raÍzes do paraÍso: uma anÁlise whiteana de sÉrgio …

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA TESE DE DOUTORADO RAÍZES DO PARAÍSO: UMA ANÁLISE WHITEANA DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA GABRIELLA LIMA DE ASSIS Cuiabá 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

TESE DE DOUTORADO

RAÍZES DO PARAÍSO: UMA ANÁLISE WHITEANA DE

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

GABRIELLA LIMA DE ASSIS

Cuiabá

2017

GABRIELLA LIMA DE ASSIS

RAÍZES DO PARAÍSO: UMA ANÁLISE WHITEANA DE

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em História, do Instituto de Geografia, História e Documentação – IGHD, da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em História.

Orientador: Dr. Marcus Silva da Cruz.

Cuiabá

2017

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 -CUIABÁ/MT

Tel : 65-3615-8493 - Email : [email protected]

FOLHA DE APROVAÇÃO

TÍTULO : "Raízes do Paraíso: uma análise whiteana de Sérgio Buarque de Holanda"

AUTOR : Doutoranda Gabriella Lima de Assis

Tese de Doutorado defendida e aprovada em 13/06/2017.

Composição da Banca Examinadora:

______________________________________________________________________Presidente Banca / Orientador Doutor(a) Marcus Silva da Cruz

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Interno Doutor(a) Thaís Leão Vieira

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Interno Doutor(a) Anderson Roberti dos Reis

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Externo Doutor(a) Julio Cesar Bentivoglio

Instituição : Universidade Federal do Espírito Santo

Examinador Externo Doutor(a) Augusto da Silva

Instituição : Universidade Federal do Espírito Santo

Examinador Suplente Doutor(a) Leny Caselli Anzai

Instituição : UNIVERSIDADE DE BRASILIA

Examinador Suplente Doutor(a) Joao Antonio Botelho Lucidio

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CUIABÁ, 25/07/2017.

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

L732r Lima de Assis, Gabriella. As Raízes do Paraíso : Uma análise whiteana de Sérgio Buarque de Holanda / Gabriella Lima de Assis. -- 2017 223 f. ; 30 cm. Orientador: Marcus Silva da Cruz. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História, Cuiabá, 2017. Inclui bibliografia. 1. Sérgio Buarque de Holanda. 2. Teoria da História. 3. Hayden White. I. Título.

ASSIS, G.L. As Raízes do Paraíso: Uma análise whiteana de Sérgio Buarque de Holanda. 2017. 223p. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2017.

RESUMO

Mais que o pai de Chico, Sérgio Buarque de Holanda foi um dos principais

pensadores brasileiros do século XX atuando na produção de críticas

literárias e na formulação de interpretações singulares sobre a história do

Brasil. Publicou muitos livros com teses ainda relevantes. Em sua obra de

estreia, Raízes do Brasil (1936), defendeu que o brasileiro é um homem

cordial, e isto em nada se relacionava com possuir boas maneiras. Seu livro

com maior rigor acadêmico foi Visão do Paraíso (1959), nele Holanda

estudou como os povos europeus tinham uma visão da América como o

Éden. A proposta desta pesquisa é analisar estas duas obras de uma forma

que permita perceber qual foi o estilo historiográfico do autor delas e

definir a forma de compreensão histórica que ele possuía. A intenção é

aplicar a Teoria da Obra Histórica de Hayden White, que foi apresentada em

Meta-História (1973). A finalidade é tanto investigar no nível da estrutura da

narrativa quais foram os elementos tropológicos escolhidos por Holanda

que, por sua vez, nos informam sobre a consciência histórica dele, quanto

verificar a aplicabilidade e a funcionalidade da Teoria de Hayden White. A

ideia é que se White conseguiu analisar tropologicamente autores clássicos

do século XIX é possível e viável também analisar a obra de outros autores

por um viés teórico e metodológico semelhante ao que foi aplicado por ele

em Meta-História.

Palavras-chave: Sérgio Buarque de Holanda, Teoria da História, Hayden

White.

ABSTRAT

More than Chico's father, Sérgio Buarque de Holanda was one of the main

Brazilian thinkers of the twentieth century that produced literary criticism

and formulated singular interpretations on the History of Brazil. He had

published many books with theses still relevant. In his debut work, Roots of

Brazil (1936), he argued that the Brazilian is the cordial man, and this is not

related to good manners. His most academically rigorous book was Visão do

Paraíso (1959), in this book Holanda studied how the European people had

a vision of America as Eden. The purpose of this research is to analyze these

two works in a way that would allow us to understand the historiographical

style of the author and define the form of historical understanding that he

possessed. The intention is to apply Hayden White's Theory of Historical

Work, that he presented in Meta-History (1973). The purpose is both to

investigate at the level of the structure of the narrative what the

tropological elements chosen by the Holanda, in turn, that it inform us

about his historical awareness, as well as to verify the applicability and the

functionality of the Hayden White’s Theory. The idea is that if White was

able to analyze tropologically classical authors of the nineteenth century, it

is possible and feasible also to analyze the work of other authors by a

theoretical and methodological form similar to that he applied in Meta-

History.

Keywords: Sérgio Buarque de Holanda, Theory of History, Hayden White.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de aproveitar essa oportunidade para agradecer

algumas pessoas que contribuíram para o desenvolvimento dessa pesquisa,

entre elas estão os professores do Programa de Pós-Graduação em História

da UFMT, cujas disciplinas ministradas foram essenciais na minha formação,

e os colegas de curso em virtude do incentivo mútuo e da amizade que

ultrapassou a sala de aula.

Agradeço especialmente ao professor Dr. Marcus Silva da Cruz

pela orientação realizada e aos professores membros da Banca

Examinadora pela paciência em ler e criticar o meu texto.

Agradeço também a Universidade de Leiden e em especial ao

professor Dr. Herman Paul que gentilmente me recebeu por ocasião do

estágio sanduíche no período de julho de 2015 a junho de 2016. Este tempo

me proporcionou enriquecer o meu trabalho como também crescer como

pesquisadora da área de Teoria da História.

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (CAPES) tanto pela bolsa de estudos nacional quanto pela

bolsa sanduíche disponibilizadas.

Agradeço também aos amigos e irmãos das Igrejas Presbiterianas

Independentes de Cuiabá e de Campo Grande e da Igreja Evangélica

Assembleia de Deus em Amsterdam por todo apoio, assistência e acolhida

que recebi de vocês.

Agradeço em especial os meus amigos queridos Joabson Xavier,

Luciene Castravechi, Antônio Mendonça, Paula Araújo, Leonardo Carneiro,

Kelly Carneiro, Mozes Wilhelm, Karol Figueredo, Tânia Souza, José Carlos

Souza, Vinícius e Gustavo Carvalho pelo carinho e por toda a ajuda que me

deram ao longo de cada fase deste estudo.

Agradeço a todas as pessoas da minha família que nunca

pouparam carinho, ajuda e compreensão neste período. Em especial

agradeço a minha mãe Alacir Feitas Lima, a minha irmã Rebeca Lima de

Assis, meu cunhado Vítor Cabral e minha sobrinha Lavínia.

Por fim, agradeço e dedico este trabalho ao meu esposo Claudio

San, companheiro amoroso colocado por Deus em minha vida, agradeço

imensamente o apoio sem medidas e o incentivo que ele me deu para que

eu não desistisse de prosseguir com a minha formação acadêmica.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................ 09

1. O PENSAMENTO HISTÓRICO DE HAYDEN WHITE............................ 18

1.1 Primeira fase: influência italiana.......................................... 24

1.2 Segunda fase: o fardo da história........................................ 30

1.3 Terceira fase: estudos sobre discurso.................................. 34

1.4 Quarta fase: novas reflexões e conceitos............................ 47

2. META-HISTÓRIA: A TEORIA DA OBRA HISTÓRICA............................ 63

2.1Modo de elaboração de enredo.......................................... 68

2.2 Modo de argumentação...................................................... 74

2.3 Modo de implicação ideológica........................................... 79

2.4 Os estilos historiográficos.................................................... 83

2.5 Reflexões sobre Meta-História............................................. 91

3. AS RAÍZES E A VISÃO DESÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA............. 103

3.1 As raízes: aspectos biográficos.......................................... 104

3.2 A visão: aspectos bibliográficos......................................... 115

4. A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA... 143

4.1 A História do Brasil como um romance............................. 148

4.2 Uma argumentação organicista e contextualista.............. 163

4.3 A combinação do liberal e do radical................................ 178

4.4 Uma consciência histórica sinedóquica............................. 197

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 206

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................... 218

9

INTRODUÇÃO

Em sua obra Meta-História: a imaginação histórica do século XIX

(1973) o historiador estadunidense Hayden White analisou historiadores e

filósofos da história como Hegel, Croce, Michelet, Ranke, Tocqueville,

Burckhardt, Marx e Nietzsche, investigando nos trabalhos produzidos por

eles a consciência histórica que compartilhavam e que deixaram

transparecer por meio de uma estrutura narrativa específica apresentada

em suas produções.

De acordo com Hayden White, ao longo do século XIX, tanto os

historiadores quanto os filósofos analisados por ele discutiram qual seria a

forma que uma autêntica representação realística do passado deveria

assumir. Em virtude disso, a Europa oitocentista produziu uma grande

diversidade de tipos de consciência histórica que foram identificados por

Hayden White através da aplicação da sua Teoria da Obra Histórica que

apresentou em seu livro.

Em poucas palavras, em Meta-História Hayden White associou os

quatro tropos básicos utilizados na análise da linguagem poética –

metáfora, metonímia, sinédoque e ironia – aos tipos de consciência

histórica identificados por ele na análise das narrativas históricas do século

XIX, sugerindo um desenvolvimento tanto da Filosofia da História quanto da

Historiografia rumo a uma atitude essencialmente irônica1. Ele também

estabeleceu três níveis denominados de explicação por elaboração de

enredo, explicação por argumentação formal e explicação por implicação

ideológica nos quais operam os historiadores para responderem questões

1 WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2º Ed. São Paulo: Editora da USP, 2008, p.55.

10

como “o que aconteceu?”, “o que tudo isso significou?” e “qual a finalidade

disso tudo?”.

A proposta desta pesquisa de doutoramento é aplicar a Teoria da

Obra Histórica de Hayden White na análise de algumas obras do historiador

brasileiro Sérgio Buarque de Holanda. A finalidade é tanto a de verificar no

nível da estrutura da narrativa quais foram os elementos tropológicos

escolhidos por Holanda durante a composição de suas obras que, por sua

vez, nos informam sobre a consciência histórica dele, quanto verificar a

aplicabilidade e a funcionalidade da Teoria de Hayden White. A ideia que

tenho é que se White conseguiu analisar tropologicamente os historiadores

e os filósofos considerados clássicos do século XIX, cujo pensamento

contribuiu para a formação e consolidação da História como disciplina, é

possível e viável analisar também a obra de outros historiadores também

clássicos pelo mesmo viés teórico-metodológico que foi aplicado em Meta-

História.

De maneira geral, o reconhecimento e a valorização da

produção intelectual de Sérgio Buarque de Holanda são crescentes, como

também a pluralidade das abordagens analíticas existentes2. Assim, a

originalidade das análises apresentadas a seguir está exatamente na

proposta de ler as fontes, que são livros já bastante conhecidos e

estudados, a partir do modelo analítico estabelecido por Hayden White.

2Cf.: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy (Org.) Sérgio Buarque de Holanda:

perspectivas. Campinas: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008; NICODEMO, Thiago

Lima. Urdidura do Vivido: Visão do Paraíso e a Obra de Sérgio Buarque de Holanda nos

anos 1950. São Paulo: Ed. USP, 2008; PESAVENTO, Sandra Jatahy (Org). Um Historiador nas

Fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005;

VAINFAS, Ronaldo. Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso. In: MOTA, Lourenço

Dantas (Org). Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico II. 2ªEd. São Paulo: Editora

SENAC São Paulo, 2002; WEGNER, Robert. A Conquista do Oeste. A fronteira na obra de

Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000;SÉRGIO BUARQUE DE

HOLANDA. 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. Série Diversos.

11

As obras de Sérgio Buarque de Holanda selecionadas para esta

análise são Raízes do Brasil (1936) e Visão do Paraíso (1959). Ambas

possuem como temática central a colonização ibérica e os reflexos dela na

formação da nação brasileira, apresentam um diálogo com a historiografia

estrangeira e trazem uma comparação original entre a colonização

portuguesa e a espanhola na América. Eu espero que esta permanência

temática e também a distância temporal de mais de vinte anos entre a

publicação destes livros permita perceber a formação e o desenvolvimento

da consciência histórica de Sérgio Buarque de Holanda.

A professora e historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias3, que

foi aluna do professor Sérgio, dividiu a produção intelectual dele nas cinco

partes seguintes: 1936-1945, de Raízes do Brasil até Monções; 1946-1957,

da edição de Monções ao lançamento de Caminhos e Fronteiras; 1957-

1959, momento de produção da obra Visão do Paraíso; e paralelamente

1960-1970 e 1962-1972, momentos em que Sérgio esteve ocupado a

coleção História Geral da Civilização Brasileira.

Mesmo que Maria Odila tenha destacado Raízes do Brasil como

marco inicial das atividades intelectuais de Holanda, a publicação realizada

por Antonio Arnoni Prado4 dos artigos de crítica literária que saíram em

jornais e revistas principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo desde

que Holanda tinha 18 anos de idade, demonstra que na verdade mesmo

antes da publicação de Raízes do Brasil a atuação intelectual de Holanda foi

de merecida contribuição para o cenário nacional. Nos dois volumes de O

Espírito e a Letra, Arnoni Prado considerou como contribuições desse

conjunto de artigos e ensaios a discussão inovadora de método, o uso de

3DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1985. (Coleção Grandes Cientistas Sociais, n.51) 4PRADO, Arnoni. O Espírito e a Letra. Vol. 1 e 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

12

uma bibliografia atualizada para a época, a concepção da literatura como

forma privilegiada de conhecimento e a fidelidade aos deveres do crítico

acompanhando e questionando tudo o que cada geração sucessivamente

realizava em literatura. Os primeiros textos produzidos por Sérgio Buarque

de Holanda foram publicados principalmente no Diário Carioca, Folha da

Manhã, Correio Paulistano, A Cigarra, Fon-Fon, Revista do Brasil, Klaxon e

Estética.

Em relação ao período entre a publicação de Raízes do Brasil e a

publicação de Monções, ele representou uma fase de pesquisas

sistemáticas de fontes e da formação do estilo narrativo singular de

Holanda, mais ensaísta do que monográfico. Este momento corresponde

com a mudança de Sérgio Buarque de Holanda para São Paulo, com suas

atividades como professor da Escola de Sociologia e Política e com o

trabalho na direção do Museu Paulista. A citação seguinte destaca o

processo de elaboração de Monções que culminou com o amadurecimento

dele como historiador:

A publicação de Monções marcou uma nova fase no percurso intelectual do autor, caracterizado por sua atividade como historiador propriamente dito. É de se supor que o período compreendido entre a publicação de Raízes do Brasil e a publicação de Monções corresponda a um processo de amadurecimento que levou Sérgio Buarque de Holanda a escolher a história como profissão5.

Sobre o segundo momento produtivo de Sérgio Buarque de

Holanda destacado pela publicação de Caminhos e Fronteiras, foi um

5 NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do Vivido: Visão do Paraíso e a Obra de Sérgio

Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: Ed. USP, 2008, p.04.

13

período que ele esteve ocupado em compreender a expansão geográfica do

Brasil e o papel do paulista neste processo. Esta obra é uma coletânea

lançada no ano de 1957 quando Sérgio Buarque de Holanda havia acabado

voltar da Itália, onde passou dois anos lecionando história e literatura

brasileira. Trata-se de uma compilação de vários textos escritos ao longo de

pouco menos de uma década. Em 1949 foi publicado nos Anais do Museu

Paulista o artigo Índios e Mamelucos na Expansão Paulista, que mais tarde

formaria a primeira parte do livro em questão. A segunda e terceira parte

desta obra vieram a público no decorrer dos primeiros anos da década de

1950 como artigos de jornal ou como conferências.

Em relação a terceira fase destacada por Maria Odila Dias, ela

está relacionada com obra Visão do Paraíso: os motivos edênicos no

descobrimento e colonização do Brasil, que é na verdade a tese universitária

que levou Sérgio Buarque de Holanda à cátedra de História da Civilização

Brasileira da Universidade de São Paulo, em 1958. No ano seguinte, ganhou

sua primeira publicação para o público não acadêmico, pela editora José

Olympio. Em sua segunda edição pela Companhia Editora Nacional e Edusp,

no ano de 1968, sofreu alterações significativas feitas pelo próprio autor

com a finalidade de “desfazer enganos de interpretação surgidos desde que

foi publicado pela primeira vez”6. O capítulo no qual analisamos Visão do

Paraíso teve como fonte a edição de 2010 da Companhia das Letras.

Finalmente, o quarto e quinto momento produtivo de Sérgio

Buarque de Holanda destacado por Maria Odila Dias correspondem a

criação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, em 1962, que foi

uma das contribuições mais significativas de Holanda para a cultura

brasileira segundo o prof. Dr. João Ricardo Caldeira em seu texto sobre a

6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 11.

14

atuação de Holanda na USP7. Por meio deste órgão nosso autor contribuiu

para o incremento das atividades de pesquisa na universidade, que no

mesmo período contava também com o Centro de Sociologia Industrial e do

Trabalho, o Instituto de Geografia, o Instituto de Pré-História e o Instituto de

Biologia Marinha.

A proposta do IEB era ser um espaço democrático e aberto para

reflexão sobre o Brasil, ampliando a investigação e o acesso a documentos

raros. Este instituto serviu para unir diferentes cadeiras e disciplinas

dedicadas aos estudos brasileiros, tornando-se um arquivo de documentos

de diversas naturezas que tratavam do Brasil, como explicou prof. Dr. João

Ricardo Caldeira:

Somente a pesquisa multidisciplinar baseada na análise de fontes primárias poderia possibilitar o entendimento da civilização brasileira, cuja compreensão estava a requerer esforço contínuo e coletivo de seus analistas. Por isso, entre as várias finalidades do IEB, determinou-lhe a aquisição e guarda de documentos de natureza diversa referentes do Brasil8.

Entre os objetivos que Holanda empreendeu durante a sua

atuação na USP estiveram a formação de professores e pesquisadores

qualificados para o ensino e a investigação de diversas temáticas e assuntos

da história do Brasil, como também a introdução da perspectiva

multidisciplinar nos estudos da universidade.

7 CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Sérgio Buarque de Holanda e a criação do Instituto de

Estudos Brasileiros da USP. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy (Orgs). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas: UNICAMP. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008, p. 83. 8 Ibidem, p. 94-95.

15

Em 1972, Sérgio Buarque de Holanda publicou seu último livro,

Do Império à República, quinto volume de O Brasil Monárquico, segundo

tomo da História Geral da Civilização Brasileira, coleção por ele coordenada

desde 1960. Nos últimos anos de sua atividade intelectual, esteve envolvido

no projeto de reescrita deste volume que ele havia considerado ainda

imperfeito. Recentemente, a editora Companhia das Letras em 2010

publicou as 150 páginas datilografas deste projeto de revisão inconcluso.

Esta obra póstuma recebeu o título de Capítulos de História do Império.

Mesmo considerando a importância dos artigos, ensaios,

prefácios, críticas literárias e dos demais livros produzidos por Sérgio

Buarque de Holanda, resolvi optar por analisar mais profundamente

somente dois dos seus escritos de História que considerei mais relevantes

para esta pesquisa. Esta escolha destas duas obras refere-se principalmente

ao objetivo de analisar o desenvolvimento da consciência histórica de

Holanda e de identificar o estilo historiográfico correspondente a ele. A

ideia foi que o seu livro de estreia, Raízes do Brasil,definitivamente o

trabalho mais conhecido de Holanda, em comparação com o seu livro

considerado o seu trabalho mais maduro, Visão do Paraíso, me permitiria

mais facilmente detectar o tipo de enredo, argumentação e ideologia

presentes no tipo de história desenvolvida pelo autor/objeto em questão no

decorrer da sua trajetória. Ambas as obras possuem uma afinidade temática

apesar da diferença de mais de vinte anos entre as publicações e isso

facilitaria ainda mais a comparação analítica e me permitiria perceber as

permanências e as mudanças no desenvolvimento da consciência histórica

partilhada por Holanda.

Quanto a estrutura de capítulos apresentados a seguir, o

primeiro deles está centrado na apresentação geral do pensamento de

Hayden White. Procurei neste primeiro capítulo expor as principais ideias e

16

os principais conceitos desenvolvidos por ele ao longo da sua atuação

profissional, que continua apesar dos quase noventa anos de idade. Trata-

se, portanto, de uma introdução ao pensamento histórico deste professor e

teórico estadunidense. Com o intuito de evidenciar cada momento

produtivo da sua carreira e destacar as mudanças de interesse de pesquisa

pelas quais ele passou, elaborei neste capítulo inicial uma divisão do

pensamento whiteano em quatro fases.

O segundo capítulo é especificamente sobre o livro Meta-

História. Além de assinalar qual foi a sua importância historiográfica e a sua

relevância para os estudos de Teoria da História, este capítulo analisa mais

profundamente a Teoria da Obra Histórica e a maneira pela qual Hayden

White a aplicou em seus estudos sobre o século XIX. Além disso, tentei

nesse capítulo apresentar as principais interpretações que tem sido feita

acerca do pensamento whiteano.

O terceiro capítulo refere-se a análise da trajetória de atuação do

historiador Sérgio Buarque de Holanda focando a esfera profissional sem

negligenciar alguns aspectos que considerei relevantes da sua vida pessoal.

A intenção foi identificar também o seu papel na historiografia nacional

destacando a importância da cada uma das suas obras. Neste capítulo

também apresentei uma rápida análise das obras Monções, Caminhos e

Fronteiras e Do Império à República pelo viés whiteano, já adiantando as

estratégias narrativas adotadas por Holanda.

O quarto e último capítulo é a análise do desenvolvimento da

consciência histórica de Sérgio Buarque de Holanda. Através da aplicação da

Teoria da Obra Histórica de White analisei a narrativa os textos das obras

Raízes do Brasil e Visão do Paraíso com o propósito de saber acerca da

combinação do tipo de enredo, de argumentação e de ideologia

estabelecida que, por sua vez, informam sobre um estilo historiográfico

17

específico. A comparação destas duas obras teve o objetivo de investigar

exatamente o desenvolvimento desse estilo historiográfico que fez de

Holanda um clássico da nossa historiografia.

Espera-se que esta tese seja uma contribuição aos estudos de

Teoria da História e possa assegurar a funcionalidade e a aplicabilidade da

forma adotada por Hayden White em suas análises históricas. O objetivo

também é que o exercício de análise realizado nas obras do historiador

Sérgio Buarque de Holanda seja visto também como uma maneira viável e

pertinente de se investigar a compreensão histórica de outros pensadores.

18

CAPÍTULO 1

O PENSAMENTO HISTÓRICO DE HAYDEN WHITE

O professor Hayden White, nascido em 12 de julho de 1928 em

Martin no estado de Tennessee nos Estados Unidos da América, tem sido

objeto de numerosos livros, análises, artigos e discussões9 principalmente

depois da publicação da obra Meta-História, livro que lhe conferiu uma

grande repercussão e se tornou a sua obra mais conhecida e importante10.

Atualmente Hayden White é professor emérito de História da

Consciência na University of California, Santa Cruz, e membro da American

Academy of Arts and Sciences. Ao longo de sua carreira passou por muitas

instituições tais como a University of Rochester (1958-1968), UCLA (1968-

1973), Wesleyan University (1973-1978), UC Santa Cruz (1978-1995) e, mais

recentemente, Stanford University (1995-2009), onde lecionou no

departamento de Estudos de Literatura Comparada.

Entre as principais publicações da sua carreira podemos citar

Meta-História: A imaginação Histórica do século XIX (1973) e Trópicos do

Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura (1978), que já foram traduzidas

para a língua portuguesa, The Content of the Form: Narrative Discourse and

Historical Representation(1987), Figural Realism: Studies in the Mimesis

Effect (1991), The Fiction of Narrative: Essays on History, Literature, and

Theory, 1957-2007 (2010) e The Practical Past(2014).

9 Entre as principais obras que têm o pensamento whiteano como objeto central podemos citar:DORAN, Robert (Editor). Philosophy of History after Hayden White. London: Bloomsbury, 2013;HERMAN, Paul. Hayden White: The Historical Imagination. Cambridge: Polity Press, 2011;ANKERSMIT, Frank; DOMANSKA, Ewa; KELLNER, Hans (Orgs.)Re-Figuring Hayden White. Stanford: Stanford University Press, 2009. 10 Robert Doran (2013, p. 01) escreveu que 1973 foi um ano fatídico para os estudos históricos em virtude da publicação de Meta-História. Para Frank Ankersmit (2013, p. 47) Meta-História foi o livro mais importante publicado desde a Segunda Guerra Mundial. Gabrielle Spiegel (2013, p. 171) escreveu que é difícil imaginar como um único trabalho como Meta-História foi capaz de gerar um grande impacto no nosso entendimento historiográfico.

19

O principal objeto de seu interesse de pesquisa ao longo de sua

carreira tem sido a relação entre a História e a Literatura, como ele mesmo

explicou no prefácio de seu trabalho mais recente:

All my life I have been interested in the relationship between history and literature. This relationship has interested me since the time I first became fascinated by history. Like many historians, I first encountered the historical past in the stories of knights in arms, kings, crusades, and battles; tales of Robin Hood, Roland, and King Arthur; the Norse myths, Greek myths, and, of course, the history of Rome11.

Durante as suas atividades como professor, Hayden White

ministrou várias palestras, inclusive no Brasil, participou de vários debates

acadêmicos e publicou um número considerável de ensaios em importantes

revistas, tais como a New Literary History e a History and Theory. Segundo a

listagem preparada por Ewa Domanska12, professora polonesa doutora do

Departamento de História da Universidade Adam Mickiewicz, na Polônia, e

do Departamento de Antropologia da Universidade de Standford, nos

Estados Unidos, Hayden White já publicou quase 150 trabalhos entre

resenhas críticas e ensaios. A maneira favorita adotada por White para

escrever, de fato, não foi a monografia, mas o ensaio. Ao invés mais de

11“Toda a minha vida tenho me interessado pela relação entre história e literatura. Esta relação tem me interessado desde a primeira vez que fiquei fascinado pela história. Como muitos historiadores, encontrei o passado histórico nas histórias de cavaleiros, reis, cruzadas e batalhas; contos de Robin Hood, Roland e Rei Arthur; os mitos nórdicos, os mitos gregos e, é claro, a história de Roma”. WHITE, Hayden. The Practical Past. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2014, p. ix, tradução nossa. 12 DOMANSKA, Ewa. Hayden White: Bibliography compiled by Ewa Domanska. 2015. Disponível em: <http://www.staff.amu.edu.pl/~ewa/Hayden_White_Bibliography.htm>. Acesso em: 15 dez 2015.

20

duzentas páginas respondendo uma única questão, ele prefere escrever

vinte páginas aflorando criatividade, por isso, a maior parte dos livros

publicados por ele são na verdade uma coletânea dos seus ensaios

lançados em diferentes momentos da sua atividade profissional.

De maneira geral há um número considerável de interpretações

sobre a obra de Hayden White, cada uma delas com um foco distinto

demonstrando o alcance da sua teoria. No entanto, muitos destes trabalhos

apresentam generalizações e tentam caracterizá-lo somente como um

narrativista ou tropologista, esquecendo os demais interesses de pesquisa

que ele apresentou no decorrer da sua atuação. De acordo com Herman

Paul, professor doutor de Teoria da História da Universidade de Leiden, na

Holanda, muitos instrumentos retóricos e conceituais que White empregou

em fases particulares da sua carreira são frequentemente identificados

como a principal preocupação do seu trabalho13. Conforme escreveu este

autor, White também se interessou por outros temas e conceitos como

"modernist events", "intransitive writing" e "practical past":

But if White was a tropologist in his heart of heart, then how to account for the almost complete absence of tropes in The Content of Form? Or how to explain White’s interest in “modernist events”, “intransitive writing”, and the “practical past”, none of which can easily be encapsulated in a tropological theory?14.

13PAUL, Herman. Hayden White: The Historical Imagination. Cambridge: Polity Press, 2011, p.8. 14“Mas se White era um profundo tropólogo, então como explicar a quase completa ausência dos tropos em The Content of Form? Ou como explicar o interesse de White pelos "eventos modernistas", pela "escrita intransitiva" e pelo "passado prático", nenhum dos quais pode ser facilmente encapsulado numa teoria tropológica?”.Ibidem, p.9, tradução nossa.

21

Para uma interpretação mais coerente da obra de Hayden White

é importante considerar que no decorrer das suas atividades intelectuais

ele produziu muitos textos com temáticas variadas e conceitos distintos,

além disso, o acompanha o hábito de elaborar mais questionamentos sobre

o conhecimento histórico do que conclusões fechadas. Então, é crucial para

qualquer interpretação perceber as fases das suas produções e os

momentos em que certos conceitos foram deixados de lado para dar lugar

a outros elaborados com a finalidade de responder aos seus novos

interesses de pesquisa e questionamentos.

Ao analisar a trajetória do pensamento histórico de Hayden

White, verifiquei a possibilidade de identificar pelo menos quatro estágios,

ou quatro momentos produtivos, marcados por sua mudança no foco de

discussão e pela introdução de novos conceitos elaborados a partir de suas

novas influências, leituras e perguntas. Vale dizer que esta divisão não está

presente em nenhum dos seus comentadores, mas foi elaborada aqui para

enfatizar o desenvolvimento do pensamento whiteano e também para

localizar a obra que nos interessa mais, Meta-História, no contexto das suas

demais produções.

De acordo com as análises do prof. Dr. Herman Paul, existe uma

questão chave no pensamento de Hayden White que aparece em todas as

suas produções como uma questão norteadora da qual ele sempre parte.

Segundo ele, White esteve preocupado em responder como viver de forma

moralmente responsável em um mundo completamente histórico15. Sobre

este viés existencialista de Hayden White, o professor holandês escreveu:

15PAUL, 2011, p.12.

22

The heart of White’s philosophy of history lies an existentialist-inspired understanding human flourishing, which reveals itself, among other things, in White’s unshakable confidence in the abilities of human beings to endow the “meaningless” realities of past and present with self-won meanings; in his imperative that human individuals must develop such meanings in order to free themselves from traditions, conventions, and other tyrannical powers, in his insistence that every historical interpretation entails a moral judgment, for which the author bears personal responsibility16.

Sem desconsiderar que haja esse fio que perpassa todo o

pensamento de Hayden White, optei por dividir a sua produção intelectual

nos quatros momentos seguintes: Primeira Fase (1953-1965); Segunda Fase

(1966-1972); Terceira Fase (1973 -1987); Quarta Fase (1988 -2014). O

primeiro momento tem como referência as produções da década de 1950

influenciadas pelos seus estudos na Itália. A segunda fase cobre o momento

em que ele esteve preocupado em aliviar o “fardo” da História respondendo

a alguns debates sobre as aproximações entre História, Ciência e Arte. A

terceira fase corresponde ao momento em que as suas produções trataram

mais especificamente da relação entre discurso e narrativa, foi a fase na

qual ele esteve inserido nas discussões da Nova Crítica e do Estruturalismo

de Levi-Strauss e Roland Barthes. A última fase cobre o período do final da

década de 1980 e o início dos anos 2000 quando apareceram os conceitos

16“O coração da Filosofia da História de White é uma compreensão de inspiração existencialista do florescimento da humanidade, que se revela, entre outras coisas, na confiança inabalável de White nas habilidades dos seres humanos para dotar as realidades "sem sentido" do passado e do presente com seus próprios significados; em seu imperativo de que os humanos individualmente devem desenvolver tais significados para se libertar das tradições, convenções e outros poderes tirânicos, em sua insistência de que toda interpretação histórica implica um juízo moral, pelo qual o autor tem responsabilidade pessoal”. PAUL, p.11, tradução nossa.

23

de “evento moderno”, “escrita intransitiva”, “realismo figural” e “passado

prático” em suas obras.

Neste capítulo, tentarei apresentar as características marcantes

de cada uma dessas fases, além de falar sobre as principais ideias presentes

nas obras de White que representam cada período de seu pensamento. As

datas que marcam o início de cada nova fase são na verdade o ano de

publicação dos textos chaves que compõe o seu pensamento. A intenção ao

estabelecer esta divisão não é a de propor uma interpretação inovadora

das obras de Hayden White ou dos conceitos de discurso, figuras de

linguagem, narrativa, texto escrito, tropologia, representação e passado

prático que ocuparam a reflexão de White. O meu objetivo neste capítulo é

demonstrar que em diferentes momentos da sua carreira, White teve

diferentes objetivos de pesquisa e explorou conceitos específicos e, assim

como exposto acima, não podemos generalizar e caracterizar o

pensamento de White com termos e conceitos que fizeram parte de

momentos específicos de sua produção e não mais foram retomados por

ele em outras fases do seu pensamento.

Da maneira como analiso, mesmo que o interesse desta pesquisa

de doutoramento esteja centrado mais diretamente na obra Meta-História,

conhecer o espaço específico que este livro ocupa no pensamento de

White, como também saber em linhas gerais sobre a formação e trajetória

de seu pensamento me permite entender melhor o seu contexto produtivo

e ter uma visão sobre como o conceito de história foi construído por White

ao longo da sua trajetória. Por isso, antes de apresentar a análise

propriamente dita de Meta-história, que virá no capítulo posterior, achei

necessário expor neste primeiro capítulo a minha visão geral do

pensamento histórico de Hayden White.

24

1.1 PRIMEIRA FASE (1953-1965): A INFLUÊNCIA ITALIANA

Após a sua graduação pela Universidade de Michigan, Hayden

White teve a oportunidade de passar alguns anos na Itália e aprofundar

seus estudos sobre história eclesiástica medieval e sobre as reformas

gregorianas nos século XI e início do século XII. Segundo White, este

período na Europa foi importante para ele, pois lhe permitiu deixar o

ambiente americano considerado por ele mesmo muito puritano e

conhecer outras maneiras de pensar sobre a História. Foi em Roma que ele

publicou os seus primeiros ensaios e também aumentou o seu interesse

pela Filosofia da História.

Em uma entrevista concedida ao professor norueguês Erlend

Rogne na cidade de Roma em setembro de 2007, White explicou como

surgiram seus primeiros trabalhos e quais autores lhe interessa mais:

So I came to Rome. It was in 1953, and I came over for two years. When I was here, I met Mario Praz, who was publishing a journal called English Miscellany. I’d always been interested in R. G. Collingwood, Arnold Toynbee, and the philosophy of history, even as I was working as a medievalist, and Praz said that he would welcome something on these topics. So I published on Collingwood, Toynbee, and Christopher Dawson, a then very well-known Roman Catholic philosopher of history. In general, European culture interested me more than American culture, because American culture was too puritanical17.

17

"Então eu vim para Roma. Foi em 1953, e eu vim por dois anos. Quando estive aqui, conheci Mario Praz, que estava publicando uma revista chamada English Miscellany. Eu sempre me interessei por R. G. Collingwood, Arnold Toynbee e pela Filosofia da História, mesmo trabalhando como medievalista, e Praz disse que gostaria de receber algo sobre esses tópicos. Então eu publiquei sobre Collingwood, Toynbee, e Christopher Dawson, um bem conhecido filósofo da história católica romana. Em geral, a cultura européia me interessava mais do que a cultura americana, porque a cultura americana era muito puritana”. ROGNE, Erlend. The Aim of Interpretation is to Create Perplexity in the Face of the Real: Hayden White in Conversation with Erlend Rogne. History and Theory. Middletown: Wesleyan University, Vol. 48 N. 1, 2009, p. 63, tradução nossa.

25

Durante este período na Itália White desenvolveu a sua tese de

doutorado intitulada The Conflict of Papal Leadership Ideals from Gregory

VII to St. Bernard of Clairvaux with Special Reference to the Schism of 1130.

Neste trabalho em particular que não está publicado, White esteve

especialmente interessado no sistema de valores dos grupos que

competiam juntos pelo poder. Ele também sugeriu que as ideologias

poderiam ser melhor compreendidas e classificadas pelo exercício dos tipos

ideais weberianos18.

De fato, a sociologia weberiana influenciou a produção do

conhecimento histórico e em relação a produção White não foi diferente.

Muitos conceitos weberianos como liderança "carismática" e "burocrática"

aparecem em sua tese. Na entrevista concedida ao professor Erlend Rogne,

White explicou a influência que Weber exerceu sobre ele:

Well, as a historian, writing intellectual institutional history of the church, I was influenced most by Max Weber and Weberian conceptions of leadership and institutions and so forth. So I had committed myself to the idea that history was not so much a matter of being objective as it was a discipline in the German sense of Wissenschaft.19

Em sua tese White sugeriu que os líderes religiosos carismáticos

geralmente legitimavam-se pela crítica às práticas burocráticas. Esse

contraste aparecia nas diferenças religiosas geracionais, como tinha sido o

18PAUL, 2011, p.18. 19“Bem, como historiador, escrevendo uma história intelectual institucional da igreja, fui bastante influenciado por Max Weber e pelas concepções weberianas de liderança e instituições e assim por diante. Então eu havia me comprometido com a ideia de que a história não era tanto uma questão de ser objetiva como era a disciplina no sentido alemão de ciência”. ROGNE, 2009, p. 65, tradução nossa.

26

caso no mosteiro de Cluny. Na sua visão isso criou as condições para o

cisma.

Além de Marx Weber, os autores Karl Mannheim e Arnold

Toynbee também influenciaram White durante a preparação da sua tese. A

partir desses autores, White criou seu modelo de "covering law" no qual

demonstrava que a liderança carismática, mais cedo ou mais tarde, "se

tornava racionalizada, mecanizada e institucionalizada, tornando-se assim

tão burocrática quanto a forma de liderança que originalmente tinha

destinado a criticar e desafiar"20.

Outro intelectual que influenciou White na redação de sua tese

foi Clyde Kluckhohn. A partir deste antropólogo americano, o conceito de

ideologia de White ganhou uma nova conotação associada ao conceito de

"value orientation". Isso ajudou White a interpretar o comportamento e as

ideias dos grupos envolvidos no seu objeto de estudo. Para White, a

ideologia não tem um significado pejorativo, pelo contrário, estava

associada ao conjunto de crenças que guiam moralmente a vida do

indivíduo, como podemos ver na explicação seguinte:

White’s notion of ideology included beliefs about the nature of reality and the nature of good life. It encompassed ideas about what is and ought to be in society. In short, it designated a wide range of basic beliefs that somehow guide an individual’s moral life21.

20PAUL, 2011, p.21. 21

“A noção de ideologia de White incluía crenças sobre a natureza da realidade e a natureza da vida boa. Abrangia ideias sobre o que é e deve ser na sociedade. Em suma, ele designou uma ampla gama de crenças básicas que de alguma forma orienta a vida moral de um indivíduo”. Ibidem, p.23, tradução nossa.

27

Este tempo de estudo na Itália, sob a orientação do professor

Carlo Antoni, fez Hayden White obter simpatia também por intelectuais

italianos como Benedetto Croce. O seu orientador Antoni era um discípulo

de Croce que criticava a sociologia alemã. Então, gradualmente a tendência

de White foi se afastar da influência weberiana e se aproximar cada vez

mais do pensamento do Croce. O fragmento seguinte explica como Weber

e Croce influenciaram na formação do pensamento whiteano:

Likewise, in his understanding of human self, Weber emphasized moral self-determination as much as Croce insisted on the self-realization of human nature through history. Both Weber and Croce, moreover, helped White conceive of history not as a result of impersonal powers or fortuitous circumstances but as a product of human intelligent and will22.

Em especial quatro aspectos da filosofia do Croce atraíram

White. Primeiro, ele foi cativado pelo conceito de história associada com o

conceito de arte. Em segundo lugar, a ênfase de Croce sobre a

complexidade das coisas e impossibilidade da realidade se encaixar em uma

única fórmula. Em terceiro lugar, o elemento da liberdade de pensamento

que levou Croce a dizer sobre o poder de escolha da humanidade. E

finalmente, Hayden White foi atraído pelo que Croce chamava de

compromisso moral. A profunda sensibilidade moral de Croce foi

22“Da mesma forma, em sua compreensão do eu humano, Weber enfatizou a autodeterminação moral tanto quanto Croce insistiu na auto-realização da natureza humana através da história. Tanto Weber como Croce, além disso, ajudaram White a conceber a história não como resultado de poderes impessoais ou circunstâncias fortuitas, mas como um produto de inteligência e vontade humana”. PAUL, 2011, p.32, tradução nossa.

28

demonstrada por sua recusa de desenhar linhas retas do passado para o

presente e por deixar aos seus contemporâneos a liberdade de decidir.

Em um ensaio publicado em 1963 intitulado The Abiding

Relevance of Croce's Idea of History, que mais tarde entrou na composição

do livro The Fiction of Narrative (2010), Hayden White deixou mais claro

como ele considerava importante a obra deste historiador e filósofo

italiano. Para ele Benedetto Croce se tornou relevante ao atribuir uma

conotação moral aos estudos históricos e ao conceber que os estudos do

passado deviam iluminar o presente. Sobre isso White escreveu neste

ensaio:

All Croce's historical works are more properly designated as moral tracts than "pure" scholarship, and this was completely consistent with his conception of historical understanding as the preparation for morally responsible action. Since, in Croce's view, true historical investigation was always inspired by some moral concern, it could be brought to completion only in an attempt to influence social decisions. Thus his studies of the past are always conceived as instruments for illuminating the present.23

As leituras das obras de Jean-Paul Sartre e Albert Camus

realizadas quando Hayden White era um jovem estudante e sua leitura das

obras de outros existencialistas como Karl Jaspers e Gabriel Marcel,

23“Todas as obras históricas de Croce são mais apropriadamente designadas como tratados morais do que como "puras" erudições, e isso foi completamente coerente com sua concepção de compreensão histórica como a preparação para uma ação moralmente responsável. Uma vez que, na opinião de Croce, a verdadeira investigação histórica sempre foi inspirada por alguma preocupação moral, ela só poderia ser concluída na tentativa de influenciar as decisões sociais. Assim, seus estudos do passado são sempre concebidos como instrumentos para iluminar o presente”. WHITE, Hayden. The Fiction of Narrative: essays on History, Literature, and Theory, 1957-2007. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2010, p. 64, tradução nossa.

29

encontraram no italiano Croce um grande reforço. Desta forma, a visão de

mundo compartilhada por White e também a sua visão do conhecimento

histórico tornaram-se ainda mais inspiradas pelas ideias de poder de

decisão individual.

Em outros momentos da carreira de White esse pensamento

existencialista se tornou mais forte. De acordo com a professora Drª. Ewa

Domanska, isso acabou por definir e caracterizar seu pensamento histórico:

White’s approach can be defined through a conception of history as being progressive in the sense of modernist utopias and in terms of a specific philosophy of subjectivity and human agency that stems from a Camus style existentialism focusing on the question of human choices24.

Nesta primeira fase da construção do seu pensamento, White

consolidou uma visão existencialista do mundo acrescentando a elas suas

novas leituras realizadas na Itália, especialmente a partir das suas

interpretações da obra de Croce. Como destacou Domanska, a

preocupação com a questão das escolhas humanas passou a definir a

abordagem histórica de White. O historiador medieval pesquisador da

Igreja mudou gradativamente o seu foco de interesse e aos poucos migrou

da História Medieval para a Filosofia da História, passando a se preocupar

com o papel e a função da História para a vida da humanidade. Por causa

da relevância que White conferiu sobre a relação entre História e

24“A abordagem de White pode ser definida através de uma concepção de história como

sendo progressista no sentido das utopias modernistas e nos termos de uma filosofia da subjetividade e da ação humana que deriva de um existencialismo no estilo de Camus centrado na questão das escolhas humanas”. DOMANSKA, Ewa. Hayden White and liberation historiography. Rethinking History. London: Routledge, 2014, p. 2, tradução nossa.

30

Existencialismo é possível identificar uma nova fase em sua obra

apresentada a seguir.

1.2 SEGUNDA FASE (1966-1972): O FARDO DA HISTÓRIA

Depois da sua experiência na Itália, gradualmente White mudou

o foco das discussões em seus estudos e ensaios. Ao longo dos anos, o

historiador medieval passou a se interessar por questões e problemas

historiográficos tais como "a história deve ainda ser estudada?" e "por que

a história tornou-se uma disciplina tão culturalmente irrelevante?"

Em 1966 White publicou na revista History and Theory o ensaio

mais provocativo da sua carreira. The Burden of History, traduzido para o

português como O Fardo da História, fez parte mais tarde dos artigos que

compuseram o livro Trópicos do Discurso (1978) e é uma reflexão acerca da

relação da História com a Arte e a Ciência. Neste texto White discutiu sobre

o papel da história e falou sobre as críticas da comunidade intelectual feita

a ela. No seu ponto de vista, o registro histórico, tal como é feito

atualmente, pouca ajuda oferece na busca de soluções adequadas para os

problemas do presente, por isso a história precisa se refazer no sentido de

estabelecer um sentido para o estudo do passado. Além disso, na opinião

dele "precisamos de uma história que nos eduque para a descontinuidade

de um modo como nunca se fez antes"25.

Este ensaio também falou sobre o problema relacionado aos

aspectos científicos e artísticos da História. White argumentou que a

História sofria de ideias antiquadas de ciência e arte, porque, quando os

historiadores falam nelas, eles pensam nas ciências naturais praticadas no

25 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura. São Paulo: Editora da USP, 2001, p. 63.

31

século XIX e pensam em arte sem considerar os novos formatos mostrados,

por exemplo, pelos romances modernos de Virginia Woolf. White afirma

que "muitos historiadores não tem consciência de que já não se pode

justificar a disjunção radical entre arte e ciência que seu pretenso papel de

mediadores entre elas pressupõe"26.

A inspiração existencialista de White é bastante evidente neste

texto. Podemos ver no fragmento a seguir como o seu existencialismo

adquiriu uma forte conotação de responsabilidade com o tempo presente.

Para White, os historiadores devem ter em mente os problemas do

presente ao escrever sobre o passado:

Portanto, tanto na opinião de Schopenhauer quanto na de Sartre, é de bom alvitre para o artista ignorar o registro histórico e limitar-se à consideração do mundo dos fenômenos tal como este lhe é apresentado na sua experiência cotidiana. Cabe perguntar, então, por que o passado deve ser estudado e qual a função pode ser favorecida por uma contemplação das coisas à luz da história. Em outras palavras: há alguma razão pela qual devamos estudar as coisas à luz da sua condição passada, e não à luz da sua condição presente, que é a luz sob o qual todas as coisas se oferecem imediatamente à contemplação?27

Além do existencialismo, nesta segunda fase do seu pensamento

Hayden White também foi influenciado pelas ideias do marxismo. No

ensaio chamado The Tasks of Intellectual History, publicado em 1969 e

depois republicado em 2010 na coletânia The Fiction of Narrative, White

demonstrou as contribuições da teoria marxista e do materialismo

26 WHITE, 2001, p. 40. 27 Ibidem, p.61.

32

dialético. Para ele, a colaboração imediata era o entendimento da história

com um processo e a filosofia da história como instrumento de

transformação do mundo. Sobre isso White escreveu:

In reality, dialectical materialism views history primarily as process, rather than as either action or thought; but precisely for this reason the Marxist historian is more concerned with the ways in which men adjust to or dominate reality than he is with this way in which men perceive reality. It should be remembered that Marx himself often defined the modern task of philosophy to be the transformation, rather than the interpretation, of world.28

Até o momento, Hayden White não escreveu nada parecido com

uma história social ou econômica, mas admitiu que o ideal marxista de

igualdade social contribuía para o exercício da liberdade individual

defendida por sua filosofia existencialista. Nesta fase, White tornou-se

defensor da filosofia marxista de Lucien Goldmann, segundo o qual as

alterações de aparatos mentais são possíveis devido às condições de infra-

estruturas sócio-econômicas. White percebeu que a liberdade de

pensamento não é determinada somente pelas condições sociais, mas

requer um aporte social adequado para se efetivar.

28 “Na realidade, o materialismo dialético vê a história primariamente como processo, e

não como ação ou pensamento; mas precisamente por esta razão o historiador marxista

está mais preocupado com as maneiras pelas quais os homens se ajustam ou dominam a

realidade do que pela maneira na qual os homens percebem a realidade. Deve-se

lembrar que o próprio Marx muitas vezes definiu que a tarefa moderna da filosofia era a

transformação, e não a interpretação, do mundo”. WHITE, 2010, p. 83, tradução nossa.

33

Hayden White não se tornou politicamente ativo ou militante

por causa de suas leituras marxistas. Apesar de ter assinado em 1960 uma

petição contra a Guerra do Vietnã, suas atividades intelectuais se

concentravam mais no ambiente acadêmico. Claro que a agenda social se

manteve como uma de suas preocupações. Ao participar de uma

conferência em Toronto em abril de 1969 White disse na sua palestra que

os historiadores não devem ser conduzidos pelo desejo rankeano de

estudar o passado "realmente" ou "essencialmente" como ele foi, mas pela

aspiração de desafiar o que conta como “real” ou “essencial” em nossas

sociedades.

Da forma como analiso, as produções de White no decorrer da

segunda metade da década de 1960 transpareceram a promoção da sua

visão existencialista e da sua preocupação com o papel social da história

enquanto disciplina. As discussões lançadas pelo ensaio O Fardo da História

não foram abandonadas completamente por ele nos anos seguintes, na

verdade permaneceram por trás do seu entendimento sobre a escrita da

história.

Para Hayden White, a noção de que o historiador deve escolher

um passado que sirva ao seu desejo de um futuro mais perfeito podia ser

localizado na escolha do historiador de um tropo linguístico adequado,

como sugeriu mais tarde em Meta-História, onde também advertiu que a

consciência do historiador e as implicações morais das suas escolhas

operativas refletem na criação de narrativas históricas. Para ele, o

historiador tem não só a possibilidade, mas também possui a necessidade

de escolher com responsabilidade, pois como escreveu Hayden White em

seu texto O Fardo da História, nós historiadores "escolhemos o nosso

passado da mesma forma que escolhemos o nosso futuro”29.

29WHITE, 2001, p. 51.

34

A partir de então, Hayden White mudou o seu foco para a

questão da escrita da história. Do meu ponto de vista, neste momento em

que ele apresenta as suas teorias sobre o discurso, a narrativa ficcional e

sobre a tropologia surgiu uma nova fase na trajetória do seu pensamento

histórico, que será exposto a seguir.

1.3 TERCEIRA FASE (1973 -1987): ESTUDOS SOBRE DISCURSO

Grande parte das ideias expostas nos trabalhos desta fase do seu

pensamento expressam a influência que Hayden White sofreu dos

intelectuais da Nova Crítica, movimento que surgiu nos Estados Unidos

paralelo ao Formalismo Russo. É possível notar também como o

Estruturalismo de Levi-Strauss e de Roland Barthes foram importantes na

formação do pensamento whiteano nesta terceira fase que se estende do

início da década de 1970 até o final da década de 1980. Neste período

Hayden White publicou uma grande variedade de textos, entre essas

publicações destacam-se The Greco-Roman Tradition (1973), Meta-História

(1973), Trópicos do Discurso (1978) e The Content of the Form (1987).

Em The Greco-Roman Tradition Hayden White ofereceu uma

narrativa sobre alguns aspectos importantes da história grega e romana. Ele

prestou uma atenção considerável a filosofia antiga, a arte e a retórica,

porém também focou que no fato de que nunca devemos esquecer, do seu

ponto de vista, que ao longo da história do mundo antigo a maior parte da

população grega e romana permaneceu irremediavelmente ligada as

práticas de magia, mitos e crenças supersticiosas dos tipos mais arcaicos.

Como esclareceu o professor Herman Paul, "o objetivo de White ao

35

escrever este pequeno livro de bolso foi enfatizar pesadamente o caráter

ficcional da tradição humanista"30.

Em Meta-História, seu livro mais conhecido, Hayden White

explicou logo nas páginas de abertura que seu novo trabalho era uma

"história da consciência histórica" e uma "teoria geral do conhecimento

histórico"31. White também apontou que seu livro foi escrito no modo

irônico e representava uma volta da consciência irônica contra si mesma.

O impacto que este trabalho causou não pode ser esquecido. A

professora estadunidense doutora Gabrielle M. Spiegel publicou em 2013

um artigo, na ocasião das comemorações do 40º aniversário da publicação

de Meta-História, e já nas primeiras linhas falou da importância da obra:

It would be difficult to imagine a single work dealing with the theory and philosophy of historical writing that has had a greater impact on our understanding of historiography over the last 40 years than Hayden White’s Metahistory, or one that has generated more constant discussion. Nor is this the first occasion on which an anniversary of its publication has been commemorated, earlier ones having taken place on the 15th and 21st anniversaries, not including conferences convened to discuss his work at less obviously celebratory moments 32.

30 PAUL, 2011, p.44. 31WHITE, 2008, p. 18. 32“Seria difícil imaginar um único trabalho que trata da teoria e da filosofia da escrita da história que tenha tido um impacto maior na nossa compreensão da historiografia nos últimos 40 anos do que a Meta-história de Hayden White, ou que tenha gerado uma discussão mais constante. Nem é esta a primeira ocasião em que o aniversário de sua publicação foi comemorada, anteriormente isto ocorreu no 15º e 21º aniversários, sem incluir as conferências convocadas para discutir seu trabalho fora desses momentos comemorativos”. SPIEGEL, Gabrielle M. Above, about and beyond the writing of history: a retrospective view of Hayden White's Metahistory on the 40th anniversary of its publication. Rethinking History. London: Routledge, Vol.17, N.4, 2013, p. 492, tradução nossa.

36

Sobre o alcance geográfico deste livro, o historiador Peter Burke

escreveu em seu artigo publicado também em 2013 que Meta-História foi

traduzido para várias línguas, como italiano, espanhol, Português e Japonês.

De acordo com Burke, “It is impossible to offer an exhaustive account, given

the range of this reception, both geographical (from Finland to Romania and

from São Paulo to Tokyo) and disciplinary (including anthropology and

geography as well as history, literature and philosophy)”33.

O propósito deste livro não era oferecer apenas um relato do

que tinha acontecido no domínio da representação histórica na Europa no

século XIX. De acordo com interpretação e análise do professor Dr. Herman

Paul, White teve objetivos mais profundos como o de demonstrar os modos

de pensamento histórico existentes no século XIX:

White’s aim was not – and would never be – to offer as careful and complete an account as possible of what had happened in the domain of historical representation. His goal was rather to sketch in broad strokes what sort of possibilities for historical thinking the nineteenth century contained. A handful of examples, of authors still known and recognized as classics, sufficed to alert his readers to modes of historical thinking that had once enjoyed a legitimate status, but that had been displaced by the successes of professionalization34.

33 “É impossível oferecer um relato exaustivo, dado o alcance dessa recepção, tanto

geográfica (da Finlândia à Romênia e de São Paulo para Tóquio) e disciplinar (incluindo

antropologia e geografia, bem como história, literatura e filosofia)”. BURKE, Peter.

Metahistory: before and after. Rethinking History. London: Routledge, Vol. 17, N. 4, 2013,

p. 440, tradução nossa.

34 “O objetivo de White não era - e nunca seria - oferecer uma descrição tão cuidadosa e

completa quanto possível no domínio da representação histórica do que havia acontecido. Seu objetivo era, antes, delinear em linhas gerais as possibilidades de pensamento histórico do século XIX. Um punhado de exemplos, de autores ainda conhecidos e reconhecidos como clássicos, bastava para alertar seus leitores sobre os modos de pensamento histórico que antes gozavam de status legítimo, mas que haviam sido deslocados pelos sucessos da profissionalização”. PAUL, 2011, p.61, tradução nossa.

37

A fim de identificar os níveis de conceptualização na obra

histórica, White distinguiu dois elementos primitivos (crônica e estória) e

três elementos não primitivos (modo de elaboração de enredo, modo de

argumentação e modo de implicação ideológica). Sobre isso White explicou

que:

a crônica e a estória remetem a elementos primitivos do relato histórico, mas ambas representam processos de seleção e arranjo de dados extraídos do registro histórico não processado no interesse de tornar esse registro mais compreensível para um público de determinado tipo. [...] O historiador arranja os eventos da crônica dentro de um hierarquia de significação ao atribuir aos eventos funções diferentes como elementos da estória35.

Para White perguntas como "O que aconteceu depois?", "Como

aconteceu isso?", "Porque aconteceram dessa forma?", "No que resultou

tudo isso?", suscitam táticas narrativas que o historiador emprega na

construção de sua estória. Essas perguntas podem ser respondidas de

diversas maneiras que foram chamadas por White de explicação por

elaboração de enredo, explicação por argumentação e explicação por

implicação ideológica.

White definiu o conceito de "estilos historiográficos" como a

combinação de um enredo, com um modo de argumentação e uma

ideologia. Para caracterizar estes estilos, White empregou uma linguagem

tropológica. Para ele, os tropos da metáfora, metonímia, sinédoque e ironia

descrevem os tipos básicos de consciência histórica. Estas quatro categorias

– enredos, argumentos, ideologias e tropos – empregadas no livro não

35 WHITE, 2008, p. 21-22.

38

eram apenas dimensões do texto escrito do historiador, mas aspectos

“meta-históricos” dos modos de realismo subjacentes a essas formas

textuais de representação histórica.

Neste sentido, Meta-História destaca a variedade de

modalidades de conceituação que os historiadores trazem para estudar o

passado. Para White, o poder de escolha do historiador está relacionado

mais a aspectos estéticos e morais do que a fundamentos epistemológicos.

No entanto, White sabia que cada escolha estava também sujeita a

convenções disciplinares e poderes discursivos, de modo que este poder de

escolha não eram tão livre assim. Então, para escapar da “gaiola da ironia”

era necessário que historiadores e filósofos da história fossem "libertos":

This seemed to imply that the paradigms of realism described in Metahistory were simply available for choice – as if there were no disciplinary conventions and discursive powers preventing historians from exchanging their Rankean or Crocean realism for a Tocquevillean or Marxist conception of the real. Of course, the liberation thinker that White was knew well that historians do not start from scratch. By the moment they are able to reflect on their work, they are already deeply socialized, or indoctrinated, into the irony of present-day historical studies. Historians must therefore be “freed” if they are ever to develop a non-ironic mode of realism36.

36

“Isso parecia sugerir que os paradigmas de realismo descritos ema Meta-história estavam simplesmente disponíveis para escolha - como se não houvesse convenções disciplinares e poderes discursivos que impedissem os historiadores de trocar seu realismo rankeano ou croceano por uma concepção tocquevillana ou marxista do real. É claro, o pensador da libertação que White era sabia bem que os historiadores não começam do zero. No momento em que são capazes de refletir sobre seu trabalho, eles já estão profundamente socializados, ou doutrinados, na ironia dos estudos históricos atuais. Os historiadores devem, portanto, ser "livres" se quiserem desenvolver um modo de realismo não-irônico”. PAUL, 2011, p. 64, tradução nossa.

39

Em Meta-História e em outros escritos de White da década de

1970, ele explicou que é impossível escrever qualquer livro sem o uso da

linguagem, é impossível também falar sobre o passado histórico sem o uso

de linguagem figurada. Para White, o discurso é capaz de moldar

pensamentos e textos do historiador. Além disso, o que os historiadores e

romancistas têm em comum é que eles podem escolher entre vários modos

de linguagem figurativa, isto é, entre as quatro modalidades de

representação disponíveis pela linguagem.

Um aliado nessa empreitada de Hayden White por reformular o

discurso histórico foi Roland Barthes, escritor, crítico literário, semiólogo e

filósofo francês da corrente estruturalista, também adepto do

existencialismo. Entre 1967 e 1980, Barthes escreveu alguns ensaios que

contribuíram para endossar o pensamento de White. Estes ensaios

compuseram mais tarde o livro chamado O Rumor da Língua.

White se inspirou nas ideias de Barthes sobre a relação entre

discurso e realidade, que foram expostas especialmente no artigo O

Discurso da História, de 1967. Assim como para Barthes o fato histórico só

tem existência linguística, para White o trabalho histórico é "uma estrutura

verbal na forma de um discurso narrativo em prosa"37. O fragmento

seguinte resume em parte a ideia de Barthes que serviu de inspiração para

White:

Chega-se assim a esse paradoxo que pauta toda a pertinência do discurso histórico (com relação a outros tipos de discurso): o fato nunca tem mais do que uma existência linguística (como termo de um discurso), e, no entanto, tudo se passa como se essa existência não fosse senão a "cópia" pura e simples de uma outra existência, situada num campo extra-estrutural, o "real". Esse discurso é, sem dúvida, o único em que o referente é

37 WHITE, 2008, p.11.

40

visado como exterior ao discurso, sem que nunca seja, entretanto, possível atingi-lo de fora do discurso38.

Nesta fase do pensamento de White há uma diferença

qualitativa entre o passado e as histórias que os historiadores escrevem

sobre ele. As narrativas históricas podem ser considerados como “máscaras

de significado", cuja coerência nunca pode ser encontrada no passado, ela

são, portanto, um produto da imaginação do historiador. Sobre o modo

pelo qual essa “máscara” opera, o professor holandês Herman Paul

escreveu:

The realism of narrative, then, is that of a mask. A mask may be beautifully decorated, serve important purposes in ritual contexts, and provide a persona or distinct identity for its wearer – but that identity is always different from the mask-wearer’s real self. A mask conceals as much as it reveals and is therefore anything but “real”39.

Além de conceber a História como um discurso que utiliza a

máscara da narrativa realista, White também aproximou a história do

discurso ficcional. Segundo ele, há também um grau de invenção nas

operações do historiador. O fragmento seguinte explica bem essa ideia:

38BARTHES, Roland. O Rumor da língua. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.177. 39 “O realismo da narrativa, então, é o de uma máscara. Uma máscara pode ser lindamente decorada, servir propósitos importantes em contextos rituais, e fornecer uma personalidade ou identidade distinta para o seu usuário - mas essa identidade é sempre diferente do verdadeiro eu do portador da máscara. Uma máscara esconde tanto quanto revela e é portanto qualquer coisa mas "real”. PAUL, 2011, p. 113, tradução nossa.

41

Diz-se às vezes que o objetivo do historiador é explicar o passado através do "achado", da "identificação" ou "descoberta" das "estórias" que jazem enterradas nas crônicas; e que a diferença entre "história" e "ficção" reside no fato de que o historiador "acha" suas estórias, ao passo que o ficcionista "inventa" as suas. Esse concepção da tarefa do historiador, porém, obscurece o grau de "invenção" que também desempenha um papel nas operações do historiador. O mesmo evento pode ser útil como um tipo diferente de elemento de muitas estórias históricas diferentes, dependendo da função que lhe é atribuída numa caracterização motívica específica do conjunto a que ele pertence40.

Depois de Meta-História, Hayden White publicou o livro Trópicos

do Discurso, no qual ele explorou melhor essa relação entre o discurso

histórico e o discurso ficcional e mostrou como a tropologia é aplicada ao

discurso histórico a partir da análise da produção do efeito explicativo de

narrativas historiográficas. Ao analisar como a narrativa historiográfica

obtêm seu efeito de explicação sobre os leitores, White observou a

importância da operação descritiva sobre outros elementos estruturais do

discurso historiográfico, como a explicação por uma argumentação formal e

o enredamento.

Os ensaios que fizeram parte deste livro foram escritos ao longo

da década de 1970, com exceção de O Fardo da História (1966) e de O que

está vivo e o que está morto na crítica de Croce a Vico (1969). De maneira

geral, o principal assunto tratado nesta coletânea de ensaios foi a relação

entre história, discurso e linguagem figurada, especialmente nos primeiros

cinco ensaios. Na citação seguinte, podemos ver os elementos presentes

em sua teoria do discurso, como a importância das funções da linguagem

na narrativa e as implicações do discurso figurativo:

40WHITE, 2008, p. 22.

42

As histórias, portanto, não são apenas sobre os eventos, mas também sobre os conjuntos de relações possíveis que esses eventos figuram de maneira passível de demonstração. Esses conjuntos de relações, contudo, não são imanentes aos próprios eventos; existem apenas na mente do historiador que reflete sobre eles. Aqui, eles estão presentes como modos de relações conceitualizados no mito, na fábula e no folclore, no conhecimentos científico, na religião e na arte literária, da própria cultura do historiador. Mais importante, porém: parece-me que eles são imanentes à própria linguagem que o historiador deve usar para descrever os eventos anteriores a um análise científica ou a um urdidura fictícia desses mesmos eventos. [...] Todas as narrativas históricas pressupõe caracterizações figurativas dos eventos que pretendem representar e explicar. E isso significa que as narrativas históricas, consideradas meros artefatos verbais, podem ser caracterizadas pelo modo do discurso figurativo em que são moldadas41.

Nesta citação é possível perceber a permanência de muitas

ideias já explicitadas na obra Meta-História. Entre elas a noção de discurso

histórico como uma estrutura verbal, ou um artefato linguístico. Além disso,

de uma obra para outra White passou a dar uma ênfase maior na função

das técnicas de linguagem figurativa, que segundo ele são os únicos

instrumentos que o historiador tem para dar sentido aos seus dados, para

tornar familiar o estranho e para tornar compreensível o passado

misterioso. O formato do texto histórico dependerá do recurso da

linguagem figurativa que o historiador lançar mão.

Ao longo da primeira metade da década de 1980, Hayden White

escreveu e publicou os ensaios que compuseram depois livro chamado The

Content of the Form lançado em 1987. A sua principal preocupação não foi

a de construir respostas para o problema da escrita da narrativa histórica já

41WHITE, 2001, p.110-111.

43

apontado nos seus livros anteriores. Em vez disso, seus novos ensaios

levantaram ainda mais questões e problemáticas sobre a relação do

discurso narrativo e a representação histórica.

Para Hayden White, o que os historiadores dizem sobre o

passado é inseparável de como dizem. Então, como o título deste livro

sugere, a narrativa não é apenas uma forma de discurso que pode ser

preenchida com qualquer conteúdo, em vez disso, ela já possui um

significado prévio.

Estas ideias se ligam facilmente ao Formalismo Russo,

movimento do início do século XX considerado o precursor da Nova Crítica

estadunidense e do Estruturalismo francês. Entre os representantes da

crítica formalista está Roman Jakobson cuja concepção linguística revelava

a relação entre a Forma e o Conteúdo e buscava um método científico para

o estudo da linguagem poética.

Para explicar "o conteúdo da forma" do discurso da narrativa

histórica, White analisou logo no primeiro ensaio intitulado The Value of

Narrativity in the Representation of Reality, o conteúdo do texto dos Annals

of Saint Gall, que se encontra na parte dos Sriptores do volume 1 da

Monumenta Germaniae Historica, cujas características permitiram uma

interpretação singular sobre o discurso narrativo. O documento é uma lista

de eventos ocorridos na Gália durante os séculos VIII, IX e X da nossa era,

em uma coluna estão relacionadas as datas e na outra os eventos ocorridos

na data correspondente. São registros bastante concisos sem nenhum

detalhamento do evento destacado. Também há várias lacunas em que

nada foi registrado em determinada data, como é possível observar no

trecho selecionado a seguir:

44

709. Hard winter. Duke Gottfried died. 710. Hard year and deficient in crops. 711. 712. Flood everywhere. 713. 714. Pippin, Mayor of the Palace, died. 715. 716. 717. 718. Charles devastated the Saxon with great destruction. 719. 720. Charles fought against the Saxons. 721. Theudo drove the Saracens out of Aquittaine. 722. Great crops. 723. 724. 725. Saracens came for the first time. 726. 727. 728. 729. 730. 731. Blessed Bede, the presbyter, died. 732. Charles fought against the saracens at Poitiers on Saturday.

709. Inverno duro. O duque Gottfried morreu. 710. Ano difícil e colheitas deficientes. 711. 712. Inundação em todos os lugares. 713. 714. Pippin, Prefeito do Palácio, morreu. 715, 716, 717. 718. Charles devastou o Saxão com grande destruição. 719. 720. Charles lutou contra os saxões. 721. Theudo expulsou os sarracenos de Aquittaine. 722. Grandes colheitas. 723. 724. 725. Sarracenos vem pela primeira vez. 726. 727. 728. 729. 730. 731. Bendito Beda, o presbítero, morreu. 732. Charles lutou contra os sarracenos em

Poitiers no sábado.42

Para White, a aparente ingenuidade desses anais podem nos

enganar. Apesar de não apresentar uma história em sua forma

convencional de uma narrativa sequencial com início, meio e fim, os anais

informam um tipo de senso de realidade e demonstram os valores da

sociedade que o produziu. Por exemplo, os anos em que nada foi

registrado, onde as datas aparecem em uma coluna sequenciadas sem

nada escrito na frente em relação ao ocorrido, White entendeu que esta

“falta” na lista de eventos pode significar o desejo de registrar apenas os

eventos em que não há nenhuma dúvida de sua ocorrência, ou poderia

significar a extensão do evento narrado anteriormente e seus efeitos nos

anos seguintes. Constata-se com isso que para White, toda forma de

42WHITE, 1990, p. 6-7, tradução nossa.

45

discurso pressupõe um conteúdo significativo que deve ser levado em

conta pelo historiador.

Ainda sobre a narrativa, no terceiro ensaio que compõe o livro

White também falou sobre o papel que a imaginação desempenha na sua

preparação. Para ele, a imaginação opera em um nível diferente da

consciência do historiador. Ela está presente sobre todo o esforço de

enfatizar as intenções e motivações dos atores estudados e, especialmente,

no esforço de compreender as práticas sociais e culturais mais bizarras.

Neste ensaio intitulado The Politics of Historical Interpretation: Discipline

and De-Sublimation, White afirmou que a imaginação é disciplinada pela

sua subordinação às regras de evidência. Sobre isso White explicou:

Yet “imagination”, precisely in the sense in which it is used to characterize the activity of the poet or novelist, is operative in the work of the historian at the last stage of his labors, when it becomes necessary to compose a discourse or narrative in which to represent his findings, that is, his notion of “what really happened” in the past43.

Neste ensaio, White falou também sobre a "política de

interpretação" e as "práticas interpretativas". Há uma distinção entre elas.

A política pode ser entendida como o esforço para compartilhar do poder,

ou como o esforço para influenciar a distribuição do poder, seja entre

Estados, ou entre os diversos grupos existentes sob as mesmas normas

legais de um Estado. A prática interpretativa ganha conotação política

43

“No entanto, a "imaginação", precisamente no sentido utilizado para caracterizar a atividade do poeta ou do romancista, opera na obra do historiador na última etapa de seus trabalhos, quando se torna necessário compor um discurso ou narrativa para representar as suas descobertas, isto é, a sua noção de "o que realmente aconteceu" no passado”. WHITE, 1990, p. 67-68, tradução nossa.

46

sempre que um intérprete em particular reivindica autoridade sobre seus

intérpretes rivais. Hayden White estava interessado na política de

interpretação no contexto da transformação da história em uma disciplina

acadêmica, como é possível perceber na leitura do trecho selecionado a

seguir:

My approach here requires that I attempt to specify what was involved in the transformation of historical studies into a discipline that applied rules for construing and studying their objects of interest that were different from the rules of scientific investigation prevailing in the physical sciences. The social function of a properly disciplined study of history and the political interests it served at its inception in the early nineteenth century, the period of the consolidation of the (bourgeois) nation-state, are well-know and hardly in need of documentation. We do not have to impute dark ideological motives to those who endowed history with the authority of a discipline in order to recognize the ideological benefits to new social classes and political constituencies that professional, academic historiography served and mutatis mutandis, continues to serve down to our own time44.

De maneira geral, grande parte dos assuntos e dos conceitos

explorados nesta terceira fase da obra de Hayden White já haviam sido

prenunciados de uma forma ou de outra no livro que mais representa esta

fase do seu pensamento que é Meta-História. Em geral, nesta terceira fase, 44

“Minha abordagem aqui requer que eu tente especificar o que estava envolvido na transformação de estudos históricos em uma disciplina que aplica regras para interpretar e estudar seus objetos de interesse diferentemente das regras de investigação científica que prevalecem nas ciências físicas. A função social dos estudos históricos depois da disciplinarização e os interesses políticos ao qual serviram em seu começo no início do século XIX, e o período de consolidação do Estado-nação (burguês), são bem conhecidos e dificilmente precisam de documentação. Não temos que imputar motivos ideológicos obscuros àqueles que dotaram a história com a autoridade de uma disciplina para reconhecer os benefícios ideológicos a novas classes sociais e grupos políticos que a historiografia profissional e acadêmica serviu e mutatis mutandis, continua a servir ao nosso próprio tempo”.WHITE, 1990, p.60-61, tradução nossa.

47

Hayden White desenvolveu a sua mais conhecida contribuição, a Teoria de

Tropos, que será exposta com mais cuidado no capítulo seguinte dessa

tese.

As discussões teóricas sobre o problema da narrativa e suas

consequências para o discurso histórico foram um ponto comum dos

trabalhos produzidos por White nas décadas de 1970 e 1980. Estas

discussões abriram uma quarta fase no pensamento de White, na qual o

discurso da narrativa histórica continua como principal referência, porém o

foco passa ser as implicações ideológicas e as responsabilidades sociais e

políticas desse discurso, ao invés da função da linguagem figurada.

1.4 QUARTA FASE (1988 - 2014): NOVAS REFLEXÕES E CONCEITOS

Em suas últimas publicações, Hayden White tem se dedicado aos

maiores desafios da contemporaneidade em sua opinião. Para ele, o

fascismo, a sociedade de massas e a cultura tecnológica são problemáticas

difíceis para a nossa compreensão e principalmente para a representação

pela linguagem. Nesta quarta fase de seu pensamento, White tem pensado

sobre algumas questões como estas: Como representar o Holocausto?

Poderia o Holocausto ser historicizado ao molde dos historiadores? Poderia

o Holocausto ser representado em qualquer um dos modos de

representação desenvolvido pela linguagem literária? O que podemos

aprender com os estudos literários modernos?

Em 1999, White publicou o livro Figural Realism composto por

uma seleção dos ensaios que escreveu a partir de 1988 sobre o discurso

histórico, o discurso literário e modos de usos da linguagem. Estes ensaios

esclarecem que a distinção entre o discurso literal e figurado é uma

distinção puramente convencional, por isso, White explicou no prefácio que

48

um dos objetivos do livro seria demonstrar a "literariness of historical

writing and the realism of literary writing"45.

De maneira geral, nos ensaios que compõe o livro Figural

Realism, White continua entendendo a história, antes de tudo, como um

artefato verbal. Por isso, em quase todos os textos ele expressou a

relevância de discutir sobre o uso da linguagem, sobre as funções do

discurso e sobre outras formas de expressão, como a literatura. Para White,

compreender o discurso literário é importante porque a arte tem superado

alguns problemas que a História enfrenta sobre a representação da

realidade. Sobre isso White escreveu:

The relevance of modern literary theory to historical writing is indirect insofar as the conceptions of language, speech, writing, discourse, and textuality that inform it provide insights into some problems traditionally posed by philosophy of history, such as the classification of the genres of historical discourse, the relation of a historical representations to its referents, the epistemological status of historical explanations, and the relations of the interpretative to the descriptive and explanatory aspect of the historian’s discourse46.

Segundo Hayden White, a narrativa histórica tem muito em

comum com a narrativa literária. Ambas as narrativas possuem elementos

45 “Literariedade da escrita histórica e o realismo da escrita literária”. WHITE, Hayden. Figural Realism: studies in the Mimesis Effect. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 2000, p. ix, tradução nossa. 46“A relevância da teoria literária moderna para a escrita histórica é indireta na medida em

que as concepções de linguagem, fala, escrita, discurso e textualidade informadas fornecem insights sobre alguns problemas tradicionalmente colocados pela filosofia da história, como a classificação dos gêneros do discurso da história, a relação das representações históricas com seus referentes, o status epistemológico das explicações históricas e as relações da interpretação com o aspecto descritivo e explicativo do discurso do historiador”. WHITE, 2000, p. 4, tradução nossa.

49

retóricos e poéticos e também podem configurar uma série determinada

de eventos na forma de uma história épica, trágica ou ainda como uma

farsa, como é possível perceber no fragmento a seguir:

Narrative accounts do not consist only factual statements (singular existential prepositions) and arguments; they consist as well of poetic and rhetorical elements by which what would otherwise be a list of facts is transformed into a story. […] Thus, one narrative account may represent a set of events as having the form and meaning of an epic or tragic story, while another may represent the same set of events – with equal plausibility and without doing any violence to the factual record – as describing a farce47.

Devido a estas e outras declarações sobre o discurso histórico e

a função da linguagem, e também por causa de seu evidente relativismo

em relação a existência de fronteiras rígidas entre história e literatura,

White é muitas vezes visto como um autor pós-moderno. Para o professor

Dr. Herman Paul, isso pode ser um equívoco, uma vez que é possível

perceber a presença nas obras dele de uma inspiração modernista e

existencialista, ao invés de referências pós-modernas:

Although White is often seen as a representative of postmodernism in the study of history, [...] it is more appropriate to see White as indebted to modernist and

47“Os relatos narrativos não consistem apenas em afirmações factuais (preposições

existenciais singulares) e argumentos; eles consistem também de elementos poéticos e retóricos pelos quais o que de outra forma seria uma lista de fatos se transforma em uma história. [...] Assim, um relato narrativo pode representar um conjunto de eventos como tendo a forma e o significado de uma história épica ou trágica, enquanto outro pode representar o mesmo conjunto de eventos - com plausibilidade igual e sem fazer qualquer violência ao registro factual - como uma farsa”. WHITE, 2000, p. 28, tradução nossa.

50

existentialist source than as a forerunner of postmodernism. Of course, given the plasticity of the word “postmodernism”, it is no totally impossible to conceive of postmodernism in such a way that White stands out as its “most magisterial spokesman” However, problematic about this move is not merely that threatens to lump White together with some figures he most vocally rejected – Derrida is the most obvious example – But also that it tends to downplay, or even forget, the distinctively modernist source of inspiration that informed White’s work, not least in the 1990s and early 2000s.48

É relevante notar que nesta quarta fase de seu pensamento,

White demonstra a sua fascinação por autores modernistas como Proust

and Wolf. Na verdade, ele aprecia os modernos recursos literários e suas

narrativas como uma alternativa à incapacidade de nossos modos

tradicionais de representação histórica em relação ao que chamou de

"modernist events". Nesta direção, a professora Drª. EwaDomanska

apontou a importância da literatura moderna:

I think that the techniques of modern literary studies do bring something new and valuable to historical studies. What they bring is a sophistication in the interpretation of cultural phenomena that makes the literalist approach of

48“Embora White seja frequentemente visto como um representante do pós-modernismo no estudo da história, [...] é mais apropriado ver o White com uma raiz modernista e existencialista do que como precursor do pós-modernismo. Naturalmente, dada a plasticidade da palavra "pós-modernismo", não é totalmente impossível conceber o pós-modernismo de tal forma que White se destaca como seu "porta-voz mais magistral". No entanto, a problemática sobre esta mudança não é apenas que ameaça amontoar White, juntamente com algumas figuras que ele mais vocalmente rejeitou - Derrida é o exemplo mais óbvio - mas também que tende a minimizar, ou mesmo esquecer, a fonte distintamente modernista de inspiração que informou o trabalho de White, não menos importante na década de 1990 e início de 2000”.PAUL, 2011, p. 128, tradução nossa.

51

traditional historians to the study of their documents look quite juvenile49.

Para esclarecer um pouco mais a importância das inovações do

modernismo na representação dos "modernist events", White escreveu que

as técnicas modernistas de representação podem ajudar os historiadores

inclusive na retirada do fetiche sobre determinados eventos considerados

importantes para o desenvolvimento da identidade de algumas

comunidades:

The stylistic innovations of modernism […] may provide better instruments for representing modernist event [...] than the storytelling techniques traditionally utilized by historians for representation of the events of the past that are supposed to be crucial to the development of their communities' identity. Modernist techniques of representation provide the possibility of defetishizing both events and the fantasy accounts of them which deny the threat they pose in the very process of pretending to represent them realistically and clear the way for that process of mourning which alone can relieve the burden of history and make a more of not totally realistic perception

of current problems possible50.

49“Penso que as técnicas dos estudos literários modernos trazem algo novo e valioso para os estudos históricos. O que eles trazem é uma sofisticação na interpretação de fenômenos culturais que torna a abordagem literalista dos historiadores tradicionais no estudo de seus documentos parecer bastante juvenil”.DOMANSKA, Ewa. A conversation with Hayden White. Rethinking History. London: Routledge, Vol. 12, N.1, 2008, p. 12, tradução nossa. 50

"As inovações estilísticas do modernismo [...] podem fornecer melhores instrumentos para representar o evento moderno [...] do que as técnicas de narração tradicionalmente utilizadas pelos historiadores para a representação dos eventos do passado que são supostamente cruciais para o desenvolvimento da identidade de suas comunidades. As técnicas modernistas de representação oferecem a possibilidade de derrotar tanto os eventos quanto os relatos fantasiosos deles, que negam a ameaça deles em todo o processo de fingir representá-los realisticamente e abre o caminho para esse processo de luto que por si só pode aliviar o fardo da história e produzir uma percepção a mais não totalmente realista dos possíveis problemas atuais”. WHITE, 2000, p. 82, tradução nossa.

52

Sobre “modernist events”, White explicou que este tipo de

evento pressupõe um nível avançado de industrialização e um monstruoso

crescimento e expansão da modernidade tecnológica. Eventos modernistas

desafiam os modos de representação do século XIX e as categorias

subscritas pelo humanismo tradicional. Eles são eventos traumáticos.

Então, para os grupos diretamente afetados por estes eventos, os seus

significados são ambíguos, o que não implica de modo algum que estes

acontecimentos não tiveram lugar ou não existiram. Não só as suas

ocorrências são amplamente comprovadas, mas também a extensão e o

impacto dessas ocorrências persistem nas sociedades e gerações presentes

que não tiveram diretamente a experiência deles. Para Hayden White existe

uma dificuldade por parte das gerações atuais de chegarem a um acordo

sobre o significado desses eventos. Entre os principais exemplos de

"eventos modernistas" citados por White estão Chernobyl, a explosão da

nave espacial Challenger, os assassinatos de Kennedy, Martin Luther King,

Gandhi e o Holocausto, sobre este último White escreveu como ele é

paradigmático:

Contemporary discussions of the ethics and aesthetics of representing the Holocaust of European Jews – what I take to be the paradigmatic modernist event in Western European history – provide insights into the modernist view of relationship between history and fiction. With respect to the question of how most responsibly to represent the Holocaust, the most extreme position is not that of the so-called revisionists, who deny that this event ever happened; but rather, that of those who hold that this event is of such a kind as to escape the grasp of any language even to describe it and of any medium – verbal,

53

visual, oral, or gestural – to represent it, much less of any merely historical account adequately to explain it51.

Para White, as inovações estilísticas do modernismo são as mais

apropriados para a representação dos eventos modernistas. Um grande

exemplo dessa inovação é a "intransitive writing". Esta técnica é um modo

de discurso que trata de lacunas, incompreensibilidades, contradições e

inconsistências, ela é uma "middlevoice", nem subjetiva e nem objetiva.

Novamente Hayden White cita Roland Barthes, em quem estes conceitos já

se faziam presentes. No artigo de 1966 intitulado Escrever, verbo

intransitivo? Barthes esclareceu o significados deles:

Assim definida, a voz média corresponde inteiramente ao escrever moderno: escrever é hoje fazer-se o centro do processo de palavra, é efetuar a escritura afetando-se a si próprio, é fazer coincidir a ação e o afeto, é deixar o escritor no interior da escritura, não a título de sujeito psicológico, [...], mas a título de agente da ação52.

Sobre a "voz média", White explicou que ela só se verifica em

sua visão quando os autores entendem que não podem se apossar do

51

“As discussões contemporâneas sobre a ética e a estética da representação do Holocausto dos judeus europeus - o que considero o evento modernista paradigmático na história da Europa Ocidental - fornecem informações sobre a visão modernista da relação entre história e ficção. Com relação à questão de como representar de forma mais responsável o Holocausto, a posição mais extrema não é a dos chamados revisionistas, que negam que esse evento já tenha acontecido; mas sim a daqueles que sustentam que este evento é de tal natureza que escapa ao alcance de qualquer linguagem até mesmo para descrevê-lo e de qualquer meio - verbal, visual, oral ou gestual - para representá-lo, muito menos qualquer relato meramente histórico para explicá-lo adequadamente”. WHITE, 2000, p. 79, tradução nossa. 52BARTHES, 2004, p. 22

54

passado, quando os eventos se recusam a serem compreendidos, quando

os choques e traumas dificultam tentativas do autor de interpretar o

passado, de acordo com o seu princípio moral e estético.

Juntamente com os conceitos de "eventos modernistas" e

"escrita intransitiva", nesta fase de seu pensamento White elaborou

também o conceito de "figural realism" como uma inspiração modernista

que está associado a formas de ler a história. No prefácio do seu livro ele

esclareceu que esse conceito foi tomado do filólogo alemão Erich

Auerbach:

This book is a selection of essays I have written since the publication, in 1987, of The Content of the Form. I have gathered them under the title Figural Realism – a phrase I take from Erich Auerbach's great work, Mimesis – because they all, in one way or other, try to show how figurative language can be said to refer to reality quite as faithfully and much more effectively than any putatively literalist idiom or mode of discourse might do53.

O subtítulo do livro Figural Realism sugere que o conceito de

mimese e seus efeitos de uma forma ou de outra são abordados pelos

ensaios que compuseram o livro. De fato tal conceito aparece em alguns

deles, porém a ideia de figuratione fullfillment decorrentes dele são mais

evidentes. No ensaio Auerbach's Literary History: figural causation on

modernist historicism de 1996, Hayden White explicou que Erich Auerbach

53

“Este livro é uma seleção de ensaios que eu tenho escrito desde a publicação, em 1987, de The Contentofthe Form. Eu os reuni sob o título de FiguralRealism - uma frase que tomo da grande obra de Erich Auerbach, Mimesis - porque todos eles, de uma forma ou de outra, tentam mostrar como a linguagem figurativa pode ser usadapara referir-se à realidade de maneira tão fiel e muito mais efetiva do que qualquer linguagem ou modo de discurso literal supostamente pode fazer”. WHITE, 2000, p. vii, tradução nossa.

55

como essas ideias se ligam ao exercício dos exegetas cristãos de

interpretação bíblica do velho testamento a luz do novo:

There is nothing very mysterious about the idea of mimesis as figuration. Auerbach's idea of figuration is based upon Christian interpretations of ancient Judaism as an anticipation or prolepsis of Christianity. According to the Christian exegetes, those personages, events, and actions reported in the Old Testament are to be understood as having both a literal and a figurative dimension. On the one hand, they are to be apprehended as real and not merely as fictions. On the other, they are to be apprehended as indicators of yet-to-come personages, events, and actions that will fulfill – that is, both complete and reveal – the relevance of the earlier ones to the promised revelation of God's will and purpose for His Creation. [...] The Christian schema of the figure and its fulfillment (used by Christian thinkers to interpret the relation between Old Testament and the New, between Judaism and Christianity, between this world and beyond, between the present and the future, and [in Dante] even between paganism and Christianity) is grasped by Auerbach as itself a figure that will be fulfilled in the modern idea of history54.

54

“Não há nada de muito misterioso na ideia de mimesis como figuração. A idéia de Auerbach de figuração é baseada em interpretações cristãs do judaísmo antigo como uma antecipação ou prolepsis do cristianismo. De acordo com os exegetas cristãos, aqueles personagens, eventos e ações relatadas no Antigo Testamento devem ser entendidas como tendo uma dimensão literal e uma figurativa. Por um lado, devem ser apreendidos como reais e não meramente como ficções. Por outro lado, eles devem ser apreendidos como indicadores de personagens ainda por vir, eventos e ações que irão se cumprir - isto é, se completa e se revelar - a relevância dos primeiros para a prometida revelação da vontade e propósito de Deus para Sua Criação.[...] O esquema cristão da figura e seu cumprimento (usado pelos pensadores cristãos para interpretar a relação entre o Antigo eo Novo Testamento, entre o Judaísmo e o Cristianismo, entre este mundo e além, entre o presente e o futuro e [Em Dante], mesmo entre paganismo e cristianismo) é apreendido por Auerbach como uma figura que se preencherá na ideia moderna da história. WHITE, 2000, p. 94-95, tradução nossa.

56

A partir do conceito figuration desenvolvido por Auerbach,

White apresentou o realismo figurativo como prática interpretativa que

permite uma leitura histórica de nível múltiplo. Segundo White, da mesma

forma que os teólogos cristãos podem ler a Bíblia hebraica como textos que

figurativamente falam sobre Jesus, nós temos a liberdade de "reler" e

"escolher" um significado para o nosso passado.

Depois de Figural Realism Hayden White publicou The Fiction of

Narrative em 2010. Os vinte e três ensaios escolhidos para compor este

livro foram escritos e publicados entre 1957 a 2007, ou seja, eles

perpassam todas as quatro fases do pensamento histórico de White e

tratam em sua maioria de temas já expostos aqui. Dois desses textos

inclusive já foram citados anteriormente por se referirem um ao

pensamento de Benedetto Croce e outro a ideologia marxista.

Os ensaios escritos por White ao longo da década de 1990 e que

estão no livro The Fiction of Narrative tratam de assuntos ligados a esta

quarta e última fase, como é o caso de Writing in Middle Voice de 1992 que

já apontava para a literatura moderna e o uso da middle voice como

alternativas para a narrativa histórica.

Quero ainda destacar os dois ensaios finais nos quais White

abordou assuntos diferentes dos demais textos publicados até então. Esses

ensaios falam respectivamente sobre a noção de história na pós-

modernidade e a relevância de obra de Paul Ricouer.

No ensaio de 1999 intitulado Postmodernism and Textual

Anxieties, White escreveu sobre como a pós-modernidade enxerga o

conhecimento histórico. Na leitura deste ensaio é difícil perceber um

posicionamento claro do autor a favor ou contra as ideias pós-modernas.

Em nenhum momento da sua escrita ele se inclui como um pós-moderno.

Mesmo assim, da forma como eu analiso, é possível ver mais aproximações

57

do que estranhamentos entre a noção de história de Hayden White e a

maneira como ele apresentou a pós-modernidade neste ensaio.

Hayden White explorou a ideia de que a pós-modernidade surgiu

como uma resposta ao que ele denominou de "modernist events", que já foi

explicado anteriormente. O fragmento seguinte esclarece um pouco mais

esta afirmação:

Indeed, postmodernism is born in part as response to what I wish to call the distinctively "modernist" events of the twentieth century. One does not have to rehearse every event that makes our century different from any time preceding to make the case, but a few indications might be useful. First, it only in our century that the full implications of industrialization (massive population expansion, urbanization, and international economics) and its effects (mass famine, boom and bust economics cycles, pollution of the ecosphere, world wars and mass death by techno-weapons such as the hydrogen bomb) have been realized. The scale, intensity, and reach of these events render them impervious to the traditional categories of historical representation and explanation55.

Neste ensaio Hayden White falou também sobre a noção de

realidade e a crítica a objetividade. Novamente é possível perceber uma

aproximação de ideias muito mais do que um afastamento. Conforme

55

“Na verdade, o pós-modernismo nasce, em parte, como resposta ao que eu gostaria de chamar distintamente de eventos "modernistas" do século XX. Não é preciso repassar todos os acontecimentos que tornam o nosso século diferente de qualquer outro momento que o antecede, mas algumas indicações podem ser úteis. Primeiro, só em nosso século as implicações da industrialização (expansão massiva da população, urbanização e economia internacional) e seus efeitos (fome em massa, ciclos econômicos de explosão e de falência, poluição da biosfera, guerras mundiais e morte em massa, armas como a bomba de hidrogênio) foram sentidos. A escala, intensidade e alcance desses eventos os tornam impermeáveis às categorias tradicionais de representação histórica e explicação”. WHITE, 2010, p.306, tradução nossa.

58

explicou White, a pós-modernidade critica o ideal de objetividade a medida

em que não está interessada na busca da verdade como um fim em si

mesma e para ela a realidade é uma construção discursiva. O trecho

seguinte se refere a estas questões:

If postmodernist notions of history are informed by a critique of ideology of objectivism, this does not necessarily mean that they are opposed to the truth and committed to lie, delusion, fantasy, or fiction. It means rather that postmodernism is more interested in reality than it is in truth as end in itself. But postmodernism recognizes that "reality" is always as much constructed in discourse as it is discovered in historical record. Which means that postmodernist "objectivity" is aware of its own constructed nature and makes this work of construction the subject of its discourse56.

Ainda que Hayden White não se rotule como pós-modernista,

mesmo que ele não tenha se posicionado neste ensaio, e sem ter abordado

a pós-modernidade em outros textos, é possível perceber que na verdade

ele prefere permanecer provocativo do que esclarecer o seu lugar de fala.

Da mesma forma que ele já escreveu sobre as contribuições marxistas para

o conhecimento histórico e já abordou as vantagens da literatura moderna,

agora ele resolveu abordar a colaboração da pós-modernidade para a

escrita da história.

56“Se as noções pós-modernistas da história são informadas por uma crítica da ideologia

do objetivismo, isso não significa necessariamente que elas se oponham à verdade e se comprometam com a mentira, a ilusão, a fantasia ou a ficção. Significa antes que o pós-modernismo está mais interessado na realidade do que na verdade como fim em si mesma. Mas o pós-modernismo reconhece que a "realidade" é sempre construída no discurso como é descoberta no registro histórico. O que significa que a "objetividade" pós-modernista é consciente de sua própria natureza construída e faz deste trabalho de construção o sujeito de seu discurso”. WHITE, 2010, p.312, tradução nossa.

59

Em relação ao último ensaio do livro, Guilty of History? The

longue durée of Paul Ricoeur de 2007, o foco de Hayden White esteve na

apresentação do pensamento de Ricoeur sobre a história, especialmente a

partir do livro dele publicado em francês 2000 e em português em 2010,

Memória, História e Esquecimento. Entre outras coisa, White demonstrou

neste artigo como a memória ocupou o centro das discussões realizadas

por Ricouer, como é possível perceber na leitura do trecho seguinte:

Ricoeur regards memory as more fundamental for the understanding of the human condition than historical inquiry, for memory is still in certain sense "wild", belonging more to (human) nature than culture. History seeks to discipline memory by setting up standards regarding what should be remembered and in what manner and what form. Thus, history is memory cultivated in the interest of producing a "collective" past on the basis of which a collective identity can be forged57.

Para finalizar este capítulo sobre as fases do pensamento

histórico de Hayden White, é preciso falar ainda do seu trabalho mais

recente publicado em 2014 no qual um novo conceito aparece. Trata-se do

livro The Practical Past formado por cinco ensaios escritos especificamente

para esta obra que, de forma geral, trata do "practical past" como uma

alternativa ao "historical past".

57“Ricoeur considera a memória como mais fundamental para a compreensão da condição

humana do que a investigação histórica, pois a memória ainda é, em certo sentido, "selvagem", pertencendo mais à natureza (humana) do que à cultura. A história procura disciplinar a memória estabelecendo padrões sobre o que deve ser lembrado e de que maneira e de que forma. Assim, a história é a memória cultivada no interesse de produzir um passado "coletivo" com base no qual uma identidade coletiva pode ser forjada”. WHITE, 2010, p.320, tradução nossa.

60

No primeiro capítulo do seu trabalho que leva o título do livro,

White fez e respondeu a pergunta sobre o que era este conceito de

"passado prático":

What is the practical past? The concept comes from some of the late writings of the political philosopher Michael Oakeshott, and it refers to those notions of “the past” which all of us carry around with us in our daily lives and which we draw upon, willy- nilly and as best we can, for information, ideas, models, formulas, and strategies for solving all the practical problems— from personal affairs to grand political programs— met with in whatever we conceive to be our present “situation.” We draw upon this past without much self- consciousness when it comes to practical matters, such as recalling how to start the car, how to do long division, how to cook an omelette, and so on. But this practical past is also the past of repressed memory, dream, and desire as much as it is of problem- solving, strategy, and tactics of living, both personal and communal58.

Hayden White se baseou no conceito de passado elaborado pelo

filósofo Michael Oakeshott, segundo quem o conteúdo do passado é capaz

de ser recrutado para nos ajudar a responder às nossas situações atuais.

White apresentou em seu livro o conceito de "passado prático" em

58

“O que é o passado prático? O conceito vem de alguns dos escritos tardios do filósofo político Michael Oakeshott, e refere-se àquelas noções de "passado" que todos nós transportamos conosco em nossas vidas diárias e que extraímos, com ou sem razão e como o melhor que podemos, informações, ideias, modelos, fórmulas e estratégias para resolver todos os problemas práticos - dos assuntos pessoais aos grandes programas políticos - reunidos em tudo o que concebemos como nossa atual "situação". Utilizamos esse passado sem muita autoconsciência quando se trata de questões práticas, como lembrar como ligar o carro, como fazer divisão grande, como cozinhar uma omelete, e assim por diante. Mas esse passado prático é também o passado da memória, do sonho e do desejo reprimido, tanto quanto da resolução de problemas, da estratégia e das táticas de vida, tanto pessoais como comunitárias”. WHITE, 2014, p.9, tradução nossa.

61

oposição ao conceito de "passado histórico". Enquanto o passado histórico

está associado ao conhecimento produzido sobre o passado que busca

responder apenas a pergunta "é verdade?" e formular declarações, por sua

vez, White definiu o passado prático como o conhecimento que busca para

lidar com o passado, que procura responder a pergunta sobre "o que

devemos fazer?". Então, enquanto passado histórico é um modo discursivo

declarativo, o passado prático é aquele na qual as pessoas se baseiam para

avaliar suas decisões cotidianas e também para agir diante de situações

extremas. O trecho a seguir compara os dois tipos de passado:

As Michael Oakeshott has argued, this historical past is quite different from "the practical past" which most of us carry around in our heads in the form of memory, imagination, snippets of information, formulas and practices that we perform by rote, and vague ideas about "history" which we draw on in the course of day for the performance of tasks as various as running for president of United States, justifying a policy war or economic adventure, planning a party, or arguing a case at law. The historical past exists only in the books and articles written by professional investigators of pasts an written for the most part for one another rather than for the general public59.

59“Como Michael Oakeshott argumentou, esse passado histórico é bem diferente do

"passado prático" que a maioria de nós carrega em nossas cabeças sob a forma de memória, imaginação, trechos de informação, fórmulas e práticas que executamos de forma rotineira e vagas ideias sobre a "história", que nos servem no decorrer do dia para a realização de tarefas tão diversas como concorrer à presidência dos Estados Unidos, justificando uma guerra política ou uma aventura econômica, planejando uma festa ou discutindo um caso legal. O passado histórico só existe nos livros e artigos escritos por pesquisadores profissionais do passado, escritos em sua maior parte um para o outro e não para o público em geral”. WHITE, 2014, p. 42, tradução nossa.

62

Segundo Hayden White, a História da forma que os historiadores

escrevem (historical past) quase não é utilizada pelas pessoas para

ressignificar suas vidas ou para tomar decisões, só existe nos livros de

história e são escritas não para que o público em geral consiga entender,

são direcionadas a outros historiadores.

Além disso, existem alguns aspectos do passado que a história

ainda não conseguiu lidar com a mesma eficiência que a literatura moderna

ou o romance histórico, como é o caso de eventos traumáticos, por

exemplo o Holocausto. Neste seu último livro, Hayden White retomou este

assunto já tratado por ele em Figural Realism e novamente escreveu sobre

como a literatura moderna é uma boa saída para a narrativa dos eventos

modernos.

Ao longo deste capítulo a minha preocupação foi apresentar os

principais aspectos do pensamento histórico de Hayden White. Eu quis

apresentar o seu caminho produtivo e também demonstrar como cada fase

de seu pensamento tem características específicas e traz conceitos

próprios. Ao longo da análise destas quatro fases fica evidente a erudição e

poder argumentativo de White, cujas convicções sobre a história, mesmo

que controversas, permitiram uma renovação da Teoria da História.

Se por toda a sua vida White esteve interessado na relação entre

história e literatura, como ele mesmo já disse, talvez hoje ele possa

efetivamente dizer que ele mudou a maneira pela qual vemos essa relação

e contribuiu para aproximar estes campos e para diminuir a fronteira entre

eles.

63

CAPÍTULO 2

META-HISTÓRIA: A TEORIA DA OBRA HISTÓRICA

Este capítulo trata dos aspectos gerais da obra Meta-História

focando especialmente na apresentação da Teoria da Obra Histórica

contida nela, que serviu de referencial teórico-metodológico para a análise

da consciência histórica de Sérgio Buarque de Holanda apresentada nos

capítulos seguintes a este.

Grande parte das ideias apresentadas por Hayden White em

Meta-História, incluindo o seu conceito de História bem como a sua Teoria

da Obra História, revelam a influência que o New Criticism e o

Estruturalismo tiveram sobre o seu pensamento. Autores como Northrop

Frye, Kenneth Burke, Roman Jakobson e Claude Leví-Strauss serviram de

inspiração para que White compusesse o seu texto e foram citados em

muitas partes dele como os seus referenciais.

O New Criticism iniciou nos Estados Unidos na década de 1930

reunindo teóricos literários que propunham, entre outras coisas, a

separação do texto e do autor a fim de que o texto se tornasse objeto de

estudo em si mesmo. Northrop Frye com a obra Anatomy of Criticism é um

expoente dessa corrente de pensamento. Foi deste autor que Hayden

White retirou as estruturas de enredo com as quais classificou os

historiadores do século XIX. Outro autor desse mesmo movimento que

também o influenciou foi Kenneth Burke, cuja obra A Grammar of Motives

lhe foi muito útil para a sua caracterização do campo histórico.

O Estruturalismo também surgiu no início do século XX,

comumente ligado a Ferdinand de Saussure, principalmente devido a seu

Curso de Linguística Geral de 1916. Os autores estruturalistas Roman

Jakobson da Escola de Praga e Claude Leví-Strauss da Antropologia foram a

64

inspiração da qual Hayden White partiu para elaborar a teoria dos tropos.

Do ensaio Linguistics and Poetics de Roman Jakobson, White aproveitou as

estratégias tropológicas utilizadas para a análise de estilos literários e da

obra The Savage Mind de Claude Leví-Strauss aproveitou a díade

metafórico-metonímica utilizada na compreensão dos sistemas nomeativos

e dos mitos em culturas primitivas. A partir destes autores, White pode

especificar os diversos estilos de pensamento que poderiam aparecer em

qualquer representação da realidade e classificá-los com os tropos mestres

da metáfora, metonímia, sinédoque e ironia.

É comum também a associação de Hayden White e da sua obra

Meta-História com o chamado Linguistic Turn, traduzido para o português

como o “giro linguístico”. A expressão foi utilizada pela primeira vez no

início do século XX pelo filósofo do Círculo de Viena, Gustav Bergamann,

que propôs uma espécie de paradigma cujo ponto de vista era de que os

problemas filosóficos poderiam ser resolvidos por meio de uma reforma da

linguagem ou através de uma melhor compreensão da linguagem. A

expressão foi retomada no título de uma coletânea de artigos organizada

por Richard Rorty em 196760e logo a questão da linguagem já não estava

restrita apenas a Filosofia da Linguagem. Ao afirmar em Meta-História que

o trabalho histórico manifestadamente é “uma estrutura verbal na forma

de uma discurso em prosa”61, Hayden White trouxe para o nosso campo

uma discussão diretamente ligada ao contexto do Linguistic Turn.

Meta-História foi publicada em 1973 e apresenta um trabalho

denso dividido em três partes, nas quais Hayden White falou

respectivamente sobre a concepção de história para os iluministas do

século XVIII e para Hegel, depois sobre os tipos "realismos" produzidos

60RORTY, Richard. The Linguistic Turn. Essays in Philosophical Method. Chicago: The University of Chicago Press, 1967. 61WHITE, 2008, p. 11.

65

pelas narrativas históricas do século XIX feitas por Michelet, Ranke,

Tocqueville e Burckhardt e por último sobre como a filosofia da história

produzida por Marx, Nietzsche e Croce questionava no final do século XIX o

realismo histórico produzido até então.

Além destas três partes que compõe o livro, Hayden White

escreveu também uma longa introdução explicando a Teoria da Obra

Histórica desenvolvida por ele. Como consta nesta introdução, ao escrever

Meta-História, White teve o objetivo de contribuir com a discussão do

problema do conhecimento histórico. Para isso o autor se voltou para o

estudos de historiadores e filósofos da história do século XIX, momento em

que se pensou sobre o fazer histórico, sobre a metodologia da história,

sobre as diferenças entre história e filosofia da história e sobre como um

relato realista deveria ser. White argumentou que ele elaborou uma

estrutura típico-ideal da obra histórica com a qual pode ter um parâmetro

para o seu estudo, essa estrutura é a sua Teoria da Obra Histórica. O

fragmento seguinte traz a explicação geral de como White elaborou essa

sua teoria:

Em poucas palavras, consideradas exclusivamente como estruturas verbais e formais, as histórias produzidas pelos historiadores mestres do século XIX exibem concepções radicalmente diferentes daquilo em que deveria consistir "a obra histórica". A fim, portanto, de identificar as características de família dos diversos tipos de reflexão histórica produzidas pelo século XIX, é necessário em primeiro lugar esclarecer em que poderia consistir a estrutura típico-ideal da "obra histórica". Uma vez elaborada essa estrutura típico-ideal, disporei de um critério para determinar que aspectos de qualquer obra histórica ou filosofia da história conhecida devem ser considerados no afã de identificar seus elementos estruturais distintivos. [...] Isto, por sua vez, permitirá

66

caracterizar os diferentes pensadores da história do período em função da posição por eles partilhada enquanto participantes de um universo de discurso característico, dentro do qual eram possíveis diferentes "estilos" de reflexão histórica62.

Segundo a Teoria da Obra Histórica de Hayden White, um relato

histórico se desdobra em diversos níveis, sendo eles epistemológicos,

estéticos e morais. Além dos conceitos teóricos explicitamente utilizados

pelo historiador para dar a suas narrativas um aspecto de explicação, o

historiador também utiliza estratégias explicativas que criam um

determinado estilo historiográfico. Por sua vez, estas estratégias foram

chamadas por White de explicação por elaboração de enredo, explicação

por argumentação e explicação por implicação ideológica.

O texto produzido por um historiador terá determinado tipo de

enredo, argumentação e implicação ideológica dependendo da maneira

pela qual ele responde a questões como: "O que aconteceu depois?"

"Como isso aconteceu?" "Por que as coisas aconteceram desse modo e não

daquele?" "Em que deu no final tudo isso?" "Que significa tudo isso?" "Qual

a finalidade disso tudo?" Segundo White, essas perguntas definem as

táticas narrativas que o historiador emprega na elaboração de seu texto.

White identificou quatro modos de elaboração de enredo (romanesco,

trágico, cômico e satírico), quatro modos de argumentação (formista,

mecanicista, organicista e contextualista) e por fim quatro modos de

implicação ideológica (anarquista, radical, conservador e liberal).

Em sua introdução White explicou também sobre a teoria

tropológica, com a qual ele analisou os tipos de consciência histórica do

62WHITE, 2008, p. 20, grifos do autor.

67

século XIX. Segundo ele, os tropos da metáfora, metonímia, sinédoque e

ironia são os tipos básicos da linguagem poética que fornecem uma base

para classificar as reflexões históricas num dado período de evolução. Para

White cada tropo representou um momento na evolução da consciência

histórica no século XIX:

cada um dos modos pode ser visto como um fase, ou momento, dentro de uma tradição de discurso que evolui das formas de percepção metafórica, metonímica, sinedóquica do mundo histórico para uma apreensão irônica do irredutível relativismo de todo o conhecimento63.

Segundo a Teoria da Obra Histórica, a combinação de um modo

de enredamento com um tipo de argumentação e uma forma de implicação

ideológica representa um estilo historiográfico, que por sua vez é

correspondente a um tropo linguístico. Para White há afinidades eletivas

entre os três modos e os tropos que podem ser combinados na elaboração

do texto histórico. Graficamente essas afinidades podem ser representadas

da maneira a seguir:

Modo de Elaboração de

Enredo

Romanesco Trágico Cômico Satírico

Modo de Argumentação

Formista Mecanicista Organicista

Contextualista

Modo de Implicação Ideológica

Anarquista

Radical Conservador

Liberal

Tropos Básicos

Metáfora Metonímia Sinédoque

Ironia

63WHITE, 2008, p. 52.

68

Este capítulo está dividido em cinco partes. Os quatro primeiros

tópicos tem como referência esta tabela das afinidades eletivas e tenta

explicar o significado de cada categoria e também como Hayden White

identificou estas categorias nos autores estudados por ele. A última parte

do capítulo trata da visão de outros autores sobre a obra Meta-História, a

intenção é abordar tanto a recepção quanto a crítica ao exercício proposto

por White nesta obra.

2.1 MODO DE ELABORAÇÃO DE ENREDO

O termo enredo pode ser definido de várias maneiras. Ele é o

encadeamento dos fatos narrados em um texto, sugere entrelaçamento,

envolvimento, ele é a trama que sustenta uma história, o esqueleto de uma

narrativa. Para Hayden White, "a elaboração de enredo é a via pela qual

uma sequência de eventos modelados numa estória gradativamente se

revela como sendo uma estória de um tipo determinado"64.

A estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira são as

quatro classificações de enredo estabelecidas por Hayden White. Elas

foram baseadas na terminologia elaborada pelo crítico literário Northrop

Frye, considerado o último teórico do movimento New Criticismocorrido

nos Estados Unidos no início do século XX, que tanto influenciou White.

Segundo Hayden White, mesmo sendo classificações bastante

simples e básicas, essas categorias retiradas de Frye lhes pareceu

especialmente úteis para a análise das obras históricas, uma vez que, para

White os historiadores tendem a colocar suas estórias em enredo segundo

as formas mais convencionais.

64WHITE, 2008, p. 23.

69

O enredo de uma história romanesca é definido como um drama

associado a ideia do herói, que por sua vez traz consigo a noção de

redenção. Segundo White, o enredo romanesco é “um drama de auto-

identificação simbolizado pela aptidão do herói para transcender o mundo

da experiência, vencê-lo e libertar-se dele no final, [...] É um drama do

triunfo do bem sobre o mal, da virtude sobre o vício”65.

Conforme a análise de Hayden White, o francês Jules Michelet

concebia o realismo histórico como uma estória romanesca. A historiografia

romântica surgiu no século XIX como uma alternativa a ironia essencial e ao

ceticismo da historiografia iluminista do século XVIII, dentro desse

movimento Jules Michelet se destacou, apesar de negar que fosse um

romântico, em virtude da sua compreensão do processo histórico como

"ressurreição", como ele mesmo escreveu em O Povo de 1946. Sobre isso

White explicou:

Michelet deu a suas histórias o enredo de drama de revelação, da liberação de um poder espiritual em luta para se livrar das forças da treva, uma redenção. [...] Essa concepção da história como "ressurreição" aplica-se tanto à estrutura de enredo que as diversas histórias que Michelet escreveu pretendiam delinear como às estratégias explicativas nelas empregadas. [...] Mas já que Michelet situou o ponto de resolução macro-histórico no momento em que, durante a Revolução, a perfeita liberdade e a perfeita unidade são realizadas pelo "povo" através da dissolução de todas as forças inibidores que se lhe antepunham, o tom de sua obra estava fadado a tornar-se mais melancólico, mais elegíaco, na medida em que os ideais da Revolução em sua fase heróica refluíam para segundo plano entre as classes sociais e as elites políticas que originariamente os tinham fomentado66.

65WHITE, 2008, p. 24. 66Ibidem, p. 163.

70

Em relação ao enredo trágico, White o definiu como uma crônica

das estruturas vigentes, na qual há sugestões de estados de divisão entre os

homens, é uma forma de estória que diz das condições inalteráveis e

eternas do mundo, na tragédia não há ocasiões festivas, salvo as falsas ou

ilusórias. Segundo ele, "as reconciliações que ocorrem no final da tragédia

são muito mais sombrias; tem mais o caráter de resignações dos homens

com as condições em que devem labutar no mundo"67.

Segundo Hayden White, o contemporâneo e compatriota de

Michelet, Alexis de Tocqueville, concebeu o realismo histórico como um

enredo trágico. Desde a obra Democracia na América de 1835 até

Souvenirs de 1859, Tocqueville sustentou uma visão explicitamente trágica

da história. No trecho seguinte White explicou a visão história deste outro

francês:

Para ele, o futuro comportava pouca possibilidade de reconciliação do homem com o homem na sociedade. As forças em ação na história, que faziam dela uma arena de conflito irremissível, não são reconciliáveis, nem na sociedade nem no coração do próprio homem. O homem está, como escreveu Tocqueville, "na divisa entre dois abismos", um constituído por aquela ordem social sem a qual ele não pode ser homem, o outro constituído por aquela natureza demoníaca dentro dele que o impede de se tornar plenamente humano68.

Segundo a Teoria da Obra Histórica de Hayden White, na

comédia haveria vitórias provisórias, ocasiões de festas que desembocam

em relatos dramáticos de mudança e transformação. "As reconciliações que

67WHITE, 2008, p.25. 68Ibidem, p. 205, grifo do autor.

71

acontecem no final da comédia são reconciliações dos homens com os

homens, dos homens com seu mundo e sua sociedade"69. White explicou

também que na comédia a condição da sociedade é representada como

sendo mais pura e mais sadia.

Na análise de Hayden White, o historiador alemão Leopold von

Ranke concebeu o realismo histórico como comédia. O mythos cômico

serviu de estrutura de enredo e de arcabouço para que Ranke escrevesse as

suas obras como um drama macrocósmico. Segundo White:

Esse mythos permitiu a Ranke concentrar-se nos detalhes individuais das cenas que narrava, mas proceder com resoluta autoconfiança através da profusão de documentos à seleção segura daqueles que eram significativos e daqueles que eram insignificantes como testemunho. Sua objetividade, seus princípios críticos, sua tolerância e simpatia por todos os lados dos conflitos com que deparava em todo o registro histórico eram distribuídos dentro da atmosfera sustentadora de uma prefiguração meta-histórica do campo histórico como conjunto de conflitos que devem necessariamente terminar em resoluções harmoniosas, resoluções em que a "natureza" é finalmente suplantada por uma "sociedade" que é tão justa quanto estável70.

Do ponto de vista whiteano, tanto Hegel quanto Marx também

conceberam o enredo de suas narrativas como comédia. Hegel acreditava

em uma forma cada vez mais adequada de vida social e Marx falava de uma

reconciliação final em que os homens não precisariam mais lutar uns com

os outros. O trecho seguinte explica a abordagem cômica presentes nestes

dois pensadores clássicos:

69WHITE, 2008, p. 24. 70Ibidem, p. 179.

72

A concepção cômica da história, exposta por Hegel, baseava-se em última análise em sua crença no direito da vida sobre a morte; a "vida" garantia a Hegel a possibilidade de uma forma cada vez mais adequada de vida social por todo o futuro histórico. Marx levou essa concepção cômica ainda mais longe; prefigurou nada menos do que a dissolução daquela "sociedade" em que a condição entre consciência e ser tinha de ser alimentada como uma fatalidade para todos os homens em todos os tempos. [...] Mas sua concepção não figurava a redenção da humanidade como uma libertação em relação ao próprio tempo. Mais exatamente, essa redenção tomava a forma de reconciliação do homem com a natureza desnudada de seus poderes fantásticos e aterrorizantes, submetida ao domínio da técnica e voltada para a criação de um autêntica comunidade, a fim de gerar indivíduos que são livres porque já não tem de lutar uns com os outros por sua individualidade, mas só com eles mesmos71.

Por último, Hayden White explicou que a sátira é o drama da

disjunção, na qual o homem é cativo do mundo e não o seu senhor. O

enredamento satírico corresponde a uma espécie diferente de restrição às

esperanças, possibilidades e verdades da existência humana apresentadas

na estória romanesca, na comédia e na tragédia, ela pressupõe uma

inadequação última das visões do mundo representadas pelos demais

gêneros. A sátira "prepara a consciência para o repúdio de todas as

conceptualizações rebuscadas do mundo e antevê um retorno e uma

percepção mítica do mundo e seus processos"72.

O suíço Jacob Christoph Burckhardt concebia o realismo

histórico como sátira. Segundo a percepção de Hayden White, enquanto

Michelet e Ranke viam a história como uma estória que se desenvolve,

71WHITE, 2008, p. 292. 72Ibidem, p. 25.

73

Burckhardt não enxergava nela qualquer evolução, como está melhor

explicado no trecho a seguir:

Burckhardt, porém não via nada em desenvolvimento; para ele, as coisas coaleciam de modo a formar um tecido de maior ou menor brilho e intensidade, maior ou menor liberdade ou opressão, maior ou menor movimento. [...] Mas, na avaliação de Burckhardt, não havia evolução progressiva na sensibilidade artística, e no fim nada senão a opressão provinha dos impulsos políticos e religiosos. As verdades ensinadas pela história eram melancólicas. Não conduziam nem à esperança nem à ação. Nem sequer insinuavam que a própria humanidade iria durar73.

De acordo com White, o enredo satírico pode ser visto por

exemplo na obra A Época de Constantino, o Grande de 1852 que é um

estudo sobre o declínio cultural. Nesta obra Burckhardt conscientemente

buscava associar a comparação da queda do Império Romano com o fim

próximo da civilização.

Dentre os autores citados, Michelet, Ranke, Tocqueville,

Burckhardt, foram vistos por Hayden White como representantes de

diversos padrões de reflexão histórica do século XIX que ainda servem de

paradigma de uma consciência histórica distintamente moderna. No nível

da elaboração de enredo cada um deles demonstrou uma ênfase no

tratamento da relação entre continuidade e mudança no processo

histórico, Michelet e Ranke compartilharam narrativas diacrônicas,

enquanto Tocqueville e Burckhardt produziram narrativas sincrônicas. No

próximo tópico segue a explanação do que é o modo de argumentação e

73WHITE, 2008,p. 241-242, grifo do autor.

74

como White analisou a presença dele em cada um desses historiadores do

século XIX.

2.2 MODO DE ARGUMENTAÇÃO

O historiador evoca a operação chamada de explicação por

argumentação ao buscar responder perguntas como: Qual a finalidade

disso tudo? O que tudo isso significa? De acordo com a explicação dos

motivos pelos quais os fatos narrados aconteceram de determinada

maneira e dependendo da integração ou dispersão dos eventos

apresentados no enredamento ele terá diferentes formatos

argumentativos. Seguindo a obra do filósofo estadunidense Stephen C.

Pepper chamada World Hypotheses de 1945, na qual o autor identificou

formas básicas de reflexão filosófica, Hayden White distinguiu quatro tipos

de argumentação: formista; organicista; contextualista e mecanicista.

O argumento discursivo formista identifica as características ímpares

dos eventos históricos, nele a unicidade dos diversos agentes, agências e

atos que compõe os eventos por explicar é fundamental para as

investigações. O modo formista possui caráter dispersivo, ou seja, “a tarefa

da explicação histórica consiste em dissipar a percepção das similaridades

que parecem ser partilhadas por todos os objetos”74. Ele consiste em uma

busca pela singularidade dos objetos em investigação. Enquanto estratégia

explicativa está presente naquelas produções historiográficas que

descrevem demasiadamente os fenômenos do campo histórico.

Na análise de White, Michelet apreendeu o campo histórico de

modo formista. Este historiador buscava perceber unidade das coisas no

campo histórico, como consta no trecho a seguir:

74WHITE, 2008,p. 29.

75

Michelet buscou uma fusão simbólica das diferentes entidades ocupantes do campo histórico, e não apenas um meio de caracterizá-las como símbolos individuais. A unicidade acaso detectada na história era, na concepção de Michelet, a unicidade do todo, não das partes que compõe o todo. A individualidade das partes é só aparente. A importância delas deriva de sua condição de símbolos da unidade que todas as coisas – na história como na natureza – almejam vir a ser.75

O modo organicista possui caráter integrativo e redutivo,

descreve os pormenores discernidos no campo histórico como

componentes de processos sintéticos, tende a ver os processos individuais

agregados as totalidades e também procura formular os princípios e as

idéias que informam os processos. Como disse Hayden White, "o historiador

organicista tenderá a ser regido pelo desejo de ver entidades individuais

como componentes de processos que se agregam em totalidades que são

maiores ou qualitativamente diferentes da soma de suas partes"76. White

explicou também que na argumentação organicista não há leis universais

que regem a história, mas princípios que norteiam os processos e que estão

presentes tanto nos eventos tomados isoladamente como no processo

como um todo.

Segundo a percepção de White, Ranke utilizou o modo de

argumentação organicista em suas produções históricas. Ele havia sido

aluno de Humboldt, para quem as partes da história deveriam ser

integradas numa visão do todo, "concebido com fundamento numa noção

de governo do mundo ou na ideia de que a totalidade do processo história

75WHITE, 2008, p. 161, grifo do autor. 76Ibidem, p. 30.

76

manifesta nas operações de um princípio superior de unidade"77. O

fragmento de texto a seguir reflete sobre o organicismo de Ranke:

Em seu modo de ver, a história – apesar da sua natureza aparentemente caótica – apresenta à consciência histórica adequadamente condicionada um sentido e compreensibilidade que ficam um pouco abaixo da certeza total de seu sentido último que a sensibilidade religiosa pode extrair da reflexão sobre ela. Esse "sentido" consiste na apreensão da coerência formal de segmentos finitos do processo histórico, na apreensão das estruturas que se sucedem umas às outras como integrações cada vez mais abrangentes da vida e da sociedade humana. Em suma, para Ranke, o sentido que a história revela à consciência é puramente organicista. Não é, porém, o organismo holístico que Novalis pretendeu enxergar no processo todo, mas o do relacionamento parte-todo que permite ao observador ver no microcosmo uma indicação da coerência mais ampla contida na totalidade78.

Em relação ao modo de argumentação mecanicista, White explicou

que um historiador mecanicista busca leis causais que determinem os

resultados dos processos descobertos no campo histórico. Assim, estuda a

história para predizer as leis que governam suas operações e escreve a

história para expor os efeitos dessas leis. O modo de argumentação

mecanicista identifica leis de caráter universal, capazes de explicar o

passado e o presente. De acordo com Hayden White, após encontrar as leis

que governam a história, o historiador mecanicista “aplica essas leis aos

dados de modo a tornar suas configurações compreensíveis como funções

77WHITE, 2008, p. 194. 78Ibidem, p. 199, grifo do autor.

77

dessas leis”79. White usa a conhecida relação entre a Superestrutura e a

Infraestrutura, formulada por Marx, como exemplo de explicação por

argumentação formal do tipo mecanicista, cujas transformações nas

relações materiais de produção e existência (Infra-estrutura) condicionam

as transformações nas instituições sociais e culturais (Superestrutura), mas

que a relação contrária ou inversa não prevalece.

Em sua análise, White identificou Tocqueville como mecanicista,

como é possível ver no trecho seguinte:

Que Tocqueville visionava uma historiografia capaz de ministrar as leis do processo social – à laMarx – mostram-no sua investigação em Democracia na América sobre a relação entre história e poesia e sua concepção das modalidades de consciência histórica exposta no segundo volume daquela obra. Como ele observou, enquanto a poesia "é a procura, o delineamento, do ideal", a história deve dizer sobre o mundo dos afazeres humanos, revelar as forças reais encontradas em qualquer tentativa de concretizar o ideal, e cartografar as reais possibilidades para o futuro de um sociedade80.

O modo contextualista possui uma concepção funcional. Nessa

forma argumentativa, os eventos podem ser explicados ao serem inseridos

no contexto de sua ocorrência, eles são comparados com outros eventos

ocorrentes em mesmo espaço histórico circundante, procurando ver as

inter-relações funcionais existentes entre agentes e agências que ocupam o

campo num dado momento, ou seja, busca relativa integração dos

fenômenos. Na teoria de White, argumentos contextualistas são aqueles

79WHITE, 2008, p. 33 80 Ibidem, p. 212, grifo do autor.

78

que depois de isolar qualquer elemento do campo histórico como assunto

de estudo, passa a escolher os fios que o ligam a diferentes áreas do

contexto. Esses “fios” são depois esticados no espaço natural e social

circundante dentro do qual ocorreu o evento, e no tempo com a finalidade

de determinar seu impacto e influência sobre os demais eventos.

Para Hayden White, o historiador Burckhardt foi contextualista

em sua maneira de argumentação, pois ele entendia o campo histórico

como um tecido compostos pelos vários fios que explicam os

acontecimentos. Sobre isso White explicou:

Seja qual for a teoria formal da explicação histórica que Burckhardt nos ofereceu, é ela somente uma teoria da "moldura" em que os acontecimentos históricos se desenvolvem. Não é uma teoria do relacionamento entre os acontecimentos e a própria moldura. Ou melhor, a teoria do relacionamento funda-se na apreensão da impossibilidade de distinguir finalmente entre um acontecimentos e a moldura histórica mais ampla em que ele ocorre. Essa teoria é contextualista, pois supõe que um explicação dos acontecimentos históricos está dada quando vários fios que compõem a tapeçaria de uma era histórica estão diferenciados e as conexões entre os eventos, que fazem do campo um "tecido", estão expostas81.

Em resumo, Hayden White identificou quatro formas de

argumentação que os historiadores podem lançar mão para explicar a

maneira pela qual os eventos ocorreram. Depois disso ele analisou os

textos de Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt e percebeu

respectivamente neles os tipos formista, organicista, contextualista e

81WHITE, 2008, p. 272.

79

mecanicista. No próximo tópico a atenção será dada para a implicação

ideológica de cada um deles.

2.3 MODO DE IMPLICAÇÃO IDEOLÓGICA

O nível do discurso narrativo em que se localiza o elemento

político assumido pelo historiador em relação às condições de seu mundo

contemporâneo foi chamado por Hayden White de modo de implicação

ideológica. Além de um enredo específico e uma forma de argumento

particular, a narrativa história também possui uma implicação ideológica,

que reflete o elemento ético e a posição ideológica do historiador. Neste

caso ideologia seria um conjunto de prescrições para a tomada de posição

no mundo.

Baseando-se em Karl Mannheim, Hayden White apontou a

presença de quatro modalidades de implicação ideológica no trabalho

historiográfico: anarquista, radical, conservador e liberal. Segundo White, o

historiador evidencia sua preferência a uma ou outra destas quatro

posições ao atribuir tal ou qual valor à instituição social existente, como se

lê no trecho a seguir acerca do que as ideologias representam:

Representam diferentes atitudes com respeito à possibilidade de reduzir o estudo da sociedade a uma ciência e à desejabilidade de fazê-lo; diferentes noções das lições que as ciências humanas podem ministrar; diferentes concepções da desejabilidade de manter ou mudar o status quo social; diferentes concepções da direção que as mudanças do status quo deve tomar e os meios de efetivar tais mudanças; e finalmente diferentes orientações temporais (uma orientação para o passado, o presente ou o futuro como repositório de um paradigma

80

da forma ‘ideal’ de sociedade)82.

Enquanto os conservadores e os liberais são resistentes em

acreditar nas mudanças sociais, os radicais e os anarquistas apontam para

as modificações estruturais da sociedade. Se os conservadores tendem a

ver as mudanças sociais em analogia as mutações e adaptações biológicas,

cujo ritmo é natural e lento, os liberais sugerem o ritmo do “parlamento”

para ocorrerem as mudanças, enquanto para os radicais as mudanças são

iminentes, e os anarquistas acreditam, por um ato de autocontrole e

autoconsciência, aniquilar as bases sobre as quais a situação vigente se

institui e simultaneamente erigir uma nova relação entre os indivíduos.

Para Hayden White, o anarquismo idealiza um passado remoto

de inocência natural humana, por isso, tem a visão de abolir a sociedade

por completo e substituí-la por uma comunidade de indivíduos ligados pelo

sentimento de humanidade. Na análise feita por ele, a implicação da

concepção de história de Michelet era anarquista, mesmo que ele tivesse

escrito uma história a favor da causa liberal, como está explicado no trecho

a seguir:

Muito embora Michelet tivesse na conta de liberal e escrevesse história para servir à causa liberal como ele a entendia, na realidade as implicações de sua concepção de história são anarquistas. Como se pode ver no modo como caracterizou em sua História da Revolução Francesa a condição a que chegou o povo francês em 1789, ele concebeu o estado ideal como sendo aquele em que todos os homens estão natural e espontaneamente unidos em comunidades de emoção e atividades compartilhadas que

82WHITE, 2008, p. 38.

81

não requerem nenhuma direção formal (ou artificial)83.

White explicou que o relato conservador desconfia das

transformações rápidas da ordem social, reconhece a existência de uma

estrutura fundamental sólida da sociedade. Nesse posicionamento, as

mudanças são eficazes quando não alteram as relações estruturais. O

entendimento acerca da evolução histórica limita-se ao aperfeiçoamento da

estrutura social vigente. Para ele, a implicação ideológica da maneira como

Ranke concebia a história era conservadora, uma vez que ele não acreditava

em mudanças que nos conduzisse para uma comunidade melhor. Na

verdade, como White explicou:

Em resumo, Ranke não contemplava a possibilidade de novas formas de comunidade em que os homens estivessem politicamente unidos e livres das restrições a eles impostas por Estado e Igrejas nacionais. Esta é a um só tempo a medida e a forma do seu conservadorismo. Uma vez que a "ideia da nação" funciona como valor absoluto em sua teoria da história, as próprias noções de universalidade e liberdade individual são vistas como alternativas à própria história84.

Na perspectiva analítica whiteana, a ideologia do radicalismo

acredita na necessidade de mudanças estruturais visando reconstituir a

sociedade sobre novas bases, busca meios revolucionários para concretizar

o Estado utópico iminente. Os radicais procuram entender as leis das

estruturas e bem como os processos históricos. Tocqueville foi apresentado

83WHITE, 2008, p. 172. 84Ibidem, p. 186, grifo do autor.

82

como alguém cuja concepção histórica tinha implicações radicais. Ele

estudou a história para determinar "as leis causais que regem suas

operações como processo"85. Porém, como explicou White, em algumas

momentos também era possível perceber uma orientação liberal nele,

como consta no fragmento abaixo:

Se Tocqueville tivesse afirmado ou que a história não tem sentido algum e portanto não oferece base nenhuma para a esperança, ou inversamente, que ela tem um sentido e que esse sentido pode ser integralmente conhecido pelo homem, teria sido impelido ou para a posição reacionária de seu sucessor Burckhardt ou para a posição radical de seu contemporâneo Marx. Mas ele queria acreditar que a história tem um sentido e que esse sentido há de ser encontrado na natureza misteriosa do próprio homem. Foi o valor que Tocqueville conferiu a esse mistério que o converteu porta-voz da posição ideológica que tem sido chamada de liberal, a despeito do fato de que sua concepção da natureza nomológica do processo histórico poderia tê-lo induzido a adotar uma posição radical sobre a maioria das importantes questões sociais da época86.

O liberalismo enxerga as mudanças sociais como ajustes de um

mecanismo, por exemplo, um ajuste no ritmo social dos processos

eleitorais, educacionais etc. Esse posicionamento ideológico descarta quase

totalmente a tentativa de melhora da estrutura, colocando tal possibilidade

em um futuro muito remoto. Segundo White, o historiador Burckhardt

85WHITE, 2008, p. 205. 86Ibidem, p. 206, grifo do autor.

83

podia ser incluído entre os liberais, pois jamais se tornaria um agitador ou

um revolucionário87. Sobre a concepção histórica dele White escreveu:

Burckhardt observou um mundo em que a virtude era habitualmente traída, o talento pervertido e o poder posto a serviço da causa mais torpe. Viu muito pouca virtude em sua própria época, e não viu nada que pudesse dar adesão irrestrita. Sua única devoção era à "cultura da velha Europa". Mas considerava essa cultura da velha Europa como um ruína. Ela era para ele como um daqueles monumentos romanos em desagregação que se destacam no meio de um paisagem de Poussin, todo coberto de videiras e relva, resistindo ao reconfisco pela "natureza" contra a qual tinha sido erigido. Ela não alimentava nenhuma esperança de restaurar essa ruína, satisfazia-se simplesmente com recordá-la88.

Depois de distinguir quais são as principais formas de implicação

ideológica e depois também de identificar as implicações fundamentais da

concepção histórica de cada um dos historiadores clássicos do século XIX,

White passou a se preocupar com as estratégias conceituais de que se

valeram estes historiadores e os principais filósofos da história para explicar

seus objetos de estudo e caracterizar a relação entre eles, como se pode

ver no próximo tópico.

2.4 OS ESTILOS HISTORIOGRÁFICOS

Em sua Teoria da Obra Histórica, Hayden White chamou de estilo

historiográfico a combinação de modos de elaboração de enredo,

87WHITE, 2008, p. 256 88 Ibidem, p. 245, grifo do autor.

84

argumentação e implicação ideológica. Para ele, existem afinidades entre

esses vários modos que podem ser usados para alcançar uma impressão

explicativa durante a escrita da narrativa histórica. Porém, antes mesmo de

poder aplicar aos dados do campo histórico o aparato conceptual

representativo para explicá-lo, o historiador tem de primeiro prefigurar o

campo, ele tem de constituí-lo como objeto de percepção mental. Sobre

isso White escreveu:

A fim de imaginar "o que realmente aconteceu" no passado, portanto deve primeiro o historiador prefigurar como objeto possível de conhecimento o conjunto completo de eventos referidos no documentos. Este ato prefigurativo é poético, visto que é precognitivo e pré-crítico na economia da própria consciência do historiador. É também poético na medida em que é constitutivo da estrutura cuja imagem será subsequentemente formada no modelo verbal oferecido pelo historiador como representação e explicação daquilo "que realmente aconteceu" no passado. [...] No ato poético que precede a análise formal do campo o historiador cria seu objeto de análise e também predetermina a modalidade das estratégias conceptuais de que se valerá para explicá-lo89.

Hayden White identificou as categorias para analisar os

diferentes modos de reflexão, representação e explicação dos

historiadores, nas modalidades da linguagem poética. Os tropos básicos da

metáfora, metonímia, sinédoque e ironia serviram para ele classificar as

formas de consciência histórica do século XIX e entender as operações nas

quais os historiadores e os filósofos da história preparam seus objetos para

uma apreensão consciente.

89WHITE, 2008, p. 45, grifo do autor.

85

Em Trópicos do Discurso é possível perceber que este padrão

quádruplo dos tropos teve uma grande importância e profundidade no

pensamento whiteano ao longo da década de 1970, pois através dele White

pode perceber a sequência de desenvolvimento da compreensão humana,

que evoluía de um entendimento metafórico até um entendimento irônico.

No trecho a seguir White explica que os tropos básicos foram para ele

arquétipos desse desenvolvimento da compreensão:

A compreensão é um processo de tornar familiar o não-familiar, ou "estranho", no sentido freudiano desse termo; [...]. Este processo de compreensão só pode ser tropológico na essência, pois o que está envolvido na conversão do não-familiar em familiar é uma criação de tropos que em geral é figurativa. Segue-se, a meu ver, que esse processo de compreensão se desenvolve mediante a exploração das principais modalidades de figuração, que a teoria retórica pós-renascentista diz ser os "tropos principais" (expressão de Kenneth Burke) da metáfora, da metonímia, da sinédoque e da ironia. Além disso, parece que nesse processo atua um padrão arquétipo para construir tropologicamente campos da experiência que requerem a compreensão que acompanha a sequência de modos indicados como dados pela relação de tropos principais90.

Conforme White explicou na introdução de Trópicos do Discurso,

o padrão quádruplo dos tropos poderia ser visto nas mudanças gestálticas

de Piaget em que a cognição humana se desenvolve de uma fase sensório-

motor, passando pelas fases representacional, operacional até chegar no

entendimento racional. Também podia ser observado na análise de Freud

da atividade onírica que perpassava os processos de condensação,

90WHITE, 2008, p. 18.

86

deslocamento, representação e revisão secundária. White explicou ainda

que para ele a análise feita por Marx das fases de desenvolvimento da

consciência socialista e a forma pela qual Thompson expôs o

desenvolvimento da classe trabalhadora também são estruturas análogas

ao sistema quádruplo dos tropos. Em Meta-História Hayden White havia

compreendido que tanto a História quanto a Filosofia da História no século

XIX apresentavam tal desenvolvimento que culminava em uma

compreensão irônica, como está no trecho a seguir:

Assim encarada, a evolução da filosofia da história – de Hegel, através de Marx e Nietzsche, a Croce – representa o mesmo desenvolvimento que se pode ver na evolução da historiografia, desde Michelet, através de Ranke e Tocqueville, a Burckhardt. As mesmas modalidades básicas de conceptualização aparecem tanto na filosofia da história quanto na historiografia, ainda que apareçam num sequência diferente em suas formas plenamente articuladas. O ponto importante é que, tomada como um todo, a filosofia da história termina na mesma situação irônica a que tinha chegado a historiografia no último terço do século XIX91.

Na teoria dos tropos a metáfora corresponde a uma linguagem

essencialmente representacional, enquanto a metonímia comporta a

linguagem reducionista, a sinédoque é integrativa e a ironia é negacional.

Hayden White classifica esses três primeiros tropos citados como ingênuos

por necessitarem crer na capacidade da linguagem para apreender a

natureza das coisas em termos figurados. Em contraste com eles o tropo da

ironia consiste na auto-anulação verbal. A ironia, assim, representa um

estágio da consciência em que se reconhece a natureza problemática da 91WHITE, 2008, p. 55.

87

própria linguagem, o alvo do enunciado irônico é afirmar tacitamente a

negação do que no nível literal é afirmado positivamente, ou o inverso.

Na análise de White, a concepção de história de Michelet foi no

início da sua produção metafórica e depois migrou para um percepção mais

irônica, como está descrito no trecho seguinte:

A estória romanesca da luta do povo francês contra a tirania e a divisão e da consecução de uma perfeita unidade durante o primeiro ano da Revolução é pouco a pouco afastada pela compreensão crescente em Michelet da ressurgência e vitória (ao menos temporária) das forças bloqueadoras. Michelet continuou a escrever história como defensor dos inocentes e justos, mas a sua devoção a eles pouco a pouco se enrijeceu, tornou-se mais "realista", ao compenetrar-se do fato de que o resultado desejado ainda estava longe de alcançar92.

Para White, Nietzsche também possuía com concepção

metafórica da história. Seu nome estava associado ao renascimento do

interesse pelo pensamento mítico, especialmente pelo mito do eterno

retorno. Conforme explicou White, Nietzsche pretendia um retorno aos

poderes metafóricos, como está descrito a seguir:

O escopo de Nietzsche como filósofo era ultrapassar a ironia libertando a consciência de todas as apreensões metonímicas (que engendraram as doutrinas da causalidade mecânica e uma ciência desumanizadora) por um lado e todas as sublimações sinedóquicas do mundo (que geraram as doutrinas de causas "superiores", deuses, espíritos e ética) por outro, e restituir à consciência a fruição de seus poderes metafóricos, de sua capacidade

92WHITE, 2008, p. 171-172.

88

de "deleitar-se nas imagens", de considerar o mundo como puros fenômenos, e de liberar, desse modo, a consciência poética do homem para uma atividade mais pura, ainda que mais autoconsciente, do que a ingênua metáfora do homem primitivo93.

Em relação a concepção história de Ranke, White a classificou

primeiro como metafórica devido ao seu interesse primordial pelos

acontecimentos em sua particularidade e singularidade, mas depois a

concepção dele se tornou sinedóquica, como explicou White no trecho a

seguir:

Ranke prefigurou o campo histórico no modo da metáfora, que sancionava um interesse primordial pelos acontecimentos em sua particularidade e singularidade, sua nitidez, colorido e variedade, e depois sugeriu a compreensão sinedóquica dele como campo de coerências formais, cuja unidade fundamental ou final podia ser apresentada por analogia com a natureza das partes94.

Prosseguindo a sua análise, White percebeu em Tocqueville a

presença de uma linguagem predominantemente metonímica. O seu

método tipológico de análise era redutivo e dualista. Tocqueville entendia

que a sua tarefa como historiador era "mediar não somente entre

conceitos alternativos de sociedade e entre o passado e o presente, mas

93WHITE, 2008, p. 342. 94Ibidem, p. 179.

89

também entre o presente e o futuro"95, ele ainda mediava entre a visão

história aristocrática e a democrática.

De acordo com o entendimento de White, Marx assim como

Tocqueville também apreendeu o campo histórico no modo metonímico,

pois de maneira geral ele compreendia o processo histórico como uma

relação de causa e efeito entre o nível da infra-estrutura e o da

superestrutura. Porém, todos os estágios da tropologia podiam ser

encontrados nas suas análises tanto de microeventos, como a revolução de

1848-1851 na França, quanto de macroeventos, como a evolução inteira da

humanidade. White percebeu o uso da tropologia feita por Marx ao analisar

a obra O Capital:

Assim, a trajetória ou evolução das formas de valor, levando da caracterização originária (metafórica) do valor de uma mercadoria em termos de sua equivalência com alguma outra mercadoria para a caracterização (irônica) do valor de um mercadoria em função da quantidade de ouro (ou dinheiro) que ela rende no sistema de troca, prossegue por meio das duas estratégias tropológicas de redução e integração que esperávamos: pela metonímia, de um lado, e pela sinédoque, do outro96.

Da forma como analisou Hayden White, a visão histórica de

Burckhardt era irônica. Segundo White, "O entusiasmo da estória

romanesca, o otimismo da comédia e a resignação de uma apreensão

trágica do mundo não eram para ele"97, a história que Burckhardt produzia

95WHITE, 2008, p. 217. 96 Ibidem, p. 304. 97 Ibidem, p. 245.

90

era reflexo de um realismo irônico, como é possível perceber na leitura do

fragmento seguinte:

O quadro do Renascimento produzido por Burckhardt lembra uma combinação dos temas de uma pintura de Piero di Cosimo e Rafael, pintura banhada na luz fatigada de Burne-Jones e Rosseti. O tom é elegíaco, mas os temas do quadro são a um só tempo selvagens e sublimes. O "realismo" do assunto provém da recusa a esconder o que há de cru ou violento, mas durante todo o tempo o leitor é levado a recordar as flores que cresciam neste monte de esterco da imperfeição humana. A finalidade, porém, é irônica98.

White também analisou a filosofia da história produzida por

Croce como essencialmente irônica. Do seu ponto de vista, Croce escrevia

para demonstrar a natureza imperfeita de todo empreendimento humano,

"era a sua uma filosofia que detectava a insuficiência em todas as coisas do

passado para que os homens considerassem possível viver com as

insuficiência do presente"99. Como explicou White, a ironia era central no

entendimento de Croce:

E de fato Croce tomara o elemento irônico que está presente em toda operação crítica e elevara-o à condição de princípio metafísico e epistemológico, graça ao qual todo o acervo cultural do século XIX, e em especial seus elementos "radicais", podia ser avaliado, julgado insuficiente e transferido à "história". Seu problema, como ele bem sabia, era estabelecer essa atitude irônica como a única "sabedoria" da época moderna sem arremessar o

98WHITE, 2008, p. 258. 99Ibidem, p. 387.

91

pensamento no ceticismo e no pessimismo que uma consciência sistematicamente irônica inevitavelmente promovia100.

Em resumo, a teoria tropológica serviu no pensamento whiteano

como um aparato para a percepção das formas de consciência histórica

produzidas ao longo do século XIX. Em sua análise, White observou um

movimento tanto na história quanto na filosofia da História em direção a

uma atitude irônica. De maneira geral o seu trabalho foi detectar as

diversas estratégias interpretativas que foram elaboradas pelos

historiadores e filósofos da história percebendo como eles chegaram a

conclusões tão distintas sobre os mesmos dados do registro histórico.

Então, ele pode concluir que "ao constituírem o campo histórico de

maneiras alternativas, implicitamente comprometiam-se com diferentes

estratégias de explicação, construção de enredo e implicação ideológica"101.

2.5 REFLEXÕES SOBRE META-HISTÓRIA

Realizada a exposição da obra Meta-História de Hayden White,

passo a mostrar agora como foi a receptividade de tal obra e também as

visões de outros autores sobre ela. A seguir apontarei o posicionamento

principalmente de autores como Franklin Ankersmit, AlunMunslow e Keith

Jenkins, por considerar que estes pensadores foram capazes tanto de

apontar os méritos quanto os limites da teoria de White. Por último

demonstrarei como outros autores, no caso de Roger Chartier e Carlo

Ginzburg, encontraram alternativas para o relativismo que identificaram em

Meta-História. 100WHITE, 2008, p. 387 101Ibidem, p. 438.

92

Em relação ao historiador e filósofo holandês Franklin Ankersmit,

ele tem se ocupado em seus estudos especialmente sobre o problema da

representação histórica. Ao tentar entender qual seria a melhor forma de

explicar o passado, Ankersmit criticou a teoria de White que, segundo ele,

não se preocupou com a explicação sobre como decidir qual a melhor

opção entre abordagens diferentes de determinada parte do passado. No

trecho selecionado a seguir podemos verificar o direcionamento da sua

crítica:

Existe, contudo, uma questão de maior significância teórica geral que não podemos ignorar. Devemos notar que a teoria da história de White, tal como desenvolvida em seu livro, focaliza exclusivamente o nível do texto histórico, ou seja, ela não deixa espaço para uma análise da relação entre a escrita da história e aquela parte do passado em si que está exposta no texto. Consequentemente, ela exclui a possibilidade de uma discussão de aspectos epistemológicos dessa relação entre a escrita da história e o passado. [...] Ou, colocando de outro modo, a teoria da história de White é indiferente à questão do sucesso representacionalista. Nesse sentido, a Meta-História de White tem sido cúmplice, na teoria da história, da notória concepção de Derrida de que “não há nada fora do texto”, visto que ambos os casos, um foco exclusivo no texto convida a uma negligência daquilo sobre o que ele é e de como o texto e o mundo estão relacionados102.

Em entrevista concedida aos tradutores da obra A Escrita da

História, entre eles Jonathan Menezes, Ankersmit esclareceu que

compartilha com White o interesse pela escrita da História e que raramente

difere dos posicionamentos dele, porém, quando o assunto é a relação

102ANKERSMITH, Frank R. A Escrita da História: a natureza da representação histórica. Londrina: Edel, 2012, p. 22.

93

entre o texto histórico e a representação do passado Ankersmit assume

uma outra visão, na qual não se pode ignorar o problema da verdade

histórica, ou seja, aquilo que faz um texto ser melhor ou pior do que outro

sobre a mesma temática103. Além disso, há uma diferença metodológica

entre estes dois teóricos, enquanto White normalmente se baseia na teoria

literária, Ankersmit prefere a filosofia da linguagem. Disso procedem as

diferentes abordagens que a ambos estabelecem. Mesmo assim, Ankersmit

guarda o ponto de vista de que foi uma grande conquista de White a de

fazer os teóricos da história e os historiadores estarem conscientes da

dimensão estrutural do texto.

O historiador britânico Alun Munslow, professor emérito de

História e Teoria da História da Staffordshire University, vai além da

abordagem de Ankersmit classificando Hayden White como

desconstrucionista. Na abordagem de Munslow, Hayden White é o que

representa mais adequadamente a abordagem desconstrucionista pois foi o

primeiro a construir uma teoria detalhada da história como um exercício

tropológico104 e muitos historiadores ficam incomodados particularmente

com o argumento de Hayden White de que a história não pode

corresponder a uma dada ou pré-existente estória do passado, muito

menos uma que possa ser conhecida como o que realmente o passado

significa. No sentido de apontar as implicações da teoria de White,

AlunMunslow escreveu sobre como a linguagem é determinante na

produção histórica:

Se acreditamos que a evidência do que aconteceu no passado não determina de forma não problemática o

103ANKERSMITH, 2012, p. 326. 104MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 187.

94

significado do passado, mas sim que a linguagem dos historiadores é essencial nesse processo de criação do significado, então, é claro que a história que criamos tem que estar sujeita às decisões, em relação à linguagem, tomadas pelo historiador. Isso não significa que deixamos de ser empíricos ou racionais como historiadores, mas o que isso realmente significa é que precisamos não apenas ser conscientes da virada linguística e, então, tentar driblá-la como os novos empiristas tentam fazer105.

Da maneira como vejo, Alun Munslow quis apontar a

impossobilidade de voltar atrás em tudo aquilo que a teoria de Hayden

White em Meta-História conquistou. Nesse sentido, ele afirmou que do seu

ponto de visto o desconstrucionismo não implica em um antirrealismo:

Eu estou sugerindo que não é viável para o historiador imaginar que ele pode escapar na narrativa para o passado. Todavia, ser um historiador antirrepresentacionalista ou desconstrucionista não é o mesmo que ser antirrealista. A questão desconstrucionista é diferente. Quando fazemos história, que é quando construímos narrativas, ficamos em contato com a realidade do passado, mas, como aponta Ankersmit, ela não está fora da declaração de crença justificada. O representacionismo de Ankersmit sugere que o que de fato é importante sobre a história é seu status ontológico como um tipo de literatura. Enquanto a substância ou o conteúdo do passado mantém nosso ponto de referência, a maneira como organizamos nossa interpretação do passado ou a forma que damos a ele é mais um questão de registro do que de empirismo e análise106.

105MUNSLOW, 2009, p. 48. 106Idem.

95

Em uma outra passagem AlunMunslow deixa ainda mais claro as

implicações do pensamento de Hayden White, assegurando a importância

do combate da crença de que é possível conhecer verdadeiramente a

realidade do passado a partir do texto produzido pelo historiador:

A abrangente implicação é que a história não pode ser nada mais, nem menos, do que uma representação do passado. Tal concepção explicitamente rejeita a história escrita principalmente como uma disciplina empírica que pretende objetivamente uma pressuposta realidade histórica do passado. A questão é a natureza da representação, não o processo da pesquisa empírica como tal. O problema é alertar contra a crença de que podemos verdadeiramente conhecer a realidade do passado através de sua representação textual107.

O historiador britânico Keith Jenkins tem praticamente o mesmo

posicionamento de Alun Munslow em relação a obra de Hayden White. Para

ele o campo da história foi realmente impactado com novas diretrizes da

qual Hayden White faz parte, tanto que é hoje impossível não reconhecer a

história na perspectiva pós-moderna como pode ser visto no fragmento

selecionado abaixo, no qual, em tom de ironia, Jenkins questiona se não

seríamos todos nós pós-modernistas:

A pergunta é a seguinte: se é o caso (realmente, bastante óbvio) de jamais poder haver um “verdadeira interpretação do passado como história”, se está muito claro que nunca se poderá chegar a uma descrição total e suficiente sobre o que quer que seja, (...) então, por que diabos as pessoas (por exemplo, os pós-modernistas)

107MUNSLOW, 2009, p. 234.

96

sentem necessidade de continuar falando sobre isso? (...) Não é verdade que muitas posições associadas ao pós-modernismo, se não todas (...) agora fazem parte da trama da vida intelectual cotidiana? (...) Nesse sentido somos todos pós-modernistas atualmente?108

Partindo das contribuições de Hayden White, Keith Jenkins

explicou que assim como o passado e a história, os fatos também são

construções interpretativas. No entanto, “isso não significa negar a

realidade dos acontecimentos passados, mas argumentar que eles não

importam até receber significação no discurso”109.

Desta forma, parece compreensível historicamente que a teoria

de White e seus desdobramentos listados por Jenkins fazem parte

definitivamente do campo historiográfico atual, o que não significa,

segundo ele, um abandono das questões epistemológicas:

Não acho que os historiadores tenham desistido da objetividade e da verdade, do desejo de fazer da história um discurso ao qual enunciados de verdade sejam aplicáveis de várias maneiras: uma epistemologia. Essas intenções podem muito bem estar relativizadas hoje em dia, mas não foram abandonadas. Tampouco acho que os historiadores tenham se tornado relativistas felizes110.

Em contraposição a Franklin Ankersmit, Alun Munslow e Keith

Jenkins que consideraram positivas as contribuições das ideias de Hayden

108JENKINS, 2014, p. 26. 109Ibidem, p. 65. 110Ibidem, p. 27.

97

White apresentadas em Meta-História, estão o posicionamento dos autores

Roger Chartier e Carlo Ginzburg.

Do ponto de vista de Roger Chartier, especialmente aquele

exposto em seu artigo Figuras Retóricas e Representações Históricas, que

compõe o livro À Beira da Falésia publicado originalmente em 1998, é

problemática a teoria de Hayden White principalmente em torno da ideia

de que os tropos linguísticos determinam as estratégias narrativas dos

historiadores. Para Chartier há uma contradição entre as implicações deste

vocabulário do estruturalismo linguístico e a liberdade de escolha do

historiadores.

Roger Chartier problematizou também a sugestão de Hayden

White de que os tropos linguísticos seriam uma estrutura meta-histórica

capaz de classificar toda a historiografia ocidental. Para Chartier existe

nesta perspectiva um anacronismo, pois o modelo criado por White pode

até ter sido útil para o seu exercício analítico com os historiadores do

século XIX, porém não poderia ser aplicado em toda a historiografia sem

considerar o contexto produtivo. Sobre isso Chartier questionou:

É legítimo aplicar o modelo tropológico da prefiguração poética e linguística sem levar em conta o lugar, muito diferente conforme as situações históricas, da retórica e sem medir a distância ou a proximidade dos atores em relação a essa modalidade de codificação de discurso que não foi nem única nem estável entre a Renascença e o século XX?”111

111CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto

Alegre: Ed. UFRGS, 2002, p. 110.

98

Do ponto de vista de Chartier, a liquidação das fronteiras entre a

narrativa histórica e narrativa ficcional proposta por White poderia nos

levar ao relativismo extremo no qual a verdade histórica estaria em perigo.

Por isso Chartier identificou nisso outro sério problema do pensamento

whiteano. Se história e ficção são equivalentes seria inútil toda a árdua

tarefa do levantamento e interpretação documental. Na verdade, Chartier

apontou uma implicação ainda mais séria dessa aproximação entre história

e ficção que seria a dúvida da existência de eventos como o Holocausto e a

validade das narrativas revisionistas sobre esse e outros eventos modernos.

Assim como Chartier, Carlo Ginzburg também é bastante crítico

em relação a Hayden White. Segundo ele, a estreita relação entre história e

literatura proposta por White em Meta-História conduz a perda do

compromisso com a verdade que sempre foi a marca da escrita da história,

além de remeter ao ceticismo, ao relativismo e reduzir a historiografia à

narrativa. As implicações desse posicionamento foram apontados por

Ginzburg no trecho seguinte:

É uma história narrativa que defende a ausência da verdade, onde tudo é explicável e ninguém é culpado. [...] Esse deveria ser um limite do relativismo. [...] Hoje em dia milhares de pessoas morrem de fome e epidemias, circundadas pelos funcionários da ONU e vigiadas pelas emissoras de TV. [...] O limite do relativismo é, ao mesmo tempo, cognitivo, político e moral. Ele permite não estar em lugar algum no momento em que se deseja estar imparcialmente em toda parte. [...] O relativismo legitima e mantém a supremacia do mundo chamado de adiantado, mas não questiona o fato de essa supremacia ter raízes culturais e depender do controle sobre a

99

realidade e sobre sua percepção. [...] Para compreender isso o modelo relativista nietzschiano não ajuda muito112.

Para Ginzburg é problemático a posição de historiadores como

Hayden White, considerado por ele como herdeiro desta perspectiva

nietzschiana, que acreditam na ficção da história, pois esses historiadores

se afastam dos critérios de verdade e de prova e passam a valorizar aquela

retórica que se preocupa em convencer o leitor, e assim a legitimidade

passa a estar nos recursos da narrativa e não na busca da verdade sobre o

passado. Ginzburg defende que a tarefa primordial do historiador deve ser

a busca da verdade sustentada pela prova. Segundo ele, a pesquisa

histórica deve ser levada a sério, muito mais do que o produto literário

resultante:

A postura, hoje difundida, em relação às narrativas

historiográficas me parece simplista porque examina,

normalmente, só o produto literário final sem levar em

conta as pesquisas (arquivísticas, filológicas, estatísticas

etc.) que o tornaram possível. Deveríamos, pelo contrário,

deslocar a atenção do produto literário final para as fases

preparatórias, para investigar a interação recíproca, no

interior do processo de pesquisa, dos dados empíricos

com os vínculos narrativos113.

112GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, Retórica e Prova. São Paulo, Cia das Letras, 2002, p. 37-38. 113 Ibidem p. 114.

100

A visão de cada um desses autores sobre Hayden White reforça

o quanto Meta-História foi capaz de produzir pontos de vistas divergentes e

ricas discussões no terreno da Teoria da História. Do meu ponto de vista,

Meta-História pode ser vista como uma obra que esclareceu quais são os

elementos constitutivos da narrativa histórica, além disso ela explorou

como a consciência histórica do autor reflete na forma e no conteúdo das

narrativas históricas e ofereceu um arcabouço analítico para verificar isso

nos textos de História. Por meio da Teoria da Obra Histórica é possível

analisar e classificar os textos de História a partir da estrutura da narrativa

produzida pelo historiador. Porém, ao contrário daqueles que estabelecem

um alinhamento automático da teoria de Hayden White com o pós-

modernismo, acredito que a sua perspectiva analítica em Meta-História

está mais próxima das correntes estruturalistas e seus desdobramentos na

crítica literária e histórica. Da forma como analiso, quando White procurou

estabelecer uma estrutura típico ideal do texto de história e buscou

entender o significado de cada componente dessa estrutura, ele estava

imerso no contexto da crítica literária ligada as análises antropológicas de

Lévi-Strauss e as análises linguísticas de Roland Barthes.

Em uma entrevista concedida ao professor Hans Kellner em

Groningen na Holanda em fevereiro de 1993 e compilada por Ewa

Domanska, Hayden White se definiu como um formalista e um

estruturalista, além de enfatizar que o seu conceito de história tem mais

em comum com um tipo de estética do sublime do que com o pós-

modernismo, como está no trecho seguinte:

I see my own project as modernist. My whole intellectual formation, my own development took place within modernism. By that I mean a specifically Western—or in

101

Russia the equivalent will be something like the futurist or symbolist—cultural movement: in the West, the great modernist experiments of Joyce, Virginia Woolf, Eliot, Pound, and also a number of people who wrote history, like Spengler and Theodor Leasing. I am forrnalist and structuralist. My conception of history has much more in common with the kind of aesthetic of the sublime which derives from Romanticism than with postmodernism114.

Nesta mesma entrevista, White explicou em outro trecho que a

sua intenção com Meta-História, apesar de muitos historiadores não

gostarem disso,foi a destruição do mito da história ciência e da noção

positivista de história, como é possível ver no trecho seguinte:

Metahistory is something historians don’t like. But some people in other disciplines do, philosophers and literary critics. Because what it does, or pretends to do, is to deconstruct a mythology, the so-called science of history. It is against positivism, against a positivistic notion of history115.

114 “Eu vejo meu próprio projeto como modernista. Toda a minha formação intelectual, meu próprio desenvolvimento ocorreu dentro do modernismo. Refiro-me a um especificamente ocidental – ou na Rússia o equivalente seria algo como o movimento futurista ou simbolista – movimento cultural: No ocidente, os grandes experimentos modernistas de Joyce, Virginia Woolf, Eliot, Pound e também um número de pessoas que escreveu história, como Spengler e Theodor Leasing. Sou formalista e estruturalista. Minha concepção da história tem muito mais em comum com o tipo de estética do sublime que deriva do romantismo do que com o pós-modernismo”.DOMANSKA, Ewa; KELLNER, Hans; WHITE, Hayden. Interview: Hayden White: The image of self-presentation. Diacrtics, Vol. 24, N. 1, 1994, p. 92, tradução nossa. 115“Metahistory é algo que os historiadores não gostam. Mas algumas pessoas em outras disciplinas fazem, filósofos e críticos literários. Porque o que ela faz, ou finge fazer, é desconstruir uma mitologia, a chamada ciência da história. É contra o positivismo, contra uma noção positivista de história”. Ibidem, p. 92-93, tradução nossa.

102

Da forma como percebo, Meta-História foi um exercício analítico

dos tipos de escrita da história produzidas ao longo do século XIX, neste

trabalho Hayden White elaborou alguns princípios para organizar e

caracterizar as diferentes maneiras de escrever história. Neste capítulo

busquei entender melhor tais princípios com os quais, do meu ponto de

vista,é possível analisar o texto de qualquer historiador. Partindo dessa

ideia, os capítulos seguintes são a análise de Sérgio Buarque de Holanda

tendo como referencial a Teoria da Obra História de Hayden White.

103

CAPÍTULO 3

AS RAÍZES E A VISÃO DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Para compreender as "raízes" e "visão" de qualquer intelectual

não podemos analisar a sua produção sem relacioná-la com a sua formação,

as suas ideias e as suas vivências. Na verdade, os aspectos biográficos e

bibliográficos, a vida e a obra, se compreendidas juntas não somente

enriquecem a interpretação do texto como também possibilitam uma

análise mais completa do pensamento de qualquer autor, não é diferente

para o caso de investigar o desenvolvimento de uma consciência histórica.

O objetivo deste capítulo é apresentar os aspectos centrais da

formação e da atuação intelectual de Sérgio Buarque de Holanda sem

desconsiderar aspectos da sua vida privada. Assim, será exposto neste

capítulo os fatos que considerei relevantes da vida dele que, de uma forma

ou de outra, do meu ponto de vista, auxiliam na interpretação da sua

produção intelectual e do seu pensamento histórico.

Para tanto, tomei como referência neste capítulo especialmente

alguns autores que trataram em suas produções de aspectos da vida e obra

de Sérgio Buarque de Holanda. Entre eles estão sociólogo, escritor e

professor Antônio Cândido de Mello e Souza, amigo íntimo que publicou

vários textos e tem vários depoimentos sobre Holanda, ele tem sido

considerado um dos principais intérpretes do trabalho de Sérgio ao lado de

Francisco Iglesias, Maria Odila da Silva Dias e Antonio Arnoni.

Outra referência neste capítulo é o trabalho do cineasta Nelson

Pereira dos Santos, que através do documentário Raízes do Brasil: Uma

Cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda construiu uma imagem do

104

historiador a partir da memória da família e dos amigos dele116. Entre os

depoimentos que colheu está, por exemplo, o de Maria Amélia de Hollanda,

viúva do historiador, que revelou características do cotidiano das casas em

que viveram, a forma que Sérgio se relacionava com os filhos e os amigos e

também sobre como se dedicava intelectualmente.

O texto a seguir está dividido em duas partes, “As Raízes:

aspectos biográficos” e “A Visão: aspectos bibliográficos”. A divisão refere-se

a uma tentativa de apresentar, na primeira parte, as principais

características de Sérgio Buarque de Holanda como pai, esposo, amigo,

escritor e professor que nos informam como ele viveu e como foi o

desenvolvimento do interesse dele pela História, e na segunda parte

apresentarei as principais obras de História produzidas por ele e o que elas

revelavam da visão dele acerca do conhecimento histórico.

3.1 AS RAÍZES: ASPECTOS BIOGRÁFICOS

Sérgio Buarque de Holanda era conhecido na intimidade familiar

como “pappyotto”, forma carinhosa que sua neta mais velha, a cantora

Isabel Gilberto de Oliveira (Bebel), quando criança o chamava. Segundo a

própria cantora, ela o considerava como o outro pai, por isso dizia

“papioto”117. Foi também com este apelido íntimo que Sérgio assinou todas

as dedicatórias que escreveu nos exemplares do livro Raízes do Brasil com

os quais presenteou alguns dos seus netos. Nestes livros ele assinou

116O documentário foi lançado em 2004, havia sido preparado para as comemorações do centenário de Sérgio Buarque de Holanda, mas estreou depois. O documentário contou com a participação de cada um dos sete filhos, alguns netos também participaram como a cantora Bebel que destacou as brincadeiras entre o avô e neta, e alguns dos amigos dele como o professor Antônio Cândido cuja participação revelou o intelectual dedicado e o professor de destaque que foi Sérgio. 117 RAÍZES do Brasil: uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda. Direção Nelson Pereira dos Santos. Rio de Janeiro: 2004, 70’19’’.

105

acrescentando mais uma letra “p”, um “y” e mais um “t” ao seu apelido.

Fora do ambiente familiar, Sérgio Buarque de Holanda era

conhecido como Dr. Sérgio. Além de professor, ele atuou também como

jornalista e crítico literário, apesar da sua formação acadêmica ser em

Direito. Ele foi um intelectual dedicado e comprometido, muito estudioso e

ao mesmo tempo inclinado a molecagem, como contou em depoimento o

amigo dele, Antônio Cândido de Mello e Souza:

O Sérgio era uma espécie de conjunto muito complexo que uma coisa negava a outra, ele era por exemplo um erudito extraordinário e muito inclinado a molecagem, ele era um camarada de uma seriedade intelectual fora do comum e um gozador de marca maior,[...] ele era muito consciente do dever do intelectual do anglo da seriedade e ao mesmo tempo ele guardou toda aquela qualidade dos modernistas de 1922, ele foi um homem formado na atmosfera da semana de arte moderna, ele guardou sempre a molecagem, a gozação, a brincadeira, [...] de modo que é preciso ter em mente este traço, a combinação do imenso erudito com a criatura alegre, inconformada, não convencional118.

Filho primogênito do pernambucano Christovam Buarque de

Hollanda e da carioca Heloísa Gonçalves Moreira Buarque de Hollanda,

Sérgio Buarque de Holanda nasceu em 11 de julho de 1902 em São Paulo

onde morou até 1921. Sua primeira escola foi o jardim da infância do

Colégio Progresso Brasileiro, que era uma escola americana confessional

recém inaugurada em São Paulo dirigida por uma missionária batista

118RAÍZES, 2004,48’40’’

106

chamada Mrs. Anna Bagby119. Depois disso frequentou o curso primário e o

ginásio respectivamente na Escola Modelo Caetano de Campos e o no

Colégio São Bento, só então mudou-se para o Rio de Janeiro onde cursou

Direito na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil.

Segundo consta em uma entrevista concedida um ano antes da

sua morte aos professores Ernani da Silva Bruno, Maria Tereza Petrone e

Laura de Mello e Souza no Museu da Imagem e do Som no ano de 1981120,

Sérgio Buarque de Holanda gostaria na verdade de ter feito uma faculdade

de Filosofia, como ainda não existia o curso no território brasileiro, resolveu

fazer Direito, porém sem muito entusiasmo, o que o levava a faltar bastante

ao ponto de perder provas importantes, como ele mesmo explicou:

Então minha família se mudou para o Rio e tive que ir junto. Naturalmente, eu precisava encontrar um lugar para estudar, mas não havia uma faculdade de Filosofia que eu pudesse fazer. A primeira que apareceu foi a do Distrito Federal, fundada pelo grande educador Anísio Teixeira em 1935, quando eu já estava formado havia dez anos. Por isso fui estudar Direito. Não mudei com muita vontade para o Rio. Já tinha meu grupo em São Paulo e custei a me adaptar, mas logo fiz relações. Fiquei representando no Rio a revista Klaxon, fundada em São Paulo pelo movimento modernista. Aliás, à própria Semana de Arte Moderna eu não pude comparecer. Não pude porque tinha exame na faculdade. Eu tinha faltado às provas no ano anterior, o primeiro ano de Direito. A única solução era fazer a segunda época, e os testes caíram exatamente em fevereiro de 1922121.

119Cf. HARRISON, Helen Bagby. Os bagby do Brasil: uma contribuição para o estudo dos primórdios batistas em terras brasileiras. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa e Publicações, 1987. 120 A entrevista coletada em 1981 ficou guardada nos arquivos do Museu da Imagem e do Som até 2004 quando, com autorização da família de Sérgio Buarque de Holanda, ela pode ser publicada na revista Novos Estudos. 121 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Corpo e alma do Brasil. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 69, p. 3-14, julho de 2004. Entrevista concedida a Ernani da Silva Bruno,Maria Tereza Petrone e Laura de Mello e Souza, p.05.

107

Ainda criança, Sérgio Buarque de Holanda fez aulas de piano e,

mais precisamente aos nove anos de idade, compôs a valsa Vitória Régia,

publicada em 1913 pela revista Tico-Tico. Incentivado pelo seu professor do

ginásio, Afonso d'Escragnolle Taunay, também publicou vários textos no

Correio Paulistano, contudo, foi depois da sua mudança para o Rio de

Janeiro que sua produção intelectual se intensificou. Enquanto cursava

Direito, passou a escrever algumas crônicas e entrevistas para vários jornais

e revistas como Rio-Jornal, Revista do Brasil, revista Fon-Fon e O Jornal.

Segundo a biografia produzida por Rafael Henrique Zerbetto

(2011), Sérgio Buarque de Holanda costumava faltar aulas da faculdade para

estar nas livrarias. Ele costumava gastar todo o dinheiro que conseguia com

as suas publicações comprando livros, inclusive estrangeiros, pois dominava

muitas línguas. Mesmo depois do casamento e do nascimento dos filhos, a

sua prioridade continuava a ser a compra dos livros. Segundo o professor

Antônio Cândido se tratava na verdade de uma evidente paixão pelos livros:

Alguns tem paixão amorosa, outros tem paixão pelo jogo, outros tem paixão pelo álcool, e há os que tem paixão pelo livro. Eu sei disso porque quando eu era moço eu deixava de pagar o aluguel de casa para comprar livro. O Sérgio fazia isso também. [...]. Maria Amélia ficava um pouco desesperada porque com aquela filharada toda, ele ganhado pouco comprava livros ingleses, livros alemãs. Então, o que ele fazia? [...] Ele tinha uma combinação com a babá, ele chegava e entrava na entrada do automóvel e ia até a cozinha e dava os livros a babá, e a babá escondia os livros e aí o Sérgio vinha e tocava a campainha, a Maria Amélia abria a porta, ele entrava e ela via que ele não tinha comprado livro nenhum e ficava tranquila122.

122RAÍZES, 2004, 50’44’’

108

Em outro trecho da sua fala selecionado abaixo, Antonio Candido

destacou o grande volume de livros da biblioteca pessoal que Sérgio formou

no decorrer da sua carreira, grande parte dela encontra-se hoje na

Universidade de Campinas juntamente com as cartas pessoais, os recortes

de jornais e muitos manuscritos não publicados, disponíveis para consulta e

pesquisa no Centro de Sérgio Buarque de Holanda criado para receber toda

a doação que foi realizada pela família dele.

O Sérgio praticamente conhecia tudo, tinha uma biblioteca enorme. De vez em quando ele renovava a biblioteca dele e dava, a mim uma vez ele me deu cerca de quatrocentos volumes, quatrocentos volumes!!! Eu fiquei com uns oitenta ou cem e passei os outros trezentos pra faculdade. Se o Sérgio tivesse guardado todos os livros que ele comprou, ele devia ter uma biblioteca em torno de trinta a quarenta mil volumes. A biblioteca final dele tinha dez mil123.

Entre esses dez mil exemplares citados por Antonio Candido que

Sérgio Buarque de Holanda possuía na biblioteca de sua casa na rua Buri, no

Pacaembu, estavam os 8.513 livros, 227 títulos de periódicos,74 rolos de

microfilmes e 600 obras raras que após a sua morte foram doados para a

Unicamp.

Ainda sobre essa paixão pela leitura, a viúva de Sérgio Buarque

de Holanda, Maria Amélia, lembrou que até para descansar do trabalho ele

escolhia um livro para ler, como podemos ver no depoimento dela a seguir:

123RAÍZES, 2004, 50’02’’

109

Quando estava cansado de trabalhar pegava um romance russo para lambiscar, ou pegava o teatro italiano, ou pegava poesia inglesa, pra refrescar, pra refrescar mais que descansar do trabalho dele. Realmente é o lado de Sérgio que eu achei mais bonito na vida foi este, esta capacidade, este entusiasmo do trabalho124.

Sérgio Buarque de Holanda concluiu o curso de Direito em 1925,

porém a única vez que exerceu a sua formação foi durante o julgamento de

um assassino na cidade de Muniz Freire no Espírito Santo. Na época, ele

havia aceitado dirigir o jornal O Progresso em Cachoeiro do Itapemirim e foi

chamado para substituir o promotor no julgamento por ser o único bacharel

em Direito naquela região. A viagem foi realizada a cavalo e a duração foi de

seis horas como o próprio Sérgio contou em entrevista125. Depois desta

experiência, Sérgio Buarque de Holanda resolveu retornar para o Rio de

Janeiro para trabalhar como tradutor de telegramas na United Press e

contribuir regularmente com jornais do grupo editorial Diários Associados

publicando uma crônica diária e assinando reportagens e entrevistas126.

Em junho de 1929 Sérgio Buarque de Holanda foi para a Europa

para trabalhar como correspondente do jornal carioca chamado O Jornal. O

intuito inicial era fazer reportagens sobre a situação da Alemanha, da

Polônia e da Rússia. Em Berlim, onde residiu, além de correspondente

trabalhou também em uma revista bilíngue chamada Duco e na tradução de

legendas de filmes da Universum Film AG, principal estúdio cinematográfico

alemão durante a República de Weimar. Neste período, ele aproveitou para

124RAÍZES, 2004, 38’40’’ 125HOLANDA, 2004, p.14. 126ZERBETTO, Rafael Henrique. Alguns Eventos Importantes para a Elaboração de uma Biografia de Sérgio Buarque de Holanda. In: XVII Seminário de Teses em Andamento (SETA) – Unicamp, 2011, Campinas, SP. Anais (on-line). Disponível em: <http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/seta/article/view/2118/3341>. Acesso em: 13 mar. 2016, p. 328.

110

assistir aulas de História e Ciências Sociais na Universidade de Berlim e

aprofundar as leituras de autores alemãs. Além da Alemanha, conheceu

também a Polônia em uma curta viagem e chegou a conseguir um visto

para a Rússia mas nunca o utilizou por medo do inverno severo em Moscou,

segundo conta o professor Antônio Cândido127.

Durante esse tempo no exterior, ele pode vivenciar a ascensão

do Partido Nazista e presenciar cenas da repulsa aos judeus. Em uma

entrevista Holanda explicou um pouco da sua experiência em Berlim neste

momento conturbado de crise econômica e escalada nazista:

Lembro que uma vez, num nightclub, eu estava numa mesa com o Raul Bopp e duas namoradinhas. De repente vi um cara empurrando outro para fora e todo mundo, de pé, começou a bater palmas, inclusive as duas meninas. Só depois fui perceber que estavam expulsando um judeu dali. Eu não cheguei a ser confundido com judeu: não devo ter muita semelhança128.

Sérgio Buarque de Holanda retornou ao Brasil no final de 1930 e

continuou escrevendo textos para revistas e jornais. Ele escrevia

principalmente crítica literária, já que lhe pagavam mais por esse tipo texto

do que por crítica histórica. Em virtude disso ele enviava textos para várias

partes do país e isso lhe salvava financeiramente. O fragmento de texto

selecionado abaixo esclarece que essa necessidade retardou um pouco o

seu interesse pela História:

127CÂNDIDO, Antônio. Sérgio em Berlim e Depois. Revista Novos Estudos CEBRAP, vol. 1, n.

3, p. 4-9, São Paulo: Julho 1982, p. 6. 128HOLANDA, 2004, p. 5.

111

Outro motivo que retardou meu interesse pela história é mais simples: os jornais pagavam artigos de crítica literária. Ou seja, fazer crítica histórica não adiantava nada. Então comecei a comprar livros, a ler. Fiz um esforço danado. Em 1941 fiz uma viagem aos Estados Unidos a convite do State Department e trouxe uma verdadeira biblioteca para me enfronhar nisso. Quando eu estava com falta de dinheiro, era a crítica literária que me ajudava. Eu mandava textos para publicar em São Paulo, Rio, Minas, no Norte. Até que dava um dinheirinho129.

Em 1935 publicou pela revista Espelho o texto chamado Corpo e

Alma do Brasil que já adiantava algumas das ideias do livro Raízes do Brasil

que seria publicado em 1936 pela editora José Olympio. Parte desse texto

havia sido escrito na forma de ensaio ainda na Alemanha com o título Teoria

da América. Como o próprio autor explicou, o seu interesse pela História foi

surgindo gradativamente, apesar de produzir principalmente crítica literária

e textos jornalísticos quando estava na Alemanha, foi nesse contexto que

começou a escrever o ensaio referido. Segundo Holanda, ele já possuía o

interesse pelo caráter nacional que havia herdado no movimento

modernista de 1922130, e como “do estrangeiro, vemos o Brasil de outra

maneira”131, isso lhe permitiu perceber os aspectos da História do Brasil que

destacou nesses textos, considerados por ele um trabalho não muito bom:

Na Alemanha eu fazia basicamente trabalhos para ganhar

129HOLANDA, 2004, p. 8. 130 Apesar de possuir apenas 19 anos quando a Semana de Arte Moderna aconteceu em 1922 e embora também não tenha ido a São Paulo naquela semana, Sérgio possuía muito amigos ligados ao modernismo e inclusive se tornou o representante da revista modernista Klaxon no Rio de Janeiro. 131HOLANDA, loc. cit.

112

dinheiro, mas comecei a escrever um ensaio que se chamava "Teoria da América". Ficou enorme, e se lido hoje, em conjunto, era um trabalho muito ruim. Mas tinha umas partes que achei menos ruins. Publiquei uma parte desse trabalho numa revista alemã comercial, de amenidades, pois, como disse, trabalhava pelo dinheiro. Aproveitei um pouco desse material para o “Raízes do Brasil”, mas obviamente não posso concordar com muito do que foi dito ali132.

Essa fala crítica em relação aos seus textos parece ter sido uma

constante em Sérgio Buarque de Holanda, em vários momentos ele revisava

as suas publicações para as reedições e raramente recomendava o que

escrevia, como lembrou alguns de seus filhos em depoimento ao

documentário Raízes, entre eles o cantor Chico Buarque que falou sobre as

dedicatórias dos livros nas quais seu pai escrevia algo do tipo “não leia esse

livro chato, isso não é pra ler”133. A sua esposa Maria Amélia Hollanda

relembrou também nesse documentário o tempo que ele levava para

finalizar um livro devido seu grau de exigência:

Sérgio quando escrevia ficava possuído por uma espécie de um febre. [...]Ia escrevendo e quando já tinha poucas páginas ia para a máquina e copiava à máquina, quando não prestava ia rasgando e jogando no chão, rasgando e jogando no chão, o chão ficava aquele mar de papel amarrotado. [...] Sérgio era muito exigente consigo mesmo, e assim aos poucos é que dava o livro por pronto, depois de muito papel rasgado, depois de muito papel escrito a mão e rasgado, depois de muito papel passado à máquina e rasgado, aí dava por pronto e mandava pro editor134.

132HOLANDA, 2004, p. 8. 133RAÍZES, 2004, 20’53’’ 134Ibidem, 08’07’’

113

O casamento entre Sérgio e Maria Amélia aconteceu no mesmo

ano da publicação de Raízes do Brasil. Entre os anos de 1937 a 1950, o

casal teve no total sete filhos, Heloísa Maria (Miúcha), cantora e

compositora, Sérgio Filho, economista e professor universitário, Álvaro

Augusto, advogado, Francisco Buarque (Chico), cantor e compositor, Maria

do Carmo, cineasta, Anna de Holanda, atriz, e Cristina Buarque, cantora.

Também em 1936 Sérgio Buarque de Holanda obteve o cargo de

professor assistente do francês Henri Hauser, na cadeira de História

Moderna e Econômica na Universidade do Distrito Federal, incorporada

depois na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, atual

UFRJ. Depois que em 1939 esta universidade foi extinta, Sérgio passou a

trabalhar no Instituto do Livro.

Em 1941 Sérgio Buarque de Holanda teve a oportunidade de

passar por algumas instituições de ensino dos Estados Unidos como visiting

scholar. Nesse período morou em Nova Iorque, Washington e Chicago.

Além de muitos livros, Sérgio trouxe para o Brasil muitas notas de leituras,

fichas, que lhe serviu de base para alguns de seus livros como Visão do

Paraíso. Neste mesmo ano nos EUA traduziu duas obras Memórias de um

colono no Brasil, do suíço Thomas Davatz e Etnologia Sul-Americana:

Círculos Culturais e Estratos Culturais na América do Sul, do alemão Wilhelm

Schmid, esta última foi publicada após o seu retorno ao Brasil em 1942.

Sérgio Buarque de Holanda publicou em 1944 o livro Cobra de

Vidro, uma coletânea de vários artigos dele publicados em anos anteriores

em algumas revistas e jornais. No ano seguinte publicou a obra Monções e

em 1946 mudou-se com a família para São Paulo para assumir a direção do

Museu Paulista.

Sérgio Buarque de Holanda foi o diretor responsável por criar as

seções de História, de Etnologia, de Numismática e de Linguística do Museu

114

Paulista, onde permaneceu até 1956. Concomitante com o cargo de diretor,

Sérgio foi professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, na

cátedra de História Econômica do Brasil em 1948, e professor da

Universidade de Roma na Itália entre 1953 e 1955na cátedra de Estudos

Brasileiros.

Depois de retornar ao Brasil, Sérgio lecionou História do Brasil na

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba e no ano seguinte

assumiu a cátedra de História da Civilização Brasileira, na Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, por meio do

concurso em que apresentou a tese intitulada Visão do Paraíso: os motivos

edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Enquanto professor

publicou o livro Caminhos e Fronteiras em 1956 e a sua tese em 1959.

Na década de 1960, Sérgio Buarque de Holanda começou a

coordenar a coleção História Geral da Civilização Brasileira. Com auxílio dos

professores Pedro Moacyr Campos, para os períodos colonial e monárquico

e de Boris Fausto para o período republicano, a coleção completou onze

volumes. Também nesta década, ele se tornou o presidente do recém-

fundado Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo e foi

professor convidado entre 1963 e 1967 em universidades no Chile e

também nos Estados Unidos.

O retorno de Sérgio Buarque de Holanda ao Brasil coincidiu com

os anos mais duros da ditadura civil-militar que havia se instalado aqui. Em

29 de abril de 1969, muitos docentes da USP foram demitidos ou

aposentados compulsoriamente por meio do AI-5. Assim, no dia seguinte,

Sérgio pediu demissão em solidariedade aos seus colegas.

Mesmo com a aposentadoria Sérgio Buarque de Holanda

permaneceu ativo e publicou mais alguns volumes da coleção História Geral

da Civilização Brasileira, intitulados Declínio e queda do Império (1971) e Do

115

Império à República (1972), este último escrito por ele. Também viajou mais

algumas vezes para a Europa em 1970 e novamente 1976, publicou em

1975 o volume Vale do Paraíba - Velhas Fazendas e em 1979 a coletânea

Tentativas de Mitologia. Depois disso ainda organizou em 1979 a antologia

de seu amigo Vinícius de Moraes e em 1980 participou da fundação do

Partido dos Trabalhadores do qual recebeu a terceira carteira de filiação,

depois de Mário Pedrosa e Antônio Cândido.

Sérgio Buarque de Holanda faleceu em 24 de abril de 1982 em

decorrência de um câncer do brônquio e enfisema pulmonar.

3.2 A VISÃO: ASPECTOS BIBLIOGRÁFICOS

O historiador em Sérgio Buarque de Holanda se formou, entre

outras coisas, por sua curiosidade sobre o assunto. As leituras que

acumulou e também as aulas que participou em Berlim intensificaram a sua

curiosidade e o conduziram cada vez mais para esta área do conhecimento.

Ao ser questionado sobre como surgiu o seu interesse pela História Sérgio

respondeu:

Freqüentei alguns cursos de história na Universidade de Berlim como ouvinte, mas eu tinha uma formação literária, em grande parte por causa do modernismo. Então descobri um livro interessante — ainda tenho vários livros daquele tempo —, um livro do Kant sobre Frederico III. Eu me lembrava que o Nietzsche dizia que para ele o grande Frederico era o II, por isso fiquei intrigado e comprei. Mas só o primeiro volume — mais tarde, nos Estados Unidos, encontrei o segundo volume num sebo e consegui comprar. O fato é que daí me veio a ideia para esses assuntos históricos, para uma abordagem maior. Eu sempre tive certa curiosidade por isso135.

135HOLANDA, 2004a, p. 7.

116

Além da curiosidade, Sérgio Buarque de Holanda possuía outras

características que enriqueceram o historiador que nele aos poucos se

formou. O professor Antônio Candido em uma das muitas vezes que

escreveu sobre o seu amigo também destacou a concentração, a

capacidade analítica e a amplitude de interesses como suas características

marcantes:

A capacidade de concentração mental só se comparava nele ao poder da penetração analítica e à amplitude dos interesses. Por isso desde muito moço aproveitou ao máximo as leituras e acumulou um saber que espantava os amigos. Sobretudo porque a sua curiosidade era dirigida igualmente ao passado e ao presente, à inovação e à tradição, com o dom contraditório de se apaixonar tanto pela minúcia quanto pelo conjunto136.

Em grande parte dos textos produzidos por Holanda essas

características estiveram em evidência. Me refiro principalmente aos seus

textos de História nos quais se pode notar a referida penetração analítica

que o conduziu a investigar, por exemplo, a formação do povo da península

ibérica para conhecer de fato o povo brasileiro em Raízes do Brasil.

De maneira geral, através da observação das notas apresentadas

em seus livros também se pode perceber a amplitude de interesses que

Sérgio Buarque de Holanda possuía e que o levou a se aprofundar na leitura

de fontes bastante diversificadas como diários de viagens, cartas,

memoriais, inventários, testamentos, atas públicas, livros de regimentos e

anais de museus e da Biblioteca Nacional em Caminhos e Fronteiras, por

136CANDIDO, 1982, p. 7.

117

exemplo. Segundo conta seus filhos, Sérgio lia de tudo, inclusive horóscopos

de jornais e gibi da Luluzinha137.

Acredito também que a sua curiosidade dirigida igualmente ao

passado e ao presente o conduziu a um tipo de escrita em que há críticas

sutis ao tradicionalismo da historiografia nacional e internacional. Em Raízes

do Brasil Holanda problematizou, ao invés de exaltar, o legado europeu em

nosso processo de formação e em Visão do Paraíso discordou da ideia que

os portugueses seriam modernos na época das navegações.

Juntamente com Sérgio Buarque de Holanda, outros autores

como Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. estiveram dentro desta mesma lógica

de renovação historiográfica e interpretativa. O contexto de que faziam

parte era de intensa atividade política e oposição a sociedade oligárquica.

As muitas críticas sobre a realidade brasileira levavam em consideração a

distância existente entre a atuação do Estado e as necessidades da

sociedade civil. Neste contexto, muitos intelectuais procuraram formular

suas teorias para conseguir entender as mudanças econômicas e culturais

brasileiras a partir dos impactos da industrialização, do modernismo. Neste

processo, entender a nossa história e formação da sociedade brasileira se

tornou essencial. Sobre as contribuições e as obras desta tríade de

intérpretes138 do Brasil, o jornalista Manuel da Costa Pinto (2002) escreveu:

Em três obras clássicas – Casa Grande & Senzala (1933), Raízes do Brasil (1936) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942) – eles suplantaram a historiografia

137RAÍZES, 2004,37’50’’ 138 O termo “intérprete” foi aqui utilizado no mesmo sentido que foi dado a ele pelo prof. Dr. José Carlos Reis na sua obra Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9ºed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. Como nenhum dos autores citados era historiador por formação acadêmica, José Carlos Reis os chamou de intérpretes, uma vez que cada um deles, a sua própria maneira, produziu interpretações específicas sobre o Brasil.

118

descritiva e uma sociologia positivista (que via determinismos climáticos e raciais por trás de fatos históricos), adotando uma visão culturalista (no caso de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda ) ou sócio-econômica (no caso de Caio Prado Jr.) do processo de formação do Brasil. Essa renovação teórica, sintonizada com a antropologia e a sociologia anglo-saxãs, não apaga contudo as diferenças específicas entre eles. Se Caio Prado Jr. pode ser mais facilmente classificado como um historiador marxista, atento aos condicionamentos econômicos da luta de classes, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda partilham um mesmo horizonte temático de preocupações e se distinguem mais nitidamente pelo viés interpretativo, pelas tendências políticas e, lastbutnotleast, pelo estilo literário139.

Nesta citação, Manuel da Costa Pinto deu maior destaque a

distinção entre Caio Prado Junior de um lado e Gilberto Freyre e Sérgio

Buarque de Holanda juntos de outro lado. Porém, entre os muitos

intérpretes da História do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda se distingue

não somente de Caio Pardo Junior, mas também de Gilberto Freyre e dos

demais pela forma com que utilizou teorias importadas e aplicou de

maneira adaptada para a nossa realidade vários conceitos e análises feitas

originariamente para outros lugares, e especialmente pela sua visão acerca

do povo, como se pode ver abaixo no comentário do professor Antônio

Cândido:

Lendo os ensaístas, observa-se que a descendência dos escravos de Joaquim Nabuco, do "sertanejo fone" de Euclides da Cunha, da "plebe rural" de Oliveira Viana, dos mestiços valorizados por Gilberto Freyre, do proletário-de-

139PINTO, Manuel da Costa. Um Intérprete Modernista do Brasil. Revista Cult. Ano V. São Paulo: Editora 17, junho de 2002, p. 50.

119

manifesto dos intelectuais de esquerda acabava sem função definida no processo histórico presente. Não lembro de outro, além de Sérgio, que nos anos 30 haja superado aquelas categorias fechadas e atribuído ao povo, concretamente assumido na sua realidade, o papel de substituir as lideranças da sociedade140.

Em função dessa forma de ver o povo, como agente de mudança,

e também em virtude da sua atenção às transformações pelas quais passava

o país no início do século XX, Raízes do Brasil pode ser visto como uma

resposta às condições da vida democrática no Brasil. "Liquidar o passado,

adotar o ritmo urbano e propiciar a emergência das camadas oprimidas da

população, únicas com capacidade para revitalizar a sociedade e dar um

novo sentido à vida política"141 eram os objetivos da "nossa revolução"

proposta por Holanda neste livro.

Neste seu primeiro livro, Sérgio Buarque de Holanda teve como

suporte a sociologia alemã. Foi a partir de Max Weber que ele criou uma

tipologia de pares contrários (o trabalhador e o aventureiro, o semeador e o

ladrilhador, a burocracia e o caudilhismo, a impessoalidade e a afetividade,

etc.) para a sua análise da sociedade brasileira desde o período colonial.

Depois de Raízes do Brasil Sérgio Buarque de Holanda publicou

Monções, obra de 1945 publicada pela Casa do Estudante do Brasil. Ela tem

como temática central a história das expansões paulistas por meio das

expedições fluviais que ocorreram no decorrer do período colonial e

imperial. A segunda edição da obra foi publicada em 1976 pela Alfa-Ômega

sem alterações no texto original, a terceira edição que foi publicada em

1990 pela editora Brasiliense, portanto, após a morte do autor, continha,

140CANDIDO, 1982, p. 9. 141 CANDIDO, Antonio. O Significado de Raízes do Brasil. Prefácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 19.

120

além do texto original, mais três capítulos que haviam sido reescritos. No

final de 2014 a editora Companhia das Letras fez o lançamento da quarta

edição de Monções, que chegou as livrarias em comemoração aos 70 anos

da primeira publicação da obra, sob organização de Laura de Melo e Souza

e o seu orientando na época, André Sekkel Cerqueira, esta reedição contêm

um volume anexo ao texto original no qual é apresentado trechos reescritos

e escritos inéditos encontrados no arquivo do autor.

Para Evaldo Cabral de Mello, com o aparecimento de Monções,

Sérgio Buarque de Holanda abandonou o projeto de interpretação

sociológica do passado brasileiro em favor de uma análise de cunho

eminentemente histórico. Segundo este escritor e diplomata recifense, foi

com esta obra que ocorreu de fato em Sérgio Buarque de Holanda a

“mutação do sociólogo em historiador”142.

Quanto a sua estrutura, Monções é composta de seis capítulos:

Os caminhos do sertão; O transporte fluvial; Ouro; Sertanistas e mareantes;

As estradas móveis e Comércio de Cuiabá. Em virtude de um projeto de

reescrita desta obra com a finalidade de acrescentar dados de novas

pesquisas feitas em Cuiabá e em Lisboa, Sérgio Buarque de Holanda havia

revisitado os capítulos 1, 2 e 5. Esse material produzido pelo autor compõe

o apêndice da obra desde a sua terceira edição. Em nota à primeira edição,

o próprio autor esclareceu que pretendia revisar a obra assim que fosse

possível:

Nas páginas que se seguem, não tive o propósito de tentar uma história sistemática e rigorosamente cronológica das monções setecentistas. Nem era minha intenção separá-las de um estudo onde, em quadro mais amplo, se

142MELLO, Evaldo Cabral de. Posfácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 189.

121

analisassem aspectos significativos da implantação e expansão, em terra brasileira, de uma civilização adventícia. (...). Esse estudo acha-se realizado apenas em parte. Se puder retomá-lo depois de uma interrupção forçada, que talvez ainda se prolongue por alguns anos, há de incluir a parte sobre Monções, que agora vai publicada separadamente143.

Monções descreve a mobilidade paulista, trata das expedições

fluviais e das atividades comerciais, e analisa o cotidiano daqueles homens

sertanistas nos rios, nas matas, nos confrontos com os indígenas, na

confecção de embarcações, na implantação de povoados e claro na

condução de diversas mercadorias, como está descrito no trecho seguinte:

A existência da estrada terrestre ainda poderia reavivar, entre paulistas, a lembrança de sua antiga vocação de trilhadores insignes. Na realidade, porém, enquanto perdurarem as grandes monções, ela nunca poderá ser muito mais do que um complemento do comércio fluvial. O transporte de mercadorias por animais de carga, através de um caminho dilatado e difícil, não supre eficazmente o recurso às canoas. Estas podem levar, em média, cada uma, o que levam quarenta ou cinquenta bestas de carga. E carregam, além disso, mercadorias volumosas – peças de artilharia, por exemplo, que dificilmente seriam conduzidas pela via terrestre.144

De maneira geral é visível em Monções a preocupação do autor

com a documentação. A longo de todos os seis curtos capítulos, Sérgio

Buarque de Holanda cita trechos das suas fontes e apresenta muitos dados

143 HOLANDA, Sérgio Buraque de. Monções. 3º ed. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.13 144 Ibidem, p.114.

122

e informações colhidas delas. Em Mato Grosso ele pesquisou na Biblioteca e

Arquivo Público do Estado, em Lisboa levantou documentação no Arquivo

Histórico Ultramarino e na Biblioteca Nacional de Lisboa, em São Paulo

concentrou suas pesquisas no Arquivo Público do Estado e no Rio de Janeiro

foi ao Arquivo Nacional e ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro.

No trecho selecionado a seguir é possível perceber o

aprofundamento da pesquisa histórica desenvolvida por Holanda em

Monções. Do meu ponto de vista, neste trecho do segundo capítulo no qual

ele descreve um antigo caminho utilizado entre o Rio Paraná e o rio

Sorocaba, é notável o cruzamento de dados e também a característica

marcante da escrita do autor nesta nova fase que é o detalhamento, Sérgio

nos informa quem primeiro abriu tal estrada, em quais mapas ela aparecia,

quando ela deixou de ser utilizada etc:

Uma quarta povoação seria estabelecida a pouca distância do Rio Paraná e fronteira à boca do Pardo, utilizado ordinariamente na navegação para Cuiabá e minas de Mato Grosso. A esse lugar ia ter a estrada que, nos tempos de D. Luiz Antônio de Souza, abrira o então capitão-mor de Sorocaba, José de Almeida Leme – ou reabrira se, como parece, era a mesma picada que tinha feito Luiz Pedroso de Barros meio século antes. Ainda no ano de 1783 eram visíveis os sinais de derrubadas e queimadas, ao longo do antigo caminho, que ligava as bordas do Rio Paraná a Sorocaba e, através de Sorocaba, à cidade de São Paulo. Um decênio mais tarde, na carta corográfica atribuída a João da Costa Ferreira, já não se faz menção de sua existência – assinalada anteriormente no mapa de Sá e Faria –, e os terrenos por onde se projetara lá aparecem sob o letreiro, que haveria de perdurar para a mesma região até começo do século atual: "Sertão Desconhecido"145.

145HOLANDA, 2000, p.40-41.

123

Depois de lançar a obra Monções Sérgio Buarque de Holanda

continuou o seu estudo sobre a expansão territorial brasileira, pode

aprofundar suas pesquisas e então publicar no decorrer da década de 1940

e 1950 uma série de textos em revistas e jornais do Rio de Janeiro e de São

Paulo, como a Revista do Brasil, o Diário de Notícias, O Estado de São Paulo,

a revista Anhembi e os Anais do Museu Paulista. A obra Caminhos e

Fronteiras é uma coletânea ampliada e revisada desses textos em que

Holanda dedicou maior atenção a implantação de uma civilização adventícia

em nossas terras. Na introdução desta obra, Holanda indicou a

continuidade existente entre ela e Monções:

Já no prefácio àquela obra146 fora assinalado o intento, que presidira à sua própria elaboração, de incluí-la em quadro mais amplo, onde se apresentariam certos aspectos significativos da implantação em terra brasileira de uma civilização adventícia (...). O fato é que aquela obra fora, não só pensada mas redigida, em sua versão inicial e ainda sumária, juntamente com os capítulos que formam a primeira seção do atual volume147.

Desta maneira, fica mais evidente que Monções e Caminhos e

Fronteiras são obras resultantes de uma mesma preocupação e de uma

mesma trajetória de pesquisa realizada pelo autor. A professora doutora

Walnice Nogueira Galvão escreveu em um de seus artigos que estas obras

formam um mesmo bloco:

146 Sérgio Buarque de Holanda fez referência à Monções (1945). Imediatamente anterior ao trecho selecionado aqui o autor faz uma citação direta de trechos do texto de Monções para apontar como serviriam de introdução ao novo estudo. 147 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.10.

124

Monções (1945), Caminhos e fronteiras (1957), aos quais se deve anexar O extremo Oeste (embora este, deixado inconcluso nos anos 50, só apareça postumamente, em 1986), formam um bloco, pois tratam do desbravamento e ocupação dos interiores do Brasil, sobretudo pelo sertão paulista afora. Ali, o trato com as fontes primárias, aliás traço distintivo de sua obra, é fecundado pela visada antropológica, resultando em notáveis investigações de cultura material, que mostram a importância de índios e mamelucos nos costumes coloniais, bem como no povoamento do território148.

A temática das monções, das bandeiras e da conquista do Oeste

foi também abordada em muitos escritos contemporâneos aos estudos que

Sérgio Buarque de Holanda pode realizar. De maneira que se pode pensar

na existência de uma tradição historiográfica sobre a temática como

afirmou o professor e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação

Oswaldo Cruz,Dr. Robert Wegner na obra A conquista do Oeste (2000):

Pode-se dizer que quando Sérgio Buarque de Holanda começou a estudar o assunto, no limiar da década de 1940, já se podia falar numa tradição historiográfica que lidava com as entradas e bandeiras, a qual, é lícito dizer, remonta à obra de Capistrano de Abreu. Livros de autores como Paulo Prado, Alfredo Ellis, Alcântara Machado já eram consagrados. Além disso, é necessário lembrar, essa tradição contava com uma legião de continuadores, muitos, porém, nomes esquecidos nos dias de hoje, que não estavam distantes do público não acadêmico, pois tinham o seu lugar assegurado nas páginas da Imprensa. Basta dizer, por exemplo, que boa parte do livro Caminhos e Fronteiras, editado em 1957, foi publicada antes em forma de artigos, entre os anos de 1946 e 1948, na

148GALVÃO, Walnice Nogueira. Presença da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Estudos Avançados [online]. 2001, vol.15, n.42, pp. 471-486. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-0142001000200024&lng =en&nrm=iso>. Acesso em: 27 de março de 2015, p. 471.

125

segunda página de O Estado de S. Paulo149.

Entre os seus contemporâneos que trataram do mesmo tema,

Sérgio Buarque de Holanda se destacou por apresentar a figura do

bandeirante de maneira desmistificada. Do meu ponto de vista, Holanda

esteve preocupado em apresentar um bandeirante alternativo à figura

convencionada pela tradição existente, um que fosse mais próximo da

realidade do contexto. Como se pode notar no trecho selecionado abaixo,

havia nele a preocupação de corrigir a imagem do típico bandeirante

desenhado até então:

A silhueta convencional do bandeirante, com o sombreiro

largo de feltro, o arcabuz ou escopeta, e a respectiva

forquilha, o terçado, a cinta, o gibão de armas acolchoado

de algodão, as calças tufadas, as botas altas de cordovão,

parece já definitivamente incorporada a nossa imaginação

histórica. Como tentar corrigir uma imagem tão

largamente difundida pelos relatos supositícios, sem ao

mesmo tempo suprimir certas convicções que à forças

repetidas, se tornam inseparáveis da ideia que fazemos do

antigo devassador do sertão?150

Monções e Caminhos e Fronteiras também tem em comum a

valorização e, em certo sentido, a exaltação, do paulista na empreitada das

monções e das bandeiras. Em muitas partes do seu texto Holanda fala deles

como o adventício, que de forma eficiente passou pelo processo de 149 WEGNER, Robert. A Conquista do Oeste. A fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, 14. 150HOLANDA, Sérgio Buarque de. Um Aspecto da Iconografia Bandeirante. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 3 de janeiro de 1948, p. 5.

126

adaptação e venceu as condições dificultosas da fronteira, explicou como

eles apreenderam com os indígenas muitas técnicas e puderam superar

muitas dificuldades que o caminhos lhes impunha. Em Monções, por

exemplo, Holanda escreveu que “o hábito, o gosto e também a vaidade de

vencer, neste caso quaisquer dificuldades, ensinaram, aos poucos, que o

bom cavaleiro não deve apear-se, sequer para transpor um curso

d’água”151. Já em Caminhos e Fronteiras ele ressaltou “a capacidade e o

costume de vencer a pé longas distâncias, que só se explicam pela afinidade

com os indígenas, puderam assegurar aos paulistas algumas vantagens

inestimáveis”152.

O trecho seguinte de Monções ressalta um pouco mais a força do

sertanista paulista e o seu rápido aprendizado que o levava a uma forte

adaptação:

O simples recurso às rudes vias de comunicação, abertas pelos naturais do país, já exige uma penosa aprendizagem, que servirá, por si só, para reagir sobre os hábitos do europeu e de seus descendentes mais próximos. A capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço; o senso topográfico levado a extremos; a familiaridade quase instintiva com a natureza agreste, sobretudo com seus produtos medicinais ou comestíveis, são algumas das imposições feitas aos caminhantes, nessas veredas estreitas e rudimentares. Delas aprende o sertanista a abandonar o uso de calçados, a caminhar em “fila índia”, a só contar com as próprias forças, durante o trajeto153.

No trecho selecionado a seguir de Caminhos e Fronteiras

151HOLANDA, 2000, p. 27. 152Id., 1994. p. 125. 153HOLANDA, 2000, p. 16-17.

127

Holanda explicou que mesmo após o período das monções e das bandeiras,

a fama da força dos paulistas continuou a ser lembrada como constatou a

leitura que fez dos Documentos interessantes para a história e costume de

São Paulo e também a sua pesquisa em anais da Biblioteca de Buenos Aires,

onde encontrou o diário de Juan Francisco Aguirre:

Nos fins do século XVIII, quando corria, generalizada, a opinião de que os homens de São Paulo já não mostravam a mesma bravura e valentia dos seus antepassados, mas queriam antes de desfrutar um vida regalada, e tinham em grande horror o nome de soldados – consequência dos desastrosos recrutamentos, que ceifavam a gente válida da capitania –, um estrangeiro ilustre podia fazer observações deste teor: "Os paulistas de ambos os sexos são gente de melhor fisionomia no Brasil; seu temperamento conserva sempre o gênio militar de seus maiores, pelo que são tidos como os mais bem dispostos para o exercício das armas. O nome paulista é assombroso para os infiéis, que lhes cobraram um terror pânico". [...] É significativo como ainda em seu modo de combater, esses homens, longamente amestrados pela selva, denunciam sempre aquela capacidade de observação da natureza agreste, a imaginação inquieta, a visão precisa e segura154.

Em virtude destas características de enredamento estas duas

obras podem ser denominadas com a terminologia utilizada por Hayden

White como romanescas. Ambas apresentam o paulista como um

protagonista com características heroicas, também ressaltam o mundo de

dificuldades a serem vencidas por este paulista sertanejo e apresentaram a

sua vitória quando falam da adaptação do adventício as novas fronteiras.

Portanto, ambas as obras apresentam os elementos constitutivos de enredo

154HOLANDA, 1994, p.122-123.

128

romanesco, do ponto de vista whiteano.

Tanto Monções quanto Caminhos e Fronteiras trazem também

um texto bastante descritivo. O detalhamento é marcante nos dois

trabalhos em que Holanda se ocupou com as características singulares de

tudo que aos poucos a documentação revelava. O trecho a seguir traz um

exemplo disso em Caminhos e Fronteiras quando o autor explicou sobre a

introdução dos cavalos e dos muares citando documentos, nomes dos

proprietários, a quantidade registrada etc.:

Com os cavalos começaram a introduzir-se, em larga escala, os muares, que só excepcionalmente aparecem referidos nos antigos inventários paulistas. Duas mulas e um macho, pertencentes a Francisco Pedroso Xavier, e o burro castiço de Antônia de Oliveira, são quase tudo que encontramos. A partir de 1733, ou pouco depois, é que começa a avolumar-se o número de bestas muares vindas do Sul, geralmente de passagem para as minas. Em 1754, segundo documento constante do livro de registro de cartas reais, provisões, procurações etc. da vila de Parnaíba, cujo teor me foi comunicado por um dos melhores conhecedores da história sul-paulista, o cônego Luís Castanho de Almeida, um tropeiro castelhano, Bartolomeu Chevar, conduziu dos campos rio-grandense para as Minas Gerais 3780 cabeças de muares. Ao transpor o rio Negro, onde havia registro, alegou fiador. Mais tarde, porém, tornou-se necessário ir precatória para as Minas, a fim de se receberam os 5:021$000 de impostos.155

O trecho seguinte pertence a Monções também revela a riqueza

do detalhamento como estilo de escrita adotado pelo autor, o trecho se

refere ao número de pessoas que seguiam viagem no interior do país em

embarcações durante o século XVIII:

155HOLANDA, 1994, p.130.

129

Um máximo de dez homens, embora sem incluir marinhagem, isto é, piloto, contrapiloto, proeiro e cinco remadores, era quanto admitia cada embarcação pelo anos de 1786, se dermos crédito ao que consta de um relatório escrito nessa data pelo explorador dos campos de Guarapuava e do Igureí, Cândido Xavier de Almeida e Souza. Mas mesmo tal cifra há de parecer bem diminuta a quem examine certos textos anteriores, principalmente de meados do século, onde se assinalam, com frequência, canoas transportando quinze ou dezesseis homens e mais, sem falar na marinhagem. Sabe-se, por exemplo, que na viagem do Conde de Azambuja, realizada em 1757, a média dos passageiros conduzidos por cada barco fora de vinte homens, sem contar remeiros e pilotos.156

De acordo com a Teoria da Obra Histórica de Hayden White

exposta em Meta-História, tanto Monções quanto Caminhos e Fronteiras

possuem uma construção argumentativa que pode ser classificado como

sendo do tipo formista, visto que em tais obras se destacam por possuírem

textos bastante descritivos, marcados pela identificação dos pormenores e

detalhes na narrativa, como foi explicitado acima.

Também em decorrência desse interesse primordial pelos

acontecimentos em sua “particularidade e singularidade, sua nitidez,

colorido e variedade”157, ambas também podem ser classificadas como

metafóricas, em relação ao estilo historiográfico.

Caminhos e Fronteiras trata também de forma mais específica

sobre a temática da fronteira. O pesquisador e professor da Universidade La

Sapienza, na Itália, que em 2014 recebeu o título de “Doutor Honoris

Causa” da Unicamp, Ettore Finazzi-Agrò, escreveu que a palavra “fronteira”

desempenhou nesta obra um papel diferente, acrescentando dinamismo ao

estudo da cultura brasileira:

156HOLANDA, 2000, p. 33. 157 WHITE, 2008, p. 179.

130

A análise de alguns processos de transculturação ou de adaptação ao meio, considerados ao longo de Caminhos e Fronteiras, qualifica esta obra como interpretação dinâmica da história cultural brasileira. Basta, para isso, considerar o papel diferente desempenhado pela palavra “fronteira” neste estudo e que o próprio autor se preocupa em definir desde a introdução158.

Para Sérgio Buarque de Holanda, a fronteira da qual ele falou em

seu livro não era somente uma espaço físico, não era apenas uma fronteira

geográfica, ela representava também uma fronteira cultural, como é

possível ver no trecho seguinte:

Fronteira, bem entendido, entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos ou melhor equipados159.

Para o professor Robert Wegner, estudioso da obra de Sérgio

Buarque de Holanda, em Caminhos e Fronteiras encontramos a aplicação

para o nosso contexto da tese que Frederick Jackson Turner elaborou para

compreender a História americana.

O historiador norte-americano Frederick Jackson Turner propôs

em seu ensaio de 1893 chamado The Significance of the Frontier in

American History a introdução do elemento da fronteira para explicar a sua

158FINAZZI-AGRÒ, Ettore. A Trama e o Texto: história com figuras. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (Org.). Um Historiador na Fronteira: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p.148. 159HOLANDA, 1994, p.12-13.

131

tese sobre a nação americana ser uma nação compósita formada por meio

da adaptação e do retorno ao primitivo, para isso ele se distanciou de uma

explicação genética que postulava a origem de toda instituição norte-

americana como sendo tão somente europeia.

Da forma como analiso, este conceito de fronteira permitiu que

Sérgio Buarque de Holanda pudesse elaborar um modelo explicativo para o

Brasil que, por um lado privilegiava o legado das populações nativas para a

história da formação da nossa nação e, por outro, efetivava a superação da

historiografia tradicional que ressaltava somente as nossas raízes ibéricas.

Na teoria do historiador Frederick Jackson Turner, a fronteira nos

Estados Unidos era a linha divisória entre a terra povoada e a terra livre,

bem como entre o civilizado e o primitivo. Para este autor, a especificidade

da fronteira americana estaria na sua dinâmica. Sendo a fronteira

emancipadora, ela libertaria os pioneiros das pressões da tradição e

permitiria a experimentação de práticas e instituições melhor adequadas às

necessidades criadas pelo ambiente fronteiriço. Sérgio Buarque de Holanda

também analisou no caso brasileiro esse dinamismo e identificou em sua

obra os três estágios dessa fronteira.

Para Turner existem três momentos, ou estágios, da fronteira no

qual aquele que está nela se desenvolve ao ponto de se tornar outro, mais

forte e resistente. Na tese de Turner, a fronteira proporcionou a formação

do povo americano. O primeiro momento é o da adaptação do pioneiro ao

ambiente e aos nativos. O adventício é levado pelas circunstâncias a

aprender com os nativos meios e técnicas para não ser dominado pelo

ambiente forte e hostil da fronteira. O segundo momento na fronteira é o

da transformação na qual a retomada do legado europeu permite tanto a

modificação do ambiente quanto a transformação do pioneiro. Por último, o

terceiro momento é o resultado da própria dinâmica da fronteira, a

132

consolidação do povo americano como fruto do rearranjo da tradição

européia sobre um fundamento de adequação aos padrões primitivos.

Segundo Turner, o dinamismo da fronteira é continuamente

reiniciado em cada avanço da linha de expansão territorial, de maneira que

uma aliança com a natureza e com sociedades primitivas é estabelecida e

permite para o mais adiantado, no caso o adventício, a renovação dos

instintos160.

No caso de Caminhos e Fronteiras, a divisão da obra em três

seções parece sugerir exatamente os três momentos da dinâmica da

fronteira estabelecidos por Turner. Sérgio Buarque de Holanda explicou na

sua introdução que “a própria divisão em três seções distintas procura, nele,

obedecer a uma sequência natural”161. Na seção “Índios e Mamelucos”

composta de nove capítulos o autor trabalhou o contato entre a população

adventícia e os naturais da terra, bem como a subsequente adoção pelos

adventícios de utensílios e técnicas indígenas. Na segunda parte intitulada

“Técnicas Rurais” com cinco capítulos foram abordadas a herança indígena

especialmente para as atividades agrícolas. E na terceira seção “O Fio e a

Teia”, que contém três capítulos estão descritas as atividades com tendência

a utilização em meios urbanos.

Outra característica marcante que perpassa toda a obra é a

apresentação de São Paulo como o polo modernizador do Brasil e os

sertanistas paulistas como aqueles que facilmente passaram pelo processo

de aclimação, no qual puderam herdar muitas técnicas, hábitos e

habilidades indígenas aproveitadas para o contexto do adventício. O trecho

160 As terminologias utilizadas neste ensaio do início do século XIX como “primitivo”, “avançado”, “adventício”, “pioneiro” entre outras, seguiam a lógica da antropologia e da sociologia da época que sustentavam discursos de dominação sobre a população nativa. Eles foram mantidos aqui para que o sentido principal da tese de Turner pudesse ser preservado, mesmo sabendo que atualmente esses conceitos já foram problematizados. 161HOLANDA , 1994, p.12.

133

selecionado abaixo foi retirado da primeira seção da obra e reforça tanto a

ideia de São Paulo como o estado onde a modernidade começou quanto a

ideia do paulista como o povo forte formado na “fronteira”:

Compreende-se que aos naturais de São Paulo coubesse parcela considerável do esforço que iria desvendar em todas as direções a terra ignorada. Martius não deixa de registrar esse fato. “O mérito no descobrimento e na utilização das plantas curativas”, diz, “coube em maior grau aos paulistas, tanto quanto o descobrimento das minas de ouro”. Poderia acrescentar sem hesitação, que isso só se tornou possível, em grande parte, dada a circunstância de, São Paulo, mais do que em outras regiões brasileiras, terem permanecido longamente vivas e fecundas as tradições, os costumes e até a linguagem da raça subjugada162.

Segundo Sérgio Buarque de Holanda, a sociedade constituída no

planalto da capitania de Martim Afonso foi particularmente diferente dos

núcleos formados no litoral da colônia portuguesa na América. A sociedade

paulista avançou para além da Serra do Mar. Enquanto o litoral exprimia sua

riqueza na sólida habitação do senhor de engenho, os paulistas

demonstraram pelas bandeiras e também pelas monções que “sua vocação

estaria no caminho, que convida ao movimento; não na grande propriedade

rural que forma indivíduos sedentários”163.

Caminhos e Fronteiras também apresentou informações acerca

das vivências do paulista durante as entradas e sobre as experiências de

adaptação no ambiente fronteiriço, como se pode perceber quando

Holanda escreveu “O retrocesso a condições mais primitivas, a cada novo

162HOLANDA, 1994, p.77. 163Ibidem,p. 9.

134

contato com a selva e com o habitante da selva, é uma etapa necessária

nesse feliz processo de aclimação”164, e também no fragmento selecionado

abaixo no qual Holanda tratou da mobilidade paulista e dos aspectos da

cultura indígena incorporados por eles:

Em São Paulo, cuja população, particularmente a população masculina, se distinguiu durante todo o período por uma excessiva mobilidade, a mistura étnica e também a aculturação, resultante do convívio assíduo e obrigatório, seja durante as entradas seja nos sítios de roça, deram ao indígena um papel que será impossível disfarçar. (...) Seu sustento ordinário nas viagens, além da farinha de guerra, de que não se separavam, ao menos nos primeiros tempos, era quase somente o que dá a terra sem a lavragem, como sejam caças e frutas. De onde naturalmente a espécie de solidariedade cultural que logo se estabeleceu aqui entre o invasor e a raça subjugada165.

A partir deste ponto no qual Sérgio Buarque de Holanda

ressaltou o papel fundamental do indígena, e tendo em vista que o mesmo

já havia sido feito em Monções quando tratou-se do aproveitamento das

técnicas nativas para a confecção de canoas, por exemplo, percebe-se uma

valorização da sociedade e do saber produzido pelas nativos. Prosseguindo

com análise, Monções e Caminhos e Fronteiras podem, então, ser

classificadas como anarquistas em relação a implicação ideológica. Para

White, o anarquismo aponta para as mudanças históricas, acredita na

necessidade de transformações estruturais, porém idealiza um passado

remoto de inocência natural humana166. É possível perceber a presença

164HOLANDA, 1994, p. 21. 165 Ibidem, p. 60-61. 166WHITE, 2008, p. 39.

135

dessa ideologia nos momentos em que Holanda evidencia nas suas obras as

mudanças culturais dos paulistas a partir desse contato com os nativos, e

como os paulistas agregaram o saber indígenas para se adaptar mais

rapidamente ao ambiente fronteiriço.

Depois de Raízes do Brasil, Monções e Caminhos e Fronteiras

Sérgio publicou ainda outros dois textos de História167, Visão do Paraíso em

1959 e Do Império à República em 1972.

Na obra Visão do Paraíso Sérgio Buarque de Holanda retomou a

temática do seu livro de estreia, apresentou de forma mais específica a

mentalidade portuguesa na época da expansão marítima e focou na

representação ibérica do Novo Mundo. De maneira geral, Holanda

investigou como a ideia da existência de um paraíso terrestre fazia parte do

imaginário dos navegantes, especialmente dos espanhóis, e como entre os

portugueses essas ideias eram amenizadas.

Outro ponto marcante desta obra é a ideia de continuidade, ao

invés de ruptura, entre a Idade Média e o Renascimento português. Para

Holanda, o realismo presente nas narrativas de viagens dos navegadores

portugueses se passavam por características de um povo moderno, contudo

elas se ligavam a uma mentalidade medieval.

Visão do Paraíso foi escrita para que Holanda pudesse concorrer

na Universidade de São Paulo à cátedra de História da Civilização Brasileira

em 1958. Na verdade ele já era professor desta instituição desde 1956,

substituindo o professor Alfredo Ellis que sofreu um enfarto e precisou

aposentar-se. Nesta atividade, Holanda esteve muito dedicado em fazer

com que a formação de professores passasse também pela prática da

167Sérgio Buarque de Holanda publicou muitos outros textos ao longo da sua carreira, não somente textos de História, mas também ensaios jornalísticos, críticas literárias, prefácios e antologias poéticas. Procurei considerar somente as obras de história devido ao objetivo desta pesquisa de investigar a consciência histórica do autor.

136

pesquisa. A criação do Instituto de Estudos Brasileiros veio para suprir essa

necessidade.

Paralelamente a carreira de professor e pesquisador, Holanda

conseguiu se manter como um assíduo escritor. Entre 1960 e 1972 Holanda

esteve empenhado no planejamento e direção da coleção História Geral da

Civilização Brasileira cujo intuito era ser o primeiro trabalho coletivo sobre a

História do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda foi responsável pelos volumes

dedicados aos períodos colonial e monárquico, ele escreveu vários artigos

que os compuseram e integralmente escreveu o sétimo volume desta

coleção sobre a transição política do período imperial para o republicano.

De maneira geral, esta coleção está estruturada em três tomos

correspondentes aos períodos de nossa história política. O Tomo I – A Época

Colonial, trata da descoberta e colonização e é composto por dois volumes

denominados Do descobrimento à expansão territorial e Administração,

economia, sociedade. O Tomo II – O Brasil Monárquico, é destinado ao

período do Império e possui cinco volumes intitulados O processo de

emancipação; Dispersão e unidade; Reações e transações; Declínio e queda

do império; Do império à República. O Tomo III – O Brasil Republicano, que

foi organizado por Boris Fausto em virtude do falecimento de Holanda, é

composto por quatro volumes: Estrutura de poder e economia (1889-1930);

Sociedade e instituições (1889-1930); Sociedade e política (1930-1964);

Economia e cultura (1930-1964).

Em todos os volumes que compõe esta coleção de História,

podemos destacar o predomínio do próprio organizador inicial da série,

com um total de 34 textos. Além da Introdução geral, Sérgio Buarque de

Holanda escreveu 33 capítulos, dentre estes apenas dois em coautoria, com

Pedro Moacyr Campos e com Olga Pantaleão. Os demais textos foram

compostos pela contribuição de diversos autores, historiadores e

137

especialmente professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo.

Do Império à República é uma obra sobre a história política do

Brasil na segunda metade do século XIX e traz uma interpretação singular

da crise da monarquia brasileira. Este texto foi publicado em 1972, e foi o

último trabalho de História que Holanda publicou em vida. A obra está

dividida em dezenove capítulos distribuídos em cinco partes, denominadas

Livro Primeiro – Crise do Regime, Livro Segundo – O Pássaro e a Sombra,

Livro Terceiro – Reformas e Paliativos, Livro Quarto – Da “Constituinte

Constituída à Lei Saraiva”, Livro Quinto – A Caminho da República.

De maneira geral, esta obra está centrada nos motivos que

levaram ao desgaste do poder imperial e a ascensão das forças

republicanas. Sérgio Buarque de Holanda falou sobre a configuração do

contexto brasileiro de queda da monarquia em comparação com outros

lugares como a França e a Inglaterra e colocou em dúvida a existência de

uma classe média no Brasil capaz de articular uma revolução contra a

monarquia como ocorreu em outros países. Além disso, Holanda também

expôs a sua visão sobre a participação do exército na transição política e

como para ele esse processo não representou um evento revolucionário. O

texto produzido é rico em detalhes, apresentando muita documentação,

pormenores, descrições e explicações acerca dos arranjos políticos e dos

principais acontecimentos ocorridos no nível das Províncias e também nas

câmaras e nos ministérios.

Em sua interpretação, Holanda dedicou espaço considerável para

falar também acerca do poder pessoal de D. Pedro II. Ao longo do texto,

entre muitos dados analisados e muitos conchavos políticos abordados,

Holanda destacou que a velha máxima “o rei reina mais não governa” não

podia ser usada no caso brasileiro, haja vista que na sua opinião D. Pedro

138

exercia de fato o seu poder, sua presença inclusive era capaz de intimidar.

No trecho seguinte Holanda nos faz perceber que a atuação do imperador

funcionava como catalisador das mudanças políticas contrárias a ele:

Apesar de tais limitações e por maior que seja a tentação de pretender reduzir a influência que, durante longos anos, exerceu um só homem sobre o curso de nossa história, força é confessar que, dada a soma considerável de poderes que enfeixava, e que ninguém mais tinha no mesmo grau, não pode ela ser subestimada e muito menos silenciada. Apenas cumpre dizer que esses poderes ele os utilizou, por menos que o desejasse, no sentido de modelar e até esmagar as reformas necessárias à modernização do país. Funcionaram, de fato, como catalisadores da resistência a qualquer mudança na estrutura tradicional, quando as mudanças importavam mais do que uma estabilidade estéril e mentirosa168.

Outro momento marcante neste seu último trabalho de História

foi a exposição da sua interpretação acerca da participação popular no

processo de instalação de uma república. Para Holanda, em comparação

com outros países que também dissolveram suas monarquias, o Brasil não

contava com a existência das classes médias, nem mesmo tínhamos "uma

burguesia independente, que em outros países não só existia como

também participava cada vez mais das decisões de interesse geral"169.

A explicação para a inexistência, ou inconsistência, das classes

médias no Brasil estava no fato da nossa condição de país escravocrata.

Segundo Sérgio Buarque de Holanda "nem se podia esperar coisa diversa

em terra onde, a rigor, também não havia proletários, mas trabalhadores

168HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico, v. 7: Do Império à República. 7º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 26. 169Ibidem, p. 260.

139

capturados e compulsoriamente empregados em atividades julgadas menos

dignas de homens livres"170.

Por esse motivo, na visão do nosso autor não se podia

considerar como revolução o processo de implantação da república

brasileira. Mesmo em situações como no caso do Motim do Vintém no Rio

de Janeiro, em que manifestantes da camada mais desfavorecidas da

população demonstraram o seu descontentamento com a criação do

imposto de 20 réis por passagem de bonde e condução ferroviária, e

obstruíram linhas de bondes, arrancaram trilhos, atiraram pedras,

quebraram veículos, não podia ser considerado ainda um revolução das

massas, e especialmente uma revolução contra o regime. Na verdade, a

exaltação da opinião pública havia sido trabalhada pela imprensa e pelos

comícios. Sobre isso Holanda escreveu:

Não se pode dizer que fosse uma revolução de massas: palavras como Revolução e barricadas, que se pronunciaram e imprimiram muitas vezes a propósito daqueles acontecimentos, foram em geral usadas pelos repressores para justificar medidas repressivas. Um jornalista republicano dos menos timoratos, Lúcio de Mendonça, pode dizer que aquele movimento popular do Rio de Janeiro, apesar de aparecerem entre seus instigadores vários adversários salientes do regime, ainda não era um revolução contra a Monarquia171.

Na visão de Sérgio Buarque de Holanda o exército, ao invés do

povo, foi o principal agente no processo de consolidação da república.

Revestido pelo discurso de que faziam em nome do povo, o exército

170HOLANDA, 2005, p. 398. 171Ibidem, p. 277, grifos do autor.

140

brasileiro tirava o cunho de melindre ou reivindicação de uma classe para

colocar no movimento a estampa de vontade geral da nação. O fragmento

abaixo explica melhor essa situação:

Quando, ao proclamar-se a República, a massa da população, tomada de surpresa pelo acontecimento, se mostra alheia ou indiferente a princípio, Pelotas, que pertence, aliás, à velha linhagem de soldados, cuja origem data dos tempos coloniais, acha injustificável a omissão das camadas populares e vê nisso o mal de origem do novo regime. Em realidade a República é obra exclusiva do Exército, ou mais precisamente da guarnição da Corte, embora seja apresentada, também, como da Armada, que não teve parte na mudança das instituições, e em nome do povo, que a tudo assistiu "bestializado". A fórmula "em nome do povo..." impõe-se logo e continuará a ser adotada em decretos do Governo Provisório172.

Diante do exposto e observando a Teoria da Obra Histórica de

Hayden White, a classificação do enredo, da argumentação, da implicação

ideológica e do estilo historiográfico correspondentes a obra Do Império à

República não difere muito da classificação de Monções e também de

Caminhos e Fronteiras já apresentadas. Mesmo possuindo uma temática

bastante diferente das obras anteriores e um enfoque analítico mais

político do que cultural, Do Império à República permaneceu com

praticamente as mesmas estruturas narrativas, alterando apenas o modo

de implicação ideológica.

Da forma como eu analiso, o enredo produzido por Holanda em

Do Império à República também estaria bastante próximo de uma história

romanesca, devido ao destaque dado a personalidade de D. Pedro II e ao

172HOLANDA, 2005, p. 401

141

seu poder que pairava sobre qualquer eventual instabilidade política e

garantia, na sua opinião, a sobrevivência das estruturas coloniais. Em

relação ao modo argumentação o texto produzido se encaixa no formismo

pois apresentou longas descrições dos processos políticos e detalhou

bastante as atividades nas províncias, nos ministérios e nas câmaras, o

enfoque do autor estava nas particularidades da história política brasileira.

Quanto a implicação ideológica o texto é liberal ao invés de anarquista, na

medida em que Holanda quis apontar muito mais as permanências do que

as rupturas ou as mudanças, mesmo quando ao longo do texto destacou-se

a rápida troca dos presidentes nomeados para as principais províncias, o

objetivo era salientar o excesso de poder do imperador que fazia dessas

trocas uma forma de manter controlada as elites oligárquicas e evitar as

mudanças estruturais. Por último, o estilo historiográfico correspondente a

esta obra também é a metáfora, visto que o texto produzido esteve

centrado na narrativa dos acontecimentos em suas particularidades e

singularidades.

Nos últimos tempos de sua atividade intelectual, Sérgio Buarque

de Holanda empenhava-se na reescrita de Do Império à República, obra que

ele considerava imperfeita. Na verdade, a prática de retomar textos já

publicados para os revisar foi uma constante ao longo da sua carreira, ele

fez isso com Raízes do Brasil, depois com Monções e também com Visão do

Paraíso. De maneira que muitas páginas datilografadas fruto deste seu

empenho intelectual puderam ser publicadas postumamente, como foi o

caso de Capítulos de História do Império publicado em 2010, Capítulos da

Expansão Paulista publicado em 2014 juntamente com a quarta edição de

Monções e, além dessas obras, há também o caso de O Extremo Oeste

publicada em 1986, obra composta por textos escritos provavelmente nas

décadas de 1960 e 1970.

142

O próximo capítulo está centrado na análise de Raízes do Brasil e

Visão do Paraíso. Pretende-se nele ir além das pinceladas analíticas

adiantadas aqui. Na verdade, o que se objetiva é perceber a consciência

histórica de Sérgio Buarque de Holanda, a formação e o desenvolvimento

desta consciência, como também definir qual terá sido o seu estilo de

escrita histórica e como ele o construiu. Partindo da hipótese de que exista

um linha de continuidade entre Raízes do Brasil e Visão do Paraíso,

pretendo verificar através da aplicação do Teoria da Obra História de

White, as permanências nestas obras de uma mesma visão da História e de

uma estrutura narrativa semelhante. Claro que as análises feitas aqui de

Monções, Caminhos e Fronteiras e Do Império à República serão retomadas

como parâmetro comparativo para os resultados alcançados pela análise

exposta a seguir.

143

CAPÍTULO 4

A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

A escolha das obras Raízes do Brasil e Visão do Paraíso para o

exercício analítico proposto por esta pesquisa se justifica de duas formas. A

primeira delas remete ao objetivo principal de conhecer o desenvolvimento

da consciência histórica do autor delas por meio da comparação da sua

obra de estreia com aquela que é considerada a obra da sua maturidade. A

segunda está relacionada com a afinidade temática existente entre estas

obras que permitiria perceber como ocorreu o amadurecimento desta

consciência histórica.

Em Raízes do Brasil encontra-se uma narrativa histórica cujas

temáticas principais tratam em linhas gerais da cultura europeia,

especialmente a ibérica, das características comuns entre o povo brasileiro

e os colonizadores e da mentalidade patriarcal e cordial. Entre outras coisas,

esta obra destaca-se por meio de seu estudo comparativo, do

estabelecimento de tipos ideais e pela reconstrução do processo formativo

das estruturas da sociedade brasileira. O objetivo central foi identificar

essas estruturas com a finalidade de “abrir caminho para modificação da

sociedade brasileira, especialmente em relação à democratização e

modernização de nossas estruturas”173.

Em Visão do Paraíso, por sua vez, encontra-se uma narrativa que

trata de forma mais específica sobre a colonização portuguesa e

especialmente sobre a influência dos mitos edênicos no processo de

expansão marítima. Por se tratar de um trabalho acadêmico, o texto

apresentado é mais denso e com um teor analítico mais aprofundado. Este

173NICODEMO, 2008, p. 161.

144

texto apresenta uma clara característica de crítica literária em virtude da

análise da literatura de viagens do século XV e XVI estabelecida nela, porém

o seu perfil historiográfico também é marcante devido ao interesse de

mapear a relação entre os motivos edênicos e a história do descobrimento

e colonização do Brasil.

Do meu ponto de vista, entre Raízes do Brasil e Visão do Paraíso

há uma linha de continuidade. O exercício comparativo marcante na obra

de estreia permaneceu presente na obra da maturidade. É possível enxergar

também a permanência do objetivo de compreender os elementos do

pensamento e visão de mundo dos colonizadores. Além dessas coisas, é

claro o desenvolvimento de argumentos que estavam presentes na primeira

obra, como a capacidade de adaptação dos colonos e o sentido exploratório

na formação do Brasil. Espero que esta perspectiva da continuidade fique

mais evidente no decorrer da análise das duas obras apresentada a seguir.

Para sociólogo, professor e pesquisador da Fundação Oswaldo

Cruz, Robert Wegner, o texto de Raízes do Brasil foi escrito como um ensaio,

devido a abertura de sua narrativa para o diálogo e reflexão. Em sua

opinião, a cada leitura, esta obra é capaz de lançar novas questões. Sem

pretender ser um espelho da realidade, Raízes é, na opinião dele, uma

ferramenta de reflexão sobre o Brasil: “A questão não é constatar se o

homem brasileiro é cordial, ou deixou de ser. A questão é nos interrogarmos

sobre a nossa prática cotidiana, nossas opções políticas, que Brasil estamos

construindo”174.

Para Laura de Mello e Souza, Visão do Paraíso esteve na

contramão da historiografia tradicional devido a sua interpretação sobre a

174WEGNER, Robert. Raízes do Brasil: uma obra aberta que convida para o diálogo. Revista do Instituto Humanitas Unisinos On-Line. São Leopoldo, edição 205, ano VI, 20 de novembro de 2006, p.10.

145

modernidade portuguesa, como também sobre o processo de colonização e

a influência dos mitos edênicos neste processo.

Para Ronaldo Vainfas, o que mais se destaca em Visão do Paraíso

é estudo do imaginário ibérico apresentado que, para ele, colocou Sérgio

em um lugar privilegiado na renovação dos estudos da cultura no período

colonial. Vainfas considerou esta obra como o livro mais erudito da

historiografia brasileira, para ele “é certamente o melhor exemplo da

contribuição de Sérgio Buarque de Holanda a uma história das

representações mentais produzida no Brasil”175.

Mais de vinte anos separam estas duas obras. Publicado pela

primeira vez em 1936 pela editora José Olympio, Raízes do Brasil teve a sua

segunda edição mais de dez anos depois. Em 1947 a segunda edição alterou

o título dos capítulos 3 e 4, ambos anteriormente intitulados “O passado

agrário”. Esta alteração permaneceu em todas as edições posteriores. A

terceira edição publicada em 1955 trazia um apêndice contendo os

comentários de Cassiano Ricardo em relação a ideia do Homem Cordial e a

carta-resposta escrita por Holanda, ambas retiradas nas demais edições,

permanecendo apenas nas referências bibliográficas na seção das notas.

Atualmente Raízes do Brasil encontra-se na sua vigésima sexta edição

lançada em 1995 pela Companhia das Letras, sendo esta a edição utilizada

como fonte nesta pesquisa. Ao longo dos anos ocorreram inúmeras

reimpressões desta edição, a última em janeiro de 2015.

Quanto a Visão do Paraíso, no ano de 1959 essa tese acadêmica

foi publicada pela primeira vez pela editora José Olympio. Em sua segunda

edição, pela Companhia Editora Nacional e Edusp, no ano de 1968, sofreu

algumas alterações feitas pelo próprio autor com a finalidade de “desfazer

175VAINFAS, Ronaldo. Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso. In: MOTA, Lourenço

Dantas (Org). Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico II. 2ªEd. São Paulo: Editora

SENAC São Paulo, 2002.p.27.

146

enganos de interpretação surgidos desde que foi publicado pela primeira

vez”176. Esta segunda edição trouxe um longo prefácio escrito pelo próprio

autor, no qual ele explicou com mais clareza a trajetória da pesquisa, os

objetivos do livro e também as alterações realizadas. As demais edições de

Visão do Paraíso passaram a conter os prefácios escritos para a primeira e a

segunda edição, e foram publicadas pela Cia. Editora Nacional, pela

Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia de São Paulo e também pela

Editora Brasiliense, demonstrando a merecida ressonância que alcançou na

historiografia nacional.

Em relação a estrutura dessas obras, Raízes do Brasil está

dividida em sete capítulos – 1. Fronteiras da Europa; 2. Trabalho e Aventura;

3. Herança Rural; 4. O Semeador e o Ladrilhador; 5. O Homem Cordial; 6.

Novos Tempos; e 7. Nossa Revolução – desenvolvidos e dispostos de

maneira a sugerir que “o conhecimento do passado deve estar vinculado

aos problemas do presente. E, do ponto de vista político, que, sendo o

nosso passado um obstáculo, a liquidação das ‘raízes’ era um imperativo do

desenvolvimento histórico”177. Com o objetivo de pensar como o nosso país

deveria ser, Sérgio Buarque de Holanda propôs pesquisar nesta sua obra de

estreia como são os brasileiros e como foram formados. Através da

comparação de pares como “trabalhador e aventureiro”, “rural e urbano”,

“burocracia e caudilhismo”, Holanda analisou de forma dinâmica nosso

processo histórico, destacando com isso quais “raízes” era preciso abrir mão

para de fato transformar a realidade do nosso país.

Visão do Paraíso está dividida nos doze capítulos seguintes: 1).

Experiência e Fantasia; 2. Terras Incógnitas; 3. Peças e Pedras; 4. O “Outro

176HOLANDA, Sérgio Buarque de.Visão do Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 11. 177CÂNDIDO, 1995, p.20.

147

Peru”; 5. Um Mito Luso-brasileiro; 6. As Atenuações Plausíveis; 7. Paraíso

Perdido; 8. Visão do Paraíso; 9. Voltando a Matusalém; 10. O Mundo Sem

Mal; 11. Non IbiAestus; 12. América Portuguesa e as Índias de Castela. A

riqueza apresentada tanto pelas variedade de notas quanto pelo

levantamento das fontes, e principalmente pela estrutura da escrita,

refletem em minha visão a tentativa de Sérgio Buarque de Holanda de

superar as explicações tradicionais da história da colonização do Brasil. Com

o objetivo de pesquisar os mitos edênicos que povoaram o universo mental

de portugueses e castelhanos na época das grandes navegações, crenças no

geral inspiradas na teologia medieval, que por sua vez se fundamentavam

nos textos bíblicos do livro de Gênesis, de que o Paraíso do Éden era um

lugar distante, porém, ao alcance efetivo da humanidade, Sérgio Buarque

de Holanda utilizou muitas obras da tradição literária ocidental como

Camões, Homero, Horácio, Virgílio, Dante, Defoe, Coleridge, Padre Vieira,

François Villom, Tasso, La Fontaine, Ronsard, Quevedo, Rabelais, Garcia de

Resende, Ovídio, James Joyce, La Fontaine, John Donne, Esopo, Fedro e

outros, como também utilizou como fonte muitos dos relatos daqueles

diversos viajantes dos século XV e XVI como André Thevet, Jean Léry,

Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio, Bartolomeu de Las Casas e outros.

Através da aplicação da Teoria da Obra Histórica de Hayden

White, exposta anteriormente no segundo capítulo, a análise desenvolvida a

seguir das duas obras selecionadas será feita com o intuito de demonstrar

as escolhas de Sérgio Buarque de Holanda em relação ao tipo de enredo, de

argumentação e de ideologia que, por sua vez, informam sobre o seu estilo

historiográfico. No decorrer deste capítulo a comparação das narrativas de

Raízes do Brasil e Visão do Paraíso servirá para perceber exatamente o

desenvolvimento desse estilo historiográfico intimamente relacionado com

a consciência histórica que Sérgio possuía.

148

O texto a seguir está dividido em quatro partes. As três primeiras

seguem a sequência do quadro de afinidades eletivas178 elaborado por

Hayden White em Meta-História apresentando o modo de enredamento,

depois o modo de argumentação e na sequência o modo de implicação

ideológica que identifiquei na análise do texto que de Sérgio Buarque de

Holanda construiu nas obras selecionadas. Em seguida a quarta parte se

refere a classificação do estilo historiográfico do autor e a análise da

consciência histórica dele.

4.1 A HISTÓRIA DO BRASIL COMO UM ROMANCE

White identifica quatro tipos de enredos: o romanesco, que

evidencia a figura do herói; o trágico, que destaca as condições inalteráveis

e eternas da sociedade; o cômico, que relata de forma dramática as

mudanças; e o satírico, que é um relato da disjunção. Segundo a Teoria da

Obra Histórica de Hayden White, em uma mesma narrativa historiográfica

pode haver o emprego de mais de um desses modos de enredamento,

entretanto, deve haver um que predomine no texto tomado como um todo.

Do meu ponto de vista, Sérgio Buarque de Holanda escreveu em

Raízes do Brasil e em Visão do Paraíso uma História do Brasil sob a forma de

um enredo romanesco. Para White, este tipo de enredo é “um drama de

auto-identificação simbolizado pela aptidão do herói para transcender o

mundo da experiência, vencê-lo e libertar-se dele no final, [...] É um drama

do triunfo do bem sobre o mal, da virtude sobre o vício”179.

Em Raízes do Brasil o herói seria o povo brasileiro e a situação a

ser vencida ou superada seria o passado colonial brasileiro, como é

178WHITE, 2008, p.44. 179Ibidem, p.24.

149

perceptível na leitura do trecho seguinte: “Lembrai-vos de que os brasileiros

estão hoje expiando os erros dos seus pais, tanto quanto os próprios erros.

A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas raízes.”180 Já em

Visão do Paraíso o herói seria o povo português que venceu o mundo da

fantasia e da imaginação durante o período das navegações, como percebo

no fragmento seguinte: “é significativa a minguada e quase nenhuma

participação da fantasia que os anima nos feitos que marcam os

estabelecimentos dos portugueses em terras do Brasil”181. Adiante

apresento a análise de outros trechos da duas obras que reforçam a escolha

do enredo romanesco como predominante.

Na leitura de Raízes pode-se notar um esforço do seu autor para

prosseguir com uma reflexão sobre o passado brasileiro sem nostalgia e

sem medo de apontar os problemas existentes. Há também a preocupação

em apontar quais são os elementos presentes na sociedade brasileira que

estão diretamente ligados ao nosso passado colonial. Neste livro Sérgio

Buarque de Holanda demonstrou como precisamos superar algumas

mazelas trazidas por este tempo passado para efetivamente mudar a nossa

história. Quando Sérgio apresentou a sua reflexão sobre o passado

brasileiro nesta obra, ele desconstruiu o pedestal erguido pela

historiografia, principalmente aquela produzida nos primeiros anos da

atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que até então

exaltava o colonizador182.

Do meu ponto de vista Raízes não é um romance convencional,

isso porque o herói apresentado na narrativa tem falhas e o autor não as 180 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.181. 181Id., 2010, p. 204. 182Me refiro por exemplo ao trabalho do Visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen, cuja História Geral do Brasil, publicada em dois tomos (1854 e 1857), valorizava o legado português, deixando em plano secundário as figuras do índio e do negro, num posicionamento com profundo viés etnocêntrico.

150

escondeu. A principal destas falhas é a personalidade cordial do povo

brasileiro que o atrapalha na missão da construção da democracia

brasileira. Por causa disso, se pode caracterizar o enredo de Raízes como

um romance do tipo crítico.

Ao longo de todo o texto esse tom crítico e ácido se faz presente.

Logo no primeiro capítulo de Raízes do Brasil Sérgio Buarque de Holanda

expõe sua teoria de que os brasileiros não poderiam ignorar a tradição e

cultura ibérica durante o exercício de compreender a sua origem, porém,

deveriam conhecer para superar essa tradição, como vemos no fragmento

abaixo:

A falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um fenômeno moderno. E é por isso que erram profundamente aqueles que imaginam na volta à tradição, a certa tradição, a única defesa possível contra nossa desordem. Os mandamentos e as ordenações que elaboram esses eruditos são, em verdade, criações engenhosas do espírito, destacadas do mundo e contrárias a ele183.

Neste primeiro capítulo o autor diz que somos “uns desterrados

em nossa terra”184, para ele nossas instituições, nossas formas de convívio e

inclusive nossas ideias foram herdadas das raízes ibéricas.

Ainda no primeiro capítulo Sérgio Buarque de Holanda analisa a

península ibérica como um território fronteiriço com características

singulares: cultura da personalidade; privilégios hereditários; tibieza das

estruturas de organização social; falta de racionalização da vida e coesão

183HOLANDA, 1995, p.33. 184 Ibidem, p. 31.

151

social. Para ele, nós brasileiros partilhamos de uma alma comum com a

península ibérica, especialmente com Portugal, sendo estas características

parte também de nossa cultura.

O trecho abaixo refere-se a uma dessas características

compartilhadas, que a partir de sua constatação espera-se a reflexão acerca

de suas implicações na história nacional:

É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre apareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um bom espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação185.

Na conclusão deste primeiro capítulo, sem restrições, Holanda

complementa dizendo que a carência dessa moral do trabalho entre as

populações ibéricas refletiu também na reduzida capacidade de organização

social, herdada pelos brasileiros.

Já no segundo capítulo, para analisar a colonização ibérica na

América, nosso autor elaborou os tipos ideais do “aventureiro” e do

“trabalhador”, presentes como psicologias determinantes do movimento da

expansão marítima. Segundo ele, enquanto o aventureiro era aquele que

idealizava “colher o fruto sem plantar a árvore”186, para tanto ignorava as

fronteiras, sendo criativo, não se importava com os meios para atingir seu

objetivo final, dos aparentes obstáculos fazia trampolins, o trabalhador, “ao

185HOLANDA, 1995, p.38. 186 Ibidem, p. 44.

152

contrário, era aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o

triunfo a alcançar”187, sendo econômico e mais realista.

Para Holanda, na conquista portuguesa o papel do trabalhador

foi pequeno, e na realidade o tipo aventureiro poderia estar fundido em

certo grau ao tipo do trabalhador. Para nosso autor, os portugueses

colonizaram seguindo a ética do aventureiro, vieram buscar prosperidade

sem custos. Como o trecho em destaque demonstra bem:

O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que busca trabalho. A mesma, em suma, que tinha acostumado a alcançar na Índia com as especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar cana e fabricar o açúcar para mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço – efetuado, de resto, com as mãos e os pés dos negros188.

Ainda sobre o processo de colonização da América portuguesa,

Sérgio Buarque de Holanda notou que os portugueses adaptaram

facilmente aos trópicos cedendo às sugestões da terra e dos seus primeiros

habitantes, “onde lhes faltasse o pão de trigo, aprendiam a comer o da

terra, e com tal requinte que, (...) a gente de tratamento só consumia

farinha de mandioca fresca”189, habituaram-se também a dormir em redes

como os indígenas, alguns bebiam e mascavam fumo, apreenderam

instrumentos e técnicas indígenas de caça, pesca e de cultivo, inclusive a

arquitetura das casas sob novo clima adquiriu varanda externa.

Sérgio Buarque de Holanda justificou a adaptação do português

187HOLANDA, 1995, p. 44. 188Ibidem, p.49. 189 Ibidem, p. 47.

153

ao Brasil tropical argumentando sobre sua plasticidade social. Segundo o

autor, a ausência do orgulho de raça aproximava os portugueses dos povos

latinos e dos muçulmanos africanos. A mistura com gente de cor havia

começado na própria Europa, de modo que a mistura de raças na colônia

americana não causou estranhamento ao conquistador português.

Quanto ao relacionamento com os escravos negros, Sérgio

Buarque de Holanda disse que o escravo das plantações e das minas não

eram um simples manancial de energia, por várias vezes as relações com os

donos oscilavam da situação de dependente para a de protegido, sua

influência paulatinamente invadia o âmbito doméstico tendenciando para

um abandono de todas as barreiras sociais, políticas e econômicas entre

brancos e homens de cor, livres e escravos.

Segundo Sérgio, quanto ao indígena também houve proximidade

e identificação por parte dos portugueses. É curioso notar que algumas

características ordinárias dos índios como a ociosidade, aversão a todo

esforço disciplinado, imprevidência, intemperança, gosto por atividades

predatórias ajustam-se de forma bem precisa aos tradicionais padrões de

vida das classes nobres.

Em contrapartida ao poder da plasticidade portuguesa, como

explicou Sérgio Buarque de Holanda já ao final do segundo capítulo de sua

obra de estreia, os holandeses possuíam um espírito empreendedor

metódico e coordenado, capacidade de trabalho e coesão social, que só

lhes garantiu o malogro de suas experiências coloniais no Brasil. Os colonos

que puderam enviar para a América, homens cansados de perseguições

religiosas, não quiseram criar laços com a nova terra.

A tentativa dos holandeses de transformar o Brasil em uma

extensão da Europa fracassou diante da não adaptação deles as práticas

locais. Ao contrário dos portugueses, os holandeses mantiveram sua

154

distinção com o mundo que vieram povoar. Poucos holandeses abriam mão

da vida na cidade pelas plantações de cana, ficando nas mãos portuguesas

as grandes fontes de riquezas. Também não conseguiram, pela língua e por

princípios religiosos, se relacionarem intimamente com negras e índias, a

falta da mestiçagem entre os holandeses dificultava a adaptação.

Para nosso autor, o português americanizava-se e africanizava-se

conforme fosse preciso, provando que nenhum outro povo da Europa se

adaptava tão facilmente as regiões tropicais. Inclusive a língua portuguesa e

a religião católica favoreceram a adaptação lusitana. Quanto a isso, Sérgio

Buarque de Holanda ressaltou a tese de que para os nossos índios, os

idiomas nórdicos apresentam dificuldades fonéticas quase intransponíveis,

enquanto a língua portuguesa lhes era acessível:

A própria língua portuguesa parece ter encontrado, em confronto com a holandesa, disposição particularmente simpática em muitos desse homens rudes. Aquela observação, formulada séculos depois por um Martius, de que, para nossos índios, os idiomas nórdicos apresentam dificuldades fonéticas praticamente insuperáveis, ao passo que o português, como o castelhano, lhe é muito mais acessível, puderam fazê-la bem cedo os invasores. Os missionários protestantes, vindos em sua companhia, logo perceberam que o uso da língua neerlandesa na instrução religiosa prometia escasso êxito, não só entre os africanos como entre o gentio da terra190.

Então, por causa da língua foi difícil para os holandeses

educarem no protestantismo o gentio da terra, além disso, na visão do

nosso autor, ao contrário do catolicismo, a religião protestante não trazia

“nenhuma espécie de excitação aos sentidos ou à imaginação dessa gente, 190HOLANDA, 1995, p.65.

155

e assim não proporcionava um terreno de transição por onde a

religiosidade indígena pudesse acomodar-se aos ideais cristãos”191.

Segundo Sérgio Buarque de Holanda, na comparação com a

religião cristã protestante, o cristianismo católico é mais universalista e

menos exclusivista. Sendo assim, a igreja católica exigia por parte dos

nativos mudanças pouco radicais em seus costumes, enquanto no

protestantismo podemos identificar o preconceito racial que ligava os índios

e negros africanos as raças que biblicamente poderiam ser destruídas e

subjugadas. Enquanto o português se adaptou ao Brasil devido à

plasticidade e à falta de orgulho de raça, e também por causa da sua língua

e religião que lhes aproximava dos nativos e negros, evidenciando a

mestiçagem que por hora lhes garantiu a construção de uma pátria fora do

lar original, ao holandês a história reservou o insucesso da experiência no

Brasil, pois, entre outras coisas, não contavam com as vantagens das

características intrínsecas aos portugueses e não houve disposição para

adquiri-las.

No terceiro capítulo, Sérgio Buarque de Holanda analisa o legado

do nosso passado colonial e seus desdobramentos até a abolição,

considerada pelo autor como sendo o marco divisório entre o mundo rural

e o mundo urbano. Antes da abolição, a vida política, pública e social do

nosso país era mantida pela moral das famílias rurais coloniais, segundo o

autor:

O quadro familiar tornava-se, assim, tão poderoso e exigente que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia desta organização compacta, única, intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em

191HOLANDA, 1995, p.65.

156

laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades192.

Na teoria do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, a

família patriarcal guardava a tradição personalista e aventureira herdada

dos colonizadores portugueses, e tornava essas tradições características

marcantes também na sociedade brasileira. Como bem observou Brasílio

Sallum Jr. (1999) na sua análise de Raízes do Brasil, mesmo com a ascensão

dos centros urbanos, as principais ocupações citadinas acabavam sendo

preenchidas por donos de engenhos, lavradores e descendentes dessas

famílias rurais, assim, a mentalidade da “casa-grande” também dominava as

cidades.

O fragmento citado destaca que a lógica da mentalidade da casa-

grande prevalecia em diferentes instâncias. Reforçando um pouco mais seu

pensamento, Sérgio prossegue comparando os títulos de nobreza com o

anel de grau e a carta de bacharel. Segundo ele são exemplos da

permanência da mentalidade senhorial:

Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel podem equivaler a autênticos brasões de nobreza. Aliás, o exercício dessas qualidades que ocupam a inteligência sem ocupar os braços tinha sido expressamente considerado, já em outras épocas, como pertinente aos homens nobres e livres, de onde, segundo parece, o nome de liberais dado a determinadas artes, e,

192HOLANDA, 1995, p.82.

157

oposição às mecânicas, que pertencem às classes servis193.

Da maneira como expus o texto de Raízes do Brasil até o

momento, nota-se que a narrativa construída por Holanda esteve centrada

na constatação dos aspectos problemáticos do passado da sociedade

brasileira. É possível perceber que o autor não escondeu ou mascarou

durante a elaboração de seu texto os problemas brasileiros e a origem deles

que, segundo o autor, em sua maioria remetem a forma pela qual a nossa

colonização ocorreu. Por meio da análise histórica, Holanda identificou as

características da sociedade ibérica, explicou como essas características

foram formadas e a maneira como essa cultura chegou até nós.

A partir dessa perspectiva analítica pode-se afirmar que a

narrativa produzida por Holanda apesar de estar centrada nos elementos da

nossa nacionalidade e história, não mascarou a realidade do passado, não

contém saudosismo e ainda apresentou um tom crítico em relação aos

problemas presentes na sociedade brasileira analisada por ele. Acredito que

a principal preocupação foi apresentar os problemas de nossa formação

histórica com a intenção de contribuir para superar esse passado e essas

características. O autor parece ter a esperança de que o povo brasileiro se

torne uma espécie de “herói” superando os problemas históricos e

construindo uma nação verdadeiramente moderna e democrática. Claro

que, como veremos mais tarde, o povo brasileiro tem "defeitos", um deles é

a informalidade extrema derivada da sua cordialidade que impede a

burocracia necessária para o bom funcionamento da democracia. Devido a

isso, escolhi classificar o enredo de Raízes do Brasil como um romance do

tipo crítico.

193HOLANDA, 1995, p.83

158

Analisando agora alguns trechos da obra Visão do Paraíso, o

enredo predominante é também o romanesco. Nesta obra, Sérgio Buarque

de Holanda colocou os portugueses em vantagem sobre as demais nações

colonizadores, especialmente a espanhola, em virtude do seu realismo e

das suas atenuações plausíveis. Para ele, além da plasticidade já destacada

por sua obra de estreia, o gosto reduzido pela imaginação e pelo misterioso

seriam características portuguesas capazes de lhes dar vantagem na

colonização e lhe garantir o sucesso da empreitada.

Ao longo de todo o texto de Visão do Paraíso é possível perceber

o elogio feito por Sérgio ao navegadores portugueses em vários capítulos. O

autor destaca principalmente a maneira como eles não se deixaram guiar

no período da conquista pelo “mundo lendário nascido nas conquistas

castelhanas e que suscita eldorados, amazonas, serras de prata, lagoas

mágicas, fontes da juventude”194.

O primeiro capítulo inicia destacando que as narrativas

portuguesas de viagens não apresentam a característica comum a esse tipo

de literatura que é presença do maravilhoso e do mistério, como está no

trecho abaixo:

O gosto da maravilha e o mistério, quase inseparável da literatura de viagens na era dos grandes descobrimentos marítimos, ocupa espaço singularmente reduzido nos escritos quinhentistas dos portugueses sobre o Novo Mundo. Ou porque a longa prática das navegações do Mar Oceano e o assíduo trato das terras e gentes estranhas já tivesses amortecido neles a sensibilidade para o exótico, ou porque o fascínio do Oriente ainda absorvesse em demasia os seus cuidados, sem deixar margem a maiores surpresas, a verdade é que não os inquietam, aqui, os

194HOLANDA, 2010, p. 202.

159

extraordinários portentos, nem a esperança deles195.

Ainda no primeiro capítulo, Sérgio explica que a experiência regia

a noção de mundo dos escritores e marinheiros portugueses. A atmosfera

mágica tornava-se rarefeita quando se entrava na América lusitana, de

acordo com a análise do autor. Ao contrário da maioria dos povos

navegadores, os portugueses pouco contribuíram para a formação dos

chamados mitos da conquista e da geografia fantástica do Renascimento,

até mesmo nas suas cartas náuticas os topônimos antiquados ou

imaginários às vezes adotados eram logo corrigidos ou suprimidos

conforme o caso assim que alguma experiência os forçasse a isso196.

Na verdade a fantasia era tão comedida entre os portugueses

que Sérgio Buarque de Holanda chegou a chamar os navegadores lusitanos

de "exorcistas" por desvendarem as ideias míticas sobre as terras

conquistas, como está descrito no trecho selecionado abaixo:

A exploração pelos portugueses da costa ocidental africana e, depois, dos distantes mares e terras do Oriente poderia assimilar-se, de certo modo, a uma vasta empresa exorcística. Dos demônios e fantasmas que, através de milênios, tinham povoado aqueles mundos remotos, sua passagem vai deixar, se tanto, alguma vaga ou fugaz lembrança, em que as invenções mais delirantes só aparecem depois de filtradas pelas malhas de um comedido bom-senso197.

Em contraste com o bom-senso e o realismo dos portugueses,

195 HOLANDA, 2010, p. 35. 196 Ibidem p. 41. 197 Ibidem, p. 48.

160

Sérgio Buarque de Holanda apresentou em Visão do Paraíso o navegador

Colombo e os outros espanhóis cujo sonho de riquezas fabulosas e a crença

no paraíso terrestre os levaram muitas vezes a elaborar descrições das

terras americanas recuperando inclusive lendas descritas na literatura

medieval sobre as virtudes sobrenaturais das gemas encontradas,

especialmente a esmeralda, que entre as pedras preciosas era a de maior

estima por ser associada as gemas tipicamente paradisíacas198.

Outra lenda antiga que também circulava entre os navegadores

espanhóis era a fonte da juventude, que desde a Antiguidade aguçava a

curiosidade e a ambição dos aventureiros, como explicou Holanda no

segundo capítulo do livro. O trecho a seguir ressalta que mesmo o mais

prático dos companheiros de Colombo sucumbiu a aventura de procurar tal

fonte de águas:

Era de esperar, depois das desvairadas especulações de Colombo e outros navegantes, que também a fonte de Juventa, constante apêndice do Paraíso Terreal, achasse algum meio de introduzir-se na geografia visionária do Novo Mundo. A um dos companheiros do genovês em sua segunda viagem, homem aparentemente prático, circunspecto, experimentado, alheio à imaginação desatinada de muitos conquistadores, de crueza notável no trato dos naturais, que perseguia sem tréguas, ajudado de ferozes mastins como o célebre Bezerrillo, tocou a aventura extraordinária de sair em busca daquelas águas de tamanha virtude199.

As diferenças entre portugueses e espanhóis estavam também

na adaptação deles ao diferente. O clima ameno, a vegetação exuberante

198HOLANDA, 2010, p. 124. 199Ibidem, p. 60.

161

de verde perene, os animais exóticos e as populações encontradas na

América causavam estranhamento e admiração por parte dos navegadores

da Espanha, que depois do longo tempo nas embarcações e das privações a

bordo, exageram no uso da imaginação e nas descrições do lugar do

desembarque. Já os portugueses experimentados na miscigenação e

cotidianamente acostumados a ver o exótico nas terras conquistadas na

África e na Índia, ao chegarem na América, o diferente já não causava

espanto aos olhos, como argumentou Holanda no fragmento seguinte do

quarto capítulo da sua obra:

Ainda que fossem muitas vezes sensíveis à atração da fantasia e do milagre, é principalmente o imediato, o cotidiano, que recebem todos os cuidados e atenções desses portugueses do Quinhentos. O trato das terras e coisas estranhas, se não uma natural aquiescência e, por isso, uma quase indiferença ao que discrepa do usual, parecem ter provocado certa apatia da imaginação, de sorte que para eles até o incomum parece fazer-se prontamente familiar, e os monstros exóticos logo entram na rotina diária. Não estaria aqui o segredo da facilidade extrema com que se adaptam a climas, países e raças diferentes?200

Em virtude dessa maneira pela qual Sérgio Buarque de Holanda

destacou os portugueses no processo de expansão marítima e evidenciou o

quão amadurecidos estavam eles em relação aos navegadores espanhóis,

identifiquei o enredo estabelecido em VisãodoParaíso como romanesco e o

português como o protagonista dessa narrativa.

Portanto em Raízes do Brasil e em Visão do Paraíso há uma

continuidade em relação ao tipo de enredamento. A narrativa romanesca 200HOLANDA, 2010, p. 167-168.

162

foi a escolha de Holanda na elaboração dos seus textos em que uma

imagem heroica foi construída. No seu livro de estreia o povo brasileiro é o

herói posto para vencer as raízes da sua história que impedia o

desenvolvimento da nação. No livro da sua maturidade o herói é o

português que venceu a mentalidade dos navegadores de sua época e

garantiu o sucesso de seu empreendimento marítimo nos séculos XV e XVI.

Este mesmo estilo de enredamento pode ser identificado

também nas demais obras do autor destacadas no capítulo anterior. Em

Monções e Caminhos e Fronteiras o sertanista paulista foi o herói que

através das monções e das bandeiras garantiu a expansão e o

fortalecimento das fronteiras geográficas e culturais da nação brasileira. O

mérito de aproveitar os conhecimentos indígenas para plantar, reconhecer

plantas medicinais, utilizar trilhas de animais, construir e utilizar canoas, se

adaptar rapidamente ao novo ambiente dominando-o e resistindo ao seus

desafios foram as características heroicas destacadas por Holanda nestas

duas obras. Em Do Império à República o enredo romanesco predominou

em virtude do destaque dado ao papel da personalidade de D. Pedro II e ao

seu poder, que segundo Holanda ninguém mais tinha no mesmo grau e

ninguém mais exerceu ao longo da nossa história.

Por isso em relação ao modo de enredo pode-se dizer que há

uma predileção do autor em seus textos de História pelo estilo romanesco.

Em suas obras Sérgio Buarque de Holanda destacou vários protagonistas,

ora o português, ora o brasileiro, ora o paulista, demonstrando que, mesmo

ao tornar o seu trabalho de História cada vez mais especializado no decorrer

da sua formação e atuação como professor e pesquisador, a sua opção por

este tipo de enredamento permaneceu em voga.

163

4.2 UMA ARGUMENTAÇÃO CONTEXTUALISTA E ORGANICISTA

A explicação dos motivos pelos quais os fatos narrados

aconteceram de determinada maneira se pauta em generalizações que

tendem a integrar ou a dispersar os eventos apresentados no enredamento,

e é exatamente isso que confere ao relato histórico diferentes formatos

argumentativos. Segundo Hayden White é possível distinguir quatro tipos

de argumentação: formista; organicista; contextualista e mecanicista.

Em minha análise pude identificar que Sérgio Buarque de

Holanda optou tanto Raízes do Brasil quanto Visão do Paraíso por uma

combinação de dois modos de argumentação. Em alguns momentos

Holanda fez uso de um argumento contextualista e em outras partes ele

estabeleceu um argumento organicista.

Na teoria de White, os contextualistas são aqueles que insistem

que o que aconteceu no campo pode ser explicado pela especificação das

inter-relações funcionais existentes entre os agentes e agências que

ocupavam o campo num dado momento201. O contextualista, depois de

isolar qualquer elemento do campo histórico como assunto de estudo,

passa a escolher os "fios" que o ligam a diferentes áreas do contexto.

Segundo White, esses “fios” são, depois de identificados, esticados no

espaço natural e social circundante dentro do qual ocorreu o evento, e no

tempo com a finalidade de determinar seu impacto e influência sobre os

eventos subseqüentes.

A fim de explicar um pouco mais o funcionamento da

organização dos argumentos de uma narrativa na perspectiva

contextualista, Hayden White apontou que esta estratégia estabelece certa

sincronia do processo histórico, como vemos no fragmento de texto abaixo:

201WHITE, 2008, p. 33.

164

O “fluxo” do tempo histórico é encarado pelo contextualista como um movimento ondulatório em que certas fases ou culminâncias são consideradas intrinsecamente mais significativas do que outras. A operação de estender os fios de ocorrência de modo a permitir o discernimento de tendências no processo sugere a possibilidade de uma narrativa em que as imagens de desenvolvimento e evolução pudessem predominar. Mas, na realidade, as estratégias explicativas contextualistas inclinam-se mais para as representações sincrônicas de segmentos ou seções do processo, certos cortes, por assim dizer, a contrapelo do tempo202.

Ao longo da leitura analítica de Raízes do Brasil é possível notar

que Sérgio Buarque de Holanda elegeu um elemento central em sua

análise: a formação da sociedade brasileira. A partir deste elemento as

problematizações e discussões foram feitas pelo autor no sentido de

compreender todo o contexto histórico, apresentando as ligações com as

características portuguesas, estabelecendo comparações com as

características espanholas, apontando hipóteses para forma como a

colonização ocorreu, como também destacando a maneira pelo qual a

formação da sociedade brasileira tem ocorrido. Ou seja, nesta obra Holanda

traçou um trama de elementos interligados pelo contexto da colonização do

Brasil. Nesse sentido a narrativa de Raízes do Brasil apresenta o formato

argumentativo contextualista.

Em Visão do Paraíso o elemento central em análise é a ideia em

voga entre os europeus da existência de um paraíso terrestre. Depois de

isolar este elemento como seu assunto de estudo, Holanda estabeleceu as

ligações de tal ideia com o contexto bíblico, com a mentalidade da Idade

Média e com várias tradições da Antiguidade e muitos textos, inclusive

pagãos. Sua tentativa parece ter sido a de mapear todo o contexto de tal 202WHITE, 2008, p. 34.

165

ideia no sentido conhecer o grau de influência dela na expansão marítima.

Dessa forma, a construção argumentativa nesta obra também é

contextualista.

Por outro lado, como o título do seu livro de estreia sugere,

Sérgio Buarque de Holanda estava interessado em investigar a origem da

nação brasileira. Raízes do Brasil é um relato dos princípios que formaram

esta nação. Este livro sugere que a formação do povo brasileiro tem origem

na maneira de ser do português. É uma narrativa integradora que tende a

mostrar a formação brasileira como parte de um processo maior chamado

colonização do Brasil, que por sua vez também faz parte de outro processo

denominado de expansão marítima europeia. Segundo Hayden White, esse

tipo de argumentação é organicista.

Como disse White, "o historiador organicista tenderá a ser regido

pelo desejo de ver entidades individuais como componentes de processos

que se agregam em totalidades que são maiores ou qualitativamente

diferentes da soma de suas partes"203. Ele também explicou que os

historiadores que elaboram explicações organicistas tendem a ver os

processos individuais agregados em outros processos maiores, sem buscar

leis gerais, procuram formular os princípios e as idéias que informam esses

processos.

Também em Visão do Paraíso há a presença de argumentos

organicistas. Holanda buscou em algumas partes do seu texto entender a

relação entre os motivos edênicos e a colonização do Brasil. Para isso ele

focou a expansão marítima como um processo anterior e maior no qual a

colonização brasileira se inseria e, depois disso, ainda escreveu sobre o

contexto do Renascimento no qual a expansão marítima se inseria. Ou seja,

Holanda trabalhou em seu texto com vários tipos de componentes

203WHITE, 2008, p. 30.

166

individuais mais que estavam agregados a processos maiores e isto é uma

construção argumentativa organicista.

A seguir está a análise de diferentes trechos de Raízes do Brasil e

depois de Visão do Paraíso com o intuito de perceber a presença das duas

formas argumentativas combinadas.

O foco do quarto capítulo de Raízes do Brasil foi apontar as

singularidades e as diferenças entre a colonização portuguesa e a

colonização espanhola. Para Sérgio Buarque de Holanda, existem contrastes

entre as duas colonizações no tocante a forma de efetivar a conquista da

terra. Enquanto os espanhóis caracterizaram-se pela construção de cidades,

núcleos de povoação estáveis e bem ordenados para assegurar o

predomínio militar, político e econômico, os portugueses prezaram pela

vida rural, a qual concordava bem com o espírito português que preferiu

não trazer:

normas imperativas e absolutas, que cedeu todas as vezes em que as conveniências imediatas aconselharam a ceder, que cuidou menos em construir, planejar ou plantar alicerces, do que em feitorizar um riqueza fácil e quase ao alcance da mão204.

Segundo Holanda, a colonização espanhola, diferentemente da

colonização portuguesa, garantia seu predomínio mediante a criação de

grandes núcleos de povoação estáveis e bem ordenados, que começavam a

ser construídos pela chamada praça maior, cumprindo o mesmo papel do

cardo e do decumanus nas cidades romanas. De acordo com Holanda,

204HOLANDA, 1995, p. 95.

167

existiam ordenanças e recomendações explícitas para que os centros de

povoação fossem edificados preferindo as terras do interior do continente e

as regiões de planaltos, nos quais a altitude permitiria aos europeus,

inclusive, desfrutar um clima próximo ao de seu lugar de origem:

Os grandes centros de povoação que edificaram os espanhóis no Novo Mundo estão situados precisamente nesses lugares onde a altitude permite aos europeus, mesmo na zona tórrida, desfrutar um clima semelhante ao que lhe é habitual em seu país. Ao contrário da colonização portuguesa, que foi antes de tudo litorânea e tropical, a castelhana parece fugir deliberadamente na marinha, preferindo as terras do interior e os planaltos. Existem, aliás, nas ordenanças para o descobrimento e povoação, recomendações explícitas nesse sentido. Não se escolham, diz o legislador, sítios para povoação em lugares marítimos, devido ao perigo que há neles de corsários e por não serem tão sadios, e porque a gente desses lugares não se aplica em lavrar e em cultivar a terra, nem se formam tão bem os costumes205.

Em contrapartida da colonização espanhola, segundo constatou

Holanda, a colonização portuguesa foi litorânea, tropical, irregular. Na

verdade havia por parte dos portugueses uma receio de que a ocupação do

interior pudesse despovoar a marinha. Segundo Holanda esse tipo de

mentalidade acabou influenciando muito toda a sociedade:

A influência dessa colonização litorânea, que praticavam, de preferência, os portugueses, ainda persiste até aos nossos dias. Quando hoje se fala e “interior”, pensa-se, como no século XVI, em região escassamente povoada e

205HOLANDA, 1995, p. 99.

168

apenas atingida pela cultura urbana. A obra das bandeiras paulistas não pode ser bem compreendida em toda a sua extensão, se a não destacarmos um pouco do esforço português, como um empreendimento que encontra em si mesmo sua explicação, embora ainda ouse desfazer-se de seus vínculos com a metrópole europeia, e que, desafiando todas as leis e todos os perigos, vai dar ao Brasil sua atual silhueta geográfica206.

Enquanto o traçado dos centros urbanos na América espanhola

não se deixava modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo, antes as

suas ruas eram construídas de forma retilíneas, as cidades da América

portuguesa tinham casas em tal desalinho, que o primeiro governador-geral

do Brasil se queixava de não poder murar as vilas, segundo Holanda.

O trecho abaixo reflete sobre as cidades construídas pelos

portugueses no continente americano:

A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” - palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como “saudade”207.

Sérgio Buarque de Holanda explicou ainda que as evidentes

diferenças entre as colonizações portuguesa e espanhola centram-se nas

metáforas do “semeador” e do “ladrilhador”. Segundo Holanda, o

português segue a ordem do semeador por se ajustar às circunstâncias,

206HOLANDA, 1995, p. 100. 207Ibidem, p. 110.

169

sem querer dominar ou modificar a ordem natural. Já o espanhol, segue a

ordem do ladrilhador porque se impõe e enfrenta com ousadia os

obstáculos.

De maneira geral, a expansão colonizadora, temática do quarto

capítulo que analisamos, perpassa toda a narrativa de Raízes do Brasil. Ao

longo deste quarto capítulo, o autor estabeleceu comparações entre os

portugueses e os espanhóis, de forma provocativa analisou as formas de

ocupação territorial e expôs as implicações dos valores sociais e espirituais

de ambos.

Sobre este quarto capítulo, José Carlos Reis analisou o seguinte:

Sérgio Buarque de Holanda surpreende nessa altura da sua argumentação. Ele falara, no início, de uma identidade ibérica, uniforme e homogênea. Agora, comparando as colonizações portuguesa e espanhola, ele distingue o que antes apresentara unido. Entretanto, por outro lado, não haveria razão para surpresa, pois o seu método é o de identificar as diferenças, as singularidades. Primeiro, ele diferenciou a península Ibérica no contexto europeu; agora, ele a diferencia internamente, comparando as culturas portuguesa e espanhola. A expressão que cada uma deu à sua colonização revelou muito do seu caráter particular. O tipo de colonização que empreenderam serviu para a melhor diferenciação e definição dos espíritos português e espanhol208.

A análise de Raízes até aqui demostra que a escolha

argumentativa de Holanda passou pela eleição de uma temática (a

formação do Brasil), pela comparação dos elementos do mesmo contexto

histórico (o português e o espanhol) e por apontamentos sistemáticos sobre

208REIS, 2007, p. 131.

170

a forma como ocorreu a colonização. Na terminologia utilizada por Hayden

White, esse tipo de construção argumentativa que Holanda optou neste

texto pode ser identificada como sendo contextualista.

Lançando mão da análise que White realizou sobre Burckhardt

pode-se compreender melhor a opção que fizemos em relação a

classificação da narrativa de Raízes do Brasil como contextualista. Conforme

constatou Hayden White:

Burckhardt era um contextualista; dava a entender que os historiadores “explicam” um dado evento inserindo-o na rica trama das individualidades igualmente discrimináveis que ocupam esse espaço histórico circundante. Contestava tanto a possibilidade de inferir leis do estudo da história quanto a desejabilidade de submetê-la à análise tipológica. Para ele, uma dada área de ocorrência histórica representava um campo de acontecimento que era mais ou menos rico no esplendor de sua “trama” e mais ou menos suscetível de representação impressionista209.

Assim como Burckhardt foi classificado como contextualista por

White, classifico Holanda como contextualista em sua forma de organização

argumentativa em Raízes do Brasil exatamente por que ele também

explicou determinados eventos inserindo tais eventos em uma rica trama

de individualidades presentes no contexto estudado. No caso, como

apresentamos ao longo deste item o evento da colonização do Brasil foi

explicada por Holanda pela comparação com as especificidades

portuguesas e espanholas no contexto das expansões marítimas e das

ocupações territoriais do século XV e XVI, reforçando a presença do

contextualismo.

209WHITE, 2008, p. 24-43.

171

Da maneira como analiso, além do contextualismo existem os

argumentos organicistas que também estão presentes no texto, porque

mesmo quando Sérgio Buarque de Holanda procurou descrever

cuidadosamente as raízes da nossa história, explicando a ocupação da terra,

a religião, a língua e a construção da sociedade, ele fez isso com a intenção

de compreender um processo maior chamado colonização do Brasil, que

por sua vez está integrado a um processo maior ainda, que foi a expansão

marítima europeia, como é possível perceber no trecho seguinte no qual o

autor nos liga a península ibérica e especialmente a Portugal:

No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa à península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma210.

Como se vê, ao procurar as "raízes" do processo histórico

brasileiro Sérgio Buarque de Holanda identificou uma alma comum entre

nós e a península ibérica, e assim, ao compreender os ibéricos,

especialmente os portugueses, ele também estava nos compreendendo.

Segundo White, este tipo de estratégia argumentativa é chamada

organicista, pois destaca a natureza integrativa do processo histórico.

Em relação a obra Visão do Paraíso, a mesma combinação

argumentativa acontece. Em vários momentos deste texto Sérgio Buarque

de Holanda esteve empenhado em explicar a rica trama na qual a ideia de

210HOLANDA, 1995, p. 40.

172

paraíso terrestre se encaixava, isto é uma construção argumentativa

contextualista. Porém, está também presente em Visão do Paraíso o modo

organicista de argumentação especificamente nas partes em que Holanda

construiu sua explicação sobre o Renascimento português.

Neste trabalho ele estabeleceu a comparação de textos da

tradição bíblica e também da tradição pagã, investigou as crônicas de

viagens e destacou vários outros tipos de fontes documentais, como

poemas, mapas e pinturas, que retratavam as visões idílicas do continente

americano, ou seja, estabeleceu os “fios” que ligavam a ideia de paraíso a

vários contextos, como é possível perceber no trecho seguinte em que

textos de diferentes períodos são citados por possuírem a tópica do Éden:

Repetem-se até a monotonia os clichês consagrados desse paraíso que se situa à orla oriental do mundo, e não apenas nas obras de erudição. Em certa passagem lembrada por George Boas, Hugo de Saint-Victor, um dos que pintam o Éden como lugar sobre cuja existência física não pode pairar dúvida, mantém-se fiel ao esquema do pseudo-Lactâncio e de Isidoro. [...] No mesmo século e no seguinte, que correspondem à grande era das lendárias viagens ao Paraíso, começará a enriquecer-se o tema de novas maravilhas, com as notícias sobre o império do Preste João da Índia, cuja carta apócrifa entra a circular na Europa aproximadamente em 1165211.

Os argumentos contextualistas se tornam mais evidentes no

texto especialmente quando Holanda explica em sua tese que durante a

Idade Média se popularizou muitas obras com a temática do paraíso, e que

elas refletiam a permanência de mitos diversos da Antiguidade sobre as

ilhas afortunadas como está descrito abaixo: 211HOLANDA, 2010, p. 254.

173

A transladação para o Atlântico de tão miríficos cenários, já prenunciada com as tradições pagãs das ilhas Afortunadas ou do jardim das Hespérides, e por elas de algum modo fertilizada, já ganhara alento, por sua vez, quando passaram a engastar-se na mitologia céltica, principalmente a irlandesa e gaélica, dando como resultado várias obras que alcançaram vasta popularidade durante toda a Idade Média212.

Em outro trecho da sua tese, Sérgio Buarque de Holanda

reforçou ainda mais como a ideia de paraíso ia além dos textos bíblicos do

Gênesis e estava presente também em textos pagãos. No trecho abaixo é

possível saber que, com pequenas diferenças, todos foram influenciados de

alguma forma por idéias idílicas, tanto gente simples e quanto gente letrada

acostumada com os atores da Antiguidade:

Essa psicose do maravilhoso não se impunha só à singeleza e a credulidade da gente popular. A ideia de que do outro lado do Mar Oceano se acharia, se não o verdadeiro Paraíso Terreal, sem dúvida um símile em tudo digno dele, perseguia, com pequenas diferenças, a todos os espíritos. A imagem daquele jardim fixada através dos tempos em formas rígidas, quase invariáveis, compêndio de concepção bíblicas e idealizações pagãs, não se podia separar da suspeita de que essa miragem devesse ganhar corpo num hemisfério ainda inexplorado, que os descobridores costumavam tingir da cor do sonho. E a suspeita conseguia impor-se até mesmo aos mais discretos e atilados, àqueles cujo espírito se formara no convívio assíduo com os autores da Antiguidade213.

212HOLANDA, 2010, p. 257. 213Ibidem, p. 273.

174

O método de identificar as diferenças e as singularidades de cada

contexto, que já estava presente em seu livro de estreia também

permaneceu em Visão do Paraíso. No sexto capítulo, que é dedicado a

demonstração de como entre os portugueses a noção da existência do Éden

era atenuada, há um trecho em que Holanda compara as terras

conquistadas pelos espanhóis e pelos portugueses quanto a presença de

narrativas fabulosas. Pode-se concluir da sua leitura que as terras

conquistadas no Novo Mudo pelos castelhanos estavam repletas de

elementos fantasiosos e temáticas edênicas, enquanto as terras tomadas

pelos portugueses no mesmo continente reservavam pouco lugar a imagem

do Éden:

De ilhas encantadas, fontes mágicas, terras de luzente metal, de homens e monstros discrepantes da ordem natural, de criações aprazíveis ou temerosas, com que os novelistas incessantemente deleitavam um público sequioso de gestos guerreiros e fantásticos sortilégios, rapidamente se foram povoando as conquistas de Castela. E não é menos flagrante aqui o contraste que se oferece entre elas e as regiões do mesmo continente destinadas à Coroa lusitana214.

Em outro momento da sua tese, Holanda explicou que esse

contraste entre os portugueses e os espanhóis na verdade não estava

localizado somente na influência das ideias edênicas sobre eles, porém em

como essas ideias eram amenizadas entre os lusitanos. Holanda criou o

termo "atenuação plausível" para se referir ao que ocorria com tais ideias

em solo português:

214HOLANDA, 2010, p. 203-204.

175

Em outras palavras, não se pode afirmar que participassem os portugueses, menos do que outros povos, daquela sedução universal. O provável, no entanto, é que os motivos edênicos facilmente se refrangiam entre eles, privando-se da primeira intensidade para chegarem ao que se pode chamar sua atenuação plausível.215

Até o momento os trechos selecionados indicam que as

temáticas edênicas, principal objeto do estudo de Sérgio Buarque de

Holanda nesta obra, podem ser ligadas a uma rica trama no contexto

europeu que envolve a cultura cristã, a cultura de navegação ibérica e a

cultura de povos não cristãos. No percurso da sua construção

argumentativa Holanda descreveu as singularidades desse contexto,

apresentou sua análise dos mais diversos tipos de textos, desde aqueles da

tradição bíblica e católica até aqueles escritos por autores da Antiguidade,

ele também se debruçou sobre as crônicas de viagens e sobre as diversas

lendas antigas sobre a existência do paraíso terreal. Seu foco foi também

diferenciar em minúcias os espanhóis e os portugueses. Todas essas

características se referem ao modo de argumentação contextualista.

Porém, o modo organicista de argumentação também foi

utilizado por Holanda na escrita da obra Visão do Paraíso especialmente

quando ele construiu sua explicação sobre o Renascimento português. Um

dos eixos desta obra é a discussão sobre a ideia de que a sucessão dos

períodos Idade Média e Renascimento representa mais uma continuidade

do que uma ruptura. Para Holanda a atitude do português na sua forma de

pensar e agir tinha uma proximidade maior da visão de mundo medieval do

que da visão moderna. O foco geral da sua tese foi entender o universo

mental que condicionou a visão do colonizador sobre o Brasil, para isso,

215HOLANDA, 2010, p. 355, grifo do autor.

176

Holanda percebeu a necessidade de compreender processos maiores como

a mentalidade do contexto do Renascimento. Em outras palavras, o autor

tratou de entidades individuais como componentes de processos que se

agregam a outros que são maiores e construiu assim uma argumentação

organicista.

O trecho selecionado abaixo indica esta construção de

argumentos. Nele Holanda argumentou que para entender de fato os

portugueses era preciso compreender o contexto do final da Idade Média,

em que o pedestre realismo já era presente inclusive na arte:

Nada fará melhor compreender tais homens, atentos, em regra geral, ao pormenor e ao episódico, avessos, quase sempre, a induções audaciosas e delirantes imaginações, do que lembrar, em contraste com o idealismo, com a fantasia e ainda com o bom senso de unidade renascentistas, o pedestre "realismo" e o particularismo próprios da arte medieval, principalmente de fins da Idade Média. Arte em que até as figuras de anjos parecem renunciar ao voo, contentando-se com gestos mais plausíveis e tímidos (o caminhar, por exemplo, sobre pequenas nuvens, que lhe serviam de sustentáculo, como se fossem formas corpóreas), e onde o milagroso s exprime através de recursos mais convincentes que as auréolas e nimbos, tão familiares a pintores de outras épocas216.

Em outro trecho na mesma página Sérgio Buarque de Holanda

trouxe o seu questionamento sobre se as características portuguesas seriam

na verdade medievais ao invés de modernas:

216HOLANDA, 2010, p. 36.

177

O que, ao primeiro relance, pode passar por uma característica “moderna” daqueles escritores e viajantes lusitanos – sua adesão ao real e ao imediato, sua capacidade, às vezes, de meticulosa observação, animada, quando muito, de algum interesse pragmático – não se relacionaria, ao contrário, com um tipo de mentalidade já arcaizante na sua época, ainda submisso a padrões longamente ultrapassados pela tendência que governam o pensamento dos humanistas e, em verdade, de todo o Renascimento?217

Neste trecho da obra em que Holanda quis localizar a visão de

mundo dos portugueses no contexto medieval, ele lançou mão de

argumentos organicistas pois a sua estratégia parece ter sido a de integrar

peças menores (forma que os portugueses viam o Brasil) em organismos

maiores (a mentalidade medieval).

Da maneira como analisei, tanto a sua obra de estreia quanto a

sua obra da maturidade trouxeram uma combinação de dois modos de

explicação por argumentação formal: contextualista e organicista.

Novamente vale dizer sobre a linha de continuidade entre Raízes do Brasil e

Visão do Paraíso. Mesmo que a pesquisa histórica desenvolvida por

Holanda tenha se adensado no que se refere ao levantamento das fontes e

ao diálogo com as discussões historiográficas, predominou nestas obras a

mesma forma de enredamento, como já foi visto, e a mesma forma de

argumentação como foi demonstrado aqui.

Em comparação com as outras obras de história do autor

analisadas no capítulo anterior, o modo de argumentação não permaneceu

o mesmo. As Monções, Caminhos e Fronteiras e Do Império à República

apresentaram a organização argumentativa denominada por Hayden White

de formista, em virtude de estarem centradas na descrição, no

217HOLANDA, 2010, p. 36.

178

detalhamento e nas particularidades, já as obras Raízes do Brasil e Visão do

Paraíso apresentaram, como visto acima, uma combinação de dois modos

de argumentação, o contextualista e o organicista, devido a importância que

Sérgio Buarque de Holanda concedeu ao contexto e a entidades e processo

maiores e anteriores na sua explicação histórica.

4.3 A COMBINAÇÃO DO LIBERAL E DO RADICAL

Para Hayden White, o modo explicação por implicação ideológica

é um nível do discurso narrativo em que se localiza o elemento político

assumido pelo historiador em relação às condições de seu mundo

contemporâneo. Neste caso ideologia seria um conjunto de prescrições

para a tomada de posição no mundo.

Como foi explicado no primeiro capítulo, Hayden White apontou

a presença de quatro modalidades de implicação ideológica no trabalho

historiográfico: anarquista, radical, conservador e liberal. Enquanto os

conservadores e os liberais são resistentes em acreditar nas mudanças

sociais, os radicais e os anarquistas apontam para as modificações

estruturais da sociedade. Se os conservadores tendem a ver as mudanças

sociais em analogia as mutações e adaptações biológicas, cujo ritmo é

natural e lento, os liberais sugerem o ritmo do “parlamento” para

ocorrerem as mudanças, enquanto para os radicais as mudanças são

iminentes, os anarquistas acreditam, por um ato de autocontrole e

autoconsciência, aniquilar as bases sobre as quais a situação vigente se

institui e simultaneamente erigir uma nova relação entre os indivíduos.

Na análise dos capítulos cinco e seis de Raízes do Brasil é possível

perceber qual é a implicação ideológica do posicionamento assumido por

Sérgio Buarque de Holanda durante a elaboração de sua narrativa. Nesses

179

capítulos intitulados respectivamente “O Homem Cordial” e “Novos

Tempos” o autor esteve centrado em demonstrar o que deveria mudar na

sociedade brasileira.

Da forma como eu analiso há a presença tanto da ideologia

radical quanto da liberal em Raízes. Sérgio Buarque de Holanda foi radical

quando escreveu sobre a necessidade urgente de mudança social e política.

Para ele, o povo brasileiro tinha que superar vários elementos do passado

colonial para construir uma nova história para o país. Porém, em relação ao

ritmo dessa mudança, o autor declarou que ela já está ocorrendo

lentamente desde a abolição da escravatura e estava se movendo para a

consolidação da democracia, assim, a partir deste ponto de vista Holanda

foi ideologicamente liberal.

Em relação a Visão do Paraíso o posicionamento ideológico

liberal predominou, especialmente quando Sérgio Buarque de Holanda

expõe a sua concepção de que entre a Idade Média e o Renascimento não

houve ruptura. Os argumentos dele estiveram na contramão da noção

dominante entre os historiadores da época e, na verdade, já apontava para

uma história das mentalidades, como destacou Laura de Mello e Souza em

seu posfácio agregado a edição feita pela Companhia das Letras em 2010:

Sérgio voltou-se para a análise de uma projeção mental, invertendo o pressuposto de que a economia e a sociedade constituíam instâncias privilegiadas de explicação. Acreditava que a compreensão de fenômenos próprios ao universo mental era decisiva para a compreensão do povo brasileiro e de sua história. Por isso, esteve na vanguarda do movimento historiográfico que, na década seguinte, conquistaria, a partir da França, adeptos

180

em todo o mundo: a história das mentalidades218.

A seguir apresento a análise de trechos das duas obras em

questão para justificar e demonstrar a escolha feita do tipo de ideologia

presente e atuante nestes textos de Holanda.

No quinto capítulo de Raízes,Holanda preocupou-se com as

consequências do patriarcalismo sobre o funcionamento das modernas

instituições societárias, principalmente o Estado. Segundo o nosso autor,

aquele que cresceu sob o domínio patriarcal dificilmente consegue

diferenciar o domínio público do domínio privado, na verdade, no Brasil,

sempre predominou nas áreas públicas o modelo de relações típicos da vida

doméstica, como também as relações de parentesco e os laços afetivos.

Sobre isso Holanda escreveu:

Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família – e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal – tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aqueles que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos219.

Ainda neste quinto capítulo, Sérgio Buarque de Holanda

218SOUZA, Laura de Mello e. Posfácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 545. 219HOLANDA, 1995, p. 144.

181

elaborou a sua tese da cordialidade. Para ele, o domínio do ruralismo e

patriarcalismo produziram o homem cordial, aquele que é “hospitaleiro ou

agressivo, amigável ou hostil, generoso ou mesquinho, amigo eterno ou

inimigo terrível, dependendo de pequenos detalhes da relação pessoal”220

(REIS, 2007: 134). Traço definidor do caráter brasileiro, a cordialidade não se

refere a boas maneiras ou a civilidade, Holanda registrou que:

A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam com efeito, um traço marcante do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. (...) Nossa forma ordinárias de convívio é, no fundo, justamente o contrário da polidez221.

Para o nosso autor que utiliza a expressão cunhada pelo escritor

e poeta Ribeiro Couto, o homem cordial não esconde suas emoções, tem

aversão ao ritualismo social, e como consta:

Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio familiar. A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. E isso é tanto mais específico, quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, tão próximos de nós

220REIS, 2007, p. 134. 221HOLANDA, 1995, p. 146-147.

182

em tantos aspectos, aos títulos e sinais de reverência222.

Ainda sobre a tese da cordialidade, ela é uma singularidade

brasileira, é uma tentativa de trazer para o plano societário o tipo de

sociabilidade da família patriarcal. A forma da linguagem em que se tornou

comum o uso da terminação “inho”223, a expressão religiosa, a recusa a

hierarquias e a procura de intimidade nas relações em detrimento da

autoridade são exemplos demonstrados por nosso Holanda em sua obra

que evidenciam a cordialidade.

Abaixo selecionamos dois fragmentos de entrevistas concedidas

em 2006 para a Revista do Instituto Humanistas Unisinos, que publicou uma

edição especial em comemoração aos setenta anos da publicação da obra

Raízes do Brasil. Ambos os fragmentos referem-se a posicionamentos

discordantes sobre o conceito de homem cordial. O primeiro trata da

opinião do historiador Salvadori de Decca, e o segundo fragmento refere-se

a opinião do sociólogo Robert Wegner.

O professor da Universidade Estadual de Campinas, Decca,

discorda que o homem cordial tenha existido. Para ele, a cordialidade criada

por Holanda é na verdade uma máscara que esconde formas de dominação

e exclusão224:

222HOLANDA, 1995, p. 148. 223Na observação analítica realizada por Sérgio Buarque de Holanda, o emprego dos diminutivos que serve para familiarizar mais com as pessoas ou os objetos, seria também mais uma evidência comprobatória da sua tese da cordialidade. Ver: HOLANDA, 1995, p.148. 224Além desse artigo na Revista da Unisinos, Edgar Decca escreveu sobre o assunto em outro texto. Ver DECCA, Edgar Salvadori. Ensaios de Cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda. IN: SCHÜLER, Fernando; AXT, Gunter (Org). Interpretes do Brasil: ensaios de cultura e identidade. Porto Alegre: Ed. Ates e Ofícios, 2004.

183

Lendo atentamente, hoje em dia, Raízes do Brasil, acho que o homem cordial morreu ou, talvez, nunca tenha existido. Quem sabe seja o maior dos mitos criados por essa obra de Sérgio Buarque: de que o brasileiro age movido mais pelo coração do que pela razão. Como se a espontaneidade fosse algo internalizado em todos nós. Acho que Sérgio Buarque pretendeu apaziguar um pouco o peso da dominação e a exclusão social no Brasil, deixando margem para que nos vejamos como personalidades mais condescendentes com o racismo, com a violência, com a desigualdade, porque no final da história, ricos e pobres, brancos e negros, poderão se entender e se abraçar em volta de uma roda de samba. A cordialidade é uma máscara que ainda utilizamos para esconder as nossas formas de dominação e de exclusão. Ao contrário do que lemos em Sérgio Buarque, o brasileiro não é cordial, no sentido de que ele age segundo o seu coração e as suas emoções. A violência, a apropriação privada dos bens públicos não são movidos pela cordialidade, mas pelo interesse, por motivações racionais, mesmo que elas sejam inapreensíveis para nós225.

O professor Robert Wegner apresenta uma visão discordando de

Decca. Para ele o homem cordial não foi criado como um elogio, mas sim

para destacar a dificuldade do brasileiro de agir sem o coração,

característica que impede o bom funcionamento da burocracia:

Certa vez, li uma reportagem em um jornal que tratava sobre violência. A chamada era mais ou menos assim: “Brasileiro deixou de ser cordial”. Acontece que cordial, no sentido dado por Sérgio Buarque de Holanda, não elimina a violência. A idéia da cordialidade se refere à pessoa que age segundo os impulsos do coração (cordis), sem nenhuma mediação da polidez. É um ser sem máscaras.

225DECCA, Edgar Salvadori. O homem cordial morreu ou, talvez, nunca tenha existido. Revista do Instituto HumanitasUnisinos On-Line. São Leopoldo, edição 205, 20 de novembro de 2006, p. 6.

184

Podemos achar isso bom e nos referimos a isso como espontaneidade, etc.. Acontece que a máscara, a polidez são necessárias para o funcionamento da burocracia adequadamente (...). Para a burocracia funcionar, suas regras impessoais devem valer para todos. (...)Como a idéia de homem cordial ficou famosa, muita gente acha que Sérgio Buarque disse que a cordialidade nunca acabaria e que ela era boa. Mas o autor é muito crítico ao “homem cordial”. A crítica principal é que, com homens cordiais, não se tem democracia, burocracia226.

De fato tenho mais a concordar com Wegner do que com Decca.

Holanda é crítico em relação ao homem cordial, cujas características não

tem a ver com boas maneiras e civilidade como ele mesmo explicou227, mas

com a dificuldade que temos de expandir nossas relações para além do

âmbito familiar. Sobre isso, Holanda escreveu que “a manifestação normal

do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo

de estabelecer intimidade”228 e depois citou o exemplo de um negociante

da Filadélfia que observou com espanto que no Brasil para conquistar um

freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo.

No início do sexto capítulo Holanda escreveu que “toda a nossa

conduta ordinária denuncia, com frequência, um apego singular aos valores

da personalidade configurada pelo recinto doméstico”229. Neste sexto

capítulo o autor retomou algumas observações já feitas nos capítulos

anteriores para então evidenciar que o apego aos valores da personalidade

explicam muitas características da nossa vida social em geral.

Para nosso autor, o apego aos valores da personalidade é a

explicação da preferência dos brasileiros pelas carreiras liberais – meios de

226WEGNER, 2006, p.11. 227HOLANDA, 1995, p. 147. 228Ibidem, p. 148. 229Ibidem, p. 155.

185

vida que dêem segurança sem exigir muito esforço pessoal, como certos

empregos públicos –, na verdade nunca houve aqui algo similar a uma ética

do trabalho, como entre os protestantes. Sobre isso Holanda escreveu:

O que importa salientar aqui é que a origem da sedução exercida pelas carreiras liberais vincula-se estritamente ao nosso apego quase exclusivo ao valores da personalidade. Daí, também, o fato de essa sedução sobreviver em um ambiente de vida material que já a comporta dificilmente. Não é outro, aliás, o motivo da ânsia pelos meios de vida definitivos, que dão segurança e estabilidade, exigido, ao mesmo tempo, um mínimo de esforço pessoal, de aplicação e sujeição da personalidade, como sucede tão frequentemente com certos empregos públicos230.

Neste capítulo, Sérgio Buarque de Holanda escreveu também

que a fragilidade da nossa vida intelectual é reflexo desse apego aos valores

da personalidade. Como analisou Brasílio Sallum Jr, os movimentos

intelectuais tinham na verdade uma função ornamental para diferenciar os

membros da nobreza:

Os movimentos intelectuais, assim, dissociam-se de qualquer atividade transformadora da realidade social; teriam, diversamente, uma função basicamente ornamental. Ao longo do processo de declínio do velho mundo rural e da velha nobreza dos senhores agrários, os sinais exteriores de vida intelectual – palavra fácil, amor exagerado aos livros, a adoção de teorias endossadas por nomes estrangeiros e difíceis – teriam servido de adorno identificador de uma nova nobreza, desta vez citadina,

230HOLANDA, 1995, p. 157.

186

uma aristocracia do espírito, do talento e das letras231.

Ainda neste sexto capítulo, Sérgio Buarque de Holanda fala

acerca da democracia brasileira, que para ele sempre foi um grande mal-

entendido, isso devido a aristocracia rural ter incorporado a democracia

para lhe garantir seus direitos e privilégios, usufruídos desde o Velho

Mundo. Sobre isso Holanda escreveu:

Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-se e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas232.

É possível perceber que os seis primeiros capítulos de Raízes do

Brasil, Sérgio Buarque de Holanda descreveu as origens de nosso país, falou

das continuidades, das heranças, dos comportamentos herdados, da

tradição. Na análise de José Carlos Reis, a cada passo do pensamento de

Holanda sobre o passado brasileiro, progressivamente, temos a noção de

que o mundo que o português criou não pode mais influenciar o presente e

o futuro do Brasil.

231SALLUM JR., Brasílio. Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas (Org). Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1999, p. 253. 232HOLANDA, 1995, p. 160.

187

O quinto e o sexto capítulo trouxeram uma reflexão maior acerca

dos elementos herdados que precisamos abrir mão para de fato

transformar a realidade brasileira. Desta forma, quando Sérgio Buarque de

Holanda destaca a necessidade de rompimento com certos elementos do

passado transparece a sua visão acerca da História, que envolve a ideia de

movimento e mudança.

Sobre isso, segundo José Carlo Reis, “ao escrever Raízes do Brasil,

Sérgio Buarque de Holanda pretendeu oferecer aos brasileiros a consciência

da revolução que o Brasil vivia, revelando-lhes de que mundo eles vinham e

a que mundo tendiam”233. De acordo com Reis, para Holanda os brasileiros

precisam conhecer toda a precariedade desse mundo criado pelos

portugueses e seu projeto social, para conseguir superar as suas raízes

ibéricas.

Em Raízes do Brasil a reflexão desapaixonada sobre passado

brasileiro sugere e orienta uma eminente ruptura com este passado. Desta

maneira, pode-se dizer que a ideologia presente na narrativa em análise é

radical. Essa afirmação analítica se baseia na forma como White

caracterizou o radicalismo. Segundo ele, a principal característica é acreditar

na necessidade de transformações estruturais visando construir a sociedade

sobre novas bases. Para White, os radicais “tendem a ser mais conscientes

do poder necessário para efetuar tais transformações, mais sensíveis à força

inercial de instituições herdadas, e portanto mais preocupados com o

provimento dos meios de realizar tais mudanças”234. Assim, por mais que

em Raízes do Brasil Holanda não tenha apresentado uma “receita” para a

transformação da sociedade brasileira, podemos concordar que a ideologia

radical predomina nas implicações da sua narrativa a medida em que sugere

233REIS, 2007, p. 135. 234WHITE, 2008, p. 39.

188

as contradições não resolvidas refletidas nas nossas estruturas e instituições

sociais e políticas.

No entanto, quando analiso o sétimo capítulo chamado "nossa

revolução", em que o ator falou sobre algumas mudanças que estão

acontecendo gradualmente na nossa história desde o fim da escravidão,

concluo que, de fato, a ideologia liberal também está presente no texto.

De acordo com Hayden White, para liberais as mudanças

ocorrem lentamente, mas de forma definitiva, no ritmo social do debate

parlamentar. Sérgio Buarque de Holanda começou o último capítulo de seu

livro destacando exatamente este caráter da revolução brasileira:

Se a data da Abolição marca no Brasil o fim da predomínio agrário, o quadro político instituído no ano seguinte quer responder à conveniência de forma adequada à nova composição social. Existe um elo secreto estabelecido entre esses dois acontecimentos e numerosos outros de um revolução lenta, mas segura e concertada, a única que, rigorosamente, temos experimentado em toda a nossa vida nacional235.

Neste último capítulo, Sérgio Buarque de Holanda, disse que já

estamos "testemunhando" nossa revolução, e essa revolução é uma

dissolução lenta do passado e dos traços da sociedade arcaica, como está o

trecho abaixo:

Se o processo revolucionário a que vamos assistindo, e cujas etapas mais importantes foram sugeridas nestas páginas, tem um significado claro, será este o da

235HOLANDA, 1995, p. 171.

189

dissolução lenta, posto que irrevogável, das sobrevivências arcaicas, que o nosso estatuto de país independente até hoje não conseguiu extirpar. Em palavras mais precisas, somente através de um processo semelhante teremos finalmente revogada a velha ordem colonial patriarcal, com todas as consequências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar.236

Assim, o foco do sétimo e último capítulo é a grande revolução

brasileira, uma revolução relativamente lenta que vem durando três quartos

de século até o momento da escrita Raízes do Brasil, processada sem

grande alarde, uma revolução cujo centro das mudanças são as cidades,

gradualmente permitindo a possibilidade de rompimento com a sociedade

rural, regida por privilégios, familiar e hereditária, para desenvolvermos a

sociedade urbana, propiciando a emergência das camadas oprimidas até

então.

Nessa revolução, que segundo Sérgio Buarque de Holanda não é

um fato restrito em um instante preciso, o autor destacou momentos

importantes como a abolição do tráfico e depois a abolição da escravidão,

que marcaram o fim do predomínio agrário e a proclamação da República

que, paulatinamente, acentuou a urbanização e trouxe novas instituições.

Outro fato relevante tratado pelo autor foi a conversão das

fazendas de açúcar em fazendas de café. Para Holanda,

O resultado é que o domínio agrário deixa, aos poucos, de ser uma baronia, para se aproximar, em muitos dos seus aspectos, de um centro de exploração industrial. É quando muito nesse sentido que se poderá falar do café como de uma “planta democrática”, para usar das expressões de Handelmann. O fazendeiro que se forma ao seu contato

236HOLANDA, 1995, p.180.

190

torna-se, no fundo, um tipo de citadino, mais do que rural, e um indivíduo para quem a propriedade agrícola constitui, em primeiro plano, meio de vida e só ocasionalmente local de residência ou recreio. As receitas de bem produzir não se herdam pela tradição e pelo convívio, através de gerações sucessivas, com as terras de plantio, mas são aprendidas, por vezes, nas escolas e nos livros237.

Ao tratar, de maneira enfática, sobre a tensão entre a vida

política e a vida social do Brasil, nosso autor argumentou que o Estado

republicano é distante da sociedade e mantém praticamente a mesma

estrutura existente antes de 1889, mesmo o governo forte instaurando no

conturbado contexto político de 1930 não foi capaz de superar o caráter

oligárquico de nosso Estado.

Segundo a teoria do pensamento de Holanda, para solucionar

substancialmente esta problemática da nossa política seria necessário uma

revolução vertical, na qual deveria haver a inclusão das camadas sociais

excluídas, ligando-as as classes superiores, deveria também romper com o

padrão oligárquico de poder, despersonalizar a democracia e conciliar o

homem cordial com as idéias da democracia liberal. Segundo Holanda,

haveríamos de esperar nascer uma forma verdadeiramente democrática de

sociedade organicamente das necessidades da sociedade brasileira, ao

invés de impor artificialmente tal sociedade.

Diante do que expomos até aqui, podemos concordar que Raízes

do Brasil se tornou um clássico da historiografia brasileira, entre outros

motivos, principalmente porque apresentou um debate fecundo sobre o

passado e o futuro do Brasil, transparecendo sua concepção inovadora da

história, como verificamos no fragmento abaixo, para Holanda,

237HOLANDA, 1995, p. 175.

191

A história não é permanente [...]. Ela é um conjunto de durações diferenciadas: o historiador realiza a descrição da mudança das sociedades humanas, pronuncia o humano no tempo, o que foi e não é mais. A identidade histórica não é constituída pelo congelamento do passado, por uma homogeneidade artificial. A identidade histórica é constituída em cada presente, em uma relação de recepção e recusa do passado e abertura e fechamento ao futuro238.

Ao ser perguntado sobre os aspectos em que Raízes do Brasil

apresentou avanços e também sobre quais seriam as limitações desta obra,

o sociólogo Robert Wegner respondeu que Sérgio Buarque de Holanda foi o

primeiro autor no Brasil a utilizar de maneira sistemática as teorias de Max

Weber, segundo ele, a partir desta obra de Holanda avançou a discussão

sobre a inexistência de um ética do trabalho e o uso do público para

interesses particulares. Para Wegner239, os limites de Raízes do Brasil é não

dar respostas definitivas. Segundo ele, aquele que procurar um programa

político definitivo não encontrará, pois esta obra não é como muitas do

período de 1920-1930 que apresentavam em suas conclusões um programa

ou modelo a ser seguido pelo país.

De fato o livro Raízes do Brasil não apresentou uma conclusão

convencional. Muitos leitores esperam encontrar neste último capítulo um

plano político que se possa seguir, mas Sérgio Buarque de Holanda só

completou a sua análise do passado brasileiro dizendo que algumas

mudanças têm ocorrido, então precisamos de avançar para finalmente

extinguir a velha sociedade. Sobre isto Holanda escreveu:

238REIS, 2007, p. 141. 239WEGNER, 2006.

192

A forma visível dessa revolução não será, talvez, o das convulsões catastróficas, que procuram transformar de um golpe mortal, e segundo preceitos de antemão formulados, os valores longamente estabelecidos. É possível que algumas das suas fases culminantes já tenham sido ultrapassadas, sem que possamos avaliar desde já sua importância transcendente. Estaríamos vivendo assim entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta para vir à luz240.

Devido a esta análise, podemos concluir que há evidências da

presença de duas ideologias do texto produzido por Holanda em Raízes do

Brasil. Há uma combinação da ideologia radical e da liberal. Sobre a

necessidade de uma mudança profunda, o autor é radical, ele falou da

necessidade de uma revolução. Em relação ao ritmo dessa revolução, ele é

liberal, porque o autor caracteriza a mudança como um lento processo.

Em Visão do Paraíso parece não haver a combinação destas duas

ideologias. A concepção liberal é predominante, pois em nenhum momento

o autor tratou de alguma ruptura ou mudança profunda, ao invés disso, ele

esteve empenhado em apontar a continuidade entre o período medieval e a

época do Renascimento. Sobre isso Holanda escreveu:

A noção de que existiria uma fratura radical entre a Idade Média e o Renascimento,[...] tende a ser superada em grande parte da moderna historiografia pela imagem de uma continuidade ininterrupta. Mas precisamente a teoria da continuidade vem reforçar a importância desses momentos que se diriam crepusculares, momentos, no caso, em que a tese da produtividade inexaurível, quase orgiástica, do homem e da Natureza é ainda, ou já é, sofreada por hesitações e titubeios241.

240HOLANDA, 1995, p. 180. 241HOLANDA, 2010, p. 279.

193

Boa parte do seu livro esteve dedicado na demonstração de

como a visão de mundo dos portugueses se diferenciava e se destacava por

ser mais realista e pouco adepta a fantasia e ao mistério. Segundo Holanda,

essas características muitas vezes se passam por moderna, este argumento

ainda era endossado pelo fato da precocidade da formação do Estado

Português. No entanto, elas estão ligadas a Idade Média como o próprio

autor explicou, devido ao que ele denominou de “continuidade

ininterrupta”. Para ele, se os navegadores e exploradores portugueses não

estiveram interessados na busca pelo Éden ou na busca de tesouros

espetaculares nas terras colonizadas por eles, era pela influência da

mentalidade medieval de que este mundo era passageiro, e assim não fazia

sentido buscar nele um paraíso. Segundo o autor, havia uma continuidade

entre a Idade Média e o Renascimento em virtude da permanências dessas

ideias. No trecho a seguir Holanda explica melhor o pensamento medieval

que os portugueses seguiam:

A Idade Média se achava tão afeita, com certeza, à noção de que o mundo presente é simples lugar de passagem, que a esperança de nele se encontrar algum porto seguro se tornara, ao cabo, irrelevante. A ruindade ou deterioração da Natureza, a miséria da terra, resgatava-se num divino plano de salvação que, por sua vez, não deixaria de valorizar, de algum modo, os próprios males e as misérias do presente.242

Em outro trecho da sua obra Sérgio Buarque de Holanda

reforçou ainda mais a sua tese acerca da permanência de ideias medievais

no Renascimento português. Segundo ele a noção da decrepitude do

242HOLANDA, 2010, p. 277.

194

mundo criado por Deus, ideia tipicamente medieval, como acabou-se de

ver, estava presente também entre autores humanistas. Sobre isso Holanda

escreveu:

Prenúncios tais como os de um próximo fim do mundo, que favoreciam aquela ideia da senectude da Criação, longe de constituir uma peculiaridade "medieval" de Colombo, como já houve quem o pretendesse, acham-se presentes em escritos dos principais humanistas, desde Pico della Mirandola até Campanella. E essa ideia terá, forçosamente, de subir à tona quando recuperem suas forças e se tornem verdadeiramente obsessivos - é o que, de fato, se dará com a era do Barroco - os velhos temas da instabilidade das coisas terrenas e do memento mori.243

Além da ideia da senectude da Criação, Holanda destacou outra

noção medieval que também permaneceu em voga entre os humanistas.

Segundo o autor, a visão simbólica da Natureza não havia sido combatida

por eles como aconteceu com outras ideias. O trecho a seguir se refere a

isso:

A visão simbólica da natureza, que já nos primeiros séculos cristãos fora largamente representada pelos padres da Igreja, não era menos familiar aos homens da era dos grandes descobrimentos marítimos ou mesmo aos do século XVII. Os próprios humanistas, sem embargo de sua repulsa a tantas opiniões cultivadas na Idade Média, pode dizer-se que a favoreceram, mais do que a combateram: das tendências platônicas e principalmente neoplatônicas, a que se achavam filiados em sua maioria, dificilmente se poderia esperar coisa diversa.244

243HOLANDA, 2010, p. 286. 244Ibidem, p. 291.

195

Como demonstrado, a tese de Sérgio Buarque de Holanda em

Visão do Paraíso é também sobre a continuidade existente entre a Idade

Média e o Renascimento. O autor não acredita em uma ruptura radical

entre esses períodos, para ele os portugueses renascentistas possuíam

muito mais ideias medievais do que modernas. Em virtude dessa

concepção, a implicação ideológica que orientou Holanda na elaboração

desta obra foi a liberal.

O foco de Sérgio Buarque de Holanda não estava nas diferenças

ou nas rupturas entre Idade Média e Renascimento. No entanto não se

pode dizer que o autor não enxergou mudanças entre esses períodos. Na

verdade ele preferiu destacar o ajuste que permitiu o convívio de elementos

tradicionais com expressões novas. A unificação da Coroa portuguesa lhe

pareceu moderna, mas tal modernidade não abandonou aqueles elementos

arcaicos e conservadores da sua história, para Holanda "a própria rapidez e

prematuridade da mudança fora, de algum modo, responsável por esse

resultados"245, como está descrito abaixo:

O resultado foi esse estranho conluio de elementos tradicionais e expressões novas, que ainda irá distinguir Portugal em pleno Renascimento, posto a serviço da pujança da monarquia. Melhor se diria, forçando a comparação, que as formas modernas respeitaram ali, em grande parte, e resguardaram, um fundo eminentemente arcaico e conservador. Moderna é, sem dúvida, aquela avassaladora preponderância da Coroa, num tempo em que o poder real ainda luta, em outras terras, com maior ou menor êxito, por sobrepujar as vontades particularistas. Aqui, ao contrário, como encontrasse poucas resistências desse lado, a realeza lograra mobilizar em torno de si energias ativas da população.246

245HOLANDA, 2010, p. 207. 246 Ibidem, p. 207.

196

Da forma como analiso há uma diferença sutil entre Raízes do

Brasil e Visão do Paraíso quanto a ideologia. Sérgio Buarque de Holanda foi

em sua obra de estreia mais enfático em relação a necessidade de mudança

social e tomada de decisão por parte do povo brasileiro, então ele carregava

naquele momento uma concepção de História com implicação ideológica

radical, falando inclusive em "revolução". Neste texto o autor também pode

ser considerado em algumas partes liberal em virtude da velocidade

mudança. Segundo Holanda um lento processo, porém definitivo,

caracterizava a nossa revolução. Já em Visão do Paraíso a ideologia liberal

predominou ao longo de todo o texto. A ideia de ruptura foi substituída pela

noção de continuidade, o autor observou que a mudança existe porém a

sua velocidade permitia a coexistência de elementos arcaicos e de novos.

Desta forma, concluo que a implicação ideológica da noção de

História compartilhada por Sérgio Buarque de Holanda tende a ser mais

liberal do que radical. Por mais que em Raízes do Brasil o radicalismo

estivesse presente, por trás dele estava a ideia as mudanças na História são

graduais e lentas. Não somente em Visão do Paraíso mas também em Do

Império à República esta mesma ideia esteve em evidência demonstrando a

permanência da implicação ideológica liberal.

4.4 UMA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA SINEDÓQUICA

Para Hayden White, o trabalho desenvolvido por um historiador

pode assumir diferentes estilos historiográficos que, por sua vez, se

identificam com as seguintes figuras de linguagem: metáfora, metonímia,

197

sinédoque e ironia. Essas correspondem aos quatro principais tropos da

linguagem poética que serviram para White analisar os diferentes modos de

reflexão, representação e explicação dos historiadores. Segundo a

explicação dele em Trópicos do Discurso estas figuras correspondem

também as formas pelas quais os historiadores apreendem o mundo

figurativamente:

Há muito se vem reconhecendo que os tropos da metáfora, metonímia, sinédoque e ironia constituem os principais tipos genéricos do uso figurativo da linguagem. Tentei mostrar em outro local que o estilo de representação de um dado historiador pode ser caracterizado segundo ele privilegie um ou outro desses tropos ou em função do seu empenho em mediar entre eles; meu argumento é que a forma da narrativa histórica supostamente direta depende tanto do modo de figuração tropológico dominante quanto a forma de qualquer relato historicista depende da teoria que ela procura justificar. As várias formas de narrativa histórica são produto do empenho em apreender o mundo figurativamente na mesma medida em que as várias formas de representação historicista são determinadas pelo aparato teórico dos seus diferentes autores.247

Da forma como analiso, nas duas obras em questão escritas por

Sérgio Buarque de Holanda a sinédoque foi o tropo predominante. Sobre

este tropo Hayden White escreveu:

Com a sinédoque, que é considerada por alguns teóricos como uma forma de metonímia, um fenômeno pode ser caracterizado usando-se a parte para simbolizar alguma

247WHITE, 2001, p. 133.

198

qualidade que se presume seja inerente à totalidade, como na expressão ele é todo coração248.

Para White, nessa expressão há o que parece ser uma

metonímia, isto é, o nome de um parte do corpo é usado para se

caracterizar o corpo todo do indivíduo. "Mas o termo 'coração' deve ser

entendido figuradamente como designando, não uma parte do corpo, mas

aquela qualidade de caráter convencionalmente simbolizada pelo termo

'coração' na cultura ocidental"249. Em outro trecho de Meta-História White

caracterizou melhor ainda o uso da sinédoque:

No curso da narrativa efetivamente escrita analisam-se partes, destacadas do todo, e depois reconstituem-se os todos, destacados das partes, de modo que a revelação gradual do relacionamento que as partes mantêm com os todos é apreendida como a explicação do motivo porque as coisas acontecem como aconteceram. O modo de caracterização tropológica que sanciona essas estratégias de explicação é a sinédoque.250

Em relação a Raízes do Brasil a sinédoque é evidenciada no texto

a medida em que Holanda explica a civilização que representamos, “fruto

de nosso trabalho ou de nossa preguiça”, como parte “de um sistema de

evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”251, no caso, próprio

do sistema da península ibérica, cuja principal característica destacada pela

autor é a cultura da personalidade. O uso sinedóquico fica claro na

248WHITE, 2008, p. 48. 249 Ibidem, p. 49. 250 Ibidem, p. 189, grifo do autor. 251HOLANDA, 1995, p. 31.

199

colocação de que “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”252, e

por isso para nos explicar foi necessário entender os portugueses e a

península Ibérica. Para Holanda o povo brasileiro fora forjado em outra

cultura, as suas raízes são a cultura ibérica. Então, em sua ordem de

explicação histórica, ele diferenciou a península Ibérica (a parte) da Europa

(o todo) e depois ainda diferenciou os portugueses (a parte) da península

Ibérica (o todo). A partir dessa "revelação gradual que as partes mantêm

com os todos"253 lhe foi possível compreender de fato os brasileiros.

Em Raízes do Brasil Holanda escreveu que muitos aspectos da

civilização brasileira são na verdade uma extensão das peculiaridades da

cultura ibérica, especialmente da cultura portuguesa. Segundo Holanda,

nem mesmo a cultura indígena prevaleceu sobre a cultura portuguesa na

formação da nação brasileira, como podemos notar a seguir:

A experiência e a tradição ensinam que toda a cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Neste particular cumpre lembrar o que se deu com as culturas europeias transportadas ao Novo Mundo. Nem o contato e a mistura com as raças indígenas ou adventícias fizeram-nos tão diferentes dos nossos avós de além-mar como às vezes gostaríamos de sê-lo. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa à península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo que nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma.”254

252 HOLANDA, 1995, p. 31. 253WHITE, 2008, p. 189. 254HOLANDA, 1995, p. 40.

200

Desta forma, para Sérgio Buarque de Holanda o povo brasileiro é

um representante da cultura ibérica no Novo Mundo. Segundo o autor,

aspectos como a frouxidão da estrutura social, a falta de hierarquia

organizada, a cultura da personalidade, entre outras coisas presente na

sociedade brasileira foram herdados das nossas raízes ibéricas. Em virtude

dessa visão sobre a História do Brasil como a "parte" que se apresenta

como uma extensão do "todo" que é a História da península Ibérica,

compreende-se que Holanda apresentou em Raízes do Brasil uma

consciência histórica correspondente ao tropo da sinédoque.

Segundo Hayden White, outra característica do estilo

historiográfico correspondente ao tropo da sinédoque é ser "integrativa

como o é o organicismo"255, que também está presente tanto em Raízes do

Brasil quanto em Visão do Paraíso, como já demonstrado anteriormente.

Enquanto a metáfora prefigura o mundo da experiência no plano da relação

objeto-objeto, a metonímia o faz na relação parte-parte e a sinédoque no

da relação objeto-todo. Na sinédoque então existe uma relação de extensão

que pode ser de vários tipos. A parte para se referir ao todo, o gênero pela

espécie, o determinado pelo indeterminado, a matéria pelo objeto, o

indivíduo pela classe e também o singular pelo plural.

Em Raízes do Brasil há evidências do tipo de sinédoque que

evidencia a relação do singular com o plural. Neste caso o homem cordial, o

aventureiro e o trabalhador como também o semeador e o ladrilhador

funcionaram como conceitos que ajudaram Holanda a situar e ordenar o

seu conhecimento dos homens e dos conjuntos sociais. Como ele explicou,

"é precisamente nessa extensão superindividual que eles assumem,

importância inestimável para o estudo da formação e evolução das

255WHITE, 2008, p. 50.

201

sociedades"256. Da forma como analiso esses conceitos, eles não deixam de

ser também um tipo de sinédoque pois são características singulares que

por extensão se ligam a sociedade brasileira ou a sociedade ibérica como

um todo.

Para Hayden White a sinédoque pode ser descrita como um tipo

de metáfora que se difere pelo tipo de redução ou integração. A metáfora é

essencialmente representacional enquanto a sinédoque é essencialmente

integrativa. Nesta perspectiva uma explicação histórica é "uma

representação em que 'cada evento' pode ser visto como 'parte de um

todo', ou em que 'cada evento descrito' é apresentado de modo a revelar a

forma da história per se"257.

Da forma como analiso, esta foi a noção de história

compartilhada por Sérgio Buarque de Holanda também em Visão do Paraíso

a medida em que ele procurou entender como "o tema do Paraíso Terreal

representou, em diferentes épocas, um modo de interpretar-se a história,

um efeito da história e um fator da história"258. No prefácio à segunda

edição Holanda questionou se os motivos edênicos não poderiam dar

margem a uma ampla teoria na qual toda a História encontraria sua

explicação, uma vez que a visão do Paraíso "foi principalmente responsável

pela ênfase atribuída na época do Renascimento à natureza como norma

dos padrões estéticos, dos padrões éticos e morais, do comportamento dos

homens, de uma organização social e política"259.

Em um trecho do capítulo oitavo que leva o título do livro,

Holanda explicou que existia uma espécie de nostalgia do Éden que desde a

Antiguidade tem circulado entre os navegadores e conquistadores de forma

256HOLANDA, 1995, p. 45. 257WHITE, 2008, p. 195. 258HOLANDA, 2010, p. 19. 259Ibidem, p. 12.

202

a levá-los enxergar nas terras desconhecidas as características de um

paraíso, especialmente em relação as riquezas, foi o que ocorreu com as

Índias e depois com a América:

Ainda que confusamente, uma nostalgia desse mundo desaparecido parece ter acompanhado os navegadores e conquistadores de terras incógnitas durante a era dos grandes descobrimentos marítimos, quando à esperança de magníficos tesouros se acrescentava, quase invariavelmente, a de aparições hostis ou fabulosas. Desde remota Antiguidade, à imagem de imensas riquezas se tinham unido, aliás, as de monstruosidades e maravilhas sem conta, para compor a ideia de que mais geralmente se fazia acerca da Índia e também da Etiópia, essa Índia Menor, como fora chamada. O mesmo e, sem dúvida, em mais larga escala, por si tratar de lugares desconhecidos dos antigos, deveria dar-se agora com estas outras Índias que eram as do Ocidente260.

Da forma como analiso, ao estabelecer a pesquisa do que

chamou de "biografia de uma ideia"261, Holanda se debruçou sobre vários

tipos de fontes, especialmente sobre a literatura produzida pelos

navegadores, e pode perceber a permanência dos motivos edênicos. Havia

uma intensidade diferente da presença desses motivos entre os espanhóis e

os portugueses, porém ambos compartilhavam uma visão de mundo

essencialmente religiosa, uma mentalidade daquela época que concedia um

sentido às novas descobertas dentro do horizonte da cristandade. O trecho

seguinte revela tal mentalidade como uma projeção da lembrança da

infância do mundo:

260HOLANDA, 2010, p. 304. 261Ibidem, p. 24.

203

Não carecia, naturalmente, o mundo grego-romano, como não careceu nenhuma civilização, da lembrança, zelosamente cultivada, de um estado de delícias e venturas que teria a humanidade vivido no começo dos tempos, e que alguma terrível catástrofe viera a frustrar sem remédio. Assim como para a criança o mundo se mede segundo as próprias vontades e caprichos, o mesmo ocorre com a infância do mundo. Aquela condição de plena bem-aventurança, tal como a viram e contaram os poetas, representaria a projeção, sobre um plano cósmico, da vida da infância tal como a podem ver os adultos, isto é, uma infância idealizada pela distância: assim, era natural que a situassem no passado. E representa, além disso, o reverso necessário, e em certo sentido compensatório, das misérias do presente.262

A preocupação de Sérgio Buarque de Holanda em entender a

relação entre os motivos edênicos e a colonização do Brasil o conduziu por

uma empreitada na qual percebeu que a tópica da visão do paraíso

ultrapassava os limites da atuação dos teólogos medievais, e por sua vez, se

movia no espaço e no tempo. De fato, como registrou Holanda no trecho a

seguir, ela esteve continuamente na imaginação de navegadores,

exploradores e povoadores do hemisfério ocidental:

Sabe-se que para o teólogos da Idade Média não representava o Paraíso Terreal apenas um mundo intangível, incorpóreo, perdido no começo dos tempos, nem simplesmente alguma fantasia vagamente piedosa, e sim uma realidade ainda presente em sítio recôndito, mas porventura acessível. Debuxado por numerosos cartógrafos, afincadamente buscado pelos viajantes e peregrinos, pareceu descortinar-se, enfim, aos primeiros contatos dos brancos com o novo continente. Mesmo quando não se mostrou ao alcance de olhos mortais, como pareceu mostrar-se a Cristóvão Colombo, o fato é que

262HOLANDA, 2010, p. 229.

204

esteve continuamente na imaginação de navegadores, exploradores e povoadores do hemisfério ocidental. Denunciam-no as primeiras narrativas de viagem, os primeiros tratados descritivos, onde a todo instante se reitera aquela mesma tópica das visões do Paraíso263.

Nesta obra, a interpretação histórica de Sérgio Buarque de

Holanda esteve, como em sua obra de estreia, associada ao tropo da

sinédoque. Em Visão do Paraíso, a história das navegações ibéricas, a

mentalidade medieval, as descrições do Novo Mundo, tudo foi interpretado

a partir da permanência neles da tópica da visão do paraíso. Assim a tópica

funcionou como "a parte" que auxiliou Holanda a entender "o todo".

Novamente uma linha de continuidade pode ser traçada entre as

duas obras. Raízes do Brasil e Visão do Paraíso trazem em seus textos o

mesmo tipo de consciência histórica na qual cada evento é explicado a

partir da sua relação com o todo ou como uma parte que contém

qualidades inerentes ao todo. É intrínseca a este tipo de consciência

correspondente a sinédoque a noção de que a explicação da história se dá

de forma integrativa, ou seja, na narrativa efetivamente escrita analisam-se

partes, destacadas do todo, e depois reconstituem-se o todo, destacados

das partes, de modo a revelar o relacionamento que as partes mantêm com

o todo.

Em comparação com as outras obras analisadas no capítulo

anterior, nenhuma delas apresentou o mesmo estilo historiográfico

correspondente a Raízes do Brasil e Visão do Paraíso. O tropo da metáfora

predominou nas obras Monções, Caminhos e Fronteiras e Do Império à

República. O desenvolvimento da consciência histórica de Sérgio Buarque

de Holanda passou por um momento metafórico e depois retornou ao

263Ibidem, p. 12-13.

205

tropo da sinédoque.

Investiguei neste capítulo a existência de uma linha de

continuidade entre Raízes do Brasil e Visão do Paraíso. A Teoria da Obra

História de Hayden White me permitiu de fato averiguar as correlações das

estratégias tropológicas de prefiguração com os variados modos de

explicação empregados por Sérgio Buarque de Holanda em suas obras.

Retomando a trajetória das análises realizadas ao longo deste

capítulo, dei a entender que há mais elementos em comum entre Raízes do

Brasil e Visão do Paraíso do que apenas a temática. O modo de elaboração

de enredo, o modo de argumentação e o modo de implicação ideológica,

chamados por White de estratégias explicativas ou táticas narrativas, que

foram escolhidos por Holanda na elaboração dessas suas obras indicaram

um padrão no qual o enredo romanesco predominou juntamente com a

combinação da argumentação contextualista e organicista, e a implicação

ideológica liberal. Em relação ao tropo linguístico correspondente ao estilo

historiográfico de Holanda nestas duas obras, a sinédoque predominou.

206

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sérgio Buarque de Holanda é um dos historiadores brasileiros

mais revistados nos últimos tempos em função das suas teorias muito bem

construídas e ainda atuais, como também por seu estilo de escrita, por sua

capacidade narrativa e por sua concepção histórica. Ele é um clássico da

nossa historiografia e está “entre as maiores referências da disciplina, talvez

ao lado, apenas, de Varnhagen e Capistrano de Abreu”264. A proposta desta

pesquisa de doutoramento foi apresentar uma análise de duas das

principais obras de história deste autor, procurando identificar nelas o tipo

de enredo, as características argumentativas, as implicações ideológicas e o

estilo historiográfico correspondente a consciência histórica que o autor

delas revelou possuir.

A Teoria da Obra História de Hayden White serviu de referencial

teórico-metodológico para as análises propostas dos textos de Raízes do

Brasil e Visão do Paraíso. A partir principalmente da obra Meta-História, a

tentativa foi aplicar na produção de Sérgio Buarque de Holanda o modelo

analítico sistematizado por White, que já havia sido aplicado por ele na

análise de historiadores e filósofos da história como Hegel, Croce, Michelet,

Ranke, Tocqueville, Burckhardt, Marx e Nietzsche, em sua pesquisa sobre a

consciência histórica do século XIX.

De maneira geral, a intenção foi demonstrar a aplicabilidade da

Teoria de Hayden White na investigação sobre o tipo de consciência

histórica compartilhada por Sérgio Buarque de Holanda. Assim como White

selecionou aqueles autores cujas produções, segundo ele, “ainda servem de

modelos para o moderno labor historiográfico de profissionais e amadores”

264 GOMES, Ângela de Castro. Apresentação. Rev. Brasileira de História. São Paulo: vol. 36, n. 73, p. 13-18, dezembro de 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882016000300013&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 10 março 2017.

207

(WHITE, 2008: 151), eu escolhi analisar as duas obras de Holanda que

considerei marcantes tanto para a carreira dele quanto para a historiografia

brasileira, com a finalidade de perceber o desenvolvimento do seu

pensamento histórico por meio da comparação dos elementos da narrativa

presentes no seu texto de estreia e no seu trabalho considerado mais

maduro.

De maneira mais específica, expus a tese da existência de uma

linha de continuidade entre Raízes do Brasil e Visão do Paraíso em relação a

compreensão histórica do autor delas. A intenção foi comprovar a

permanência da noção da História compromissada com o presente da qual

Holanda compartilhava, do meu ponto de vista, desde a sua estreia e que

ao longo da sua carreira ganhou força, amadureceu e se consolidou. Para

White, a noção de história que alguém compartilha está refletida na

maneira pela qual ele dispõe os elementos estruturais da narrativa histórica.

Por isso, analisei comparativamente os textos de Raízes do Brasil e Visão do

Paraíso quanto ao tipo de enredo, argumentação, implicação ideológica e

tropo linguístico utilizados.

O material apresentado aqui foi composto por quatro capítulos,

nos quais se discutiu primeiramente sobre o pensamento histórico de

Hayden White em seus aspectos gerais, depois acerca da sua Teoria da Obra

Histórica, em seguida sobre a formação de Sérgio Buarque de Holanda e

suas principais obras e por último apresentei a análise das obras Raízes do

Brasil e Visão do Paraíso.

A ideia central do primeiro capítulo foi apresentar as quatro fases

que identifiquei na trajetória do pensamento de Hayden White ao analisar

as suas produções. Cada fase é marcada pela publicação de ensaios avulsos

ou coletâneas abordando novos conceitos e preocupações de pesquisa

específicas como se pode perceber.

208

Da forma como foi demonstrado, na primeira fase White

consolidou a sua visão existencialista acrescentando a ela as leituras

realizadas no tempo que viveu na Itália, especialmente as leituras das obras

de Benedetto Croce. Gradativamente o historiador medieval pesquisador da

Igreja mudou o seu foco de interesse e aos poucos migrou da História

Medieval para a Filosofia da História, passando a se preocupar com o papel

e a função da História para a vida da humanidade. A segunda fase do seu

pensamento é marcada pela ênfase que White deu ao poder de escolha da

humanidade. Ele passou a acreditar que o historiador tem não só a

possibilidade, mas também possui a necessidade de escolher com

responsabilidade como vai escrever um texto histórico, pois "escolhemos o

nosso passado da mesma forma que escolhemos o nosso futuro”265. A

terceira fase do pensamento de White corresponde ao momento em que

ele tratou mais propriamente da escrita da história. Foi nesta fase que ele

desenvolveu a sua contribuição mais conhecida que foi a Teoria do Tropos.

Por último, a quarta fase está relacionada aos seus trabalhos mais recentes

nos quais a preocupação central migrou da estrutura e dos elementos

constitutivos da narrativa para o conteúdo da forma. A partir de então

White tem se importado com a maneira como a literatura moderna lida

com eventos traumáticos como foi o Holocausto e a forma como coloca tais

tipos de eventos em uma narrativa.

O segundo capítulo foi escrito para tratar de maneira mais

específica sobre a Teoria da Obra Histórica desenvolvida por White em

Meta-História. Segundo ele existe um princípio de escolhas linguísticas que

prefigura o campo histórico de cada profissional da História, então, para

entender como isso ocorre, White desenvolveu um método de análise

265WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura. São Paulo: Editora da USP, 2001, p. 51.

209

aplicável aos textos históricos. A sua proposta com tal método era

compreender melhor a produção histórica, denominada por ele de

estrutura verbal na forma de discurso narrativo em prosa, em todas as suas

dimensões:

A terminologia que empreguei para caracterizar os diversos níveis em que se desdobra um relato histórico e para construir uma tipologia de estilos historiográficos talvez se mostre desorientadora. Mas tentei primeiro identificar as dimensões manifestas – epistemológicas, estéticas e morais – do trabalho histórico e só depois penetrar até o nível mais profundo em que essas operações teóricas fundam suas sanções pré-críticas implícitas.266

Em um outro trecho explicativo do prefácio de Meta-História,

White esclarece que uma das suas intenções ao desenvolver a sua pesquisa

foi perceber os elementos poéticos presentes no trabalho do historiador:

Um dos meus intuitos fundamentais, além daquele de identificar e interpretar as principais formas de consciência histórica da Europa oitocentista, é estabelecer os elementos inconfundivelmente poéticos presentes na historiografia e na filosofia da história em qualquer época em que tenham sido postos em prática. (...) Através da exposição do solo linguístico em que se constituiu uma determinada ideia da história tento estabelecer a natureza inelutavelmente poética do trabalho histórico e especificar o elemento prefigurativo num relato histórico por meio do qual seus conceitos teóricos foram tacitamente sancionados267.

266WHITE, 2008, p. 11-12. 267Ibidem, p. 13.

210

Apesar de Meta-História fazer parte de um momento específico

do pensamento whiteano e mesmo que a sua Teoria da Obra Histórica não

apareça mais direta e explicitamente em suas recentes publicações,

acredito que esta se tornou a sua obra mais conhecida e o seu trabalho

mais citado até hoje por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, Meta-

História é a obra mais densa escrita por White, as outras obras são na

verdade coletâneas de ensaios publicados no decorrer de vários anos em

diversas revistas acadêmicas. Meta-História é um longo trabalho em que se

apresentou o exercício analítico desenvolvido por White a partir da sua

ideia central do que é o trabalho histórico e de quais são os elementos

constitutivos dele. O outro motivo que tornou esta a principal obra de

White na minha visão decorre de como as ideias expostas nela modificaram

a nossa forma de entender a produção histórica. White desenvolveu o que

chamou de estrutura típico ideal da obra histórica e depois pode

caracterizar os diferentes pensadores da história do século XIX quanto aos

diferentes estilos de reflexão histórica. A partir de Meta-História White

colocou a dimensão da escrita da história em um patamar no qual as

investigações históricas puderam associar e conceder uma atenção maior

também a “forma” e o seus significados. Eu quis demonstrar nesta pesquisa

a aplicabilidade da teoria whiteana.

Em relação ao terceiro capítulo, a preocupação principal foi

apresentar a formação histórica de Sérgio Buarque de Holanda. Destaquei o

profissional erudito e dedicado aos livros que ele foi e como muitos dos

seus amigos e familiares recordam essas características. Ainda neste

capítulo falei sobre as muitas viagens ao exterior que Holanda pode fazer e

a influência delas na sua formação, também apresentei as principais obras

do autor e o significados delas para o seu pensamento histórico.

211

Apesar da formação acadêmica de Sérgio Buarque de Holanda

ter sido na área do Direito e da sua atuação profissional ter se concentrado

nos primeiros anos da sua carreira na área do jornalismo e da crítica

literária, o historiador em Sérgio Buarque de Holanda aos poucos se

formou, entre outras coisas, por sua curiosidade sobre o assunto. As leituras

que acumulou e também as aulas que participou em Berlim intensificaram a

sua curiosidade e o conduziram cada vez mais para esta área do

conhecimento. Ele ainda pode atuar como professor na Universidade do

Distrito Federal, na direção do Museu Paulista, na Escola de Sociologia e

Política de São Paulo e por último na Universidade de São Paulo.

No terceiro capítulo analisei também rapidamente as obras

Monções, Caminhos e Fronteiras e Do Império à República quanto ao tipo

de enredo, modo de argumentação, implicação ideológica e estilo

historiográfico. Com estas análises pude perceber melhor o

desenvolvimento de cada estratégia de escrita ao longo da carreira de

Sérgio Buarque de Holanda.

O quarto capítulo contemplou a análise de Raízes do Brasil e

Visão do Paraíso. Com o objetivo de comprovar a tese sobre a existência de

uma linha de continuidade entre estas obras e a permanência de uma

mesma consciência histórica, estabeleci neste capítulo uma comparação

entre elas. A Teoria da Obra Histórica funcionou para identificar os

elementos constitutivos do trabalho histórico que permaneceram, do meu

ponto de vista, praticamente sem alteração nestas obras, como foi

demonstrado ao longo do capítulo.

As tabelas seguintes apresentam de forma esquemática o tipo de

enredo, de argumento, de ideologia e o tropo linguístico correspondente as

obras analisadas no terceiro e no quarto capítulo e permite visualizar as

permanências e as mudanças estilísticas ocorridas:

212

RAÍZES DO BRASIL

Modo de Elaboração de

Enredo

Romanesco

Modo de Argumentação

Organicista

Contextualista

Modo de Implicação Ideologia Radical Liberal

Tropo Linguístico

Sinédoque

MONÇÕES

Modo de Elaboração de

Enredo

Romanesco

Modo de Argumentação

Formista

Modo de Implicação Ideologia

Anarquista

Tropo Linguístico

Metáfora

CAMINHOS E FRONTEIRAS

Modo de Elaboração de

Enredo

Romanesco

Modo de Argumentação

Formista

Modo de Implicação Ideologia

Anarquista

Tropo Linguístico

Metáfora

DO IMPÉRIO À REPÚBLICA

Modo de Elaboração de

Enredo

Romanesco

Modo de Argumentação

Formista

Modo de Implicação Ideologia

Liberal

Tropo Linguístico

Metáfora

VISÃO DO PARAÍSO

Modo de Elaboração de

Enredo

Romanesco

Modo de Argumentação

Organicista Contextualista

Modo de Implicação Ideologia

Liberal

Tropo Linguístico

Sinédoque

213

Como é possível notar nestas tabelas, Raízes do Brasil e Visão do

Paraíso apresentaram praticamente a mesma estrutura narrativa. Nas duas

obras há a presença de um enredo romanesco no qual Holanda descreveu

tanto o brasileiro quanto o português como protagonistas. Ambas as obras

apresentaram a combinação de argumentos organicistas e contextualistas

pois Holanda construiu nestas obras uma narrativa dos seus objetos de

estudo observando a ligação deles com outros contextos e com processos

históricos anteriores e maiores. Em relação a implicação ideológica houve a

predominância da ideologia liberal, apesar da ideologia radical também

aparecer em Raízes do Brasil, demonstrando que Holanda acreditava na

necessidade deuma mudança histórica. Por último, a concepção histórica de

Holanda foi norteada pelo tropo da sinédoque nestas duas obras,

significando que ele esteve empenhado na integração de “cada evento”

estudado com o “todo”.

Acredito que as semelhanças e as permanências de muitos

elementos da narrativa entre Raízes do Brasil e Visão do Paraíso se deve a

temática recorrente das duas obras e a interpretação histórica semelhante

que ambas compartilham acerca do processo de colonização brasileiro, mas

principalmente porque o conceito de história que Sérgio Buarque de

Holanda possuía não se alterou consideravelmente no decorrer da sua

carreira, na verdade, o amadurecimento do historiador o levou a

estabelecer pesquisas cada vez mais diversificadas em todo tipo de arquivo

porém guardando a sua visão da história preocupada com as questões do

presente.

Desde de Raízes do Brasil é possível ver um Sérgio Buarque de

Holanda ocupado em produzir um tipo de texto que estivesse a serviço de

estudar o passado sem o enaltecer, sem mascarar a realidade, e apontando

para as mudanças daquilo que ele enxergava como necessário para alcançar

214

no tempo presente um Brasil melhor. Da forma como vejo, Holanda

considerava necessário “desmistificar” as raízes do Brasil e a investigação

histórica lhe serviu como instrumento para essa reflexão.

Ao considerar que o texto de Visão do Paraíso contribuiu para

ponderar sobre a ideia da existência de um paraíso terrestre na história da

formação do Brasil e as consequências dessa ideia para a colonização,

conclui-se então que este texto também carrega a mesma concepção

histórica de que o papel do historiador é “desmistificar” o passado e refletir

sobre os problemas do presente. Em Visão do Paraíso Holanda pode refletir

sobre o poder do mito fundador que reflete na mentalidade ainda em voga

de que somos o povo de um “país tropical abençoado por Deus e bonito

por natureza”.

A linha de continuidade existente entre Raízes do Brasil e Visão

do Paraíso demonstra que Sérgio Buarque de Holanda já possuía uma clara

visão do que era a História e qual era tarefa do historiador na sua opinião

desde a sua estreia. Nas duas obras ele refletiu sobre a origem do Brasil e

como certas ideias mascaravam o nosso passado ou ainda naturalizava e

ocultava a realidade não permitindo mudanças.

No trecho seguinte do prefácio de Visão do Paraíso fica evidente

que a ideia de História que Sérgio Buarque de Holanda compartilhou em

Raízes do Brasil não foi abandonada. Ele continuava a pensar no historiador

como alguém que não exalta o passado e busca contribuir, como uma

espécie de “exorcista”, para afugentar alguns demônios da história:

Esta espécie de Taumaturgia não pertence, em verdade, ao ofício do historiador, assim como não lhe pertence o querer erigir altares para o culto do Passado, desse passado posto no singular, que é palavra santa, mas oca. Se houvesse necessidade de forçar algum símile, eu oporia

215

aqui à figura do taumaturgo a do exorcista. Não sem pedantismo, mas com um bom grão de verdade, diria efetivamente que uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas do seu tempo – mas em caso contrário ainda se pode chamar historiador? –, consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história. Quer isto dizer, em outras palavras, que lúcida inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento que corre268.

Em O Senso do Passado, artigo que Sérgio Buarque de Holanda

publicou no Diário Carioca em 1952, ele falou sobre o que considerava

próprio do historiador, neste texto é possível perceber o quanto estava claro

na sua visão da História que a nostalgia, o enaltecimento e o

sentimentalismo em relação ao passado não deveriam fazer parte da

missão do historiador:

Por isso repito que o sentimentalismo histórico é o que há de mais avesso ao senso do passado. Não é próprio do historiador, mas do mau antiquário. O próprio do historiador não está em querer ver e enaltecer o passado no presente ou vice-versa, mas em reconhecer e estimar as formas diferentes que se sucedem através dos tempos. Conservar, restaurar, procurar entender o patrimônio histórico de cada povo é, sem dúvida, uma das grandes e gratas missões do historiador. Refazer, porém, o presente no moldes do passado, de um passado que escolhemos e arbitrariamente isolamos para convertê-lo em norma insistente, é contrariar e é trair essa missão269.

268HOLANDA, 2010, p. 22. 269 HOLANDA, Sérgio Buarque. Para uma nova História. Organizado por Marcos Costa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 102-103.

216

Como nos lembrou o escritor e crítico Martim Vasques da Cunha,

o passado brasileiro sempre interessou a Holanda e ele o investigava para

entender e transformar a realidade brasileira do seu tempo:

O passado brasileiro foi a maior preocupação de Sérgio Buarque de Holanda, não só porque era historiador, mas também porque seu projeto intelectual era compreendê-lo para não repetir no presente os mesmos erros e libertar-se deles de uma vez por todas. Este foi o norte de sua trajetória em todas as atividades que exerceu — crítico literário, historiador, jornalista e até mesmo “espectador engajado” (para usar a definição de Raymond Aron), como o foi nos últimos anos de vida270.

As obras Monções, Caminhos e Fronteiras e Do Império à

República também podem ser vistas como uma tentativa de “desmistificar”

o passado. As duas primeiras obras apresentam uma alternativa ao

bandeirante clássico de botas altas quando descrevem um paulista

sertanejo que abandonava o calçado e enfrentava longas distâncias em fila

indiana, e a última obra apresenta uma análise da implantação da República

brasileira destacando os arranjos da elite urbana, a falta de participação das

massa e o papel do exército. Portanto, mesmo que algumas estratégias

narrativas tenham sido diferentes na elaboração dessas obras, como o tipo

de argumentação, de implicação ideológica e o tropo linguístico

correspondente ao estilo historiográfico, acredito que Holanda apresentou

nestas obras a mesma concepção histórica vista em Raízes do Brasil e em

Visão do Paraíso.

270 CUNHA, Martim Vasques da. A Poeira da Glória. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 142-143

217

A aplicação da Teoria da Obra História de White também me

permitiu perceber que o tipo de enredo empregado, no caso o romanesco,

permaneceu inalterado em todas as obras de Sérgio Buarque de Holanda,

indicando que desde a sua estreia ele possuía um estilo definido e marcante

de “contar” a História. Em todos os seus textos foi possível identificar um

protagonista, uma espécie de herói: o povo brasileiro, o paulista, o

português. Além disso, foi possível também perceber que em todas as suas

obras Holanda percebia situações a serem “vencidas” por seus heróis.

Em suma o que se pretendeu com esta pesquisa de

doutoramento foi contribuir com a área dos estudos de Teoria da História

garantindo a funcionalidade e a aplicabilidade da Teoria da Obra Histórica

elaborada e utilizada por Hayden White em suas análises históricas em

Meta-História. O objetivo também foi demonstrar a pertinência do exercício

de análise feito com as obras do historiador Sérgio Buarque de Holanda,

acredito que ele pode ser visto como uma possibilidade dentre as

numerosas perspectivas viáveis e pertinentes de se investigar a

compreensão histórica de determinado autor.

218

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