resenha planeta favela

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  • 7/27/2019 Resenha Planeta Favela

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    GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 21, pp. 157 - 161, 2007

    DAVIS, MIKE. PLANETA FAVELA. SO PAULO: BOITEMPOEDITORIAL, 2006, 272 P.

    O PERVERSO BOOM URBANO E A FAVELIZAO DO TERCEIROMUNDO

    *Professora Doutora do Departamento de Geografia da FFLCH da USP

    E-mail: [email protected]

    Marta Inez Medeiros Marques*

    Nos prximos anos, pela primeira vez nahistria da humanidade, o total da populaourbana mundial ir sobrepujar o da populaorural. Esse fato j pode at ter ocorrido, tendoem vista a impreciso de alguns censosrealizados em pases do terceiro mundo. A quese deve esse fenmeno, onde se concentra ecomo vive a populao que hoje se urbaniza?

    Planeta favela procura responder a essasquestes ao discorrer sobre o crescimento dascidades e da pobreza urbana no terceiro mundo incluindo a China e pases do ex-blococomunista - e, em particular, sobre a fase maisrecente deste processo, caracterizada por suaacentuada acelerao. Nele, Mike Davis analisaos processos gerais relacionados ao perversoboom urbano verificado em escala mundial apartir de meados dos anos 1970, utilizandoextraordinria bibliografia, majoritariamente emlngua inglesa, e inmeros dados estatsticos,numa perspectiva marxista.

    O livro foi publicado no Brasil pelaBoitempo apenas poucos meses depois dolanamento de sua verso original pela Editora

    Verso, Londres/Nova York, em maro de 2006.Esse fato se deve seguramente atualidade erelevncia da temtica tratada, alm da acolhidaque ela encontra no meio acadmico e naopinio pblica brasileiros. A pobreza urbanatem sido alvo da ateno de nossos polticos,intelectuais e jornalistas desde fins do sculoXIX, alm de objeto de estudos e pesquisas emdiferentes reas do conhecimento,

    especialmente nas cincias sociais, desdemeados do sculo XX. Dentre a produo maisrecente sobre o tema, destacam-se os trabalhosda sociloga Licia Valladares (2005) 1 , dosantroplogos Alba Zaluar e Marcos Alvito(1998) 2 e dos gegrafos Jailson de Souza eJorge Luiz Barbosa (2005)3 , dentre outros.

    A idia do livro de Davis nasceu do artigoPlaneta de favelas: a involuo urbana e oproletariado informal, publicado na New LeftReview (nmero 26, de maro/abril de 2004, p.5-

    34)4 e escrito sob o impacto do Relatrio Globalsobre Assentamentos Humanos de 2003: aameaa das favelas, do Programa UN-HABITATdas Naes Unidas.

    De acordo com esse relatrio, apopulao urbana, atualmente cerca de 3,2bilhes de pessoas, deve alcanar a cifra de 10bilhes em 2050, concentrando-se sobretudoem metrpoles situadas no hemisfrio sul, o querepresenta uma escala e uma velocidadeimpressionantes do processo de urbanizao.O documento apresenta um censo global dasfavelas e avalia que, a continuar a atual

    tendncia, a populao residente em favelas,um total de 924 milhes de pessoas, cerca deum tero da populao urbana mundial em 2001,atingir o nmero de cerca de 2 bilhes nosprximos 30 anos. Ao mesmo tempo, prev quea populao rural comear a decrescer emnmeros absolutos a partir de 2020.

    Desde o encontro do UN-HABITAT deNairbi em 2002, as Naes Unidas adotam

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    oficialmente uma definio operacional de favelaque se restringe s suas caractersticas fsicase legais. Ou seja, para a ONU, favela uma reasuperpovoada, pobre ou com residnciasinformais, acesso inadequado a gua potvel econdies sanitrias e posse insegura. Apesarde considerar a definio da ONU restritiva econservadora por deixar de fora uma parcelasignificativa da populao geralmenteconsiderada por especialistas como favelada,

    Davis reconhece a dificuldade de se obter dadosprecisos sobre o fenmeno, muitas vezesdeliberadamente subestimado em estatsticasoficiais.

    Para Davis a principal causa do Big Bangda pobreza urbana foi a imposio deProgramas de Ajuste Estrutural do BancoMundial-FMI aos pases endividados e oschoques econmicos que aconteceram a partirdos anos 1980. Esses programas soresponsveis pela eliminao de subsdios apequenos produtores rurais e pela exposiocrescente de seus produtos concorrncia, nummercado dominado pela produo doagronegcio do primeiro mundo, altamentesubsidiado. Estes programas tambmestimularam o avano do processo deprivatizao em vrias frentes, o encolhimentodo setor pblico etc. Para Davis, as cidades tmsimplesmente colhido os resultados da criseagrria mundial desencadeada por essaspolticas e a favela se torna o destino implacvelno apenas para os migrantes rurais pobres,mas tambm para milhes de habitantesurbanos tradicionais, deslocados ou fortementeempobrecidos pelo impacto das medidas deajuste estrutural que favorecem o avano da

    ordem neoliberal e o aumento da desigualdadede renda entre os pases mais ricos e os maispobres.

    Esses processos so destacados emcontraposio com o que ocorreu no perodoanterior, quando o crescimento urbano e aproliferao de bairros populares - nos limitesda lei e fora da proteo do Estado - no TerceiroMundo aconteceu num cenrio de expanso daindstria substitutiva de importaes ou de

    processos de independncia em ex-colnias.Nesse perodo, a esperana de dias melhoresdava o tom geral dos nimos, o que foi sendopouco a pouco alterado, com o descumprimentode suas promessas e a traio do Estado, quecontribui de forma ativa para a recriaocontinuada de padres de segregao urbanacom suas polticas de zoneamento,modernizao e embelezamento da cidade. Eminmeros casos, o Estado chega a usar a forapara impor uma orientao geral ao crescimentoda cidade, em conformidade com os interessesdos grupos no poder.

    Alm disso, o crescimento dosemprstimos destinados a programas dedesenvolvimento urbano do Banco Mundial deua essa instituio um amplo poder de influnciasobre a concepo e implementao de polticasurbanas nacionais. Mesmo as reas de fronteiraurbana, situadas nas bordas da cidade, vosendo tomadas pela expanso da cidade formal,em ciclos de assentamento, expulso ereassentamento. Nesse contexto, as aescomunitrias de auto-ajuda e o imperialismo

    sof t das ONGs, cativas das agendas dosprincipais organismos de financiamentointernacional, podem alcanar sucesso pontual,mas deixam ao desabrigo a vasta maioria dospobres. Estado, ONGs, Associaes deMoradores e Instituies Internacionaisparecem patinar na resoluo das questessurgidas desse conflito, atuando apenas nosentido de aplacar as tenses por meio demedidas localizadas.

    O livro trata de questes relativas aoespao e ao uso da terra nas favelas e dequestes referentes economia informal. So

    analisados criticamente alguns mitos referentes economia informal, dentre outros, aquelesdecorrentes de uma viso romntica e utpicado setor, que o encara como algo prximo auma economia urbana de subsistncia. Eleanalisa as caractersticas atuais do processo deproletarizao com a constituio de uma vastapopulao sobrante e as estratgiasdesenvolvidas pelas famlias pobres paraenfrentar as mudanas na economia e

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    assegurar sua reproduo social, com umaumento significativo do trabalho da mulher. Olivro trata ainda da ecologia ou lugar onde sogeralmente encontradas as favelas - terrasmenos valorizadas, locais de risco, reas depreservao, fronteira urbano-rural e destacaque a pobreza magnifica os riscos e acidentesgeolgicos e climticos que ocorrem nessasreas.

    Tambm so abordados problemas

    especficos relacionados populao pobreresidente em grandes cidades do TerceiroMundo, nos diferentes continentes. Algunscasos mencionados chamam a ateno por suacrueza e dramaticidade como o das crianasacusadas de feitiaria, expulsas de casa eabandonadas nas ruas de Kinshasa no Zaire; aexportao de rgos humanos em favelas dandia e Egito; ou os grandes constrangimentosdesencadeados pelo enorme dficit deequipamentos sanitrios e a necessidade deuso de espaos pblicos para defecar em Delina ndia, levando a uma elevada tenso entreclasses e luta pelo direito de defecar.

    A obra de Davis constitui uma leituraimportante para o pblico brasileiro, por permitiruma melhor contextualizao das origens denossa pobreza urbana e sua relao comprocessos sociais verificados em escala global.Contribui, assim, para a superao de umaviso, bastante difundida entre ns, que atribuia extrema desigualdade social que noscaracteriza exclusivamente a processos deordem interna, como as aes de nossas elitesautoritrias e de um Estado patrimonialista ecronicamente ineficiente.

    Porm, como qualquer obra, PlanetaFavela tambm apresenta limitaes. Davisreconhece a complexidade da problemtica dapobreza urbana, que pode se apresentar dediferentes formas e estar relacionada a umadiversidade de questes polticas, econmicase sociais. Contudo, apesar de no reproduzir aviso preconceituosa de certos autoresconservadores, a sua anlise no supera umaleitura dual da cidade. Em estilo vigoroso,

    envolvente e em tom de indignao, eledescreve a acelerada urbanizao do TerceiroMundo como um processo marcado pelaformao de reas onde se concentramdecadncia, desestruturao social edesesperana, mas nos diz pouco sobre acidade em sua totalidade e como as favelas aela se integram.

    O termo slum adotado na verso inglesa,est associado na sua origem idia de

    degradao humana, rea caracterizada porcasas dilapidadas, superpopulao, doena,pobreza e vcio, ou seja, o lado obscuro dacidade, onde vive uma populao esqulida ecriminosa, o resduo social. Apesar de suasespecificidades histrico-geogrficas, a favela,termo empregado em lugar de slum na traduopara o portugus, tambm corresponde a umarea da cidade caracterizada por suas carnciase/ou atributos negativos.

    Em seu projeto ambicioso de traar umamplo panorama da realidade atual das favelasno Terceiro Mundo e buscar explicaes gerais,

    Davis no examina devidamente processos queajudariam a compreender como esse fenmenose manifesta em contextos histrico-geogrficosespecficos. Na tentativa de atenuar estadeficincia, a edio da Boitempo traz umposfcio da urbanista Erminia Maricato quedialoga com a obra de Davis e recuperamomentos e faces significativos da histriaurbana brasileira. A autora ressalta anecessidade de descermos s contradies darealidade prxima e considerarmos os diferentesagentes envolvidos no processo de produodo espao das favelas para aprofundarmos anossa compreenso sobre o fenmeno e, numa

    postura otimista, enumera algumas conquistasalcanadas pelos movimentos sociais urbanosnas ltimas dcadas.

    Davis abre o livro com uma epgrafe dePatrick Geddes que afirma ter a favela,semifavela ou superfavela se tornado a evoluoda cidade. Todos os seus argumentos parecemconvergir para a confirmao desse prognsticopara os pases do Terceiro Mundo. Ele chama a

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    ateno para o fato de que a urbanizao temavanado independentemente daindustrializao e de quaisquer perspectivasde desenvolvimento, demonstrando que aconst i tu i o de um modo de produourbano-industrial no pode mais ser vistocomo o resultado natural da transformaodo modo de produo rural-agrrio sob ocapitalismo. As metrpoles do Terceiro Mundoso demograficamente dinmicas, porm,

    pobres em postos de trabalho formais.Nesses casos, em que o tamanho da

    economia de uma cidade apresenta poucarelao com o tamanho de sua populao, tem-se observado a proliferao de atividadesinformais caracterizadas, em grande parte, pelaintensificao do processo de trabalho comretorno marginal decrescente, similar ao queGeertz (1969) denominou de involuo agrcolaao estudar a rizicultura na Indonsia. Davis seinspira em Geertz e afirma que a importnciacrescente dessas atividades informais naeconomia urbana caracterizaria um processo deinvoluo urbana, o que, vale ressaltar, nada tema ver com o que Santos (1993) denomina deinvoluo metropolitana5 .

    A referncia ao termo involuo revelauma contradio entre a forma como o fenmenourbano se apresenta na contemporaneidade eo contedo atribudo ao processo deurbanizao pelas utopias modernas, que oviam como expresso do avano das forasprodutivas e do progresso. Tambm sugere umadificuldade por parte do autor, comum entre osmarxistas, de lidar com essa contradio e deescapar de uma abordagem linear da histria,denunciada pelos prprios termos da epgrafe

    acima referida. Ou seja, se a produo urbano-industrial no mais o resultado natural dasmudanas nas sociedades agrrias naatualidade, as favelas e o trabalho informalintensivo parecem s-lo.

    Para superar tanto a tendncia a umaexcessiva generalizao como a uma leituralinear da histria, uma alternativa possvel seguir Harvey (2006) em sua adeso a uma

    verso da dialtica que enfatiza as relaesinternas e negocia continuamente a relaoentre o particular e o universal, entre o abstratoe o concreto. A diversidade de situaesdescritas por Davis para retratar as diferentesformas em que a pobreza urbana pode aparecerbem mereceria uma maior reflexo terica,visando apreender as mltiplas determinaesda pobreza urbana e a dinmica resultante dareunio e interao entre os diferentesprocessos em jogo em sua distribuiogeogrfica desigual, contribuindo para aconstruo de uma teoria do desenvolvimentogeogrfico desigual do capitalismo.

    Davis encontra explicaes para ofenmeno analisado na globalizao neoliberal.Na viso de Harvey (2006), o neoliberalismo engendrado como resposta das elites atualcrise de sobreacumulao do capitalismo, queimpe a desvalorizao de ativos e o avanoda acumulao por espoliao para abrircaminho para novos ciclos de investimento e aacumulao com base na reproduo ampliada,o que tem resultado na ampla difuso de formasde expropriao e privatizao sobre a terra eos recursos naturais, afetando profundamentea teia da vida e as bases materiais dareproduo social.

    Assim, poderamos relacionar oacelerado crescimento da pobreza urbana aesse processo mais amplo, relacionado aomovimento geral do capitalismo marcado porciclos e crises de sobreacumulao. Porm, acrise atual parece mais profunda na medida emque o potencial disruptivo do capitalismo alcananveis inimaginveis, comprometendo asobrevivncia do planeta e esgarando ao

    extremo o tecido social em muitos lugares, oque pode ter efeitos explosivos.

    Os movimentos sociais hoje tm sidomotivados sobretudo por disputas envolvendo oacesso terra e aos recursos naturais, ou porcondies mnimas necessrias para a reproduosocial, a reproduo da vida. A produo da cidade resultado de todos esses processos e tambmdessas lutas. O prprio Davis nos alerta para a

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    crescente preocupao das elites e seus intelectuaiscom a violncia urbana e o potencial de insurgnciados pobres urbanos, bem como para as implicaesgeopolticas do crescimento acelerado da pobrezaurbana, o que tem levado o Pentgono a discutirguerra urbana e a desenvolver estudos sobreoperaes militares em terrenos urbanos.

    Planeta favela nos leva a vislumbrar um futuropara a humanidade marcado pela decadncia econstitudo por massas humanas amontoadas em

    1A inv eno da favel a: do mit o de or igem afavela.com , no qual feita uma sociologia dasociologia da favela e trata-se das representaessociais dominantes sobre o tema do final do sculoXIX aos dias de hoje.

    2 Um sculo de favela, que rene um conjunto deartigos representativos da produo antropolgicasobre o tema na atualidade.

    3 Favela: alegria e dor na cidade , que procuradesfazer mitos sobre a favela, construdos a partir

    do paradigma da ausncia. Seus autores chamamateno para o fato de que as favelas so sempredefinidas como local da pobreza, da falta deperspectiva, a partir do que no tm, e afirmamque preciso construir um novo olhar a partir doparadigma da presena, ou seja, considerando oque a favela tem.

    espaos marginais e sem lugar nos circuitosdominantes da economia mundial. Diante de umcenrio to sombrio, o que nos resta a fazer? Comoo autor revela ao final do texto que atualmente estredigindo em parceria com Forrest Hylton6 um livroque corresponde seqncia deste, em que irtratar da histria e futuro da resistncia vinda dasfavelas ao capitalismo global, vale a pena conferirpara ver quais pistas ele tem a nos dar sobre oassunto.

    4 Este artigo tambm pode ser encontrado emContragolpes (2006).

    5 Segundo Santos (1993), o processo de involuometropolitana , em contraposio ao demetropolizao, ocorre quando passam a crescerno somente algumas poucas grandes cidades, mastambm as cidades mdias e locais criando umverdadeiro exrcito industrial de reserva delugares, com a proliferao de uma enormequantidade de lugares propcios ao exerccio doscapitais hegemnicos, permitindo a fragmentao

    do territrio e uma nova diviso social e territorialdo trabalho.

    6 Especialista em urbanismo latino americano.

    Notas

    Bilbiografia

    GEERTZ, Clifford. Agricultural Involution: theprocesses of ecological change in Indonesia. 2ed. Berkeley: University of California Press, 1969.

    HARVEY, David. Spaces of Global Capitalism:

    towards a theory of uneven geographicaldevelopment. London/New York: Verso, 2006.

    SADER, Emir (org.). Contragolpes: seleo deartigos da New Left Review. So Paulo:Boitempo Editorial, 2006

    SANTOS, Milton. A urbanizao brasileira. SoPaulo: Hucitec, 1993.

    UN-HABITAT. The challenge of slums: globalreport on human settlements 2003. 2 ed.London: Earthscan, 2006

    Trabalho enviado em dezembro de 2006

    Trabalho aceito em janeiro de 2007

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