refletindo sobre a prática da au'la de...

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CAPiTULO UM Refletindo sobre a prática da au' la de português En lre o po rque e o por quê /11ais bobagem gramati cal do que sabedoria Sel7lâ/1t:ica. MJLLÓR F ERNAN DES 1.1. Si nais de mudança Um exame mais cuidadoso de como o estudo da língua portuguesa acontece, desde o Ensino Fundamen- tal, revela a persistência de uma /Jrá tica pedagógica que, em muitos aspectos. ainda man tém a perspecti va reducionis ta do estudo da palavra e da frase descontex- tualizadao/ Ness es limites, ficam reduzidos, naturalmen- te, os obje tivos que uma compreensão mais relevante da linguagem poderia suscitar - linguagem que funciona para que as pessoas possam interagir so cial- m en te. Embora muitas ações institucionais te- nham desenvolvido. no sentido de motivar e fundam en- tar uma reorient ão d ess a prática, as experiências de REFLETINDO sOBRF. A PRATICA DA .IL1LA DE l'O RT UGU I!S I 19

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dependem diretamente de ns, s vezes, comeam a mudar j porque ns as denunciamos, ou porque luta

mos para que sejam diferentes.

O plano em que desenvolvo esta discusso est

distribudo assim:

num primeiro momento (Captulo 1), revejo, numa breve anlise, algumas das maiores dificuldades e alguns dos maiores equvocos ainda constatados

em relao s atividades pedaggicas, no trata

mento com a oralidade, a escrita, a leitura e a

gramtica;

num segundo momento (Captulo 2), apresento alguns princpios tericos capaz.es de fmdwnentar

um ensi/1o da lngua I/ZCS relevante e eficiente. Para

isso, tomo como pontos de referncia a prtica da

escrita, a prtica da leitura, a prtica da reflexclo

sobre a gramtica e a prtica da oralidade. Neste

segundo momento, so explicitadas, ainda, as

principais implicaes pedaggicas contidas em tais princpios;

num terceiro momento (Captulo 3), como ilustrao e pistas de trabalho, apresento algumas

orientaes e sugestes de atividades que podem

ser desenvolvidas no mbito da escrita, da leitura, da reflexo gramatical e da oralidade;

por fim, um segmento (Captulo 4) em que teo algumas consideraes acerca dos procedimentos gerais de !1l'{diaclo decorrentes desses princpios .

18 IAIJw\ DE PORTUC U!l.S 1R.wot A NTUNES

CAPiTULO UM

Refletindo sobre a prtica da au 'la de portugus

En lre o porque e o por qu h /11ais bobagem

gramatical do que sabedoria Sel7l/1t:ica.

MJLLR F ERNAN DES

1.1. Sinais de mudana

Um exame mais cuidadoso de como o estudo da

lngua portuguesa acontece, desde o Ensino Fundamen

tal, revela a persistncia de uma /Jr tica pedaggica

que, em muitos aspectos. ainda m an tm a perspectiva reducionista do estudo da palavra e da frase descontex

tualizadao/ N esses limites, ficam reduzidos, naturalmente, os objetivos que uma compreenso mais relevante da linguagem poderia suscitar - linguagem que s

funciona para que as pessoas possam interagir social

m en te. Embora muitas aes institucionais j S tenham desenvolvido. no sentido de motivar e fundamentar uma reorientao dessa prtica, as experincias de

REFLETINDO sOBRF. A PRATICA DA .IL1LA DE l'O RT UGU I!S I 19

http:capaz.es

renovao, infelizmente, ainda no ultrapassam o domnio de iniciativas assistemticas, eventuais e isoladas.

Conseqentemen te, p ersiste o quadro nada animador Ce quase desesperador) do insucesso escolar, que se manifes ta de diversas maneiras. Logo de sada, ma

nifesta-se na sbita desco berta, por parte do aluno, de que ele "no sabe portugus", de que "o portugus uma lngua muHo difcil ". Posteriormen te, manifesta

se na confessada (ou velada) averso s a ulas de portu

gus e, para a lguns alunos, na dolorosa experincia da repetncia e da evaso escolal~

Co m enormes dificuldades de leitura, o a luno se v frustrado no seu esforo de estudar outras disciplin as e, quase sempre, "deixa" a escola com a quase ina

balvel certeza de que incapaz, de q ue lingOisticamente deficiente, infelior, no podendo, portanto, to

mar a palavra ou ter voz para fazer valer seus direilos , para participar ativa e cri ticamente daquilo que acon

tece sua volta. Naturalmente , como tantos ou tros, vai ficar margem do entendimento e das decises de construo da sociedade.

evidente que causas externas escola interfer em, de forma decisiva, na delerminao desse resulta

do . IA esco la, como qualquer ou tra instituio social, reOete as condies gerais de vida da comunidade em que est inserida. No entanto, evidente ta mbm qu fatores internos prpria escola condicionam a qualidade e a relevncia dos resultados alcanados

principalmente em a teno a esses fatores ligados escola que desenvolvo , no momenlO, as presentes reOexes e propostas de estudo do portugus.

20 IAuJ..A DE P ORTUCUas RAND" UNES

Tenho conscincia, sem dvida, do momento histrico nacional, com seus mltiplos e graves problemas, que, na rea da Educao e para alm dela, constituem um enom1e desafio para a responsabilidade e para o esplito cvico de todos. Os momentos de crise so, comumente, tambm momentos de crescimento. por isso que j se pode testemunhar um conjunto de atuaes sociais positivas, na direo de uma crescente conscincia da cidadania cada vez mais integral e efetiva.

O presente trabalho pretende ser, tambm, uma

resposta aos apelos e s exigncias de construo dessa m esma cidadania.

1.2. Um querer j legitimado

possvel documental~ atualmente, uma srie de aes que as instituies governamentais, em todos os nveis, tm empreendido a favor de uma escola mais formador a e eficiente. Tais aes, apesar de todos os seus limites, acontecem tanto na rea da formao e capacitao dos professores como na outra, no menos significativa, das avaliaes. Basta referir o trabalho que resultou na elaborao e divulgao dos Parmetros Cuniculares Nacionais (PCN), com todos os seus posteri ores desdobramentos; ou o trabalho empreendido pelo Sistema Nacional de Avaliao da Educao Bsica (SAEB), que objetiva avaliar o desempenho escolar de alunos de todas as regies do pas e, a partir da, oferecel~ ao prplio Governo Federal e aos Estados, subsdios para a redefinio de polticas educacionais mais consistentes e relevantes.

Em relao aos PCN, no se pode deixar de reconhecer que as concepes teIicas subjacentes ao docu

REFLE1"INDQ SOBRE 1\ PRTICA DA AUU\ De PORT l!GutS I 21

mento j plivilegiam a dimenso interacional e discursiva da lngua e definem o domnio dessa lngua como uma das condies para a plena participao do indivduo em seu meio social (cf. p. 19). Alm disso, estabelecem que os contedos de lngua portuguesa devem se articular em t.omo de dois grandes eixos: o do lISO da lngua oral e escrita e o da ,-e/lextlo acerca desses usos. Nenhuma ateno concedida aos contedos gramaticais, na fom1a e na seqncia tradicional das classes de palavras, tal como aparecia nos programas de ensino de antes.

Em relao ao SAEB, a orientao no diferente: os pontos - chamados de descritores - que constituem as matrizes de referncia para a elaborao das questes das provas - contemplam explicitamente apenas um conjunto de habilidades e competncias em compreenso e nada de definies ou classificaes gramaticais. Todas essas competncias so avaliadas em textos, de diferentes tipos, gneros e funes. No h um descritor sequer que se parea com os itens tradicionais dos programas de ensino do portugus. Nem a famigerada concordncia verbal,. suposto indicativo do saber da "inequvoca norma culta", aparece. Tampouco a regncia ou outra questo semelhante. Muito menos as famosas classif.icaes de oraes.

Os Estados tm entrado em ham10lua com estas Olientaes do SAEB e j organizam seus exames de avaliao'

1 Vale a pena l'onsultar os descritores selecionados para as malJizes do Estado de Pernambuco. Em bora se a pregoe que tai s matrizes existem para orientar a avaliao do ensino, inegvel que os descritores nelas contidos podem inspirar mui to positivament e as a tividades escolares com a lei tura e a escIi ta . Atualmente ,

22 IA UL A DE P ORTUGUI".S l RAN D~ A N1UN ES

com base num rol de competncias semelhantes, tambm avaliadas em textos.

Vale referir tambm o trabalho que realizado pelo Pr ograma Nacional do Livro Didtico (PNLD) que, pelo menos em relao lngua portuguesa, tem oferecido timas pistas para a produo dos manuais de ensino. Os exames vestibulares de algumas universidades ta mbm tm botado lenha nessa fogueira. Ou seja, as questes em tomo de competncias textuais tm trazido a dimenso da textua1idade para o dia-a-dia da atividade pedaggica ou, pelo menos, conseguiram tirar do centro de in teresse a anlise puramenle metalingistica que prevalecia nos programas de ensino.

Parece, portanto, no faltar ao professor o respaldo das instncias super iores, que assumiram o discurS02 de novas concepes tericas, de onde podem eme 'gir novos program as e novas prticas . Pelo menos, para os professores, j no tem sentido transferir para as Secretarias de Educao, para O vestibular ou para todos os livros didticos, a responsabilidade de ter de u rezar" o velho rosrio das classes de palavras, conta a conta,

u Estado de Pernambuco j dispe de uma Matr iz CUTI"icular para o ensino (e no apenas exclusivamente pa ra a avaliao ), com a especificao das com pet'Jlcias esperadas no final de cada ciclo (do Fundamenta l e Mdio) . Ness.a Matri z, so apresentados descritores relativos oralidade, leitura e produo de textos escritos . Esses descri tores trn como suporte teril:o os princpios da interao verbal e da textualidade.

2 Certamente outras aes administrativas deviam aco mpanhar o plano do discurso oficial, para que as concepes tericas propostas pdos governos possam tomar-se cada vez mais uma realidade.

TINDO SOBRE A PRATI

uma a uma. A "salvao" parece vir por outros meios.

Ou seja, os "santos" comeam a ter outra cara.

1.3. Num olhar de relance

Sem perder de vista que muito empenho vem sendo demonstrado (e com alguns resultados evidentes e louv

veis) no sentido de deixar a escola em condies de mais

qualidade e maiores xitos, me parece til, ainda, come

ar por referir algumas constataes menos positivas,

acerca de como acontece a atividade pedaggica de ensi

no do portugus (s vezes, preferia no ter visto .. . !). Vou

fixar-me, como disse, em quatro campos: o da oralidade,

o da escrita, o da leitura e o da gramtica.

1.3.]. O trabalho com a oralidade

No que se refere s ati\'idades em tomo da oralidade, ainda se pode constatar:

uma quase omisso da fala como objeto de ex

plorao no trabalho escolar; essa omisso pode

ter como explicao a crena ingnua de que os

usos oTais da Hngua esto to ligados vida de

todos ns que nem precisam ser matria de sala

de aula (cf. Marcuschi, 2001: 19);

uma equivocada viso da fala, corno o lugar pr ivilegiado para a violao das regras da gra

m tica. De acordo com essa viso, tudo o que "en'o" na lfngua acontece na fala e tudo

permitido , pois ela est acima das prescr ies gramaticais: no se d istinguem , portanto , as si

24 IAUL~ DE PORTUGU~S lRAo'lOE ANTUNES

)

tuaes sociais mais formais de interao que vo, inevitavelmente, condicionar outros padres de oralidade que no o coloquial;

uma concentrao das atividades em torno dos gneros da oralidade informal, peculiar s situaI es da comunicao privada; nesse contexto, predominam os registros coloquiais, como a "conversa" , "a troca de idias", "a explicao para o

colega vizinho" etc. Na verdade, o trabalho se

restringe reproduo desses registros informais,

sem que se promova uma anlise mais con sistente de com o a conversao acontece;

ou seja, uma generalizada falta de oportunidades de se explicitar em sala de aula os padres gerais

~ da conver.;;ao, de se abordar a realizao dos gneros orais da comunicao pblica, que pedem registros mais formais, com escolhas lexicais mais

especializadas e padres textuais mais rgidos, alm do atendimento a certas convenes sociais exigidas pelas situaes do "falar em pblico .

1.3.2. O trabalho com a escrita

No que se refere s atividades em torno da escrita. ainda se pode constatar:

um processo de aquisio da escrita que ignora a interferncia deci siva do sujeito aprendiz, na constmo e na testagem de suas hipteses de representao grfica da lngua:

a p rtica de uma escrita mecnica e perifrica, cen trada, inicialmeute. nas habilidades motoras

ReFLETINDO SOBRE A PR11CA OA AULA DE PORTUGus 125

de produzir si"nais grficos e, mais adiante, na memorizao pura e simples de regras ortogrficas: para muita gente, no saber escrever ainda equivale a escrever com erros de ortogral'ia;

a prtica de uma escrita artificial e inexpressiva

realizada em "exerccios" de criar listas de pa

lavras soltas ou, ainda, de formar frases. Tais

palavras e frases isoladas , desvinculada s de

qualquer contexto comunicativo, so vazias do

sentido e das intenes com que as pessoas di

zem as coisas que tm a dizel: Alm do mais,

esses exerccios de forrnar [Tases soltas afastam

os alunos daquilo que eles [azem, natur almente,

quando interagem com os Ouu'os, que "cons

tmir peas inteiras" , ou seja, textos, com unidade, com comeo, meio e fim, para expressar sen Lidos e intenes. Parece incrvel, mas na escola que as pessoas "exercilani" a Iillguagem ao con trrio , ou seja, a linguagem 'jue I1.O di z. /1nda. Nessa linguagem vazia , os prin cpios bsicos da textualidade so violados, porque o que se diz reduzido a uma seqncia de frases desligadas umas das outras, sem qualquer perspectiva de ordem ou de progresso e sem responder a qu alquer tipo particular de contexto social;

a pr tica de uma escrita sem funo , destituda de qualquer valor interacional. sem auloria e sem recepo (apenas para "exer ci tar")' , uma

'" Isabel Pinheiro, em sua dissertaio de mestrado (cf. Biblio

gra fia), analisou as propostas de produo de texto de alguns Iiwos did ticos (' constatou que somente mui to poucas cuidam de levar em cont~ o!' ~alo!'es intera(jvos uo a to de escrever um le.-:io .

l RANU ANnJNES26 1 AULA DE POlUUGl~S

vez que, por ela , no. se estabelece a relao pretendida entre a linguagem e o mundo, entre o autor e o leitor do texto;

a prtica de uma escrita que se limita a oportunidades de exercitar aspectos no relevantes da lngua, nessa altura do processo de apreenso da escrita, como, por exemplo, a fixao no~ exerccios de separao de slabas, de reconhecimento de digrafos, encontros voclicos e consonantais e ou LTos inteiramente adiveis;

a pr tica, en fim , de uma escrita im provisada , sem p1anejamen lo e sem reviso, na qual o que conta , prioritar iamen te , a ta refa de realiz-la , no importa "o que se diga" e o "como se faz" . ( a "lngua da escola" , como obsel\lou u m

menino sabido!

l.3 .3. O trabalho com a leitura

No que se refere s atividades de ellsino da leitura , tambm se encontra ainda:

~1Ll atividade de leitura. centrada nas habilidades mecnicas de decodificao da esClita, sem didgir, contudo, a aquisio de tais habilidades para a dimenso da interao verbal - qu.ase sempre, nessas circunstncias, no h leitura, porque no h "encontro" com ningum do outro lado do texto;

uma a Lividade de leitura sem in ter esse, sem funo , pois aparece intei.ramenLe desvinculada dos diferentes usos sociais que se faz ela leitura a tualmente;

REFLETINDO SOBRE A PRTICA DA AULA DE POR f UGUES I 27

uma atividade de leitura puramente escolar, sem

gosto, sem prazer, convertida em momento de

treino, de avaliao ou em oportunidade para futuras I/cobranas"; leitura que , assim, redu

zida a momentos de exerccio, sejam aqueles da I/leitura em voz alta" realizados, quase sempre,

com interesses avaliativos, sejam aqueles que

tm de culminar com a elaborao das conhecidas "fichas de leitura";

uma atividade de leitura cuja interpretao se limita a recuperar os elementos literais e expl

citos presentes na superfcie do texto. Quase

sempre esses elementos privilegiam aspectos

apenas pontuais do texto (alguma informao

localizada num ponto qualquer), deixando de

lado os elementos de fato relevantes para sua

compreenso global (como seriam todos aque

les relativos idia central, ao argumento prin

cipal defendido, finalidade global do texto, ao

reconhecimento do conflito que provocou o

enredo da narrativa, entre outros);

uma atividade incapaz de suscitar no aluno a

compreenso das mltiplas funes sociais da

leitura (muitas vezes, o que se l na escola no

coincide com o que se p recisa ler [ora dela);

enfim, uma escola I/sem tempo para a leitura",

porque, como declararam os alunos, I/tinha que

aprender as narrativas, a lingua portuguesa e as palavras que a gente fala errado" ou, ainda, porque "atrapalha o professor e/ll suas explicaes" (cf. Silva, 1986: 27) .

28 IAul.A DE P ORTUGUs l RAN oi! ANTUNES

A propsito da questo "o tempo para a leitura na escola", vale a pena referir a pesquisa realizada por

Llian Martin da Silva (1 986) junto a alunos de escolas pblicas de Campinas (tenho srias dvidas se os resul

tados seriam muito dilerentes, caso a pesquisa fosse feita em escolas particulares!). As respostas dos alunos

so autnticas denncias da estr eiteza com que algu

mas escolas tm considerado os objetivos de uma aula de portugus.

Vejamos o que os alunos responderam, quando solicitados a dizer se liam durante as aulas de portu gus:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . "Nunca porque no sobrava tempo. " "Nunca porque ncio d telnpo. "

"Nllnca porque a professora achava que perderia muito tempo de auZa. "

"Pouco, porque nos pril'neiros anos escolares eu fiz -fi muito exerccio. "

fiA professora dava a matria, e.:cplicava e mll'lca deu JII-na aula de leitura"

".4 gente lia apenas o livro da matria. )1

"Os professores se preocupam com a gramtica e a redacio:" ............................. .

Como diz a autora,

Da falta de te nlpo gel'zericCll'llerzte justificada, os depoimentos permitem avanar WI'I pouco mais na elucidao dessa ques lo ou porque atravs deles os alu IlpS repetem~ as explicaes que lhes so dadas ou porque conseguem, depois de anos a fio, vendo repetida a prtica de excluso de leitu ra, entender os seus porqus (p . 27).

R EFLETINDO SOBRE ... PRTICA DA AULA DE PORTLGuts 129

Assim que pergunta "Por que nela h tempo para a leitura em sala de aula"? os alunos responderam:

"Porque til1.ha que ir com a matria pra frente ".

"Porque foram poucos os professores que mandaram lei: .,

"Porque se lssemos l1.o ia dar tempo para aprender

toda a matria. . ,

''Porque atrapalha o professor em suas explicaes".

''Porque no possvel perder Lima aula de portu

gus apenas para ler WIl livro" (grifas lIleus).

"Porque as aulas eram mais importantes. "

"Porque a professora acha que no estamos prepa

rados pa ra ler livros. "

Nem precisa muito esfo ro para perceber em que "a leitura atrapalha", ou qual lia matria" que precisava "ir pra fren te". Na verdade, a compreenso detu rpada que se tem da gramtica da lngua e de seu e!sludo lem funcionado como um imenso entrave ampliao da competncia dos alunos para a fala, a escuta, a leitura e a escrita de textos adequados e rele\an tes. H um equvoco t remendo em relao dimenso da' gramtica de uma lngua, em r elao s suas r-unes e s suas limitaes lambm - equ voco que tem funcionado como apoio para que as aulas de lngua se paream m uito pou om "encontr os de pessoas em atividades de linguagem" e, m uito m enos ainda, com "encontros de interao" , nos quais as pessoas procurariam descobrir como ampliar suas possibilidades verbais de parti cipar da vida de sua comunidade.

30 1A l IW\ DE PORTUGU~S }&\ND ANTUNES

Conscientes dessa compreenso falseada do que seja a gramtica de uma lngua, passamos ao item seguinte.

1.3.4. O trabalho com a gramtica

No que se refere a atividades em tomo da gramtica, pode-se constatar o ensino de:

uma gramtica descontextualizada, amorfa, da lngua como potencia lidade; gramtica que muito mais "sobre a lngua", desvinculada, portanto, dos usos reais da lngua escrita ou fal ada na comunicao do dia-a-dia'

uma gram lica fragmentada, de frases inventa das, da palavra e da frase isoladas , sem sujeitos interloculores , sem contexto, sem funo; frases f ei tas para servir de lio, para virar exerccio;

uma gramtica da irrelevncia, com primazia em questes sem importncia para a competncia comunicativa dos falan tes. A este propsito, valia a pena perguntar-se qual a competncia comunicativa que h em disti nguir um adjunto adnominaI de um complemento nominal. ou, ainda, em reconhecer as diferentes funes do QUE ou do SE, coisas com as quais muito tempo de aula ainda desperdiado;

tUTI a gramtica das excen tricidades, de pontos de visia re rinados, mas, muitas vezes, inconsisten tes, pois se apiam apenas em regras e casos particu lares que, apesar de estarem nos compndios d gramtica, esto [ora dos contextos mais pre~yeis de uso da lngua;

R Bfl..I.!'l1NDO SOBRE A pRATICA DA AUU\ DI! PORTUGU&, I 31

uma gramtica voltada para a nomenclatura e a classificao das unidades; portanto, uma gramtica dos "nomes" das unidades, das classes e subclasses dessas unidades (e no das regras de seus usos). Pelos limites estreitos dessa gramtica, o que se pode desenvolver nos alunos apenas a capacidade de "reconhecer" as unidades e de nome-las conetamente. Vale a pena lembrar que, de tudo o que diz respeito lngua, a nomenclatura a parte menos mvel, menos flexvel. mais estanque e mais distante das intervenes dos falantes. Talvez, por isso mesmo, seja a parte "mais [cil" de virar objeto das aulas de lngua. Vale. a pena lembrar tambm que a gramtica de uma lngua muito mais, muito mais mesmo, do que o conjunto de sua nomenclatura, por mais bem elabor~da e coruistente que seja . A esse propsito, seda muito til a consulta ao trabalho de Neves (1994: 12), trabalho pelo qual ela pde constatar que os exerccios em torno do reconhecimento da classe gramatical das palavras e de suas funes sintti cas obtiveram o maior ndice de [Teqncia:

uma gramtica inflexvel, petrificada, de uma lngua supostamente un iforme e inaltervel, inemediavelmente "fixada" num conjunto de regras que, on[orme constam nos manuais , devem m anter

se a todo custo imutveis (apesar dos mu itos usos em con trrio), como se o processo de mudana das lnguas fosse apenas um'fa to do passado, algo que j aconteceu e no acontece mais. Por esta via de percepo, a "consulta" que se faz sem pre, e apenas , a um compndio de gramtica (nem

32 IAULA DE PPRTUOllts lRAND!l. ANIlJJffiS

sempre consistentemente atualizado) , sem, de alguma maneira, considerar o que, na verdade, fato, ou seja, sem considerar o que faz parte dos usos reais que os grupos mais escolarizados de falantes e escritores da atualidade adotam;

um a gramtica predominantemente prescritiva , procupada apenas com marcar o "certo" e o ('errado", dicotomicamente extremados, como se falar e escrever bem fosse apenas uma questo de falar e escrever COrretamente, no importando o !le~e. diz, como se diz, quando se diz, e se se tem

algo a dizer. Por essa gramtica, professores e alunos s6 vem a lngua pelo Plisma da correo e, o que pior, deixam de ver outros muitssimos fatos e aspectos lingsticos (os fatos textuais e discursivos, por exemplo), realm ente relevantes;

uma gramtica que no tem como apoio o uso da lfngua em lextos reaIs. isto , em manifestaes text uais da comunicao funcional e que no chega, por isso, a ser o estudo dos usos comunicati vamenLe relevantes da lngua4.

1.4. Virando a p gina

A reorientao do quadro at aqui apresentado requer, antes de tudo, determinao, vontad e, empenho

de querer mudar. ~o supi>e ~m1a aQ a;rnpla. fundamentada, planejada, sistf!:.mtica e partici12..ada (das polticas pblicas - federais, estaduais e municipais dos professores como classe e de cada professor em

~ Acerca das criticas ao ensino de lngua p0\1uguesa, vale a pena consultar, entre muitos outros, BI;ttO, 1997.

REFLF.TlN'DO SOBRE A. PRTICA DA AULA DE roRT\JOU~ I33

parti cular), para que se possa chegar a uma escola que cumpra, de [alo, seu papel social de capacilao das pessoas para o exerccio cada vez mais pleno e consci

ente de sua cidadania.

A complexidade do processo pedaggico impe. na verdade, o cuidado em se prever e se avalial~ reileradamente, cOllcepes (O que a linguagem? O que uma lngua?) , objetivo:> (Para que ensinamo!)? Com que final idade?}, procedimel1to:> (Como en!)jnamos?) e resultados (O que temos conseguido?), de [anua que todas as aes se orientem para um ponto comum e relevan te: c017seguir ampliar as competncias CO/11Ut1iCa l ivo

il1leraciO/wis dos all/l1os. . .O falO de assumir a discusso de como aproximar

o estudo da lngua desse ideal de "competncia" e de "cidadania", ou melhor dizendo, de "competncias para a cidadarua", j representa um passo imensamente significativo - j o comeo da mudana, pois j concre tiza a inteno dos professores de querer adotar uma atividade pedaggica realmenle capaz de olerecer resulLados mais positivos e gratifican Les. Como em mui tos outros casos, discu tir, renetl~ para identificar os problemas e encontrar sadas. j uma "ao", j

parte do processo de mudana,.

evidente que qualquer discusso sobre os objetivos da at hidade pedaggica, por mais completa que possa parecer, deve complementar-se com o estudo, a

rtica, a rcnexo, a pesqu isa (ns, professores. precisa

mos de tempo para isso!) e a acuidade de lodos aqLtele~.

que participam dessa atividade. O empenho por fazer

esta reflexo produtiva, na pr tica diria das aLividades

lRANot A "ITtI1'ES34 1AliL" DE. PORI I IGUIs

pedaggicas, conta, assim, com a descoberta permanente, com o esprito de "viglia" de lodos os que esto envolvidos com a vida da escola. (Educar requer uma espcie de "estado de esprito" permanente). Os meios e os p rocedimentos concretos de levar tais discusses prtica da sala de aula e, no s, at a escola como um todo, sero dia a dia pensados, descobertos, inventados, re inventados , conforme as circunstncias pal1iculares d cada si tuao, de cada meio geogrfico e social. Dessa forma, o professor encontra condies para deixar de ser o mero repetidor de urna lista de conte?os, iguaizinhos de ano a ano, em qualquer lugar ou situao - contedos, muitas vezes, alheios lngua que a gente fala , ouve, escreve e l. Vale lembrar aqui Rubem Alves, em Co nversas com quem gosta de ensinar (p. 31): "Bem dizia o mestre Wittgenstein que a linguagem tem um poder enfeitiante. E eu me pergunto: de que palavras nos alimentamos?". Pois , perguntemo-nos: de que palavras se alimenta a vida da escola? O que significa dizer que circulam palauas pelos corredores das escolas?

Minha disposio neste momento , pois, oferecer aos que assumem a orientao ou a atividade de ensino do portugus, do Fundamental ao Ensino Mdio, alguns elementos que possam ajudar na descoberta de "novos jeitos" de ver a lngua e , conseqentemente, de ver-se com o professor em aulas de portugus.

A discusso que trago ser vlida e encontrar aplicabilidade , como [oi dito acima, apenas se completada COR! a reflexo critica e ctiativa de cada profissional envolvido no pro~sso de capacitar o cidado brasileiro para o exerccio fl1/ente, adequado e relevante da linguagem verbal, oral e esc/ita.

REn.e.TINDO SOBRE A PRTICA DA AUIJ\ DE'. PORTlJCLI!s 135

Como discusso, este livro se destina a apresentar no um receiturio simplista de novas tcnicas a serem empregadas e, muito menos, de novas tarefas a serem realizadas: destina-se a apresentar uma srie de pJincpios, capazes de rundamentar a ampla e complexa atividade do ensino da lngua. Esses principias telicos, objetivos e cientficos, contm, naturalmente, implicaes pedaggicas. Basta analis-los com cuidado para descobri-las. Dessas implicaes, por sua vez, derivam as prticas ou os procedimentos concretos que cada professor; na vida diria com seus alunos, vai inventando. J no h m ais lugar para o professor simplistamente repetidor, como disse acima, que Eica, passivo, espera de que ll1e digam exatamente como [azel~ como "passar" ou "apl icar" as Daes que lhe ensinaram. Os princpios so o fundamento em que o professor vai apoiar-se para criar suas opes de trabalho. O novo perfil do professor aquele do pesquisador, " que, com seus alunos (e no, "para" eles), produz conhecimento. o descobre e o redescobre. Sempre.

Muitas e urgentes so as razes sociais que justificam o empenho da escola pOT um ensino da lngua cada vez mais til e contextualmente significativo. Sabemos quanto a incompetncia atribuda escola est ligada a conflitos com a linguagem (cf. Soares, 1987), a percepes distorcidas e mticas acerca do que seja o fenmeno lingstico (cf. Bagno, 1999,2000). Sabemos quanto nos aL1ige a seletividade, a manuteno da estrutura de classes e a reproduo da fora de trabalho (cf. Carraher, 1986) que, incondicionalmente, decorrem tambm dessa incompetncia e dessas distores. Sabemos que a educao escolar um processo social,

36 IAuU\ DE PORTUClJaS lRANDE ANTUNES

com Itida e incontestvel [-uno poltica, com desdobramentos srios e decisivos para o desenvolvimento global das pessoas e da sociedade. Sentimos na-pele que no d mais para "tolerar" uma escola que, por vezes, nem sequer alfabeLiza (principalmente os mais pobres) ou que, alfabetizando, no fomla leitores nem pessoas capazes de exrpressar-se por escrito, coerente e relevantemente, para, assumil1dq a palavm, serem autores de uma nova ordem das coisas. , pois, um ato de cidadania, de civilidade da maior pertinncia, que aceitemos, a tivamente e com determinao, o desafio de rever e de reorientar a nossa prtica de ensino da Ifngua.

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REFLenNtlo SOBRE A PRTICA DA AULA DE PORTUOUts I37

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