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Renata Pereira Lima “A fantasia de atleta no imaginário de corredores amadores” Análise do papel das marcas esportivas na construção da imagem de participantes de grupos de corrida Mestrado Ciências Sociais / Antropologia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo - 2007

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Page 1: Renata Pereira Lima - PUC-SP lima.pdf1. A corrida de rua e o seu crescimento 21 Assessorias esportivas especializadas em corrida de rua 33 Run & Fun: Treinos durante a semana no Parque

Renata Pereira Lima

“A fantasia de atleta no imaginário de corredores amadores” Análise do papel das marcas esportivas na construção

da imagem de participantes de grupos de corrida

Mestrado

Ciências Sociais / Antropologia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo - 2007

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Renata Pereira Lima

“A fantasia de atleta no imaginário de corredores amadores” Análise do papel das marcas esportivas na construção

da imagem de participantes de grupos de corrida

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais / Antropologia, sob

orientação da Profa. Dra. Dorothea Voegeli Passetti

Mestrado

Ciências Sociais / Antropologia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo - 2007

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Banca Examinadora

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Resumo

Esta pesquisa teve como objetivo descrever e analisar a imagem que os

corredores amadores participantes do grupo de corrida Run & Fun, em São Paulo,

fazem de si: como eles se vêem e que valores os caracterizam e os unem. Para

tal, foi realizada uma pesquisa etnográfica durante um ano, em que se observou e

descreveu a rotina dos corredores e seus relacionamentos entre si, com os

treinadores e a vestimenta usada (o uniforme e o tênis).

Considerando que existem corredores iniciantes e corredores experientes ou

iniciados no grupo, a pesquisa buscou identificar se ambos compartilham uma

mesma imagem ou se a imagem dos corredores iniciantes é construída ao longo

do tempo, através da convivência com corredores iniciados. A pesquisa também

buscou analisar o papel que as principais marcas de tênis, Asics, Mizuno e Nike,

desempenham nesta imagem idealizada dos corredores.

A convivência durante um ano com os atletas deste grupo mostrou que corredores

iniciantes e iniciados não compartilham a mesma imagem idealizada do que é ser

um corredor amador. Cada um deles constrói a sua própria “fantasia de atleta”, ou

seja, se relaciona com a corrida e com o grupo de corrida através de diferentes

simbologias. Neste sentido, não apenas as marcas de tênis, mas também os

grupos de corrida, são marcas que carregam distintos significados incorporados

ou construídos pelos próprios corredores, constituindo as “fantasias de atleta”.

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Abstract

The main objective of this research was to describe and analyse the image that

amateur runners, members of the runners´ team Run & Fun, in São Paulo, have of

themselves: how they perceive themselves as runners and what are the values

that characterize and unite them. An ethnographic research was conducted during

one year in which the runners´ routine and their relationship among themselves

and with the trainers were observed and described, as well as their clothes (the

team´s uniform and the sneakers).

Considering that there are beginner and initiate runners in the group, this research

tried to identify if both kinds of runners share the same image or if beginner´s

image is built by their companionship with initiate runners. The research also tried

to identify the role that the main sneakers´ brands, Asics, Mizuno and Nike, play in

the idealized runners´ image.

Living together with these athletes during one year revealed that beginners and

initiates do not share the same idealized image of being an amateur runner. Each

of them create their own “athlete´s fantasy”. In other words, they use different

symbols to be connected with running and with the runners´ team. In a sense,

sneakers´ brands and runners´ teams are brands that have different meanings built

up by the runners to create their “athlete´s fantasies”.

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Meus agradecimentos às pessoas especialmente envolvidas neste Mestrado:

Fernando, meu marido, pelas freqüentes e incansáveis palavras de incentivo nesta minha “maratona” e em tantas

outras corridas que fizemos (e faremos) lado a lado!...

Dodi, minha orientadora, por todos os pacientes ensinamentos

ao longo destes anos.

Cecília e Jaime Troiano, grandes amigos, pelo apoio de sempre para dar conta

desta “vida de equilibrista”...

Cristiana Pupo Feola, querida amiga, por estar sempre por perto para ler, reler, traduzir

e incentivar essa minha iniciativa.

Luísa, minha filhinha... por ter esperado a defesa desta dissertação de mestrado

para nascer e nos encher de alegria!

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Sumário

Antropóloga e Corredora: fusão de papéis 1

1. A corrida de rua e o seu crescimento 21

Assessorias esportivas especializadas em corrida de rua 33

Run & Fun: Treinos durante a semana no Parque Villa-Lobos, em São Paulo 39

Run & Fun: Treinos aos sábados, na Cidade Universitária, em São Paulo 45

2. A “fantasia de atleta”: diferentes imagens entre iniciantes e iniciados 54

A “fantasia de atleta” de um corredor iniciante: o vestuário de um novato no esporte 63

A “fantasia de atleta” de um corredor iniciado: o vestuário de um atleta mais experiente 69

Quadro-resumo: as “fantasias de atletas” de iniciantes e iniciados 86

Vínculos fluidos: marcas e grupos na era da modernidade líquida 87

Referências 99

Anexos 101

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Antropóloga e Corredora: fusão de papéis

Trinta mil pessoas acordaram cedo em uma ensolarada manhã de domingo de

setembro de 2004 e se dirigiram à Cidade Universitária, em São Paulo, para

participar da 12a. Maratona de Revezamento do Pão de Açúcar. Vinte mil pessoas

fizeram o mesmo para fazer parte da primeira corrida de 10 km organizada pela

marca Nike em outubro de 2005, nos arredores do Jockey Club de São Paulo. No

Rio de Janeiro, quinze mil participantes se reuniram para correr a meia-maratona

da cidade, em agosto de 2006.

Ano após ano, as corridas de rua vêm conquistando os espaços públicos das

grandes metrópoles, atraindo novos adeptos. Seja simplesmente pelo desejo de

praticar uma atividade física, seja pela busca de um estilo de vida mais saudável,

este é um esporte que encontrou seu espaço na vida contemporânea. O seu

grande crescimento também foi potencializado pelo surgimento das assessorias

esportivas, empresas formadas por profissionais de educação física

especializados em corrida, que passaram a organizar treinamentos em grupo para

atletas amadores. As assessorias esportivas popularizaram o acesso ao esporte e

facilitaram, principalmente, o ingresso de corredores iniciantes neste meio.

Nas assessorias esportivas, ou grupos de corrida, como também são chamadas,

os corredores iniciantes convivem com corredores mais experientes, ou

“iniciados”, mas que estão longe de ser profissionais no esporte. O caráter amador

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está na essência desta nova atividade. Os participantes dos grupos de corrida

reconhecem suas limitações físicas e não possuem qualquer ambição de se tornar

atletas profissionais, que vivem do e para o esporte. Não alimentam qualquer

frustração por não ter vencido determinada corrida simplesmente porque têm total

consciência de que não a vencerão. O objetivo para com a corrida é, basicamente,

praticar o esporte e superar desafios pessoais. Ainda que não necessariamente, a

participação em provas pode ser uma conseqüência deste objetivo.

Mesmo sabendo que não subirão ao pódio das principais corridas de rua, ou seja,

que não serão reconhecidos ou aclamados como heróis públicos e notórios, os

corredores amadores sentem-se pessoas diferenciadas, vencedoras e dignas de

destaque no meio em que circulam. Identificam-se entre si pelo status e prestígio,

mesmo que inconsciente, de fazer parte de um grupo de corrida. Demonstram o

desejo de serem percebidos como pessoas ativas e saudáveis, que praticam este

esporte de forma orientada e séria, apesar de amadora. Querem ser percebidos

como atletas que adotaram a corrida como esporte, à qual se dedicam com

determinação, a despeito de todas as impossibilidades de atingirem o estágio de

desempenho profissional.

Dentro deste cenário, o presente trabalho de pesquisa teve como objetivo analisar

a imagem que os corredores amadores participantes de um grupo de corrida

fazem de si. Como eles se vêem? Que valores os caracterizam e os unem?

Corredores iniciantes compartilham esta mesma imagem, ou ela é construída ao

longo do tempo, através da convivência com corredores iniciados? O grupo de

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corrida exerce algum tipo de influência no processo de consolidação da imagem

que os corredores fazem de si?

Como um desdobramento importante deste objetivo central, a pesquisa buscou

analisar o papel que as principais marcas esportivas representam nesta imagem

idealizada do corredor. Elas exercem alguma influência na construção da imagem

dos atletas? Os corredores percebem-se de forma diferenciada ao utilizarem esta

ou aquela marca esportiva? Corredores iniciantes e iniciados valem-se das

mesmas marcas para compor a sua imagem de atleta? Em outras palavras, as

marcas de tênis, tais como Nike, Asics e Mizuno, exercem influência semelhante

sobre os corredores do grupo?

Conceitualmente, uma marca é

“um nome diferenciado e/ou um símbolo (tal como um logotipo,

marca registrada, ou desenho de embalagem) destinado a

identificar os bens ou serviços de um vendedor ou de um grupo

de vendedores e a diferenciar esses bens e serviços daqueles

dos concorrentes. Assim, uma marca sinaliza ao consumidor a

origem do produto e protege, tanto o consumidor quanto o

fabricante, dos concorrentes que oferecem produtos que pareçam

idênticos” (AAKER, 1998: 7).

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No entanto, o escopo das marcas não se limita apenas ao comércio de bens e

serviços. As marcas são capazes de suscitar lembranças e associações como

uma forma de diferenciação de seus concorrentes. “Uma associação de marca é

algo ‘ligado’ a uma imagem na memória” (AAKER, 1998: 114). Quando pensamos

na marca Mc Donald´s, por exemplo, uma série de associações vêm à cabeça: o

Ronald Mc Donald´s, algum sanduíche específico, um sentimento de voltar a ser

criança, os arcos dourados (“M”), um estilo de vida estressante etc. Este conjunto

de associações é chamado de imagem de marca. Escolher determinada marca

implica acolher e incorporar, mesmo que inconscientemente, o seu conjunto de

associações, ou seja, a sua imagem. Por este motivo, as marcas revelam muito

sobre quem as consome. Elas ajudam a mostrar quem são estas pessoas e o que

elas valorizam. Sob um outro ângulo de análise, elas também ajudam a sinalizar a

imagem idealizada dos consumidores, isto é, quem eles gostariam de ser e como

gostariam de ser percebidos pelos outros.

Comer no Mc Donald´s pode significar que o consumidor é ou quer ser visto como

uma pessoa alegre e divertida, ou como alguém que não tempo a perder, ou como

alguém pouco preocupado em seguir uma alimentação equilibrada e saudável. A

ampla imagem desta marca permite este leque variado de interpretações.

As marcas de esporte também revelam as imagens que seus usuários desejam

transmitir para as outras pessoas, ou seja, que tipo de atleta eles gostariam de ser

ou de aparentar ser. Uma determinada marca de tênis de corrida, por exemplo,

sugere que o atleta correrá mais rápido e, por isso, superará obstáculos,

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conquistará desafios, vencerá limites. Outra marca sugestiona que o corredor que

usa seus tênis fez uma escolha inteligente, pois passa a pertencer a um grupo

maior de corredores, mais experientes, e que também optaram por ela. Uma

terceira marca de tênis deixa implícito que o seu usuário é um corredor

consciente, preocupado em correr com segurança, que protege seu corpo dos

impactos causados pela corrida.

O recorte utilizado nesta pesquisa foi o das assessorias esportivas ou grupos de

corrida. O grupo de corrida escolhido para ser objeto deste estudo foi a assessoria

esportiva Run & Fun em São Paulo. Diferentemente das demais assessorias

presentes na cidade, que se restringem a um único local de treinamento, a Run &

Fun está presente em seis diferentes locais da cidade. Uma estrutura deste porte

permitiu a realização de um estudo mais abrangente, com uma equipe de

corredores mais numerosa. Durante os dias de semana, a Run & Fun possui

grupos de treinamento localizados no Parque do Ibirapuera, no Parque da Água

Branca, no Parque Villa-Lobos, no Jockey Club de São Paulo e em Alphaville. Aos

sábados, os atletas de todos estes grupos reúnem-se na Cidade Universitária para

um treinamento único.

Minha proposta foi a de estudar o grupo geral e um dos grupos específicos para

analisar eventuais semelhanças e diferenças entre eles. Desta forma, ao invés de

estudar apenas um único grupo de corrida, propus-me a estudar dois grupos e

aprofundar não apenas as características e os comportamentos de cada um,

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individualmente, mas também a forma de inserção do grupo menor dentro do

maior.

A escolha do grupo menor, ou específico, obedeceu ao mesmo critério que as

pessoas utilizam na hora de optar por um grupo de corrida: a proximidade da

residência ou do trabalho. Constatou-se, nesta pesquisa, que ninguém se dispõe a

atravessar a cidade para realizar qualquer atividade, por mais prazerosa que ela

seja. As restrições impostas pelo trânsito, principalmente, e a disponibilidade

restrita de horários livres fazem com que a prioridade seja dada às atividades mais

próximas da residência ou do trabalho.

Seguindo este critério, portanto, o grupo de corrida da Run & Fun do Parque Villa-

Lobos foi o escolhido como objeto desta pesquisa por ser próximo da minha

residência. Apesar de haver outras assessorias esportivas presentes no Parque

Villa-Lobos como a Kaluaná, a Palos, a T.P.M. (Treinamento Para Mulheres) e a

Equipe Movimento, nenhuma delas possuía a estrutura diversificada da Run &

Fun.

De janeiro a dezembro de 2005, período de realização desta pesquisa, a Run &

Fun esteve presente no Parque Villa-Lobos com um grupo de treinamento coletivo

de corrida que se reunia às terças e às quintas-feiras, entre 6:30h e 8:30h. O

grupo, que na época já tinha praticamente oito meses de existência, era formado

por aproximadamente vinte pessoas, sendo 60% de homens e 40% de mulheres,

com idade média entre 25 e 60 anos. Havia quatro treinadores: Silvio Camargo,

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Márcio Campos, Camila Cese Souza e André Fiedler, que se dividiam para

coordenar as várias atividades de cada treino. Antes de se juntarem ao grupo,

alguns atletas já praticavam a corrida de maneira individual, ou seja, corriam

sozinhos, “por conta própria”.

A escolha do grupo de corrida do Parque Villa-Lobos em função da sua

localização também teve uma razão de caráter metodológico. Meu interesse,

enquanto pesquisadora era o de conhecer, absorver e decodificar a dinâmica

cultural do grupo a partir de um olhar interno, ou seja, de dentro para fora e não de

fora para dentro. Uma das formas disto acontecer seria efetivamente fundir-me ao

grupo, sendo “um deles”, pertencendo. Considerando que todos os membros do

grupo de corrida, sem exceção, eram moradores dos bairros próximos ao parque

(Alto de Pinheiros, Vila Madalena, Vila Beatriz, City Lapa, Vila Leopoldina), ser

também uma moradora “da região” era um fator importante para começar a ser

percebida como “igual”, como parte do grupo.

Diferentemente de Bronislaw Malinoswki (1984), que durante seu trabalho de

campo nas ilhas do sul do Pacífico, na década de 1920, não tinha como deixar de

ser um ocidental entre os nativos das Ilhas Trobriand; ou do economista

americano William Foote Whyte (2005), que não tinha como deixar de ser um

cidadão de classe média alta estudando um bairro pobre italiano de Boston no

começo do século XX; ou do sociólogo Loïc Wacquant (2002), que não tinha como

deixar de ser um francês entre americanos ao estudar uma academia de boxe de

uma comunidade afro-americana de baixa renda na cidade de Chicago, na década

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de 1980, eu não queria ser vista como uma pessoa de fora, estranha ao perfil do

grupo, que se juntaria a ele somente para observá-lo.

Wacquant, quando realizou este estudo etnográfico, foi enfático ao ressaltar o

“profundo sentimento de mal-estar e de embaraço físico” (WACQUANT, 2002: 21)

por ser o único branco a freqüentar aquela academia de atletas negros.

Apesar destas situações não trazerem nenhum problema metodológico grave para

a pesquisa, já que muitos pesquisadores assim o fizeram e foram bem sucedidos

em suas iniciativas, o próprio Malinoswki reconhece que a presença do etnógrafo

altera o dia-a-dia do grupo estudado. Ainda que isso acontecesse apenas no início

dos trabalhos:

“Com o passar do tempo, acostumados a ver-me constantemente, dia

após dia, os nativos deixaram de demonstrar curiosidade ou alarma em

relação à minha pessoa nem se sentiam tolhidos com minha presença –

deixei de representar um elemento perturbador na vida tribal que devia

estudar, alterando-a com minha aproximação, como sempre acontece

com um estranho em qualquer comunidade selvagem” (MALINOWSKI,

1984: 21).

Meu intuito como pesquisadora era, portanto, o de ser percebida exatamente

como os outros membros do grupo e de me fundir com eles. Apesar de

reconhecer a interferência do etnógrafo, o próprio Malinowski questionaria este

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aspecto metodológico alegando que não é necessário ser um “nativo” para se

conhecer um, conforme o cita Clifford Geertz (GEERTZ, 2003: 88). Ele seria

acompanhado nesse questionamento por outros antropólogos que relembrariam a

questão central da Antropologia de estudar o “outro” considerando certa distância.

De fato, não se quer reduzir a importância do distanciamento ou da experiência da

alteridade na Antropologia, mas sim pontuar que é possível estar fisicamente

dentro de um grupo e ter, ao mesmo tempo, uma postura que permita “aprender a

ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é

estrangeiro” (MERLEAU-PONTY, 1984: 200). O fato de “ser um deles” não implica

em ausência de distanciamento ou em perda da importância do “outro”. Muito pelo

contrário, “ser um deles” exige uma maneira de pensar diferente, exige mais

estranhamento, exige mais perplexidade. Como complementa Merleau-Ponty,

“também viramos etnólogos de nossa própria sociedade, se tomarmos distância

com relação a ela” (MERLEAU-PONTY, 1984: 199-200). O distanciamento

continua sendo, portanto, uma condição sine qua non nesta abordagem

metodológica.

“Tornar-se um nativo” pode ser considerada uma das várias formas de se conduzir

uma análise antropológica e estruturar os seus resultados. Independentemente da

forma, porém, o importante é descobrir o que os “nativos” acham que estão

fazendo. E o próprio Geertz reconhece o fato de que ninguém sabe tão bem o que

eles estão fazendo quanto eles próprios. Não é à toa que afirma que “somente um

‘nativo’ faz a interpretação em primeira mão” (GEERTZ, 1989: 11), enquanto que

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os textos antropológicos seriam apenas interpretações de segunda e terceira mão.

Eis, portanto, o meu interesse em me tornar uma “nativa”.

A fusão dos papéis de informante e etnógrafa pareceu ser uma alternativa de

pesquisa antropológica que contribuiria para a elaboração de uma interpretação

em primeira mão, desde que mantido o devido distanciamento com relação ao

grupo estudado. Com um olhar sempre atento e questionador, evitei acostumar-

me com os hábitos, costumes e atitudes do grupo estudado, pois ao mesmo

tempo em que precisava aprofundar o meu conhecimento sobre o grupo, não

podia perder a visão crítica diante dos fatos, que tendiam a parecer cada vez mais

comuns com o passar do tempo.

Por já ser freqüentadora regular do Parque Villa-Lobos e, principalmente, por ser

uma ex-atleta amadora, pesquisar este grupo específico resultou em uma

oportunidade única de observar a cena local a partir do ponto de vista interno, e

de, ao mesmo tempo, ser confundida com um participante típico do grupo:

freqüentador do Parque Villa-Lobos, morador de um bairro próximo ao Parque,

com idade dentro da faixa etária de maior incidência no grupo, com um perfil

sócio-econômico-cultural semelhante.

Eu chegava e saía dos treinos com meu próprio carro, assim como eles. Usava o

mesmo tipo de tênis, das mesmas marcas, o mesmo modelo de camisetas e

frequencímetro, assim como eles. Participava das mesmas atividades durante os

treinos, competições e eventos, assim como eles. Segui os passos de Malinowski

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que, “tendo compreendido que a única maneira de conhecer os outros é

partilhando suas existências, ele inventou literalmente e colocou em prática pela

primeira vez a observação participante, dando-nos o exemplo do que deve ser o

estudo intensivo de uma sociedade que nos é estranha” (LAPLANTINE, 2004: 68).

Como complementa James Clifford,

“a observação participante obriga seus praticantes a

experimentar, tanto em termos físicos quanto intelectuais, as

vicissitudes da tradução. Ela requer (...) um grau de envolvimento

direto e conversação, e freqüentemente um ‘desarranjo’ das

expectativas pessoais e culturais” (CLIFFORD, 2002: 20).

A observação participante serviu de base para a realização deste trabalho

etnográfico, no qual foi dada ênfase ao poder da observação de comportamentos,

rotinas e hábitos, além dos movimentos e “gestos característicos passíveis de

registro e explicação por um observador treinado” (CLIFFORD, 2002: 29).

A escolha deste método permitiu a combinação de uma experiência pessoal

intensa com uma análise antropológica que situasse os significados em contextos

mais amplos. Indo além, o fato de estar fundida com o grupo, de realmente ser um

deles, fez com que esta pesquisa etnográfica fosse mais do que uma observação

participante. Ela tornou-se, na verdade, uma “participação observante”

(WACQUANT, 2002: 23), uma vez que eu também era parte integrante e ativa do

ato e do discurso social. O fato de nenhum dos depoimentos obtidos ao longo da

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pesquisa terem sido formalmente solicitados também contribui para qualificar a

pesquisa como tal. Os comportamentos analisados refletem os corredores em seu

ambiente natural, evitando-se, desta forma, a reprodução glamourizada de relatos

que espelhassem apenas como os corredores gostariam de ser vistos pelos

outros. Assim como Loïc Wacquant tornou-se ele próprio um boxeador, tornei-me

uma aprendiz de corredora ao me juntar ao grupo da Run & Fun do Villa-Lobos.

Este trabalho de pesquisa junto ao grupo de corredores da Run & Fun do Parque

Villa-Lobos teve seu início em janeiro de 2005. Ao longo dos 12 meses da minha

pesquisa etnográfica, utilizei técnicas e processos típicos de uma etnografia

tradicional, como estabelecer relações, transcrever diálogos e manter um

detalhado diário de campo. Porém, mais do que isso, procurei captar os elementos

que me permitissem elaborar uma “descrição densa” do grupo de corrida,

referindo-me ao conceito originalmente criado por Gilbert Ryle e adaptado por

Geertz à sua Antropologia Interpretativa, na década de 1970. Para Geertz, a

etnografia é uma descrição densa de fatos pequenos, mas intrinsecamente

entrelaçados. Ao analisar o ensaio sobre as piscadelas desenvolvido por Ryle,

Geertz mostra que a etnografia tem de ser capaz de separar as piscadelas dos

tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras das imitadas. Estes movimentos,

aparentemente idênticos, podem esconder diversos e distintos significados que a

etnografia tem condições de distinguir. O ato de piscar, a imitação do ato de

piscar, a farsa da imitação do ato de piscar, o ensaio da farsa da imitação do ato

de piscar são “partículas de comportamento” (GEERTZ, 1989: 5), são sinais de

cultura, são o objetivo da etnografia.

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No grupo de corrida, questões aparentemente simples, como perguntar para outro

corredor quanto tempo ele demorou para terminar uma prova, poderiam ser

descritas superficialmente como meramente informativas. A pesquisa etnográfica,

no entanto, revelou significados que remetem, por exemplo, à competição velada

existente no grupo, e muitas vezes ocultada pelo seu caráter amador e amistoso.

O próprio nome do grupo “Run & Fun” (corrida e diversão) parece ser uma

tentativa de minimizar as questões competitivas e intrínsecas do esporte,

priorizando o entretenimento e a integração das pessoas.

Após o meu primeiro treino, em janeiro de 2005, comecei a escrever o meu diário

de campo, registrando a cada manhã de terça-feira, quinta-feira e sábado as

descobertas, os acontecimentos e seus desdobramentos, os hábitos, as rotinas,

as interações com os atletas e treinadores e os assuntos que eram temas de

conversas durante os treinos.

Percebi, rapidamente e com muita clareza, que tinha vários desafios pela frente. O

primeiro deles era saber se eu seria capaz de correr, de acompanhar o grupo,

para então pensar em construir uma relação de cumplicidade, confiança e respeito

com os demais atletas do grupo. Isto implicaria não somente em acordar às seis

da manhã três vezes por semana, mas também em parar de torcer para chover

nestes dias... Estar presente nos treinos, não faltar a nenhum deles, era a matéria

prima elementar para o desenvolvimento desta pesquisa.

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Sempre pratiquei esportes de forma amadora: handebol, tênis, vôlei. Em todos

eles, a necessidade de um bom condicionamento físico me conduzia, a

contragosto, para os treinamentos de corrida, que estavam longe de ser uma

atividade divertida. A corrida sempre foi vista como uma obrigação, como um meio

e não um fim, para melhorar o desempenho em outro esporte. Eu nunca tinha

corrido de forma séria, organizada, estruturada, disciplinada ou competitiva. Tinha

as imagens estereotipadas que qualquer pessoa pode formar a respeito da

corrida, seja através da mídia, propagandas, publicações especializadas ou de

conversas com amigos corredores. Posso dizer que minha situação, em janeiro de

2005, era a de uma pessoa completamente novata no esporte, pronta para, como

diria Loïc Wacquant, uma “imersão iniciática” (WACQUANT, 2002: 11).

Não foi uma surpresa, portanto, que o começo do treinamento tenha sido bastante

doloroso. Física e psicologicamente falando. A sensação de que “eu não tinha

nascido para correr”, alimentada pelos sentimentos de frustração e desânimo, foi

freqüente e recorrente ao longo dos primeiros meses de trabalho de campo. Mas,

durante os doze meses da pesquisa, consegui participar de 156 treinos e cinco

provas, de seis e de dez quilômetros, sempre na companhia de atletas da Run &

Fun do Parque Villa-Lobos. Somente com o passar do tempo e com muita

dedicação, consegui melhorar meu condicionamento físico, iniciar um

condicionamento mental, adquirir técnicas de corrida para, enfim, poder entender

o que eles queriam dizer com ‘estratégias de corrida’: começar a prova em um

ritmo mais lento que o habitual (“sair para 6 minutos e meio por quilômetro”),

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encontrar o seu ritmo de corrida (“encaixar o ritmo”) e acelerar no final da prova

(“apertar no final, correndo para cinco e trinta”).

Este trabalho de pesquisa com o grupo ajudou-me a correr mais e melhor. E correr

ajudou-me a pesquisar com mais intensidade e profundidade. Os momentos de

sofrimento, porém, não foram poucos e o que me fazia ir além era o interesse de

preencher, com a vivência etnográfica, as lacunas analíticas deixadas pela

observação. Como lembra Wacquant,

“O agente social é, antes de mais nada, um ser de carne, de

nervos e de sentidos (no duplo sentido de sensual e de

significante), um ‘ser que sofre’ (...) e que participa do universo

que o faz e que, em contrapartida, ele contribui para fazer, com

todas as fibras do seu corpo e de seu coração” (WACQUANT,

2002: 11).

Para minha própria surpresa, e também das pessoas que estavam próximas de

mim naquela época, fui aos poucos gostando de correr, a ponto de passar a

dormir cedo às sextas-feiras ou de deixar de viajar nos finais de semana para

poder treinar aos sábados de manhã, de acordar às seis da manhã aos domingos

para participar de competições que geralmente começam às oito horas. Em

setembro de 2006, participei de minha primeira meia-maratona (21 km).

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Considerando que os corredores dizem o que pensam, mas fazem o que sentem,

somente estando “na sua pele” para aprender novos significados de palavras

como “esforço”, “sofrimento” e “superação”. Além de aprendiz de corredora, fui

também aprendiz de antropóloga, uma vez que sou administradora de empresas

com especialização em Marketing.

Um segundo desafio colocado por esta pesquisa foi o de investigar, a partir da

minha fusão local, os elementos que compõem o código da imagem dos

corredores. Eles existiam, de fato? Que valores uniam estas pessoas? Seriam de

qual natureza? Será que eu conseguiria perceber, a partir da vivência etnográfica,

a eventual influência das marcas esportivas dentro do grupo de corrida?

Geertz acredita, concordando com Max Weber, “que o homem é um animal

amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu” e assume “a cultura como

sendo essas teias e a sua análise” (GEERTZ, 1989: 4). Considerando as

particularidades e peculiaridades deste grupo, que serão objeto de discussão nos

demais capítulos, percebe-se a existência de valores comuns que unem os seus

participantes e que os caracterizam.

Para correr em grupo, é preciso aprender algumas regras, rotinas e hábitos, fazer

as coisas de um determinado jeito. Alongar-se antes e depois de correr, medir a

freqüência cardíaca e informá-la ao treinador, alimentar-se corretamente antes e

depois dos treinos e provas etc. É preciso, também, aprender o jargão do esporte,

ou seja, o significado de expressões como “correr para quanto?” ou “quebrar na

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prova”. E, ao juntar-se ao grupo de corrida, aprender que quem entende de corrida

só usa tênis das marcas Asics e Mizuno... Como complementa Geertz,

“Para fazer um tratado comercial em Marrocos você tem que

fazer certas coisas, de uma certa maneira (entre outras, enquanto

canta em árabe Quranic, cortar a garganta de um cordeiro ante

os membros masculinos adultos, não-aleijados, de sua tribo

reunidos) e possuir certas características psicológicas (entre

outras, um desejo de coisas distantes). Mas um pacto comercial

não é nem cortar a garganta nem o desejo (...) A cultura é pública

porque o significado o é. Você não pode piscar (ou caricaturar a

piscadela) sem saber o que é considerado uma piscadela ou

como contrair, fisicamente, suas pálpebras, e você não pode

fazer uma incursão aos carneiros (ou imitá-la) sem saber o que é

roubar um carneiro e como fazê-lo na prática” (GEERTZ, 1989:9).

Voltando à corrida, você “não deve” utilizar uma camiseta de uma prova da qual

não participou ou vangloriar-se por ter sido o corredor mais rápido do grupo em

determinada prova. Ou “não deve” usar um tênis Nike se não quiser ser percebido

como um iniciante em corrida. Estes são alguns exemplos de atitudes identificadas

no grupo de corrida pesquisado, que explicitam alguns elementos que constituem

a imagem dos corredores.

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O terceiro e último desafio era o de identificar o momento correto de contar ao

grupo sobre o meu trabalho de pesquisa. O caráter “incógnito” da minha inserção

no grupo certamente foi um fator de fundamental importância para a conclusão da

pesquisa. O desconhecimento de parte das minhas motivações para correr com o

grupo permitiu que as pessoas se mostrassem como elas realmente são, como

pensam, o que valorizam, o que fazem e o que não fazem.

Tenho a convicção de que não conquistaria a confiança do grupo da mesma forma

se tivesse sido apresentada como uma antropóloga que estuda grupos de corrida.

Isto teria causado alguma influência na percepção do grupo sobre mim e,

conseqüentemente, no contexto do sistema social e simbólico que vivenciamos ali.

O fato de já ter praticado vários esportes no passado, de ser jovem e competitiva,

deram-me, como diria Loïc Wacquant, um “pequeno capital inicial esportivo” para

encarar com algum sucesso os treinos e provas. E, com isso, estar bastante

próxima ao grupo a ponto deles perceberem e valorizarem a minha evolução como

corredora. Felizmente, a reação dos corredores à revelação do meu projeto de

pesquisa foi a melhor possível. Reconheceram que a corrida vive um “boom” e é

hoje o esporte do momento, a ponto de se tornar objeto de estudo acadêmico das

Ciências Sociais. Isto fez com que se sentissem pessoas importantes e

“antenadas” com as tendências do momento. Inevitavelmente, também passaram

a brincar com o tema: “Olha lá a antropóloga correndo!...”.

Acredito que o fato de ter sido “incorporada” e reconhecida pelo grupo como

membro integrante e participante ativa, antes da divulgação da existência do

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estudo, contribuiu muito para os resultados da pesquisa. Durante doze meses,

vivenciei com eles o nascimento da filha de um dos corredores, uma festa de fim

de ano, uma festa de despedida de um treinador (Márcio Campos) e um evento de

inauguração de uma pizzaria cujo dono é corredor do grupo. Pude também

acompanhar a intensa preparação de alguns atletas para três corridas de

revezamento e uma maratona e as suas respectivas comemorações. Construímos

uma relação de relativa proximidade e empatia.

Na visão de Geertz, entretanto, não é preciso ter sentimentos de empatia para

penetrar no universo do outro. Para ele, é perfeitamente possível “compreender o

sentido de um provérbio, captar uma alusão, entender uma piada” sem “conseguir

uma comunhão de espíritos” (GEERTZ, 2003:107). Porém, apesar dele considerar

que a compreensão da cultura dos informantes independe da experiência ou da

sensação de ser aceito, ele reconhece que ser aceito contribui para o

desenvolvimento da habilidade para analisar os sistemas simbólicos em questão.

A pesquisa está organizada em dois capítulos, além da conclusão. No primeiro

deles, apresento o crescimento expressivo que as corridas de rua tiveram no

Brasil a partir da década de 1990, em especial na cidade de São Paulo, e a

importância do papel desempenhado pelas assessorias esportivas para o

crescimento deste esporte. Descrevo a dinâmica do funcionamento dos

treinamentos em grupo, explorando questões relativas aos atletas iniciantes e

iniciados.

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No segundo capítulo, apresento os elementos identificados pela pesquisa que

compõem a imagem que os corredores fazem de si. Atribuo a esta imagem o

nome de “fantasia de atleta”. Desenvolvo, então, uma das descobertas da

pesquisa que é a identificação de não apenas de uma, mas de duas “fantasias de

atleta”: a dos corredores iniciantes e a dos corredores iniciados. Exploro, como

conseqüência disto, a principal diferença entre elas: a percepção que corredores

iniciantes e iniciados têm das marcas de tênis Nike, Asics e Mizuno.

Na conclusão, analiso o papel que as marcas e o grupo, de fato, desempenham

no âmbito da corrida e discuto os fortes traços de contemporaneidade

identificados neste estudo.

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1. A corrida de rua e o seu crescimento

O sucesso da Volta de São Paulo e da Volta de Piracicaba, realizadas em 1918 e

1919 respectivamente, e de uma corrida noturna francesa em que os corredores

carregavam tochas de fogo durante o percurso serviram de inspiração para o

jornalista Cásper Líbero criar a Corrida de São Silvestre em 1924, na cidade de

São Paulo. Na sua primeira edição, apenas 60 corredores se inscreveram e,

destes, apenas 48 compareceram para disputar a corrida. Atualmente, esta prova

que acontece há 82 anos chega a levar quinze mil participantes às ruas de São

Paulo, sempre no dia 31 de dezembro, segundo dados do site da competição.

Em 1993, 1.010 corredores participaram da primeira Maratona de Revezamento

do Pão de Açúcar (42,195 km), a maior corrida de rua do Brasil, realizada em São

Paulo nas proximidades do Parque do Ibirapuera. No ano seguinte, a prova contou

com o dobro de corredores e, em 1995, com 2.300 atletas. Em 1996, a prova

passou a ser disputada no Parque Villa-Lobos e contou com a presença de 3.240

participantes. Em 1997, foram 3.792 os corredores que participaram do evento,

atingindo o número de 5.000 atletas no ano seguinte. Em 1999, o número de

inscritos ultrapassou a marca de 8.000 participantes e em 2000, chegou a 11.400.

Este número, porém, também foi superado no ano seguinte com a participação de

14.152 corredores. Em 2002, a prova foi transferida para a Cidade Universitária e

bateu um novo recorde de inscrições: aproximadamente 22.000 corredores. A

edição de 2003 reuniu 25.840 corredores, representando um recorde absoluto de

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participantes em corridas na América Latina. Em 2004, em sua 12a. edição, o

evento teve mais de 30.000 inscritos e, em 2005, teve que ser transferido da

Cidade Universitária para o Parque do Ibirapuera, uma vez que a USP não tinha

infra-estrutura suficiente para comportar uma prova deste porte.

De acordo com o site da Maratona de Revezamento do Pão de Açúcar, em 13

anos de história, a prova cresceu 30 vezes em relação ao número inicial de

participantes, firmando-se como uma das maiores corridas de rua da América

Latina e a maior do Brasil. Nivelou-se, em número de inscritos, com as maratonas

mais famosas do mundo, como Nova York e Paris.

Segundo a Confederação Brasileira de Atletismo, a corrida de rua é hoje uma das

maiores manifestações esportivas no Brasil, com centenas de provas em todo o

país e milhares de participantes. Segundo a Secretaria de Esportes de São Paulo,

a corrida de rua também é uma das modalidades esportivas que mais cresce na

cidade. Em 2002 foram realizadas 14 provas. Em 2003, foram 40 e, em 2004, 50

provas fizeram parte do calendário anual da cidade: quase uma prova por final de

semana.

A corrida pode ser considerada um esporte-base, porque sua prática corresponde

aos movimentos naturais do ser humano: andar, pisar, correr. No início do século

XX, Marcel Mauss descreve, em “As Técnicas Corporais”, os movimentos do

corpo inteiro, que em muito se assemelham aos movimentos da corrida, sendo

que estes últimos são mais rápidos. Ele ressalta

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“o andar: habitus do corpo em pé andando, respiração, ritmo do

andar, balanceio dos punhos, dos cotovelos, progressão com o

tronco à frente do corpo ou avançando com os dois lados do

corpo alternativamente (fomos habituados a avançar com todo o

corpo de uma vez). Pés para fora, pés para dentro. Extensão da

perna. (...) Corrida. Posição do pé, posição do braço, respiração,

magia da corrida, resistência” (MAUSS, 2003: 227).

Com a atenção voltada para a observação concreta da vida em sociedade e suas

dimensões múltiplas, Mauss busca apreender o que lhe parece essencial: “o

movimento do todo, o aspecto vivo” (Mauss apud WAIZBORT, 2001: 23).

Contemporâneo de Mauss, Norbert Elias também busca o enfoque do movimento

do todo. Ambos perseguem o desafio de observar o que é dado e, como diria

Elias, “integrar esses dados na recomposição do todo” (WAIZBORT, 2001: 22-23),

de forma a assegurar o caráter específico, único e diferenciado da totalidade. Ou,

como diria Mauss, de forma a perceber o grupo e seu comportamento integral.

Dentro deste contexto, grande parte da obra de Elias foi dedicada ao “conjunto

das pulsões e dos comportamentos violentos, a par dos dispositivos de controle

que sobre eles incidem” (ELIAS, 1992: 5). Esta preocupação pelas atitudes

pulsionais permitiu-lhe pensar, em referência a um mesmo tema, fenômenos tão

distintos como a guerra, o esporte e as emoções.

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Para Elias, a compreensão do esporte tem muito a contribuir para o conhecimento

da sociedade como um todo, uma vez que é uma atividade de grupo organizada,

centrada em um confronto entre, pelo menos, duas partes. Exige um certo tipo de

esforço físico e realiza-se de acordo com regras conhecidas, que definem os

limites da violência que são autorizados. Na sua opinião, o esporte “oferece às

pessoas a excitação libertadora de uma disputa que envolve o esforço físico e

destreza, enquanto reduz ao mínimo a ocasião de alguém ficar, no seu decurso,

seriamente ferido” (ELIAS, 1992: 243). Um de seus colaboradores, Eric Dunning,

complementa que há pelo menos três aspectos inter-relacionados que teriam

contribuído para o aumento do significado social do esporte. O primeiro deles é o

desenvolvimento do esporte como um dos principais meios de criação de

excitação agradável. Em segundo lugar, está a transformação do esporte em um

dos principais meios de identificação coletiva, ou seja, da formação da idéia de se

pertencer a um grupo. Por fim, a emergência do esporte como uma fonte decisiva

de sentido na vida de muitas pessoas (Dunning apud ELIAS, 1992). Como

veremos ao longo deste trabalho, estes três aspectos inter-relacionados estão

presentes no grupo de corrida estudado.

Elias considera o esporte uma das maiores invenções sociais já realizadas, apesar

de ter sido criado sem um prévio planejamento. Desenvolvido inicialmente na

Inglaterra sob a forma específica de um tipo de recreação na qual o esforço físico

desempenhava o papel principal, expandiu-se para outros países na segunda

metade do século XIX e primeira do século XX, principalmente. A questão central

colocada por ele, e que coincide com uma das questões pela qual perpassa esta

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pesquisa, é “que espécie de sociedade é esta onde cada vez mais pessoas

utilizam parte do seu tempo de lazer na participação ou na assistência a estes

confrontos não violentos de habilidades corporais a que chamamos esporte?”

(ELIAS, 1992: 40).

As sociedades contemporâneas não são as primeiras nem as únicas cujos

membros desenvolveram atividades físicas coletivas. As pessoas jogaram futebol

na Inglaterra e em outros países na Idade Média, os cortesãos de Luís XIV

possuíam as suas quadras de tênis, os antigos gregos, pioneiros do atletismo e de

outros esportes, organizaram competições de jogos locais e entre Estados em

escala grandiosa, os Timbira, povo indígena que habita o interior do Maranhão e

partes dos Estados do Pará e de Goiás, praticam a corrida de toras

(NIMUENDAJÚ, 2001), assim como os índios Xerente (Tocantins) e os Xavante

(Mato Grosso) (MELATTI, 1976). O renascimento dos Jogos Olímpicos do nosso

tempo também é uma indicação do fato do esporte não ser um assunto novo.

O tema “esporte” apresenta, portanto, inúmeros exemplos de oportunidades para

a investigação sociológica, como aponta Dunning: os Jogos Olímpicos, a Copa do

Mundo, os boicotes esportivos, a comercialização do esporte, o esporte nos

países em desenvolvimento, os meios de comunicação social e o esporte, o sexo

e o esporte, “as multidões do desporto e o comportamento desordeiro que por

vezes desencadeiam” (Dunning apud ELIAS, 1992: 17-18), entre outros. Na área

de Educação Física, são inúmeros os atuais artigos e estudos que exploram com

detalhes bastante técnicos o funcionamento do corpo humano em movimento,

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mas que passam ao largo do olhar das Ciências Sociais, que é o foco desta

pesquisa.

Um dos raros estudos sociais contemporâneos sobre o esporte é a pesquisa

etnográfica realizada pela antropóloga francesa Martine Segalen. Maratonista há

25 anos, ela se propôs a investigar as imensas transformações pelas quais a

corrida de rua havia passado, a ponto de reunir milhares de pessoas, enquanto no

passado reunia muito poucas. Ao dar-se conta de que uma maratona como a de

Barcelona conseguia reunir cerca de 80.000 pessoas, percebeu que havia uma

questão etnográfica que a Antropologia urbana poderia abordar. Segundo

Segalen, a corrida de rua surgiu no final dos anos 1960, a partir de uma “influência

ecológica que ressalta a alegria das corridas através dos bosques, mas é na

cidade que ela se expande” (SEGALEN, 2002: 84). A autora, porém, elege o

intervalo que vai da década de 1970 até o início da década de 1990 como objeto

de estudo da corrida de rua, já que foi nesse período que a atividade tomou corpo

distinguível e organizado. Ela diferencia, ao longo das décadas, as motivações

que levavam um praticante a escolher essa modalidade:

"Participar de uma corrida em 1970, os anos heróicos da epopéia

do movimento, em 1980, na época da ‘loucura do jogging’, e em

1990, não tem o mesmo sentido que na atualidade, quando ver

corredores nas ruas, nos bosques próximos das cidades, ou nas

corridas populares se tornou comum (...). Os anos 70 vêem a

invenção da sociedade de lazer, com o aumento do tempo livre

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tanto para as pessoas profissionalmente ativas, como para os

aposentados. A sociedade engorda, não caminha mais, utiliza o

automóvel para ir a todos os lugares. O corpo, antes

superutilizado, transforma-se com o advento da sociedade

terciária, torna-se flácido e deforma-se. A corrida surge como o

meio mais simples e mais natural para remediar as

conseqüências nefastas desta situação, não precisando de

nenhuma infra-estrutura esportiva (quadra de tênis, rinque de

patinação ou pista de esqui) ou de roupas sofisticadas: shorts,

camiseta e tênis são o suficiente” (SEGALEN, 1994: 84).

Segalen também propõe uma divisão entre motivações racionais e emocionais

para a opção pela corrida como esporte. De um lado, coloca a desnecessidade de

infra-estrutura para a prática do esporte e o fato da corrida ser um excelente

remédio natural para o sedentarismo imposto pela modernidade. De outro, aponta

a necessidade fisiológica, a participação na vida urbana e a afirmação pessoal que

essa escolha representa.

“A essas motivações, adiciona-se atualmente o espetáculo das

corridas que ano após ano atraem mais participantes. A televisão

se deu conta disso e transmite as corridas (parcamente, é

verdade), a propaganda se multiplica nos cartazes dos trens do

metrô, as camisetas comemorativas das corridas mostram a

proliferação de provas organizadas pelas cidades, empresas,

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grupos de amigos, etc. Não corremos apenas para nós, para

estar em forma, mas também para participar destas

manifestações que são expressões da modernidade urbana"

(SEGALEN, 1994: 84).

Em termos técnicos, a corrida de rua, também conhecida por corrida comum ou

jogging, está inserida no âmbito do Atletismo, que é um esporte formado por

provas de pista (corridas), de campo (saltos e lançamentos), provas combinadas,

como decatlo e heptatlo (que reúnem provas de pista e campo), o pedestrianismo

(corridas de rua, como a maratona, meia-maratona, corridas de 10 km etc),

corridas de campo (cross country), corridas em montanha e marcha atlética. Para

compreender a corrida em sua totalidade, no entanto, é preciso reconhecer o

espaço que ela ocupa no ambiente dos esportes. Segundo Pierre Bourdieu, “não

se pode analisar um esporte particular independente do conjunto das práticas

esportivas; é preciso pensar o espaço das práticas esportivas como um sistema

no qual cada elemento recebe seu valor distintivo” (BOURDIEU, 1990: 208).

Segundo o Dossiê Esporte, pesquisa qualitativa e quantitativa realizada em 2006

pelo instituto de pesquisa de mercado IpsosMarplan Media Research em nove

capitais do Brasil, a corrida é o sexto esporte mais praticado pelos brasileiros, com

5% de adesão, atrás da caminhada (31%), do futebol (30%), do vôlei (13%), do

ciclismo (8%) e da natação (5%). Estima-se que haja quatro milhões de corredores

no Brasil, sendo que 250 mil participam de corridas de rua. Empresas como a Nike

do Brasil calculam que o número de corredores brasileiros esteja crescendo ao

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redor de 30% ao ano. Os Estados Unidos, considerado “o país da corrida de rua”,

têm aproximadamente 40 milhões de corredores e destes, 17 milhões participam

de eventos esportivos organizados. Na França, segundo Segalen, havia 1.000

corredores em 1975; em 1984 foram recenseados 500.000 e no início da década

de 1990, o número de corredores atingiu 1.200.000 (SEGALEN, 1994: 229).

Corrida de rua é hoje, no Brasil, um assunto que parece estar na moda. A

disponibilidade de tantas informações e materiais em fontes públicas e privadas é

um reflexo direto do interesse do mercado pelo tema. Parece ser, também, uma

eficiente maneira de divulgar ainda mais esta modalidade esportiva, estimulando

com mais intensidade este círculo vitorioso. O movimento em torno da corrida de

rua tem sido tão intenso nas últimas décadas, em São Paulo, que justificou a

criação da organização não-governamental Corredores Paulistas Reunidos –

CORPORE. Desde 1982, esta ONG promove circuitos com várias provas ao longo

do ano, em vários locais do Estado de São Paulo. Em 1997, apenas 800 atletas

eram associados à organização e uma média de 9.500 atletas participavam das

suas provas. Em 2005, a quantidade de associados multiplicou-se por dez (8.100

atletas associados) e o número de corredores inscritos nas provas passou para

103.260, representando um crescimento de 995% em apenas oito anos, o que

comprova a capacidade das corridas de rua de atrair um grande número de novos

atletas. Segundo o site da CORPORE, em 2004, dos 8.580 corredores inscritos na

prova de abertura do seu circuito anual de corridas, 13% eram pessoas que nunca

haviam disputado nenhuma prova organizada por esta ONG.

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Este momento de crescimento do esporte foi bem aproveitado pelos

organizadores de eventos esportivos, que criaram um extenso calendário de

provas em vários locais do Brasil. No Rio de Janeiro, a primeira edição da Meia

Maratona do Rio (21,097 km), em 1996, contou com a participação de 3.000

atletas. Em 2003, foram quatro vezes mais participantes, chegando a ter, em

2004, a inscrição de 15.000 corredores. Em Brasília, havia aproximadamente dez

clubes de corrida em 2004. O grupo dos Corredores do Distrito Federal (CORDF)

realizou, naquele ano, um circuito com dez provas com a participação dos seus

350 membros. No Rio Grande do Sul, os Corredores de Porto Alegre (Corpa)

organizam corridas desde 1980 para seus mais de 300 corredores. Em Curitiba,

no Paraná, a Associação Pró Correr (APC) contava com 1.600 corredores inscritos

em 2004, e há dez anos organiza provas com participação média de 500 pessoas.

A Maratona Ecológica de Curitiba e outras cinco provas anuais são organizadas

pela Prefeitura da cidade, reunindo cerca de 2.000 atletas1.

Não foi apenas a quantidade de atletas e de corridas de rua que cresceu

significativamente nos últimos anos no Brasil, após um início tímido nos anos 80.

O mercado que se alimenta das corridas de rua também foi fortemente

impulsionado: empresas especializadas em organizar as provas, empresas

patrocinadoras, órgãos oficiais em todos os níveis, revistas e sites especializados

no tema, além dos fabricantes de equipamentos esportivos.

1 WAKI, Cassio, “O fenômeno da corrida”, Revista O2, No. 14, junho/04.

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Segundo a Federação Paulista de Atletismo – FPA, esse mercado movimentou R$

7 milhões no Estado de São Paulo em 2005, somente com as inscrições para as

competições. De acordo com a CORPORE, cada evento esportivo gera trabalho

para aproximadamente mil pessoas, entre socorristas, médicos, bloqueios,

pessoal da medição, inscrições, organização, arbitragem, montagem de kits,

placas, palcos, grades e barracas.

Outro indicador do crescimento do mercado ligado às corridas é o aumento da

quantidade de publicações especializadas no assunto, voltadas para o público que

participa das corridas. Até 2003, havia uma única revista vendida em bancas

voltada para corredores: a Contra-Relógio. Atualmente convivem com ela, nas

bancas de jornal, outros três títulos direcionados exclusivamente para este

público: as revistas O2, RunningBr e SuperAção.

O surgimento das assessorias esportivas, empresas formadas por profissionais de

Educação Física especializados em corrida e que realizam treinamentos para

atletas amadores, também é um reflexo do crescimento do mercado ligado às

corridas. Elas se espalharam pelo país, em especial pela cidade de São Paulo,

facilitando o acesso de novos atletas ao esporte. Além de planejar e orientar o

treinamento, muitas assessorias também oferecem o acompanhamento de outros

profissionais relacionados a este esporte, como nutricionistas, psicólogos,

massagistas, além de parcerias com academias de ginástica, lojas de materiais

esportivos e laboratórios médicos. Elas beneficiaram-se do espaço aberto pelos

personal trainers e passaram a oferecer o mesmo tipo de serviço, mas com uma

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diferença essencial: ao invés de treinamentos específicos para um único atleta,

especializaram-se em treinamentos para grupos de atletas.

É importante ressaltar, no entanto, que a corrida deve uma parte do seu interesse

aos “lucros de distinção” que ela proporciona (BOURDIEU, 1983: 143). A corrida é

hoje uma atividade esportiva que vem servindo de ocasião ou pretexto para

encontros eletivos, proporcionados pelas assessorias esportivas. Assim como o

tênis, a equitação, o iatismo e o golfe, a corrida pode ser vista como um “esporte

chique”, considerando que fazer parte de uma assessoria esportiva custa algo

entre R$ 80,00 e R$ 200,00 por mês, que ter um bom par de tênis de corrida custa

algo entre R$ 400,00 e R$ 500,00 e que participar de provas pelas vias públicas

da cidade custa, no mínimo, R$ 30,00. Como lembra Bourdieu, “a possibilidade de

praticar um esporte depois da adolescência (...) decresce muito nitidamente à

medida em que se desce na hierarquia social” (BOURDIEU, 1983: 143). Ou seja,

apesar do suposto caráter democrático e popular deste esporte, a prática da

corrida no âmbito das assessorias esportivas tem demonstrado uma faceta

bastante elitista. À medida em que se sobe na hierarquia social, o acesso a

atividades esportivas é facilitado, assim como cresce o prestígio e a exclusividade

que ela proporciona. Em outras palavras, paga-se um preço para correr com o

suporte de uma assessoria esportiva...

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Assessorias esportivas especializadas em corrida de rua

As assessorias esportivas trouxeram para a corrida uma infra-estrutura que atraiu

e agradou as pessoas com maior poder aquisitivo: o conforto de ter à disposição

dos atletas água, bebidas isotônicas (como Gatorade e Marathon), frutas e barras

de cereal, disponibilizar espaço para estacionar o carro com segurança e

tranquilidade, organizar a participação dos atletas em corridas selecionadas,

escolher lugares bonitos e variados para treinar (USP, Aldeia da Serra, parques da

cidade), oferecer uniformes patrocinados por grandes empresas etc. Quando

surgiram, em 1994, existiam apenas seis assessorias esportivas em São Paulo: a

4any1 (For any one), a M.P.R. (Marcos Paulo Reis), a Miguel Sarkis, a Run & Fun,

a Run for Life e a Race. Em 2002, quando já eram 28 empresas, foi fundada a

Associação de Treinadores de Corrida de Rua (A.T.C.), responsável pelo

cadastramento de todas as assessorias esportivas atuantes na capital paulista.

Inicialmente seu objetivo era reunir técnicos para trocar informações, promover o

crescimento da profissão e formatar a utilização de espaços públicos. Hoje,

segundo a associação, o objetivo é progredir com qualidade, organizando o

crescimento para que ele não seja passageiro. A ATC estima que 5000 corredores

sejam associados às cerca de 100 assessorias cadastradas em São Paulo. Nos

outros Estados do Brasil, há apenas clubes de corrida que organizam provas. Não

existem entidades responsáveis por centralizar as informações sobre corridas de

rua ou sobre profissionais da área.

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Os grupos coordenados pelas assessorias podem ser formados por pessoas que

já se conhecem (funcionários de uma mesma empresa, sócios de um mesmo

clube, grupos de amigos, por exemplo), ou por pessoas que ainda não se

conhecem, como os freqüentadores de algum parque da cidade. Os atletas

cadastrados nas assessorias esportivas encontram-se com os respectivos

treinadores em dias, horários e locais pré-determinados. Em geral, as assessorias

esportivas dispõem de equipes distribuídas em locais públicos da cidade,

principalmente em parques, nos períodos da manhã e/ou da noite. O tamanho dos

grupos pode variar muito conforme a assessoria esportiva, podendo chegar a 500

atletas.

Os atletas do grupo não precisam estar no mesmo nível de corrida (iniciantes ou

corredores há mais tempo) e tampouco precisam correr no mesmo ritmo. Apesar

dos treinos serem coletivos, cada atleta recebe um treinamento personalizado, isto

é, adaptado aos seus objetivos pessoais. As metas mais freqüentes costumam ser

emagrecer, melhorar ou manter o condicionamento físico, ou preparar-se para

provas específicas, como as maratonas, meias-maratonas, provas de 5 km, 10 km

etc. É com base nos objetivos de cada atleta que as assessorias desenvolvem um

programa de treinamento personalizado.

Segundo o diretor técnico da assessoria esportiva Run & Fun, Mário Sérgio

Andrade Silva, a definição de um objetivo de corrida dá um sentido e uma direção

aos treinamentos, pois define o planejamento de treinos necessário em termos de

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especificidade das atividades, determinação da freqüência de treinos, dias de

descanso e a participação em provas importantes.

Há vários tipos de treinamentos que podem ser combinados para atingir os

objetivos de cada atleta. Cada treino costuma ocorrer dentro de um intervalo pré-

determinado de batimentos cardíacos, ou seja, da freqüência cardíaca por minuto.

Cada atleta calcula a sua freqüência cardíaca máxima e, a partir dela, define os

seus intervalos de treinamento. A freqüência cardíaca máxima é calculada pela

subtração da idade do atleta do número 220. A freqüência cardíaca máxima de um

atleta de 40 anos, por exemplo, é de 180 batimentos cardíacos por minuto (220

menos 40). Este número serve como “limite máximo de velocidade” e como

referência para os demais intervalos de cada tipo de treino.

A Run & Fun trabalha com quatro tipos de treinamento: treinos de aquecimento e

recuperação (Zona Regenerativa), “trotes” (Zona de Manutenção), treinos ritmados

e longos (Zona de Endurance) e treinos intervalados (Zona de Tiro). Nos treinos

de aquecimento e recuperação, um atleta de 40 anos, por exemplo, deve manter a

freqüência cardíaca entre 65% e 75% da sua freqüência cardíaca máxima, ou

seja, entre 117 e 135 batimentos por minuto. Nos “trotes”, deve manter a

freqüência cardíaca entre 75% e 85% da sua freqüência cardíaca máxima, ou

seja, entre 135 e 153 batimentos por minuto. Nos treinos ritmados e longos, a

faixa recomendada encontra-se entre 80% e 90% da freqüência cardíaca máxima

(entre 144 e 162 batimentos por minuto), enquanto que nos treinos intervalados,

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ela situa-se entre 85% e 95% da freqüência cardíaca máxima do atleta (entre 153

e 171 batimentos por minuto), de acordo com o exemplo utilizado.

Cada tipo de treinamento tem o seu objetivo específico. O objetivo dos “trotes”, por

exemplo, é manter o nível da condição física do atleta. Correr durante 45 a 60

minutos, em um ritmo leve e tranqüilo, é um exemplo deste tipo de treinamento. O

treino intervalado, por sua vez, visa a aumentar a velocidade da corrida e melhorar

a capacidade respiratória do corredor. Isto é conseguido quando se corre curtas

distâncias em velocidade alta. São os chamados “tiros” ou “fartleks”. Nos treinos

longos, o objetivo é adaptar o corpo a esforços prolongados. Neste caso, o atleta

deve correr distâncias superiores a 10 quilômetros, por exemplo.

É curioso notar a influência positiva da tecnologia neste esporte. Somente a partir

do advento do frequencímetro, equipamento que mede os batimentos do coração

em um minuto, é que a velocidade do atleta passou a ser medida em função da

freqüência cardíaca. O frequencímetro, também conhecido como “Polar”, nome da

marca mais antiga e conhecida deste tipo de equipamento, é composto por uma

cinta de plástico, de aproximadamente 2cm de largura e elástico nas pontas, e um

relógio de pulso. A cinta deve ser colocada na altura do peito do atleta,

envolvendo as costas e a região peitoral. O relógio recebe as freqüências

cardíacas captadas pela cinta através de ondas eletromagnéticas e disponibiliza

ao atleta, pelo relógio, os batimentos cardíacos por minuto. O frequencímetro

facilitou sobremaneira o acompanhamento do esforço físico dos corredores

durante os treinos e provas.

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Considerando que cada atleta tem o seu próprio objetivo para com a corrida, seria

possível imaginar que, apesar de fazerem parte de um mesmo grupo, eles não

tivessem condições de correr efetivamente juntos. Apenas reunir-se-iam no

mesmo espaço físico e priorizariam a individualidade ao invés da coletividade. No

entanto, como há uma alta probabilidade de existir no grupo de corrida mais de um

atleta com o mesmo objetivo, criam-se as condições para que o treinamento deixe

de ser individual e passe a ser em conjunto. Os treinadores agrupam os atletas

com objetivos semelhantes e eles passam a correr lado a lado, ou seja, passam a

treinar efetivamente em grupo. A corrida, que é considerada por muitos corredores

do grupo estudado como um esporte solitário, passa a ser vista por eles como um

esporte coletivo, uma vez que incorpora as características típicas de um esporte

desta natureza, como o dinamismo, a alegria, a diversão, o contato físico, a

competição e a interação entre as pessoas. As assessorias esportivas

conseguiram, portanto, conciliar atributos importantes e típicos dos esportes, como

performance e técnica, a um ambiente agradável e motivador.

A Run & Fun, uma das primeiras assessorias esportivas criadas em São Paulo, foi

fundada em 1994 pelo professor de Educação Física Mário Sérgio Andrade Silva

com o objetivo de assessorar as pessoas que queriam praticar a corrida,

participando de maratonas, triathlons ou apenas mantendo a forma física de

maneira orientada. Hoje, a Run & Fun tem aproximadamente trezentos atletas

cadastrados, sendo 65% de homens e 35% de mulheres, com idades médias

variando entre 20 e 65 anos. São executivos, empresários e profissionais liberais

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que recebem orientação para programas de vários esportes como corrida,

caminhada, natação, triathlon, musculação e ciclismo, e que pagam uma

mensalidade média de R$ 150,00. Cada atleta cadastrado recebe semanalmente,

por fax ou por email, uma planilha individualizada com os treinos da semana. Caso

não possam comparecer aos treinamentos coletivos, têm condições de realizar o

treino por conta própria, seguindo as orientações da planilha.

Ao se cadastrarem na assessoria esportiva Run & Fun, os atletas recebem um

conjunto de uniformes contendo quatro camisetas da cor da equipe (amarelo

fosforescente): duas de mangas curtas, uma de mangas longas e uma sem

mangas (tipo regata). A importância do uso do uniforme em todos os treinos e

competições, segundo a diretoria da empresa, está diretamente ligada às

questões de segurança. No caso de acidentes (atropelamentos, problemas de

saúde etc), o atleta uniformizado poderá ser identificado e atendido com mais

rapidez pelas equipes de apoio. Em treinos e competições, os atletas

uniformizados também são facilmente identificados pela equipe de apoio da Run &

Fun, responsável pela distribuição de água aos atletas ao longo do percurso.

Apesar de não ser obrigatório, o uso dos uniformes por parte dos atletas é muito

freqüente. Eles costumam alternar o uso das camisetas do grupo com as

camisetas ganhas em provas das quais participaram.

Os uniformes também representam uma eficiente forma de divulgação do trabalho

da assessoria. Quanto mais atletas estiverem usando a camiseta, maior será o

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impacto visual e a sensação de que o grupo tem uma grande estrutura e presença

nos parques e eventos esportivos. A Run & Fun não é a única empresa que possui

atletas uniformizados. Pelos mesmos motivos, toda assessoria esportiva cria o seu

uniforme característico, permitindo a identificação dos seus atletas através de

cores, design diferenciado ou dizeres específicos nas camisetas.

Run & Fun: Treinos durante a semana, no Parque Villa-Lobos, em São Paulo

Os atletas da Run & Fun do Parque Villa-Lobos, objeto desta pesquisa,

encontram-se às terças e quintas-feiras, a partir das 6:30h, no interior do parque,

em uma alameda situada entre o campo de futebol e o Jardim da Melhor Idade

(ver mapa anexo). Neste local, há um banco de concreto que é utilizado pela

equipe como apoio para objetos pessoais (chaves dos carros, carteiras com

documentos etc) e objetos do grupo (copos d´água e galão de bebida isotônica),

que ficam sob a responsabilidade dos treinadores.

Estes treinos têm a duração aproximada de uma hora e meia. São bastante

planejados e organizados e obedecem a uma estrutura constante. Muito

raramente os treinadores propõem ou aceitam fazer alterações no que foi

determinado na planilha individual de treinamentos. As exceções acontecem

apenas nos casos em que há dores musculares. Nestas situações, um treino mais

leve ou mesmo a suspensão do treino é a recomendação do treinador.

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Os treinos obedecem a uma seqüência de atividades bastante definida e regular:

alongamento inicial, aquecimento, atividade específica do treino, desaquecimento,

alongamento final. Independentemente do corredor ser iniciante ou experiente, a

seqüência é a mesma. As variações ocorrem apenas na intensidade das

atividades específicas, que tendem a ser de leves a moderadas para os iniciantes

e de moderadas a intensas para os corredores experientes ou “iniciados”.

Pontualmente às 6:40h, um dos treinadores dá início ao treino com uma sessão de

alongamentos corporais. Os atletas presentes posicionam-se livremente no

gramado, formando vários círculos concêntricos ao redor do treinador, que se

mantém em uma posição visível por todos os participantes. O alongamento tem a

duração aproximada de dez minutos e seu objetivo é preparar os principais grupos

musculares que serão utilizados durante o treinamento: panturrilhas, quadríceps,

lombar, ombros e braços. O treinador realiza cada uma das posturas e é seguido

pelos atletas. O tempo de permanência em cada posição gira em torno de 20

segundos.

O alongamento é um dos poucos momentos de interação entre corredores

iniciantes e iniciados. Os atletas aproveitam para comentar sobre os

acontecimentos que marcaram os dias anteriores, além de temas de interesse

geral: a corrida, ao últimos jogos de futebol, o clima e a temperatura do dia etc. O

ambiente é bastante alegre e freqüentemente algum dos iniciados conta uma

piada ou faz algum comentário engraçado. Os iniciantes costumam ficar mais

calados, participando das conversas com um certo distanciamento, demonstrando

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ter pouca liberdade e intimidade com o grupo para participar ativamente da

conversa.

Por estarem próximos uns dos outros, este é também um momento em que as

pessoas se observam, reparam, comentam e trocam opiniões sobre o vestuário

dos corredores: tênis de corrida, camisetas de provas, frequencímetros e outros

acessórios (luvas e calças para correr no frio, bandanas para prender os cabelos

ou proteger a região do pescoço no frio etc). A troca de experiências geralmente

ocorre dos iniciados para os iniciantes, entre iniciados ou entre iniciantes.

Praticamente inexiste a situação em que um iniciante no grupo “conta sua

experiência” com determinado produto para um iniciado. É como se eles sempre

fossem aprender com os outros, mais experientes, ao invés de ensiná-los, a partir

de sua pequena vivência no esporte.

Após o alongamento inicial, todos os atletas devem aquecer o corpo por 15

minutos, correndo bem devagar. Todo o grupo começa a correr junto, o que

muitas vezes chega a congestionar algumas alamedas do Parque Villa-Lobos.

Como o ritmo de corrida é leve, há um nivelamento entre os corredores,

permitindo que os iniciantes acompanhem os iniciados (no entanto, é muito

comum que os iniciantes caminhem ao invés de correr levemente, o que os deixa

para trás inevitavelmente). Este é também mais um momento de interação entre

os atletas. Dois a dois, três a três, os corredores se juntam para conversar durante

a corrida. Os temas costumam ser os mesmos do alongamento, exceto entre os

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corredores mais próximos, que aproveitam esta atividade para “colocar o papo em

dia”.

O percurso do aquecimento é livre, mas os atletas sempre optam pelo mesmo

caminho: fazem uma volta de aproximadamente dois quilômetros, retornando ao

mesmo local após o tempo estipulado. É curioso notar que, mesmo podendo fazer

um percurso diferente, os atletas percorrem exatamente o mesmo trajeto, inclusive

na mesma direção. Quando questionados sobre isso, apontam a conveniência de

fazerem um caminho cujo tempo a ser gasto já é conhecido como a principal

razão.

Após os quinze minutos de aquecimento, os atletas hidratam-se com água (copos

individuais com tampa descartável de alumínio) ou bebida isotônica,

disponibilizados livremente para a equipe, no ponto de encontro. Uma vez

hidratados, os atletas são orientados pelo treinador Silvio sobre a atividade

específica do treino. Apesar de todos terem recebido as instruções em suas

planilhas individuais, enviadas previamente por e-mail, os atletas reúnem-se ao

redor do treinador para ouvir as explicações. Fica clara a relação de autoridade do

treinador, quase que solicitada pelos atletas, uma vez que, supostamente, já

saberiam o que fazer e não precisariam de novas instruções.

As atividades específicas variam conforme o estágio do treinamento em que os

atletas se encontram: começo ou recomeço das atividades, preparação para

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competições específicas, recuperação após períodos de treinamento intenso ou

após lesões musculares.

Um programa de treinamento padrão geralmente começa no início do ano com

“trotes”, para que os atletas iniciem ou recuperem a condição física após o período

das férias de final de ano. A atividade específica do treino é a corrida leve, durante

quarenta e cinco a sessenta minutos.

Após um mês desta rotina de treinamentos, novas atividades específicas do treino

são indicadas e, geralmente, visam a aumentar a velocidade e melhorar a

capacidade respiratória do corredor. São propostos exercícios como os “tiros”, nos

quais os atletas devem correr rapidamente distâncias curtas (de oitocentos metros

a um quilômetro) fazendo intervalos de descanso não superiores a três minutos.

As atividades específicas dos treinos têm a duração aproximada de vinte e cinco

minutos e podem combinar dois tipos de exercícios. Muitas vezes, os “tiros” são

precedidos pela “técnica”, que é um conjunto de exercícios que simula os vários

movimentos realizados pelo atleta durante a corrida. É uma fragmentação da

corrida em movimentos curtos e menores, com a intenção de fazer o atleta adquirir

consciência da mecânica e da participação de cada parte do corpo durante a

prática deste esporte.

Durante a “técnica”, os atletas observam o movimento feito por um dos treinadores

para repeti-lo posteriormente. Os atletas fazem uma fila com três pessoas em

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cada linha e correm ao longo de aproximadamente vinte metros, executando os

movimentos determinados: correr levantando os joelhos até a altura do quadril,

correr lateralmente, correr com passadas largas, além de outros exercícios de

coordenação motora. Cada movimento é repetido duas vezes consecutivas e os

atletas chegam a realizar seis a sete movimentos diferentes durante esta

atividade. Estes exercícios são feitos, geralmente, no gramado localizado ao lado

do ponto de encontro da Run & Fun.

Durante a atividade específica do treino, seja ela “técnica”, “tiros” ou ambas, as

possibilidades de interações entre os atletas ficam bastante reduzidas em função

do desgaste físico para executá-las. Os atletas ficam cansados e sem muitas

condições de conversar. Trocam frases e comentários curtos e pontuais.

Após o término da atividade específica do treino, os atletas hidratam-se

novamente com água ou isotônico e deixam o ponto de encontro para fazer o

desaquecimento. São mais quinze minutos de “trote” leve para baixar a freqüência

cardíaca, relaxar os músculos e interagir com os demais atletas do grupo. Mais

uma vez, o grupo repete o mesmo comportamento apresentado no aquecimento

inicial, no qual todos começam a correr juntos, sempre na mesma direção.

Após o desaquecimento, os atletas reúnem-se para o alongamento final, realizado

por um dos treinadores. Diferentemente do alongamento inicial, no qual os atletas

permanecem em pé, este é realizado sobre uma grande lona colocada no

gramado do parque. Cada atleta acomoda-se em um colchonete de espuma e faz

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os exercícios em diferentes posições. Começam deitados, sentam-se e terminam

o alongamento em pé. Ao final desta atividade, os atletas batem palmas como um

sinal de reconhecimento individual e do grupo pelo esforço realizado naquele dia.

Despedem-se informalmente do grupo, recolhem seus pertences e dispersam-se,

caminhando sozinhos ou em pequenos grupos para o estacionamento do parque.

Run & Fun: Treinos aos sábados, na Cidade Universitária, em São Paulo

Os treinos da Run & Fun aos sábados possuem alguns traços diferentes dos

treinos realizados durante a semana. Costumam ser mais longos, com uma

duração aproximada de duas horas e adaptados ao nível de corrida dos atletas:

maratonistas; atletas que conseguem correr um quilômetro em até cinco minutos;

atletas que conseguem correr um quilômetro em mais de cinco minutos e

iniciantes. Para cada nível de corrida é estipulado um horário para o início do

treino. É uma forma de se evitar uma concentração excessiva de atletas,

distribuindo-os ao longo do treino. Cada atleta, portanto, chega à USP no horário

determinado em sua planilha de treinamento e dirige-se ao ponto de encontro da

Run & Fun, localizado na praça da Reitoria (ver mapa anexo). O treinamento

também começa com um alongamento inicial, realizado por um dos 16 treinadores

da Run & Fun no gramado ao lado do ponto de encontro.

Como neste dia há o encontro dos atletas de todos os grupos coordenados pela

Run & Fun, separados conforme o nível de corrida, é comum não encontrar

pessoas conhecidas, ou seja, que treinam juntas durante a semana. Quando isto

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ocorre, existe a opção de correr sozinho ou acompanhado por outros atletas do

mesmo nível, mas de outros grupos da Run & Fun. Geralmente são os treinadores

que apresentam os atletas para que possam correr juntos. A equipe de atletas do

Parque Villa-Lobos, que costuma correr junta às terças e quintas-feiras, dilui-se

aos sábados dentro do grupo maior da Run & Fun.

Os treinos aos sábados costumam ser baseados em distâncias (6 km, 12 km, 14

km, 15 km, 18 km ou 21 km ou mais, dependendo do caso) ou duração (1:00h,

1:30h, 1:45h ou mais, conforme o caso). O percurso padrão utilizado pela equipe

possui 6km de distância e tem seu início no ponto de encontro da Run & Fun,

passa por toda a extensão da raia olímpica e retorna ao ponto de encontro pela

avenida Prof. Luciano Gualberto. Os treinadores recomendam que os atletas se

hidratem a cada 6km, parando por alguns minutos no ponto de encontro, onde há

água e isotônico.

Em dias muito quentes, dependendo da estrutura montada pela equipe, há a

distribuição de copos d´ água para os atletas ao longo do percurso de 6km. Esta é

uma das situações típicas em que o uso dos uniformes por parte dos atletas da

equipe é recomendado. Como o treinador que distribui a água pode não conhecer

todos os atletas, certamente oferecerá água para aqueles que estiverem

identificados como membros da equipe.

Ao final do treino, os atletas hidratam-se novamente com água ou isotônicos e

servem-se de frutas (banana, mexerica e maçã), uma exclusividade dos treinos

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aos sábados. A equipe de apoio calcula uma média de duas frutas por atleta,

visando à reposição de nutrientes gastos durante a prática do exercício.

Entre 9:00h e 11:00h, há sessões de alongamentos de vinte em vinte minutos,

realizadas pelos treinadores da equipe. Nestas sessões participam tanto os atletas

que completaram o treinamento (alongamento final), quanto os atletas que vão

começar o exercício (alongamento inicial). Estes exercícios são realizados no

gramado ao lado do ponto de encontro, à sombra de um coqueiral. Cada atleta

posiciona-se ao lado de um coqueiro e, apoiando-se no tronco da árvore, realiza a

série de exercícios orientada pelo treinador. Findo o alongamento de

aproximadamente 10 minutos, os atletas também se aplaudem pelo treino

realizado.

Muitos atletas permanecem por mais algum tempo no local, onde há um ambiente

de confraternização, estimulado pela falta de pressa, fato que não ocorre nos

treinos realizados durante a semana. As pessoas conversam, conhecem-se,

reencontram-se, comentam sobre o treino do dia e sobre as competições

passadas e futuras. Quando as pessoas que treinam juntas durante a semana se

reencontram, é comum combinarem de tomar café da manhã juntos em alguma

padaria próxima. Isso costuma acontecer com o grupo de atletas do Villa-Lobos. A

padaria escolhida é sempre “A Pioneira”, localizada à Rua dos Macunis, em Alto

de Pinheiros. O grupo formado por oito a dez atletas vai para lá diretamente após

o treino, ou seja, suados e com o uniforme da Run & Fun. Juntam várias mesas

para que todos caibam e cada um faz seu próprio pedido no balcão antes de se

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sentar. Com pequenas variações, os vários pedidos parecem seguir um mesmo

padrão: sanduíche de peito de peru ou presunto magro com queijo branco no pão

de forma, suco de fruta e café com leite. Nesse momento, costumam comentar as

orientações passadas pela nutricionista (a maior parte dos atletas é cliente da

profissional indicada pela equipe da Run & Fun). Brincam a respeito do que

“podem” ou não comer, do que ela “deixou” ou “mandou” que comessem.

Brincadeiras à parte, deixam no ar a sensação de que sabem que estão

praticando a corrida de forma séria e que isto demanda um acompanhamento

nutricional mais profissional. Sabem que a alimentação é o combustível de que

precisam para obter um melhor desempenho na corrida e que se alimentar de

forma equivocada antes ou depois do exercício pode comprometer todo o

treinamento realizado até então.

Muitos atletas também aproveitam os momentos finais do treino do sábado para

ver e comprar os tênis que um vendedor autônomo oferece. Ele está presente em

todos os treinos aos sábados, no próprio ponto de encontro da Run & Fun, e é

especializado nas marcas Asics e Mizuno, consideradas pelos corredores deste

grupo como as melhores marcas de tênis de corrida, principalmente pela

tecnologia que usam nos sistemas de amortecimento.

De fato, o desenvolvimento tecnológico operou transformações revolucionárias

nos tênis em termos de absorção de impacto, leveza, costura, conforto, etc.

Segalen é contundente ao afirmar que os calçados esportivos aperfeiçoaram-se

muito.

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“Nos anos 70, ainda eram de couro, pesados, sem

amortecedores contra o impacto da corrida. As marcas

americanas e japonesas lançaram muitos modelos com nomes

que são ao mesmo tempo slogans para justificar os preços

elevados. As marcas fazem referência ao ar, como se nossos

pés, tais como os dos índios do oeste americano, inspirados

pelas nuvens, repousassem sobre almofadas; certos modelos

denominados ‘Pégaso’ substituíram os pesados ‘Achille’. Os

materiais realmente revolucionaram a corrida; leveza, boa

modelagem, conforto, mais rapidez... aumentando o lucro dos

fabricantes. Na metade dos anos 702 as marcas Brooks e New

Balance só podiam ser compradas por encomenda, por

intermédio dos clubes Spiridion, fundados pela revista de mesmo

nome. Vendia-se também exotismo para os iniciados, já que um

dos modelos da New Balance chamava-se ‘Trail Tarahumara’,

‘para todos os tipos de terrenos, um modelo revolucionário’ –

prometia a publicidade. Existem tipos de tênis para cada tipo de

corredor. Que progresso em termos de formato, material,

sustentação, equilíbrio, medidas etc, acompanhando o peso, as

particularidades e o estilo de corrida de cada esportista”

(SEGALEN, 1994: 108-109).

2 Nos mercados americano e francês (N.T.)

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Os principais modelos comercializados no Brasil, das marcas Asics e Mizuno,

também apelam para analogias semelhantes e simbólicas. O “Nirvana”, da

Mizuno, remete explicitamente ao estado de ausência total de sofrimento... o

“Nimbus” da Asics, recorre ao latim “nimbu”, denominação de “nuvem”, para

reforçar a sensação de correr sobre uma superfície extremamente macia...

Tanto os atletas iniciantes quanto os iniciados compram tênis do vendedor

autônomo. Especialmente junto aos iniciados, o vendedor costuma conhecer o

tamanho dos pés e lembrar do último modelo comprado por eles. Assim, é capaz

de dizer se naquele dia ele “tem algo específico para você”. Muitos corredores do

grupo afirmam que ele tem os tênis mais modernos e atualizados do mercado, que

os produtos são importados, legítimos e legalizados, além de terem um preço

competitivo. Para um dos atletas que corre há 10 anos com a Run & Fun, no grupo

do Ibirapuera, “quem corre sério compra tênis desse cara. Você pode reparar: os

tênis vendidos nos shoppings não estão nos pés destes corredores”.

Questiono o vendedor sobre a exclusividade das marcas Asics e Mizuno. “Eu só

trabalho com as melhores marcas. São as preferidas, são as mais profissionais”.

Na opinião dele, “a Nike vai ter boas opções para corrida a partir do ano que vem.

Hoje não tem”. As demais marcas vendidas no mercado brasileiro, como Reebok,

Adidas, Diadora, New Balance e Fila não são sequer mencionadas por ele.

Encontrar um tênis de corrida que se adapte às características dos pés do atleta

não é tarefa das mais fáceis. Segundo os iniciados, há um inevitável processo de

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aprendizado, através de “tentativa e erro”, até encontrar o melhor modelo. Quando

isso acontece, tendem a recomprar sempre o mesmo tipo, variando apenas as

cores. Os fabricantes de corrida contribuem sobremaneira para esta recompra,

uma vez que, ano a ano, aperfeiçoam os modelos já existentes, sem realizar

alterações drásticas nos tênis. Transmitem, desta forma, a segurança de que os

seus consumidores não desperdiçarão R$ 500,00.

Preocupar-se em fazer uma compra segura, ou seja, de um modelo conhecido, de

uma marca conhecida e valorizada pelo segmento, é uma atitude característica

destes corredores. No entanto, a vontade de experimentar novidades também

existe, principalmente porque, como já foi comentado, há duas “grandes” marcas

valorizadas neste segmento: Asics e Mizuno. É muito comum encontrar corredores

que possuem tênis das duas marcas. Começaram com uma delas e, com o tempo,

experimentaram o modelo similar da outra. Podem, desta forma, não só revezar os

tênis nos treinos, mas também testar a performance de cada um em treinamentos

e provas.

Ao variar os modelos durante os treinos, os atletas acabam seguindo, muitas

vezes sem a intenção, a recomendação de fabricantes de tênis e de treinadores

de não usar o mesmo tênis em um intervalo inferior a 24 horas. Alegam que os

tênis possuem o chamado “efeito-memória”, isto é, a sua borracha demora um dia

inteiro para “se recuperar” e voltar à forma original depois do intenso impacto

causado pela corrida. Este é um exemplo de conhecimento que os iniciantes

adquirem ao longo do tempo de convivência com o grupo, uma vez que, no início,

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é muito comum usarem repetidamente o mesmo par de tênis em todos os treinos

e provas.

Os iniciantes aproximam-se do vendedor em busca de indicações sobre o melhor

modelo para eles. O vendedor geralmente pergunta o tipo de pisada do novo

cliente. Cada corredor tem um tipo específico de pisada: neutra, supinadora (pisar

para o lado de dentro do pé) ou pronadora (pisar para o lado de fora do pé). Cada

modelo de tênis é mais apropriado para um dos tipos de pisada. A forma mais

segura de identificar o tipo de pisada é realizar o “teste da pisada”, disponível em

lojas especializadas em artigos de corrida ou em eventos ligados a este esporte.

Em linhas gerais, o “teste da pisada” mede a pressão da planta do pé contra o

solo. O equipamento utiliza uma superfície eletrônica ligada a um monitor, onde é

possível digitalizar a pressão plantar do atleta e, com isso, localizar as variações

de pressão e identificar o tipo de pisada do corredor.

De forma improvisada, o vendedor tenta identificar a pisada do iniciante

analisando o solado do atual tênis do corredor (que pode estar mais ou menos

desgastado em alguma das laterais) ou pedindo para que o atleta corra alguns

metros à sua frente (o contato do pé com o chão pode indicar algum desvio na

pisada).

Saber o tipo de pisada para definir o melhor modelo a ser usado pelo corredor é,

sem dúvida, uma novidade para os iniciados, que sequer tinham conhecimento da

existência desta variável. Comprar um modelo totalmente adequado à sua pisada

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é o primeiro passo para o iniciante sentir que está “ingressando” no ambiente da

corrida. E se o tênis for das marcas Asics ou Mizuno, consideradas pelo grupo

como as melhores do mercado, é provável que o iniciante comece a se sentir um

verdadeiro iniciado neste esporte...

Como lembra Segalen,

“se o par de tênis é a parte mais técnica do equipamento, não

podemos esquecer os aspectos sociais e simbólicos. (...) É

obrigatório usar esta ou aquela marca, faz parte do equipamento

do corredor. Pois além das especificações técnicas, os tênis

determinam a moda3 em termos de cor e de enfeites. A Adidas é

a marca ‘das três listras’. A Nike lançou o genial slogan ‘Nike air’;

não mais treinar com tênis pesados, mas ser levado por eles;

quem não sonha com isso! E é este sonho que é vendido: ‘Just

do it!’... ‘Faça-o’, com um Nike você vai voar, ser impulsionado, o

choque vai ser absorvido, suas costas estarão protegidas. Mas

esta publicidade celebra tanto os benefícios técnicos dos tênis,

quanto uma atitude simbólica: 'Você tem o fogo sagrado?

Entregue-se a sua paixão’” (SEGALEN, 1994: 109).

3 Nos mercados americano e francês (N.T.)

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2. A “fantasia de atleta”: diferentes imagens para iniciantes e iniciados

A pesquisa junto aos corredores do grupo de corrida da Run & Fun do Parque

Villa-Lobos mostrou que estas pessoas têm uma preocupação muito grande com a

própria saúde. Ser saudável, para eles, significa estar com o corpo em boas

condições, ou seja, bem disposto para enfrentar as tensões do dia-a-dia.

Entendem por corpo saudável aquele que tem disposição e reage bem aos

esforços requeridos diariamente: pode até ficar cansado quando exigido, mas

apresenta uma recuperação rápida. É também aquele que acompanha o avançar

da idade, respeitando as limitações de cada estágio da vida, não apresentando

problemas inesperados ou atípicos. Para eles, um corpo saudável também é

aquele que atende aos atuais padrões sociais de beleza: magro e esbelto.

Consideram que a prática regular de atividades esportivas é uma eficiente forma

de aliviar as tensões da vida que levam. Como confirma Elias, “o esporte pode

resultar numa agradável excitação mimética, que é suscetível de contrabalançar

as tensões, normalmente desagradáveis, das pressões derivadas do stress

inerente às sociedades, proporcionando uma forma de restauração de energias”

(ELIAS, 1992: 73). A corrida, na visão dos atletas pesquisados, consegue

desempenhar esta dupla função de ser, ao mesmo tempo, uma “válvula de

escape” e uma fonte de energia.

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Para eles, a corrida proporciona benefícios não apenas para o corpo, mas também

a mente. Através dela, declaram que conseguem adquirir ou manter um

condicionamento físico, emagrecer ou manter o peso, envelhecer de forma ativa,

passar um tempo sem pensar em nada ou usar o tempo para pensar nos

problemas e até resolvê-los. Reconhecem que estes benefícios não são uma

exclusividade da corrida, uma vez que a maioria dos esportes também pode

proporcioná-los. No entanto, destacam que a corrida tem diferenciais relevantes

como poder ser realizada ao ar livre, em contato com a natureza, e conseguir

disponibilizar tanto momentos de integração com outras pessoas quanto

momentos mais individuais e solitários, como atestam os depoimentos a seguir:

“Eu corro por causa da minha saúde! Para que esta ‘casa’ que habitamos, o nosso

corpo, cuide bem de nós, em troca. Também corro para dar um bom exemplo,

preservando a jovialidade e disposição” (Messias S., 60 anos).

“Eu corro para emagrecer, me manter saudável e envelhecer bem. Quando quero,

corro sozinha e se quero um papo, é fácil arrumar alguém para correr junto” (Flora

M., 45 anos).

“Eu corro porque é minha terapia. Costumo dizer que a ‘endorfina’ é melhor do

que Lexotan! E para pensar na vida, nos problemas, nas soluções, é bom ter

espaço à minha volta e a linha do horizonte na minha frente” (Jair M., 46 anos).

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“Eu corro porque faz bem para a cabeça e para a saúde do corpo também.

Enquanto corro, posso escutar música, posso ficar quieto pensando na vida,

posso ficar prestando atenção no meu corpo, posso prestar atenção na natureza,

nas pessoas à minha volta, conhecer as ruas de São Paulo, os parques etc”

(Maurício L., 43 anos).

Na visão deles, dedicam-se à corrida com relativa determinação, ou seja,

procuram não faltar aos treinos, tentam dormir cedo na véspera de provas e

esforçam-se para manter uma alimentação equilibrada e saudável. Não se

consideram, no entanto, pessoas neuróticas ou “xiitas”, como se referem às

pessoas que seguem à risca todas as orientações dos nutricionistas. Confessam

que, de vez em quando, comem e bebem “como uma pessoa normal”.

“Acho que a gente aqui está num meio termo. Não somos atletas profissionais,

que vivem da corrida e por isso têm que fazer tudo certinho, comer as coisas

certas, na hora certa etc, e nem somos aquelas pessoas que não fazem nenhum

esporte, que comem doces e frituras todo dia. A gente tem uma noção do que

pode e do que não pode e vai tentando fazer as coisas. Se der, ótimo. Se não der,

não é o fim do mundo. É só correr uma hora e meia que fica tudo bem!!!” (Helena

C., 39 anos).

Os atletas deixam muito claras as suas motivações para correr. A questão que fica

no ar é: por que correm em grupo?

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A principal razão indicada para juntarem-se ao grupo de corrida revela,

inicialmente, uma motivação ligada à conveniência e à praticidade: fazer um

esporte, com orientação técnica, perto de casa. Poderiam fazer exatamente a

mesma coisa com a ajuda de um personal trainer, de forma individualizada, mas

preferem a companhia das demais pessoas do grupo por razões diversas, como

atestam os depoimentos a seguir.

“Antes de entrar no grupo, eu treinava com um personal trainer. Teve uma noite

que eu não dormi bem e não estava nem um pouco a fim de treinar no dia

seguinte... Mas só de saber que tinha um cara me esperando cedinho lá no

parque, me deixou mal... Aí, eu fui mesmo sem vontade... Me incomoda saber que

tem alguém me esperando e que eu não posso faltar. No grupo não tem isso. Se

eu faltar, não tem problema, o treino acontece do mesmo jeito.” (Rodolfo S., 45

anos).

“Correr em grupo é mais divertido, é ótimo conhecer novas pessoas e trocar

experiências ‘trotando’” (Messias S., 60 anos).

“O grupo estimula a assiduidade aos treinos e, com sorte, como é o nosso caso,

você desenvolve um novo ambiente de relacionamento social com gente bacana e

interessante” (Rodrigo G., 38 anos).

Buscar uma atividade física mais divertida ou um estímulo para praticar o esporte,

ampliar o círculo de relacionamento social ou mesmo fugir de compromissos mais

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formais surgem como as principais razões para correrem em grupo. Além delas, a

pesquisa também mostrou que existem outras questões, mais subjetivas,

apontadas pelos corredores para juntarem-se ao grupo de corrida. A primeira

delas está ligada ao prazer de realizar uma atividade que parecia, inicialmente,

impossível.

“Não corro para participar de provas. Gosto de treinar, de suar, de ver que estou

melhorando, que estou conseguindo fazer coisas que antes não conseguia.

Quando entrei na Run & Fun não conseguia correr 100 metros e hoje já consegui

correr 18 quilômetros!...” (Rodolfo S.).

“Nunca imaginei que eu fosse conseguir correr desse jeito... O grupo ajuda a

superar o esforço e os obstáculos” (Anita N.).

Esta satisfação com a auto-realização, apesar de ser individual, encontra no grupo

uma ambiência de cumplicidade, uma vez que todos os atletas desfrutam deste

mesmo sentimento. O prazer da auto-realização, presente nestes depoimentos, é

um tema bastante discutido por Tzvetan Todorov. Para ele, produzir um objetivo

formal não é necessariamente uma meta compulsória, pois a pessoa pode se

sentir realizada fazendo um simples esforço quando dá o melhor de si:

“A atividade esportiva, assim como um trabalho bem-feito,

provém de uma jurisdição múltipla: pode conceder-me glória e

riqueza, pode ser realizada como única finalidade de provar a

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mim mesmo que posso saltar mais alto do que os outros, que sou

capaz de atravessar o oceano num barco a remo; mas pode

também proporcionar-me alegria na e pela perfeição do gesto em

si, ao fato de conseguir aquilo que antes era impossível. Posso,

assim, satisfazer-me com meu desempenho intelectual, com

minha capacidade de resolver cálculos matemáticos, sem buscar,

uma vez mais, gratificação além do gesto em si. Minha alegria é

extranormativa e limita-se ao momento presente” (TODOROV,

1996: 155-156).

É dentro do grupo, portanto, que as pessoas encontram um ambiente propício no

qual todos entendem e valorizam o prazer individual da auto-realização.

Uma outra motivação para juntar-se ao grupo de corrida aparece, ainda que de

forma inconsciente, entre os atletas. Trata-se da vontade de serem percebidos

não só como pessoas saudáveis e ativas, mas também como pessoas

disciplinadas, focadas, e que “correm” em busca dos seus objetivos. Pessoas

determinadas e esforçadas, movidas a metas e desafios, e que, em última

instância, estão em busca do prazer do reconhecimento.

“Minha mãe está surpresa com a minha disciplina para correr! Nos dias de frio,

então, ela nem acredita que eu acordei para treinar...” (Isabela M.).

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“Contei no escritório que eu comecei a correr. O pessoal lá ficou impressionado!...

Me perguntam como eu já consigo correr tanto, aí eu falei da planilha, dos treinos

etc” (Júlio A.).

“Correr em grupo é legal porque um estimula o outro e porque obtemos

parâmetros junto aos outros” (Juliana B.).

Estes corredores alimentam-se do prazer do reconhecimento que a sensação de

superação possibilita e que o grupo reconhece e amplifica. Segundo Todorov,

“o reconhecimento atinge todas as esferas de nossa existência e

suas diferentes formas, e nenhuma pode substituir a outra:

conseguem, no máximo, proporcionar, conforme o caso, algum

consolo. Tenho necessidade de receber reconhecimento tanto no

plano profissional como em minhas relações pessoais, no amor e

na amizade” (TODOROV, 1996: 90).

Completar uma determinada prova pela primeira vez ou melhorar suas condições

físicas em um treino ou competição são situações em que o sentimento de

evolução, de conquista está sempre presente. É curioso notar que “melhorar” não

significa necessariamente correr mais rápido, e, portanto, fazer o treino ou a prova

em menos tempo. Pode também significar chegar em melhores condições,

“chegar inteiro”, “chegar sobrando”, “terminar numa boa”. Com um melhor

condicionamento físico e auto-conhecimento para o pleno uso do corpo, o atleta

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pode dosar o esforço de acordo com suas condições físicas e psicológicas. Nos

dias em que estiver se sentindo física e mentalmente bem, poderá se esforçar um

pouco mais do que o normal. Quando isso não acontecer, poderá administrar o

esforço físico para simplesmente conseguir completar a atividade. O grupo,

portanto, funciona como um estímulo e como uma referência, além de propiciar

um espaço no qual os desejos de superar-se e superar o outro convivem

simultaneamente.

Este conjunto de percepções mais emocionais aparece com muito mais

intensidade entre os corredores experientes ou iniciados do que entre os

iniciantes. É como se os corredores iniciantes ainda estivessem no “primeiro

patamar”, o de acrescentar mais saúde em suas vidas, e a decisão de praticar um

esporte é o primeiro passo. Para estes, a corrida é apenas um meio para atingirem

o objetivo de tornarem-se mais saudáveis. Além disso, a pesquisa mostrou que

entre os iniciantes existe um forte desejo de serem percebidos como corredores.

Na sua condição de “novatos” no esporte, o simples fato de ingressar em um

grupo de corrida os habilita a pertencer a esta ambiência de saudabilidade. O

iniciante já se considera um corredor pelo simples fato de entrar em um grupo de

corrida, de fazer parte de um grupo como este. Ele já se imagina um atleta. Esta

nova particularidade de sua vida, que, para os iniciantes em um primeiro momento

é mais imaginária e subjetiva do que real, dado que ele ainda não consegue correr

muito, é o que denomino de “fantasia de atleta”.

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Os iniciados, por sua vez, por serem mais experientes no ambiente da corrida,

possuem uma visão mais ampliada deste tema, ou seja, sabem que se “considerar

um corredor” é muito mais do que simplesmente se juntar a um grupo de corrida

ou muito mais do que contar aos amigos que treinam com uma assessoria

esportiva. É claro que, para eles, o grupo de corrida também representa um

“passaporte” para uma vida saudável, um meio para a saudabilidade. No entanto,

mais do que isso, o grupo serve de suporte para as realizações individuais e de

fonte de reconhecimento, pois é dentro deste ambiente que as conquistas dos

atletas serão reconhecidas e valorizadas pelos demais membros do grupo. As

superações pessoais são importantes e são fonte de prazer individual, mas o

grupo amplifica estas sensações e, por isso, desempenha um importante papel na

sua “fantasia de atleta”. Para os iniciados, correr é um meio e um fim. Correr é

conquistar; chegar é superar-se; completar uma prova é uma forma de reafirmar a

sua percepção da condição de atleta, que é referendada pelos demais corredores

do grupo.

A “fantasia de atleta”, portanto, está presente na vida dos corredores iniciantes e

iniciados, mas apresenta conteúdos e repertórios diferentes. É como se cada tipo

de corredor tivesse a sua própria “fantasia de atleta”, que intensifica e realça os

elementos mais relevantes e sensíveis para cada perfil. Estas distintas “fantasias

de atleta” são percebidas não apenas nas posturas e atitudes de cada um em

relação à corrida e ao grupo de corrida, isto é, de uma forma mais subjetiva do

que consideram ser um corredor, mas também de uma forma mais objetiva e

literal, ou seja, na maneira como os corredores se vestem. A pesquisa mostrou

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que o vestuário utilizado por iniciantes e iniciados revela muito sobre estes dois

tipos de atletas. Tênis, camisetas, shorts de determinadas marcas e estilos são

indicadores visuais de cada perfil de corredor. É como se cada um, literalmente,

vestisse a sua respectiva “fantasia de atleta” antes de correr. A denominação

“fantasia de atleta”, portanto, não se limita à dimensão imaginária e subjetiva: ela

também incorpora uma dimensão literal, ligada às roupas e aos acessórios.

A “fantasia de atleta” de um corredor iniciante: o vestuário de um novato no esporte

Corredores iniciantes, homens ou mulheres, costumam fazer seus primeiros

treinos junto ao grupo de corrida vestindo camisetas brancas de algodão, grandes

e folgadas. Os homens geralmente usam shorts “de jogar futebol” enquanto as

mulheres recorrem às bermudas “ciclistas”, originárias das academias de ginástica

aeróbica. As meias de cano longo, cobrindo toda a extensão dos tornozelos,

ajudam a compor este visual, que não costuma incluir bonés ou qualquer outra

proteção para a cabeça (considerando que a corrida é um esporte praticado ao ar

livre, este é um item de extrema importância, dependendo da hora do dia).

É muito raro um iniciante chegar ao grupo usando um frequencímetro.

Geralmente, ele desconhece não só a existência do equipamento como também a

sua utilidade e necessidade para os treinos. Ele tenta treinar sem o equipamento,

demonstrando, por vezes, uma certa descrença na sua efetiva relevância para a

atividade. No entanto, com o passar do tempo, ele tende a “dar o braço a torcer”,

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pois todos os treinos são planejados e realizados tendo como base a freqüência

cardíaca máxima de cada atleta.

Para evitar a sensação de “ficar perdido” nos treinos ou “por fora” do grupo, o

iniciante acaba escolhendo entre os modelos mais básicos de frequencímetros,

que medem apenas a freqüência cardíaca (valor médio de R$ 300,00) ou os

modelos mais sofisticados, com cronômetro, medidores de voltas, G.P.S. (Global

Positioning System) etc, a partir de R$ 500,00.

Nos pés, os atletas iniciantes costumam usar tênis da marca Nike, principalmente

os modelos que parecem, mas não são específicos para corrida. Apesar de terem

bolsas ou cápsulas de ar para amortecer o impacto do contato do corpo com o

chão, tecidos que permitem a ventilação dos pés e cores vibrantes, assim como a

maioria dos tênis de corrida vendidos no mercado, estes modelos são, na

realidade, apropriados para caminhadas e corridas curtas e leves.

Mesmo tendo finalidades distintas, há que se reconhecer que os modelos de tênis

e de caminhada são, de fato, muito parecidos, o que dificulta sobremaneira a sua

identificação pelos consumidores. A escolha dos iniciantes por estes modelos,

tecnicamente inadequados, pode ser creditada a alguns fatores. Em primeiro

lugar, ao desconhecimento dos novos corredores sobre as características do novo

esporte e de seus equipamentos e acessórios. Em segundo lugar, à falta de

informação de alguns vendedores ou mesmo má-fé destes, que vendem o que

eles têm em estoque e não o que os clientes de fato precisam. A tudo isto, soma-

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se o fascínio que a marca Nike exerce sobre a maioria das pessoas. A Nike é uma

marca que investe muito em comunicação com o seu mercado consumidor, seja

através da propaganda, seja através do patrocínio de atletas famosos ou times

(como é o caso da Seleção Brasileira de Futebol). Com produtos visualmente

atraentes e de qualidade, ela é percebida como uma marca muito sedutora e

idealizada pelos consumidores. Corredores do grupo relembram que ela é a marca

que todo mundo conhece e deseja, é a marca mais exposta e que tem mais

visibilidade no mercado. Consideram que a marca tem produtos bons, bonitos e

caros, e que, por isso, atribuem prestígio e status a quem os utiliza. Para eles,

todas essas características fazem com que ela seja tão desejada e admirada.

Para um corredor iniciante, se a Nike é boa no futebol, no basquete e no tênis,

também deve ser boa na corrida. Sendo assim, na visão deles, chegar ao

ambiente do grupo de corrida com um tênis Nike significa trazer consigo todo o

prestígio da marca. Ao usá-la, eles querem ser percebidos como pessoas que

também entendem de corrida, que “estão por dentro”, que não são novatos ou

iniciantes no esporte. Como veremos mais à frente, esta visão não é

compartilhada pelos corredores iniciados.

Os corredores iniciantes relatam que, a partir dos primeiros contatos com o grupo,

passaram a observar os hábitos, costumes e roupas dos iniciados com o intuito de

“aprender com eles”. Demonstram, com isso, uma certa humildade para reproduzir

o comportamento de quem tem mais experiência, mas também, uma grande

valorização dos aspectos estéticos e visuais do grupo.

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“Vi que todos usam meias de cano curto. Estou pensando em experimentar

também”. (Tarcísio L.).

“Eu reparei que todo mundo do grupo só usa tênis Asics ou Mizuno...” (Gabriela

A.)

O grupo, portanto, parece ter o importante papel de avalizar as escolhas dos

iniciantes, que, por sua vez, demonstram ter uma grande preocupação em não

estar ou parecer “por fora” do grupo. Existe um forte desejo de pertencer, de ser

reconhecido como “um deles”, de não destoar do grupo. Esta busca pelo

reconhecimento, já comentada anteriormente, encontra nas roupas um aliado

importante, como coloca Todorov:

“O reconhecimento pode ser material ou imaterial, da riqueza ou

das honrarias, implicando ou não o exercício do poder sobre as

outras pessoas. A aspiração ao reconhecimento pode ser

consciente ou inconsciente, acionando mecanismos racionais ou

irracionais. Posso também tentar captar o olhar dos outros por

meio das diferentes facetas do meu ser, meu físico ou minha

inteligência, minha voz ou meu silêncio. Sob essa ótica, as

roupas exercem um papel particular, pois são literalmente o

campo de encontro entre o olhar dos outros e minha vontade,

fazendo com que me situe em relação aos mesmos, quero ser

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parecido com eles ou com alguns entre eles e não com todos, ou

com ninguém. Em suma, escolho minhas roupas em função dos

outros, mesmo que seja para lhes dizer que me são indiferentes.

(...) Não é, portanto, um equívoco quando lembramos um antigo

gracejo: o ser humano compõe-se de 3 partes, alma, corpo e

roupas...” (TODOROV, 1996: 90).

Na visão dos iniciantes, quanto menos chamarem a atenção do grupo para o fato

de serem novatos, melhor. Por isso, pouco a pouco vão se desfazendo das

antigas roupas e tênis e passam a incorporar o vestuário, as marcas e o estilo dos

corredores mais experientes.

“Cheguei lá com meu ‘Nikão’ e era o único (do grupo)... Devia estar ridículo!!!

Aí, comprei esse Mizuno para experimentar. Olha, deve ser bom, porque é o que

todo mundo usa por aqui.” (Alberto S.).

Os iniciantes demonstram valer-se dos recursos visuais objetivando um duplo

reconhecimento: o pessoal, para reconhecerem-se como corredores, e o coletivo,

para serem reconhecidos pelo grupo como tais. As roupas e acessórios são

utilizados, portanto, como elementos-chave neste processo de identificação.

Vestir-se, ou “fantasiar-se” de corredor parece ser uma forma de credenciá-los,

ainda que superficialmente, a participar deste novo cenário, desta nova ambiência.

A satisfação dos iniciantes está muito mais em parecer igual e comum aos olhos

do grupo do que em se diferenciar, em ser autêntico. Através da conformidade às

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normas do grupo buscam integrar-se e atender à “necessidade de pertencer a um

grupo, a um país, a uma comunidade religiosa. Seguir escrupulosamente os

hábitos de seu meio proporciona-lhe a satisfação de se sentir existir pelo grupo”

(TODOROV, 1996: 93). Atletas iniciantes estão, no fundo, em busca de um vínculo

com o grupo de corrida para alimentar e consolidar a sua “fantasia de atleta”,

acrescentando, desta forma, uma nova dinâmica às suas vidas.

Michel Maffesoli também aborda esta questão do vestuário como um fator de

reconhecimento e um elo entre os membros de um grupo. É interessante a relação

que ele estabelece entre as roupas, o teatro e o espírito de comunidade para

acentuar a fusão das pessoas dentro de um grupo. Para ele, a estética

“é um meio de experimentar, de sentir em comum e é, também,

um meio de reconhecer-se. (...) Os matizes da vestimenta, os

cabelos multicoloridos e outras manifestações punk, servem de

cimento. A teatralidade instaura e reafirma a comunidade. O culto

ao corpo, os jogos de aparência, só valem porque se inscrevem

numa cena ampla onde cada um é, ao mesmo tempo, ator e

espectador. Parafraseando Simmel e sua sociologia dos sentidos,

trata-se de uma cena que é ‘comum a todos’. A acentuação está

menos no que particulariza do que na globalidade dos efeitos”

(MAFFESOLI, 2000: 108).

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Iniciantes preferem se “disfarçar” de corredores entre os corredores a serem vistos

como diferentes, como “forasteiros”.

A “fantasia de atleta” de um corredor iniciado: o vestuário de um atleta mais

experiente

Os atletas que já correm há algum tempo com o grupo de corrida, por sua vez,

lançam mão de um vestuário diferente dos atletas iniciantes. Os homens correm

com shorts específicos para a corrida: curtos, com as laterais transpassadas,

permitem um amplo movimento das pernas. A maioria das mulheres também corre

com shorts, mas há as que preferem as bermudas “ciclistas”. Meias de cano curto

e bonés também fazem parte do vestuário típico de um corredor iniciado.

Homens e mulheres usam camisetas específicas para a prática deste esporte. Seu

tecido é bastante fino e desenvolvido para absorver rapidamente o suor durante a

corrida (tecidos “tecnológicos” como ‘dri-fit’, ‘coolmax’ etc). Isto evita que a

camiseta, quando molhada pela transpiração, fique pesada durante a atividade

física (como as camisetas de algodão), aliviando, desta forma, o esforço do

corredor. As camisetas dos homens são mais largas e folgadas do que as usadas

pelas mulheres, porém têm um corte menor do que as tradicionais camisetas de

algodão usadas pelos iniciantes. As camisetas de corrida para as mulheres

seguem, com raras exceções, o modelo “baby look”: são bem curtas e justas.

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Muitos atletas iniciados treinam com as camisetas que ganharam nas provas das

quais participaram. Ao se inscreverem em competições, todos os atletas recebem

um kit composto por, no mínimo, uma medalha e uma camiseta alusivas ao

evento. A qualidade da camiseta é, muitas vezes, um fator de decisão para

participar das provas. Preferem as camisetas com tecido “tecnológico”, próprio

para corrida, ao invés das de algodão.

“A camiseta da Corrida dos Bombeiros é horrível! Eu nunca mais vou correr esta

prova!” (Jair M.).

“A melhor camiseta é a da corrida da Track & Field. A inscrição é cara, custa

setenta reais, mas vale pela camiseta que custa mais do que isso na loja...”

(Rodrigo G.).

Mais do que uma lembrança das provas, estas camisetas são vistas como um

troféu conquistado. São consideradas mais úteis do que as medalhas, porque

podem ser vistas e exibidas em público. Elas representam a “conquista suada”, a

confirmação de que fizeram por merecer. Por isso, não é um costume entre os

corredores usar a camiseta de uma prova da qual o atleta não participou (apenas

se inscreveu e por qualquer motivo não pôde correr). É como se ele não tivesse

feito o esforço necessário para merecê-la.

As camisetas de provas também são vistas como símbolos de exclusividade, um

atributo muito valorizado neste ambiente, principalmente as que são mais

incomuns ou mais difíceis de serem conquistadas. Seria esperado, portanto, que

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os atletas exibissem as suas “camisetas-troféus” em todas as oportunidades

possíveis. Paradoxalmente, não é isto o que ocorre: o seu uso fica restrito aos

treinos ou aos eventos familiares (churrascos, finais de semana etc). Isto

demonstra, de um lado, um aspecto bastante pragmático: o de usar a camiseta de

corrida para correr. Por outro lado, e acima de tudo, revela que as camisetas de

corrida são usadas quando há um público que sabe lhes dar o devido valor. São

pessoas que conhecem a simbologia que elas carregam, ou seja, sabem o que

significa correr determinada prova. Por este motivo, a camiseta é valorizada entre

iguais. Além disso, o uso da camiseta em eventos familiares mostra a vontade que

estes corredores têm de servir como um bom exemplo para as pessoas próximas.

Eles relatam que as camisetas geram assunto e até servem de argumento para

“converter” alguns amigos e parentes mais sedentários. Como citado

anteriormente, os corredores gostam de ser percebidos como pessoas dinâmicas

e saudáveis e, conseqüentemente, apreciam servir como um modelo a ser

seguido. Na sua “fantasia de atleta”, ter um corpo saudável, possuir uma “válvula

de escape” contra as tensões do dia-a-dia, ser uma pessoa madura e ativa ao

mesmo tempo etc, são, para eles, excelentes razões para que sejam admirados e

imitados pelos outros.

Nos pés, estes corredores mais experientes preferem os modelos de tênis

específicos para corrida das marcas Asics ou Mizuno, sendo muito raro ver um

iniciado usando um tênis da Nike. Estes tênis são utilizados única e

exclusivamente em treinos e provas e são carinhosamente chamados de “xodós”

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ou “profissionais”. Por isso, não são usados em passeios, eventos ou outras

situações corriqueiras. Seu uso é totalmente limitado à corrida.

“Eu economizo esses tênis, não fico andando por aí com eles” (Flora M.).

Mais uma vez, reafirma-se o aspecto pragmático de não usar um tênis específico

para corrida fora deste ambiente. Há, no entanto, um outro motivo para tanta

“economia”: o preço destes equipamentos. Como citado no capítulo anterior, um

par de tênis de corrida das marcas Asics ou Mizuno custa, em média, R$ 450,00.

Considerando a vida útil do tênis, ou seja, que ele resiste a aproximadamente 800

km, e considerando o volume de treinamento dos atletas estudados no grupo

(média de três vezes por semana, totalizando 30 km por semana), um par de tênis

deve durar por volta de sete meses. Se tiverem dois pares de tênis para uso

intercalado, para evitar o já comentado “efeito-memória”, os atletas chegam a

investir pelo menos R$ 900,00, somente em tênis, em um período inferior a um

ano. Como os não-atletas não têm a referência de preço destes tênis, estes

equipamentos tornam-se mais um componente simbólico e de distinção. Usar um

tênis de R$ 450,00 onde ele realmente serve e é valorizado passa a ser mais

válido, deixando os demais tênis para outras atividades.

Esta pesquisa revelou, com clareza, a explícita preferência dos iniciados pelas

marcas Asics e Mizuno e um certo desprezo pela marca Nike. Ao mesmo tempo,

trouxe à tona algumas questões intrigantes: será que os tênis da Asics e Mizuno,

marcas quase desconhecidas, são de fato superiores aos da Nike ou trata-se

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apenas de uma questão de percepção dos atletas? A “poderosa” Nike realmente

não tem modelos de tênis para competir neste segmento em franco crescimento?

Em suma, o que os iniciados viram na Asics e Mizuno que os iniciantes (ainda)

não viram?

A preferência por Asics e Mizuno pode ser fruto de uma combinação de fatores,

objetivos e subjetivos. Primeiramente, percebe-se a imensa influência que a

recomendação dos treinadores exerce sobre o comportamento de compra dos

atletas. Eles são vistos como “especialistas” neste esporte e, por isso, passam a

ter autoridade e propriedade para opinar sobre todo e qualquer equipamento ou

acessório usado pelos atletas, desde tênis até frequencímetros. Eles são a

primeira fonte de consulta dos corredores quando pensam em comprar algum

artigo específico para a corrida e, quando o assunto é tênis, invariavelmente,

recomendam os modelos das marcas Asics e Mizuno. Como confirma Philip

Kotler, uma das maiores referências internacionais em marketing, a influência

pessoal exerce grande peso nas decisões de compra dos consumidores,

principalmente em duas situações. A primeira delas é quando os produtos são

caros, e, por isso, são comprados esporadicamente, ou quando envolvem risco.

“Nesta situação, os compradores, provavelmente, irão além das informações

divulgadas pela mídia de massa para ouvir as opiniões de especialistas e pessoas

conhecidas” (KOTLER, 1994: 525). A segunda situação ocorre quando o produto

pode revelar algo sobre o status ou o gosto pessoal do comprador. Neste caso, os

compradores tendem a consultar outras pessoas para minimizar eventuais

constrangimentos. A recomendação dos treinadores para a escolha das marcas

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de tênis de corrida parece encaixar-se em ambas situações: os tênis são itens

caros e por isso são comprados esporadicamente, e também carregam o risco de

se gastar muito dinheiro e não comprar, obrigatoriamente, o produto mais

adequado. Além disso, a escolha desta ou daquela marca mostrou-se reveladora

de uma faceta dos corredores, ou seja, se são iniciantes ou iniciados neste

esporte.

Além da recomendação dos treinadores a favor de Asics e Mizuno, há que se

considerar a opinião dos vendedores que trabalham em pontos de venda

especializados em corrida. Apesar do viés intrínseco ao comércio, no qual muitas

vezes o vendedor tenta “empurrar” o que ele quer vender e não o que o cliente

precisa, estes vendedores também são vistos pelos atletas como pessoas bem

informadas no segmento. Aparentemente instruídos pelos próprios fabricantes, a

ponto de saberem cada detalhe dos modelos de tênis, lidam frequentemente com

clientes satisfeitos e insatisfeitos com esta ou aquela marca. Como lembra Kotler,

“normalmente as fontes comerciais desempenham uma função informativa”

(KOTLER, 1994: 178), conquistando, com isso, legitimidade para falar sobre as

marcas a ponto de recomendá-las ou não.

Um terceiro fator que pode explicar a preferência pelas marcas Asics e Mizuno em

relação à Nike está ligado às estratégias de comunicação destas marcas: os

meios utilizados para atingir o público e a própria mensagem das propagandas.

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Com relação aos meios, Asics e Mizuno optaram pela presença constante no

principal veículo de comunicação do segmento de corredores: as revistas

especializadas em corrida. Durante o período de realização desta pesquisa, Asics

e Mizuno veicularam anúncios em todas as edições das principais revistas

direcionadas a este público, enquanto a Nike teve uma participação muito mais

esporádica. A sua estratégia, por outro lado, foi a de promover eventos

massificados, abrangendo um grande número de corredores.

É muito difícil avaliar qual das duas estratégias traz mais benefícios às marcas.

Não se pode fazer uma análise isolada desta ação de comunicação específica

porque o consumidor enxerga, a partir do seu ambiente, o conjunto de ações da

marca. Como coloca David Aaker, um dos maiores especialistas internacionais em

marcas, “há uma tentação natural de gerenciar cada abordagem de crescimento

da marca separadamente, mas a pesquisa numa variedade de contextos mostrou

que meios múltiplos são sinergéticos” (AAKER, 2000: 308). Em outras palavras, é

a somatória das ações das marcas que forma a percepção, a imagem que o

consumidor faz delas. No entanto, é importante considerar que a mensagem

transmitida pelas marcas nas suas propagandas é o elemento mais concreto e

palpável que os consumidores têm para compor a imagem das marcas e que “os

efeitos da comunicação são maiores quando a mensagem coincide com as

opiniões, crenças e disposições do receptor” (KOTLER, 1994: 515).

A análise das mensagens enviadas pelas marcas ao público mostra que Asics,

cujo nome representa as iniciais de Aenima Sana In Corpore Sano (alma sã em

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corpo são), é uma marca que explora, principalmente, o fato da maioria dos

participantes das corridas internacionais mais importantes usarem tênis da sua

marca. Com isso, ela busca transmitir confiança e credibilidade aos potenciais

compradores, ao mesmo tempo em que reforça a sua experiência no mundo da

corrida, colocando-se como um “símbolo de pertencimento”. Este é um discurso

publicitário que faz sentido para muitos corredores, principalmente os iniciados,

que possuem objetivos mais ousados como participar de maratonas

internacionais. Para eles, não é à toa que 55% dos participantes da Maratona de

Nova York usam Asics. Concluem que os tênis desta marca devem ser robustos e

confortáveis o suficiente para aguentar os 42 quilômetros da corrida. A linha de

raciocínio dos iniciados baseia-se na importância que atribuem à “aprovação pelo

número”:

“Tanta gente assim não pode estar enganada...Tudo bem que alguns até podem

ser patrocinados pela marca e por isso ganham tênis de graça, mas é muita gente

usando esses tênis... Devem ser bons mesmo.” (Júlio A.).

A Mizuno, por sua vez, explora mais diretamente as características e

funcionalidades dos seus produtos e o benefício que, teoricamente, isso gera para

o corredor: os modernos sistemas de amortecimento prometem reduzir os

impactos causados pela corrida e, segundo ela, possibilitam correr mais rápido.

Quer mostrar-se aos consumidores como uma marca que entende de corrida e

que desenvolve produtos que melhoram, de fato, a performance do corredor.

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O argumento de venda utilizado pela Mizuno parece ser menos factual ou objetivo

que o da Asics. Enquanto esta comprova o percentual de usuários da sua marca

em uma corrida, aquela apoia-se em metáforas que sugerem que o seu usuário

conseguirá correr tão rápido quanto um guepardo... Os tênis da Mizuno são, de

fato, mais leves que os tênis da Asics, mas é preciso fazer um exercício de

abstração para acreditar que um atleta amador conseguirá esta proeza.

“Esse tênis é super levinho, mais leve até que o Asics. Se ele ajuda a correr mais

rápido? Bom, é um peso a menos para eu carregar...” (Isabela M.).

A propaganda da Nike, por sua vez, parece fazer uma combinação de alguns

elementos usados por Asics e Mizuno. Ao mesmo tempo em que explora

características técnicas dos seus produtos, alegando que permitirão ao atleta

correr mais rápido, ela investe ostensivamente em eventos de massa, como as

mega-corridas de dez quilômetros, organizadas para vinte mil pessoas em 2005 e

para vinte e cinco mil pessoas em 2006, tanto em São Paulo, quanto em outras

importantes cidades da América Latina. Nestes dois momentos, procurou destacar

os benefícios que a corrida traz para seus praticantes, parecendo se comunicar

com um público que ainda precisa de argumentos para começar a correr.

Na corrida de outubro de 2005, a sua campanha de divulgação explorou as

inúmeras possíveis respostas para a frase “Estou correndo porque...”:

“Gostei da coisa”

“Me confundiram com um pufe”

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“Quero ficar em forma de deusa”

“Suar faz bem”

“Sou uma negação no futebol”

“Adorei fazer minha primeira prova”

“Não quero ficar enferrujado”

entre tantas outras divulgadas pela marca.

Na corrida de outubro de 2006, o tema central da campanha de divulgação foi

“Imagine você terminando”. A marca conseguiu atrair vinte e cinco mil corredores,

sensibilizados pelas mensagens de que o esforço de correr dez quilômetros seria

recompensado, que a linha de chegada poderia ser uma realidade, que esta

conquista seria inédita e um “feito heróico”:

“Quando eu cruzar a linha de chegada, vou ver que chegar em 21.457º não é tão

ruim assim”.

“Quando eu cruzar a linha de chegada, vão passar mil coisas pela minha cabeça.

Inclusive um copinho de água mineral”.

“Você vai se atrapalhar com o cronômetro, mas vai chegar”.

“Você vai achar que enlouqueceu, mas vai chegar”.

“Você vai ficar só no trotezinho, mas vai chegar”.

“Você vai quase desistir, mas vai chegar”.

“Você vai achar que tem um saco de cimento nas costas, mas vai chegar”.

“Você vai achar que não vai chegar, mas vai chegar”.

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Corredores iniciantes e iniciados reagiram de forma diferente às mensagens

transmitidas pela Nike:

“Nunca corri 10 quilômetros... será que eu vou conseguir? Bom, qualquer coisa, eu

ando em vez de correr...” (Alberto S., corredor iniciante).

“Você vai nessa corrida da Nike??? Ah, eu não vou, vai tanta gente que você tem

que andar nos primeiros quilômetros. Isso não é corrida prá (medir) tempo, é só

para fazer social” (Maurício L., corredor iniciado).

Uma análise da comunicação de Asics, Mizuno e Nike sugere que elas não

parecem estar se comunicando com os mesmos públicos. Enquanto Asics e

Mizuno parecem mais voltadas aos “especialistas em corrida”, seja pelo conteúdo

das suas mensagens, seja pelos meios utilizados para atingir o público, Nike

parece mais concentrada em falar com os novos adeptos deste esporte. Apesar

de iniciantes e iniciados não reproduzirem verbalmente este raciocínio, a forma

como reagem às ações de comunicação das marcas, a imagem que têm de cada

uma e a própria preferência pelos produtos revelam um alinhamento com este

pensamento.

A comunicação das marcas (meio e mensagem utilizados) é, portanto, um bom

caminho para começar a entender a preferência dos corredores pelas marcas. No

entanto, não é o único. Existem outros aspectos que também devem ser

considerados para esclarecer esta questão. Muitos deles não são formalmente

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apontados pelos corredores, mas não escapam da análise mais cuidadosa de

estudiosos sobre marcas e de treinadores de corrida. Afinal de contas, será que

uma comunicação mais ou menos concentrada neste ou naquele público é capaz

de, sozinha, definir a preferência pelas marcas?

Um fato relevante e que passa despercebido da análise dos corredores sobre a

sua preferência pelas marcas é que Asics e Mizuno chegaram antes da Nike no

ambiente brasileiro das corridas. Com origem semelhante, as japonesas Asics e

Mizuno entraram no mercado brasileiro através do vôlei e só então expandiram-se

para a corrida, sem conquistar muita representatividade em outros esportes no

Brasil. Optaram por um crescimento menos massivo e mais segmentado,

adotando o discurso de marcas “mais especialistas” ou de “nichos”, ao contrário

da americana Nike, que buscou uma imagem mais generalista ao marcar

presença em diversos esportes de massa. A ocupação de nichos é uma estratégia

de marca que pode ser interessante e rentável ao mesmo tempo. Segundo Kotler,

a empresa que ocupa um nicho de mercado tem a oportunidade de conhecer a

fundo o seu público-alvo e atendê-lo melhor do que outras empresas. Com isso,

“pode cobrar uma margem substancial sobre os custos em função do valor

agregado oferecido. Ela obtém margem alta, enquanto a empresa que vende em

massa consegue volume alto” (KOTLER, 1994: 352).

Além de posicionarem-se como marcas especialistas, Asics e Mizuno valeram-se

da condição de pioneiras: beneficiaram-se da reduzida concorrência na época e

tiveram a oportunidade de conquistar seus respectivos espaços na corrida. Os

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corredores não chegam a ter consciência da influência positiva que o pioneirismo

exerce na percepção das marcas, mas a análise de situações semelhantes revela

que este é um comportamento bastante comum dos consumidores: o de privilegiar

quem “chegou primeiro”, desde que tenha bons produtos, é claro. Como lembra

Kotler, a marca pioneira de mercado obtém mais vantagens junto aos

consumidores:

“Os usuários imediatos favorecerão a marca pioneira porque a

experimentaram e ficaram satisfeitos. A marca pioneira

estabelece também os atributos de avaliação que a classe de

produto deve possuir. Em razão de a marca pioneira,

normalmente, atingir a média do mercado, ela obtém o maior

número de usuários. Há também vantagens baseadas no

produto, em razão de economia de escala, liderança tecnológica,

domínio de recursos escassos e de outras barreiras à entrada”

(KOTLER, 1994: 318).

Sabão em pó Omo, margarina Doriana, barra de cereal Nutry, sabão em pedra

Ypê, suco pronto para beber Del Valle, bebida à base de soja Ades são alguns

exemplos de marcas pioneiras em seus segmentos de mercado que detêm a

preferência dos consumidores. Mesmo com a chegada de novos concorrentes,

desfrutam de uma imagem muito positiva junto aos consumidores. Tudo indica que

desbravar um novo mercado, fazendo um bom trabalho de marketing (com bons

produtos, boa comunicação, boa distribuição etc) proporciona às marcas grandes

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chances de construir e sustentar uma posição de liderança na mente dos

consumidores.

Outro fato relevante, que uma análise mais superficial não consegue revelar, é

que a Nike, ao longo de sua trajetória em corrida no Brasil, deu motivos para que

os treinadores e vendedores a deixassem de lado em suas recomendações. Os

primeiros modelos de tênis de corrida vendidos pela marca no Brasil

comprovadamente machucavam os pés dos corredores, causando-lhes “bolhas”.

Isto contribuiu negativamente para a sua imagem, pois desencadeou uma série de

associações ruins e generalizadas sobre os tênis da marca. Na sequência deste

episódio, a marca passou a vender no mercado apenas modelos de tênis

desenvolvidos para caminhadas e corridas leves, sem, contudo, esclarecer isto ao

consumidor. Tênis como “Nike Air”, “Air Max”, “Nike Shox” etc parecem próprios

para corridas, mas não são. Com um visual atraente e preços mais baratos que os

tênis (realmente) de corrida de outras marcas, estes modelos atraíram o público

que estava disposto a começar alguma atividade física. Ou que simplesmente

tinha vontade de possuir um tênis “de corrida” da Nike.

Treinadores, vendedores e atletas que correm há mais tempo têm plena

consciência da falta de modelos de tênis da Nike que sejam realmente adequados

para corrida. De fato, somente em 2006 a marca começou a importar alguns

modelos da sua linha “profissional” denominada Bowerman (uma homenagem a

Bill Bowerman, co-fundador da marca). Apenas os modelos desta linha são

efetivamente específicos e indicados para corridas mais intensas, a partir de dez

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quilômetros. Por sua vez, são mais caros do que os modelos das linhas mais

divulgadas pela marca, além de serem mais discretos em relação às cores,

tecidos etc.

Todos estes fatos e percepções, quando somados, ajudam a entender os porquês

da explícita preferência dos iniciados pelas marcas Asics e Mizuno e do aparente

desprezo pela marca Nike. O curioso é perceber que, mesmo diante de um fato

concreto como a falta de produtos da Nike, os iniciados encontram explicações

subjetivas para justificar sua preferência por Asics e Mizuno. Mesmo sendo as

únicas marcas a oferecer mais opções de tênis para os corredores, Asics e

Mizuno conseguiram criar um conjunto de percepções a seu respeito que tende a

ocultar as motivações mais concretas e objetivas para sua escolha.

Asics e Mizuno têm experiência e foco de atuação concentrado no ambiente da

corrida. Planejada ou não, esta tem sido a estratégia destas marcas. Não se sabe

se quiseram ser assim ou se não tiveram estrutura ou verba suficiente para

crescer e investir em outros esportes.

Nike possui uma outra estratégia de marca. Ela procura estar presente onde “a

massa” está. Seu foco de atuação está muito mais voltado aos esportes capazes

de gerar grandes volumes de vendas do que aos pequenos nichos de mercado. A

marca aliou uma decisão financeira à mercadológica.

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Para os corredores iniciados, estes fatos objetivos são reinterpretados sob a forma

de percepções subjetivas.

Asics e Mizuno são consideradas marcas especialistas em corrida e isto é muito

valorizado pelos corredores iniciados. Estas duas marcas representam a

exclusividade e a seletividade de um grupo de pessoas que se sentem

diferenciadas porque praticam um esporte que, apesar do recente crescimento,

ainda é pouco divulgado. Usar marcas diferenciadas é uma forma de reforçar que

fazem parte de um grupo que conhece um assunto novo, que entende de corrida.

Como são corredores, usam marcas de corredores e não as marcas que “todo

mundo” usa, ou que “qualquer pessoa” usa, como a Nike. No fundo, querem ser

percebidos como pessoas diferenciadas. Como lembra Wacquant, algo

semelhante ocorre com os pugilistas, que “saboreiam o fato de ‘pertencer a uma

pequena confraria’ à parte, reputada por sua bravura física e por sua rudeza;

apreciam saber que eles ‘são diferentes das outras pessoas’. Eles são lutadores”

(WACQUANT, 2002: 88).

Asics e Mizuno ajudam a estreitar os vínculos de pertencimento desta “pequena

confraria” e todas as oportunidades de reforçar esta conexão são aproveitadas por

seus membros, mesmo que de forma inconsciente.

“Eu corria com um Reebok. Por que eu comprei esse Mizuno? Ué, porque TODO

MUNDO QUE CORRE fala que Mizuno é bom para corrida!!!” (Anita N.).

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“Pode reparar: os tênis expostos nas lojas de shopping não estão nos pés dos

caras que correm aqui. A gente só compra desse vendedor que vem aqui no treino

e que só tem coisa boa (referindo-se a Asics e Mizuno)” (Jorge R.).

Os iniciados demonstram certa desconfiança, e talvez preconceito, com as marcas

que exploram, em excesso, atributos como ser “fashion”, ter estilo, ser mais

voltada à estética etc. Consideram-nas “bonitinhas, mas ordinárias”, parecendo

não entender de corrida. Se tivessem de optar, muitos prefeririam um tênis “menos

bonito”, porém de boa qualidade e reputação em corrida, do que um tênis apenas

bonito, mas sem tradição neste esporte. Para eles, “muito marketing” não é um

sinal de que a marca entende do assunto. Quando a marca faz muita “espuma”,

muito barulho, parece gerar desconfiança.

Através de declarações como estas, os iniciados revelam o quanto as suas

percepções das marcas foram influenciadas pelos treinadores, vendedores de

tênis, pelas propagandas em revistas especializadas em corrida e até pelos

próprios colegas do grupo de corrida. Para eles, estas percepções, corretas ou

não, passam a ser a realidade no ambiente da corrida. E são estas as percepções

que alimentam, dia a dia, a sua “fantasia de atleta”.

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Quadro-resumo: as “fantasias de atletas” de iniciantes e iniciados

Tipo de fantasia

Equipamentoou Acessório

CorredoresIniciantes

CorredoresIniciados

Fantasialiteral

Tênis Nike Asics ou Mizuno

Camisetas Algodão Tecidos “tecnológicos”: “dri-fit”, “coolmax”

Shorts Futebol / ciclista Curto, para corrida Meias Cano longo Cano curto

Frequen-címetro

Não Sim, da marca Polar

Fantasiasubjetiva

Serem percebidos como pessoas saudáveis e

ativas.

Serem percebidos como pessoas saudáveis e ativas, disciplinadas e movidas a desafios.

Corrida é um meio. Corrida é um meio e um fim.

Valorizam marcas que fazem comunicação de

massa e a beleza estética dos tênis, mais

do que a sua performance na corrida.

Valorizam marcas que fazem comunicação

segmentada, mais seletiva e exclusiva. Buscam a

performance do produto na corrida, mais do que a sua

beleza estética. Querem deixar de ser

vistos como iniciantes o mais rapidamente

possível. Para isso, vão atuar onde conseguem: no vestuário. Tentarão

parecer corredores, mesmo ainda não sendo

um deles.

Querem ser percebidos como experientes,

exigentes, confiantes, determinados, modelos para os outros. Pessoas que superam desafios.

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Vínculos fluidos: marcas e grupos na era da modernidade líquida

Iniciantes querem ser percebidos como corredores; iniciados querem ser

percebidos como corredores “sérios”. Iniciantes curtem a animação de uma mega-

corrida-evento; iniciados preferem a seletividade das corridas menores. Iniciantes

querem se sentir parte do grupo; iniciados querem fazer parte do grupo que

“entende do assunto”. Iniciantes correm com Nike; iniciados correm com Asics ou

Mizuno.

Estes dois tipos de corredores apresentam diferenças “dos pés à cabeça”, mas

quando o assunto é marca, parecem correr atrás de percepções semelhantes.

Independentemente da marca de tênis escolhida, Asics, Mizuno ou Nike, as

razões declaradas giram em torno de um mesmo repertório de argumentos: o

melhor sistema de amortecimento, a tecnologia mais avançada, o modelo mais

apropriado para este ou aquele tipo de pisada, o tênis mais leve etc. Ao

escolherem determinada marca, iniciantes e iniciados estão em busca de um aval

de segurança: ambos querem ter a tranqüilidade e a certeza de que fizeram a

melhor escolha. Uma escolha que garanta que seus joelhos estarão protegidos

dos impactos da corrida, que assegure que seus pés estarão envolvidos pela

fôrma mais adequada ao seu formato ou uma escolha que lhes dê condições de

correr sem carregar peso desnecessário.

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Este aval de segurança que corredores iniciantes e iniciados buscam, no entanto,

não se limita aos aspectos técnicos das marcas. Ele também contempla os

aspectos mais subjetivos das marcas: corredores querem ter a confiança e a

tranqüilidade de que escolheram a marca que todo mundo usa ou a marca de

quem entende de corrida ou a marca que fornece mais status e prestígio ao seu

usuário.

A decisão por esta ou aquela marca, portanto, pode ser entendida como uma

forma não verbalizada de aliviar tensões e minimizar as dúvidas intrínsecas ao

processo de escolha, sejam elas objetivas ou subjetivas. Os corredores não

querem ter dúvidas de que seus R$ 500,00 foram bem gastos. Os iniciantes

querem ter a segurança de que não estarão “por fora” do grupo e de que,

efetivamente, fazem parte do grupo de corrida. Os iniciados, por outro lado, não

querem ter nenhuma dúvida de que entendem de corrida e de que fazem parte de

um grupo maior de pessoas que pensam e agem da mesma forma. Os dois tipos

de corredores depositam nas marcas as suas inseguranças e frustrações, assim

como as suas aspirações e expectativas.

Sendo assim, além de oferecerem um equipamento para a prática da corrida, as

marcas esportivas também oferecem um “algo mais”, ou seja, uma promessa de

tranquilidade. Em outras palavras, as marcas se propõem a desempenhar o papel

de “acalmar” os seus consumidores, reafirmando as decisões que eles tomaram.

Funcionam como uma garantia, como um apoio para consumidores nos seus

momentos mais inseguros. Como reforça Zygmunt Bauman, os consumidores,

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durante o processo de consumo, estão tentando escapar da agonia chamada

insegurança:

“Querem estar, pelo menos uma vez, livres do medo do erro, da

negligência ou da incompetência. Querem estar, pelo menos uma

vez, seguros, confiantes; e a admirável virtude dos objetos que

encontram quando vão às compras é que eles trazem consigo

(ou parecem por algum tempo) a promessa de segurança”

(BAUMAN, 2001: 96).

As marcas de tênis, no entanto, não são as únicas a desempenhar este papel no

ambiente da corrida. As próprias assessorias esportivas também podem ser

consideradas marcas, uma vez que estas representam, como assinalado no início

desta dissertação, “um nome diferenciado (...) destinado a identificar os bens ou

serviços de um vendedor ou de um grupo de vendedores e a diferenciar esses

bens e serviços daqueles dos concorrentes” (AAKER, 1998: 7). Em outras

palavras, além de possuírem nomes diferenciados, como Run & Fun, Find

Yourself e Equipe Movimento, procuram oferecer serviços de treinamento em

corrida distintos das demais assessorias esportivas e, por fim, geram uma série de

sensações e percepções subjetivas em seus atletas.

Além de contemplarem estes aspectos mais técnicos e operacionais das marcas,

as assessorias esportivas também são capazes de suscitar associações de

marca, isto é, “algo ‘ligado’ a uma imagem na memória” (AAKER, 1998: 114) como

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uma forma de diferenciação de seus concorrentes. Ao incorporarem estes

aspectos mais subjetivos, reafirmam esta condição de serem consideradas como

marcas em seu sentido mais amplo.

A marca Run & Fun diz muito sobre quem são os corredores que decidiram se

juntar a ela e o que eles esperam da corrida. Percebe-se um traço comum entre

os atletas pesquisados, ou seja, demonstram uma vontade de conciliar a prática

do esporte com diversão. Apesar de terem total consciência de que são atletas

amadores, sem qualquer pretensão de vencer corridas de rua, não querem só

correr ou preparar-se para determinadas provas. Também querem desfrutar de um

ambiente agradável, leve e divertido. Não é por acaso que, durante os treinos

mais intensos e difíceis, os atletas costumam “cobrar” dos treinadores:

“Por enquanto só vi ‘run’ neste treino... ’fun’, que é bom, nada...”

Não são apenas os corredores do grupo que têm esta postura. O perfil dos

treinadores da Run & Fun também está alinhado com estas associações da

marca. De uma forma geral, são pessoas divertidas, engraçadas e que

demonstram preocupação em preservar este ambiente de descontração. Esta

atitude é incentivada pelo próprio fundador da assessoria esportiva, o professor de

Educação Física Mário Sérgio Andrade Silva, que também possui estas

características.

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Apesar desta pesquisa ter sido concentrada no grupo de atletas da Run & Fun, a

convivência com este ambiente da corrida permitiu-me notar as diferenças mais

flagrantes entre o grupo estudado e outras assessorias esportivas. Uma delas foi a

T.P.M. (Treinamento Para Mulheres). Ela é uma marca que oferece basicamente

os mesmos serviços da Run & Fun, mas possui uma visível diferença: neste grupo

“menino não entra”. Seu uniforme é cor-de-rosa, os treinamentos no Parque Villa-

Lobos começam um pouco mais tarde do que os da Run & Fun (às 8:00h) e, além

da corrida, dedicam uma parte do treino para realizar exercícios de musculação,

principalmente para as regiões “mais solicitadas” pelas mulheres (glúteos,

abdômen e pernas). Estas diferenças não indicam que as integrantes do T.P.M.

não têm a preocupação de se divertir e fazer um esporte ao mesmo tempo. Estas

atletas, que são tão amadoras quanto os corredores da Run & Fun, apenas

priorizam outras associações de marca. Para elas, a opção de fazer atividades

físicas exclusivamente na companhia de mulheres é o fator mais importante desta

escolha. Em outras palavras, optaram por uma marca que oferece tranqüilidade

para suas atletas ficarem em posições mais constrangedoras na hora de fazer

exercícios para os glúteos, por exemplo, sem a presença masculina, ou a

segurança de não serem “assediadas” por homens durante os treinos

(eventualmente, esta pode ser uma necessidade dos maridos das atletas, mais do

que delas próprias...).

A marca M.P.R. (Marcos Paulo Reis) é um outro exemplo. Esta assessoria

esportiva também oferece serviços semelhantes aos da Run & Fun, com

treinamentos no Parque do Ibirapuera durante a semana e na USP aos sábados.

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Apesar de serem operacionalmente parecidas, o traço subjetivo que as

diferenciam é a presença de um caráter competitivo mais acentuado na M.P.R..

Em outras palavras, é como se ela estivesse mais concentrada no “run” do que no

“fun”. Seus atletas optaram por um tipo de treinamento mais voltado para a

performance esportiva, para a participação em provas com uma preocupação

maior na velocidade e no tempo gasto para completá-las. Escolher a M.P.R.,

portanto, revela uma busca pela segurança de que o atleta será bem treinado, de

que fará bons tempos nas provas, de que alcançará seus objetivos mais

audaciosos.

Assim como ocorre com muitas marcas presentes no mercado, as marcas de

grupo de corrida também podem conferir status aos seus corredores. No caso

específico da Run & Fun, ela é descrita por seus atletas como uma assessoria

esportiva bastante conhecida e valorizada no meio:

“É como o nome de escola, de faculdade...por exemplo, estudei na FAAP, corro na

Run & Fun... Quando eu corria com a Find (Yourself), as pessoas viviam me

perguntando: com quem???? Desde que eu mudei para a Run & Fun, ninguém me

pergunta quem são, todo mundo conhece e sabe que eles são bons” (Flora M.)

As marcas do grupo de corrida são, portanto, marcas de distinção. Além de

oferecerem os serviços de orientação técnica para a corrida, conferem aos seus

atletas a percepção de que eles são pessoas diferenciadas e especiais. A escolha

pela marca Run & Fun, no caso, é uma forma de dizer aos outros corredores que

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estilo de corredor o atleta tem, ou como ele gostaria de ser percebido pelos outros.

A marca funciona como uma credencial, que por si só, “promove” o corredor.

Correndo muito ou pouco, participando de todos os treinos ou de apenas alguns,

atingindo ou não os seus objetivos pessoais, o fato de fazer parte deste grupo de

corrida já é uma forma de se diferenciar dos demais corredores amadores. A

marca do grupo potencializa, portanto, este sentimento de fazer parte. Mesmo

sem precisar fazer muito esforço físico, o grupo oferece a promessa de que

aquelas pessoas “pertencerão” a um novo ambiente. Basta cadastrar-se, pagar a

mensalidade, ir aos treinos, usar o uniforme, dar uma corridinha... Pode até

caminhar, se quiser!

As assessorias esportivas, enquanto marcas, desempenham um papel no âmbito

da corrida que realça três aspectos bastante intrigantes. O primeiro deles é a

necessidade dos atletas se sentirem parte de um grupo: seja um pequeno grupo

de corrida, seja um grande grupo de gente que entende de corrida, esta é uma

busca recorrente.

O segundo aspecto está relacionado à atuação das marcas neste sentido: sejam

elas marcas de tênis ou de assessorias esportivas, elas ajudam os atletas a

preencher esta carência de se sentir parte de um grupo. Por mais incrível que

pareça, este “nome diferenciado e/ou símbolo (...) destinado a identificar os bens

ou serviços” (AAKER, 1998: 7) conseguiu assumir um papel desta magnitude na

vida das pessoas.

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Por fim, a constatação da existência de fortes traços de contemporaneidade em

um ambiente aparentemente trivial e ordinário como o dos grupos de corrida e das

marcas esportivas. Como estes grupos e marcas conseguiram desenvolver esta

capacidade de unir pessoas através de vínculos tão efêmeros e voláteis?

As pessoas usam as mesmas marcas de tênis, mas se não o fizessem, talvez

teriam o mesmo tipo de aproximação com o grupo...

As pessoas que fazem parte do grupo de corrida se reconhecem, mas,

efetivamente, pouco se conhecem...

As pessoas se encontram, mas mal interagem entre si nos treinos, e quase nada

fora deles, como se os treinos encorajassem mais a “ação” do que a “interação”...

As relações interpessoais são passageiras e transitórias, e, no limite, duram o

tempo em que os corredores freqüentarem os treinos. No dia em que os atletas

resolverem correr sozinhos, ou quando quiserem “dar um tempo” sem correr, por

exemplo, estarão sujeitos a romper os frágeis vínculos existentes com os demais

corredores do grupo...

Na visão de Bauman, este é um fenômeno urbano contemporâneo por excelência,

típico das grandes metrópoles modernas, e que apresenta características

semelhantes às dos fluidos. Para ele, a “fluidez” é a melhor metáfora para explicar

o momento da era moderna em que vivemos, pois

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“os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm a sua forma

com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço

nem prendem o tempo. (...) Os fluidos não se atêm muito a

qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a

mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o

espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem

apenas ‘por um momento’” (BAUMAN, 2001: 8).

Nesta “modernidade líquida”, não se pode ignorar o tempo, pois as “descrições de

líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas” (BAUMAN, 2001: 8).

As pessoas que hoje fazem parte do grupo de corrida da Run & Fun do Villa-

Lobos podem não ser as mesmas que farão parte do grupo, amanhã. O grupo é

fluido, “escorre”, não se atém a uma formação com estas ou aquelas pessoas. Os

atletas entram e saem do grupo e o grupo permanece existindo.

Mesmo os corredores que fazem parte do grupo há mais tempo, freqüentando-o

com assiduidade, também vivenciam encontros instantâneos. Estas pessoas

reúnem-se três vezes por semana, em dias e horários específicos. O seu principal

objetivo é correr. Findo o treino, dispersam-se. Voltam para suas casas, tiram seus

uniformes e vestem outras fantasias, para desempenhar outros papéis. Só

retomarão a fantasia de corredor dois dias depois, no próximo treino.

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Reuniões momentâneas como estas são consideradas por Bauman como um

fenômeno das sociedades atuais. Corredores comportam-se como os

participantes de espetáculos culturais que se utilizam dos serviços da chapelaria

(cloakroom) do ambiente:

“Os freqüentadores de um espetáculo se vestem para a ocasião,

obedecendo a um código distinto do que seguem diariamente - o

ato que simultaneamente separa a visita como uma ‘ocasião

especial’ e faz com que os freqüentadores pareçam, enquanto

durar o evento, mais uniformes do que na vida fora do teatro. É a

apresentação noturna que leva todos ao lugar – por diferentes

que sejam seus interesses e passatempos durante o dia. Antes

de entrar no auditório, deixam os sobretudos ou capas que

vestiram nas ruas no cloakroom da casa de espetáculos (...).

Durante a apresentação, todos os olhos estão no palco; e

também a atenção de todos. Alegria e tristeza, risos e silêncio,

ondas de aplauso, gritos de aprovação e exclamações de

surpresa são sincronizados – como se cuidadosamente

planejados e dirigidos. Depois que as cortinas se fecham, porém,

os espectadores recolhem seus pertences do cloakroom e, ao

vestirem suas roupas de rua outra vez, retornam a seus papéis

mundanos, ordinários e diferentes, dissolvendo-se poucos

momentos depois na variada multidão que enche as ruas da

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cidade e da qual haviam emergido algumas horas antes”.

(BAUMAN, 2001: 228).

Reunir-se e dispersar-se. Encontrar pessoas que compartilham a mesma

atividade, enquanto esta durar. Sob este ângulo, os atletas do grupo de corrida da

Run & Fun assemelham-se aos assinantes da Orquestra Sinfônica do Estado de

São Paulo, a Osesp. No início do ano, os interessados podem comprar uma

assinatura para os espetáculos que ocorrerão ao longo do ano. Durante este

período de tempo de doze meses, os assinantes poderão freqüentar a Sala São

Paulo, sede da Orquestra, tendo seu lugar previamente reservado. Este grupo de

assinantes freqüentará o mesmo ambiente enquanto durar a apresentação da

Orquestra e se dissipará até o próximo espetáculo. O volátil vínculo existente entre

eles se dissolverá, quase que instantaneamente.

Estes assinantes, portanto, não possuem nenhum tipo de vínculo ou laço que os

una. Não há um ponto de encontro na Sala São Paulo para que os assinantes se

reúnam, não existe um momento do espetáculo reservado para a troca de

impressões e opiniões dos assinantes etc. Estas pessoas têm um encontro

marcado com a Osesp e não entre si. A assinatura da Osesp existe apenas para

que as pessoas apreciem música clássica ao vivo, com a conveniência do lugar

marcado, e não para que se conheçam.

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Criar vínculos e laços, ainda que efêmeros. Conviver com as pessoas que

praticam a mesma atividade, mesmo que superficialmente. Sob este novo ângulo,

o grupo de corrida difere muito do grupo de assinantes da Osesp.

É certo que o grupo de corrida existe para que as pessoas corram e não para criar

vínculos entre seus membros. As pessoas juntam-se a uma assessoria esportiva

para manterem-se em forma, para sentirem-se saudáveis, e não para estreitar

laços ou criar compromissos entre os participantes. Entretanto, se isto acontecer,

elas certamente não lamentarão o ocorrido. Considerando a freqüência de

contatos semanais a que os corredores estão expostos, esta é uma situação com

alta probabilidade de ocorrer.

A vida nas sociedades contemporâneas e, especialmente, nas grandes

metrópoles, é composta por diversos grupos como estes. Os vínculos existentes

entre seus membros podem ser fluidos ou sólidos, dependendo do tipo de relação

que se deseja ter ou construir. A fluidez, portanto, pode ser fruto de uma escolha

individual, consciente e moderna, mas caracteriza, cada vez mais, grande parte

das relações que mal chegam a poder ser caracterizadas como pessoais. Manter

“relações líquidas” e efêmeras com a maioria das pessoas é a forma de

pertencimento à nova era da modernidade líquida.

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Referências

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www.maratonaderevezamento.com.br (do Pão de Açúcar), acesso em 27/03/2006.

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Anexos

Mapa do Parque Villa-Lobos (SP) e do ponto de encontro da Run & Fun

Mapa da Cidade Universitária (SP)e do ponto de encontro

da Run & Fun

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Grupo de Corrida – Run & Fun – Parque Villa-Lobos__ _____

Equipe (e a autora) Alongamento inicial

Alongamento final

Colchonete da equipe

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Grupo de Corrida – Run & Fun – Parque Villa-Lobos__ _____

Exercícios de “Técnica”

Tênis Nike Tênis Nike

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Grupo de Corrida – Run & Fun – Parque Villa-Lobos__ _____

MizunoAsics Asics

Asics

MizunoMizuno

Asics

Mizuno

Asics

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Anúncios da marca Asics na Revista O2

Asics

Fevereiro/2005Janeiro/2005

Junho/2005 Novembro/2006

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Anúncios da marca Mizuno na Revista O2

Março/2005 Junho/2006

Outubro/2006 Novembro/2006

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Anúncio da marca Nike na Revista O2 e campanhas a Nike na Revista O2 e campanhas publicitárias da marca

Outubro/2005

Revista O2 - Dezembro/2005

Outubro/2006

107Outubro/2006