reconstrucionismo celta

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Reconstrucionismo Celta De Ana Elisa Bantel (Slakkos Abonos) Este texto é o conjunto de postagens outrora publicados no blog www.reconstrucionismocelta.blogspot.com.br mas já fora do ar. Deixo-o aqui disponível, sem nenhuma grande edição, praticamente na forma como estava antes disponível no blog, mas ainda com o mesmo intuito: informar novatos e curiosos acerca do que é o Reconstrucionismo Celta. Trata-se de 20 e poucas páginas que apenas introduzem o tema para o leitor leigo, mas capazes de informar e desfazer possíveis preconceitos. Deixo a disposição e espero que seja de valia. Definição O Reconstrucionismo Celta é um movimento cultural e religioso nascido na década de 80 nos EUA, e criado por neo-pagãos que se sentiam insatisfeitos com a (in)fidedignidade cultural prestada por outras vertentes neo-pagãs à Cultura Celta da Antiguidade. Acreditando ser impossível dissociar os saberes religiosos da cultura na qual foram criados, o RC busca, então, resgatar não só as práticas religiosas, mas também a cultura material, a ética e moralidade, e os demais saberes imersos na definição de povos Celtas da Antiguidade. Assim, para o RC é importante resgatar as técnicas artísticas e práticas cotidianas, além, é claro, do conjunto de saberes imateriais como a língua, os mitos, a religiosidade. A finalidade de estudos tão amplos é conhecer, ou chegar o mais próximo possível, de conhecer a mentalidade destes povos, e então, adaptá-la para nossa realidade, reincorporando os valores perdidos, a comunhão com os deuses e a natureza, e, enriquecendo nossa comunidade com a produção cultural.

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Introdução ao Reconstrucionismo Celta, movimento cultural e religioso que resgata a fé e cultura celta da Antiguidade.

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Reconstrucionismo CeltaDe Ana Elisa Bantel (Slakkos Abonos)

Este texto é o conjunto de postagens outrora publicados no blog www.reconstrucionismocelta.blogspot.com.br mas já fora do ar. Deixo-o aqui disponível, sem nenhuma grande edição, praticamente na forma como estava antes disponível no blog, mas ainda com o mesmo intuito: informar novatos e curiosos acerca do que é o Reconstrucionismo Celta. Trata-se de 20 e poucas páginas que apenas introduzem o tema para o leitor leigo, mas capazes de informar e desfazer possíveis preconceitos.

Deixo a disposição e espero que seja de valia.

Definição

O Reconstrucionismo Celta é um movimento cultural e religioso nascido na década de 80 nos EUA, e criado por neo-pagãos que se sentiam insatisfeitos com a (in)fidedignidade cultural prestada por outras vertentes neo-pagãs à Cultura Celta da Antiguidade. Acreditando ser impossível dissociar os saberes religiosos da cultura na qual foram criados, o RC busca, então, resgatar não só as práticas religiosas, mas também a cultura material, a ética e moralidade, e os demais saberes imersos na definição de povos Celtas da Antiguidade. Assim, para o RC é importante resgatar as técnicas artísticas e práticas cotidianas, além, é claro, do conjunto de saberes imateriais como a língua, os mitos, a religiosidade. A finalidade de estudos tão amplos é conhecer, ou chegar o mais próximo possível, de conhecer a mentalidade destes povos, e então, adaptá-la para nossa realidade, reincorporando os valores perdidos, a comunhão com os deuses e a natureza, e, enriquecendo nossa comunidade com a produção cultural.

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Reconstrução de vestimentas célticas da Idadedo Ferro, utilizadas em celebrações.

É uma tarefa de longo prazo e que exige dedicação e estudo. Nosso método de reconstrução funciona, em poucas palavras, em dois passos: 1 – Estudamos através da literatura acadêmica, e principalmente das fontes primárias (textos da Antiguidade e do folclore céltico) para fundamentar nosso conhecimento. 2 – empregamos  conhecimento, através de produções artísticas (musicais, artesanais), da aplicação da ética na nossa conduta, e finalmente, na prática da religiosidade reestruturada. Tudo, é claro, observando a medida do possível, dos recursos, das leis vigentes e da disponibilidade de tempo. Nenhum de nós está vivendo em casas redondas sem eletricidade e água encana, é claro. Temos trabalhos comuns e boa parte vive nas grandes cidades, uma rotina bem diferente da dos Celtas da Antiguidade. Mas procuramos nos dedicar como podemos, e principalmente vivenciar as crenças célticas.

O RC encoraja cada praticante a buscar seu próprio conhecimento, estudando, transformando informações adquiridas em sabedoria pessoal, e em vivenciar o divino de forma inerente, ou seja, através da inspiração (Imbas na língua gaélica arcaica). No entanto, damos grande valor a diferenciar nossas experiências espirituais pessoais daquilo que pode ser comprovado como saber da Cultura Celta. Fazemos esta distinção denominando as experiências como Gnose Confirmada (GC), que são os saberes que fazem parte da tradição ou podem ser confirmados através das fontes e da história, e a sua vivência tanto no cotidiano quando na espiritualidade. E Gnose Pessoal Não-Substanciada (GPN), ou seja, aquelas experiências pessoais que não têm embasamento histórico, e até que surjam novas fontes para que se possa

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confirmar a veracidade, é compreendida apenas como pessoal, não é parte dos saberes célticos.

A harpa foi um instrumento bem difundido entre os

Celtas da Antiguidade, e está entre as artes cujaprática é incentivada.

A reconstrução da Cultura e Religiosidade Celta passa por 3 caminhos, mais ou menos coerentes com a estrutura social dos celtas da Antiguidade. Chamamos a estes de 1 – O Caminho do Guerreiro, aquele no qual o reconstrucionista busca estar sempre aprimorando suas habilidades guerreiras, através de artes marciais e da defesa da sociedade, além de expandir sempre sua relação com os deuses vinculadas a este caminho. 2 – O Caminho do Poeta, partilhado por aqueles que se dedicam ao sacerdócio (druidismo, clarividência, cura e a poesia), à música e a travessia entre os mundos, a fim de cuida e contribuir para com a comunidade, agregando inspiração . E, alguns podem discordar da existência deste, embora esteja cada vez mais presente com o desenvolvimento das artes materiais, o 3 – O Caminho do Artista, daquele que busca resgatar técnicas célticas mais variadas, como a costura e tecelagem, a cutelaria, a carpintaria, a música (mais uma vez), os artesanatos célticos como um todo (ourivesaria, trabalho em couro e etc). A arte é uma forma de canalizar concentração, devoção, expandir seus potenciais e desenvolver a Imbas. Arte/Ofício é uma palavra que pode agregar os outros caminhos do RC, uma vez que tanto o sacerdócio, medicina e a guerra foram e são profissões e envolvem técnicas. Boa parte dos reconstrucionistas, assim como os Celtas da Antiguidade dedicam-se a uma arte de outro caminho, no intuito de que esta o ajude a desenvolver-se no caminho que escolheu. Assim

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temos, por exemplo, sacerdotes carpinteiros, guerreiros músicos, curandeiros tecelões, entre todas as possibilidades.

Se após esta pequena introdução ficou com dúvidas e quer ir além, eu sugiro a leitura do CR-faq http://thecrfaq-br.livejournal.com/ , um site oficial do RC composto de perguntas e respostas. Se ainda assim, o leitor tem dúvidas, fique à vontade para perguntar em mensagem, e eu responderei em breve. No próximo post desta página, as subdivisões por Famílias Linguísticas dentro do RC.

Línguas Célticas

Celtas, como o leitor já deve saber é o termo que os estudiosos aplicam para definir um grupo linguístico, ou seja, uma cultura que partilhava línguas semelhantes, costumes, saberes, religiosidade, etc, igualmente semelhantes. Este conjunto cultural surgiu aproximadamente na Idade do Bronze (3500 a.c.) e vigorou até aprox.. o século 500 d.C. Dividiam-se identitária e politicamente em tribos, e apesar de todas as semelhanças que os colocam dentro de uma mesma civilização, podiam ser inimigos e guerrear entre si.As línguas célticas costumam ser divididas em sub-grupos menores, tais como o gaélico, falado por irlandeses e escoceses, ou o Lepôntico, que existiu no norte da Itália. Igualmente os reconstrucionistas costumam adotar os termos linguísticos para delimitar com mais exatidão a cultura e religiosidade que buscam reconstruir. É claro que a maioria das línguas célticas da Antiguidade se perderam, mas muitas têm sido estudadas e desenvolvidas novamente tanto por acadêmicos quanto por interessados no tema. Costuma-se dividir as áreas do Reconstrucionismo Celta em 4 sub-grupos linguísticos, que por sua vez, abarcaram no passado várias línguas tribais, em alguns casos até dezenas. Isto porque a proximidade entre tribos permitia uma certa troca cultural que as levava a se parecerem mais entre si, do que se comparadas com outras tribos célticas que habitassem a longa distância. Afinal, as tribos que viviam, por exemplo, na Escócia, conviviam com o mesmo clima, logo produziam de uma forma parecida; dispunham dos mesmos recursos; comercializavam os mesmos produtos, e assim, iam-se influenciando mutuamente na produção artística, desenvolvimento linguístico e acabavam por comungar com os mesmos deuses, embora com suas exceções.

Além disso, é preciso assinalar que as fontes de estudo são escassas, uma vez que os Celtas não tinham escrita, e quando esta chegou até eles, foi através do conquistador, Roma, que não compreendia sua cultura, e muitas vezes preocupava-se em denegri-la em razão da conquista.  Assim, a divisão em sub-grupos torna possível agregar as poucas informações de que dispomos como peças de um quebra-cabeças e reconstruir um panorama aproximado do que eram aquelas culturas, para assim reavivá-las. Estes sub-grupos costumam ser intitulados como Gaélico, Britônico, Gaulês e Celtas da Península Ibérica (ou Íbero-célticos), mas alguns deles podem ser ainda mais divididos, como é o

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caso do Gaulês, que no passado abarcou uma grande área desde a atual França até Áustria e Rep. Tcheca. Dentro deste sub-grupo há quem se dedique ao estudo do Bretão (no Noroeste da França) ou do Lepôntico, por exemplo. Já entre os que estudam os Íbero-célticos há quem estude os Galaicos (da Galícia), ou os Lusitanos (da metade sul de Portugal).

O mapa abaixo ilustra as regiões dos Sub-grupos linguísticos citados. A região marcada como nº 1 corresponde à do Reconstrucionismo Íbero-céltico, onde habitaram povos célticos como os Galaicos, Lusitanos, Vetões e Celtici. A região de nº 2 corresponde ao sub-grupo do Reconstrucionismo Gaulês, também dito Celtas Continentais. O nº 3 equivale ao Reconstrucionismo Britônico, oriundo da Britânia. E o nº 4 ao Reconstrucionismo Gaélico (Irlanda e Escócia).

Mapa aproximado dos subgrupos das línguas célticas das Antiguidade.

Aproveitando a oportunidade, vamos esclarecer uma confusão comum entre os que não conhecem o Reconstrucionismo Celta da Península Ibérica, que é achar que os Celtas desta região são de alguma forma Íberos, assim se referindo a todos como Celtíberos. O erro está que os Celtíberos foram um dos povos que viveram nesta região, mais especificamente no centro da península e se identificavam, pelo menos de acordo com algumas fontes clássicas, como

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um povo aparte tanto aos Celtas quanto aos Íberos (que habitavam a região mediterrânea da península). Este povo é comumente definido pelos acadêmicos como uma cultura, de fato diferente das outras duas, embora com várias características em comum com as mesmas. A península tem o nome de Ibérica, mas isto não significa que todas as etnias que a compuseram, foram no passado ibéricas. A exemplo disto temos não só os Celtas que ocupavam a porção Norte e Oeste da península, como também os Bascos, a noroeste. Então quando se fala em Celtas da Península Ibérica, fala-se de Galaicos, Asturienses, Celtici, e mais alguns, mas não se fala em Celtiberos, ou Íberos, ou Bascos. Pois estas são etnias diferentes da etnia Celta. 

Línguas e suas abrangências geográficas na Hispania pré-romana.

Expansão do Britônico e Gaélico.Já entre os subgrupos das Ilhas Britânicas, encontramos o Gaélico e o Britônico. O Gaélico é aquele que compreende as línguas faladas na Irlanda, o Gaeilge; Escócia, Gàidhlig; e Ilha de Man, o Manês. Já o Britônico compreende o Córnico, falado na Cornualha; o Galês, falado no País de Gales; e o Bretão, falado no continente, mais exatamente na Península da Armórica, França, também conhecido como Bretanha Francesa. Esta última língua, devido a sua localização continental costuma despertar alguma confusão também, afinal, o Bretão fica na França, e a França ficava na Gália. Mas é importante lembrar que o nome 'Gália' foi dado a esta região por Júlio Cesar, um estrangeiro romano, portanto ignorante da Cultura Celta, e mais interessado em conquistar do que entender. Então, quando nos referimos geograficamente aos Celtas, pode-se intitular os Bretões como gauleses (pertencentes à Gália), mas quando nos referimos a sua cultura, os intitulamos como britônicos. Parece confuso, e no início é mesmo, mas à medida que se estuda a história e cultura destes povos é possível compreender como as migrações levaram a estas singularidades. O mapa ao lado mostra a expansão das línguas britônicas e gaélicas. Em azul está a Escócia e o Gàihdlig; em verde a Irlanda e o Gaeilge; em vermelho a Ilha de Man e o Manês, terminando o grupo Gaélico. Em amarelo o País de Gales e o Galês; em laranja a Cornualha e o Córnico; e em roxo a Península da Armórica, ou Bretanha francesa, onde é falado o Bretão, completando, assim, as línguas Britônicas. Os campos em brancos compreendem a Iglaterra e França. 

E no que tange a línguas ficamos aqui. Espero que esta publicação tenha ajudado a explicar o que são e como se dividem as línguas célticas e suas localizações geográficas.

A Natureza do Sagrado

A religiosidade dos Celtas da Antiguidade era politeísta, ou seja, acreditava em vários deuses, e animista, encontrava na natureza emanações do

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sagrado. Perdurou numa Europa repleta de florestas selvagens, e numa sociedade rural, na qual a agricultura e pastoreio consistiam na base econômica, e ocupação predominante no cotidiano. Sendo assim, é muito natural que sua religião estivesse imiscuída da natureza e ciclo agrícola. Atendiam a um calendário que celebrava a predecessão das estações, regida pelos deuses. Entendiam montanhas, florestas, clareiras, lagos, rios e fontes como localidades sagradas, passagens entre o mundo mortal e o divino, fazendo destes os seus templos. Esta mentalidade se fundamente em compreender todo o mundo e a realidade como sagrados. Assim, a natureza não é só criação dos deuses, ela é os deuses. Um trovão nos céus da Gália é o deus Taranis. O rio Boine na Irlanda é a deusa Boand, assim como o rio Sena na França, é a deusa Sequana, de quem seu nome deriva.

O casal divino Rosmerta e Lugo, cultuados na Gália.(chamado Mercúrio pelos romanos).

Existem centenas de entes ‘sobrenaturais’, deuses e deusas catalogados tanto pela arqueologia quanto pela mitologia, a maioria tópicas, ou seja, cultuados em uma determinada região. No entanto, são todas tipicamente celtas, dentro de um padrão encontrado em todas as sociedades celtas. Este padrão celta de divindade obedece às seguintes características: Triplicidade, os deuses apresentavam 3 atributos, e muitas vezes, apresentavam-se com 3 faces, componentes de uma só personalidade. Como por exemplo Brigid (Brigantia, Bríg, Brigindu) deusa da artes/artesãos, do fogo/cuidados do lar e crianças, e, dos Bardos (sacerdotes responsáveis pela música, poesia e história). Outra característica deste padrão é a vinculação a determinadas localidades geográficas e/ou a animais. Assim como a deusa Macha, que nomeia a planície de Emain Macha, no Ulster (norte da Irlanda), e está associada ao cavalo.  

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Outro aspecto da religião dos Celtas da Antiguidade era o culto aos Ancestrais, um corpo “espiritual” de entes familiares falecidos, e a quem se rendia a primeira festividade do ano, e aquela que marcava o início do calendário, o Samhain (Samain, Samonios). Acreditavam na vida após a morte num Outro-mundo acessível, como não podia deixar de ser, através da natureza, como rios e lagos. Assim como os ensinamentos dos deuses, os Ancestrais são o espelho no qual as sociedades e indivíduos desejam se projetar, guardando sua história, feitos e exemplos, honrando-os e cultuando, para que a ética e a identidade perdurem através das gerações. Para tanto, guardar a herança cultural, a história dos mortais e dos deuses, e procurar igualar-se a eles, é o objetivo almejado nesta cultura, e cerne dos caminhos Reconstrucionistas.

Podemos compreender a religião dos Celtas da Antiguidade como fundamentada no culto a 3 tipos de entes sagrados: a Natureza e seus guardiões, os Deuses e os Ancestrais. E na observação e culto das 4 festividades pan-célticas, ou seja, encontrados em todas as sociedades célticas: O já citado Samhain, Imbolc, Beltaine e Lunasa. Em determinadas localidades, são também documentadas a existência de outras festividades, como na Galícia, onde se celebrava por volta do equinócio de primavera, a deusa Navia. Quando o Recons tem estas evidências, ele acrescenta a seu calendário, que é claro, podem não existir no calendário de Recons que cultuam outros panteões célticos.

O deus Cernunnos com chifres de cervo e em meio a animais, no caldeirão de Gundestrup, encontrado na Dinamarca.

Uma vez que estas festas marcam não só o calendário do RC, mas também marcavam na Antiguidade e marcam ainda, a observação dos ciclos da natureza e seus climas, fazemos a correspondência no Hemisfério Sul para os mesmos marcos climáticos, a que as festividades estão associadas no

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Hemisfério Norte. Isto porque entendemos que a natureza é divina e, portanto, um meio de comunhão para com o sagrado, logo é através dela, da observação dela e de experimentar suas epifanias que podemos reconhecer a realidade sagrada. Para exemplificar, se a festividade de Lunasa (celebrada em 1 de Agosto no Hemisfério Norte) marca na Cultura Celta o auge da influência do sol sobre a terra, do verão, calor e o momento da colheita, não há sentido em comemorá-la no inverno brasileiro, unicamente para atender à data, pois o fundamental não é a data, mas as manifestações da natureza. Fazemos então a inversão da seguinte forma: Samhain, celebrada no Hemisfério Norte no correspondente a 1 de Novembro, e no Hemisfério Sul a 1 de Maio; Imbolc, HN 1 de Fevereiro, e HS 1 de Agosto; Beltaine HN 1 de Maio e HS 1 de Novembro; e, Lunasa, HN 1 de Agosto e HS 1 de Fevereiro.

Este texto é introdutório e generalizante, em breve, com a inauguração de outras sessões, discutiremos de forma mais detalhada a religiosidade Celtas, bem como suas festividades e a natureza dos deuses.

Nemeton

    Como já havia dito no post que antecede a este, a natureza era tomada entre os Celtas como sagrada, determinadas localidades como ambientes aquáticos eram vistos como passagens entre os mundos, e dedicados aos deuses. Estes locais costumavam ser meios aquáticos, bosques e monumentos megalíticos, e em especial às florestas sagradas eram atribuídas o título de Nemeton. Esta palavra vem do proto-céltico nemeto- e significa, de acordo com Matasovic, "lugar sagrado, santuário".  Temos posta aqui a razão filosófica pela qual os templos construídos são tão raros em territórios habitados por Celtas antes da romanização: uma vez que a natureza é manifestação do sagrado, é ela própria o templo desta religiosidade. Os comentaristas clássicos relatam a existência destes santuários em todas as regiões habitadas por Celtas, desde os Gálatas na Ásia Menor, de quem se menciona uma localidade chamada Drunemeton; até a Península Ibérica, onde existiu um santuário chamado Nemetobriga e, na Escócia, Medionemeton. Infelizmente, estes santuários estão entre os primeiros que foram destruídos quando invadidos por Roma, uma vez que a proibição do sacerdócio druídico foi uma estratégia adotada para impedir as insurreições dos povos nativos.     Também o cristianismo não poupou a sacralidade da natureza, atacando-a na tentativa de extirpar aquilo que intitulou de paganismo. Vemos bem esta mentalidade na narração da conversão dos gauleses por São Martinho: "...em uma certa vila onde ele havia demolido um templo muito antigo, e havia se posto a cortar um pinheiro, que se erguia próximo ao templo, o sacerdote chefe daquele lugar e uma multidão de pagãos lhe fizeram oposição. E este povo, embora sob influência do Senhor, tenha permanecido quieto enquanto o templo era demolido, não podia permitir que a árvore fosse cortada. Martini cuidadosamente lhe disse que não havia nada sagrado em um tronco de árvore, e os inquiriu a honrar Deus a quem ele próprio servia. Ele acrescentou que havia uma necessidade moral pela qual a árvore deveria ser cortada, que ela tinha sido dedicada a um demônio." (De Vita Martini, de Sulpitius Severus, cap. XIII)

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     Demônio era o nome pelo qual os catequistas romanos chamavam a todo e qualquer deus(a) de toda e qualquer religião que não fosse a sua. Logo sabemos que o pinheiro em questão era uma epifania de um deus cultuado na região de Tours, França - onde São Martinho foi bispo - e o templo por ele demolido, nada mais era do que uma construção erigida para honrar o deus e o pinheiro em questão. Naturalmente os "pagãos" não se manifestaram quanto à derrubada do templo, posto que era uma construção humana e poderia ser reerguida (e talvez a briga com um fanático como Martinho, não valesse a pena). No entanto, colocar abaixo uma árvore sagrada, valia a briga. O que os missionários cristãos não compreendiam é que a natureza é uma manifestação do sagrado. A mesma natureza que abriga as suas vidas e lhes fornece alimento. Preocupavam-se sobremaneira com monumentos erigidos para abrigar algumas cabeças e/ou para representar o poder profano de alguns homens sobre outros, a exemplo de seus templos tão opulentos.

     O imaginário dos povos Celtas da Antiguidade, pelo contrário, reservava às florestas, suas árvores e clareiras o significado da vida e da eternidade. Um templo de deuses é construído por deuses, com a magia e o mistério da vida, não por pessoas. Vemos na obra The Mabinogion as florestas como ponto de encontro entre mortais e deuses, passagens para os Outros-mundos, onde a doença e a fome não existe, e impera a magia e eternidade. É nesta obra que Peredur, personagem que deu origem a Percival, em uma caçada na floresta, adentra um mundo encantado, onde homens mortos são mergulhados num caldeirão que lhes restitui a vida, e onde encontra uma árvore que queima por completo em um de seus lados, enquanto do outro permanece verdejante. Esta árvore fica próximo a um rio atravessado por ovelhas que, cruzando para um margem se tornam negras, e para outra se tornam brancas. Assim, a árvore simboliza a eternidade e aquilo que há de mais sagrado na criação: a vida.

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     Por isso o Reconstrucionismo Celta também busca na natureza seus templos, bem como a comunhão com o sagrado. Seja num culto realizado numa clareira, numa oferenda entregue a um lago ou simplesmente passando um tempo sob uma árvore e passeando num bosque. As árvores continuam nascendo e os Outros-mundos continuam lá para serem acessados, independente da interrupção que esta crença sofreu. Basta encontrar um daqueles locais aonde o "véu é mais fino" como se diz entre os neo-pagãos.

Águas

 Outro ambiente natural amplamente cultuado pelos Celtas na Antiguidade eram os meios aquáticos: mares, rios, lagos, nascentes e etc. eram sempre tidos como meio de passagem entre os mundos. Na Irlanda o mar era governado pelo deus Manannán Mac Lir, e lá, a Oeste, ficavam suas ilhas paradisíacas, aonde não existia fome, doenças, velhice, nem a morte. Algumas destas ilhas eram Mag Mell (Planície dos Prazeres), Tir na m'Beo (Terra das mulheres), Tir na Og (Terra da Juventude), entre outras. Assim, o Mar é visto como meio de passagem e o deus Manannán como guardião dos caminhos entre os mundos, um patrono de magia e eternidade. E seu pai, Lir, era o próprio deus das águas, aquele que deu origem a todos os seus cursos, assim como seus filhos, e suas dádivas. Na Brittania, era cultuado o deus Nódens também associado às águas, mas especialmente invocado em busca de cura.     Mas mais comum era a associação dos cursos d'água com divindades femininas. Na Alemanha e Britannia era cultuada a deusa Sulis, matrona, nesta última região, de piscinas termais, e invocada em busca de saúde, cura e justiça. Semelhantes a ela, são Sulea, cultuada na Galícia, e Sequana no rio Sena, ambas com as mesmas qualidades. Uma deusa que também possui os atributos da cura e é associada a nascentes é Brigid/Brig/Brigantia. Se analisarmos a nomenclatura dos nomes destas deusas vamos encontrar mais uma associação em comum entre elas: Enquanto Sulis e Sulea parecem derivar da raíz proto-céltica suli- que significa sol; a raíz Bríg- significa alto, altura, daí a possível tradução de seu nome como Altíssima. Bem, Bríg não está associada ao sol, embora seja altíssima, mas está ao fogo. De forma que podemos ver estas deusas como pertencentes a um grupo de deusas benfazejas relacionado a cura, saúde, calor e vitalidade.     Algo típico da religiosidade céltica é o culto a fronteira através das águas, em geral associadas ao aspecto guerreiro de certas deusas, como a gaélica Morrigan, associada a vaus e à guerra, com papel fundamental na conquista da Irlanda e expulsão dos fomorianos, mas também uma deusa com o dom da cura, uma vez que ressuscitava os guerreiros que tombavam na Batalha de Moytura. Similar a esta deusa, é Navia na Galícia, que não só nomeia um importante rio da região como também era amplamente invocada para a guerra, sob o epíteto de Corona (chefe guerreira), e mais uma vez como Morrigan, tem em torno de si papel no folclore contemporâneo, como a lavadeira do vau, uma ou 3 figuras femininas que aparecem a homens e/ou exércitos que cruzam cursos d'água, lavando suas mortalhas e avisando-lhes da morte iminente.     

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Em torno deste culto, a deusas guerreiras e seu papel na defesa das fronteiras, está a deposição ritual de armas e jóias, até hoje encontradas em investigações de arqueólógicas. E por sua vez, talvez destas deposições, venha a lenda da Dama do Lago, que guardava uma espada mágica, Calledfwylch, e a concedeu a Arthur, desta maneira legitimando seu reinado e outorgando-lhe o dever sagrado dos reis: Justiça e defesa das fronteiras. E para quem, é claro, a espada voltou em mais uma deposição, após a morte de Artur - ou da sua passagem para Avallon, mais uma ilha mágica, aonde teria encontrado a cura e a vida eterna, sob a guarda da fada Morgana. Não por acaso o nome desta personagem do Ciclo Arturiano, se assemelha ao de Morrigan, pois como querem alguns mitólogos, a fada Morgana seria uma posterior adaptação desta deusa, levada por imigrantes gaélicos para o País de Gales.    Por fim, lembremos de uma associação menos recorrente, mas também existente, entre água e fertilidade, muito bem representada na figura de Boann. Esta é a deusa gaélica que dá nome ao rio Boinne, e cujo nome significa vaca branca, da raíz bó winda. Boann aparece, assim, como provedora de alimento e doadora de vida através do leite. É também a mãe do deus Angus, deus do verão e da vida vegetal.     Temos portanto assinaladas os 3 conjuntos de atributos sagrados da água: cura-vida-fertilidade; morte- eternidade- Outro-mundo; e por fim, guerra-fronteira-justiça

Céu

O culto Celeste/Solar e o ideal de masculinidade

Como integrante da família indo-européia, e sociedade agrícola, os Celtas da Antiguidade não poderiam deixar de cultuar o céu com seus astros, sua predecessão de chuvas e estações, e sua vital importância para a agricultura. Este culto, aliás, expandiu-se entre estes povos de tal maneira, que chegou a criar algumas particularidades notáveis, como a roda, simbolizando o sol e amplamente utilizada em ritos de fertilidade. Além desta, também a suásticas (esta muito difundida também entre indo-europeus), simbolizava o sol, seu

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movimento, e sua relação com o desenrolar das estações. Em verdade, estes dois símbolos são alguns dos mais encontrados nas regiões outrora chamadas Gália. Suásticas decoraram tapeçarias, utensílios domésticos, altares, e até armamentos, comumente ligados a cenas de batalha. A roda igualmente encontrada nestas situações, estava também presente em sepulturas, acredita-se, como amuleto que protegesse o morto em sua jornada, e, em deposições votivas em rios (comum em busca de cura). Foram, está claro, além de símbolos do sol e do ano, amuletos de boa sorte vinculados a vitória e saúde.

Taranis galo-romano.A roda é também o símbolo associado a um dos deuses mais amplamente cultuado na Gália, Taranis (O Trovejante), deus que após a invasão e assimilação cultural romana, passou a ser associado a Júpiter. Este deus é comumente representado portando um roda, e em sua honra era celebrado o Solstício de Verão, depois aculturado pelo cristianismo e transformado na festa de São João. Nesta ocasião, os antigos gauleses faziam rolar dos pontos mais altos das plantações, grandes rodas em chamas, acreditando ser este fogo protetor contra pragas, granizo e geada. Além de associado ao sol, e como seu nome mesmo sugere, ao trovão e chuva, Taranis parece ter ligação com montanhas e águas de rios - talvez por esta razão, rodas fossem entregues como oferendas em rios. A exemplo deste deus, encontramos entre os celtas da Galícia a divindade Reue, tido pelo epíteto Laraucos, associado a uma  montanha de mesmo nome em Portugal, e que interfere em seu clima. A este deus são encontradas aras votivas vinculando-o também a Júpiter e invocando-o como líder guerreiro, para alcançar a vitória, e em alguns casos também a cura. Alguns estudiosos vinculam seu nome à raíz que deu origem a palavra 'rio' da língua portuguesa, de forma que o vemos também como um deus de cura, guerra e agricultura.

É interessante notar a leve semelhança destes deuses com Nodens nas Ilhas Britânicas, deus vinculado a águas, cura e caça. E este por sua vez ao gaélico

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Nuada, que embora não tenha sido associado pela interpretativo romana a Júpiter (uma vez que Roma não conquistou a Irlanda), ocupava em seu panteão o papel de rei dos deuses, assim como Júpiter no panteão romano. Uma característica em comum entre a figura do rei entre os povos célticos, e a de Júpiter entre os romanos, é a justiça como atributo, e no caso dos reis célticos, como um dever. Em proto-celta temos as palavras wīryo- para 'verdade', wīro- para 'verdadeiro' ou 'leal', e, wiro- para homem, de onde vem a raíz para outra palavra do português: 'varão', além de 'verdade'. Vendo por esta ótica podemos interpretar a figura do rei como significando uma aglomeração de ideais na Cultura Celta, que envolvem a masculinidade com a lealdade e a verdade, logo com a justiça. E para fechar este raciocínio, lembramos que Plínio relatou a existência de um sacrifício humano na Gália, no qual se queimavam homens vivos (acredita-se que houvessem praticado algum crime) em um grande boneco de vime, em honra ao deus Taranis, o que seria uma punição e emprego da justiça.

Variações da Cultura Castrexa (Galícia) de rodas, suásticas e triskles.Concluindo, percebemos entre os Celtas da Antiguidade uma ideologia que associava o céu, o sol, a precipitação de chuvas e sua influência sobre a agricultura com a virilidade e a fertilidade masculina. E os valores a esta ideologia associados são aqueles que gravitam em torno do rei: a lealdade, verdade, justiça, governança e prosperidade da tribo, que depende da agricultura. Os deuses solares/celestiais desta cultura são responsáveis assim, pela guerra, idealizada como caminho para a justiça e prosperidade, e, em alguns casos concedentes de cura.

Tempo e Calendário

Este post não pretende se aprofundar nas celebrações anuais do Reconstrucionismo Celta e dos Celtas da Antiguidade, pois este tema faz parte e pode ser mais melhor abordado na sessão Culto. Ao contrário, aqui explicamos como se dava, de forma breve, o calendário céltico da Antiguidade e como o reconstruímos.

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Como entre todos os povos indo-europeus, existiu entre os Celtas da Antiguidade um calendário agrícola e sagrado. Desde o neolítico, entre 5000 ou 4500 a.C. (dependendo da região do oeste europeu), a reforma econômica e cultural da agricultura inaugurou uma nova forma de compreensão do universo e da humanidade neste. A vida é o âmago da sacralidade em qualquer religião, e, assim como a agricultura depende da predecessão das estações, e a vida humana da agricultura, a vida vegetal e os ciclos naturais ganharam importância nas religiões neolíticas. A volta completa do sol em torno do planeta, em 365,5 dias, o ano e suas estações, tornaram-se assim sagrados, e mitologias passaram a explicar de forma alegórica, a relação entre o divino e a vida vegetal. Foi assim que os marcos climáticos, os astros, os deuses, e suas influências sobre a terra, ganharam demarcações no tempo e celebrações ao longo do ano.O Reconstrucionismo Celta toma como celebrações apenas aquelas festividades que foram atestadas na Antiguidade, cada grupo linguístico celebrando suas festividades, mas na falta de descrições toma-se emprestado os relatos de outros grupos célticos para preencher lacunas. O ramo linguístico no qual sobreviveram mais relatos a respeito das celebrações e do calendário sagrado foi o gaélico (irlandês), e neste a maioria dos recons se baseiam. Entre os festivais, 4 são os chamados pan-célticos, ou seja, aqueles que existiram em todas as sociedades célticas, embora cada um pudesse guardar suas características próprias. Estes festivais são Samain/Samonios/Samhain, Imbolc, Beltane/Beltaíne e Lunasa/Lughnasah. Além deles, em algumas regiões foram documentadas outras festividades, comuns ao mundo i.e. por exemplo o Solstício de Verão na Gália, o Solstício de Inverno em Gales, o Equinócio de Primavera na Galícia, e o festim de Tara na Irlanda.

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Calendário luni-solar de Coligny. Encontrado naFrança em 1897. 

Entre os Celtas da Antiguidade o ano tinha início na celebração de Samain, segundo o calendário de Coligny e a mitologia gaélica. Esta celebração se dava na primeira noite, ou 3 primeiras noites do mês de mesmo nome, conforme a tradição céltica de que a jornada tinha inicio ao cair da noite. Pode parecer estranho dentro do paradigma Ocidental contemporâneo, em que a jornada começa às 0 horas e, na mentalidade mais tradicional ao raiar do dia. Mas entre os Celtas da Antiguidade, era assim: o cair da noite inicia uma nova jornada, e a escuridão precede a luz, tanto assim é, que a palavra para 'semana' era entre os britônicos 'wytnos', que vem do proto-celta wyt = oito, e, nos = noite. Assim, também o ano começava na escuridão, uma vez que a data de sua celebração se situava no início do mês de novembro, que no hemisfério norte corresponde a chegada o frio e a diminuição da duração do dia. Nesta ocasião celebrava-se o fim e o reinício do ano e do cosmos. Era também a festa que honrava os Ancestrais. Acreditava-se que nesta noite, desfazia-se a separação entre este e o Outro-mundo, de forma que vivos e mortos podiam passar de um a outro livremente. Nesta noite era cerimonialmente apagado o fogo do ano passao e aceso um novo fogo para o ano vindouro.

A celebração seguinte é Imbolc, que possivelmente vem do proto-céltico wamba = útero, e significa 'no útero'. Dá-se no auge do inverno,

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correspondendo ao primeiro dia de fevereiro no nosso calendário, quando no hemisfério norte ocorre a maior incidência de neve do inverno. Esta é a celebração da deusa Brigid/Bríg/Brigantia/Brigindu, a altíssima, deusa do fogo e da forja. Imbolc e Brigid concedem o fogo do lar, o calor necessário ao inverno, e a proteção da vida de crianças e filhotes do gado, bem como das lactantes, abençoando assim a produção leiteira.Em seguida, e oposto a Samain, está a celebração de Beltaine, ou Fogos de Bel, deus solar e protetor contra pragas e doenças do gado. Na Antiguidade era uma festividade que reunia toda a tribo. Os sacerdotes ascendiam duas fogueiras, e entre os fogos sagrados, era conduzido o rebanho a ser abençoado. E por último, em oposição a Imbolc, ocorre a celebração de Lughnasadh, na qual se honra o deus Lugh/Lugo/Lugus, não atestada em todas as regiões célticas, embora o deus em questão seja pan-céltico. nesta festividade, que ocorre no início de agosto, celebra-se a colheita e suas dádivas, firmam-se compromissos e faz-se negociação. Era também uma festa marcial, com a ocorrência de jogos e disputas com armas em honra do deus.É isso. Para conhecer melhor estas festividades na Antiguidade e a reconstrução de sua ritualística no presente, aguarde a sessão de cultos e ritos.

Triplicidade

Este é de longe o post mais difícil, por carecer de fontes históricas diretas para explicar o tema, todas as interpretações são subjetivas. Estou a uma semana me enrolando para escrever, sem saber como, então resolvi apenas apontar as manifestações da triplicidade no imaginário céltico, e suas interpretações, uma vez que é um tema em aberto:

Triskle de New Grange (Irlanda) 1 - A triplicidade está inscrita no Triskle, símbolo pan-céltico oriundo do período Neolítico, encontrado em New Grange (Bru na Boinne) que data de aprox. 300 a.C.  Era iluminado, junto com outras espirais, no Solstício de Inverno, simbolizando o renascimento dos mortos e vegetais. Outros túmulos megalíticos, além de New Grange também tiveram a triplicidade representados, tais como Maes Howe, na forma de 3 recintos que guardavam os mortos. A triplicidade é compreendida no Neolítico, como representando morte e renascimento, tanto humana quanto animal e vegetal. Perdurou por todo o Oeste europeu durante a Idade Antiga e é também o símbolo adotado pelo Reconstrucionismo Celta.

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Triskle da Citânia de Briteiros (Galícia).

2 - A triplicidade está na divindade. Sinônimo de celticidade é a presença de deuses(as) tríplices, representados com 3 faces e expressando 3 funcionalidades (motivo pelo qual também é complicado estabelecer um padrão para panteão céltico).3 - A triplicidade está expressa nas sociedades Indo-européias, de acordo com Dumézil, na qual 3 funções sustentavam  a sociedade: 1 - a Agricultura (aqui tbm inscritos artesãos), produtor econômico. 2 - a Guerra, mantenedora da segurança das fronteiras, e fundamental para que o trabalho da 1ª função se desenvolva. E 3 - o Sacerdócio, produtora intelectual e espiritual, e, provedora da justiça.

Muitos recons também vêem a triplicidade expressa na cosmogonia, através de 3 esferas do Cosmos, um conceito surgido no Druidismo moderno. Assim, o universo estaria estruturado em 3 reinos: Terra, habitat dos espíritos da natureza e deuses vinculados a soberania e fertilidade da terra; Mar, habitat de deuses vinculados a cura, nascimento e morte; e, Céu, habitat de deuses vinculados a justiça e liderança social.

Ética

Valores

No primeiro texto desta sessão quero falar dos valores que se referem a qualquer classe e gênero, valores gerais, aqueles que se esperam tanto de mortais quanto de imortais. Os valores que compõe o pacto social e dão identidade a uma sociedade. Vou fazer isso citando e comentando algumas fontes, mas que fique claro que vou fazer aqui um recorte, mesmo porque os textos que tratam de conduta e honra estão espalhados, não há uma compilação. Portanto, esta é minha interpretação, aquilo que tenho conhecimento e a forma como me aproprio dos valores célticos da Antiguidade.O relato de Diógenes Laertius acerca de sua viagem pela Gália possui um trecho no qual comenta a respeito dos ensinamentos druídicos. Diogenes teria perguntado a um druida o que ensinavam a seus pupilos, e, talvez procurando dar-lhe uma resposta breve mas abrangente, o druida respondeu-lhe na forma da seguinte tríade:"A honrar os deuses, não fazer nenhum mal, e exercitar a bravura."Vamos por partes: Honrar os deuses. Na mitologia gaélica refere-se aos deuses constantemente como mestres das artes, ou seja, um deus é sempre perfeito em sua arte, suas características e atributos. Honrar os deuses significa prestar-lhes homenagem, na forma de culto, mas principalmente na reprodução de suas artes em nossas vidas. Portanto, procuremos conhecer os deuses e suas artes e sermos o mais próximo da perfeição possível: mantenhamos sempre acesa a chama do lar que Brigid nos trouxe. Sejamos excelentes nas técnicas artesanais e em nossas profissões, assim como Lugh (o mestre em todas as artes), Goibniu (o ferreiro), Em (o poeta e historiador), Diancecht (o médico) nos ensinaram. Ao plantar, nos lembremos da Soberania,

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para que tanto as técnicas agrícolas, quanto o respeito pela terra e sua fertilidade sejam contemplados. Ao governar, que sejamos justos e responsáveis como Nuada; e ao lutar que tenhamos toda a fúria e força de Morrígan. Honrar os deuses é, além de prestar-lhes culto, procurar reproduzir em nós mesmos e na sociedade as suas artes, é nos espelharmos neles. Por último, não nos esqueçamos de que além de nós, a divindade se manifesta em toda a natureza, e portanto, devemos respeitá-la também.

Castell Henllys, hillfort recriado em Pembrokeshire, Inglaterra.

"Não fazer nenhum mal" implica compreender que o mal não é um só, mas se esconde a cada passo do nosso caminho e, julgamento e responsabilidade precisam estar sempre em movimento, para que o mal não se faça através de nós. E, dentro do mesmo raciocínio, "exercite a bravura" significa que bravura não é algo que nasce conosco, mas também uma arte que precisa ser exercitada, aprimorada, e dela depende o afastamento do mal que tente se fazer através de nós, ou dos que cruzam nosso caminho. Ou seja, temos responsabilidade tanto sobre o mal que podemos causar, quanto sobre o mal que permitimos que ocorra.Eu sei, na teoria é lindo, mas na prática é dificílimo. Não vivemos numa sociedade tribal, mas numa que tira de nós o poder de fazer justiça, colocando-o exclusivamente na mão de um Estado, e nos transformando em números, alheios ao próximo, individualistas e, verdade seja dita, covardes. Além de estarmos imersos num estilo de vida altamente agressivo para com o meio-ambiente. Por isso já nascemos em desvantagem, com o mal e a desonra por toda parte. O caminho reconstrucionista deve, portanto, nos  reaproximar dos deuses, retomar suas artes e também seus valores.

Quero deixar também um trecho das instruções do rei Cormac MacArt, quando lhe foi perguntado quais os bons costumes a serem seguidos por uma tribo. Neste trecho vemos a importância de manter a lealdade e a palavra dada, (imprescindível numa sociedade sem escrita) ao honrar tratos e contratos; Valorizar a sabedoria e conversa, mantendo as tradições; e, finalmente, que a guerra seja usada para proteger os mais fracos, e nunca para se sobrepor a eles. O rei disse assim:Castro de Viladonga, Belmonte, Galícia.

"Ter assembléias contantes.Estar sempre inquirindo os homens sábios.Manter a ordem nas assembléias.Seguir o costume antigo.Não agredir os miseráveis.Manter a fé nos tratos feitos.Consolidar o parentesco (afinidade).Que guerreiros não sejam arrogantes.Manter contratos fielmente.Guardar as fronteiras contra todo o mal."

E por último, sugestões de uma boa conduta de acordo com o rei Cormac MacArt, ao ser perguntado como fora em sua juventude, ele respondeu:"Eu fui um ouvinte entre as árvores.

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Eu fui um admirador das estrelas.Eu não revelei o segredo de nenhum homem.Eu fui moderado nos salões (banquetes e festas).Eu fui tenaz nas rixas.Eu não fui dado a prometer.Eu reverenciei os anciãos.Eu não falei mal de nenhum homem em sua ausência.Eu tive apreço em dar o que me era pedido."

O rei disse também:"Não escarneça de nenhum velho, embora sejas jovem.,nem nenhum pobre embora sejas ricos,nem nenhum pelado, embora estejas bem vestido,nem nenhum manco, embora tenhas destreza,nem nenhum cego, embora enxergues bem,nem nenhum inválido, embora sejas robusto,nem nenhum tolo, embora sejas sábios"

Este é um bom começo para se conhecer os valores e moralidade célticos da Antiguidade, e já nos dá bastante em que nos policiarmos. Foi bom reler para compartilhar aqui estes valores, pois é sempre importante relembrar, e de alguns estava esquecida. E afinal, como disse, a vigilância sobre nós mesmos deve ser constante.

Honra e Ancestralidade

     O estranho de escrever este post é que, na verdade, estou me propondo a falar de algo ainda presente na nossa cultura (ocidental, logo, majoritariamente européia), embora esteja fora de moda, e seja tão pouco lembrada. Digo, algo que se encontra em todas as culturas indo-européias da antiguidade, que é latente na mitologia celta e citada pelos comentaristas clássicos. Algo que permaneceu, que perdurou a despeito da 1ª invasão cultural oriunda do Oriente Médio, a cristianização. Algo que estava entranhado demais na identidade dos celtas para ser suplantado pelos parâmetros hebraicos, e acabou por ser absorvida por esta religião.Tree of Life, de Morris William.

      Esta semana traduzi uma citação de um sujeito estadunidense de nome Vincent Elund e que se identifica como Proud Heathen; uma citação NEO-pagã, contemporânea. E dizia o seguinte: "Meu nome não é só meu, foi emprestado de meus ancestrais e deve ser devolvido sem manchas. Minha honra não é só minha, será herdade por meus descendentes e deve lhes ser entregue intacta. Meu sangue não é só meu, é um presente para as futuras gerações e deve ser carregado com responsabilidade."  Postei numa rede social e alguém comentou: "Isso eu aprendi em casa". Sabe porque uma pessoa no sul do Brasil aprendeu em casa a mesma noção de honra que um sujeito em outro continente? Porque partilhamos uma mesma raíz antiquíssima, anterior mesmo ao conceito de indo-europa, é a Cultura Celta, do Oeste Europeu, que passou a se desenvolver e abranger esta região desde o Mesolítico, há pelo menos 5.500 a. C., ou seja, aprox. 6.000 anos antes da cristianização. É uma raíz muito profunda, de uma árvore muito antiga, da qual

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somos apenas folhas novas, e percorrendo de volta galhos, tronco, raízes até a semente, temos uma procissão de ancestrais contribuindo para o desenvolvimento desta árvore.      O que árvores, honra e ancestrais têm em comum, afinal? Porque temos 'árvores genealógicas' representando as gerações de nossa família ao invés de qualquer outra coisa, como, 'rios genealógicos' ou 'estrela genealógica' ou 'deserto genealógico' e etc? A língua falada por nossos ancestrais explica. Dá uma olhada na relação entre as seguintes palavras oriundas do proto-céltico que separei aqui:

nemeton- santuário natural (florestas, montanhas, clareiras, rios, lagos etc)nemeto- nobre (membro de prestígio de uma sociedade, qualidade de pessoa honrada)φrāko-φro-widā- honrawidu- árvorewīro- verdadesu-wiro- nobre

de Duncan George.     Estes termos vêm do Etymological Dictionary of Proto-Celtic do Ranko Matasovic, e do English/Proto-Celtic Word List  da University of Wales. Como se pode ver as palavras 'verdade', 'honra', 'nobre' e 'árvore' têm a mesma raíz: 'wi-', estão relacionadas, partem de um mesmo conceito cultural. Outra palavra do proto-céltico para designar 'nobre' é 'nemeto-', com a mesma raíz de 'nemeton' 'santuário natural' típico da religiosidade céltica e em geral encontrado em clareiras e bosques - já explicado neste post aqui . Demonstram a ligação entre árvore e sabedoria, honra e ancestralidade, honestidade e

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prestígio, presente nas culturas célticas. A idéia de que somos herdeiros dos atos de nossos pais e avós, e dos que vieram antes deles, e que as futuras gerações herdarão os nossos, pois estamos todos ligados construindo uma família, que para ser forte como um tronco, sábia como raízes, dar bons frutos e ter prestígio, deve ser honrada. Deve manter uma postura de verdade para consigo, com a família e com a sociedade, e responsabilizar-se com esta criação. A tribo, para os celtas, era uma dessas criações, partilham os mesmos ancestrais, a mesma raíz. E para fazer parte desta árvore, deste grupo, é preciso ser nobre de caráter (nemeto-), e o reconhecimento desta unidade, era estar presente nos rituais da religiosidade oficial, que reuniam toda a tribo e ocorriam nos Nemetons.     Enfim, 'honra' para os Celtas da Antiguidade significava reconhecer-se como membro de uma família e uma tribo, que inclui seus membros mortos. É reconhecer que atrás de si há uma imensidão de ancestrais que deram vida, sangue, suor, nome, sabedoria e caráter para que o indivíduo possa existir, e que como parte desta tribo, um dia este indivíduo deixará de ser folha em desenvolvimento, e será tronco, e seus atos em vida, serão a força ou a fraqueza da árvore. Somos responsáveis pelo passado e o futuro, com nossos ancestrais e as gerações ainda por vir. Para quem tem família, a novidade que escrevi aqui foi sobre a relação entre árvores, honra e ancestralidade, a parte sobre responsabilidade não é novidade porque o crucial nossos ancestrais cristãos tiveram a sabedoria de conservar, embora seja um conceito intrinsecamente "pagão", como chamavam aos politeístas.

Hospitalidade Sagrada

Hospitalidade e Reciprocidade

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de Will Worthington      É bem conhecida a característica da sociedade céltica da antiguidade que tange os deveres da hospitalidade.Estrabão mencionou a importância e sacralidade deste conceito entre os Celtas da Península Ibérica, e Júlio César também o menciona na Gália. Também os ciclos mitológicos irlandeses e galeses estão repletos de contos que trazem a hospitalidade como valor, como é o caso do conto 'Branwen filha de Llyr', do primeiro ramo do Mabinogion. Nesta obra as tramas se desenrolam em torno dos deveres e direitos de hóspedes e hospedeiros, e no conto em questão uma guerra se inicia entre Britânia e Irlanda em razão do descumprimento da lei da hospitalidade por parte dos britônicos para com seus hóspedes irlandeses. Estes conceitos estão presentes na nossa cultura, ainda que diluídos e transformados, no entanto, podemos expandir nossa compreensão dos contos a partir de um olhar sobre a questão da reciprocidade entre indo-europeus como um todo.      Para Ceisiwr Serith, estudioso das religiosidades i.e., o mundo, o cosmos destes povos fundamentava-se na ideia de circulação e reciprocidade, tudo que vai volta. A esta ideologia o autor chama de Xartus e é expressa na simbologia da árvore do mundo, circundada pelas águas primordiais, constantemente em movimento, e, no ciclo natural da árvore ao longo das estações. Percebemos esta base na mitologia céltica dentro do conto (também do Mabinogion) que já mencionei neste texto aqui, no qual uma árvore ladeada por um rio verdeja de um lado e flameja de outro, enquanto ovelhas atravessam o rio, uma de cada lado, mudando sua cor. Perceba que esta alegoria não só trata da vida, morte e renascimento, mas também de reciprocidade, que mantém o equilíbrio entre as margens e suas ovelhas.      Agora, voltando para Serith, de acordo o autor este equilíbrio e reciprocidade fazem-se latente no costume i.e. da sagrada hospitalidade: 

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" *ghosti- é uma palavra indo-européia que significa "aquele com quem alguém tem uma obrigação de reciprocidade e hospitalidade". Nossas palavras 'guest' e 'host' vêm ambas desta palavra, e são exatamente o que o conceito *ghosti-principle implica. Há uma interação entre pessoas, e entre as pessoas e os deuses, de acordo com as leis da hospitalidade. A sociedade está unida por uma troca de presentes, por agir como hospedeiros em algumas ocasiões e como hóspede em outras. Da mesma maneira estamos ligados aos deuses pela oferta de presentes e recebimento de suas bênçãos. Esta é a origem da versão indo-européia de sacrifício... uma refeição compartilhada na qual as pessoas fazem o papel de hospedeiro e os deuses o de hóspedes. Uma vez que os deuses conhecem as regras da hospitalidade, eles estão "obrigados" a servirem de hospedeiros numa outra oportunidade, assim concedendo-nos favores."     Esta situação está retratada na íntegra no conto 'Como Cormac Mac Art foi ao reino encantado', da mitologia gaélica em que o deus Mánannan Mac Lir, em viagem a Tara, está no papel de hóspede do rei Cormac Mac Art, e concede-lhe como presente um ramo de macieira que ao ser brandido sonava uma canção feérica tão bela que extirpava toda a tristeza e doença de quem pudesse ouvi-la. Mais tarde no mesmo conto, o rei viaja para o outro mundo e hospeda-se na casa do deus, onde eles desenrolam seus papeis nesta lei sagrada e tendo os dois executado bem seus papéis, fundam uma aliança que termina na oferta de bênçãos para Cormac, o rei da Irlanda, e consequentemente, para todo o reino.      Para além de legitimar um rei, a sagrada lei da hospitalidade harmoniosa o mundo profano e o mundo sagrado, o nosso e o dos deuses, através da oferta de hospitalidade por ambas as partes. E para honrar a comunidade, a tribo, aplica-se a ideologia nas relações sociais, com nossa família, amigos, vizinhos e etc, mantendo e renovando laços de parceria. Para o antropólogo Henri Hubert, cerimônias de potlarch ocorriam na Gália após o regresso de incursões militares vitoriosas sobre os territórios de outras tribos, consistindo num banquete ofertado pelo rei aos súditos, e na troca de presentes entre os espólios de guerra destes e os dos convidados. Nestas cerimônias a posição ocupada por cada guerreiro em torno do banquete e os presentes trocados eram uma demonstração do prestígio adquirido por cada indivíduo na incursão, e quão honrado era perante os olhos da tribo. Assim, a troca de presentes, a reciprocidade, estabeleciam a importância que cada indivíduo tinha para a sociedade e fundamentava a união, sendo o rei o anfitrião máximo da tribo.      Para terminar, vemos através de superlativos da mitologia, que a sociedade céltica da Antiguidade estava de tal forma atrelada a este dever sagrado, que presentear um hóspede e/ou um anfitrião podiam ser uma tarefa penosa para a manutenção da honra. No conto Pwyll, príncipe de Dyved (também do Mabinogion), através de um xiste, Gwawl pede a noiva do rei como presente, e este sem ter como negar, acaba por cedê-la, para mais tarde, também através de um xiste, forçar Gwawl, agora como anfitrião, a ceder toda a comida do seu banquete, e a si mesmo como presente ao seu hóspede, sendo assim, deposto de sua posição no banquete, humilhado e aprisionado. Ou seja, o cumprimento desta lei estava diretamente relacionado à posição e status de um indivíduo na sociedade, e seu descumprimento ou cumprimento irresponsável podiam levar ao desprestígio e até ao ostracismo.

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Conceito e Respeito

Você se identifica mesmo com o RC ? - Ou, porque não existe Ecletismo, Panteísmo ou Monoteísmo no Reconstrucionismo Celta.

     Algo que muitas pessoas nas vertentes neo-pagãs não compreendem é que, embora a moral e filosofia de religiões politeístas admitam que verdade é plural, estas não admitem em seu seio abstração de suas definições. Porque qualquer religião tem seus conceitos e preceitos, aquilo que a caracteriza e define. Muitos neo-pagãos não estão imersos em religiões, mas naquilo que chamam de 'Caminho Espiritual', ou seja, uma espiritualidade própria, que agrega uma verdade própria, fundamentada na mistura e união deliberada de aspectos de várias religiões e espiritualidades diferentes, e que, muitas vezes são conflitantes entre si. Isto é um resultado da cultura da segunda metade do séc. XX, quando o Ocidente saiu de 2 guerras mundiais e foi, direta ou indiretamente envolvido numa bipolarização política do mundo que espalhou ditaduras por toda a parte. Foi um século difícil. Em poucas e simples palavras, estava todo mundo cansado de regimes que sublimavam a identidade individual das pessoas colocando-as a serviço de Estados-Nações, dizimando-as aos milhares. A reação natural foi o questionamento de todas as tradições e identidade nacionais, regionais, religiosas, étnicas, e etc. Quer ver um bom exemplo desta reação? O movimento Hippie. Amor livre, recusa a tradição, abstenção total da política, contrário a guerras, e, note: abstração total da espiritualidade, conjugando a ela o 'livre', e a recusa a tradições. O resultado disto, no âmbito religioso do Ocidente foi o crescimento de conceitos e religiões orientais, como o Reencarnacionismo e o Budismo. A década de 60 e 70 inventou o Ecletismo Religioso, e não fosse por esta década, o Neo-paganismo estaria ainda hoje restrito a grupo iniciáticos e restritos às Ilhas Britânicas, e com muito, mas muito menos força nos EUA, talvez sequer tivesse chegado ao Brasil, com raríssimas exceções.     O que quero deixar claro aqui é que o Ecletismo Religioso é um conceito contemporâneo, que no máximo remonta ao Gerald Gardner e às Ordens Druídicas que no séc. XIX e início do XX, em sua diminuta abrangência, agregaram conceitos de magia cerimonial e de religiosidades mediterrâneas. Ou seja, A Idade Antiga, as religiosidades ditas 'pagãs', as pré-cristãs, não eram ecléticas, eram, muito pelo contrário, tradicionalistas. O sujeito nascia no âmbito de uma religiosidade de orientação étnica, ou seja, ele venerava os deuses de seus ancestrais, que ordenavam o cosmos e legitimavam todas as tradições de sua tribo. Eram religiosidades passadas de pais para filhos, sem questionamentos como "ai, será que aquele outro caminho espiritual se adequa mais a mim?". Não, isso não existia. O que existia era o convívio pacífico entre seguidores de diferentes religiões em contextos urbanos, como na Roma Antiga. O leitor provavelmente já leu algum relato de um politeísta sob uma tentativa de conversão ao cristianismo afirmando algo do tipo "eu cultuo os deuses dos meus ancestrais", porque era assim que funcionava: O mundo agrega várias religiões, vários panteões e várias verdades; mas não quer dizer que todo indivíduo deva concordar com todas as verdades, muito menos que deva misturar todas as verdades. Cada tribo com a sua religião, cada etnia com a sua verdade. Isto é tradição. Nem todas as tradições do mundo eram

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intolerantes, como tantas que tiveram seu auge na Idade Moderna e levaram a eclosão das guerras do século XX. Nem toda tradição é maléfica.     Aproveitando que voltamos ao século XX, ali por volta da década de 80 já haviam algumas pessoas sentindo falta de conceitos e definições mesmo dentro do Neo-paganismo. E até os primeiros anos da década de 90 várias mudanças ocorreram no leste europeu em decorrência do fim da União Soviética. Para quem não sabe, a URSS proibiu todos os cultos religiosos e passou a impor o ateísmo aos currículos escolares. O que acontece é que em muitos dos países que estiveram sob a cortina de ferro, o cristianismo havia sido implantado a poucos séculos, sem sequer ter ainda suplantado os politeísmos em algumas etnias, que permanecem 'pagãs'. E com o fim da URSS, e a liberdade de culto, aos poucos os habitantes destas regiões passaram a buscar uma religião, e como era de se esperar uma porcentagem alta desta população aderiu ao politeísmo praticado por seus ancestrais. Era um retorno às tradições de orientação étnica. Aí vemos despontar religiões como o Rodnovery (que é reconstrucionista) e o Romuva. É exatamente neste período que o Reconstrucionismo Celta se estrutura, com a criação do Paganachd e a publicação do CR-FAQ, é aí que se estabelecem os conceitos de Reconstrucionismo Celta. Estes movimentos marcam para o neo-paganismo o início da reação ao Ecletismo.

Triskle/Trisqueta símbolo do Reconstrucionismo Celta     O primeiro preceito do RC é resgatar e reconstruir a religião dos Celtas da Antiguidade. Por consequência, o RC reconstrói uma tradição tribal e politeísta. Também por consequência, o RC não é eclético. É assim que o RC pode ser entendido como uma reação ao ecletismo religioso que englobava aspectos célticos a religiões neo-pagãs, misturando-os com tantos outros e criando, assim, confusão: Hoje em dia, pouca gente se interessa por Celtas, destes, 95% acha que sabem o que foi a cultura e religião Celta da Antiguidade, mas

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não sabem, porque já aprenderam por vias confusas, como a da chamada 'Wicca Coca-Cola", aquela vertente altamente eclética e comerciável, que deturpou até a Wicca.     O RC tem conceitos, é uma religião que não tem lideranças, mas tem definição. Isto significa que para ser um RC basta conhecê-lo, identificar-se e dedicar-se aos seus caminhos e métodos. Mas significa também que não pode ser extrapolado agregando conceitos de outras religiões. Ou o indivíduo se encaixa neste padrão, ou não pertence a ele. Não existe meio termo. Não existe como ser RC e ser panteísta, ou monoteísta, porque isto significa agregar conceitos filosóficos de outras religiões em detrimento dos conceitos notadamente célticos, ou seja, é ecletismo, é contrário ao Reconstrucionismo Celta. Vou dar um exemplo: Imagine a Igreja Católica (vou usá-la como exemplo porque é a maior vertente religiosa aqui no país, então todos conseguem compreender), é um religião tradicionalista, com uma definição e conceitos bem estabelecidos, assim como o RC, guardadas as abismais diferenças teológicas e filosóficas. Existe católico politeísta? Não. Catolicismo é um conjunto de crenças monoteístas, até existem santos e anjos, mas não são deuses, deus no catolicismo é um só, Yaveh. Se o indivíduo nasceu no catolicismo mas começou a questionar e chegou à conclusão de que o conceito de 'deus' é plural, este indivíduo já saiu do conjunto de crenças católicas, ainda que ele não tenha se dado conta, continue indo à missa e se identificando como um católico. É uma questão de conceito. Outro exemplo: Se o IBGE criar um censo e passar na porta da sua casa e perguntar: 'Qual sua origem étnica/racial?' e você responder: 'Sou alienígena', o IBGE não vai colocar no resultado do censo: 'Existem no brasil 40% de negros e mulatos, 30% de brancos, [...] e 1 alienígena'. Não vai. Porque vc não é um alienígena. Vc não se encaixa no conceito de alienígena. Portanto, pelo menos no Brasil e neste censo hipotético, não existem alienígenas, sequer existe esta opção. Assim, se fosse feito um senso do RC no Brasil, não existiria a opção 'monoteísta' ou 'panteísta'.     Espera-se de um indivíduo que adentre o Reconstrucionismo Celta, que, no mínimo, tenha conhecimento dos seus conceitos antes de se considerar um e sair se identificando como um por aí. É uma questão de respeito, consigo mesmo e para com as pessoas que se uniram nesta religião justamente para se afastar da confusão criada pelo Ecletismo. Vou deixar aqui alguns trechos do CR-FAQ, trechos fundamentais e iniciais, caso o leitor ainda não conheça:

"O que é o Reconstrucionismo Celta (RC)?

O Paganismo Reconstrucionista Celta é um movimento politeísta, animista, religioso e cultural. É um esforço de reconstituir, em um contexto cultural Céltico moderno, os aspectos das antigas religiões Celtas que se perderam ou foram suprimidos pelo Cristianismo.

Há elementos sobreviventes das tradições Celtas pré-cristãs nos costumes e práticas folclóricas dos países Celtas e da diáspora Celta, mas após séculos de Cristianismo sobreposto a elas, a maioria das pessoas não considera estas tradições populares como sendo, em si mesmas, um caminho espiritual completo ou viável. Estudando os antigos manuscritos e o folclore regional, combinando esta informação com práticas místicas e extáticas, e trabalhando

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juntos para extirpar os elementos não-Célticos entremeados, tentamos nutrir o que ainda sobrevive e ajudar as tradições politeístas Celtas a crescerem fortes e completas novamente. Buscamos isso, em parte, ao tentar imaginar como os diferentes paganismos Celtas pareceriam, nos dias de hoje, se não tivessem sido interrompidos em sua evolução pelo Cristianismo, do mesmo modo que o Hinduísmo mudou ao longo dos séculos, permanecendo o mesmo mas modificando-se com os tempos."

"Não. O RC não é eclético.

Devido a uma frase desajeitada em um “antigo documento RC”, um comentário sobre o valor de comparações trans-culturais foi mal interpretado como apoiando o ecletismo. O conceito errôneo então se espalhou em alguns pontos da internet para mais tarde nos ser repetido de volta como fato. Foi surpreendente ouvir isso, para dizer o mínimo, quando estamos acostumados a sermos acusados de ser “tão” culturalmente focados, de ter um critério acadêmico tão alto e de não sermos abertos o suficiente à inovação pessoal para os gostos de muitos Neopagãos. O RC realmente começou como uma alternativa às tradições Neopagãs ecléticas , e embora nos permitamos alguma inovação quando há lacunas na tradição, sempre que possível essa inovação é baseada em precedentes históricos sólidos."

Está tudo aqui no site: http://thecrfaq-br.livejournal.com/ em português claro. Então, fica o aviso ao leitor: Se vc não se encontra no politeísmo, ou não está disposto a se restringir a um panteão céltico e aos métodos do Reconstrucionismo Celta, este não é para vc. Existem outras religiões e Caminhos Espirituais que admitem o Ecletismo, busque-os. Se em nenhum destes vc se encaixar, liberdade religiosa é algo garantido por lei no nosso país, portanto, vc tem o direito de criar sua própria religião agregando, sei lá, deuses celtas e monoteísmo ao mesmo tempo, se quiser. Vá em frente. Você só não tem o direito de deturpar o Reconstrucionismo Celta, ou qualquer outra religião que não admita o ecletismo em sua definição.

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(12 de Novembro de 2013 - Observação: depois que publiquei este texto, algumas pessoas manifestaram dúvida quanto ao significado dos termos 'Panteísmo' e 'Politeísmo', então achei conveniente colocar aqui este conceitos de acordo com alguns dicionários de filosofia, para o caso de os próximos leitores também terem esta dúvida: Dicionário de Filosofia de Gérard Durozoi e André Roussel, Papirus, 1990. "Politeísmo: Sistema religioso (ou filosofia), que admite a existência d muitos deuses, eventualmente hierarquizados.  Panteísmo: Termo que surgiu no início do séc. XVIII e designa qualquer concepção segundo a qual Deus e o mundo são apenas um, quer se admita que tudo o que é é um Deus ou dele procede (Plotino* ou Spinoza*), quer que deus seja concebido como imanente ao próprio mundo (Diderot* ou certos hegelianos de esquerda." )