resumo obra memorial do convento

36
qwertyuiopasdfghjklçzxcvbn mqwertyuiopasdfghjklçzxcvb nmqwertyuiopasdfghjklçzxcv bnmqwertyuiopasdfghjklçzxc vbnmqwertyuiopasdfghjklçzx cvbnmqwertyuiopasdfghjklçz xcvbnmqwertyuiopasdfghjklç zxcvbnmqwertyuiopasdfghjkl çzxcvbnmqwertyuiopasdfghjk lçzxcvbnmqwertyuiopasdfghj klçzxcvbnmqwertyuiopasdfgh jklçzxcvbnmqwertyuiopasdfg hjklçzxcvbnmqwertyuiopasdf ghjklçzxcvbnmqwertyuiopasd fghjklçzxcvbnmqwertyuiopas Memorial do Convento José Saramago Contextualização, análise e resumo

Upload: elsa-carvalho

Post on 28-Jan-2016

43 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

-

TRANSCRIPT

Page 1: Resumo Obra Memorial Do Convento

qwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmrtyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbnmqwertyuiopasdfghjklçzxcvbn

Memorial do Convento

José Saramago

Contextualização, análise e resumo

Page 2: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

1. Tipologia da obra — Romance histórico?

Nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, aparecem alguns romances de cunho patriótico e místico, ainda que se comece a privilegiar o romance biografista. Em meados do século XX, começamos a assistir à publicação de obras que se situam entre o romance histórico tradicional e a metaficção historiográfica pós-moderna. Nos anos 60, encontramos uma nova concepção da história, assim como uma nova visão da mesma enquanto conteúdo romanesco, explorando-se dimensões que fogem à versão oficial do passado, perspectiva que atinge a sua expressão máxima nas décadas de 80 e 90. O facto de os autores procederem a alterações à visão considerada canónica possibilita várias leituras de um determinado facto. As diferentes interpretações podem conduzir à transformação dos acontecimentos no mundo da ficção; contudo, o facto de certas personagens constituírem a representação de figuras históricas contribui para o carácter verosímil dos acontecimentos relatados. Na realidade, um romance é sempre ficção, pelo que não podemos esquecer que nele coexistem factos reais e fantasia criadora; por outro lado, o vector ideológico está, muitas vezes, presente.

Apesar do título — Memorial do Convento — alguns críticos não consideram esta obra um romance histórico, pois apesar de nele encontrarmos uma recriação fiel do passado, a perspectiva que nos é dada desse tempo surge com base no presente e os factos históricos permitem a crítica ao presente, pelo que esta obra subverte a essência daquilo que se considera o tradicional romance histórico cujo objectivo é situar o passado no passado. Na obra de Saramago, o passado salta as barreiras do tempo e torna-se actual. O narrador assume uma postura consciente da História de Portugal, evocando todos aqueles que a história não nomeou. Por outro lado, Saramago contrapõe uma outra visão da História àquela que havia sido imposta oficialmente, centrando a acção no relato dos acontecimentos realizados pelo povo, convidando-nos a uma reflexão que se opõe à aceitação dogmática da História do país.Podemos assim concluir que ainda que Memorial do Convento não possa ser considerado um romance histórico, esta obra está directamente relacionada com este tipo de texto, constituindo uma evolução do mesmo.

São vários os aspectos que, em Memorial do Convento, conduzem à recriação do passado:· A referência pormenorizada ao vestuário das personagens· A descrição exaustiva dos espaços físicos· O relato de episódios que surgem como reconstituição de acontecimentos históricos· A linguagem das personagens

2. Contextualização epocal

A acção do romance decorre no reinado de D. João V, filho de D. Pedro II e de Maria Sofia de Neubourg, nascido em Lisboa a 22 de Outubro de 1689, recebendo o nome de João Francisco António Bento Bernardo. Aclamado rei a 1 de Janeiro de 1707, casou com D. Maria Ana de Áustria a 9 de Junho de 1708. Faleceu em Lisboa, a 31 de Julho de 1750.

Page 3: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

Quando subiu ao trono, decorria a Guerra da Sucessão de Espanha. É de destacar a entrada vitoriosa de homens portugueses comandados pelo marquês de Minas em Madrid. O Tratado de Utreque, favorável a Portugal, restabeleceu a paz.Foi no seu reinado que se verificou o maior afluxo de ouro vindo do Brasil, para além do rendimento do tabaco, do açúcar e do pau-brasil, assim como o comércio de escravos. As exportações de sal e de vinho do Porto constituíam outra fonte de riqueza nacional. Contudo, este contexto não produziu efeitos duradouros. Se por um lado, D. João V (soberano absoluto cujo modelo era Luís XIV) gastou quase tudo quanto pertenceu ao Estado do rendimento das minas brasileiras, de modo a promover o seu prestígio e a manter a corte dominada pelo luxo, por outro lado, o país não dispunha de pessoas preparadas para produzir riqueza a partir daquela que entrava em Portugal. Os estrangeiros, atraídos pelo ouro, instalaram as suas indústrias no nosso país, mas muitos desses empreendimentos não floresceram devido à falta de organização económica.

A obra mais importante de D. João V foi o projecto da construção do Palácio-Convento de Mafra (o convento foi dedicado a Santo António e pertencia à Província dos Capuchos Arrábidos), o que levou à importação de técnicos estrangeiros e de obras de arte produzidas fora de Portugal, pois o país não possuía meios técnicos nem pessoas que pudessem realizar este edifício monumental.

A construção do Aqueduto das Águas Livres data também do seu reinado, ainda que não tenha sido sua a iniciativa da obra.Este período foi marcado pela acção dos estrangeirados, homens que partiam para o estrangeiro e lá aprendiam o que, mais tarde, desejavam implementar em Portugal: as novas ideiam que grassavam nos países mais evoluídos da Europa. Atribuíam o atraso do país à falta de cultura dos portugueses e acreditavam que progresso e iluminismo eram indissociáveis. Os homens cultos defendiam a experiência e o método indutivo – o padre Bartolomeu de Gusmão, incentivado por este clima, inventou a passarola. LuísAntónio Verney, com O Verdadeiro Método de estudar (1746), propôs uma reforma ao nível pedagógico. O rei revelou-se sensível às novas ideias e apoiou várias iniciativas: criou a Real Academia Portuguesa de História, que promoveu a renovação dos métodos de investigação histórica.

Finalmente, uma das instituições que marcam o reinado de D. João V é a Inquisição. A repressão fez-se sentir desde 1534, ainda que, no nosso país, a unidade católica nunca tenha sido posta em causa e as ideias de Lutero só tenham atingido um ou outro clérigo mais ávido de novidade. Assim, a luta anti-reformista foi substituída pela perseguição aos judeus, muitos deles convertidos à força. Aqueles que, apesar disso, mantinham práticas de judaísmo, eram condenados à morte e os seus bens eram confiscados. Para além desta acusação, muitas pessoas foram condenadas por feitiçaria ou corrupção de costumes. À Inquisição liga-se também a censura intelectual.O primeiro auto-de-fé realizou-se em 1541 e as execuções só terminaram no tempo do Marquês de Pombal.

Durante parte do século XVI e todo o século XVII, a Inquisição manteve Portugal afastado das ideias que brotavam na Europa, fechando-nos à inovação e ao movimento cultural que se fazia sentir lá fora.

Page 4: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

3. Estrutura da obra – acção

«Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.»

In Memorial do Convento

Este resumo da obra, que aparece na contracapa do livro e que pertence ao autor, actualiza um conjunto de fios narrativos que vão sendo, ao longo da obra, desenvolvidos e entrelaçados pelo narrador.

Assim, a intriga de Memorial do Convento, como o título indica, gira à volta da construção do Convento de Mafra e das personagens referenciais e/ou ficcionais ligadas a essa construção.

A história começa por volta de 1711, sensivelmente três anos após o casamento do rei D. João V com D. Maria Ana Josefa de Áustria, e termina vinte e oito anos depois, em 1739, aquando da realização do auto-de-fé em que morreram António José da Silva e também Baltasar Mateus.

Em Memorial do Convento, a História é recriada pela interacção de personagens reais e fictícias, podendo afirmar-se que existem três grandes linhas temáticas que estruturam a acção do romance:

A construção do Convento de Mafra, consequência de uma promessa feita pelo rei D. João V aos frades franciscanos para assegurar o nascimento de herdeiros para o trono; este acontecimento estruturante é pretexto para o escritor denunciar os comportamentos dos poderosos que provocam o sacrifício e a morte de muitos cidadãos obrigados a participar de um projecto que lhes é alheio, mas de que são os autores materiais.

A construção da passarola voadora, símbolo do desejo ancestral do homem de voar, que se converte na afirmação de que o esforço e a vontade humanos tudo conseguem (vontades dos homens aprisionadas por Blimunda que constituem a energia que faz subir a passarola).

O amor entre Baltasar (Sete-Sóis) e Blimunda (Sete-Luas), o par escolhido por Saramago para representar o povo anónimo. A sua vida e o seu trabalho diário representam também a história quotidiana de um país; o seu esforço e os poderes mágicos de Blimunda ajudam o padre Bartolomeu de Gusmão a concretizar o seu sonho.

Assim, podemos distinguir três partes, seguidas de um epílogo, na arquitectura do romance:

3.1 Capítulos I – VIII: (1711)O rei engravida a rainha, promete construir o convento;Os franciscanos ganham a guerra das influências. Frei António de S. José diz a D. João V que só terá um filho da rainha, D. Maria Ana

Josefa, que viera da Áustria havia mais de dois anos para conceder infantes para a coroa portuguesa, se o rei mandar construir um convento em Mafra. (Cap. I, pp. 13-14)

Page 5: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

O desejo de D. Maria Ana Josefa e de D. João V realiza-se finalmente: a rainha encontra-se grávida da futura princesa D. Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara. (Cap. III, p. 31)

Apresentação de Baltasar Sete-Sóis, mutilado, dirigindo-se para Lisboa, soldado numa guerra de sucessão. (Cap. IV, pp. 35, 38, 39, 40)

Em dia de auto-de-fé, o dia em que Sebastiana Maria de Jesus é condenada ao degredo para Angola, sua filha, Blimunda, conhece

Baltasar Sete-Sóis. (Cap. V, pp. 53-57) O padre Bartolomeu Lourenço pergunta a Baltasar se este o quer ajudar a construir

a passarola; Baltasar responde afirmativamente. Entretanto, dado que o padre não tem dinheiro para comprar ímanes de que necessita para continuar a obra, Baltasar vai trabalhar num açougue. (Cap. VI-VII, pp. 63-69)

A rainha dá à luz uma menina: Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara. (Cap. VII, pp. 73-74)

Nasce o segundo filho do casal real, o infante D. Pedro, que morrerá com dois anos de idade. (Cap. VIII, p. 86)

D. João V cumpre a sua palavra e, apesar da morte de Frei António de S. José, vai a Mafra escolher o local onde será construído o convento. (Cap. VIII, p. 86)

3.2 Capítulos IX – XVI: (1713-1722)Construção da passarolaConstrução do convento (secundária)Bartolomeu fora (X – XII): a família Mateus entra em contacto directo com a construção do convento;Capítulo XVI: voo da passarola, sobrevoando o convento em construção. Baltasar e Blimunda vão viver para S. Sebastião da Pedreira, para que o primeiro

possa trabalhar na passarola do padre Bartolomeu Lourenço. (Cap. IX, p. 88) O padre Bartolomeu parte para a Holanda, na esperança de conseguir éter para

que a passarola possa voar; Blimunda e Baltasar vão para Mafra (p. 100) e instalam-se em casa dos pais deste: João Francisco Sete-Sóis e Marta Maria. (Cap. X, pp. 101-104)

O padre regressa passados três anos (Cap. XI, p. 115) e, antes de ir para Coimbra, dirige-se a Mafra e pede a Baltasar e a Blimunda que voltem a Lisboa, para continuarem a construção da máquina voadora, na quinta abandonada, em S. Sebastião da Pedreira (pp. 119, 121, 123-125).

O rei D. João V procede à inauguração do início da construção do convento, colocando a primeira pedra nos alicerces do edifício (17 de Novembro de 1717). Os festejos duram uma semana (Cap. XII, pp. 130, 132-137).

O padre vai para Coimbra, para se formar em cânones, enquanto Blimunda recolhe vontades (p. 143) e Baltasar constrói a passarola (cap. XIII, p. 145).

O padre Bartolomeu regressa de Coimbra, já doutor em cânones (Cap. XIV, p. 159); Domenico Scarlatti associa-se ao projecto com a sua música (p. 171). Blimunda, a pedido do padre, vai recolher as vontades de moribundos num frasco para que depois as possa transferir para as esferas da passarola, de modo a que esta possa voar; Baltasar acompanha-a. (Cap. XV, pp. 178-179)

Blimunda adoece (Cap. XV, pp. 183-184). Domenico Scarlatti toca cravo e, ouvindo a sua música, Blimunda sente-se melhor até que se restabelece. (Cap. XV, p. 185)

Page 6: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

A passarola está concluída e pronta a voar (cap. XVI, p. 191). Mas, certo dia, o padre Bartolomeu anuncia a Baltasar e a Blimunda que têm de fugir, pois o Tribunal do Santo Ofício anda à sua procura (Cap. XVI, p. 193). Decidem, então, utilizar a máquina voadora (pp. 195-196); sobrevoam Lisboa (p. 197), passam por Mafra (p. 201) e aterram na serra do Barregudo (p. 203), perto de Monte Junto (Cap. XVI, p. 207). O padre tenta incendiar a passarola mas Baltasar impede-o de o fazer (p. 205); o padre Bartolomeu desaparece (p. 206).

3.3 Capítulos XVII – XXIV: 1723-1730:Baltasar na construção do convento;Morte de Bartolomeu anunciada pelo compositor, em 1724;Desaparecimento de Baltasar na passarola (1730). Baltasar e Blimunda vão viver para Mafra, na casa paterna (Cap. XVII, p. 210);

Baltasar trabalha na construção do convento (pp. 212-213) e, quando pode, vai ao Monte Junto ver a máquina que lá deixara coberta de ramagens secas (pp. 222, 224, 265-266). Scarlatti desloca-se a Mafra para anunciar a morte de Bartolomeu em Toledo para onde fugira para escapar ao Santo Ofício (p. 224).

D. João V diz a João Frederico Ludovice que quer ampliar o convento de oitenta para trezentos frades (Cap. XXI, p. 281), ordenando que todos os homens sejam enviados para Mafra, independentemente da sua vontade, para participarem na construção do convento (p. 291). Receoso de morrer antes da conclusão da obra, D. João V anuncia a sua sagração no dia 22 de Outubro de 1730 (p. 291).

Cortejo real e casamento dos príncipes portugueses, D. Maria Bárbara e D. José com os infantes espanhóis, D. Fernando VI e Mariana Vitória. (Cap. XXII, pp. 300, 308)

Baltasar vai ver a passarola ao Monte Junto (Cap. XXIII, pp. 333-334). Está dentro dela quando, inesperadamente, esta sobe no ar (p. 335).

Blimunda vai à serra do Barregudo procurar Baltasar, que não regressara. Encontra o lugar deserto (Cap. XXIV, pp. 340-341), mata um frade que tenta violentá-la (p. 345), e regressa a Mafra que se prepara para a sagração (p. 347).

Em Mafra, no dia 22 de Outubro de 1730, data do quadragésimo primeiro aniversário do rei, faz-se a sagração do convento (Cap. XXIV, p. 350) cujos festejos duram oito dias (p. 352).

3.4 Capítulo XXV – epílogo: errância de Blimunda até encontrar Baltasar no auto-de-fé final. Blimunda procura Baltasar, de terra em terra, durante nove anos. Finalmente, encontra-o em Lisboa, quando ali passa pela sétima vez: ardia na

fogueira do Santo Ofício durante a realização de um auto-de-fé, juntamente com outros supliciados, entre os quais António José da Silva. (Cap. XXV, pp. 356-357)

4. Personagens

As personagens da obra dividem-se em referenciais e ficcionais. As referenciais são aquelas que pertenceram efectivamente à História.

Page 7: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

Representantes da classe dominante e do alto clero, são, no entanto, objecto da sátira do autor. As ficcionais são aquelas criadas pelo autor e que, no caso presente, têm relevo superior.

4.1. D. João VD. João V representa o poder real que, de forma absoluta, condena a nação a

servir a sua religiosidade fanática e a sua vaidade. Cumpridor dos seus deveres de marido e de rei, assume apenas o papel gerativo de um filho e de um convento, numa dimensão procriadora, da qual a intimidade e o amor se encontram ausentes (pp. 11-12).

Amante dos prazeres humanos, a figura real é construída através do olhar crítico do narrador, de forma multifacetada: é o devoto fanático que submete o país inteiro ao cumprimento de uma promessa pessoal, feita para garantir a sucessão, e que assiste aos autos-de-fé (p. 51); é o marido que não evidencia qualquer sentimento amoroso pela rainha, apresentando nesta relação uma faceta quase animalesca, enfatizada pela utilização de vocábulos que remetem para esta ideia (pp. 114-115); é o megalómano que desvia as riquezas nacionais para manter uma corte dominada pelo luxo, pela corrupção e pelo excesso; é o rei vaidoso que se equipara a Deus nas suas relações com as religiosas (p. 158); é o curioso que se interessa pelas invenções do padre Bartolomeu de Gusmão (p. 162); é o esteta que convida Domenico Scarlatti a permanecer em Portugal; é o homem que teme a morte (pp. 290-291) e que antecipa a sua imortalidade através da sagração do convento no dia do seu quadragésimo primeiro aniversário (p. 352).

4.2. D. Maria Ana JosefaCasada com D. João V para procriar (pp. 11, 16-17), a rainha representa a

mulher que só através do sonho se liberta da sua condição aristocrática para assumir a sua feminilidade. Passiva, insatisfeita, vive um casamento baseado na aparência, na sexualidade reprimida e num falso código ético, moral e religioso. A transgressão onírica é a única expressão da rainha que sucumbe, posteriormente, ao sentimento de culpa. A pecaminosa atracção incestuosa que sente por D. Francisco (p. 32), seu cunhado, conduzem-na a uma busca constante de redenção através da oração e da confissão. A rainha vive num ambiente repressivo, cujas proibições regem a sua existência e para a qual não há fuga possível, a não ser através do sonho (p. 116), onde pode explorar a sua sensualidade. Consciente da virilidade e da infidelidade do marido (abundam os filhos bastardos), assume uma atitude de passividade e de infelicidade perante a vida.

4.3. Baltasar Sete-SóisBaltasar Mateus é um dos membros do casal protagonista da narrativa e

representa a crítica do narrador à desumanidade da guerra, uma vez que participa na Guerra de sucessão (1704-1712) e, depois de perder a mão esquerda (p. 35), é banido do exército.

Personagem construída enquanto arquétipo da condição humana, Baltasar Sete-Sóis é um homem pragmático e simples, que assume o papel de demiurgo na construção da passarola, ao realizar o sonho de Bartolomeu de Gusmão (p. 69).

Page 8: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

Participa na construção do convento (pp. 242-243) e partilha, através do silêncio, a vida de Blimunda Sete-Luas (p. 56). Sucumbe às mãos da Inquisição (p. 359).

4.4. Blimunda Sete-LuasA propósito desta personagem, José Saramago afirmou, no Jornal de Letras nº

410, de 15/05/1990:«Blimunda – Um nome habitado pelo som desgarrador do violoncelo. Muitas vezes me perguntei: porquê este nome? Recordo-me de como o encontrei, percorrendo com um dedo minucioso, linha a linha, as colunas de um vocabulário onomástico, à espera de um sinal de aceitação que haveria de começar na imagem decifrada pelos olhos para ir consumar-se, por ignoradas razões, numa parte adequadamente sensível do cérebro. Nunca, em toda a minha vida, nestes quantos milhares de dias e horas somados, me encontrara com o nome de Blimunda, nenhuma mulher em Portugal, que eu saiba, se chama hoje assim. Tão-pouco é verificável a hipótese de tratar-se de um apelativo que em tempos tivesse merecido o favor da família e depois caísse em desuso: nenhuma personagem da História do meu país, nenhuma heroína de romance ou figura secundária levou alguma vez tal nome, nunca estas três sílabas foram pronunciadas à beira de uma pia baptismal ou inscritas nos arquivos do registo civil. Também nenhum poeta, tendo de inventar para a amada um nome secreto, se atreveu a chamar-lhe Blimunda.Tentando, nesta ocasião, destrinçar aceitavelmente as razões finais da escolha que fiz, seria uma primeira razão a de ter procurado um nome estranho e raro e dá-lo a uma personagem que é, em si mesma, estranha e rara. De facto, essa mulher a quem chamei Blimunda, a par dos poderes mágicos que transporta consigo e que por si só a separam do mundo, está constituída, enquanto pessoa configurada por uma personagem, de maneira tal que a tornaria inviável, não apenas no distante século XVIII em que a pus a viver, mas também no nosso próprio tempo. Ao ilogismo da personagem teria de corresponder, necessariamente, o próprio ilogismo do nome que lhe ia ser dado. Blimunda não tinha outro recurso que não chamar-se Blimunda. Ou talvez não seja apenas assim: regressando ao vocabulário, e mesmo sem recair em excessos de minúcia, posso observar como abundam os nomes de pessoas extraordinárias e extravagantes, que ninguém hoje quereria usar e antes só excepcionalmente, e contudo não foi nenhum deles que escolhi: rareza e estranheza seriam, afinal, condições suficientes.Que outra condição, então, que razão profunda, porventura sem relação com o sentido inteligível das palavras, me terá levado a eleger esse nome entre tantos? Creio que sei hoje a resposta, que ela acaba de ser apontada por esse outro misterioso caminho que terá levado Azio Corghi a denominar Blimunda uma ópera extraída de um romance que tem por título Memorial do Convento: essa resposta, essa razão, acaso a mais secreta de todos, chama-se Música. Terá sido, imagino, aquele som desgarrador do violoncelo que habita o nome de Blimunda, profundo e longo, como se na própria alma humana se produzisse e se manifestasse, que me levou, sem nenhuma resistência, com a humildade de quem aceita um dom de que não se sente merecedor, a recolhê-lo num simples livro, à espera, sem o saber, de que Música viesse recolher o que é sua exclusiva pertença: essa vibração última que está contida em todas as palavras e em algumas magnificamente».

Page 9: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

Blimunda é o segundo membro do casal protagonista da narrativa (pp. 55-56). Sensual e inteligente, Blimunda vive sem subterfúgios, sem regras que a condicionem e escravizem. Dotada de poderes invulgares (pp. 79-80), como a mãe, escolhe Baltasar para partilhar a sua vida, numa existência de amor pleno, de liberdade, sem compromissos e sem culpa (p. 53).

Blimunda representa o transcendente e a inquietação constante do ser humano em relação à morte (pp. 129-131), ao amor (p. 141), ao pecado e à existência de Deus. O seu dom particular transfigura esta personagem, aproximando-a da espiritualidade da música de Scarlatti (p. 187) e do sonho de Bartolomeu de Gusmão. Ao visualizar a essência dos que a rodeiam, Blimunda transgride os códigos existentes e percepciona a hipocrisia e a mentira que subjazem aos comportamentos estereotipados, condicionados pelos dogmas estabelecidos que corporizam os falsos conceitos morais.

4.5. Bartolomeu de GusmãoBartolomeu de Gusmão representa as novas ideias que causavam estranheza

na inculta sociedade portuguesa. Estrangeirado, torna-se um alvo apetecido da chacota da corte e da Inquisição, apesar da protecção real.Homem curioso e grande orador sacro — a sua fama aproxima-o do Padre António Vieira — (p. 93), evidencia, ao longo da obra, uma profunda crise de fé a que as leituras diversificadas e a postura “antidogmática” não são alheias, numa busca incessante de saber (pp. 61-62).

A sua personagem risível – era conhecido por Voador (p. 61) – torna-o elemento catalisador do voo da passarola, conjuntamente com Baltasar e Blimunda. Esta tríade (pp. 146-147) corporiza o sonho e o empenho tornados realidade (pp. 197-198), a par da desgraça, também ela partilhada: loucura e morte, em Toledo, de Bartolomeu de Gusmão (p. 226), morte de Baltasar no auto-de-fé e solidão de Blimunda.

4.6. Domenico ScarlattiScarlatti personifica a arte (pp. 162-163) que, aliada ao sonho, permite a cura

de Blimunda (pp. 186-187) e possibilita a conclusão e o voo da passarola (p. 173).

4.7. PovoO verdadeiro protagonista de Memorial do Convento é o povo trabalhador.

Espoliado, rude, violento, o povo atravessa toda a narrativa numa construção de figuras que, embora corporizadas por Baltasar e Blimunda, tipificam a massa colectiva e anónima que construiu, de facto, o convento (pp. 244-245).

A crítica e o olhar mordaz do narrador enfatizam a escravidão a que foram sujeitos quarenta mil portugueses (pp. 293-295), para alimentar o sonho de um rei megalómano ao qual se atribui a edificação do Convento de Mafra. A necessidade de individualizar personagens que representam a força motriz que erigiu o palácio-convento, sob um regime opressivo, é a verdadeira elegia de Saramago para todos aqueles que, embora ficcionais, traduzem a essência de ser português (pp. 255-256).

Page 10: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

4.8. CleroA crítica subjacente a todo o discurso narrativo enfatiza a hipocrisia e a

violência dos representantes do espiritualismo convencional, da religiosidade vazia, baseada em rituais que, ao invés de elevarem o espírito, originam o desregramento, a corrupção e a degradação moral (é relevante, neste contexto, o papel da Inquisição).

5. Espaço

5.1. Espaço físicoSão dois os espaços físicos nos quais se desenrola a acção: Lisboa e Mafra.

Lisboa, enquanto macro-espaço (pp. 40-41), integra outros espaços, a saber:o Terreiro do Paço : local onde Baltasar trabalha num açougue, após a sua chegada a

Lisboa (p. 71).o Rossio : local onde decorre o auto-de-fé (p. 50).o S. Sebastião da Pedreira : espaço relacionado com a passarola do padre Bartolomeu

de Gusmão e ligado, assim, ao carácter mítico da máquina voadora (pp. 65-67). Na época, era um espaço rural, onde existiam várias quintas que integravam palacetes.

Mafra é o segundo macroespaço (pp. 110-111). Até à construção do convento, a vida de Mafra decorria na vila velha e no antigo castelo, próximo da igreja de Sto. André. A Vela foi o local escolhido para a construção do convento (p. 110), que deu lugar à vila nova, à volta do edifício. Nas imediações da obra, surge a “Ilha da Madeira”, onde começaram por se alojar dez mil trabalhadores, ascendendo, mais tarde, a quarenta mil.

Além de Mafra, são ainda referidos espaços como Pêro Pinheiro, a serra do Barregudo, Monte Junto e Torres Vedras.

As menções ao Alentejo evidenciam um espaço povoado de mendigos salteadores. Este espaço é percorrido por Baltasar quando regressa da guerra de Sucessão e, mais tarde, pelo cortejo real, através do olhar de João Elvas, aquando do casamento de D. José e de D. Maria Bárbara com os príncipes espanhóis, realçando-se a miséria e a penúria dos que aí vivem (pp. 37-38, 300-317).

5.2. Espaço socialO espaço social é construído, na obra, através do relato de determinados

episódios e do percurso de personagens que tipificam um determinado grupo social, caracterizando-o.

5.2.1. Procissão da Quaresma (pp. 27-30) Caracterização da cidade de Lisboa; Excessos praticados durante o Entrudo (satisfação dos prazeres carnais) e

brincadeiras carnavalescas (p. 27); Penitência física e mortificação das almas após os desregramentos durante o

Entrudo (p. 28); Descrição da procissão; Manifestações de fé que raiavam a histeria (autoflagelação);

Page 11: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

Apesar da tentativa de purificação através do incenso, Lisboa permanecia uma cidade suja, caótica e as suas gentes eram dominadas pela hipocrisia de uma alma que, ironicamente, define como perfumada.

5.2.2. Autos-de-fé (Rossio) (pp. 50-54) A população em festa acorre em massa aos autos-de-fé; O narrador critica a ignorância de um povo que revela um gosto sanguinário e

procura emoções fortes para preencher o vazio da sua existência; A assistência feminina aproveita a ocasião para se entregar a jogos de sedução; A morte constitui motivo para ambiente de festa; Saída da procissão; Distinção entre os vários sentenciados; Início da relação entre Baltasar e Blimunda; Execução das sentenças pelo Santo Ofício.

5.2.3. Tourada (Terreiro do Paço) (pp. 98-102) Tratamento cruel dos animais; O povo exaltado liberta-se de inibições; A ironia do narrador traduz-se pela constatação de que, em Lisboa, as pessoas

não estranham o cheiro a carne queimada e que a morte dos judeus é positiva, pois os seus bens revertem para a Coroa.

5.2.4. Procissão do Corpo de Deus (pp. 148-159) Preparação da procissão:

o Descrição dos preparos da festa pelo narrador que assume o olhar do povo;o Referência à assistência feminina;o À noite, improvisa-se uma tourada;o De madrugada, reúnem-se os elementos da procissão.

Realização da procissão:o Descrição do aparato;o Crítica do narrador às crenças e interditos religiosos, à vida dissoluta do rei;o Visão da procissão como forma de purificar a alma;o Histeria colectiva – autoflagelação.

As procissões e os autos-de-fé caracterizam Lisboa como um espaço caótico, dominado por rituais religiosos cujo efeito exorcizante esconjura um mal momentâneo que motiva a exaltação absurda dos habitantes.

A desmistificação dos dogmas e a crítica do narrador ao clero subjazem ao ideal marxista que condena a religião enquanto “ópio do povo”, isto é, condena-se a visão redutora do mundo apresentada pela igreja, que condiciona os comportamentos, manipula os sentimentos e conduz os fiéis a atitudes estereotipadas.

A violência destes espectáculos apraz ao povo que, absurdo e ignorante, se diverte com as imagens de morte, esquecendo a miséria em que vive.

A capital simboliza, assim, o espaço infecto, alimentado pelo ódio aos judeus e aos cristãos-novos, pela corrupção eclesiástica, pelo poder repressivo e hipócrita do Santo Ofício e pelo poder autocrático do rei.

Page 12: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

5.2.5. Trabalho no conventoMafra simboliza o espaço da servidão desumana a que D. João V sujeitou os

seus súbditos para alimentar a sua vaidade. Vivendo em condições deploráveis, os milhares de trabalhadores foram obrigados, à força de armas, a abandonar as suas casas e a erigir o convento para cumprir a promessa do seu rei e aumentar a sua glória (pp. 215-217).

5.2.6. Miséria no AlentejoO Alentejo associa-se à fome e à miséria daqueles que, longe da capital, lutam

pela sobrevivência e, por vezes, se entregam a comportamentos imorais. Destaca-se, no início da obra, a referência aos salteadores (p. 36).

5.2.7. Cortejo real (Alentejo)A descrição do cortejo realça o contraste entre a opulência do rei e a miséria do

povo, a desigualdade entre ricos e pobres (pp. 305, 317).

5.3. Espaço psicológicoÉ constituído pelo conjunto de elementos que traduz a interioridade das

personagens: os sonhos (p. 17, 32, 106-107) e os pensamentos (pp. 117- 118).

6. Tempo

6.1. Tempo históricoLogo no início do romance, podemos inferir que a acção começa no ano de

1711 (p. 21).

Referências cronológicas: 1717: bênção da primeira pedra 1719: casamento de D. José com Mariana Vitória e de Maria Bárbara com D.

Fernando (VI de Espanha) 1730: 22 de Outubro, quadragésimo primeiro aniversário do rei e sagração do

convento de Mafra

6.2. Tempo diegético (da história)Trata-se do tempo em que decorre a acção e é constituído por algumas datas

fundamentais. A acção decorre em 1711. D. João ainda não fizera 22 anos e D. Maria Ana Josefa chegara havia mais de dois anos da Áustria.

O fluir do tempo, mais do que através da recorrência a marcos cronológicos específicos, é sugerido pelas transformações sofridas pelas personagens (p. 328) e por alguns espaços e objectos ao longo da obra (p. 143):

1717: Baltasar e Blimunda regressam a Lisboa para trabalhar na passarola com Bartolomeu.

1739: Blimunda vê Baltasar a ser queimado em Lisboa.Muitas vezes, a passagem do tempo é anunciada por situações precisas ou por

referências temporais: tendo partido daqui há vinte e dois meses (pp. 72); meses inteiros se passaram desde então, o ano é já outro (p. 77); entretanto, nasceu o infante D. Pedro (p. 88); três anos inteiros haviam passado desde que partira (p. 117); há seis

Page 13: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

anos que vivem como marido e mulher (p. 130); seis anos de casos acontecidos (p. 134); e já vão onze anos passados (p. 162); passaram catorze anos (p. 214); já lá vão oito anos, foi lançada a primeira pedra (p. 231)

6.3. Tempo do discursoO tempo do discurso é revelado através da forma como o narrador relata os acontecimentos. Pode apresentá-los de forma linear, ou optar por retroceder no tempo ou antecipar situações em relação ao momento da narrativa.

6.3.1. AnalepsesAs analepses explicam acontecimentos anteriores, contribuindo para a coesão da narrativa. Assinale-se, anteriormente ao ano de início da acção (1711) a analepse que explica, em parte, a construção do convento como consequência do desejo expresso pelos franciscanos, em 1624, de construírem um convento em Mafra.

6.3.2. ProlepsesAs prolepses antecipam os acontecimentos e servem os seguintes objectivos:A crítica social: é o caso das prolepses que dão a conhecer as mortes do

sobrinho de Baltasar e do infante D. Pedro, de forma a revelar o contraste entre os dois funerais, ou a morte de Álvaro Diogo que viria a cair de uma janela, durante a construção do convento, ou ainda a informação sobre os bastardos que o rei iria gerar, filhos das freiras que seduzia.

A visão globalizante de tempos distintos por parte do narrador (tempo da história e tempo da escrita): referências aos cravos, outrora na ponta das varas dos capelães, mais tarde símbolo da revolução de Abril; voos da passarola e ida do homem à lua; alusão às diversões do século XVII e às do século XX.

7. Narrador e focalização

7.1. Tipos de narradorEm Memorial do Convento, o narrador é, geralmente, heterodiegético, ou seja,

é exterior à história que assume a função de relatar os acontecimentos. Surge normalmente na terceira pessoa, podendo, por vezes, assumir a primeira pessoa do plural, identificando-se então com as outras personagens (p. 35). Por vezes, a voz do narrador heterodiegético confunde-se com o pensamento de outra personagem (p. 36). Noutros momentos, ainda, a voz do narrador junta-se à de outras personagens, em substituição do discurso directo (p. 90).

7.2. Focalização da narrativa7.2.1. Omnisciente

O narrador tem um conhecimento absoluto dos eventos e fornece, sobre eles, as informações necessárias para que a história se revista de uma coerência intrínseca. Funciona como um deus, que tudo vê e tudo sabe.

Nesta obra, trata-se de um saber que implica não só a transcendência em relação a todas as personagens como uma perspectiva tridimensional do tempo – presente, passado e futuro – a que está subjacente uma visão integrada dos acontecimentos e a inscrição dos fenómenos narrados numa determinada cultura,

Page 14: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

transversal a um conhecimento global da História. É este conhecimento que permite ao narrador seguir eventos ocorridos em tempos diferentes, estando presente ao nível do tempo da história e, simultaneamente, num tempo posterior, o do discurso ou da enunciação.

7.2.2. InternaInstaura-se o ponto de vista de uma das personagens que vive a história.Neste romance, é a perspectiva de determinada personagem que nos é

apresentada, acontecendo ser esta que relata os acontecimentos: Sebastiana de Jesus (pp. 52-53) ou Baltasar (p. 217).

7.2.3. InterventivaEsta focalização surge com a função de comentário, aliada à adesão ou rejeição

de comportamentos ou formas de estar das personagens e apresenta, geralmente, uma função ideológica. Em determinados momentos, encontramos uma focalização interventiva quando o narrador tece comentários com carácter valorativo a propósito dos eventos narrados (p.123- 124); quando os comentários do narrador traduzem a voz do povo, assumindo o seu registo de língua (pp. 31, 229); quando recorre a aforismos (pp. 27, 268, 287, 298, 306, 325, 346) e quando as intervenções surgem como prolepses, antecipando acontecimentos (pp. 213-214).

8. Dimensão simbólica das personagens

8.1. Baltasar Sete-Sóis / Blimunda Sete-LuasO discurso ficcional de Saramago evidencia a perspectiva histórica do narrador,

enfatizando a ironia e a crítica social que advém de um retrato fiel, porém subjectivo, da realidade portuguesa, em pleno século XVIII.

A narrativa fundamenta-se numa estrutura poliédrica que reflecte as várias e sucessivas imagens que se ligam entre si numa relação interdinâmica de continuidade e de completude.

Ao nível das personagens, mencionemos os heróicos Baltasar e Blimunda: soldado regressado da frente da batalha, apresenta uma deformidade física que, em termos simbólicos, o une a Blimunda, diferente dos outros pela sua capacidade de olhar para dentro das pessoas. Com efeito, a diairese de Baltasar marca a sua entrada num universo saturnino e infernal do qual só sairá após a conclusão do seu percurso ascensional, conquistando, através do voo, a assunção da sua identidade.

Enquanto herói, Baltasar revela características picarescas1 que o tornam simpático para o leitor e grado ao narrador.

A sua condição de homem simples e pragmático, aliada à incapacidade de questionar os dogmas estabelecidos, faz dele o demiurgo, por excelência, aquele que cria a passarola, partindo do esquema informe do padre Bartolomeu, conferindo-lhe a forma que, simbolicamente, a une à liberdade e à morte. De facto, podemos considerar que Baltasar, qual Ícaro2, ousou aproximar-se demasiado do sol sofrendo a

1 Pícaro – personagem dos romances espanhóis que se caracteriza pela astúcia, aparentando

por vezes um aspecto ridículo ou estranho.2 Filho de Dédalo, foi aprisionado, com o pai, no labirinto de Creta. Dédalo fabricou asas com penas unidas por cera para que pudessem escapar. Antes do início do voo, Dédalo recomendou a Ícaro que não se aproximasse do Sol. Todavia, ao sentir a liberdade do voo, esqueceu o aviso paterno e subiu cada vez

Page 15: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

queda definitiva que o conduziu à morte na fogueira. Se esta personagem evidencia contornos que a tornam elo de ligação entre o universo simbólico e o universo judaico-cristão (não esqueçamos que Baltasar participa na criação da passarola e na construção do convento), funciona também como elemento catalisador da loucura de Bartolomeu de Gusmão e da aceitação tácita de Blimunda. A sua relação amorosa é baseada no silêncio, no consentimento mútuo e implícito de ambos numa vida em comum, num insofismável querer ser, isto é, a relação de completude que os une torna-os imunes ao meio que os rodeia, defende-os das superstições, fortalece-os contra medos e temores que se recusam a aceitar, mais por galhardia que por receio.

Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas simbolizam a dualidde cíclica que, harmonicamente, realiza a cosmogonia universal (o dia e a noite) e representam o andrógino primordial3. De facto, se pensarmos nas personagens e nos nomes que as representam, podemos constatar que a complementaridade Sol/Lua, dia/noite, luz/sombra enfatiza a alternância do mundo, numa clara acepção de essência dicotómica que une os opostos, nomeadamente, o universo divino e o universo humano.

8.2. Padre Bartolomeu Lourenço de GusmãoPadre oratoriano, Bartolomeu representa simbolicamente um ser fragmentário,

dividido entre a religião e a alquimia. Simboliza, ao longo dos dezoito capítulos, o conflito interior motivado pela constante demanda de um saber que o levará à subversão dos dogmas religiosos e, posteriormente, à morte. Assumindo na verdadeira acepção da palavra o mito prometeico4, revela o seu pensamento dialéctico no plano da passarola que congrega em si o princípio de um barco e o princípio da ave que voa.

A busca incessante do meio que fará voar a passarola leva o padre a enveredar pelo estudo das antigas teorias medievais da física, unindo-as às novas descobertas científicas que impregnam a Europa.

Humanista, procura aliar o pensamento científico à realidade religiosa que conhece e será na Holanda que os seus princípios escolásticos desaparecerão definitivamente (através da desmistificação da quinta essência, o éter), para dar lugar ao elemento espiritual divino, isto é, a vontade humana. Ao aplicar os conhecimentos mecanicistas da razão e da técnica, ultrapassa a época a que pertence e evidencia, apesar da diferença temporal de dois séculos, os princípios do existencialismo defendidos por Nietzsche e Heidegger. Com efeito, Bartolomeu simboliza a aspiração humana que está subjacente ao voo da passarola através das vontades que, numa perspectiva sociológica, substituem o dogmatismo religioso, e a sua atitude está na génese da evolução da humanidade. Ao substituir a vontade divina pela vontade humana, Bartolomeu humaniza a acção, conferindo sacralidade ao acto humano de construir e de sonhar.

mais; os raios solares derreteram a cera e provocaram a sua queda no mar Egeu.3 União do elemento masculino (andro) com o feminino (gino). De acordo com a Teogonia, de Hesíodo, o andrógino primordial é uma figuração da unidade fundamental que congrega em si os opostos, simbolizando assim a totalidade e a perfeição espiritual.4 Prometeu representa, simbolicamente, a criação evolutiva, isto é, a assunção da consciência. Mitologicamente, remete para a figura que roubou a Zeus o fogo sagrado (símbolo do conhecimento e da vida), para o dar aos homens de barro que havia moldado. Castigado por Zeus, Prometeu, acorrentado a um rochedo, sentia, diariamente, o seu fígado ser devorado por uma águia. O acto de Prometeu simboliza a revolta do espírito que, procurando igualar-se ao espírito divino, triunfa numa nova fase evolutiva, através da vontade individual.

Page 16: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

8.3. Domenico ScarlattiScarlatti representa simbolicamente o transcendente que advém da música e

que, ligado à clarividência de Blimunda, instaura o domínio do maravilhoso na obra Memorial do Convento.

Duplo especular de Bartolomeu de Gusmão, simboliza a ascensão do homem através da música, numa clara união entre a acção e o pensamento.

É, aliás, esta capacidade que lhe permite compreender o sonho de Bartolomeu e aceitar o par Blimunda /Baltasar. Pela sensibilidade criadora e pela técnica de execução, esta personagem liga-se ao mito órfico e contribui para a criação do universo encantatório que cura Blimunda. Com efeito, partilhará o sonho do trio e morrerá, metaforicamente, após o voo da passarola, uma vez que destrói o cravo que o ligava explicitamente à tríade construtora e, implicitamente, ao interdito, isto é, ao sonho de voar. Tornando-se ele próprio a melodia que executa, Scarlatti acompanhará espiritualmente o voo da passarola e assistirá à reinstalação de uma realidade representada pela autoridade real e pelo poder da Inquisição.

9. Elementos simbólicos

9.1. SeteRepresentando simbolicamente a totalidade do universo em movimento, o sete

é o somatório dos quatro pontos cardeais com a trindade divina. A sua presença, no nome das personagens Baltasar e Blimunda, tem um significado dual, uma vez que se liga à mudança de um ciclo e à renovação positiva, cujo resultado será a construção da passarola. Com efeito, o par representa a alteridade cíclica que subjaz à harmonia cosmogónica (o dia e a noite); assim, a sua união perfeita simboliza o acesso a um outro Poder que representa, metaforicamente, a Totalidade.

9.2. NoveO nove representa, simbolicamente, a gestação, a renovação e o renascimento.Se atentarmos no percurso de Blimunda, podemos constatar que esta procura

Baltasar durante nove anos. A sua separação de Baltasar originou a fragmentação da unidade representada pelo par. Assim, a sua demanda pela completude corresponde não a um período de gestação, mas a um período de redenção, findo o qual será restabelecida a ordem cósmica e a Unidade – é a ela que pertence a vontade de Baltasar no momento em que morre, queimado na fogueira da Inquisição.

9.3. PassarolaConcebida como uma barca voadora, a passarola simboliza o elo de ligação

entre o Céu e a Terra. Símbolo dual, a passarola encerra, na sua concepção, o valor de dois símbolos que, aparentemente, se opõem: a barca e a ave. Todavia, se pensarmos que a barca remete para a viagem e a ave remete para a liberdade, concluímos que a passarola, pelo seu movimento ascensional, representa metaforicamente a alma humana que ascende aos céus, numa ânsia de realização que a liberta do universo canónico e dogmático dos homens.

Assim, a passarola simboliza a libertação do espírito e a passagem a um outro estado da existência.

Page 17: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

10. Linguagem e estilo

10.1. Figuras de estilo10.1.1. A metáfora:«mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga» (p. 27)«olharem-se era a casa de ambos» (p. 111)

10.1.2. A ironia (p. 11), (pp. 15-16), (p. 153)Em determinados momentos, a visão crítica do narrador é acompanhada de

uma ironia que perpassa todo o relato (auto-de-fé ou procissões).

10.1.3. A hipálage«a regalar a vista sôfrega nas grandes peças de carne (p. 42)

10.2. Utilização do registo de língua familiar e popular(com sentido irónico e crítico ou como forma de tradução do estrato social da personagem)“Emprenhar”, “safo”, “vossemecê” (pp. 11, 38, 40)

10.3. Oposições sugeridas por vocábulos antónimos para sugerir as diferenças entre os ricos e os pobres (p. 27)

10.4. Formas verbais O gerúndio (p. 50) O presente do indicativo (p. 39) transporta o leitor para o tempo da narrativa O modo imperativo, numa reminiscência da oratória barroca (p. 308).

10.5. Construção frásica Frases longas que surgem numa aproximação ao discurso oral ou como tradução

do monólogo interior e da celeridade de pensamento (pp. 94, 131) Paralelismo de construção (p. 26) Polissíndeto (p. 99 e pp. 112-113) A enumeração (p. 335) Ausência de sinais gráficos indicadores de diálogo: é a vírgula que separa as falas

das personagens e desaparecem os pontos de exclamação e de interrogação. Hibridismo de tipologias discursivas: utiliza o discurso directo, indirecto e indirecto

livre, mas sem proceder às demarcações tradicionais ao nível gráfico (dois pontos seguidos de travessão) e lexical (verbos como perguntar, responder, declarar ,…)

Page 18: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

RESUMO DOS CAPÍTULOS

PrimeiroD. João V está casado com D. Maria Ana Josefa há mais de dois anos, mas ela

ainda não engravidou (p. 11).A rainha reza novenas e, duas vezes por semana, recebe o rei em seus

aposentos.É preciso dizer aqui que o rei, quando ambos se casaram, dormia com ela todos

os dias, mas resolveu separar os aposentos por causa de um cobertor de penas de ganso que ela trouxe da Áustria, e, com o passar do tempo, somando-se a ele humores de ambos, passou a ter cheiro insuportável (p. 15).

O rei não fez ainda 22 anos e monta, para se distrair e porque gosta, a réplica da Basílica de S. Pedro.

D. João dirige-se para os aposentos da rainha mas o narrador informa-nos que chegou ao castelo D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Afirma o bispo que o frei António de São José assegurou que se o rei se dignasse a construir um convento em Mafra, teria descendência (p. 14).Enquanto isso, a rainha conversa com a marquesa de Unhão, rezam e proferem nomes de santos. Saído o bispo e o frei, o rei anuncia-se (p. 15).

D. Maria tem que "guardar o choco", a conselho dos médicos e murmura orações, pedindo ao menos um filho que seja. Sonha com o infante D. Francisco, seu cunhado, e dorme em paz (p. 17).

D. João também sonhará esta noite com os seus descendentes, com o filho que poderá advir da promessa da construção do convento de Mafra. Um convento, conforme disse frei António de S. José, só para franciscanos (p. 18).

SegundoAqui, o narrador fala sobre determinados milagres ocorridos em Lisboa (p. 19) e

enfatiza que Lisboa é terra de ladrões. Um caso narrado é o de ladrões que foram roubar a igreja de S. Francisco. O narrador faz-nos desconfiar que um estudante, apesar de querer ser padre, fora o autor do furto e que, arrependido, deixara lá as lâmpadas, posto não ter coragem de restituí-las pessoalmente.

Voltaram as lâmpadas a S. Francisco de Xabregas...O narrador faz-nos de novo desconfiar de que o frei, através do confessor de D.

Maria Ana, tinha sabido da gravidez da rainha bem antes do rei (p. 26): D. Maria Ana foi usada para que os franciscanos obtivessem a construção do Convento em Mafra.

TerceiroEm Lisboa, há quem morra por comer muito e não falta quem morra por comer

pouco. A cidade é uma pocilga, imunda, cheia de lixo, gatos e cães abandonados, atapetada de excrementos. Foi-se o Entrudo (festas pagãs assemelhadas ao Carnaval), ocasião em que as pessoas comeram sem parar, e inicia-se a Quaresma, tempo de martirizar o corpo físico:

Os homens vão à procissão e as mulheres ficam à janela.Enquanto o povo se diverte (!) com tal procissão, o narrador faz digressões

sobre os adúlteros e infiéis, sobretudo adúlteras e disso está excluída a rainha que está grávida (p.31).

Page 19: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

Depois de rezar, D. Maria Ana, acompanhada das damas, começa a adormecer. Sonha com o sudário e quando adormece profundamente aparece-lhe o cunhado Francisco, montado em um cavalo enfeitado, voltando da caça (p. 32).

QuartoCom desparelhadas vestes, sem a mão esquerda, Baltasar não se dobrara:

mandara fazer um gancho e um espigão, que leva no alforge: em dados momentos, sente que ainda tem a mão e, por isso, se sente mais livre e feliz. (p. 37).

A caminho de Lisboa, passa por Pegões e ali matará um homem. De barco, terminou o percurso e chegou a Lisboa, finalmente. O cais imundo, com seus cheiros, aguça os sentidos de Baltasar e torce-lhe o estômago, mas ele tem esperanças de que o indemnizem pela mão perdida. De longe, vê o palácio de D. João V e vendo passar as pessoas, dá-lhe uma enorme saudade da guerra. Andou por bairros e praças e, por fim, à tarde, foi beber um caldo à portaria do convento de São Francisco.

Conhece João Elvas, soldado como ele, um pouco mais velho. Ambos pobres, perdidos por Lisboa, procuram um lugar para dormir: dormiram entre homens, uns temendo os outros, contando casos de assassinatos e mortes.

QuintoD. Maria Ana está de luto pela morte do irmão José, Imperador da Áustria, que

morreu de varíola. Apesar de grávida de cinco meses, sangraram-na três vezes e deixaram-na tão debilitada a ponto de estar abatida.

O palácio também está triste, o rei declarou luto oficial; mas a cidade está alegre (p. 50) pois hoje vai haver um auto-de-fé. O rei janta na Inquisição com os irmãos, os infantes, mas a rainha, pelo motivo exposto, não participa da festa. Abunda a comida, o rei é sóbrio e não bebe vinho (p. 51).

Descreve-se a procissão do auto-de-fé e aqui se encontram, pela primeira vez juntas, as três personagens protagonistas deste romance: Baltasar, Blimunda e Bartolomeu de Gusmão. Em casa de Bilmunda, o padre abençoa o casal e sai. De manhã, Blimunda come pão em jejum e jura que nunca olhará Baltasar por dentro.

SextoO narrador fala sobre comer pão e de como, em Portugal, não há trigo que

baste ao perpétuo apetite de pão dos portugueses. Corre um boato de que os franceses estão para invadir Portugal, mas chega, na verdade, uma frota francesa trazendo bacalhau, o que andava em falta. Baltasar imagina como se sentem os soldados que esperavam pela batalha, sente saudades da guerra, mas imagina que se para lá fosse teria muitas saudades de Blimunda, de quem ainda não consegue decifrar a cor dos olhos.

Apresenta-se "O Voador": o padre está dividido entre a fé e a ciência. Protegido do rei, intercede a favor de Baltasar para lhe obter uma pensão de guerra. Bartolomeu de Gusmão, brasileiro que veio estudar para Portugal e que, pela sua genialidade e inteligência, ficou de todos conhecido e admirado. É a chacota da corte. Incompreendido, teme o Santo Ofício, por isso tem amizades que o defendam e é cheio de precauções.

Baltasar pergunta-lhe acerca do mistério de Blimunda mas Bartolomeu não lhe revela o mistério e convida Baltasar a construir a sua "passarola".

Page 20: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

SétimoO padre arranjou emprego para Baltasar, enquanto não pode, por falta de

dinheiro, continuar a construir a passarola. Sete-Sóis trabalha num açougue do Terreiro do Paço, transportando peças de carne às costas. Podem, então, ele e Blimunda, comer melhor, com o que ganha de resto. D. Maria Ana está no fim da gravidez, bojuda "como uma nau da Índia". Holandeses invadem Pernambuco, naus trazem carregamento da China, há lutas no Recife, mas nada disso interessa à rainha que "está flutuando, indiferente, no seu torpor de grávida". O narrador anuncia-nos que "D. João V vai ter de contentar-se com uma menina."

Baptizaram a princesa, no dia de Nossa Senhora do Ó, sete bispos e "ficou a chamar-se Maria

Xavier Francisca Leonor Bárbara, logo ali com o título de Dona adiante, apesar de tão pequena ainda, está ao colo, baba-se e já é dona (...) Do tio e padrinho, D. Francisco, ganhou uma cruz de brilhantes, pouco, perto do que a mãe recebera do cunhado: brincos de diamantes, de alto valor.

Baltasar e Blimunda foram ver a festa, ele mais cansado, de tanto carregar tanta carne para o banquete; Blimunda segura-lhe a mão direita. Frei António morrera pouco antes, sem ter visto o fruto de sua premonição.

OitavoA união de Baltasar e Blimunda assenta no amor, na ausência de convenções,

ao contrário da do casal real. Estamos no ano de 1712 e Baltasar esconde o pão para descobrir o mistério de Blimunda: consegue olhar por dentro das pessoas, caso esteja em jejum (p. 76). No dia seguinte, Blimunda indica o lado de dentro das pessoas: uma mulher com uma criança no ventre, mas o bebé tem duas voltas do cordão enrolado no pescoço; vê um peixe gigante, fossilizado, sob o granito, um frade com suas bichas. E indica-lhe um lugar, onde pede que ele cave com o gancho, à procura da moeda que ali se encontra.

Da tença que pediu ao padre Bartolomeu, nada de notícias ainda; e sabe que o mandarão embora do açougue logo que possam se livrar dele; restará, no entanto, a portaria dos conventos onde se oferecem caldos: é difícil morrer de fome em Lisboa.O infante D. Pedro é nascido e quatro bispos o baptizaram.

O rei vai a Mafra escolher o local para o convento prometido.

NonoBlimunda e Sete-Sóis foram trabalhar na quinta do duque de Aveiro, em S.

Sebastião da Pedreira, a pedido do padre. Blimunda ajuda Baltasar no seu trabalho e é baptizada Sete-Luas pelo padre que vem por lá a experimentar para aquelas paredes os sermões que compõe. O padre observa que precisa construir ali uma forja para que possam fundir os ferros e decide ir à Holanda buscar o éter indispensável ao voo da passarola.

Montou na mula e partiu. Baltasar e Blimunda despedem-se de Lisboa e vão a uma tourada (p. 97); na madrugada seguinte, os dois partem para Mafra (p. 100).

Page 21: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

DécimoBaltasar foi recebido pelo pai e pela mãe, que demonstraram por ele muitas

saudades.Contou-lhes a guerra, a mão perdida e apresentou-lhes Blimunda. Tiveram

alguma dúvida sobre ela, mas esta contou-lhes a vida, a de sua mãe, negou ser judia e acabou tocando o coração de Marta Maria, a sogra.

A única irmã de Baltasar, Inês Antónia, casara-se com Álvaro Pedreiro e já tinha dois filhos.

Baltasar dispõe-se a arranjar trabalho para si e Blimunda, mas Marta diz que prefere que ela fique, para que possa conhecê-la devagar. Blimunda, ao ver os filhos de Inês, sabe que o mais velho vai morrer de bexigas (varíola) e que só o mais novo sobreviverá.

Em Lisboa, a rainha engravida novamente. D. Pedro morre e o novo infante será rei. Baltasar ajuda o pai no campo. Ainda tenta auxiliar o cunhado na construção da quinta dos viscondes de Vilanova. Todos esperam que se inicie a construção do convento.

Em Lisboa, o rei anda doente e de vez em quando lhe dão confissão e extrema-unção; vai para Azeitão ver se com mezinhas se curam estas melancolias de que sofre. D. Francisco fica em Lisboa, a tramar a sua vida e a do próprio irmão; pela cabeça dele passam pensamentos esquisitos como casar-se com a cunhada. Por sua vez, D. Maria Ana tem sonhos que considera fraquezas. Declaram-se mas as melhoras do rei acabam com os seus sonhos.

Rainha: é devota parideira, casada por procuração, sem amor, para satisfazer interesses políticos (p. 110).

O Rei: o real e infatigável cobridor (p. 112).

Décimo primeiroO padre Bartolomeu regressa da Holanda. Vai à Quinta de S. Sebastião da

Pedreira: três anos inteiros tinham passado e tudo estava abandonado. Depois, parte para Coimbra, não sem antes passar por Mafra, onde vai ver os homens que iniciam o trabalho do Convento.

Procurou Baltasar e Blimunda, informou o pároco que os casara em Lisboa.Blimunda veio abrir a porta e reconheceu-o pelo vulto, quando desmontava. Beijou-lhe a mão. Marta Maria, que já desconfiava ter uma "nascida" (tumor) no ventre, lamenta nada ter a oferecer ao padre, nem comida — a não ser o galo — nem abrigo para passar a noite.

O padre Bartolomeu dorme na casa do pároco e, pela madrugada, chegam Blimunda e Baltasar. Ela sem comer. Bartolomeu ama-os, eles sabem (p. 123).

O padre pede a Blimunda que o olhe por dentro. Ela vê uma nuvem escura, à altura do estômago. É a vontade, diferente da alma, que fará voar a passarola.

Décimo segundoO filho mais velho de Inês Antónia e Álvaro Diogo morreu há três meses, de

bexigas. Álvaro vai trabalhar na construção do convento; Marta Maria sofre de dores terríveis no ventre. O convento dará trabalho a muitos homens.

Page 22: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

O padre Bartolomeu pede-lhes que sigam para Lisboa. Partiram dois meses depois, porque o rei vinha a Mafra inaugurar a obra do convento. Sete-Sóis e Blimunda conseguiram lugar na igreja (p. 133).

A pedra principal foi benzida (p. 134); foi tanta a pompa que se gastaram nisso duzentos mil cruzados.

Partiram Baltasar e Blimunda para Lisboa, onde esperariam o padre voador.

Décimo terceiroEm S. Sebastião da Pedreira, Baltasar experimenta os ferros; está tudo perdido.

Enquanto o padre não chega, constrói-se a forja, vai a um ferreiro e vê como se faz o fole.

Quando Bartolomeu de Gusmão chegou e viu o fole pronto, peça por peça desenhada e feita por Sete-Sóis, ficou contente (p. 143). Encomendou a Blimunda duas mil vontades dos homens e mulheres que morreriam a fim de que, junto com âmbar e ímanes, pudessem fazer subir a nau que agora construíam: "(...) mas as vontades são, de tudo, o mais importante, sem elas não nos deixaria subir a terra"

Trabalham na passarola quase um ano inteiro (p. 145). Descreve-se a procissão do Corpo de Deus. Ênfase para a focalização interna do rei e do bispo (pp. 155-156) que serve de crítica ao que eles representam: o trono e o altar.

Décimo quartoPassaram-se dez anos desde a ida de Baltasar e Blimunda a SSP (p. 166). O

padre Bartolomeu Lourenço volta de Coimbra já doutor em cânones. D. João manda vir da Itália o maestro barroco Doménico Scarlatti, a fim de dar lições de música a sua filha, a infanta D. Maria Bárbara. Maestro e padre tornam-se amigos, comungando as mesmas ideias e sonhos. O padre leva-o a S. Sebastião da Pedreira (p. 166):

O músico compara o casal a Vénus e Vulcano, a deusa da beleza e o feio e desengonçado, o manco Vulcano, filho feito somente por Hera, a quem horrorizou o nascimento de filho tão feio (pp. 168-169).

O músico retira-se mas promete voltar e trazer o cravo, que tocará enquanto Blimunda e Baltasar trabalham.

Décimo quintoDoménico Sacarlatti traz o seu cravo para a abegoaria.Há um surto de varíola em Lisboa, oriundo de uma nau vinda do Brasil. O padre

pede aBlimunda que vá à cidade e recolha as vontades das pessoas. É assim que ela se põe a recolher tais vontades. Um mês depois, são mais de mil vontades presas no frasco; e quando a epidemia termina, ela tem aprisionadas duas mil vontades. Blimunda cai doente; mas um dia,

Scarlatti põe-se a tocar e a saúde de Blimunda volta.Um dia, Baltasar e Blimunda vão a Lisboa e encontram Bartolomeu doente,

amedrontado.

Décimo sextoMorre o Infante D. Miguel para salvar D. Francisco.

Page 23: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

Blimunda diz ao padre que o Santo Ofício se aproxima dele e Bartolomeu fica com medo de que o acusem de se ter convertido ao judaísmo, que se entrega a feitiçarias (p. 193).

Preparam-se para fugir na passarola (p. 195). Scarlatti, indo visitar a quinta, toca cravo e deita-o depois no poço para apagar vestígios da sua presença (p. 198).Sobrevoam as obras do convento (p. 201) e as pessoas julgam ter visto passar sobre eles o Espírito Santo. A máquina pousa no Monte Junto; o padre parece ter enlouquecido. Quando ambos dormem, o padre tenta atear fogo à máquina (p. 205), mas Baltasar e Blimunda salvam a passarola. Ao amanhecer, dão pelo desaparecimento de Bartolomeu de Gusmão (p. 206).

Fingindo vir de Lisboa, chegam a Mafra.

Décimo sétimoO pai estava triste pela morte da mãe. Baltasar busca emprego na obra do

convento (p. 212).A Mafra, chegam notícias de que Lisboa sofreu um terramoto, de fraca

intensidade (p. 220).Baltasar cuida da passarola. Scarlatti pede ao rei para ir ver a construção do

convento e ovisconde hospeda-o, apesar de não gostar de música. Comunica ao casal a morte de Bartolomeu (p. 223).

Décimo oitavoO reino português vai cada vez melhor graças às riquezas das colónias. D. João

V pensa no que fazer com tanto dinheiro. Em Mafra, continua a construção do convento. Tudo é importado; de Portugal só a força bruta (p. 228).

Neste capítulo, o narrador transfere a narrativa para as personagens que contam as suas histórias e expectativas "O meu nome é …” (p. 233-238).

Décimo nonoBaltasar é promovido e, com a ajuda de João Pequeno, começa a puxar uma

junta de bois (p. 240). Há que transportar uma pedra de Pêro Pinheiro (p. 241). Descreve-se o povo anónimo que participa nesta tarefa (p. 242). Descrição da

pedra (p. 245). O narrador lembraArquimedes: "Dêem-me um ponto de apoio para vocês levantarem o mundo" (p. 246). É uma epopeia onde morrem homens (p. 259) e animais (p. 260). Continuam as histórias contadas pelos homens. O narrador critica a situação (p. 257).

VigésimoBlimunda quer acompanhar Baltasar para aprender o caminho.Baltasar não quis que Blimunda caminhasse a pé e alugou um burro para a

jornada que fariam. Inês Antónia preocupa-se e pergunta para onde vão, mas Baltasar só diz ao pai, que Inês julga prestes a morrer. Conta-lhe o segredo, diz que o Espírito Santo era a passarola do padre, que vão ambos ao Monte Junto, na serra do Barregudo, a cuidar da nave. O pai acredita nele e tranquiliza-o. Chegaram ao monte; tudo está em estado de decomposição.

Baltasar trabalhou. Graças à ajuda de Blimunda, a máquina estava como que renovada e voltaram para Mafra. Morreu o pai de Baltasar.

Page 24: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

Vigésimo primeiroD. João V continua mandou chamar o arquitecto de Mafra, um tal João

Frederico Ludovice, a fim de lhe pedir que construísse em Portugal uma basílica igual à do Vaticano. O arquitecto concordou, mas achou-o néscio porque a obra exterior poderia ser a mesma, mas teria ele, o rei, que fazer nascer um pintor como Rafael, um Sangallo, um Peruzzi. Inconsolável, rei resolve, então, ampliar o convento de Mafra, para satisfação dos franciscanos, com um novo corpo de construção que abrigue trezentos frades. O rei escreve a Baltasar e João Pequeno, deixando entender que sabia da construção da passarola.

Sabedor de que poderia morrer sem ver o convento inaugurado, D. João V dá uma ordem ao corregedor: buscar e intimar todos os homens de Lisboa, quiçá de Portugal, para que fossem todos trabalhar em Mafra.

Trecho que se parece com a despedida dos parentes, na Praia do Restelo, por ocasião da saída das naus de Vasco da Gama para as Índias (p. 293).

Vigésimo segundoA Infanta Maria Bárbara casa-se com Fernando da Espanha. O noivo tem dois

anos a menos que ela, e nunca será rei, pois é o sexto na linha sucessória.Doménico Scarlatti toca cravo para uma multidão de ignorantes, por ocasião do

casamento da Infanta Dona Maria Bárbara, na fronteira com a Espanha.

Vigésimo terceiroNeste capítulo, o narrador fala da procissão que levará os santos para serem

colocados nos altares do convento de Mafra: S. Francisco, Santa Teresa, Santa Clara, S. Vicente, S. Sebastião e Santa Isabel.

Seguem também para Mafra frei Manuel da Cruz e seus noviços, e ali são recebidos em triunfo.

Depois da ceia, quando todos dormem, Baltasar leva Blimunda para ver as estátuas; juntos, vêem a lua nascer enorme, vermelha. Ele anuncia que vai ao Monte Junto na manhã seguinte, ver como está a passarola. Ela pede cuidados, ele responde que ela fique sossegada, que seu dia ainda não chegou.

Quando amanheceu, Blimunda levantou-se e pegou na comida para o farnel do marido que ia ao Monte Junto trabalhar na passarola. Porém, de repente levanta voo.

Vigésimo quartoBaltasar não voltou para casa, deixando Blimunda preocupada. Vai procurar

Baltasar pelos caminhos, tentando desesperadamente encontrá-lo. Chegada a Monte Junto, vê os vestígios do sucedido. No caminho pergunta a um frade dominicano pelo seu homem. À noite, o frade procura para saciar seus instintos mas Blimunda mata-o com o espigão de Baltasar e volta para Mafra, onde espera encontrar Baltasar, em vão.

D. João V faz quarenta e um anos a 22 de Outubro de 1730. Embora as obras não estejam concluídas, inaugurar-se-á nesse dia o convento, pois D. João teme que a morte chegue.

Vigésimo quintoDurante nove anos, pressentindo que Baltasar estava vivo, Blimunda

deambulou à sua procura, passando ora por doida ora por santa. Na sua sétima

Page 25: Resumo Obra Memorial Do Convento

Memorial do Convento, de José Saramago

passagem por Lisboa, no Rossio, decorria um auto-de-fé: dele faziam parte Baltasar e o brasileiro António José da Silva, o Judeu, comediógrafo autor de “Guerras do Alecrim e da Manjerona”.

ConclusãoA par da história de um rei sem escrúpulos e franciscanos ardilosos, existe a

história magnífica de um amor longe da banalidade servil entre as criaturas. A par, também, dos sonhos de um rei de imortalizar-se por meio de uma obra monumental, um convento gigantesco e arraigado ao chão, está a leveza do sonho de um louco que queria voar numa passarola, de um músico que tocava um cravo magnífico, de um povo pobre e sem trabalho que se submetia a esforços sobre-humanos para erguer as paredes de um monumento nascido da ignomínia dos corações que perderam a razão para viver.

Essa rainha católica com os seus sonhos libidinosos e esse rei pequeno e imbecil, que ambicionava construir uma basílica para constar da História do mundo, ficam na memória pela sua superficialidade e pela sua infelicidade. Mas o soldado maneta e a vidente desgrenhada são os símbolos mais claros da natureza humana: fortes e delicados, sinceros, embora rudes, eles são o que sonhamos: o Bem e a Liberdade, a sabedoria de existir, na ausência de preconceitos.

Guardados para sempre na alma de quem lê o livro, lá estarão eternamente Baltasar e suas "desparelhadas vestes", sua mão esquerda decepada pela guerra; os olhos ora verdes, ora azuis de Blimunda, olhos de "olhar por dentro" as criaturas, jamais poderão ser esquecidos pelos leitores, não porque vêem por dentro apenas, mas, sobretudo, porque vislumbram um mundo mágico e desconhecido: o mundo que qualquer um de nós quereria ter habitado.

BibliografiaAula Viva - Português B - 12º Ano, João Augusto da Silva, Porto Editora: pp. 230-265Entre Margens 12, Olga Magalhães, Fernanda Costa. Porto Editora: pp. 198-239Memorial do Convento - José Saramago - Caminho

Módulo 12 - TEXTOS NARRATIVOS / DESCRITIVOS II de Adelina Moura