O sentido do pressuposto é o de permitir um raciocínio lógico que, a partir da sua constatação, permita a afirmação do outro. Não há

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qualquer racionalidade em aferir um pressuposto após a admissão da existência do objeto por ele condicionado.

O entendimento de que os pressupostos processuais devem ser analisados no curso do processo, para ser coerente, teria de admitir que a existência do processo e da relação processual dependeria da afirmação definitiva dos pressupostos processuais, e, além disso, que a constatação da ausência de pressuposto processual, mesmo ao final do processo - após a defesa e a realização das provas -, imporia a conclusão de que não teria existido processo ou relação processual.

4.5. A INFLUÊNCIA DO CONCEITUALISMO SOBRE A IDÉIA DE PRESSUPOSTO PROCESSUAL.

Parte da doutrina passou a sustentar que os pressupostos processuais serim simples requisitos para a apreciação do mérito. Com isso a doutrina abriu mão da incoerência de admitir que os pressupostos processuais são necessários para a constituição do processo, mas não se livrou do peso da idéia de relação jurídica processual e da categoria dos pressupostos processuais.

Embora tenha se tornado evidente que o processo independia de pressupostos, era necessário manter a categoria dos pressupostos processuais. Chiovenda, em suas Instituições, disse que os pressupostos processuais seriam condições para que a obrigação do juiz de se pronunciar sobre a demanda pudesse se constituir.

Afirmou ainda o doutrinador que os pressupostos processuais são apenas condições para o julgamento do mérito, deixou claro que o juiz, mesmo na ausência desses pressupostos, deve explicar o motivo pelo qual não teve condições de julgar o mérito. Nesse momento, preocupou-se ainda em esclarecer que, em tal caso, existe uma relação jurídica.

Portanto, a inexistência de tais pressupostos jamais isentaria o juiz de cumprir o seu dever jurisdicional. Ademais, a sua falta não faria desaparecer uma relação jurídica, que seria “mais restrita”. De modo que, na lógica da doutrina chiovendiana, existe dever jurisdicional e relação jurídica mesmo na ausência dos pressupostos processuais

Isso significa que as condições, chamadas por Chiovenda de pressupostos processuais, jamais poderiam ser vistas como antecedentes necessários para a existência de dever jurisdicional, de relação jurídica e de processo. De outro parte, o único pressuposto que Chovenda supõe ser necessário, isto é, “a existência de um órgão jurisdicional“, exige evidente reconceituação no Estado constitucional.

A circunstância de a parte ter de pedir tutela jurisdicional ao Estado não deve ser vista como pressuposto processual, mas sim como conseqüência do dever estatal de proteção dos direitos. Se tutela jurisdicional somente pode ser prestada pela jurisdição e através do processo, é pouco mais do que evidente que não há processo sem “a existência de um órgãos jurisdicional”.

A obrigação do juiz de exercer o poder jurisdicional obviamente não decorre de uma relação jurídica. Não há dúvida de que o juiz tem a obrigação de conhecer a demanda. Mas, para se estabelecer essa obrigação, não é preciso uma relação jurídica. Tal obrigação baseia-se no direito público, que impõe ao Estado o dever de administrar a justiça através do juiz, cujo cargo lhe impõe, ao mesmo tempo, obrigações diante do Estado e dos cidadãos.

A alusão à jurisdição como pressuposto processual serve apenas para demonstrar a fragilidade da teoria da relação jurídica processual.

Deseja-se apenas demonstrar, apontando-se para a doutrina chiovendiana - que foi, sem dúvida, a que mais influenciou o direito processual brasileiro -, um evidente artificialismo, ou uma nítida manipulação lógica, na manutenção da teoria dos

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pressupostos processuais. A doutrina deveria ter abandonado a categoria dos pressupostos processuais, voltando-se para o valor que os requisitos processuais - antes concebidos como pressupostos - têm diante dos fins do Estado e dos direitos das partes.

A doutrina, ao manter artificialmente a categoria dos pressupostos processuais, revela-se cativa da teoria da relação jurídica processual e dos valores que presidiram a formação do conceitualismo alemão, preocupado em explicar o direito através de conceitos gerais-abstratos.

Portanto, a insistência na categoria dos pressupostos processuais espelha apenas uma aceitação acrítica de uma elaboração conceitual. Acrítica porque distante da realidade social e dos fins do Estado. Acrítica porque capaz de ignorar a razão de ser do que chama de pressupostos processuais diante do que importa na teoria processual contemporânea.

4.6. OS DITOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS NÃO DIZEM RESPEITO AO PROCESSO E NÃO SÃO REQUISITOS PARA O JULGAMENTO DO MÉRITO.

Reafirme-se que os ditos pressupostos não são requisitos para a constituição do processo. O processo e a relação jurídica existem ainda que na ausência dos pressupostos processuais. Por outro lado, se esses pressupostos são pensados como requisitos para o julgamento do mérito - como deseja Chiovenda -, eles obviamente não podem ser vistos como pressupostos do processo.

Na verdade, tais requisitos não podem ser vistos nem como pressupostos de existência nem como pressupostos de validade do processo. Isso pela simples razão de que não dizem respeito ao processo. Tais requisitos nem têm relação com a existência ou com validade do processo, mas sim com a sua substância, ou melhor, com o mérito ou com o pedido de tutela jurisdicional do direito. Eles condicionam a concessão da tutela jurisdicional do direito; não o processo.

Goldschmidt advertiu expressamente que os pressupostos processuais não representam pressupostos do processo, mas sim de uma decisão sobre o mérito, formulando uma noção bem mais correta do que aquela que relaciona os mencionados pressupostos com o processo.

Nesse momento, porém, a questão deve ser melhor esclarecida, pois hoje é preciso verificar se os pressupostos podem realmente ser pensados como condições para o julgamento do mérito(ou para a sentença de mérito). Objetiva-se, com a instituição desses requisitos, em alguns casos a proteção do interesse público, em outros a proteção do autor, e ainda em outros a proteção do réu.

Ao se perceber a razão de ser dos ditos pressupostos processuais, torna-se claro que eles não são requisitos para o julgamento do mérito ou para uma decisão sobre o mérito, mas condições para a concessão da tutela jurisdicional do direito. Quer isso dizer, em outras palavras, que eles devem estar presentes não para que o juiz possa julgar o mérito, porém para que o juiz possa conceder a tutela jurisdicional do direito. A sua ausência não impede que o juiz julgue o mérito. É apenas a ausência de pressuposto estruturado em favor do interesse público que impede o julgamento do mérito.

Em resumo: a falta de pressuposto processual apenas impede o julgamento do mérito quando instituído em favor do interesse público. Quando o mérito for favorável ao réu, a ausência de pressuposto voltado à sua proteção não retira do juiz o dever de proferir sentença de improcedência, de modo que a ausência de pressuposto impedirá a tutela do direito material, mas não o julgamento do mérito. Orem, sendo o mérito favorável ao autor, a concessão da tutela jurisdicional do direito somente será possível quando o pressuposto negado tiver o fim de o proteger.

Para a tutela jurisdicional do direito, em regra é necessária a presença dos pressupostos e do reconhecimento do direito material. O que se quer evidenciar é que a

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ausência dos pressupostos não constitui óbice para o julgamento do mérito, mas que, nesse caso, a tutela jurisdicional do direito apenas é possível quando o pressuposto negado houver sido instituído para proteger o autor.

4.7. A NECESSIDADE DE DESCOBERTA DOS VALORES E DAS FUNÇÕES DOS DITOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS.

Os chamados pressupostos processuais não podem ser vistos apenas como requisitos lógicos, destituídos de valores e funções. Em uma dimensão ampla, são eles relacionados com os interesses do Estado e das partes.

A competência absoluta do órgão jurisdicional e a falta de impedimento do juiz são requisitos que dizem respeito ao interesse público ou ao interesse estatal em prestar a jurisdição de forma adequada e proba.

A separação da competência, inclusive na Constituição Federal, dos vários órgãos do Judiciário tem a sua concretização como imprescindível ao funcionamento da jurisdição.

O impedimento, como é evidente, visa resguardar a jurisdição, garantindo-lhe a característica da imparcialidade, fundamental para a distribuição da justiça.

Não importa a vontade das partes em relação à competência absoluta e às regras pertinentes ao impedimento. Embora as partes também tenham interesse em que a causa seja apreciada por um juiz constitucionalmente competente e imparcial, é certo que nem autor nem réu podem abrir mão dessas condições. Trata-se de requisitos indispensáveis para o julgamento do mérito.

Porém, o raciocínio necessariamente se altera quando se pensa na capacidade de estar em juízo, na capacidade postulatória e na existência de petição inicial regular.

As exigências de capacidade de estar em juízo - isto é, de capacidade de exercício dos direitos (art.7o, CPC) - e de capacidade postulatória - de capacidade de falar no processo, que apenas é possível por intermédio de advogado(art.36, CPC) - destinam-se a proteger a parte, evitando que contra ela venha a ser proferida uma sentença de mérito - que negue o seu direito material - sem que possa atuar no processo de modo adequado - seja mediante a ação ou a defesa - ou participar de forma plena e efetiva no processo.

Por isso, ao se verificar que o autor não tem capacidade para estar em juízo ou capacidade postulatória, e ainda assim a sua posição em relação ao mérito for favorável, não há como o juiz deixar de conceder a tutela jurisdicional do direito, proferindo sentença de procedência. Se o tal requisito objetiva proteger os interesses do autor, é impossível negar-lhe a tutela jurisdicional do direito sob o argumento de que o pressuposto, instituído exatamente para o proteger, não está presente.

Nesse caso, o juiz apenas pode se preocupar com a relação entre o menor e o legitimado processual, exigindo o aperfeiçoamento da representação somente para proteger o menor diante daquele que se apresentou como legitimado processual, mas jamais obstaculizar a tutela do direito material do menor em face do réu.

De outra parte, quando tais pressupostos dizem respeito à proteção do réu, a sua ausência não pode viabilizar a concessão da tutela jurisdicional do direito ou uma sentença de procedência. Porém, ao contrário, pode permitir uma sentença de improcedência. Aliás, essa sentença de improcedência é obrigatória quando resta evidenciado que o réu tem razão em relação ao mérito.

Por fim, no que pertine à petição inicial irregular, a que faltam, por exemplo, o fato e os fundamentos jurídicos do pedido(art.282, III, CPC), cabe inicialmente individualizar a sua função.É indubitável que tal requisito não visa proteger o autor.

E nem se pense que o réu não tem interesse em uma decisão de improcedência - ou seja, em uma decisão que afirme que o autor não tem direito material

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- apenas porque pode ser proferida uma sentença de extinção do processo sem resolução do mérito(art.267,IV, CPC). Ora, a sentença que extinguir o processo em razão da falta de um desses requisitos anteriormente não cumprido, para novamente requerer a tutela jurisdicional do direito. Daí a importância, para o réu, de uma sentença de improcedência - que afirme que o autor não tem direito material - , uma vez que essa, produzindo coisa julgada material, tornará imutável e indiscutível a relação jurídica litigiosa definida pela sentença de improcedência.

4.8. OS REFERIDOS PRESSUPOSTOS DIANTE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA E À DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO.

Interessa agora esclarecer que os ditos pressupostos processuais, ainda que possam vir a não interferir sobre o julgamento do mérito, devem ser aferidos no processo quando da apresentação da petição inicial e da contestação, conforme sejam pressupostos relativos ao autor ou concernentes ao réu.

Quando o juiz não tem condições de verificar se o autor ou o réu tem razão em relação ao mérito, porque ainda é necessária a complementação do processo, com a prática de atos processuais voltados a influir sobre o convencimento judicial, cabe-lhe determinar a extinção do processo sem resolução de mérito, nos termos do art.267, IV, do CPC.

Não há racionalidade em admitir que o processo prossiga quando apresenta defeitos ou irregularidades capazes de comprometer a análise da pretensão à tutela jurisdicional do direito. Admitir o prosseguimento do processo em tais condições significaria violação dos direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e à duração razoável do processo. Isso porque tais direitos fundamentais são voltados a uma tutela efetiva e tempestiva, o que é inviável quando existem defeitos ou irregularidades processuais capazes de comprometer o julgamento do mérito.

Em tais circunstâncias, a pretendida prioridade da apreciação dos pressupostos processuais em relação ao julgamento do mérito tem plena procedência. Tal prioridade só se transforma em algo irracional, e nesse sentido sua afirmação só pode ser vista como dogma, quando o processo se encontra em estado que dá plenas condições ao juiz de constatar a existência ou a inexistência do direito material.

É nessa situação, quando o juiz está em condições de julgar o mérito, que não há lógica em admitir que o juiz possa deixar de dar à parte(proferindo sentença de procedência ou improcedência) apenas porque um pressuposto voltado à sua proteção não está presente.

Frise-se, porém, que em tal situação o juiz tem dever de julgar o mérito, estando proibido de extinguir o processo. A extinção do processo, nesse caso, viola os direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e à duração razoável do processo.

4.9. A COMPREENSÃO DOS “PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS” A PARTIR DAS SUAS FUNÇÕES E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA E À DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO DEMONSTRA A INCAPACIDADE DA TEORIA DA RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL E DA CATEGORIA DOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS PARA EXPRESSAR O SIGNIFICADO DO PROCESSO JURISDICIONAL NO ESTADO CONSTITUCIONAL.

A teoria de Büllow, ao sistematizar a relação jurídica processual, não escapou do conceitualismo ou do cientificismo neutro próprios à pandectística.

A pretensa neutralidade do conceito de relação jurídica processual escamoteou a realidade concreta, permitindo a construção de uma ciência processual que supunha que poderia viver imersa em si mesma.

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A teoria da relação jurídica processual encobre as intenções do Estado e ignora as necessidades das partes, assim como as situações de direito material e as diferentes realidades dos casos concretos.

É por isso que um pressuposto processual, na dimensão de tal teoria, é neutro ou indiferente às partes e aos direitos fundamentais. É exatamente por esse motivo que os pressupostos processuais sempre foram vistos como meros requisitos lógicos, inicialmente da constituição do processo e depois da sua validade e do julgamento do mérito.

Ademais, diante dos direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e à duração razoável do processo, torna-se evidente que a ausência de um “pressuposto processual” só tem relevância quando constatada em momento processual em que o juiz não tem condições de definir o mérito, pois é apenas nessa hipótese que surge racionalidade para a extinção do processo. Em caso contrário, isto é, quando se verifica que o direito material pertence à parte protegida pelo pressuposto omitido, o juiz tem o dever de proferir sentença de mérito, seja de procedência ou de improcedência. É que, em caso contrário, a jurisdição estará indisfarçavelmente negando os direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva (art.5o, XXXV, CF) e à duração razoável do processo (art.5o, LXXVIII,CF).

A leitura dos chamados “pressupostos processuais” à luz dos interesses das partes, assim como dos seus direitos fundamentais processuais e do dever estatal de prestação da adequada tutela jurisdicional, impõe o afastamento da neutralidade ínsita à teoria da relação jurídica processual e transforma em dogma a idéia de que os pressupostos são requisitos para a constituição, para a validade ou para a simples apreciação do mérito. A preocupação com as partes e com os direitos fundamentais obriga a pensar os “pressupostos processuais” apenas como requisitos de um “processo justo” ou como requisitos de um processo conforme os direitos fundamentais e o Estado constitucional.

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