resenha baumer cris2 impressao
TRANSCRIPT
1
UMA PEQUENA VIAGEM NO TEMPO - SÉCULOS XVII A XXI
SÉCULO XVII
- Indivíduo (o processo de atomização já vinha acontecendo antes do XVII): dupla
acepção (Dumont): amostra individual da espécie humana & ser moral independente, autônomo,
que se encontra em primeiro lugar na ideologia moderna. Holismo (ênfase no todo) &
Individualismo (ênfase no indivíduo). Comunidades de pessoas (hierarquia naturalizada; castas;
vertical idade) & Sociedades de indivíduos (horizontalização; classes) (Elias).
- Identidade fixa, fechada, centrada na razão, cujo âmago consistia num núcleo que
permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo (Hall). Com base nessa
concepção identitária se forjaram as categorias duais, como, por exemplo, primitivo/ civilizado,
centro/ periferia, etc.
- Início do século: conjuntura política e econômica conturbada: limites territoriais
deslocados constantemente (guerras e colonialismo).
- Galileu Galilei (1564-1642) publica em 1638 “Diálogo sobre os dois máximos sistemas
de mundo: copernicano e ptolomaico", onde afirma verdadeiro o modelo heliostático de universo
(Copérnico): retirada do homem do centro do universo.
- René Descartes (1564 -1650): racionalismo: sistema segundo o qual a realidade,
absolutamente inteligível, só poderia ser idoneamente apreendida através da razão. Na obra
"Discurso do Método" descreve como encontrar a verdade crível por si mesma, acessível a todo
pensar, sempre que ele funcione de modo reto e se afaste de tudo o que se interponha para desviá-
lo ou entorpecê-lo. Método: é possível conhecer a verdade reduzindo ordenada e progressivamente
um sistema composto a evidências simples, claras e distintas: viabilidade de apreender o todo
através da sua decomposição em partes. Sistema de pensamento com inclinação totalitária: redutor
(a experiência sensível é enganadora), matemático (o "resto" é não-ciência), a verdade é única
(negação da polissemia). Forneceu um critério classificatório da espécie humana (a razão): fulcro
na igualdade (neutralização da diferença). Sistema fechado: estabilidade e intemporalidade.
- Francis Bacon: empirismo: muito embora fosse o homem maleável, estivesse em
transformação constante (movimento), existia uma espécie de estrutura universal das faculdades
mentais sobre as quais os condicionadores podiam trabalhar, ou seja, admitiam uma natureza
humana original, que não mudava entre os integrantes da espécie (universal). Embora sua lógica
tendesse, através da observação, à constatação do relativismo dos povos e indivíduos, os
empiristas, em sua grande maioria, não chegavam a levar ao extremo tal verificação, contentando-
2
se em procurar o que era comum aos homens, pela via da observação e da experimentação dos
fatos (a posteriori).
- lsaac Newton (1642-1727) publica em 1687 "Princípios Matemáticos da Filosofia
Natural", onde definiu os princípios da gravitação universal (desvelando os movimentos dos seis
planetas conhecidos, das luas, cometas marés e equinócios, unindo a partir de uma única explicação
o planeta Terra a tudo o que podia ser visto no céu) e enunciou as leis do movimento dos corpos (a
partir de uma perspectiva de tempo linear, determinista e simétrica: conhecendo as condições
iniciais de um sistema, era possível calcular todos os estados seguintes, bem como os precedentes).
Tempo absoluto (igual para qualquer observador situado em qualquer lugar, desde que usasse
medidor preciso); espaço relativo (o movimento é um conceito relacional = Newton nunca aceitou
esta conseqüência de suas teorias).
- No XVII o "devir" não desalojou o "ser", e nem o desafiou seriamente (Baumer): o
pensamento, não obstante as inúmeras descobertas científicas e as profundas modificações,
continuou com ênfase no permanente, no fixo, no absoluto, na estabilidade, no universal, na
perfeição das idéias "eternas", entendendo a mudança como sinal de deleito ou irrealidade.
SÉCULO XVIII
- Início do século: ciências humanas eram desprestigiadas (método cartesiano de
constatações apriorísticas-dedutivas para as ciências exatas e empirismo baconiano das
constatações a posteriori para as ciências naturais). Giambatistta Vico (1668-1744) propõe o
método da "imaginação reconstrutiva" para as humanidades, através do qual se poderia chegar à
"realidade em transformação", que para ele é a história dos homens: partindo-se do estudo dos
meios de expressão (mitos, fábulas, monumentos, rituais, etc.), de como eles eram compreendidos
e interpretados por um grupamento humano, permitir-se-ia uma aproximação à realidade que eles
pressupõem e articulam. Espanto: isso não podia ser provado pelo método cartesiano! Opositor do
cartesianismo: valorização da imaginação, crítica da necessidade de certeza na ciência
(verossimilhança), operava com probabilidades.
- lluminismo: racionalidade, crença no progresso do conhecimento e no controle do
homem sobre a natureza, individualismo, vontade de secularização e de afastamento da
"obscuridade" da Idade Média, igualdade.
- Continuava-se acreditando na universalidade do homem (possibilitadora de uma
igualdade), mas agora se pensava que ele poderia aperfeiçoar-se através da educação disciplinada
pela razão (de modo que a perfeição era possível e provável, pelo desenvolvimento da inteligência
e da moral). Se o homem podia se modificar para melhor, era natural que também pensasse o
3
mesmo do mundo: crença num projeto de aprimoramento para o mundo, efetivável pela ciência e
pela técnica, ambos produtos do logos. Crença no progresso linear em direção à perfeição, à ética e
à felicidade: o éden na terra.
- Sobretudo a partir da década de 80: Romantismo: reação contra o que se julgava a
"estreiteza" da filosofia, das ciências, das artes, derivada de um pensamento eminentemente
racional, mecanicista, geométrico, redutor, que fabricava modelos ideais com regras universais para
todos os planos da vida humana. Proclamava a existência de um espírito (componente) irracional
ou inconsciente (em um sentido mais metafísico do que cientifico), uma parcela de forças ocultas e
obscuras, incontroláveis, perturbadoras, mas também criativas: recusa do homem transparente,
racional, ordenado e cognoscível, previsível porque sujeito à regras universais.
SÉCULO XIX
- Romantismo & Neo-Iluminismo (razão; crença na humanidade "humanização de Deus";
progresso; culto à ciência = cientificismo; determinismo).
- Segunda metade do século: evolucionismo (vertente darwiniana), que acentuou o
sentimento de fluxo, de movimento, de impermanência. Acaso e espontaneidade banidos da
ciência: determinismo. Já se fazia sentir o movimento, mas ainda havia bastante conservadorismo:
sistema fechado, completo, dotado de leis fixas.
- Final do século: o racionalismo cientificista. Neo-Iluminista continuava forte, porém em
um número cada vez maior de pessoas crescia um sentimento de crise e se aguçava o espírito
crítico.
- Sigmund Freud: a teoria sobre o inconsciente corroeu a idéia de racionalidade
totalizadora. O cientista entendia essencial abandonar a supervalorização da propriedade do estar
consciente para que se pudesse formar um juízo correto do que é psíquico (última parte de "A
interpretação dos sonhos" - 1899). As mais complexas operações da psiquê residiriam no
inconsciente. Mas Freud era um moderno...: a ferocidade com que defende a ciência como única
forma de "encontrar a realidade" (rechaço à intuição, à religiosidade. e ao imaginativo - vide "O
futuro de uma ilusão''): crença no progresso da humanidade de uma barbárie instintual para uma
civilização racional, processo a ser conduzido pelos "mais capazes" (líderes); crença de que nada
poderia unir os homens de forma tão completa e firme quanto a submissão dos instintos dos
indivíduos aos domínios da razão ("'Por que a guerra?").
- Sentimento de desorientação, condenação à errância, angústia, absurdo, privação de
referências. Decadência que solapava o progresso, "o homem estava a sentir-se problemático"
(Baumer). Vide Edvard Munch ("O grito"), Sartre ("A náusea" = dor física e psíquica, embrulho
4
no estômago causado pela percepção dessa gratuidade = todo ente nasce sem razão, se prolonga
por fraqueza, e morre por acaso) e Kafka.
- Henri Bergson: incorporou o movimento no pensamento cientifico; rompeu com a
dualidade físico/psicológico, apregoando que tais sistemas são solidários (o cérebro não é um lugar
especifico do corpo): o conhecimento ocorre com a atividade interpenetrada dos instintos e da
inteligência; papel da criatividade na produção da vida: bifurcações, tendências, cargas de
imprevisibilidade e de desordem inerentes ao sistema vital.
- Friedrich Nietzsche: atingiu os pilares da cultura moderna (identidade fixa, sujeito,
consciência, igualdade, moral, racionalidade, possibilidade de domínio da realidade através da
ciência, estabilidade), bombardeando tais cristalizações a ponto de tomar a forma de um complô:
não se limitando a diagnosticar a conjuntura da época, suas idéias serviram como instrumento de
intervenção, de deslocamento de perspectivas (Klossowsky).
SÉCULO XX
Albert Einstein: teoria especial da relatividade em 1905 (o tempo é relativo ao referencial
- na velocidade da luz o tempo pára); teoria geral da relatividade em 1916 (quatro dimensões
espaço-tempo (conotação integrada). Permaneceram, contudo, o determinismo e a simetria
temporal (apesar de seus cálculos indicarem que o universo estava em expansão, Einstein
introduziu uma "constante cosmológica" para que a sua teoria corroborasse a sua crença em um
universo estático).
- Werner Karl Heisenberg: princípio da incerteza (1927): as entidades subatômicas não
podem ter sua posição e velocidade medidas concomitantemente de forma absolutamente precisa.
Os resultados dos cálculos velocidade/ posição só poderiam ser expressos por meio de
probabilidades. E mais: a própria medição altera o resultado obtido. Durante muitos anos a física
presumira o determinismo dos processos da natureza e a precisão rigorosa de suas medições:
Heisenberg, através da mecânica quântica, inseriu a probabilidade e a incerteza no âmago da
compreensão do mundo natural.
- Primeira Guerra Mundial: 1914-1918: a racionalidade por tanto tempo compreendida
como "redentora", sustentáculo de um processo de desenvolvimento rumo ao éden, mostrou sua
faceta destrutiva.
- Segunda Guerra Mundial: a shoah não foi produto da irracionalidade humana. Gestão
burocrática da morte, visando a máxima eficácia, sob o apelo e o amparo cientifico: produção
programada de sofrimento.
- Bombas atômicas: 1945: dois Maracanãs de pessoas reduzidas a nada em alguns
5
segundos.
E a atualidade?
- Complexidade: coexistência de elementos antigos e recentes, e não, tanto, a substituição
("superação") gradual de uns pelos outros: Rui Cunha Martins.
- "O tempo das tribos": Mafessoli.
- Sociedade do risco: Douglas e Beck.
- Homus complexus: Morin.
- Aceleração e vertigem da velocidade: Virilo.
- Prigogine e o universo de possibilidades (termodinâmica do não-equilíbrio); o caos que se
auto-organiza.
- Passar além das identidades originárias e puras para perceber que o humano se forma no
entre-lugar, no interstício, na sobreposição e no deslocamento dos domínios da diferença (Bhabha).
BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno: séculos XVII e XVIII. Vo1. 1.
(pp. 11-40.)
O objetivo a que se propõe o texto é permitir uma aproximação ao modo de pensar do
homem moderno (sobre como ele se via e como via o universo), para então tentar captar o
significado do próprio termo "moderno".
O texto está norteado por questões escolhidas por Baumer como fundamentais para a
discussão da modernidade: a visão que o homem tinha de Deus, da natureza, dele próprio, da
sociedade e da história.
Baumer não priorizou um campo de conhecimento ou o pensamento de determinados
indivíduos e ilustrou o texto com obras de arte para demonstrar que as idéias de um determinado
período transparecem nos trabalhos artísticos, o que comprovaria o fato de que as pessoas
partilham de um substrato de idéias comuns, isto sem desmerecer o potencial vanguardista da arte e
a capacidade visionária de alguns artistas.
A preocupação principal de Baumer é compreender a história, ficando por detrás dos
homens, captando suas idéias. Neste sentido busca-se romper com a tendência à história meramente
política, pois, para o autor, uma análise posta unicamente nesses termos resultaria no desprezo das
"forças impessoais que governam o mundo", isto é, das doutrinas e idéias que impelem as coisas
para certas conseqüências. O que se busca é entender o movimento das idéias, percebidas por
Baumer como causas e não como efeitos dos acontecimentos.
A História das Idéias cresce durante o século XIX muito ligada à História Política em
6
função da importância à época crescente dos Estados e do mundo político. O interesse pela História
das Idéias aumentou consideravelmente no final do século XIX por razões diversas: a) A História
das Idéias se beneficiou da luta entre historiadores da política e historiadores da cultura (que
exigiam uma espécie mais lata de história, que englobasse todos os aspectos da "civilização", tanto
intelectuais como materiais e políticos); b) A História das Idéias se beneficiou da "revolta contra o
positivismo" que tomara lugar à época, insurreição esta pautada num desafio ao determinismo
científico reinante, e na afirmação da influência decisiva, no comportamento humano, das idéias
concebidas livremente pelo espírito; c) A História das Idéias se beneficiou ainda do que sustentava
o filósofo Wilhelm Dilthey, no sentido de que as ciências humanas proporcionam um meio muito
melhor para a compreensão da realidade histórico-social e, por conseguinte, da natureza do
homem, do que as ciências naturais.
Baumer afirma que Dilthey fez do espírito humano e das suas idéias o fulcro da história,
alargando o seu campo para incluir não só o pensamento racional, mas também os produtos da
imaginação e vontade humanas, personificados na literatura, na arte, na religião, assim como na
filosofia e na ciência.
A História das Idéias estabeleceu-se firmemente no século XX. No período político
carregado das décadas de 30 e 40, as idéias embateram mais violentamente do que em qualquer
outro período da história, movendo homens e exércitos.
A História das Idéias oferece uma tentativa de estancar a fragmentação contínua do
conhecimento que acometeu a cultura ocidental, e que atualmente chegou a proporções alarmantes.
A História das Idéias não é assunto para espíritos altamente compartimentados. Ela abre portas nos
muros que a especialização levantou entre as seções de conhecimento, apregoando que os ramos do
saber devem ser constantemente interelacionados. Procura compreender o pensamento no conjunto
concreto de uma situação histórico-social fora da qual o pensamento individual diferenciado só
muito gradualmente emerge.
A História das Idéias ainda carece de uma definição mais clara: seu conteúdo, sua
metodologia, e, principalmente, seus pressupostos sobre o processo histórico das idéias,
permanecem ainda um tanto nebulosos e vagos.
Em certa medida, o termo "idéia" é elástico e pode referir-se desde ao pensamento de uma
pequena elite até o de toda a gente. A História das Idéias difere da História Política, Social ou
Institucional. Concentra-se nas idéias dos homens, no "mundo interior do pensamento". Pretende
ser mais vasta que uma História da Filosofia, mas não tão vasta que inclua a cultura popular, pelo
menos não fundamentalmente. A História das idéias não está limitada ao pensamento dos
talentosos (mentes privilegiadas), que normalmente encontramos na História da Filosofia. Está
mais interessada nas idéias que alcançam grande difusão, entendida sob dois aspectos: a) difusão
7
para além de um departamento do pensamento (a História das Idéias é interdepartamental por
excelência); b) difusão para além dos indivíduos, através de grupos e segmentos significativos. A
História das Idéias busca ir além do pensamento privado e chegar ao público, aos estados de
espírito coletivos.
A História das Idéias não se ocupa exclusivamente das idéias claras e distintas
(pensamento racional), possuindo como objetivo principal a descoberta de uma classe de idéias que
subjazem e condicionam todo o pensamento formal. Estes são os pressupostos fundamentais, as
pré-concepções que os homens absorvem, quase por osmose, do seu ambiente mental, e de que não
estão freqüentemente de todo conscientes ou raramente mencionam, uma vez que as tomam como
garantidos. Isso significa que, mesmo operando em grande parte no ambiente do pensamento
racional, a História das Idéias também lida com idéias que mais podem ser chamadas crenças ou
convicções. Segundo Ortega y Gasset, há idéias que são apenas pensamentos, e idéias em que
também se acredita. As últimas, porque empenham não apenas o mecanismo intelectual, mas a
personalidade inteira, fornecem a chave para o pensamento mais íntimo de um povo numa época.
Os intelectuais desempenham o papel principal na História das Idéias, porque possuem a
capacidade de refletir com acuidade, articular melhor as idéias das pessoas da sua época, mas,
também, pela sua capacidade de aperfeiçoá-las.
A História das Idéias não nega que os agentes insensíveis, ou seja, os acidentes naturais,
as mudanças de população, etc., desempenhem um papel importante na história. Porém, segundo
Baumer, é necessário entender que a história não pode ser reduzida a causas mecanicistas, e que
os homens raramente agem de um modo decisivo na história, a não ser sob o estímulo de idéias
gerais que representem valores, objetivos e utopias.
A História das Idéias concentra-se essencialmente nas respostas às questões perenes, que,
conforme Baumer, são questões que o homem levanta mais ou menos continuamente em todas as
épocas e por todas as gerações. Tais questões correspondem às perguntas mais profundas que o
homem pode trazer acerca de si mesmo e do seu universo. Questões que versam sobre Deus, a
natureza, o homem, a sociedade e a história.
1 - Deus: existe? Quais seus atributos? Como relaciona-se
com o homem?
2 - Natureza: refere-se ao mundo físico ao redor do homem.
Mundo não cultural.
3 - Homem: o que é? O homem é sui generis ou é melhor
compreendido quando assimilado à natureza como animal? O
que é mais importante no homem, a natureza ou a educação?
8
Ele pode ser condicionado pelo meio? Qual sua principal
característica? O desejo? O pecado? O sexo? A
agressividade? A morte? O espírito? Ou a liberdade? Se for
esta última, será um dia o homem senhor de sua natureza e
História?
4 - Sociedade: o que a regula? A tradição? Deus? A razão? A
lei natural? Ela é uma máquina? Ela vai ser secularizada um
dia?
5 - História: é significativo o passado? Deve-se libertar dele?
O processo histórico tem significado? Existe uma direção
para a história? Espiral? Linha reta? Em círculos? É vontade
de Deus ou do homem?
Se não houve uma resposta definitiva para as questões perenes, é uma indicação que o que
as rege é o fluxo e as permanências.
Ao longo da modernidade européia, o que se percebe é a ultrapassagem do "ser" pelo
"devir" como categoria mais importante do pensamento. Isso engloba um modo de pensar a
natureza, o homem, a sociedade, a história e Deus, não somente como mudando, mas também
evoluindo para algo diferente e novo. A passagem do "ser" ao “devir" é a transferência do interesse
do permanente para o mutável, a crescente colocação dos absolutos e das idéias eternas em dúvida.
Este sentido de "devir" está no núcleo do que chamamos de espírito moderno, nascido com
as descobertas do além-mar e através da ciência nova, que evidenciaram o atributo mais evidente
do cosmos, qual seja, a sua impermanência.
A verdade é que mudamos sem cessar, e que o próprio estado não é senão mudança. Todas
essas mudanças somente foram aceleradas com as revoluções: Francesa, industrial, tecnológica,
mecânica, elétrica.
O "devir" é uma concepção explosiva que fragmenta o universo. Antagonicamente,
produz a possibilidade de navegação em mares largos e, por outro lado, a depressão de viver num
universo em eterna mudança. Para Baumer, os espíritos modernos, estavam ao mesmo tempo
admirados pelas expectativas e possibilidades, e exaustos pela falta de estabilidade e de certezas. A
civilização exige um meio termo: um amálgama entre o "ser" e o "devir'": o segundo para garantir a
critica constante, e o primeiro para proporcionar uma continuidade e uma direção.
9
(pp. 41-182):
SÉCULO XVII
O pensamento europeu ocidental, segundo Baumer, experimentava no início do século
XVII um período de difícil definição, dados os contrastes e polaridades vividos no período. A
conjuntura política encontrava-se extremamente conturbada. Na Europa ocidental do século XVII
os limites territoriais foram deslocados inúmeras vezes, e através de guerras que perduraram
durante longos períodos de tempo. Da mesma forma, o confronto de interesses econômicos entre
os países, em especial os decorrentes da ambição pela manutenção de colônias ou pela conquista
deste tipo de mercado fornecedor de matérias-primas baratas e consumidor de produtos
elaborados, repercutiu enormemente nas condições de vida dos europeus do ocidente. Do ponto de
vista interno dos países, a agitação derivada da contraposição de interesses de grupos sociais e
econômicos, além das divergências religiosas, tomaram o século XVll pródigo em revoluções
intestinas. Na arte, verificava-se a oposição entre os estilos Clássico e Barroco. O Racionalismo e
o Empirismo disputavam a supremacia como modelo para atingir o conhecimento.
Apesar disso, na visão de Baumer, o XVII é o primeiro século "moderno", sendo as razões
para tal rotulação em grande parte psicológicas: os indivíduos. em número cada vez maior
começaram a pensar em si como "modernos", distintos dos “antigos" (Idade Média), como fazendo
algo historicamente novo (inaugurando uma nova época do pensamento). Adverte Baumer, no
entanto, que embora seu número tenha crescido considerável e constantemente, no XVII os
"modernos" eram ainda uma minoria.
Em relação ao panorama científico-cultural europeu ocidental, o século XVIl foi
vivenciado pelo homem como momento paradoxal de grande excitação, expectativa e
deslumbramento com as importantes descobertas científicas, mas igualmente de medo e
perplexidade pelo abalo da estabilidade e certeza, além de exaustão ocasionada pela urgência na
adaptação. A ciência experimentou notável desenvolvimento no século XVlI, produto do
conhecimento adquirido ao longo do tempo precedente, mas também da genialidade de alguns
homens que viveram aquela época.
No ano de 1638 o astrônomo e matemático Galileu Galilei (1564-1642) publicou a obra
"Diálogo sobre os dois máximos sistemas de mundo: copernicano e ptolomaico" (Dialogo sopra i
due massimi sistemi deI mondo: Tolemaico e Copernicano), onde afirmava verdadeiro o modelo
heliostático de universo defendido pelo padre polonês Nicolau Copérnico (1473-1543),
contestando a imagem do cosmos proposta por Aristóteles (384-322 a.c.) e Claudius Ptolemaeus
(Ptolomeu, 87-150 d. C.), que vigorara, com poucas modificações, por bem mais de um milênio.
Tal acontecimento surtiu grande efeito sobre as pessoas da época, pois a teoria copernicana
10
reivindicava a retirada do homem do centro do cosmos, ao postular que o Sol, e não o planeta
Terra, encontrava-se próximo do centro do universo.
A contribuição de Isaac Newton (1642-1727) foi de inestimável importância para a
revolução científica em curso desde o século XVI. Formulou os princípios da gravitação universal
e definiu as leis do movimento e da atração na obra "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural"
(philosophia Naturalis Principia Mathematica), publicada em 1687. Através da lei da gravitação
universal desvelou os movimentos dos seis planetas conhecidos, das luas, cometas, marés e
equinócios, unindo a partir de uma única explicação para o planeta Terra a tudo que podia ser visto
nos céus. Três leis contidas na primeira parte do Principia descreviam o movimento dos corpos, a
partir de uma perspectiva de tempo linear, determinista e simétrica: conhecendo as condições
iniciais de um sistema, era possível calcular todos os estados seguintes, bem como os precedentes.
Passado e futuro desempenham, no sistema newtoniano, o mesmo papel, pois as leis são
invariantes em relação à inversão dos tempos (t- e -t).
Para Newton, o tempo era absoluto: acreditava ser possível medir sem ambigüidade o
intervalo de tempo entre dois eventos; esta medida seria a mesma para qualquer observador situado
em qualquer local, desde que fossem usados marcadores precisos. No entanto, as leis newtonianas
revelavam a ausência de um padrão absoluto de repouso, o que implica na impossibilidade de se
determinar se dois eventos que ocorreram em diferentes momentos tiveram lugar na mesma
posição no espaço. Em outras palavras, o espaço, como inferido das proposições de Newton, não é
absoluto, e o movimento é um conceito relacional. Newton não foi capaz de aceitar essas
conseqüências de suas teorias, porque não estavam de acordo com a sua idéia de um Deus absoluto:
o cientista preferiu negar por toda a vida a relatividade do espaço.
Assim, a questão da Natureza tomou-se central graças em grande parte as revoluções de
Copérnico, Galileu, e Newton. Cada uma produzindo reflexos específicos, mas tendo em comum
a potencialização do poder do homem não somente sobre a natureza, mas também sobre a
sociedade: crescia a idéia de que o homem poderia submeter a história aos seus desígnios.
As idéias de René Descartes eram muitíssimo importantes na época: formavam um
substrato sobre o qual se assentou grande parte do pensamento do XVII (e também, como se verá,
dos séculos seguintes).
O racionalismo transparece nas idéias de Renatus Cartesius (René Descartes, 1596-
1650), filósofo francês, em especial na sua busca por uma verdade apodíctica, crível por si
mesma, “acessível a todo pensar, sempre que ele funcione de modo reto e se afaste de tudo o que
se interponha para desviá-lo ou entorpecê-lo", e da qual em cadeia se deduzam as verdades
restantes. Para Descartes, é possível conhecer a verdade reduzindo ordenada e progressivamente
um sistema composto a evidências simples, claras e distintas. Este método significa a viabilidade
11
da apreensão do todo através da sua decomposição em partes, e a existência de uma lógica
subliminar que explica o funcionamento do mundo, e que pode ser alcançada pelo homem através
da razão. Há, na filosofia cartesiana, a crença de que o homem alcançou pela primeira vez uma
segurança intelectual completa, a confiança de que todo o conhecimento é atingível sempre que
se utilize o método conveniente, como se tosse este a chave de uma linguagem.
O racionalismo estava amplamente arraigado nos homens do século XVll, permeando seu
modo de entender a sociedade, a economia, a ciência, e ainda a forma de lidar com a diferença,
com a intersubjetividade. Como percebe GAUER, o racionalismo edificou o paradigma
dominante da época moderna: "a deusa razão, estruturou a igualdade, eliminou a diferença em
nome dessa igualdade e do progresso da humanidade".
O racionalismo desmerecia a diferença ao duvidar da experiência sensível inquinando-a
de enganosa, anulando, por conseguinte, a pluralidade de verdades e a polissemia próprias da
subjetividade. Só a razão, veiculada pelo método correto, expressão da igualdade dos homens,
seria capaz de encontrar a única verdade, longe da qual não se reconheciam outras possibilidades
de compreensão da realidade. A racionalidade se regozijava com a estabilidade e a
intemporalidade: em seu sistema a natureza humana não mudava, seria a mesma em todos os
tempos e lugares (imutável e universal). Por conseguinte, não era comum, no século XVII, a
visão historicista do homem, sua auto-compreensão como produto da história, como parte de uma
natureza formada e reformada incessantemente no tempo e no espaço.
Os empiristas (ex vi um de seus expoentes, Francis Bacon), partidários da outra grande
corrente de pensamento do século XVII, salientavam que muito embora fosse o homem maleável,
estivesse em transformação constante (movimento), existia alguma espécie de estrutura universal
das faculdades mentais sobre as quais os condicionadores podiam trabalhar, ou seja, admitiam uma
natureza humana original, que não mudava entre os integrantes da espécie (universal). E não
obstante sua lógica tendesse, através da observação, à constatação do relativismo dos povos e
indivíduos, os empiristas, em sua grande maioria, não chegaram a levar ao extremo tal verificação,
contentando-se em procurar o que era comum aos homens, pela via da observação e da
experimentação dos fatos.
Assim, sob vários aspectos, o que se percebe ao longo do XVII é a substituição de um
conhecimento contemplativo, meramente especulativo (Aristóteles, Agostinho = salientavam o
conhecimento em si), por um conhecimento também voltado para a ação, utilitário (Francis Bacon
e René Descartes), a fim de "alargar os limites do império humano e torná-lo o senhor da
natureza". Como escreveu Descartes no "Discurso do Método": "tem-se de produzir uma filosofia
para uso das cidades e não para o isolamento das escolas".
Em relação à natureza, existia uma visão teológica (natureza como criada por Deus, dada,
12
perfeita, imóvel, que deveria prestar-se somente à observação) à qual foi se somando a concepção
mecanicista (natureza como grande máquina ou relógio, que funcionava mecanicamente em
obediência a leis naturais invariáveis). O mecanicismo existia menos puramente do que misturado
à concepção teológica. Não raro continuava-se a acreditar em uma causa primeira (Deus),
colocando-a, contudo, fora do mundo, ao qual era permitido funcionar com base nos princípios
mecanicistas. Situava-se o relojoeiro num lugar seguro, viável, defensável e que atrapalhava o
experimento o mínimo possível.
Como acentua Baumer, apesar do aumento do "fascínio" pela natureza, as questões
religiosas conservaram um lugar proeminente no espírito do homem do XVII. Os cientistas, de um
modo geral, não eram hostis nem indiferentes à religião. Pelo contrário, viam a ciência como um
empreendimento religioso. Os principais debates quanto à religião eram aqueles em que opunham
os racionalistas e os partidários das várias vertentes do ceticismo. Para os racionalistas, que
confiavam no poder da razão para provar a existência de Deus e a sua essência, o “criador” dava
unidade ao sistema. Boa parte dos tratados do período se destinavam a provar a existência de Deus.
Mas a tendência, segundo Baumer, era limitar cada vez mais a Teologia a uma esfera
restrita da fé e da moral (como apregoava Francis Bacon, por exemplo): a Teologia, embora ainda
conservasse o prestígio, perdera a sua superioridade sobre a ciência. O século XVII não foi uma
época comparável, em intensidade religiosa, ao século precedente da Reforma. Obviamente a
Teologia não mais permanecia no centro do pensamento, mas, por outro lado, não havia ainda sido
forçada à defensiva, como aconteceu mais tarde, no lluminismo do século XVIII.
De acordo com Baumer, o homem do XVII se via ao mesmo tempo como "miserável" e
"grandioso". "Miserável" porque controlado pelo pecado, ou, de forma mais secular, porque
geralmente enganador, vaidoso e injusto, incapaz de controlar as suas paixões. “Grandioso" porque
tinha consciência da própria '"miserabilidade", e, principalmente, pelo poder racional que lhe
conferia crescente domínio sobre a natureza.
Das duas visões, a pessimista predominava no início do século. Com o passar dos anos a
ênfase se deslocou para o otimismo, em especial pela influência dos raciona listas (Descartes:
Locke, no plano político), que tinham fé inabalável na razão como forma de tornar o homem senhor
de suas paixões, e de empiristas como Francis Bacon. Restava claro para os otimistas que grandeza
humana e racionalidade estavam ligadas diretamente: a queda que teria levado o homem à desgraça
era basicamente uma ausência temporária de razão.
No entanto, estas duas antropologias (pessimista e otimista) tinham em comum a visão
clássica da natureza humana que permeou o XVII: viam-na como fundamentalmente idêntica em
todos os tempos (imutável) e lugares (universal). Não existia o sentido de homem como produto da
história, formado e reformado incessantemente no tempo e no espaço (historicismo).
13
O Século XVII contribuiu para desenvolver um pensamento político que se poderia chamar
de moderno. Tais contribuições devem, segundo Baumer, ser buscadas em idéias novas como
soberania, estado secular, direitos do homem, enfim, categorias que iriam rapidamente apontar
para uma estrutura de governo racional. Ver idéias políticas de Hobbes e Locke (contratualismos).
Resta tentar perceber que o século XVII testemunhou a mudança da forma como o homem
encarava o passado, o presente e o futuro, enfim, uma modificação de perspectiva no que diz
respeito à história. Tais debates ficaram conhecidos como a querela dos “antigos” e “modernos”. O
movimento foi no sentido de uma visão mais secular, mais crítica das épocas passadas, e mais
otimista quanto ao presente e ao futuro (em direção à concepção histórica "progressista" advogada
pelos "modernos").
Foi preciso, contudo, para atingir esta concepção "moderna" uma longa marcha passando
pelo paulatino abandono das idéias de “decadência histórica" e de "ciclos históricos" em voga no
início do XVII. De qualquer forma, no final do XVII a idéia de "degeneração" ainda tinha alguns
adeptos, e da mesma forma a idéia de “história cíclica". Mas o "ânimo" do "progresso" havia sido
plantado no ideário dos homens durante o seiscentos, especialmente pelos cartesianos e
baconianos, que viam na ciência um "caminho", e que exultavam pelas aquisições do presente.
Inicia-se aqui uma longa caminhada que iria acabar gerando o devir nas ciências, mas que
no XVII, ainda desenvolvia seus primeiros passos. Dito de outra forma, se o século XVII
testemunhou transformações muito importantes no modo como as pessoas compreendiam o mundo,
na visão de Baumer o "devir" não desalojou o “ser”, e nem sequer o desafiou seriamente, como
uma categoria maior de pensamento. Isto significa que as reflexões, inobstante as progressivas
modificações, continuaram com ênfase no permanente, no fixo, no absoluto, no final, na
estabilidade, no universal, e na perfeição das idéias "eternas", entendendo a mudança como sinal de
defeito ou irreal idade. Esta negação do movimento e da transformação retratava não só a
concepção newtoniana de tempo absoluto, mas também a impossibilidade de assimilação, por parte
dos homens do seiscentos, da mudança e da imprevisibilidade em seu sistema filosófico, que
acreditavam lógico, completo e hermético.
(pp. 163-283):
SÉCULO XVIII
A questão da natureza agora já não era tão perturbadora quanto no XVII de Galileu e
Newton. A Teologia declinou mais em prestígio, mas isso não significa que a indiferença religiosa
fosse a marca do século XVIII, e sim que o ânimo anti-religioso era a tendência nesse século. Se o
sobrenatural parecia mais duvidoso e remoto, o natural parecia mais familiar e mais instigante:
14
assim, a questão do homem (e as questões relacionadas com a. sua organização social, política, e a
sua história) tomaram-se muito importantes. O homem foi colocado no centro das discussões
intelectuais: a Antropologia tomou-se a nova rainha das ciências (destituindo a filosofia naturalista
do XVII). Cultura com pretensão secular sempre crescente.
A uniformidade da natureza humana era ainda uma noção comum no XVIII. A maior parte
dos pensadores do XVIII não tinha compreendido a idéia de natureza humana histórica, que
mudasse consoante o tempo e lugar. Acentuação da uniformidade, e não da singularidade ou da
mudança da natureza humana, expulsão do relativismo histórico. Até os empiristas, que pensavam
que o homem era maleável, pressupunham alguma espécie de estrutura universal das faculdades
mentais sobre as quais os condicionadores podiam trabalhar: natureza humana original, que não
mudava entre os integrantes da espécie (era universal).
O que nasce no mundo é um esboço inacabado, sem caráter, é a impressão que faz o
homem. Não se nega as idéias inatas e as constituições originais, o que possibilita a afirmação de
uma igualdade básica humana, e a onipotência da educação para formar o espírito e o caráter.
Assim, a perfeição era possível, e mesmo provável, através da educação, que se acreditava
desenvolver a inteligência e a capacidade moral aperfeiçoando a espécie humana. LEMBRAR:
igualdade na origem: diferença pela educação: ligação entre ambientalismo (formação da pessoa
através de experiências) e perfectibilidade: a natureza fez o homem suscetível à experiência, e
assim cada vez mais aperfeiçoável.
Homem moral: o homem nascera, se não bom, ao menos com um instinto ou faculdade que
tornava possível uma vida virtuosa e em sociedade. Há aí uma intima ligação dessa moral com a
razão: a razão, além de elaborar as regras morais, era o que fazia com que o homem as cumprisse.
Por isso o temor do "povo", das classes mais baixas, consideradas ferozes e irracionais, e
provavelmente para além da esperança da ilustração.
Percebe-se então que a uniformidade da natureza humana ainda era uma noção comum no
século XVIII: acreditava-se que o homem nascia dotado de razão, de um sentido de moral, de
consciência, ou seja, não se negavam as idéias inatas e as constituições originais, possibilitadoras da
afirmação de uma igualdade básica humana. Mas atribuía-se ao homem a capacidade de se
aperfeiçoar através da educação, de modo que a perfeição era possível, e até mesmo provável, pelo
desenvolvimento da inteligência e da moral. Se o homem podia modificar-se para melhor, através
de uma educação disciplinada pela razão, era natural que se considerasse apto a executar também
um projeto de aprimoramento para o mundo, efetivável pelo desenvolvimento técnico e científico,
pelo controle do meio natural, pela organização social, todos produtos do mesmo instrumento: o
logos.
A crença no perpétuo progresso linear em direção à perfeição, à ética e à felicidade, que
15
encontrou larga aceitação entre os europeus ocidentais a partir de meados do século XVIII,
notadamente nos anos que antecederam a Revolução Francesa (quando parecia prenunciar-se uma
grande mudança das trevas para a luz), estava inscrita em uma concepção de história universal
(expansão em direção à um ideal, que contém uma norma para a raça humana como um todo),
porém etnocêntrica, Baumer afirma que os europeus colocaram o seu continente no centro desta
história universal, e chamaram a si o atributo de dirigentes da revolução mundial, eis que haviam
sido os primeiros a ver a luz - a luz da ciência - que tomou possível o Iluminismo, Por este motivo
estavam convictos que poderiam levar à América, e depois para a Ásia e para a África, os princípios
e o exemplo da liberdade, da iluminação, e da razão européia.
A racionalidade, a crença no progresso do conhecimento e no controle do homem sobre a
natureza, além de um individualismo pretensamente secular, pautaram o pensamento "esclarecido"
no século XVIII, O Iluminismo tinha como meta “Iibertar o indivíduo das algemas que o
agrilhoavam: do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra sobre o
mundo, da superstição das igrejas (distintas da religião "racional" ou “natural"), da irracionalidade
que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo com o
nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade, a igualdade e, em seguida. a
fraternidade de todos os homens eram seus slogans. No devido tempo se tomaram os slogans da
Revolução Francesa."
Nos primórdios do século XVIII o estudo das humanidades encontrava-se bastante
desprestigiado, muito em função do predomínio das concepções descartianas, que relegavam
aquela espécie de conhecimento ao status de miscelânea de informações periféricas e de reduzida
importância, que não deveriam ocupar mais do que alguns minutos do tempo dos homens
racionais. O conhecimento válido e proveitoso só poderia ser obtido através da aplicação do
método enunciado em seu "Discurso" (no qual, aliás, Descartes destila falta de apreço pelas
humanidades), reduzindo-se o problema à categorias estanques claras e distintas, e, a partir da
resolução do simples, ascendendo-se progressivamente até os problemas mais difíceis, a fim de
assim alcançar a verdade. Esta noção de conhecimento verdadeiro encontrava-se fortemente
arraigada no modelo matemático, tanto que as humanidades sofreram à época sucessivas tentativas
de imposição de métodos próprios às ciências naturais e exatas, que aos seus objetos eram
freqüentemente inadequados.
É nesse contexto que Giambattista Vico (1668-1744) reivindica prestígio às ciências
humanas, visando retirá-las dessa posição subalterna. O napolitano não discorda da importância e
da validade dos conhecimentos matemático e natural, porém, ao lado de tais categorias
tradicionais, e de seus próprios métodos (a priori-dedutivo e a posteriori-empírico), propõe se
agregue uma nova modalidade de conhecimento, as humanidades, com o método da "imaginação
16
reconstrutiva", através do qual se poderia chegar à uma "realidade em transformação", que
conforme Vico é a história dos homens, partindo-se do estudo dos meios de expressão
(sistematicamente em mutação) de um grupamento, e procurando perceber a visão de realidade
que eles pressupõe e articulam.
Exatamente por entender o valor dos meios de expressão de um povo como elemento
possibilitador de uma aproximação, Vico, de forma absolutamente vanguardista, pugnou pelo
exame criterioso dos mitos, das fábulas, dos monumentos e dos rituais, não como fantasias
absurdas ou invenções deliberadas das pessoas (entendimento que prevalecia em seu tempo), mas
como meios de transmissão de uma visão coerente do mundo, da forma como este era
compreendido e interpretado por um determinado grupamento humano. Esta proposta foi recebida
com espanto por grande parte dos cientistas de seu período histórico, não apenas porque a análise
dos mitos não podia ser provada segundo o modelo de ciência cartesiano, mas principalmente
porque conferia distinção à elementos "obscuros", "fantasiosos", "instintuais", "primitivos",
"impuros", "limítrofes", tomando-os como chaves para o conhecimento, num momento em que o
pensamento estruturava-se em uma pretensa segurança fornecida pela assepsia e clareza do método
científico dominante.
Vico afirmava também que a memória era perpassada pela imaginação, e por óbvio uma
teoria do conhecimento com tais características não poderia trabalhar com uma categoria absoluta
como a verdade. Assim, o filósofo italiano lidava com verossimilhanças, que se situavam entre o
verdadeiro e o falso, operando no campo do provável. Por estas razões Giambattista Vico se
contrapôs de forma expressa ao racionalismo cartesiano, que para ele não passava de despotismo
pedagógico, supressor de outras faculdades de desenvolvimento mental (imaginação, por
exemplo), e de outros métodos também úteis para auferir conhecimento: "a mente humana, quando
se submerge na ignorância, faz de si mesma a regra do universo".
Criticava ainda o cartesianismo em outros três aspectos: Vico apregoava que o sujeito só
poderia conhecer e demonstrar logicamente as suas próprias obras, de forma que o homem, não
havendo criado a si próprio, não poderia se conhecer, assim contrapondo-se a Descartes, por
sustentar de que o cogito é apenas a consciência, e não o conhecimento do ser humano. Por razões
análogas o filósofo refutava a demonstração aprioristica da existência de Deus proposta pela
metafísica cartesiana: se Deus não foi criado pelo homem, então a existência daquele não poderia
ser logicamente demonstrada por este. Por fim, Vico negava que as idéias claras e distintas
constituíssem critério universal de verdade, asseverando que a sua refutabilidade advém do fato de
que elas são produtos humanos: assim, o que foi por muito tempo apreendido como verdadeiro
poderia se tomar falso por uma simples modificação no sistema pelo seu criador.
Duas concepções sobre o funcionamento da natureza distinguiram-se no XVIII: a estática
17
e a dinâmica. A primeira teve primazia até mais ou menos a metade do XVIII. A partir de então, o
fluxo das idéias corre em direção ao segundo sistema.
Ernest Cassirer afirma que, no XVIII, estava a surgir uma nova concepção de natureza,
que não mais procurava derivar e explicar a existência a partir do ser (estática: produto de Deus),
mas sim a partir do devir (dinâmica: produtos de leis naturais). Isto é rigorosamente correto, estava
a surgir, mas não era ainda dominante, como seria no século seguinte. A última década do século
XVIII marcou a publicação de alguns trabalhos transformistas notáveis, mas a tônica do séc. XVIII
foram as concepções estática (Lineu) e dinâmica não transformistas. VER que a concepção
dinâmica não impõe, necessariamente, uma visão transformista (que é a idéia de que a natureza é
dinâmica, se transforma, e está em desenvolvimento, em evolução). Este transformismo é o
precursor da teoria da evolução.
O interesse pelas questões políticas e sociais aumentou consideravelmente durante o
século XVIII, em parte porque a política e a economia política eram consideradas ramos da ciência
do homem. Aplicação de métodos científicos aos estudos sociais.
Debates entre os naturalistas e os utilitaristas. Naturalistas: leis universais, invariáveis,
anteriores a todas as convenções, que não podiam ser mudadas pelo soberano. Os utilitaristas
denunciaram o apelo dos revolucionários franceses à lei naturalista, opondo a ela o utilitarismo.
Direitos imprescritíveis, supostamente impressos na mente de todos os homens e protegidos pelo
contrato social ou político eram disparates metafísicos. As questões políticas deveriam ser
discutidas não através de um apelo à deusa natureza, que era ficção, mas em referência à utilidade.
Utilidade significava, simplesmente, preocupação com o bem estar geral, com a felicidade dos
indivíduos e das comunidades, e obviamente, só podia atingir-se experimentalmente (pela
experiência). Com o curso dos tempos, mas de certo não antecipadamente, devia ser possível
deduzir algumas proposições gerais na política. Embora o utilitarismo abrisse as portas para o
relativismo político, observa-se que nenhum utilitarista do XVIll levou o utilitarismo à sua
conclusão lógica. Todos procuravam o universal na vida política, ainda que peja via da
experimentação, embasados numa natureza humana comum (mais ou menos as mesmas
necessidades, prazeres e dores). Verifica-se uma primazia no XVIII para os utilitaristas. Mas ainda
tinha muito de naturalismo: a Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem (em que
os direitos se podiam descobrir através da razão, anteriormente à lei positiva, e eram aplicáveis a
todos os povos), etc.
Absolutismo modernizado (despotismo esclarecido): Alemanha, mas não só: contrasta
com o direito divino: o rei, outrora representado por uma espécie de ser divino que governava o
seu reino de modo absoluto, era agora considerado como a mola principal da máquina do Estado, o
primeiro servo do Estado, o cidadão tomando-se útil aos seus companheiros cidadãos. O rei tirava
18
seu poder não de Deus, mas do consentimento do povo, e com a condição de lhe proporcionar
felicidade e bem-estar. Nada se dizia, contudo, sobre o direito de resistir, caso o rei não cumprisse
com as obrigações. Sua justificação principal era a sua maior eficiência.
Liberalismo: é palavra do XIX, e não do XVIll. Centrava-se na ordem estabelecida e
acentuava a liberdade e igualdade dos indivíduos. Teve o seu embrião no XVIll, em que era
severamente reprimido. Embora existissem muitas espécies de Liberalismo, o foco principal da
doutrina era alargar o domínio da liberdade individual. O legislador, para além de liberalizar a
forma de governo, deveria proteger e ampliar os direitos dos indivíduos. Deveria o legislador
esforçar-se para fazer os homens iguais, para além de livres? A maior parte dos fIlósofos
acreditava em classes sociais, baseadas, no entanto, não em privilégios feudais, mas na
propriedade e no conhecimento, que, por sua vez, se baseavam em graus inatos de talento. Então
se afirmava uma sociedade hierárquica ao mesmo tempo que igual, entre certas pessoas, em
direitos civis. A idéia de igualdade ganhou terreno rapidamente. Realizar a igualdade através de
uma educação igual e de condições iguais.
Gabriel Divan
FRANKLIN BAUMER - "O Pensamento Europeu Moderno" VoI. 2, parte V - Século XX
: "O Triunfo do Devir": o homem passa a tomar plena consciência da falência de categorias
totalizantes na tarefa de apreender o mundo e encaixar ele dentre as leis e preceitos racionalistas.
Fim das "modernas" certezas. Derrocada de uma fixidez e uma estabilidade que eram
epistemologicamente impostas a muito custo.
Pequeno apanhado de considerações sobre a questão do Devir nos capítulos
anteriores:
O século XVII é um marco da modernidade. A diversificação intelectual dos pensadores
europeus faz surgir um novo caminho para as respostas das "questões perenes" (homem - Deus -
natureza - sociedade - história). O homem passa a ter uma espécie de consciência de sua
"modernidade" e passa a se ver como diferente dos antigos. A ruptura com a idade média é visível.
É um período onde as respostas buscadas e obtidas para as questões perenes dão total predomínio
ao "Ser".
META-ANÁLISE das questões perenes: o "ser" no Século XVII não só aparece como
aparece como predicado das respostas "A natureza é ...", "Deus é...", como também enquanto
condicionante da própria pergunta: "O que é Deus?"
Há a predominância da forma de ver e pensar o mundo no âmbito do "Ser". Há a
predominância da estabilidade. A tentativa de impor regras e regulamentos racionais a tudo, a todo
19
o mundo que cerca o homem é uma notável busca por estabilidade e assim superar as controvérsias
existentes. As leis racionais são verificáveis na natureza.
Noção da natureza como o funcionamento do relógio: o "Ser" aparece de novo. A natureza,
o mundo, é algo mensurável; que pode ser "desmontável", decodificável e apreensível.
O conceito do "Devir" começa a ganhar força quando os pensadores passam a se dedicar ao
estudo do universo, infinito, descentrado. Uma contraposição ao mundo finito do Medievo.
"Estética do Infinito" na literatura, nas artes. As referências constantes ao infinito.
Entre os séculos XVIII e XIX há um fortalecimento da noção do "Devir", que começa a
estabelecer essa lógica dentre a visão de mundo e vai abrir as portas para que ocorra a derrocada da
noção estanque do "Ser" no século XX.
O homem começa, aos poucos a para de buscar respostas definitivas em tudo. O ser e a
estabilidade começam a ser questionados e o "aquecimento" dos debates a cerca de Deus são prova
disso.
A história passa a se concentrar cada vez mais no indivíduo do que em leis naturais com
pretensão total.
Perplexidade diante do aumento de complexidade do conhecimento. Matthew Arnold fala
de um estado de multiplicidade e anarquia: o homem começa a se dar conta de que buscar respostas
fixas para lidar com o caos pode ser um erro. Talvez a anarquia seja a própria a resposta.
W.R. Greg fala na "velocidade como característica do modo de vida do séc XIX" ("Life at
high pressure"). Pioneirismo.
DARWINISMO: apresenta e reforça noções de eterno fluxo das coisas com a sua noção de
evolução.
Ambiente de desilusão com a ciência do iluminismo e as leis estanques do positivismo
(Nietzsche, séc XIX): o primado das leis humanas e racionais para explicar um mundo natural e
irracional por excelência começa a ruir.
Ernest Renan escreve que não se pode mais considerar tudo de forma absoluta. Tudo está
em devir, em vias de ser feito. Surge a noção de essência, mas diferentemente da essência universal
moderna, a essência não é inimiga nem antagonista do movimento (Bergson trazendo a máxima de
Heráclito "não me banho duas vezes no mesmo rio. O rio não é o mesmo e eu não sou o mesmo”).
O historiador francês Augustin Thierry sentencia a história como a "ciência do devir" e
identifica até mesmo a Evolução de Deus no fluxo histórico.
SÉCULO XX - O Triunfo do devir:
Segundo Baumer, a "revolução" do século XX foi a mais contundente revolução
20
intelectual já verificada. O homem se encontra em um lugar epistemológico sem pontos de
referência. Para Ortega Y Gasset se opera um "rompimento com a cultura moderna". No século
XX o homem se dá conta de que não há um ponto de partida necessário de onde se partir.
Noção que passa a ganhar corpo: "Mundo-corno-história". Dinamismo em primeiro lugar.
Sentimento de abandono: todo o brilho e o júbilo das promessas racionais-iluministas
culminaram com a Europa, beligerante, devastando a si mesma. A 1ª Guerra teve um impacto de
pessimismo sobre a ciência. O que, afinal é o racionalismo? De que serviram aquelas pedras
fundamentais fincadas pelo Evolucionismo (antropológico) que pregavam o modelo europeu de
sociedade evoluída?
A "resposta" para os problemas do homem não passava (pelo menos não única e
obrigatoriamente) pelo cientificismo racionalista da modernidade. Os preceitos modernos de
fixidez acabam abalados junto com as expectativas frustradas do primado mecanicista. Mais
reforço ao fluxo, ao cambiante, ao. "Devir".
Franz Alexander critica essa máxima de evolução. Somos realmente desenvolvidos?
Todos os pensadores influentes se manifestam nesse sentido. Os conflitos bélicos na Europa no
início do século são alvo de manifestações e motivo de pessimismo e descrédito das promessas da
modernidade. A psicanálise, por sua vez, já consolidada, expõe que o caminho para a perfeição
não está dentro do homem: não existe interior racional puro. O interior é igualmente um caos.
Cercado por todos os lados, o Racionalismo encara um desmascarar não antes visto: trata-
se, afinal, de um trapaça epistemológica? Totalidade? Apreender o mundo? Voltamos à velha
máxima de tentar colocar o quadrado dentro de uma abertura circular: importante menção feita por
Ruth Gauer ("A qualidade do tempo") expõe o dilema da ciência moderna em tentar adequar o
mundo à teoria ao invés de moldar a teoria a partir do mundo. Chega-se a um ponto onde a
proposta epistemológica da modernidade ou precisa de abandono ou se vê obrigada à se assumir
enquanto ilusória e não mais suficiente.
Questões perenes:
Nenhuma delas passou a ter uma resposta que não fosse turbulenta. Baumer exemplifica: a
questão teológica ia perdendo hipóteses de resposta e passava a ser tachada de sem sentido, sem
importância para um cada vez maior número de pessoas. Diferentemente das eras pregressas, que
sofreram ainda os ventos da Inquisição, nada mais justificava a inclusão forçada de Deus dentro de
um sistema de mundo.
DEUS a metáfora máxima do fixo, do absoluto, do imutável, também implode.
Em meio à crise e o descentramento, a psicanálise, a nova filosofia, o existencialismo e o
surrealismo, nas artes, propunham que não haveria como fugir do vórtex da confusão. A confusão
era a realidade, o caminho a resposta. Salvador Dali e André Breton propõem com o
21
surrealismo um manifesto anti-consciência ("Não será o medo da loucura que nos fará hastear a
meio pau a bandeira da imaginação" - André Breton "Manifesto surrealista"). O século XIX teve
o Romantismo que, dentro dos parâmetros modernos, ainda, buscava alternativas à modernidade,
afrontando o racionalismo mecanicista. O século XX possibilita o avanço na crítica.
A lógica do "absurdo" impera: cabe ao homem descobrir o sentido do universo? O
universo, de fato tem algum sentido?
Passa ser absolutamente impossível e impensável tomar a uma lógica de "Ser", na medida
em que o abandono da falida lógica de certezas é obrigatório. O "Devir" passa a ser uma
incômoda, porém necessária presença nas respostas frente às questões perenes e aos seus
desdobramentos.
A evolução científica de cunho iluminista-racionalista desaguou na própria ruína de seus
pressupostos.
Toda a dor de se ver obrigado a abandonar as certezas modernas em prol da nova ordem
de probabilidades (em lugar das leis fixas), de infinito (ao invés de natureza compreensível), de
ausência de sentido (ao invés de racionalização da natureza) e de ausência espiritual (no lugar da
crença em um Deus soberano que passou a ser posta em xeque) pode ser sintetizada por Nietzsche,
que, às bordas do século XX, e crítico voraz do absolutismo moderno, prega a assunção dolorosa
da incerteza. O DEVIR incômodo, a custa de muito medo e insegurança, suplantou o falso
conforto do SER:
Deixamos a terra, subimos a bordo! Destruímos a ponte atrás
de nós, melhor destruímos a terra atrás de nós. E agora, barquinho,
toma cuidado! Dos teus lados está o oceano; é verdade que ele nem
sempre ruge; a sua toalha estende-se às vezes como seda e ouro, um
sonho de bondade. Mas, virão as horas em que reconhecerás que ele é
infinito e que não existe nada que seja mais terrível do que o infinito.
Ah! pobre pássaro, que te sentias livre e que esbarras agora com as
grades desta gaiola! Desgraçado de ti se fores dominado pela nostalgia
da terra, como se lá em baixo tivesse havido mais liberdade,... agora
que deixou de haver "terra"!
F.W. Nietzsche af. N.124 - G.C.