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CALENDRIO MAIA,MATEMTICA E IDENTIDADE NA MESOAMRICA
Graduando Thiago Jos Bezerra CavalcantiUniversidade Federal Fluminense
Resumo
Generalizado como calendrio maia, o ciclo ritual de 260 dias , na verdade, umaforma elementar da vida religiosa, que constitui a base da histria social e culturalmesoamericana e tem origem anterior aos prprios maias. Fenmeno no noticiado emnenhum outro lugar ou poca, a base calendrica ritual retrato da Mesoamrica. Talcalendrio, cuja concepo remete expresso das dinmicas sociais, culturais,
religiosas e astronmicas, ocupa posteriormente a funo de regularizao ounormatizao das mesmas, determinando a periodicidade dos ritos e as datas ideais paraeventos scio-polticos. Nosso objetivo analisar a amplitude do ciclo ritual nocotidiano social mesoamericano e na constituio da identidade, alm de introduzir a
base matemtica e calendrica.
Palavras chave: Mesoamrica; Tzolkin; Jaab; Ciclo Ritual; Etnomatemtica
MAYA CALENDAR,MATHEMATICS AND IDENTITY IN MESOAMERICA
Abstract
Generalized as Maya calendar, the ritual cycle of 260 days is, in fact, a elementaryform of the religious life that constitutes the basis of the mesoamerican social andcultural history, whose roots are older then the maya. This phenomenon was never seenin any other place or time, and the common ritual calendric system is a portrait ofMesoamerica. These calendar, whose design refers to the expression of social, cultural,religious and astronomical dynamics, then takes the role of regularization ornormalization of the same dynamics, determining the frequency of the rites and the ideal
dates for social and political events. Our purpose isto analyze the ritual cycle amplitudein Mesoamerican daily life and identity constitution, and introduce the mathematical
and calendrical system.
Keywords: Mesoamerica; Tzolkin; Jaab; Ritual Cycle; Ethnomathematics
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Introduo
A regio da Mesoamrica, que compreende a totalidade das atuais Guatemala e
Belize, alm de grande parte de Mxico, Honduras e El Salvador, revelou ao mundouma srie de culturas. O que elas tinham em comum, a despeito de tantas divergncias e
conflitos observados ao longo da histria? A utilizao do mesmo calendrio ritual de
260 dias. Isto, junto a outras caractersticas culturais compartilhadas, tais como a nfase
na agricultura do milho, o sacrifcio como um dos fundamentos da tradio religiosa e a
construo de pirmides de pedra, fez com que Paul Kirchkoff, propositor do termo
Mesoamrica, chegasse concluso de que tais sociedades eram essencialmente
variaes de um tema cultural afim, todas relacionadas ou at mesmo derivadas de uma
cultura ancestral comum que remonta a um passado bastante antigo (STUART, 2011:
32-33). Assim sendo, podemos considerar o uso desses dois calendrios como algo que
constitui a histria social e a identidade1
Ainda que os primeiros registros calendricos mesoamericanos conhecidos
sejam provenientes do Vale do Oaxaca, do Istmo de Tehuantepec e da parte central do
estado de Chiapas (regies Olmecas e Zapotecas, no Mxico) e remontem
aproximadamente ao meio do primeiro milnio AEC
mesoamericanas, no se tratando de um uso
restrito ou controlado por uma determinada cultura, mas, ao contrrio, disseminando-se
entre as mais diferentes sociedades da Mesoamrica.
2
1A partir da emergncia do processo de globalizao marcante aps a dcada de 1980, o debate em tornodo conceito de identidade tornou-se latente. Os trabalhos do ingls Stuart Hall so referncia e trouxeramgrandes contribuies para enriquecimento deste debate. Hall afirma que as identidades no so imutveise nem estveis e que um mesmo indivduo pode possuir diversas identidades, precisando sempre do outropara se estabelecer, pois as identidades so sempre relacionais (HALL, 2000: 109).
(MARCUS, 1992: 33, 95;
STUART, 2011: 173), a origem dessa base calendrica permanece como uma questo
no solucionada, uma vez que provvel que haja um hiato considervel entre a
idealizao dos calendrios e seus primeiros registros em pedra e outros materiais. A
situao se agrava quando ressaltamos que muitos registros foram perdidos e tantos
outros ainda precisam ser descobertos e/ou restaurados.
2No presente artigo, preferimos usar as siglas AEC (Antes da Era Comum) e EC (Era Comum), visando aadoo de uma alternativa laica em detrimento s tradicionais siglas a.C. (antes de Cristo) e d.C. (depoisde Cristo), cujo uso remete parcialidade religiosa crist.
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Matemtica, escrita e histria: a instituio da etnocincia
A concepo dos calendrios advm do estabelecimento da cultura matemtica.
A actividade matemtica uma actividade humana, (...) uma actividade cultural. Ideiase mtodos matemticos variam de cultura pra cultura, e a nossa compreenso do que a
matemtica cresce na medida em que essas ideias e mtodos se fertilizam mutuamente.
(GERDES, 2007: 154). Por conseguinte, as culturas mesoamericanas so tambm
herdeiras dessa matemtica, seja antes da instaurao dos calendrios ou concomitante a
eles. Essa cultura de base vigesimal, composta por vinte dgitos. O nmero vinte
fortemente associado ao corpo humano (STUART, 2011: 153). Tendo em vista que as
escritas so tcnicas de concretizao do pensamento ou da palavra (CAUTY, 2009:
29), no exagero dizer que a tradio matemtica e calendrica pode ter razes bem
mais antigas do que os primeiros registros escritos conhecidos. No por acaso, no
contexto mesoamericano a base vigesimal remete aos vinte dedos do corpo humano,
sugerindo uma cultura que, num primeiro momento, independe da escrita. Por outro
lado, inegvel que o trabalho matemtico, especialmente se considerarmos o caso de
que tanto falamos a instituio dos calendrios na Mesoamrica depende mais do
que outros de uma comunidade de especialistas, de tempo e de suporte da escrita
(CAUTY, 2009: 29) para sua manuteno e desenvolvimento.
Andr Cauty (2009: 30) situa a importncia mesoamericana na histria da
Amrica:
Na Amrica antiga, somente os mesoamericanos desenvolveram tradies
matemticas escritas. Os primeiros rastros foram deixados pelos olmecas; e o
desenvolvimento mais bem-sucedido da escritura e do cmputo
indubitavelmente o Clssico maia (sculos III-X). Os escribas maias foram os
grandes mestres do cmputo e da escrita logossilbica. Melhor do que a
escrita hoje extinta, a tradio do cmputo sobreviveu imploso da
civilizao maia alm do ano mil, especialmente nos astecas. Mais tarde,
depois da Conquista, essa tradio foi combatida pelas autoridades coloniais
espanholas que impuseram uma nova religio, uma nova justia, uma nova
administrao, uma cultura de comrcio e uma civilizao escravagista. Para
nosso propsito, ela extinguiu as numeraes vigesimais e imps a
numerao decimal em algarismos arbicos assim como a escritura
alfabtica. As respostas indgenas foram mltiplas e dependem
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interativamente das pocas e situaes. No incio da colonizao, alguns
mesoamericanos adotaram o alfabeto. O que permitiu, por exemplo, aos
astecas (ou rainha Mathilde) inserir comentrios (em nahuatl, espanhol,
latim, etc) em obras pintadas/escritas retiradas da pictografia.
Torna-se clara, portanto, a importncia da tradio mesoamericana de escrita e
sua funo fundamental no que se refere manuteno do conhecimento matemtico na
Mesoamrica. Graas s formas de escrita desenvolvidas nessa regio, temos milhares
de documentos histricos mesoamericanos, das primeiras estelas aos cdices, que
abarcam alm de aspectos sociais e culturais e relacionam-se ainda cultura matemtica
e calendrica, cujo registro no raramente remeter origem supostamente mitolgicadaqueles que so primeiros idealizadores dessa cultura, situando ciclos em que seus
primeiros ancestrais deixaram suas pegadas, ancestrais que no por acaso sero
reinvindicados como criadores da tradio calendrica. Dessa maneira, as sociedades
mesoamericanas no apenas estabeleceram sua etnocincia histrica, mas tambm
instituram o registro e a manuteno de sua matemtica e de seus calendrios, bem
como sua religio, seu conhecimento na astronomia e em outras reas do saber.
Base etnomatemtica
Conforme dito anteriormente, todas as culturas mesoamericanas utilizaram um
sistema matemtico de base vigesimal, aplicado tambm contagem de tempo
(STUART, 2011: 107). Para melhor compreenso de seu funcionamento, faremos uso
do sistema maia, composto por vinte dgitos, zero a dezenove. Os maias representavam
a unidade com um ponto e cinco unidades com uma barra. O nmero quatro, por
exemplo, era representado como quatro pontos, enquanto o nmero sete era
representado como dois pontos e uma barra (aritmeticamente, dois mais cinco). O zero
um caso especial: geralmente representado como uma concha, simboliza a ausncia de
valor numrico, mas sua funo de ocupao dos lugares o que possibilita a notao
de nmeros de ordem superior na contagem maia (MONTGOMERY, 2003: 9), ou
seja, numerais acima do dezenove.
Havendo apenas a possibilidade dos vinte dgitos, de zero a dezenove,
conclumos que o valor mximo em cada ordem ou nvel dezenove. A representao
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do nmero vinte inaugura o sistema de ordens ou nveis, nos quais as unidades, que na
base tem seu valor original, passam a ter seus valores padro modificados de acordo
com o seu posicionamento. Na passagem do dezenove para o vinte, por exemplo, cria-seum nvel superior ou uma ordem de converso em que um ponto, em vez de equivaler
ao nmero, deve ser multiplicado por vinte. Dessa maneira, vinte na aritmtica (120)
+ (00). No novo nvel, dois pontos equivalem a quarenta e trs barras equivalem a
trezentos. Da mesma maneira, quanto maior for um nmero, mais ordens ou nveis ele
ter de preencher, na medida em que cada ordem possui valor de partida vinte vezes
superior ao anterior: se na base cada dgito representar seu valor unitrio, acima dela
representar seu valor multiplicado por vinte, na prxima representar seu valor
multiplicado por quatrocentos (vinte vezes vinte) e assim por diante.
Figura 1
Vinte dgitos maias com seus nomes em lngua Yukateka(MONTGOMERY, 2000).
Figura 2
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Exemplos de representao e construo aritmtica de numerais maiores que dezenove.
Nos exemplos da figura 2, ilustramos a representao maia dos nmeros 260,
2011 e 72.079, com comentrios sobre sua construo aritmtica: o nmero 260
representado com apenas duas posies, com o 13 numa posio acima do zero, ou seja,
o nmero 260 aritmeticamente considerado como (1320) + (01). Considerando que
cada ordem ou nvel superior traz um valor vinte vezes maior que o anterior, acima da
ordem de valor 8.000 surgir a ordem de valor 160.000, e depois dela as ordens de
3.200.000, 64.000.000 e assim por diante, numa progresso infinita, onde o topo
ocupado pela maior ordem e a base sempre representada pelo dgito que estiver mais
abaixo num registro. importante ressaltar que os dezenove dgitos possuem tambm
representaes antropomorfas, associadas a divindades (MONTGOMERY, 2003: 11-
16).
Choltun: a matemtica adaptada contagem de tempo
O Choltun, cujo nome significa ordenamento das pedras ou ordem dos
ciclos Tun (AJQUIJAY, 2011: 100), geralmente chamado de conta longa, um
sistema calendrico derivado da diviso em nveis ou ordens de progresso aritmticapresente na matemtica. Adotado pelos maias, seu primeiro registro conhecido de
origem epiolmeca3
3O prefixo epi tem o significado de ps.
e data do ano 31 AEC (PHARO, 2010a: 14). Para o propsito da
contagem linear de tempo, ocorreu uma adaptao: a ordem matemtica de valor 400
substituda pela ordem calendrica de valor 360. O motivo de tal adaptao lgico,
tendo em vista que 360 dias o valor mais prximo durao do ano solar dentro da
base vigesimal. O ciclo de 360 dias conhecido como Tun, e apenas ele foge
progresso em que o ciclo equivale a vinte vezes seu anterior. Por outro lado, o fato dehaver essa modificao faz com que todos os ciclos acima dele tambm sejam
modificados. O cicloKatun, por exemplo, ter valor equivalente a vinte ciclos Tun, isto
, 7.200 dias (MONTGOMERY, 2003: 39-42).
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Os cinco primeiros ciclos, tambm os mais conhecidos, so:
Kin: 1 dia
Winal: 20 dias Tun: 360 dias Katun: 7.200 dias Pik(Baktun): 144.000 dias
Num registro do Choltun, cada ciclo designado por um hierglifo (vide figura
3), que por sua vez acompanhado por um coeficiente numrico de zero a dezenove,salvo no caso do Winal, que acompanhado por um coeficiente numrico de zero a
dezessete. no Winalque reside a modificao que confere o valor de 360 dias ao ciclo
Tun.
Figura 3
Exemplos de hierglifos que designam os ciclos do Choltun(MONTGOMERY, 2002).
Assim como ocorre no sistema matemtico tradicional, o Choltun comporta
ordens ou ciclos infinitos. Ou seja, existem infinitos ciclos acima do ciclo Pik, que
respeitam a progresso vigesimal.
Tzolk in: o ciclo ritual de 260 dias
O Tzolkin (conta dos dias), por vezes chamado de almanaque sagrado,
representa um tipo de calendrio folclrico que ainda usado na rea maia e em
outras partes da Mesoamrica atualmente (MONTGOMERY, 2003: 20). Consiste na
combinao entre dois ciclos: o de 13 e o de 20 dias.
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O ciclo de 13 dias ou 13 nmeros (j que tal ciclo representado pelos
coeficientes numricos de 1 a 13) possui um significado csmico, podendo ser
relacionado s 13 constelaes zodiacais maias (HOCHLEITNER, 1994: 56) ou aos 13planos superiores ou divises do cu que encontramos entre os astecas (MILLER &
TAUBE, 1997: 31). Os nmeros tm relao com divindades especficas, e no caso
maia, como vimos, os prprios nmeros possuem formas antropomorfas que
representam as divindades de cada um deles.
O ciclo de 20 dias ou 20 glifos composto por hierglifos que representam 20
foras presentes na natureza, na fauna, na flora e na vida cotidiana mesoamericana. No
caso maia, os nomes dos 20 glifos (na lngua Yukateka) e seus respectivos significados
(STUART, 2011: 139-143) so os seguintes:
0 Ajaw(Senhor) 1 Imix(Serpente aqutica) 2 Ik(Vento) 3 Akbal(Escurido) 4 Kan(Milho maduro?) 5 Chikchan(Serpente) 6 Kimi(Morte) 7 Manik(Veado) 8 Lamat(Estrela?) 9 Muluk(Jarro de gua?) 10 Ok(Cachorro) 11 Chuwen(Macaco)
12 Eb(Dente) 13 Ben(Junco?) 14 Ix(Jaguar) 15 Men(Pssaro/guia) 16 Kib(?/Abutre) 17 Kaban(Terremoto?) 18 Etznab(Faca) 19 Kawak(Raio/Trovo)
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O ciclo de 20 dias corre em perfeio junto aos 20 dias que se contam no ciclo
Kindo Choltun. Isto significa que, quando houver coeficiente zero nele, ser um dia
Ajawno Tzolkin, quando houver coeficiente um ser um dia Imixno Tzolkine assimpor diante. Consequentemente, toda abertura de ciclo no Choltunser um dia Ajawno
Tzolkin, ilustrando a importncia que tal dia tinha dentro do Choltun para os antigos
maias.
Os ciclos de 13 e 20 dias correm paralelamente, combinando-se. Os vinte dias
correm at que todos eles tenham sido numerados de 1 a 13, o que s ocorre aps 260
dias. Esta , portanto, a razo da durao do ciclo ritual mesoamericano.
Figura 4
Os vinte dias do Tzolkinmaia (MONTGOMERY, 2000).
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Os 20 dias esto, assim como os 13 nmeros, associados a divindades e
simbolismos especficos. Sendo assim, cada um dos 260 dias uma combinao nica
entre a influncia do nmero e a influncia do glifo.
Jaab: o ciclo civil de 365 dias
O Jaab(conta dos anos) um ciclo de 365 dias, que so divididos em 18
ciclos de 20 dias com mais um ciclo de 5 dias (Wayeb). o calendrio civil e agrrio.
Figura 5
Os 19 ciclos doJaabe seus respectivos hierglifos (MONTGOMERY, 2000).
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Os vinte dias de cada ciclo so tambm contados de zero a dezenove (ou de
zero a quatro, no caso do Wayeb). O Jaab, diferente do calendrio gregoriano, no
possua qualquer sistema semelhante ao ano bissexto (MONTGOMERY, 2003: 26),mas cada um de seus ciclos era tambm relacionado a rituais e festivais.
Jaabe Tzolkin, quando combinados, resultam na Roda Calendrica, um ciclo
de 52 anos (18.980 dias) que engloba todas as combinaes possveis entre o ciclo de
260 e o ciclo de 365 dias. Isto significa que uma data composta pela combinao entre
um determinado dia do ciclo de 260 dias e um determinado dia do ciclo de 365 dias s
volta a ocorrer a cada 18.980 dias. Tal ciclo tem o simbolismo similar a uma era ou
gerao, e seu reincio demanda um grande ritual, como a Cerimnia Ritual do Fogo
Novo dos mexicas.4
O ciclo ritual determinando rotina e identidade
O ciclo ritual de 260 dias parte constitutiva da identidade mesoamericana.
Um dos mais interessantes comentrios nesse sentido este, do bispo Diego Daz de
Quintanilla y de Hevia y Valds:
Aqueles por eles chamados de sbios e professores h muito ensinam os
mesmos erros e caminhos falsos de sua religio atravs de livros e
manuscritos. Eles instruem os outros sobre treze deuses que carregam nomes
de homens e mulheres, a quem eles atribuem vrios poderes, como no
sistema de seu ano, composto por 260 dias divididos em treze meses, cada
um governado por um dos deuses citados. O ano tambm dividido em
quatro ciclos ou raios de sessenta e cinco dias. A partir de tal feitiaria, os
sacerdotes do calendrio derivam uma variedade de encantamentos mgicos e
supersties, relacionados a todos os tipos de caa e pescaria; colheita domilho, pimenta e cereais; relacionados a toda doena e medicinas
supersticiosas usadas na cura. (...) Eles instruem tambm sobre quando parar
de trabalhar; como evitar visitas de mortos s suas casas; para gravidez bem
4Para mais sobre o ciclo de 52 anos, ver PHARO, Lars Kirkhusmo. The Spatio-Temporal Ritual Practiceof the Fifty-Two-Year Calendar in Mesoamerica.Journal of Religious History. Sydney, V.34(4), p. 446458, 2010. Disponvel em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-9809.2010.00906.x/full.Acessado em: 04/07/2011.
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sucedida no parto e na aquisio de crianas; sobre os pressgios dos cantos
das aves e dos animais; sobre a interpretao dos sonhos e conserto dos danos
prognosticados por eles; e finalmente sobre qualquer coisa que ocorra a
qualquer um desses sbios e professores.5
Apesar da parcialidade crist de Valds, temos aqui uma clara indicao a
respeito da amplitude do ciclo ritual na Mesoamrica. Como bem observou David Stuart
(2011: 125) a respeito da citao de Valds, o ctico bispo nos oferece uma boa
percepo de quo poucos, se existirem, aspectos da vida cotidiana encontravam-se fora
do domnio da adivinhao e interpretao ancorado ao calendrio de 260 dias.6
Corroboramos com a observao de Stuart e acrescentamos s palavras dobispo o mesmo que defende Lars Kirkhusmo Pharo (2010a): nome, alma, destino e
identidade so determinados pelo ciclo ritual de 260 dias. No Popol Wuj,
7
um dos
irmos gmeos, considerados avs dos maias, carrega o nome deJunajpu. Este nome ,
na verdade, herdado de seus pais, e sua origem remete juno de duas palavras:June
Ajpu.Jun a palavra que designa o nmero um, enquanto queAjpusignifica caador,
equivalenteKichedo diaAjawdo ciclo ritual.
(...) vamos relatar a concepo de Junajpu e Xbalamke,
mas s vamos contar uma parte da histria de seus pais.
Este seu relato, eis aqui seus nomes: Jun Junajpu e Wuqub Junajpu.
E os nomes de seus pais eram Xpiyakok e Ixmukane.
Na escurido, ao amanhecer nasceram Jun Junajpu e Wuqub Junajpu.
Jun Junajpu engendrou dois filhos, dois vares:
Jun Batz se chamava o primognito e Jun Chuwen se chamava o segundo.
Este era o nome de sua me: Ixbaqiyalo, esposa de Jun Junajpu.
Wuqub Junajpu no tinha esposa (...)8
5Traduo nossa, elaborada a partir da traduo para o ingls feita por David Stuart (2011: 125).6Traduo nossa, a partir do original.7 O Popol Wuj, cujo nome significa literalmente o livro do comum; o livro do povo; o livro doconselho, considerado o livro sagrado e histrico da etnia maiaKiche e sua verso original em lnguahomnima foi produzida entre os anos 1.554 e 1.558 EC, estando hoje desaparecida. A primeira traduopara o espanhol foi feita pelo frei Francisco Ximnez entre 1.701 e 1.703 EC. (COLOP, 2008: 13-20). Nopresente artigo faremos uso da verso em espanhol de Luis Enrique Sam Colop, kiche, advogado elinguista, defensor da educao bilngue e do direito consuetudinrio maia na Guatemala.8Traduo nossa a partir da traduo para o espanhol de Colop (2008: 61).
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Neste trecho do Popol Wuj, Sam Colop (2008: 61) destaca em notas que
Junajpu ou ajpu um dia no calendrio maia e que Batz tambm um dia do
calendrio e Chuwen seu equivalente em maia Yukateko, mais especificamente diasdo ciclo ritual. Trata-se, claramente, de um caso que ilustra o quanto o ciclo ritual est
impregnado na prpria identidade maia e mesoamericana, a ponto de vrios indivduos
terem seus nomes determinados pelo ciclo ritual. Nesse caso, divindades, precursores do
povo maiaKiche.
Assim como Jun Junajpu (Popol Wuj, p. 68-71), Junajpu segue o caminho
negro a Xibalba(o inframundo maia) em companhia de seu irmo (Popol Wuj, p. 99),
desafiados pelos senhores daquele lugar, tendo em vista que seu jogo de bola os
incomodava. L, diferente de seu irmo, Junajpu decapitado (Popol Wuj, p. 110),
comoJun Junajputambm havia sido. Assim,Junajpucomunga tambm do destino do
pai, entretanto saindo-se melhor que ele no fim das contas. Um nome, sendo equivalente
a um dos dias do ciclo ritual, atrela a identidade a um destino e alma especficos.
Mais do que uma mera figura passiva cuja identidade influenciada pelo
calendrio, Junajpu uma divindade cuja importncia transcende o ciclo ritual. Isto
quer dizer que o diaJun Ajpu enriquecido em significado graas figura da divindade
Junajpu, e por sua vez esse significado passa a constituir a bagagem identitria daquele
dia, inseparvel do mesmo.
Junajputorna-se o Sol (eXbalamke, a Lua) aps vencerXibalba, vingandoJun
Junajpu e Wuqub Junajpu(Popol Wuj, p. 126), ao passo que o glifo calendrico Ajaw
ouAjpu descrito tambm como o Av-Sol (TORRES, 2009). Isto revela a impresso
da identidade de Junajpuno ciclo ritual, exemplo de divindade que determina o signo
de um dia.
Sendo assim, o ciclo ritual pode ser observado no apenas como algo que
confere identidade aos mesoamericanos, mas tambm o contrrio: os mesoamericanos
imprimem sua identidade no ciclo ritual. Isto explica a razo pela qual um mesmo dia
chamado por nomes diferentes, possuindo significados diferentes e sendo influenciado
por divindades diferentes. Cada etnia reconstri de tal forma a significao de cada dia
do ciclo ritual que alcanar o que este teria sido em sua primeira forma parece
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impossvel, apesar de se poder observar muitos simbolismos congruentes na
comparao entre diferentes etnias.
A identidade tnica , ento, influenciada e influenciadora. Num primeiromomento, h apenas a herana do ciclo ritual e talvez at mesmo a ausncia de uma
identidade tnica prpria ou separada daqueles que introduziram o ciclo ritual. Num
segundo momento, o ciclo ritual adaptado realidade de um pequeno grupo, e a
interao entre esse grupo e o ciclo ritual molda a ambos: ao mesmo tempo em que o
ciclo ritual passa a gui-los e com isso ajuda na construo de sua identidade e viso de
mundo, esse grupo tambm passa a embutir no calendrio todos os outros elementos
relevantes na construo de sua identidade, usando o ciclo ritual no apenas para
imprimir, mas para consolidar sua identidade.
Assim como Junajpu, tantas outras divindades fazem parte do passado
cosmognico e mtico mesoamericano estabelecido e revivido no ciclo ritual, e no por
acaso so associadas ao tempo em que no existia Tempo ou calendrio. So tambm
criadores do calendrio, pois emprestam suas identidades aos dias do ciclo ritual; afinal,
o poder associado a essa linhagem reside na contagem de tempo, e essa elite
mesoamericana cultua em rituais o seu passado, o seu presente e o seu futuro,
confundindo-se com seus deuses no espelho e no sangue. Cultuam afinal a seus pais
que, comoJunajpu, emprestaram suas identidades aos calendrios, as mesmas que sero
posteriormente revividas por seus descendentes, que por sua vez tambm marcaro suas
identidades graas ao domnio da escrita e da matemtica dos ciclos rituais. Dessa
maneira, todos eles se perpetuaram na etnohistria mesoamericana.
Com base no ciclo ritual ou na sua relao com outros ciclos (como o Choltun
e oJaab), determinadas datas servem para uma reconexo simblica, o zero em que
o tempo dos criadores revivido e representado nos rituais. Quanto mais tempo
remontar no passado, mais importncia simblica ter para aqueles que dominam o
Tempo. Um desses ciclos , sem dvida, 4 Ajaw; mais especificamente, a data 4Ajaw 8
Kumku (composta pela combinao do dia 4 Ajawdo ciclo ritual com o dia 8 Kumku
do ciclo civil). Trata-se do incio do ciclo que se popularizou e teoricamente se
encerra em 2012, como se convencionou dizer. Entretanto, preciso destacar que que o
fim do 13Pikser num dia 4Ajaw 3 Kankin, o que significa que esse um ciclo que
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simboliza o encontro apenas entre o ciclo ritual e o ciclo Pikdo Choltun, excluindo o
Jaabe muitos outros ciclos.9
Em As formas elementares da vida religiosa, mile Durkheim aborda aquesto da aplicao religiosa do tempo:
(...) a vida religiosa e a vida profana no podem coexistir nas mesmas
unidades de tempo. , pois, necessrio destinar primeira dias ou perodos
determinados dos quais todas as ocupaes profanas sejam eliminadas. Foi
assim que surgiram as festas. No existe religio nem, por conseguinte,
sociedade que no tenha conhecido e praticado essa diviso do tempo em
duas partes estanques, alternando uma com a outra conforme uma lei varivel
de acordo com os povos e civilizaes; at muito provvel, como dissemos,
que tenha sido a necessidade dessa alternncia que levou os homens a
introduzirem, na continuidade e na homogeneidade da durao, distines e
diferenciaes que ela no comporta naturalmente. (...) H sempre coisas
sagradas fora dos santurios; h ritos que podem ser celebrados nos dias
teis. Trata-se de coisas sagradas de ordem secundria e de ritos de menor
importncia. A concentrao continua sendo a caracterstica dominante dessa
organizao. Ela geralmente completa para tudo que diz respeito ao culto
pblico, que s pode ser celebrado em comum. O culto privado, individual, o nico que se relaciona bastante de perto com a vida temporal.
No por acaso consideramos o ciclo ritual de 260 dias como forma elementar
da vida religiosa mesoamericana, categoria inaugurada por Durkheim. O ciclo ritual
institui o culto realizado na vida cotidiana e de carter privado que ao mesmo tempo
ampara-se no culto pblico. Pharo (2010b: 446-447) concorda e vai alm, introduzindo
uma categoria terica no estudo da religio, prtica ritual do tempo, inspirada nos
ciclos mesoamericanos:
Em que o conceito prtica ritual do tempo implica? O (A) (prtica) ritual
do tempo representa a plenitude cerimonial, o fim de um perodo e a
9Apesar do importante simbolismo desse longo ciclo, de 1.872.000 dias, no h qualquer base para asespeculaes a respeito de fim do mundo e outros tipos de coisa. No se trata sequer do fim docalendrio maia, tendo em vista que o Choltunpossibilita uma contagem linear e infinita de tempo.
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introduo de um determinado perodo de tempo nos calendrios. Esses
intervalos de tempo, finais do tempo e inaugurao de novos perodos de
tempo so observados na prtica ritual. Vrios rituais dentro de um perodo
calendrico, contudo, no necessariamente ocorrem no fim de um perodo de
tempo. Eles podem ocorrer na mesma data crucial dentro do calendrio, no
como celebrao ritual de um comeo ou fim de tempo, mas como uma
recordao de eventos importantes. Alm disso, uma diferenciao precisa
ser feita entre a celebrao ou performance de rituais do tempo do mundo,
sociedade ou comunidade em uma mo e, na outra, ritos de passagem do
tempo da vida dos rituais individuais, que marca o desenvolvimento social
individual, como o nascimento, iniciao vida adulta ou ritos de puberdade,
casamento e morte de acordo com o calendrio biolgico que cria ordem e
define o ciclo da vida bio-cultural do ser humano. Os rituais do tempo
relacionados comunidade so pblicos, enquanto que as cerimnias que
concernem ao indivduo so geralmente privadas.10
A prtica ritual do tempo determinada pelo ciclo ritual de 260 dias , portanto,
constituinte da ethnomesoamericana. O principal smbolo para a plenitude cerimonial
do fim de um ciclo o zero, que nesse caso representa no ausncia, mas sim o ciclo
que est completo. Consideramos a prtica ritual do tempo, nova categoria de Pharo,um desdobramento da categoria de Durkheim com foco no estudo da Mesoamrica.
No ciclo ritual tambm est impresso o meio, a fauna e a flora com a qual o
mesoamericano interagiu. Como exemplos podemos citar o jaguar e o milho, que
aparecem como signos entre os vinte glifos do ciclo ritual. Ambos so associados aos
quatro primeiros homens noPopol Wuj, que so moldados a partir do milho modo e da
gua; os dois primeiros Balam Kitze e Balam Aqab e o ltimo Iki Balam,
carregam o nome Balam (jaguar), enquanto que o terceiro chamado de Majukutaj(Popol Wuj, p. 130), cujo nome deriva, segundo Colop, da expresso quem no
10Pharo tem o cuidado de lembrar que rituais individuais de figuras pblicas so um caso especfico e no
necessariamente privados.
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esconde nada, e aparece no glossrio da traduo para o portugus do Popol Wuj11
Cada dia do ciclo ritual tem uma grande bagagem, no apenas identitria, comgrandes figuras mitolgicas vinculadas a todos os dias do ciclo ritual ou figuras
humanas os encarnando, como tambm uma bagagem social, cultural, histrica,
astronmica... O ciclo ritual tambm permeia todos esses contextos, de maneira que
justo dizer que a etnohistria ajuda a conferir muitos e diferentes significados a todos os
dias. O acmulo de cada dia do ciclo ritual digno de qualquer tese em cincias
humanas. Para o foco de pesquisa religiosa, podemos observar 260 divindades,
arqutipos ou identidades nicos e ao mesmo tempo multifacetados em cada um 260
dias do ciclo ritual. Como disse Barbara Tedlock (1982: 2), a palavra para dia a que
mais se aproxima, em lngua maia, de um termo para tempo, mas no apenas isso.
Cada dia tem sua face, sua identidade, seu carter, que influenciam em seus eventos.
como significando zero.
Consideraes finais
Como bem observamos ao longo de nossa anlise, o ciclo de 260 dias confere
identidade aos mesoamericanos, determina sua vida cotidiana e seu ritual dirio, a nvel
social e individual. O significado passado e presente de cada dia e seus respectivos
rituais est impresso na histria de cada etnia, abrangendo todos os contextos relevantes
a qualquer sociedade mesoamericana. No encontro dos ciclos que se revive o passado
nos rituais mais importantes, que so marcaes no tempo cujas funes so as de
relembrar, manter e acrescentar identidade de seus ancestrais, cujo poder reside no
Tempo e cuja manuteno se projeta no futuro.
Para alm da clssica definio geogrfica, o conceito de Mesoamrica deve
ser pautado por aquilo que constitui a ethnomesoamericana, e sem dvida o ciclo ritual
de 260 dias parte basilar dela. Considerando as dvidas acerca da origem do ciclo
ritual e sua amplitude geogrfica, podemos nos amparar apenas na etnologia e na
arqueologia, que por sua vez tm na Mesoamrica grandes e constantes desafios:
11Verso organizada por Gordon Brotherston e Srgio Medeiros. No presente artigo, preferimos a versode Colop, por tratar-se de um autor acadmico de origem Kiche, entretanto o glossrio da verso emportugus nos foi til ao longo da pesquisa.
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milhares de stios arqueolgicos que demandam constante investigao, descobrimento,
restaurao e manuteno. A compreenso das escritas pictoglficas mesoamericanas
est florescendo e ainda tem muitos frutos a dar, mas deve ser constantemente desafiadapelos novos documentos arqueolgicos e pelo nosso envolvimento.
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