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RELATOS DE CASOS Uma avó e dois netos adolescentes: um «agregado» de problemas CARLOS MARTINS*, IVONE MAUROY DA FONSECA**, PEDRO COSTA*** RESUMO Noestudodeumapaciente idosa e doseuagregado familiarencontram-se difíwldadesnaaplicafãodealguns instrumentos deavaliafãofamiliar. À difícilrecolhadeinformafãodevidoà idadeavanfadadadoente, alia-se o fado denãosetratardeumnúcleofamiliarclássico. Oagregado familiaremestudo é constituído por umaavóquevivecomdoisnetos adolescentes. Apacienteencontra-se, aos 74 anos,comdifícu/cJades demobilizafão, comtendência agravarem-se responsável pelaeducafãodosseusnetos. Semintervenfãodaassistência social,médica e escolar, os iovens adolescentes corremsériosriscosdevirema repetiro ciclodepobrezavividopelaavó. Enfím,umahistóriaigualatantasoutras,masdiferentenaforma... SUMMARY Whenstudyinganelderlypatientandherfamilyit isdiffjculttoapplysomefamily ossessment tools.Notonlydoesthepatient'soldagemakeit hardtocolloodata, but alsothisisnot a typicalfamilyunit.Thisfamilyunitismadeup of a grandmother livingwithtwoteenagegrandchildren. The74-year-oldpatienthaslocomotionproblems whichwilltendto deteriorate, andisin charge of rearinghergrandchildren. Withoutanysocial,medical or educational assistance, theseteenagerseriously riskgoingthroughthesomecycle of povertytheirgrandmother haslivedin. A storyiustlike somonyothersaheralI,but witha uniquecontour... Palavras-c/rave: Disfunfão familiar, Avaliafão Familiar, RiscoFamiliar, Pobreza Introdufão rfj asos há em que certas disfunções familiares importantes se tornam difíceis de avaliar. Seja por não se tratar de um núcleo fa- miliar clássico. seja por se tratar de indivíduos introspectivos. ou ainda por serem desconfiados em relação à sociedade em geral. reflexo da as- pereza e crueldade de uma vida in- teira. Por outro lado. existem vidas que fogem a todos os tipos de padrões pré-concebidos. O caso aqui relatado constitui um bom exemplo das dificuldades que 'Interno Geral do Hospital Geral de Santo Ant6nio "Assistente Graduada de Clfntca Geral. Departamento de Medicina Famtliar e Saúde Ocupacional do Hospital Geral de Santo Ant6nio "'Assistente de Clfntca Geral. Departamento de Medicina Famtliar e Saúde Ocupacional do Hospital Geral de Santo Ant6nio; Centro de Saúde de Balão podem. por vezes. surgir em reco- nhecer certas disfunções e em aplicar métodos tradicionais de avaliação familiarl.2 (estereótipos). O caso é também apresentado se- gundo um modelo de ficha clínica. denominada Ficha Globaf3. utiliza- do por rotina nas consultas do Departamento de Medicina Familiar e Saúde Ocupacional do Hospital Geral de Santo António. A Ficha Global é uma ficha clínica alterna- tiva destinada à Medicina Familiar. Pensam os autores que a Ficha Global se revela de muito interesse pela sua riqueza estrutural e de con- teúdo. permitindo um acesso mais expedito à informação e análise do caso. O presente caso clínico foi recolhi- do em duas visitas domiciliárias por um aluno do 62 ano do curso de medicina do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. durante um estágio efectuado no Centro de Saúde de S. Mamede de Infesta. no Key-words: Family Dysfundion; Family Assessment;Family Risk; Poverty. âmbito da cadeira de Medicina Social e Familiar. Identilicafãodapaciente Maria Rosa (M.R.J.F.). 74 anos. raça caucasiana. natural do conce- lho de Matosinhos e sempre aí resi- dente. Viúva há mais de 20 anos. Trabalhou na indústria conserveira e está reformada desde 1975. AnteeedeDtes pessoais Refere consumo de álcool de cer- ca de 30 g/ dia até 1994. Actualmen- te. diz não consumir bebidas alcoó- licas. Não se recorda da idade da me- narca e refere ter tido a menopausa aos 50 anos. Em termos de história obstétrica. a paciente teve 16 ges- ta/16 para. Biopatogralia A Biopatografia 1.4 é um meio de Rev Port cUn Geral 2000: 16:313-28 313

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RELATOS DE CASOS

Uma avó e doisnetos adolescentes:um «agregado»de problemasCARLOS MARTINS*, IVONE MAUROY DA FONSECA**, PEDRO COSTA***

RESUMO

Noestudodeumapacienteidosae doseuagregadofamiliarencontram-se

difíwldadesna aplicafãodealgunsinstrumentosdeavaliafãofamiliar.

À difícilrecolhade informafãodevidoà idadeavanfadadadoente,alia-seo fado denãosetratardeumnúcleofamiliarclássico.

Oagregadofamiliaremestudoé constituídopor umaavóquevivecomdoisnetos

adolescentes.A pacienteencontra-se,aos74 anos,comdifícu/cJadesdemobilizafão,

comtendênciaa agravarem-see é responsávelpelaeducafãodosseusnetos.

Semintervenfãodaassistênciasocial,médicaeescolar,osiovens

adolescentescorremsériosriscosdevirema repetiro ciclodepobrezavividopelaavó.

Enfím,umahistóriaiguala tantasoutras,masdiferentena forma...

SUMMARY

Whenstudyinganelderlypatientandher familyit isdiffjculttoapplysomefamily

ossessmenttools.Notonlydoesthepatient'soldagemakeit hardto colloodata,

butalsothisisnota typicalfamilyunit.Thisfamilyunit ismadeupof agrandmother

livingwithtwoteenagegrandchildren.The74-year-oldpatienthaslocomotionproblems

whichwill tendtodeteriorate,andis in chargeof rearinghergrandchildren.

Withoutanysocial,medicalor educationalassistance,theseteenagersseriously

riskgoingthroughthesomecycleof povertytheirgrandmotherhaslivedin.

A storyiust like somonyothersaheralI,but witha uniquecontour...

Palavras-c/rave:

Disfunfão familiar, Avaliafão Familiar, RiscoFamiliar, Pobreza

Introdufão

rfjasos há em que certasdisfunções familiaresimportantes se tornamdifíceis de avaliar. Seja

por não se tratar de um núcleo fa-miliar clássico. seja por se tratar deindivíduos introspectivos. ou aindapor serem desconfiados em relaçãoà sociedade em geral. reflexo da as-pereza e crueldade de uma vida in-teira. Por outro lado. existem vidasque fogem a todos os tipos depadrões pré-concebidos.

O caso aqui relatado constitui umbom exemplo das dificuldades que

'Interno Geral do

Hospital Geral de Santo Ant6nio"Assistente Graduada de Clfntca Geral.

Departamento de Medicina Famtliar e SaúdeOcupacional do Hospital Geral de Santo Ant6nio"'Assistente de Clfntca Geral. Departamento de

Medicina Famtliar e Saúde Ocupacionaldo Hospital Geral de Santo Ant6nio;

Centro de Saúde de Balão

podem. por vezes. surgir em reco-nhecer certas disfunções e emaplicar métodos tradicionais deavaliação familiarl.2 (estereótipos).

O caso é também apresentado se-gundo um modelo de ficha clínica.denominada Ficha Globaf3. utiliza-do por rotina nas consultas doDepartamento de Medicina Familiare Saúde Ocupacional do HospitalGeral de Santo António. A FichaGlobal é uma ficha clínica alterna-tiva destinada à Medicina Familiar.Pensam os autores que a FichaGlobal se revela de muito interessepela sua riqueza estrutural e de con-teúdo. permitindo um acesso maisexpedito à informação e análise docaso.

O presente caso clínico foirecolhi-do em duas visitas domiciliárias porum aluno do 62 ano do curso demedicina do Instituto de CiênciasBiomédicas Abel Salazar. duranteum estágio efectuado no Centro deSaúde de S. Mamede de Infesta. no

Key-words:Family Dysfundion; Family Assessment;Family Risk; Poverty.

âmbito da cadeira de MedicinaSocial e Familiar.

Identilicafãodapaciente

Maria Rosa (M.R.J.F.). 74 anos.raça caucasiana. natural do conce-lho de Matosinhos e sempre aí resi-dente. Viúva há mais de 20 anos.Trabalhou na indústria conserveirae está reformada desde 1975.

AnteeedeDtes pessoaisRefere consumo de álcool de cer-

ca de 30 g/ dia até 1994. Actualmen-te. diz não consumir bebidas alcoó-licas.

Não se recorda da idade da me-

narca e refere ter tido a menopausaaos 50 anos. Em termos de história

obstétrica. a paciente teve 16 ges-ta/16 para.

Biopatogralia

A Biopatografia 1.4 é um meio de

Rev Port cUn Geral 2000: 16:313-28 313

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Nasâmento

(1922)

I

Casamento(1941)19Anos

Período de casamento:Maltratada pelo marido. Durante este período teve 16 filhos.

O último filho nasceu em 1962

EmpregoemConservas

(1947)25Anos

Desemprego(1965)43 Anos

FaleámentodoMarido

(?)

I

ReformadaporInvahdez(1975)53 Anos

Deten~ãodoFilhoMaisNovo

(1984)62 Anos

PossaaResidirnumBarrlKO

(1981)59Anos

FaleámentodeumFilho(1995)73Anos

IPassaaViversó

comosDoisNetos(1995)73 Anos

FaleámentodaMãe

(1)

I

LJ"bert~odoFilho

(1994)72Anos

NovaHabita~ão(1993)71Anos

Biografia

Patografia

Fig1-Biopologrofio

luto

Período de casamento:Maus tratos. Vítima de agressões. Sofre vários lutos pelos

8 filhos que falecem durante a Infância

IReac~ão

Depressiva

I Iluto

AIT DificuldadeemseMovimentar

«CertoAgrado»pelaSitua~ão

Adua!

??? Obesidade,Diabetes,HTA..

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Fig2 - DosS9aos71 anos,a pacienteviveunumadestasbarracas.«Todaa vidapasseitrabalhos»

avaliação familiar que correlacionacronologicamente os acontecimen-tos vitais e os problemas de saúdede uma família. Consideram-seduas linhas paralelas que sim-bolizam a evolução no tempo. Umacorresponde à Biografia, a outra àPatografia. A primeira serve paraanotação cronológica dos aconteci-mentos de vida significativos. Na se-gunda, anotam-se os problemas desaúde ou situações identificadascomo doença, também de acordocom a sua cronologia. Os dois con-ceitos em conjunto -Biopatografia-constituem a essência temporal daanamnese. Os acontecimentos

vivenciados significativamente comorigem na área familiar, ocupacionalou social. podem afectar o indivíduo,que consegue ou não superá-los.Esses eventos merecem ser integra-dos na continuidade biográfica, oque vai permitir perceber até queponto ele foi afectado pelos mesmose prever a reacção provável face a fu-turas vivências.

Ao longo da colheita de infor-mação para a biopatografia e para ogenograma 1,2,5,7, a paciente mos-trou-se pouco dialogante, aparen-

tando ter pouca vontade em recor-dar datas e / ou factos antigos, res-pondendo algumas vezes com a per-gunta: .Para que é que o senhordoutor quer saber isso?!. Daí os mui-tos pontos de interrogação que sur-girão, por exemplo, na biopatografiae no genograma.

A biopatografia é apresentada es-quematicamente na figura 1.

·Aos 19 anos, a Maria Rosa casou.Durante o período de casamento(que durou entre 25 a 30 anos), apaciente refere ter sido constante-mente maltratada fisica e psiqui-camente pelo marido. Nesse perío-do. teve 16 filhos, tendo o seu fi-lho mais novo, o Femando, nasci-do em 1962. Além de ser vítima

das agressões do marido duranteesse período, a paciente tambémsofre vários lutos pelo falecimen-to de 8 fIlhos durante a infância.Fala com dificuldade desta fase dasua vida, comove-se e chora. Nestafase, a sua única protectora era asua mãe, pois residia junto dacasa dos pais. Daí que refira comalguma importância e com algumatristeza o falecimento da mãe sem,

RELATOS DE CASOS

no entanto. se lembrar do anodesse facto. Também não se recor-da da data do falecimento domarido referindo-se a esse facto

do seguinte modo: «...ele toda avida me tratou mal! Olhe que ain-da antes de morrer me atirou comumas tesouras às costas!....

· Aos 25 anos emprega-se na in-dústria conserveira onde trabalhaaté aos 43 anos. Nessa altura ficadesempregada.

·Em 1975. com 53 anos, é refor-mada por invalidez sem saber es-pecificar o motivo.

·Em 1981, com 59 anos de idade,passa a residir numa barracasemelhante à que se pode ver nafigura 2.

·Em 1984. tendo a paciente 62anos. é detido o filho mais novo. oFernando. A paciente sente tris-teza ao tocar neste assunto e não

revela o motivo de tal detenção.Nessa altura, a doente faz umareacção depressiva.

·Em 1993. com 71 anos, tem umacidente isquémico transitório,sem serem conhecidos mais dadosacerca deste facto.

·Ainda em 1993, dá-se a mudançapara uma nova habitação. umbairro social novo construído no

âmbito do programa para a erra-dicação de barracas (figura 3A e3B). A paciente refere-se a essefacto com alguma satisfação. É im-portante referir que apesar de setratar de um bairro novo, abundanesse bairro a degradação social eo tráfico de droga. É a partir des-ta altura que a Maria Rosa passaa ser seguida no Centro de Saúdede S.Mamede de Infesta.

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RELATOS DE CASOS

.t

t

f

Fig 3A. Onovolar aeMarioRosa.«Nofundo,esteaindaé omelhorbocado...Estouaquicomelesos

dois,ea casaéboa!»

Fig 38. Aofundo,vêem-seosprédiosnovosondehabitoo paciente.A construçõodoediftcioà esquerdo

estóparadohómeses,tendo-setransformadoesteediftcioinocobodono«novolar»dostoxicodependentes

·Em 1994, tendo a paciente 72anos, o Fernando sai da prisão epassa a viver com a mãe e com osdois fIlhos, fruto de um casamen-to anterior à sua ida para a prisão.Maria Rosa tinha acompanhadosempre de perto o crescimentodestes dois netos pois eles iam fre-quentemente para a casa da avó

durante a detenção do pai. Por seuturno, a mãe destes. após a de-tenção do marido, o Fernando,passou a viver maritalmente comoutro indivíduo, tendo já dois fi-lhos dessa relação.

· Em 1995, tendo a Maria Rosa 73anos. ocorre, de um modo ines-

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perado, Ofalecimento. por enfartedo miocárdio, de um filho da pa-ciente que tinha 48 anos. A MariaRosa emociona-se ao recordareste facto.

·Ainda em 1995, o Fernando sai dacasa da mãe e passa a viver mari-talmente com outra senhora.

Dessa relação surge uma criança.Então, a Maria Rosa fica a viversozinha com os seus dois netos (oVictor de 13 anos e a Helena de

12), pois estes preferem ficar coma avó, embora também não tives-sem sido estimulados a ir para a«nova»casa do pai. onde, aliás, ascondições também não serãomuito favoráveis...

·Em 1996, com 74 anos, a doentecomeça a ter maiores dificuldadesem se movimentar por artralgias.deslocando-se praticamente sódentro de casa. Apesar de tudo. adoente mostra um certo agradopela sua situação actual quandodiz: «Todaa vida passei trabalhos!Nofundo, este ainda é o melhorbocado... Estou aqui, junta comeles os dois, e a casa é boa!...» Naverdade, presentemente, devido àimobilização da avó, são os netosque, a seu pedido, vão fazer ascompras, pagar a água, a luz etudo o mais que seja necessário.Por seu turno. cabe à avó preocu-par-se com a escola dos netos ecom as suas horas de chegar a ca-sa, tendo praticamente «adopta-do»os seus netos. Queixa-se a avóa respeito da neta: «Ela. agora,passa odia todo na escola... Aindana semana passada lhe ralhei porela vir tão tarde!»

Dos restantes filhos, as notíciasnão são muito frequentes e as visi-tas ainda menos.

Deve salientar-se ainda que a pa-

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Genograma

~~di;:!(')

S'Ç)'"E.t-.>89

MarioRosa(741

HTA,Diabe1es,Obesidade

? ?? ? ? ?

PskofiguradeMilchel

Avó

Vidor (14)Probl.Oftolm.InidoPNVem

1995

Helena(13)Probl.Oftalm.

InícioPNVem1995

Vidor Helena

~

O>

~t.>~ I I Fig4- Genogromoe PsieofigurodeMitheeltO...(O

, I

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RELATOS DE CASOS

ciente começou a ter obesidade, dia-betes e hipertensão arterial em dataindeterminada (por falta de registosanteriores a 1994).

Genogramae Psicofigura

Em relação ao genograma 1.2,5-7

(fIgura 4), o agregado familiar é cons-tituído por 3 pessoas: a paciente eos dois netos. É de salientar que aMaria Rosa teve 7 irmãos, mas só 1se encontra vivo. Não foi possívelsaber idades, causas de morte, pos-síveis patologias dos irmãos já fale-cidos, dos pais, nem de outros ele-mentos que constituem este geno-grama. Dos dados que foi possívelrecolher, é importante notar que, talcomo a Maria Rosa, 3 dos seus fIlhosactualmente vivos têm hipertensãoarterials. E mais, além do fIlho fale-cido em 1995 por enfarte do miocár-dio, mais dois sofrem de patologiacardíaca isquémica. Um desses é oFernando que, aquando da recolhadeste caso se encontrava em lista deespera para efectuar bypass coro-nário. Parece pois existir um padrãode repetição familiar de doença coro-nária. Em 1976, Medalie e Gold-bourt demonstraram a influência dainteracção familiar na morbilidade emortalidade da doença coronária9.

Deve referir-se ainda como rele-vante o facto de os netos, o Victor ea Helena, terem iniciado o PlanoNacional de Vacinação apenas em1995, com 13 e 12 anos respectiva-mente. Ambos apresentam difIcul-dades de visão.

Em relação à psicofigura deMitchel', por enquanto, parece ain-da haver uma certa dominância daavó em relação aos netos. No en-tanto, em breve, esta situação terátendência a alterar-se graças às in-capacidades previsivelmente cres-centes da avó e graças aos proble-mas próprios da juventude e pre-

visível irreverência dos netos. Se, porum lado, a relação entre a avó e oneto é boa, por outro, entre a avó ea neta, parece ser escassa, tambémdevido ao facto de a neta <passar odia todo na escola»... Durante asduas visitas ao domicílio, a Helenanunca se encontrou em casa, peloque não foi possível uma avaliaçãomais correcta do seu relacionamen-to com a avó e com o irmão. Todavia,a relação entre os dois irmãos pareceser escassa pelo avaliado da condu-ta e dalgumas expressões do Victor.

Outrosmétodosdeavaliacãofamiliar '

Ciclo de Vida F'sI-Uiar de DuvaDNormalmente, o ciclo de vida fa-

miliar de Duvall1.2,lOsó se aplica aosnúcleos familiares clássicos. No en-tanto, não deixa de ser interessanteverifIcar que este agregado familiarvive, em simultâneo, dois estadiosdesse «ciclo»:o estadio V(família com«fIlhos»adolescentes) e o estadio VIII(progenitores na 3" idade). Ora, alémde todos os problemas (de saúde,económicos, sociais,...), este agrega-do tem que viver em simultâneo a«crise»da adolescência dos netos e a

«crise»da velhice da avó (fIgura 6A).

Apgar F'sI-Uiat' de SmilksteiDFoi mais uma vez sentida alguma

dificuldade em aplicar um métodode avaliação familiar. Neste caso,tudo leva a crer que o Apgar Fami-liarl,2,ll,I2 seria baixo, mas não foiavaliado na sua totalidade, pois nãose achou apropriado colocar, a estadoente, a questão: «Acha que a sua

familia concorda com o seu desldo deencetar novas actividades ou demodificar o seu estilo de vida?»

Apontuação obtida nas restantesperguntas foi de apenas 1 ponto.Apesar de não ser possível a apli-cação deste método de avaliação fa-

miliar neste caso, não parece haverdúvida de que, naquele momento, aMaria Rosa se encontrava bastanteinsatisfeita em relação à sua famíliaem geral.

Círculo F'sI_Ui~.. de TbrowerPedir a uma senhora de 74 anos,

analfabeta, desiludida com a vida,para desenhar uns círculos num pa-pel representando o seu agregadofamiliar não é fácil,,2,'3.Face ao pedi-do, a paciente sorriu não levando omesmo muito a sério e depois disse:<ponha o senhor para aí...»

Risco F'sI-Uiar

Não existem dúvidas de que setrata de uma família de alto risco. No

entanto, volta a verificar-se que,neste caso, dois métodos de avalia-ção aplicados não fornecem respos-tas coincidentes (figura 5). Segundoos critérios de risco familiar deImperatori'4, este caso só corres-ponde a 1 item ou seja, esta famílianem sequer de médio risco seria...Segundo os critérios de SegoviaDreyer'5, não há dúvida de que setrata de uma família de alto risco.

ExamesubjectivoA doente referiu as seguintes

queixas:- «vejo-me qjlita com os formiguei-ros» (sic) - parestesias nas extre-midades superiores e inferiores;- «dói-me tudo, e então osjoelhos?!»- cervicalgias, dorsalgias, lombal-gias, gonalgias;- «demanhã, demoro muüo a levan-tar-me por causa das dores nos os-sos» - rigidez articular matinal.

Exameobjectivo- A paciente apresenta obesidadeginoide, com um índice de massacorporal de 40.8.- Apresenta dificuldade na mobi-

lização, pois praticamente já não sai

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RELATOS DE CASOS

RiscoFamiliar

FSllnílias vulneráveis

I. Famílias compostas por pais jovens e fIlhos pe-quenos que moram todos num quarto alugado.

n. Famílias cuja dinâmica de relação esteja alteradae em que. pelo menos. metade dos seus fIlhos. es-tejam sujeitos a insucesso escolar.

m. Famílias que solicitam em excesso os cuidados docentro de saúde.

IV. Famílias cujos membros. na sua totalidade ou nagrande maioria. compartilhem um factor de riscocomum (fumadores. obesos ou alcoólicos).

V. Famílias. nas quais um membro seja centro daatenção dos outros e que. por isso. altere as re-lações intra familiares (defIciente mental ou fisi-co que não é aceite. pai alcoólico. etc.).

VI. Famílias que. pelos seus antecedentes familiares.estejam sujeitas a um risco mais elevado de pade-cer de determinado tipo de doenças embora es-sas doenças não estejam presentes na actuali-dade.

Resultado:

Alto Risco ;::4 items presentesMédio Risco ;::2 items presentes

Fig 5. Critérios de Risco Familiar

de casa por artralgias. No entanto.em termos de dependência fun-cional. ainda pertence ao grau A doíndice de Katz.- Não tem edemas articulares nemsinais de artrite.

- TA 150/80 mmHg (braço direito.sentada); P.R.: 76 p.p.m. a.r.r;

Altura: 1.58 mPeso: 102 kgIMC: 40.8

Factores de risco

1 Ponto

D MorbilidadecrónicaI!J InvalidezD HospitalizaçõesfrequentesI!J Mãe analfabetaD Mãe solteiraI!J Chefe de família desempregadoI!JAusência temporária de um dos paisD Chefe de família com emprego temporárioD Morte de pai ou de mãe

2 Pontos

D Alcoolismo

D DrogaD Desnutrição00 Ausência de um dos pais00 Pais analfabetos

I!JApgar familiar < 4D Filho grande defIcienteD Chefe de família presoI!JFilho com carências afectivas graves

Total de 12 pontos

Resultado:

Alto Risco ;::6 pontosMédio Risco ;::3 pontos

Bioquímica (21/ 12/95):

Glicose -122 mg/dlUreia -42 mg/dl)GT -16 UI/IEx. Bacteriolog. Urina - E. colí >105Microalbuminúria - 33.5 mg/l(Junho'95)

Hematologia (21/12/95):

Hemograma normal. Leucogramanormal.

Rev Part Cltn Geral 2000: 16:313-28 321

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RELATOS DE CASOS

FICHA GLOBAL

Dados biológicos de basePeso: 102 Kg Altura: 1.58 m

Factores de RiscoTabaco - !li

Antecedentes pessoaisDoenças anteriores:

AcIdentes: ~Intervenções CirúrgIcas: ~

Biografia e Patografia:

Genograma (psicofigura)

Álcool - Até '94 - 30 9 / diaActualmente - ~

1993 -AIT1995 -ITU

-"...

Nome: M.R.J.FData de Nascimento: 07/10/22Estado Civil: V(uvaRaça: CaucasianaProfissão: REiformada (trabalhou nas conservas)Morada: S. Mamede de Infesta - Matosinhos '

EXAME CLÍNICO

T.A.: 150/80 mmHg PR: 76 ppm reg

OcupacIonaIs -REiformada

HIstória GinecológIcaMenopausa aos 50 anos.

HIstória Obstétrica16 gesta / 16 para

PerIododeC8$amenIO:

Maltralada pelo marido. Duranle nte periodo I"ve 16 filhos.O último filho nasceuem 1962

"-.119411"...

_.<-o(lM1)"...

I

-.....m..........-(19151~...

...........--119141................-.....

11"11.....

I

Biografia

Patografia

.......11"51.....

I...

ft,riodo de casamento:Mau8 natos. Vitima de agreM6es. Sofre vártos lutOSpelos

8 OIhoe que ral~m durante a InfAncta

IMC: 40.8

AmbIente -Habüa zonadegradada

-.....(1"5)"...I, """".c...DM......

11"»"...-"..(19M)"...

--I

(1m)"...

~IAIT 1IIIPIWt...--

I-........-......

((Ciclo de Vida»

Figura6A-Ficha Global (frente)

322 Rev Por! CILn Geral 2000; 16:313-28

'fkW1141--_M.'"'

Apgar r??lFamí11ar D

....,Apgar r;;;;;lOcupacIonal~

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Marcadores genéticos:S

RELATOS DE CASOS

<vejo-meajlita com osformigueiros. (sic)-parestesias nos membros inferiores<dói-metudo. e então osjoeUws?!. -dores osteoarticulares (gonalgias ++)<demanhã. demoro muito a levantar-me por causa das dores nos ossos. -rigidez articular matinal

oObesidade ginoide. com IMC=40.8D1ficuldadena mobilização.pois praticamente já não sai de casa por artraigias.Noentanto. em termos de dependênciajuncional.ainda pertence ao grau A do fndice de KatzNão tem edemas articulares nem sinais de artriteT.A. 150I80 mmHg (braçodireito. sentada)

Hematologia: Hemoleucograma normaL (análises Eifectuadasem 21 112195)Bioquímica: Glicose-122 mgldl Ureia-42 mgldl ')GT-16 UIIl Microaibuminuria-33.5 mgll (Junho '95)

Ex. Bact. Urina -E. coll>l()5 (análises efectuadas em 21/ 12195)

A Avaliação (hipóteses)ti' Obesidade -mantém

ti' Diabetes meUítus ttpo 11-aparentemente controlada, mas manter vigilância das repercussões nos órgãos alvoti' HTA - controlada, atenção às repercussões dos órgãos alvoti' Osteoartroses -mantémti' Padrão defuncionamentofamUiar disfuncional"> Depressão reactiva (F) (8)??

ti' Hipóteses confirmadas"> Hipóteses a confirmar

P PlanoEm relação à doente

Consulta de vigUânciaperiódicas para avaliação da HTA e Diabetes ttpo 11(repercussão dos órgãos alvo).Marcaçãode consulta de Nutrição.Consulta de MedicinaFísica de ReabUUação.querpara prevenção de surtos agudos de artralgias.quer para prevenção deosteoporose com ensino e incenttvoà deambulação.ContactocomAssistente Social no sentido meUwrara socializaçãoda doente (porexemplo. criação de outros contactos sociais.Centrode Dia ou outras actividades).Antecipação e prevenção de um estado depresstvo do idoso que. eventualmente. poderá envolver risco de suicídio.Avaliaçãoporpsicólogodo Centrode Saúde.

Em relação àJamaia- Antecipação e prevenção da toxicodependência e ensino de estilos de vida saudáveis aos netos.- Avaliaçãosócio-familiar pelo(a)Assistente Social com apoio psico-social à família.Rede de apoio- Assistência Social; Centro de Saúde; Escola

Terapêutica- Glic1azida80 mg 1+0+1- lndapamida 2.5 mg 1+0+0

Problemas

- Cácio 500 mg 1+0+ 1- Calcitonlna 100 VI 1+0+ 1

-Paracetamol1 g 1+1+1

Activos· Obesidade· Diabetes MeUitusttpo II· Parestesias das extremidades supertores e iTifertores· Doresosteoarticulares· Má situação s6cio-econámicaefamUiar· Padrão de funcionamento famUiar disfuncional· Solidão I IsolamentoPassivos· Maus tratos conjugais· AIT· Irifecçãodo tractourtnárto· Multiparidade (16)· Lutos múltfplos(pais.filhos)· Prisão dofilho mais novo

Consulta seguinte:

Figura 68 . Ficho Globol (verso)

Diagnóstico Tradicional Atitude Comporta.

· Obesidade· Diabetes MeUitus ttpo lI. comrepercussão renal e neurológica· Hipertensãoarterial· Osteoartroses· Padrão defuncionamentofamUiardisfuncional Passiva

Q.Vida Aspectos Éticos

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RELATOS DE CASOS

lista deproblemase hipótesesdediagnóstico

Problema~ Activos:· Obesidade· Diabetes MeUitus tipo II· Parestesias das extremidades su-

periores e inferiores· Dores osteoarticulares. Má situação sócio-económica e fa-miliar. Padrão de funcionamento fami-liar disfuncional· Solidão / Isolamento

Problemas Passivos· Maus tratos conjugais· AIT· Infecção urinária· Multiparidade· Lutos múltiplos· Prisão do filho mais novo

Diagnóstico· Obesidade. Diabetes mellitus tipo II comrepercussão renal e neurológica· Hipertensão arterial· Osteoartrose· Padrão de funcionamento fami-liar disfuncional

Plano

Em re1ação à doente· Consultas de vigilância periódi-cas para avaliação da HTA eDiabetes tipo II (repercussão dosórgãos alvo).. Marcação de consulta de Nutri-ção.· Consulta de Medicina Física de

Reabilitação, quer para prevençãode surtos agudos de artralgias,quer para prevenção de osteopo-rose com ensino e incentivo à

deambulação.. Contacto com Assistente Socialno sentido de melhorar a sociali-zação da doente (por exemplo,

criação de outros contactos so-ciais, Centro de Dia ou outras ac-tividades).· Antecipação e prevenção de umestado depressivo do idoso que,eventualmente, poderá envolverrisco de suicídio. Avaliação porpsicólogo do Centro de Saúde.

· Terapêutica:Gliclazida 80 mg 1+0+1Indapamida 2,5 mg 1+0+0Paracetamol 1 g 1+1+1Cálcio 500 mg 1+0+ 1Calcitonina 100 DI 1+0+1

Em re1ação à IA-ma. Antecipação e prevenção da toxi-

codependência e ensino de estilosde vida saudáveis aos netos.· Avaliação sócio-familiar pelo(a)Assistente Social com apoio psi-co-social à família.

Comentário

AspectostéeDicosCasoscomoeste acabam, em boa

verdade, por ser relativamente fre-quentes. Situações destas, abalamalguns dos conceitos mais tradi-cionais. Eis uma senhora que temsete illhos vivos e dezenas de netos

- uma grande família?! No entanto,ela vive só, com dois netos adoles-centes - um pequeno agregado fa-miliar! O que é a família? Será a nos-sa família o grupo de pessoas que édo nosso sangue ou o grupo de pes-soas com quem vivemos?

Segundo a OMS, as funções dafamília devem passar pelo apoio eprotecção dos seus membros, bemcomo pela provisão das necessi-dades alimentares, sociais, educa-cionais e recreativas dos mesmos.Ora, neste caso, esta família nãoparece ter condições para cumprirqualquer uma dessas funções e asconsequências desse facto poderão

vir a ter graves repercussões no fu-turo deste agregado, quer na saúdeda avó, quer e sobretudo no futurodos netos.

Este tipo de casos foge aospadrões normais. Então, o diagnós-tico de certas disfunções familiarespode complicar-se. Por exemplo,neste caso concreto, sentiu-se difi-culdade na aplicação da metodolo-gia tradicional de trabalho emMedicina Familiar. A colheita de in-formação em pacientes idosos, prin-cipalmente num primeiro contacto,é muito dificil e esse foi outro factorque também contribuiu para as di-ficuldades sentidas.

AspectosgeraisO agregado familiar em estudo

apresenta duas gerações diferentes,um elemento de uma 1S!geração edois elementos de uma 3S!geração,verificando-sea ausência da 2S!gera-ção que estabeleceria o possívelequilíbrio e a possível continuidade.Perante tal situação, é oportuno per-guntar: será que estas duas gera-ções (1S!e 3S!)são realmente diferen-tes uma da outra? Ou será que, ape-sar da diferença de décadas, não irãoestas duas gerações ter um destinosemelhante e comum?! Na ausênciade uma intervenção no âmbito so-cial, educativo, da saúde, graças aocrescimento da toxicodependência eao meio em que vivem, não poderáo destino da 3S!geração vir a ser atépior que aquele que teve a 1S!?

Então, resta a pergunta inquie-tante: o que há a fazer por estas duasgerações? Por um lado, o quepoderão osClínicos Gerais/Médicosde Família fazer por estas gera-ções?... Poroutro, o que poderá a so-ciedade em geral fazer?..

Parece ser evidente que, apesar deimportante, para a resolução dosproblemas destas gerações, não se-ria suficiente o resolver dos seus

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RELATOS DE CASOS

problemas financeiros. Poder-se-iater feito algo por esta senhora há 40--50 anos atrás? Por exemplo, setivesse existido planeamento fami-liar e uma assistência social ade-

quada... Então, como prevenir situa-ções semelhantes no futuro? Comointerromper o ciclo de pobreza?

Aspectosespecíficosdeste casoActualmente, os netos da Maria

Rosa, dois adolescentes, são os res-ponsáveis por todas as tarefas queenvolvem sair de casa, pelas com-pras na mercearia, pelos pagamen-tos, etc... Por outro lado, a capaci-dade da Maria Rosa de «controlar»,de acompanhar o crescimento dosseus netos, vai sendo cada vez me-nor, sendo cada vez mais necessária,para a avó, a ajuda e o apoio dos ne-tos. Ora, estes adolescentes acabampor assumir, de certo modo, o papelde figuras parentais, pelo que sepode falar em parentificação. Daí re-sulta que estes adolescentes percamo «espaço temporal» que, idealmente,lhes seria necessário para a vivên-cia da sua adolescência...

Em contrapartida, a avó está adesempenhar o papel que deveriapertencer ao seu filho, à 2~geração.A Maria Rosa assume, apesar dassuas limitações, o papel de figuraparental, pois é ela que se preocupacom a escola dos netos, é ela que sepreocupa com a sua saúde (foi elaque os levou ao Centro de Saúde,pela primeira vez, para serem vaci-nados...), é ela que se preocupa comas horas de chegada a casa dos ne-tos. Ora, assim sendo, apetece atéfalar em «parentificação inversa»,pois tudo isto implica que tambéma Maria Rosa fique sem o seu «es-paço temporal» para poder, do modomais adequado, viver a sua velhice!

Todo o apoio que se possa dar aesta família, passa sempre mais poruma perspectiva do futuro deste

agregado familiar do que propria-mente por uma intervenção na es-trutura actual do agregado. Apesarde todos os problemas, todos pare-cem estar relativamente adaptadosà situação actual. Surgem, no en-tanto, alguns sinais de alarme... Porexemplo, na segunda das visitasefectuadas ao domicílio da MariaRosa, a dada altura, o neto, que naprimeira se havia comportado bem,resolveu ligar a televisão e elevar--lhe o som de tal modo que pertur-bava a consulta. Um outro exemploserão as queixas que a avó já revelaem relação às saídas da neta.

Além disso, o que será da MariaRosa quando os netos saírem decasa?! Ou o que será dos netos se aavó acamar ou falecer?!

Não existem dúvidas de que estesadolescentes estão numa situaçãode risco. Dentro de pouco tempo, osnetos deixarão de se subjugar à au-toridade da avó... Vivem num am-

biente de degradação social e nãotêm quem lhes dê a educação maisadequada. Correm riscos de virem aenvolver-se na toxicodependênciaou na prostituição. Por outro lado,correm riscos de desenvolver gravesdepressões que os poderão precipi-tar ainda mais rapidamente para assituações anteriores ou até para osuicídio! A escola, a assistência so-cial e a assistência médica poderãoser factores importantes na pre-venção do futuro destes adoles-centes. E essa acção será tanto maiseficaz, quanto mais comunicaçãohouver entre as três entidades.

A Ficha GlobalA Ficha Global consiste no regis-

to de dados múltiplos, sistematiza-dos, de natureza social, familiar epsicológica por um lado, e de dadostradicionais ligados à concepção dedoença, como a alteração estruturale a entidade nosológica, de acordo

com as classificações internacionais,dados esses incorporados noSOAP15.Estes dados são estrutura-dos de modo a permitir o seu inter-relacionamento, de modo a extrairdaí consequências práticas em cadaconsulta.

A Ficha Global começou por seruma resposta ao que se tem de-nominado por «Base de Dados», na«base de dados orientada por pro-blemas», no âmbito do registo SOAPde Laurence Weedl6. Constitui umasíntese construída laboriosamente

ao longo das primeiras consultas,que a todo o momento vai servir dereferência para o seguimento dodoente ao longo dos anos. Entende--se por «Base de Dados» a infor-mação que o médico assistente, ouum grupo de médicos trabalhandoem associação, considera necessáriapara cuidar dos seus doentes. O re-gisto dessa «Base de Dados» não temque ser feito exclusivamente pormédicos. É possível e desejável queai o enfermeira(o) tenha a seu cargouma parte desse registo, particular-mente no que diz respeito a certosdados de natureza psicossocial eexame objectivo e transcrição deanálises laboratoriais para só citaralguns.

A experiência na cons~lta doServiço de Medicina Familiar doHGSA tem demonstrado que agestão do tempo se encontra muitofacilitada a médio e longo prazo, em-bora nos primeiros encontros a exi-gência seja maior, em termos de re-gisto e de tempo. Uma vez conheci-das as pessoas, o seu ambiente e assituações, para o que a Ficha Globaldá uma contribuição apreciável,todo o acto clínico passa a decorrernum ambiente de maior satisfaçãoe eficácia.

Da fenomenologial7 e da semióti-caiS, partiram os seus fundamen-tos, a sua textura e a dinâmica que

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proporciona em termos de consulta.Trata-se de atender a pedidos deajuda que o trabalho sistematizadoproporcionado pela Ficha Global tor-na cada vez mais previsíveis e de darresposta a problemas em regra com-plexos, postos por uma populaçãoexigente, por vezes iatrogenizada emconsultas hospitalares, em que omodelo lesional prevalece.

Reflectindo...

Ser criança, ser adolescente, serjovem... Etapas de sonho do cresci-mento de cada ser! Gargalhadasestridentes, onde estais?! Sorrisosingénuos, por onde andais?! Can-tigas de meninos, fugistes das pau-tas da minha rua?!

Quando António Gedeão escreveuo poema «Pedra Filosofa!», certa-mente pensava nos adultos que nãosabiam ou não deixavam sonhar...

Mas, mais triste ainda, é pensar quecertas crianças, já na sua infância,se «esquecem» de sonhar...

«Eles não sabem que o sonhoé uma constante da vida !

Eles não sabem, nem sonham,Que o sonho comanda a vida,Que sempre que um homem sonhaO mundo pula e avançaComo uma bola colorida

Entre as mãos de uma criança!»

António Gedeão

Entretanto a avó... A Maria Rosa

que, de tantos espinhos, do perfumedas suas pétalas já nem se lembra!...Perdeu a noção do sonhar... Os con-tos da avózinha estão guardados nofundo do baú. Assim se viveu umavida inteira...

«Falhei em tudo.Como não fiz propósito nenhum,talvez tudo fosse nada.A aprendizagem que me deram,Desci dela pela janela dastraseiras da casa.

Fui até ao campo com grandespropósitos.Mas lá encontrei só ervas eárvores,E quando havia gente era igualà outra.

Saio dajanela, sento-me numacadeira. Em que hei-de pensar?»

Álvaro de Campos

É a vez dos netos saírem pela'anela das traseiras!

Maria Rosa, a avó, já nem podeandar, está sentada. As janelas es-tão fechadas...

Ajudemo-Ia nós a abrir as portas!

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AgradecimentosOs autores agradecem sincera-

mente toda a preciosa colaboraçãoe apoio prestado pelo Sr. Prof. Dr.Helder Machado, Director doDepartamento de Medicina Familiare Saúde Ocupacional do HospitalGeral de Santo António e ProfessorConvidado da cadeira de MedicinaSocial e Familiar do Instituto deCiências Biomédicas Abel Salazar /Porto.

Agradecem, de igual modo, à Sra.Ora. Maria Teresa Ribeiro, Assis-tente Graduada de MedicinaFamiliar do Centro de Saúde de S.Mamede de Infesta, toda a atençãoe colaboração prestadas.

Recebido em 14/04/1997Aceite para publicação em 25/07/2000

Endereço para correspondência:Carlos Manuel da SUva MartinsRua de Santa Teresa. nQ26 -1Q

4460-806 Custótas MTS

Telef. 229 534 145 .e-maU:[email protected]

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