rené guénon e o papel tradicional do carnaval

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René Guénon e o papel TRADICIONAL do CARNAVAL Sobre a Significação das Festas Carnavalescas* . * Publicado na revista Études Traditionnelles, dez. 1945. . In: "Os Símbolos da Ciência Sagrada", 9ª edição. Trad. J. Constantino Kairalla Riemma. São Paulo: Pensamento, 1993. Cap. 21, pp. 126-130. . . . A propósito de certa "teoria da festa" formulada por um sociólogo, assinalamos(1) que essa teoria tinha, entre outros defeitos, o de querer reduzir todas as festas a um só tipo, que constitui o que se poderia denominar festas "carnavalescas", expressão que nos parece bastante clara por ser facilmente compreendida por todo mundo, pois o carnaval representa na verdade o que delas subsiste ainda hoje no Ocidente. Dizíamos, então, que se apresentam, em temas desse gênero, questões dignas de um exame mais aprofundado. De fato, o que sempre se evidencia nelas, antes de tudo, é uma impressão de "desordem" no sentido mais amplo da palavra. Como explicar então a existência dessas festas, não só numa época como a nossa, em que se poderia considerá-las simplesmente como uma das inúmeras manifestações do desequilíbrio geral, mas também, e mesmo com maior desenvolvimento, nas civilizações tradicionais, com as quais parecem incompatíveis à primeira vista? Não é inútil citar aqui alguns exemplos precisos. Mencionaremos em primeiro lugar, a esse respeito, certas festas com caráter bem estranho celebradas na Idade Média: a "festa do jumento", em que esse animal, cujo simbolismo propriamente "satânico" é bem conhecido em todas as tradições,(2) era introduzido até mesmo no próprio coro da igreja, onde ocupava o lugar de honra e recebia as mais extraordinárias provas de veneração; e a "festa dos loucos", em que o baixo clero entregava-se às piores inconveniências, parodiando tanto a hierarquia eclesiástica, quanto a própria liturgia.(3) Como é possível explicar que tais coisas, cujo caráter mais evidente é sem dúvida de paródia e até mesmo de sacrilégio,(4) tenham podido, numa época como aquela, ser não só toleradas, mas até mesmo admitidas de certa forma

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René Guénon e o Papel Tradicional Do Carnaval

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Page 1: René Guénon e o Papel Tradicional Do Carnaval

René Guénon e o papel TRADICIONAL do CARNAVAL

Sobre a Significação das Festas Carnavalescas*

.

* Publicado na revista Études Traditionnelles, dez. 1945.

.

In: "Os Símbolos da Ciência Sagrada", 9ª edição. Trad. J. Constantino Kairalla Riemma. São

Paulo: Pensamento, 1993. Cap. 21, pp. 126-130.

.

.

.

A propósito de certa "teoria da festa" formulada por um sociólogo, assinalamos(1) que essa

teoria tinha, entre outros defeitos, o de querer reduzir todas as festas a um só tipo, que

constitui o que se poderia denominar festas "carnavalescas", expressão que nos parece

bastante clara por ser facilmente compreendida por todo mundo, pois o carnaval representa

na verdade o que delas subsiste ainda hoje no Ocidente. Dizíamos, então, que se

apresentam, em temas desse gênero, questões dignas de um exame mais aprofundado. De

fato, o que sempre se evidencia nelas, antes de tudo, é uma impressão de "desordem" no

sentido mais amplo da palavra. Como explicar então a existência dessas festas, não só numa

época como a nossa, em que se poderia considerá-las simplesmente como uma das

inúmeras manifestações do desequilíbrio geral, mas também, e mesmo com maior

desenvolvimento, nas civilizações tradicionais, com as quais parecem incompatíveis à

primeira vista?

Não é inútil citar aqui alguns exemplos precisos. Mencionaremos em primeiro lugar, a esse

respeito, certas festas com caráter bem estranho celebradas na Idade Média: a "festa do

jumento", em que esse animal, cujo simbolismo propriamente "satânico" é bem conhecido

em todas as tradições,(2) era introduzido até mesmo no próprio coro da igreja, onde ocupava

o lugar de honra e recebia as mais extraordinárias provas de veneração; e a "festa dos

loucos", em que o baixo clero entregava-se às piores inconveniências, parodiando tanto a

hierarquia eclesiástica, quanto a própria liturgia.(3)

Como é possível explicar que tais coisas, cujo caráter mais evidente é sem dúvida de paródia

e até mesmo de sacrilégio,(4) tenham podido, numa época como aquela, ser não só

toleradas, mas até mesmo admitidas de certa forma oficialmente?

Mencionaremos ainda as Saturnais dos antigos romanos, das quais o carnaval moderno

parece ter derivado diretamente, ainda que seja apenas, para dizer a verdade, um vestígio

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muito empobrecido: durante essas festas, os escravos davam ordens aos senhores e estes os

serviam;(5) tinha-se então a imagem de um verdadeiro "mundo invertido", onde tudo se fazia

ao contrário da ordem normal.(6) Ainda que se pretenda comumente que havia nessas festas

uma evocação da "idade de ouro", essa interpretação é inteiramente falsa, por completo,

pois não se trata de uma espécie de "igualdade" que poderia ser vista a rigor como

representativa, na medida em que o permitem as condições presentes,(7) da indiferenciação

primitiva das funções sociais; trata-se de uma inversão das relações hierárquicas, o que é

inteiramente diferente. Uma tal inversão constitui-se, de modo geral, numa das

características mais claras do "satanismo". É preciso, portanto, ver nelas algo mais relativo

ao aspecto "sinistro" de Saturno, que por certo não lhe pertence enquanto deus da "idade do

ouro", mas sim na medida em que hoje é apenas o deus decaído de um período encerrado.

(8)

Podemos ver, por exemplo, que existe invariavelmente nas festas desse gênero um elemento

"sinistro" e mesmo "satânico", e que, de modo especial, é precisamente esse elemento que

agrada ao vulgar e excita a sua satisfação. Aí está, com efeito, alguma coisa que é muito

apropriada, muito mais que outra qualquer, para satisfazer às tendências do "homem

decaído", na medida em que essas tendências o impelem a desenvolver sobretudo as

possibilidades mais inferiores de seu ser. É nisso em particular que reside a verdadeira razão

de ser das festas em questão. Trata-se, em suma, de "canalizar", de algum modo, essas

tendências e de torná-las tão inofensivas quanto possível, dando-lhes ocasião de se

manifestarem, mas somente durante períodos muito curtos e em circunstâncias bem

determinadas, estabelecendo, assim, para essa manifestação, limites estreitos que não é

permitido ultrapassar.(9) Se não fosse assim, essas mesmas tendências, por falta de

receberem o mínimo de satisfação exigida pelo estado atual da humanidade, correriam o

risco de explodir, se pudermos assim dizer,(10) e estender seus efeitos à existência inteira,

coletiva e individual, causando uma desordem muito mais grave do que a que se produz

apenas durante alguns dias especialmente reservados a esse fim, e que é muito menos

temível por estar como que "regularizada". Por um lado, esses dias estão colocados em certa

medida fora do curso normal das coisas, de modo que não exerce sobre ele qualquer

influência apreciável, e no entanto, por outro, o fato de que não existe aí nada de imprevisto

"normaliza" de certa forma a própria desordem e a integra na ordem total.

Além dessa explicação geral, que é evidente quando se está disposto a refletir, existem

algumas observações úteis que podem ser feitas, em particular no que diz respeito às

"mascaradas", que desempenham um papel importante no carnaval propriamente dito e em

outras festas mais ou menos similares. E essas observações confirmarão ainda o que

acabamos de dizer. De fato, as máscaras de carnaval são em geral hediondas e evocam com

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freqüência formas animais ou demoníacas, de modo que são como que uma espécie de

"materialização" figurativa dessas tendências inferiores, até mesmo "infernais", que então é

lícito exteriorizar. Mais ainda, cada um escolherá naturalmente, mesmo sem ter consciência

clara disso, aquela que melhor lhe convém, isto é, aquela que representa o que está mais de

acordo com suas tendências dessa ordem. Assim, poderíamos dizer que a máscara,

supostamente destinada a ocultar o verdadeiro rosto do indivíduo, faz, ao contrário, aparecer

aos olhos de todos o que ele traz em si na verdade, mas que de hábito deve dissimular. É

bom notar, pois isso esclarece ainda mais a natureza de tais fatos, que existe aí uma espécie

de paródia da "reversão" que, tal como explicamos em outro lugar,(11) produz-se num certo

grau do desenvolvimento iniciático; paródia, dizíamos, e contrafacção verdadeiramente

"satânica", pois nesse caso a "reversão" é uma exteriorização, não mais da espiritualidade,

mas sim, pelo contrário, das possibilidades inferiores do ser.(12)

Para terminar esse esboço, acrescentaremos que se as festas dessa espécie estão-se

reduzindo cada vez mais, e só parecem despertar o interesse do povo, é porque, numa época

como a nossa, elas perderam na verdade sua razão de ser.(13) De fato, como se poderia

tratar ainda de "circunscrever" a desordem e encerrá-la em limites rigorosamente definidos,

quando está espalhada por toda parte e se manifesta sem cessar em todos os domínios em

que se exerce a atividade humana? Se nos mantivermos presos às aparências exteriores e a

um ponto de vista simplesmente "estético", poderíamos ser tentados a nos congratular com

o desaparecimento quase completo dessas festas, em especial pelo aspecto "disforme" de

que se revestem, como é inevitável. Mas essa desaparição, ao contrário, quando se vai ao

fundo das coisas, constitui-se em sintoma muito pouco tranqüilizador, pois revela que a

desordem irrompeu em todo curso da existência e se generalizou a tal ponto que, pode-se

dizer, estamos na realidade vivendo um sinistro e "eterno carnaval".

NOTAS:

.

.

1. Ver a revista É.T., abr. 1940, p. 169.

2. Seria um erro querer opor a isso o papel desempenhado pelo jumento na tradição

evangélica, pois, na realidade, o boi e o jumento, colocados lado a lado na manjedoura em

que Cristo nasceu, simbolizam respectivamente o conjunto das forças benéficas e maléficas;

tornamos a encontrá-los na crucificação, sob a forma do bom e do mau ladrão. Por outro

lado, Cristo montado num jumento, sua entrada em Jerusalém, representa o triunfo sobre as

forças maléficas, triunfo esse que se constitui na própria "redenção".

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3. Esses "loucos", aliás, levavam um chapéu com orelhas compridas, claramente destinadas

a evocar a idéia de uma cabeça de jumento, traço este que é muito significativo do ponto de

vista em que nos colocamos.

4. O autor da teoria a que nos referimos reconhece a existência dessa paródia e do

sacrilégio, porém, atribuindo-os ao seu conceito de "festa" em geral, pretende que sejam

elementos característicos do próprio "sagrado", o que não só é um paradoxo exagerado,

mas, também, é preciso dizer, claramente, uma contradição pura e simples.

5. Encontram-se, inclusive, em países muito diferentes, casos de festas do mesmo gênero em

que se chegava a conferir, temporariamente, a um escravo ou um criminoso as insígnias da

realeza, com todo o poder que comportam, com a ressalva de dar-lhe morte assim que a

festa terminasse.

6. O mesmo autor fala também, a esse respeito, de "atos às avessas" e mesmo de "retorno

ao caos", o que contém ao menos uma parte da verdade, mas, por uma surpreendente

confusão de idéias, assimila o caos à "idade de ouro".

7. Referimo-nos às condições do Kali-Yuga ou da "idade de ferro", da qual a época romana e

a nossa fazem parte.

8. Que os antigos deuses tornam-se, de uma certa forma, demônios, é um fato constatado

com grande freqüência, e a atitude dos cristãos em relação aos deuses do "paganismo" é um

caso particular disso, mas que parece não ter sido jamais explicado como deveria. Não

podemos, contudo, insistir sobre este ponto, que nos levaria fora do nosso tema. Deve ficar

bem entendido que isso tudo se refere apenas a certas condições cíclicas, mas que não afeta

ou modifica em nada o caráter essencial desses mesmos deuses enquanto simbolizam

intemporalmente princípios de ordem supra-humana, de modo que, ao lado desse aspecto

maléfico acidental, o aspecto benéfico, apesar de tudo, subsiste sempre, até mesmo quando

completamente desconhecido pelas "pessoas de fora". A interpretação astrológica de

Saturno poderia fornecer um exemplo muito claro a esse respeito.

9. Isso corresponde à questão do "enquadramento" simbólico, à qual nos propomos voltar.

[Ver cap. 66.]

10. No fim da Idade Média, quando as festas grotescas de que falávamos foram suprimidas

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ou caíram em desuso, produziu-se uma expansão da feitiçaria desproporcional ao que se

havia visto nos séculos precedentes. Esses dois fatos têm uma relação muito direta entre si,

ainda que geralmente despercebida, o que é, aliás, mais surpreendente na medida em que

existem algumas semelhanças evidentes entre tais festas e o sabá dos bruxos, em que tudo

se fazia também "às avessas".

11. Ver Initiation et réalisation spirituelle, cap. XXX: L'Esprit est-il dans le corps ou le corps

dans l'esprit?

12. Havia ainda, em certas civilizações tradicionais, períodos especiais em que, por razões

análogas, permitia-se que as "influências errantes" se manifestassem livremente, tomando-

se no entanto todas as precauções necessárias em tais casos. Essas influências

correspondem, naturalmente, na ordem cósmica, ao que é o psiquismo inferior no ser

humano e, por conseguinte, entre a sua manifestação e as influências espirituais existe a

mesma relação inversa que entre as duas espécies de exteriorização que acabamos de

mencionar. Afinal, nessas condições, não é difícil compreender que a própria mascarada

parecer figurar, de certo modo, o aparecimento de "larvas" ou espectros maléficos.

13. Isso quer dizer que, para falar claro, elas são apenas "superstições", no sentido

etimológico da palavra.