relaÇÕes de poder na alta idade mÉdia e suas … · de mestrado, intitulada reino x sacerdócio...
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RELAÇÕES DE PODER NA ALTA IDADE MÉDIA E SUAS
RESSONÂNCIAS NO DEFENSOR PACIS DE MARSÍLIO DE PÁDUA:
ANALISE COMPARATIVA DE DOCUMENTOS DE ÉPOCAS
DISTINTAS
DIAS, Rui Campos (USP)
Este artigo se insere nas pesquisas que estamos desenvolvendo para nossa dissertação
de mestrado, intitulada Reino x Sacerdócio na Baixa Idade Média: Marsílio de Pádua e a
formação do discurso de autonomia do poder temporal em relação ao poder espiritual, da
qual este trabalho integrará a primeira parte do primeiro capítulo.
Temos como objetivo principal neste trabalho analisar certos aspectos das relações de
poder entre regnum e sacerdotium no período da Alta Idade Média (especificamente do século
V ao VII) e observar se tais características influenciaram as teorias contidas na obra máxima
de Marsílio de Pádua, Defensor Pacis, produzida na primeira metade do século XIV.
Seguindo o mesmo caminho do objetivo principal, iremos analisar as permanências e as
rupturas dos discursos sobre as relações entre regnum/imperium e sacerdotium da Alta Idade
Média nos séculos posteriores.
Para isso utilizaremos alguns documentos do primeiro período da Idade Média. São
eles: uma epístola de 494 do papa Gelásio I; uma epístola de 452 do papa Leão Magno; e um
trecho da Moralia in Job, de Gregório Magno. Assim, a documentação da Alta Idade Média
que temos em mãos cobre do século V ao começo do século VII. Deste modo, temos três
documentos representativos de três dos papas mais importantes do período e que com suas
ideias, presentes tanto nos documentos analisados neste trabalho, quanto no restante de seus
escritos, influenciaram o pensamento político dos séculos posteriores e as obras sobre as
relações de poder, mais especificamente o Defensor Pacis.
O presente artigo está dividido da seguinte forma: primeiramente iremos expor a teoria
e a metodologia utilizada na analise da documentação e que fundamenta nossa concepção de
história. Depois passaremos a analisar as fontes, contextualizando-as e também considerando
suas características internas, como por exemplo, o sentido dos termos utilizados em cada
documento. Após esse momento dedicaremos uma parte ao Defensor Pacis e sua estrutura
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interna, além do contexto e das fontes utilizadas por Marsílio de Pádua ao produzi-lo. Com
isso feito, passaremos a comparar a documentação da Alta Idade Média com o Defensor
Pacis, para procurar as permanências ou rupturas dentro dos discursos sobre as relações de
poder dentro do medievo. Fecharemos o artigo com algumas considerações finais sobre as
questões tratadas ao longo do texto.
Analisaremos a documentação à luz da história das ideias políticas, mais
especificamente a visão contextualista da “escola de Cambridge”, centrada nos trabalhos dos
autores Quentin Skinner e J. Pocock. A teoria contextualista se opõe a visão textualista da
história das ideias. Para a concepção textualista, a única maneira de se conhecer determina
questão de alguma obra de pensamento1 só é preciso analisar o texto em si mesmo, ou seja, na
leitura repetitiva do discurso é que o pesquisador pode conhecê-lo realmente. Para os autores
da “escola de Cambridge”, em especial Q. Skinner, com o método contextualista o historiador
pode definir o que seus autores estavam fazendo quando escreveram suas obras. Citando o
autor: O que, exatamente, o procedimento aqui proposto nos permite identificar nos textos clássicos que não se possa encontrar à sua mera leitura? A resposta, em termos genéricos, penso eu, é que ele nos permite definir o que seus autores estavam fazendo quando o escreveram. Podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles apresentavam, mas também as questões que formulavam e tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam, ou às vezes até ignoravam (de forma polemica), as ideias e convenções então predominantes no debate político. Não podemos esperar atingir esse nível de compreensão estudando tão-somente os próprios textos. A fim de saber de percebê-los como respostas a questões especificas, precisamos saber algo da sociedade na qual foram escritos. [...] Quando tentamos situar desse modo um texto em seu contexto adequado, não nos limitamos a fornecer um “quadro” histórico para nossa interpretação: ingressamos já no próprio ato de interpretar. (SKINNER, 1996, p.13).
Segundo J. Pocock, falando sobre essa nova visão sobre a história das ideias políticas, Nesse ponto começava a tomar forma uma historiografia com ênfases bastante características: primeiro, sobre a variedade de “linguagens” em que o debate político pode se desdobrar [...]; e, segundo, sobre os participantes do debate político, vistos como atores históricos, reagindo uns aos outros em uma diversidade de contextos lingüísticos e outros contextos históricos e
1 Aqui cito uma passagem de um texto de Claude Lefort: “Por obra de pensamento quero designar o que não é nem obra de arte nem produto da ciência, que se ordena em razão de uma intenção de conhecimento e à qual, no entanto, a linguagem é essencial.” LEFORT, Clude. As formas da história. São Paulo, Editora Brasiliense,1997, p.155.
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políticos que conferem uma textura extremamente rica à história, que pode ser resgatada, de seu debate. [...] O aspecto mais imediato a mencionar é o de que, desde então, tem sido sentida (e atendida) uma necessidade de redefinição da historiografia do pensamento político e suas implicações, e de definir sua práxis em termos mais rigorosamente históricos. (POCOCK, 2003, p.25-26).
Este é quadro teórico metodológico que iremos utilizar neste trabalho e em nossa
dissertação. No que concerne aos objetivos propostos deste artigo, a metodologia se adapta
perfeitamente, pois mesmo que alguns dos documentos não sejam considerados clássicos do
pensamento político (por não terem em si essa conotação política e também por não terem a
forma característica de um discurso político), eles foram utilizados para finalidades políticas,
tanto por seus autores, quanto por comentadores contemporâneos e posteriores. Sendo assim,
foram produzidos com intenções, e são essas intenções e suas permanências e/ou rupturas que
tentaremos perceber ao relacioná-los com a obra clássica de Marsílio de Pádua, o Defensor
Pacis.
Começamos a analise da documentação com a epístola do papa Leão I (440-461) ao
imperador Marciano (450-457), de 452. Essa epístola foi escrita em um dos momentos mais
conturbados da história ocidental, a saber, o contexto das migrações dos povos vindos da Ásia
e do leste do continente europeu que, de forma violenta ou pacifica, adentraram em diversos
setores da sociedade romana desde o século III, tendo seu auge no século V, com a deposição
do ultimo imperador romano do ocidente pelo chefe sírio Odoacro em 476, data
tradicionalmente conhecida (e já muito discutida e criticada) como a Queda do Império
Romano do Ocidente. Pois bem, podemos observar então que a epístola do papa Leão foi
produzida duas décadas antes do marco já consagrado do inicio da Idade Média. Estamos
trabalhando com um documento representativo de um momento de transição e de mudanças
que influenciaram os dez séculos posteriores.
Desde o século IV o império romano estava dividido entre ocidente e oriente, Roma e
Constantinopla. Dentro do cristianismo já começava a se destacar a figura do bispo de Roma,
que justificava uma universalidade e proeminência de Roma sobre as outras Igrejas, pois fora
em Roma que os dois Apóstolos mais importantes do cristianismo foram martirizados e
sepultados, ou seja, São Paulo e São Pedro. Vemos nascer dessa justificativa o conceito de
Roma como a primeira entre as Igrejas do império e, consequentemente, o local mais
importante (com exceção de Jerusalém) do cristianismo. Sendo assim, o bispo de Roma, o
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papa, seria o membro mais importante da Igreja, comandando tanto as províncias eclesiásticas
do ocidente como do oriente.
A epístola do papa Leão I, assim como o próprio Leão I, marcam com maior firmeza
nesse momento a afirmação do primado de Roma. Essa primazia de Roma não foi aceita por
Constantinopla, o pólo oposto de poder dentro do cristianismo nesse momento, e que irradia
diversas questões doutrinarias (por vezes até heréticas) e gerais da religião. Em 451, por
sugestão do imperador realiza-se um concílio ecumênico em Calcedônia. Nesse concílio,
cânon 28, “[...] Constantinopla passa a gozar no Oriente a mesma primazia que a Roma cabe
no Ocidente” 2. É por essa decisão que o papa Leão escreve a epístola ao imperador Marciano,
protestando da seguinte forma:
Que a cidade de Constantinopla tenha, como desejamos, a sua glória, e possa ela, sob a proteção da mão direita de Deus, gozar por muito tempo o governo da vossa clemência. Todavia o fundamento das coisas seculares é um e o das coisas divinas outro, não podendo haver edifício seguro salvo o que assenta naquela pedra que o Senhor deixou como alicerce [ou seja, São Pedro e Roma]. [...] Que ele [o bispo de Constantinopla] não desdenhe de uma cidade real que não pode transformar numa sé apostólica; [...] Porque os privilégios das igrejas, instituídos pelos cânones dos santos Padres e fixados pelos decretos do Sínodo de Nicéia, não podem ser derrubados por um ato sem escrúpulos, nem por uma inovação. E na fiel execução desta tarefa é necessário que eu demonstre, com a ajuda de Cristo, uma perseverante dedicação, porque é um encargo que me foi confiado. (RIBEIRO, 1995, p.57-58)
Podemos observar no discurso do papa Leão que seu objetivo é claro e preciso:
concretizar a autoridade de Roma sobre todas as outras igrejas, principalmente nesse
momento de crise, onde a primazia de Roma e do papa tendem a extrapolar as questões
doutrinarias e influenciar na vida política e social da principal cidade do ocidente. A epístola
começa com um tratamento cordial, educado e amigável, mostrando que nesse período o
império e a figura do imperador tinham um elevado conceito para a Igreja de Roma e seus
clérigos, incluindo o papa. Percebe-se que o discurso é habilmente construído, atestando o
alto grau de sabedoria e diplomacia do papa Leão (características essas presentes nos
principais papas que se envolveram nas disputas de poder durante todo o medievo).
Na segunda frase do documento é possível perceber já uma rápida distinção entre as
questões espirituais e as temporais (“[...], o fundamento das coisas seculares é um e o das
2 Ribeiro, Daniel Valle. Leão I: a cátedra de Pedro e o primado de Roma. In: O Reino e o Sacerdócio, 1995, p.57.
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coisas divinas outro [...]”). No seguimento da frase, Leão Magno utiliza um recurso bíblico
para justificar ao imperador a primazia de Roma perante as outras Igrejas, em especial
Constantinopla (“[...] não podendo haver edifício seguro salvo o que assenta naquela pedra
que o Senhor deixou como alicerce”.). A famosa passagem bíblica a que Leão Magno se
refere está em Mateus (16, 16-19), o qual citaremos somente a parte que nos interessa: “Tu és
Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão
contra ela”.3 Para o papa Leão I, a Sé Apostólica (Roma) é um principatus, ou seja,
[...] palavra que designa um poder que, na sua ordem, é supremo. Desse modo, o poder do imperador é um principatus. Assim também a dignidade episcopal é um principatus. [...] O papa Leão I (440-461), igualmente, estabelece intima relação entre o principatus de Pedro e a autoridade suprema da Igreja. Assim, principatus tem duas acepções: a primeira, designa a primazia de Pedro entre os apóstolos; a segunda, indica a preeminência do bispo de Roma, seu sucessor, entre os bispos. (RIBEIRO, 1995, p.50).
Passaremos agora a analise do segundo documento, a epístola nº8 do papa Gelásio I,
escrita em 494, para o imperador Anastácio. Gelásio I (492-496) é, apesar de seu curto
pontificado, um dos papa mais importantes do século V, e porque não dizer de todo o período
medieval. Essa importância toda é devida principalmente a essa epístola enviada para o
imperador, na qual, entre outras coisas, chama a atenção e teoriza sobre as relações entre os
poderes espiritual e temporal. É importante contextualizar o pontificado de Gelásio, para nos
ajudar a compreender melhor suas ideias e seu discurso.
O pontificado de Gelásio primeiro se insere no momento em que os povos germânicos
se instalavam nas diversas províncias do antigo Império Romano do Ocidente. Além disso, na
parte oriental do império, estava ocorrendo problemas em torno da ortodoxia do cristianismo,
com o monofisismo e outras doutrinas e interpretações consideradas pela Santa Sé como
heresias. Essa posição da Igreja romana em condenar certas práticas e crenças do oriente
como hereges denota que tanto o sentimento, quanto as atitudes de hegemonia da Sé
Apostólica em relação aos outros bispados do cristianismo estavam se concretizando. Partindo
de questões doutrinarias e teológicas, se chega inevitavelmente às intimas relações entre
Igreja e Império, principalmente no oriente, onde o cesaropapismo imperial foi uma prática
dominante em praticamente toda a Idade Média.
3 Souza, José Antonio de C.R. de. O reino de Deus e o reino dos Homens. 1997, p.14.
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Em todo o conjunto de cartas e epístolas do papa Gelásio I é possível perceber uma
linha mestra que conduz seu pensamento. Segundo José Antonio de Souza,
As teses gelasianas são por si mesmas bem claras: o sucessor de Pedro e seus herdeiros exercem o primado sobre as igrejas particulares. O imperador, mesmo sendo cristão e desfrutando de um poder ímpar, não tem o direito de se imiscuir e interferir em assuntos eclesiásticos, devido a não possuir competência e direito para tal. (SOUZA, 1995, p.83).
São essas teses que estão presentes na epístola de 494 dirigida ao imperador
Anastácio, que iremos citar algumas passagens mais importantes para nosso objetivo.
Augusto imperador, são principalmente dois os poderes através dos quais se governa o mundo: a autoridade [auctoritas] sagrada dos pontífices e o poder [potestas] real. Destes dois, é mais grave o peso dos sacerdotes, pois estes deverão prestar contas na ocasião do julgamento divino, inclusive pelos próprios reis da humanidade. Na verdade, tu sabes, filho clementíssimo, que em razão de tua dignidade és o primeiro de todos os homens e o imperador do mundo, todavia sê submisso aos representantes da religião e suplica-lhes o que é indispensável para tua salvação. Com efeito, no que se refere à administração dos sacramentos e à disposição das coisas sagradas, reconhece que deves submeter-te à sua orientação e não seres tu quem deva governá-lo, e assim nas coisas da religião deves submeter-te ao seu julgamento e não querer que eles se submetam ao teu. Ora, no tocante ao governo da administração pública, os próprios sacerdotes, cientes de que o poder te foi conferido pela vontade divina, obedecem às tuas leis, pois no que se refere às coisas do mundo não lhes agrada seguir orientação diferente. (SOUZA, 1995, p.85-86).
Esses são os parágrafos mais conhecidos desta famosa epístola. São os mais
conhecidos, pois foram exaustivamente citados nos séculos posteriores pelos defensores, tanto
do poder papal, quanto do equilíbrio entre os poderes espiritual e temporal. Uma das
características mais relevantes do trecho citado é a segurança com que Gelásio trata questões
realmente complexas para a Igreja e para o Império. Também é de se levar em consideração a
autenticidade das ideias contidas no texto e, ao mesmo tempo, uma herança romana das
mesmas.
A doutrina gelasiana foi uma das primeiras em que é realmente possível delimitar e
diferenciar com precisão os domínios de atuação da Igreja e do Estado. O papa Gelásio tinha
plena consciência do papel e da importância do imperador na sociedade, visto que o poder do
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imperador era constituído por Deus. Nas atitudes do imperador Anastácio, Gelásio I percebeu
que não havia harmonia entre eles, ou seja, o imperador não estava seguindo um caminho fora
do determinado pela ortodoxia e, pelo responsável da mesma, o Papa. Mas Gelásio era, como
seus antecessores, defensor do primado da Sé Apostólica e via com clareza a autoridade e a
responsabilidade de sua posição. Assim, desenvolveu os postulados que especificaram as
relações entre Igreja e Estado, isto é, os conceitos de auctoritas e potestas4. Esses termos já
eram conhecidos e utilizados no final do século V no Ocidente, pois estavam presentes no
Direito Romano e na hierarquização dos poderes do Império, sendo claramente apropriados
pela Igreja como um dos resultados da imitatio imperii5, pretendida pela Igreja nesse período.
Citando novamente José Antônio de Souza,
Auctoritas designava a própria fonte do poder, una e indivisível, enquanto potestas significava uma fração da autoridade proveniente da mesma e exercida por alguém. O supremo mandatário romano era detentor da auctoritas, enquanto, por exemplo, os governantes das províncias, os duces, os praetores, e até mesmo os reis bárbaros, exerciam somente a potestas. (SOUZA, 1995, p.87).
Assim, segundo os postulados gelasianos (baseados no agostinismo político), os
membros da Igreja, tinham e exerciam uma autoridade superior aos membros do Estado, pois
tinham responsabilidades que ultrapassavam em grau e em dignidade, a saber, a Igreja, e em
especial o papa, eram responsáveis pela salvação de todos os cristãos, inclusive o imperador.
Já os poderes dos representantes do Estado, são inferiores, pois tratam dos assuntos terrenos,
da vida pública. Entretanto, o objetivo principal de Gelásio não foi estabelecer a hegemonia
de um poder sobre o outro, ou seja, o papa não estava interessado em colocar a Igreja acima
do Império, mas antes que o imperador entendesse que tanto Igreja quanto Estado tem papeis
diferentes, mas complementares na direção da sociedade cristã. De tal modo, o imperador não
pode contribuir para o fortalecimento de heresias no interior do cristianismo, pois ao fazer
isso está agindo contra a própria finalidade de sua função, que é manter a paz e a justiça em
todo o Império.
O discurso do papa Gelásio se caracteriza pelo dualismo e pelo desejo da colaboração
entre os poderes. Mas também pode ser considerado como a fundação da hierocracia
4 Segundo José Antônio de Souza: “Em nossa língua e na terminologia jurídica atual esses termos são sinônimos. Entretanto, em latim e conforme o Direito Romano cada um deles tinha um significado particular”. Op. Cit. 1995, p. 86. 5 Ver ARNALDI, Girolamo. Igreja e papado. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMIT, Jean Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. I. Bauru: Edusc; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 568.
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medieval, ou seja, a teoria da supremacia da Igreja dentro da Cristandade. Por outro lado
ainda, pode-se analisar o mesmo discurso como um dos primeiros a distinguir claramente as
origens, funções e finalidades da Igreja e do Estado, contribuindo para a construção de
doutrinas a cerca das relações de poder nos séculos posteriores da Idade Média.
Passamos agora para a documentação relativa ao papa Gregório I (590 – 604) e sua
analisa externa e interna. O pontificado de Gregório Magno teve algumas características
especiais, principalmente nos acontecimentos políticos e religiosos que influenciaram suas
ideias a cerca das relações entre os poderes espiritual e temporal. Gregório tinha plena
consciência dos problemas que afetavam seu tempo e sua cidade, Roma. Nesse contexto, o
papa é obrigado a se aproximar das monarquias que estavam se constituindo no Ocidente, a
fim de guiar esses reis no caminho da salvação cristã. Como diz Daniel Valle, “O pontificado
gregoriano transcorrerá entre o sentimento de fidelidade à ordem antiga, ou seja, à estrutura
imperial romana, e o apelo à ordem que se estabelece – os reinos nascidos das invasões
bárbaras”.6 Para Gregório as atividades práticas são os principais objetivos de ser papa, mas
não deixou de lado sua atividade intelectual, produzindo diversas obras, como a Moralia in
Job, cujo trecho analisaremos mais a frente.
A finalidade principal dessas obras é aconselhar moralmente esses novos soberanos do
Ocidente. Segundo Daniel Valle, A atitude de Gregório é, [...], a do pastor zeloso que aconselha. O que o anima é a vontade de estreitar a colaboração, não a de subordinar o Estado à Igreja. Ao que aspira é que o poder secular sirva ao desígnio divino da salvação do homem, numa retomada da doutrina gelasiana de dualismo e cooperação dos poderes. (RIBEIRO, 1995, p.96).
A concepção de poder que Gregório tem é totalmente construída na própria concepção sobre a
função do papa como soberano da Igreja. Ainda segundo Daniel Valle, Há em Gregório, [...], uma nova concepção de poder. Para ele, o poder é uma missão, não um atributo pessoal, um privilégio, e deve ser exercido em beneficio da coletividade. Surge, aqui, a idéia de serviço. Essa idéia é nova e com ela Gregório rompe com a Antiguidade e torna-se um papa medieval. (RIBEIRO, 1995, p.96).
6 Ribeiro, Daniel Valle. A sacralização do poder temporal. Gregório Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, José A. C. R. de. O Reino e o Sacerdócio. Porto Alegre: Edipucrs,1995. 234 p. p.95.
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É com essa idéia de serviço e do poder como um privilégio, que Gregório produziu
suas obras intelectuais, como o Moralia, que segue a citação de um trecho especifico aos
nossos propósitos: Muitas vezes, o poder que nos foi conferido impressiona a alma e a envaidece com pensamentos arrogantes. O tumor da vaidade deve ser, portanto, extirpado pela humildade. Se a razão desce das alturas para seu próprio nível, mais profundamente encontra a planície da igualdade natural. Ora, como falamos, a natureza fez todos os homens iguais, mas, com a diversificação de méritos, uma ação oculta pospôs uns aos outros. A mesma diversidade que veio do erro foi retamente ordenada pelos desígnios divinos, de tal modo que um homem seja dirigido por outro, já que nem todos vivem igualmente. Os homens justos, quando estão no poder, não se vestem da força do mando, porém da igualdade de natureza; nem se vangloriam de governar os homens, mas de servi-los. Ora, eles sabem que os antepassados são lembrados não tanto por terem sido reis de homens quanto por terem sido pastores de seus rebanhos. (GREGÓRIO MAGNO apud RIBEIRO, 1995, p.100).
A intenção de Gregório era clara nesse documento. Sua preocupação com os perigos
que rodeiam o poder foi constante e sempre que tinha a oportunidade advertia os senhores dos
reinos do Ocidente sobre esses perigos. Na mentalidade de Gregório a salvação, tanto do
súdito mais pobre quanto do rei mais poderoso, é sua responsabilidade. Isso acontece, pois
Gregório acreditava que sua função era mais de pastor do que de um soberano. Para Gregório,
seguindo são Paulo, o poder deve ser útil, deve servir para o bem e para a paz da comunidade
e não de uma só pessoa.
Analisando de modo geral a doutrina gregoriana, tendo como base o trecho citado a
cima e outros documentos, podemos afirmar que o papa não defendia a submissão dos
príncipes a sua autoridade. Por ser um homem de seu tempo, imerso nos problemas do século,
Gregório sabia que precisava estreitar as relações com as monarquias nascentes, pois no
Ocidente (e na sua época) a idéia de Império estava totalmente arruinada. Assim, sua doutrina
foi um pedido pelo estreitamento das relações entre a Igreja e os Estados, ou seja, Gregório
quer saber de unidade, não distinguindo o temporal do espiritual. Como se verá depois, esse
pedido deu certo, ao se romper com a ligação imperium/ecclesia para criar e fortalecer a
ligação (relação) regnum/sacerdotium.
Marsílio Mainardini nasceu em Pádua aproximadamente no ano de 1280; sua família
era tradicional naquela cidade, com seu pai ocupando um cargo importante na Universidade, o
que leva vários autores afirmarem que Marsílio desde jovem já vivia em um ambiente culto e
que isso foi um elemento muito importante na vida do nosso autor. Estudou Direito em Pádua
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e provavelmente foi lá também que estudou Medicina; em alguns meses entre 1312 e 1313,
Marsílio foi reitor da universidade de Paris, por isso se conclui que ele já morava a algum
tempo nessa cidade.
No tempo em que viveu em Paris, Marsílio teve contato com os problemas que
colocavam em conflito o rei Felipe IV e o papa Bonifácio VIII. No ano de 1324 Marsílio
termina sua obra mais importante, Defensor Pacis, que foi dedicado ao Imperador Ludovico
(IV) da Baviera, imperador do Sacro Império Romano Germânico. A intenção de Marsílio ao
escrever essa obra era a dar fim às disputas entre Império e Papado, e para tanto ele escreve
contra a teoria hierocrata que professava a chamada plenitude de poder (plenitudo potestatis),
tanto no plano espiritual (in spiritualibus) quanto no plano temporal, requerida pelos papas
neste momento.
A obra prima de Marsílio de Pádua, o Defensor Pacis está dividido em três discursos,
ou dictiones. O primeiro discurso é a parte em que Marsílio desenvolve seu pensamento
político de acordo com fontes oriundas do pensamento clássico Greco-romano. Segundo
Strefling,
Na primeira Dictio, na qual desenvolve uma teoria do Estado, a fonte principal é a Política de Aristóteles, citada oitenta e uma vezes, especialmente o Livro V, onde o Estagirita trata das revoluções. Também são citadas a Ética a Nicômaco, a Retórica, a Física, [...]. Além das obras de Aristóteles, são citados outros autores, como: Cícero, Salústio, Sêneca, Fedro, Galeano e Cassiodoro, [...]. Na segunda Dictio, ao criticar as pretensões da Igreja, mudam-se as fontes, pois é necessário usar as armas do inimigo. Por isso, o filósofo [pensador] paduano faz copiosa transcrição de passagens do Novo Testamento, especialmente dos quatro Evangelhos e das Epístolas Paulinas, e faz pouquíssimas citações do Antigo Testamento. [...] Recorre também à tradição patrística e cita os teólogos: Agostinho, Jerônimo, Ambrosio, Hilário de Poitiers, João Crisóstomo e Bernardo. Menciona igualmente, as Sentanças de Pedro Lombardo [...]. Ainda faz referências a diversos hierocratas. (STREFLING, 2002, p.110-111).
O terceiro discurso é o menor, sendo considerado como um resumo das ideias contidas nas
duas partes anteriores.
Partindo para o nosso objetivo principal, que é comparar as ideias do Defensor Pacis
com as ideias contidas nos documentos analisados previamente e observar as ressonâncias
(sendo permanências ou rupturas) de alguns pontos mais marcantes do pensamento a cerca
das relações de poder no período medieval, podemos observar claramente, além da diferença
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temporal, diferentes objetivos e intenções dos autores e documentos analisados. Assim, temos
três textos produzidos por papas para, de modo geral, estruturar a posição da Igreja como
força religiosa e política dentro do Ocidente nos primeiros séculos da Idade Média e de outro
lado, temos Marsílio de Pádua, critico ferrenho do papado de seu tempo.
É importante ter em mente que a Igreja da época de Marsílio de Pádua era considerada
a principal instituição da Cristandade, mesmo que seu poder prático estivesse perdendo
espaço para as Monarquias Nacionais (como França e Inglaterra). Então podemos concluir
que os objetivos dos três papas cujos discursos foram analisados anteriormente, de certa
maneira, acabaram sendo concretizados. Dizemos “de certa maneira”, pois em nenhum dos
três documentos os papas pregaram o domínio, ou a subordinação do temporal pelo espiritual.
Esse discurso de proeminência da autoridade espiritual sobre o poder temporal pode encontrar
suas fortes raízes no pensamento gelasiano, que influenciou os pensadores eclesiásticos dos
séculos posteriores, desenvolvendo a teoria hierocrata e a ideia da plenitude de poder, tão
criticada por Marsílio e outros pensadores no período dele.
Essa plenitudo potestatis do papado da época de Marsílio se justificava, diziam os
papas e seus defensores, através das mesmas passagens bíblicas que Leão I utilizou para
defender o primado de Roma no século V, ou seja, “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei
minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela”. Vemos que essa
justificativa sobreviveu e mais, se fortaleceu ao longo dos nove séculos de diferença entre
Leão I e Marsílio de Pádua. Essa ideia do primado de Roma e de seu bispo é criticada
longamente por Marsílio na segunda dictio do Defensor Pacis.
Segundo Strefling, Com o objetivo de destruir a plenitudo potestatis do Papa, Marsílio, inicialmente, analisa o poder espiritual do Bispo de Roma dentro mesmo da Igreja. Nesse sentindo, enfatiza a igualdade que há entre presbíteros ou bispos, sucessores dos Apóstolos, inclusive o Papa, tido na conta de sucessor de São Pedro, e, portanto, nega que São Pedro, o Príncipe dos Apóstolos, tenha recebido de Cristo um primado sobre os demais Apóstolos. Nega também que, na pessoa de Pedro, tenham os seus sucessores, os Bispos de Roma, poder sobre os demais bispos, sucessores dos Apóstolos. (STREFLING, 2002, p.192-193).
Para Marsílio, o Papa não tem nenhuma autoridade especial por ser sucessor do
Apóstolo Pedro. Assim, o papado e a Igreja não podem requerer qualquer poder comparativo
ou maior ao dos príncipes e do imperador (poderes temporais), pois o papa não possui o
elemento coercivo, ou seja, o elemento do uso da força (coerção) em sua autoridade. Essa
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coercividade, Jesus não exerceu em sua passagem pela vida terrena e não a passou aos
Apóstolos e seus sucessores. Marsílio entende que a coercividade é um componente
constituinte do poder temporal e pertence só a ele e seus representantes. Citando Marsílio, Agora, rebatendo o que se afirma indevidamente, queremos nos referir às verdades contidas na Sagrada Escritura, considerada tanto literal quanto misticamente, conforme as interpretações e os comentários dos santos e doutores da fé católica, reconhecidos como tal, ordenando ou aconselhando expressamente, que nem o Bispo de Roma, chamado Papa, nem tampouco qualquer outro bispo ou presbítero ou diácono, não têm nem devem ter os poderes para governar ou para julgar, isto é, para exercer um julgamento coercivo sobre todos os padres ou leigos, nomeadamente os príncipes, as comunidades, os grupos, as pessoas singulares de quaisquer condições, [...]. (MARSÍLIO DE PÁDUA, 1997, p.231-232).
Fica claro que para o pensamento do paduano, a Igreja e o papado não possuem nenhum tipo
de poder coercivo dentro da Cristandade. Marsílio demonstra, apoiado nas fontes religiosas,
que [...], não apenas o próprio Cristo recusou o governo do mundo, isto é, fazer julgamentos coercivos aqui na terra, pelo que deu o exemplo aos seus Apóstolos e discípulos e aos sucessores deles para que agissem de maneira semelhante, mas também que ele ensinou, por meio de sua atitude e com sua pregação, que todos os homens, padres ou leigos, devem estar real e pessoalmente subordinados ao julgamento coercivo dos príncipes seculares. (MARSÍLIO DE PÁDUA, 1997, p.239).
Os papas citados nesse trabalho não tiveram condições contextuais para construir e
aplicar a teoria da plenitudo potestatis que abarcasse os dois campos de poder (espiritual e
temporal), isto é, suas preocupações, pensamentos e doutrinas estavam voltados mais a
edificar a independência, primeiro do papado e depois da Igreja em relação às outras forças
que atuavam no Ocidente daquele momento. Por outro lado, esses mesmos papas, começaram
a fundamentar muitas das teorias políticas que geraram o movimento hierocrata da Baixa
Idade Média, ou seja, os discursos de Leão I, Gelásio I e Gregório I estão na gênese de tudo o
que Marsílio de Pádua criticou e lutou contra no Defensor Pacis e nas campanhas ao lado do
imperador.
Ao longo deste artigo podemos perceber o quanto é complexa as relações entre os
poderes espiritual e temporal no decorrer da Idade Média. Mais complexa ainda é a tarefa de
analisar os discursos e ideias produzidos durante o medievo, com as mais diversas intenções
dentro do intrincado (para dizer o mínimo) jogo político e religioso da Cristandade. O que
tencionamos em fazer nesse artigo foi relacionar ideias de dois momentos históricos diversos
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(e distantes), levando em conta seus respectivos contextos históricos que são, na nossa
concepção, de capital importância para a formação dessas ideias e desses discursos.
Acreditamos que certas ideias formadas pelos papas da Alta Idade Média tiveram
grande influência nos séculos posteriores, e não só para os pensadores eclesiásticos, mas
também para os pensadores leigos. É importante ressaltar que essas ideias não ficaram
imóveis e inalteradas durante o medievo, mas foram sendo moldadas conforme o objetivo e
conforme as concepções de mundo e de política dos pensadores medievais. Não podemos
esquecer também que muitas ideias chegaram à época de Marsílio como uma estrutura mental
da Cristandade. Exemplo disso é o primado de Roma no Ocidente.
Para finalizar, achamos que não é possível realizar um estudo da obra de Marsílio de
Pádua sem contextualizar as relações de poder e o pensamento político de toda a Idade Média
e não só do meio século em que ele produziu sua obra. É isso que iremos realizar em nossa
dissertação de mestrado, do qual o pensamento de Marsílio de Pádua é a fonte principal e para
analisá-lo temos que dialogar com tempos distantes e ideias de todas as formas.
Referências:
Fonte:
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Petrópolis: Vozes, 1997. 701 p.
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