rafael ginane bezerra

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RAFAEL GINANE BEZERRA DA PRÁTICA DA SEPARAÇÃO DO LIXO: ESTUDO DE CASO SOBRE AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO LIXO ENTRE OS PARTICIPANTES DO PROGRAMA CÂMBIO VERDE EM UM BAIRRO DE CURITIBA Dissertação apresentada como requisito parcialfà obtenção do grau de Mestre em Sociologia, Curso de Pós-Graduação em Sociologia, Setor de Ciências Humanas, Letras é Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Márcio de Oliveira CURITIBA 2003

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RAFAEL GINANE BEZERRA

DA PRÁTICA DA SEPARAÇÃO DO LIXO: ESTUDO DE CASO SOBRE

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO LIXO ENTRE OS

PARTICIPANTES DO PROGRAMA CÂMBIO VERDE EM UM

BAIRRO DE CURITIBA

Dissertação apresentada como requisito parcialfà obtenção do grau de Mestre em Sociologia, Curso de Pós-Graduação em Sociologia, Setor de Ciências Humanas, Letras é Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Márcio de Oliveira

CURITIBA

2003

« M l ! ! » UNIVERSIDADE F E D E R A L DO PARANA I P P P S E T O R DE CIÊNCIAS HUMANAS, L E T R A S E A R T E S

Ur""K PROGRAMA de pós graduação em sociologia Rua General Carneiro. 460 - 9o andar-sala 907 Fone e fax : 360-5173

PARECER

Os Membros da Comissão Examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, para realizar a argüição da Dissertação do aluno RAFAEL GINANE BEZERRA, sob o título "DA PRÁTICA DA SEPARAÇÃO DO LIXO: estudo de caso sobre as representações sociais do lixo entre os participantes do programa câmbio verde em um bairro de Curitiba", para obtenção do Título de Mestre em Sociologia,

/ïS^SSââoîÔ^l o candidato com conceito " J^ " sendo-lhe conferidos os créditos previstos na regulamentação do Programa de Pós-Graduação e m S ociologia, completando assim todos os requisitos necessários para receber o Título de Mestre.

Curitiba, 14 de outubro de 2003.

Prof. Dr. Márcio S.B.S.de Oliveira -Orientador (JJFPR) \ C

Prof. Dr. Álfio Brandenburg (UFPR)

K

c

Prof Dr8 Brasilmar Ferreira Nunes (UNB)

7

Para o Bruno

AGRADECIMENTOS

Várias pessoas contribuíram para a realização deste trabalho. Gostaria de

mencionar, em primeiro lugar, o Prof. Dr. Márcio de Oliveira, orientador desta

dissertação. Sempre precisa, sua orientação permitiu liberdade de pesquisa e segurança

na consolidação do texto definitivo. Devo a ele, desde o momento em que foi meu

tutor no Programa Especial de Treinamento (PET - CAPES), o gosto e o encanto que

aprendi a ter pela profissão de Sociólogo. Agradeço também ao Prof. Dr. Alfio

Brandenburg e ao Prof. Dr. Nelson Rosário de Souza, membros da banca do Exame de

Qualificação, pelas sugestões e críticas que contribuíram para a versão final desta

dissertação.

Sou grato aos funcionários da Secretaria Municipal do Meio Ambiente

(SMMA), da Secretaria Municipal do Abastecimento (SMA), da Administração

Regional de Santa Felicidade e aos moradores do Bairro São Braz. Foram eles que me

proporcionaram as condições materiais para executar esta pesquisa.

Alexsando Eugênio Pereira e Sidnei Volkman discutiram comigo várias

partes deste trabalho. Ambos acompanharam, com paciência e disposição, sua redação

final. Agradeço a eles a generosidade e o companheirismo.

A Prof. Dra. Stella Maris Bezerra (CEFET - PR), apaixonada pela temática

ambiental e perspicaz observadora dos programas elaborados pela Prefeitura

Municipal de Curitiba, sugeriu-me o tema desta pesquisa. Agradeço a ela e ao meu

irmão Arandi o constante apoio intelectual.

A Célia e o Bruno, companheiros fabulosos, cuidaram da "logística familiar"

e mantiveram a casa em funcionamento enquanto esta dissertação foi sendo preparada.

Agradeço a paciência e o carinho de vocês. O seu Nestor, a dona Emilia e o Paulo

gentilmente me receberam em sua casa. Agradeço a eles a hospitalidade.

Finalmente, não poderia deixar de citar meus pais, Marli e Arandi. Sua

cobrança generosa e seu incentivo foram fundamentais para a conclusão deste

trabalho.

SUMÁRIO

RESUMO V INTRODUÇÃO 06 CAPÍTULO 1 DO LIXO E DE SUAS PRÁTICAS CORRELATAS COMO

OBJETO DE REFLEXÃO 15 1.1 DO SIGNIFICADO DE ALGUMAS EXPRESSÕES 15 1.2 DA ABORDAGEM DO LIXO E DE SUAS PRÁTICAS CORRELATAS 18 1.3 DO LIXO, DAS PRÁTICAS CORRELATAS E DA NOÇÃO DE SUJIDADE COMO CONSTRUÇÕES SOCIAIS 20 1.4 DO LIXO, DAS PRÁTICAS CORRELATAS E DA NOÇÃO DE SUSTENTABILIDADE COMO CONSTRUÇÕES SOCIAIS 26 1.5 DA SEPARAÇÃO, DA COLETA SELETIVA E DA RECICLAGEM: PRATICAS GERADORAS DE EDUCAÇÃO OU ADESTRAMENTO AMBIENTAL? 33

CAPÍTULO 2 DO GERENCIAMENTO DO LIXO E DA COLETA SELETIVA: O CONTEXTO BRASILEIRO E O CASO DE CURITIBA 39 2.1 DO GERENCIAMENTO DO LIXO E DA COLETA SELETIVA NO BRASIL: ALGUNS DADOS 39 2.2 DO GERENCIAMENTO DO LIXO E DA COLETA SELETIVA EM CURITIBA: ALGUNS DADOS 42 2.3 DA COLETA SELETIVA EM CURITIBA E DO PROGRAMA CÂMBIO VERDE 47 2.4 DA COLETA SELETIVA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CASO DE CURITIBA 53

CAPÍTULO 3 DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E DA METODOLOGIA DE PESQUISA 65 3.1 DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: A TRAJETÓRIA DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO DENTRO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS 65 3.2 DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: O RESGATE DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO ATRAVÉS DA PSICOLOGIA SOCIAL 69 3.3 DO CONTEÚDO DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 71 3.4 DOS ASPECTOS METODOLÓGICOS 74 3.5 DA COLETA E DA ANÁLISE DOS DADOS 78

CAPÍTULO 4 DO ESTUDO DE CASO REALIZADO NO BAIRRO SÃO BRAZ 82 4.1 DO BAIIRO SÃO BRAZ E DAS CARACTERÍSTICAS DO "PONTO DE TROCA" DO PROGRAMA "CÂMBIO VERDE" 82 4.2 DOS MORADORES ENTREVISTADOS 85 4.3 DAS ASSOCIAÇÕES DE IDÉIAS PRESENTES NOS DISCURSOS DOS ENTREVISTADOS 86 4.3.1 DO QUE FOI DITO SOBRE O LIXO 86 4.3.2 DO QUE FOI DITO SOBRE AS PRÁTICAS COTIDIANAS RELACIONADAS AO LIXO 90 4.3.3 DO QUE FOI DITO SOBRE A TEMÁTICA AMBIENTAL 93 4.3.4 DO QUE FOI DITO SOBRE O FUNCIONAMENTO DO PROGRAMA CÂMBIO VERDE 96

CAPÍTULO 5 CONCLUSÃO 101 REFERÊNCIAS 104 APÊNDICES 108

RESUMO.

Análise das práticas estabelecidas cm relação ao lixo pelos moradores do

Bairro São tíraz, situado em Curitiba, capital do estado do Paraná, atendidos

por um programa municipal de coleta seletiva conhecido como "Câmbio

Verde", Tendo como pano de tundo o referencial teórico das Representações

Sociais, o objetivo do trabalho é verificai' em que medida a participação no

referido programa tem contribuído para alterar e / ou criar novos significados

atribuídos à prática da separação do lixo. Mais especificamente, procura-se

verificar em que extensão o programa tem possibilitado algum tipo de

reflexão sobre a temática ambiental entre os moradores que dele se utilizam.

Discorre sobre o lixo e suas práticas correlatas como objetos dotados de

significados construídos socialmente. Apresenta um breve quadro relativo ao

gerenciamento do lixo no Brasil, procurando refletir sobre a repercussão

expressivamente positiva que os programas de coleta seletiva elaborados pela

Prefeitura Municipal ue Curitiba vêm recebendo. Apóia-se em levantamento

qualitativo obtido através de entrevistas com dezessete moradores do Bairro

São Braz, constatando que a prática da separação do lixo está prioritariamente

vinculada a significados econômicos c sanitários que se sobrepõem à reflexão

sobre a temática ambiental.

Palavras-chave: Lixo; Separação; Práticas Cotidianas; Representações; Coleta

Seletiva; Curitiba.

ABSTRACT

This essay analyses the practices related to garbage handling and separation

among people from a suburb of Curitiba, the state capital of Paraná. It refers

to a municipal program seeking the selective collection of garbage, called

"Câmbio Verde". This work uses the Social Representation Theory as a

reference, and its main purpose is to verify in which extent popular

participation in the program mentioned above contributes to change and / or

to create new meanings to the garbage separation practice. Special attention is

paid whether the program helps to promote any kind of reflection concerning

the environment. It also analyses garbage handling and separation practices

as objects which meanings are socially constructed. It shows a short

description of garbage management in Brazil and searches for clues to

comprehend the national and international positive repercussion of Curitiba's

local government programs. Qualitative data based on seventeen interviews

indicates that garbage separation practice is mainly related to economic and

sanitary issues rather than to a reflection concerning the environment.

Key-words: Garbage; Separation; Representations; Selective collection;

Curitiba.

6

INTRODUÇÃO

Lixo, reciclagem, coleta seletiva e gerenciamento de resíduos são palavras

que ocupam com freqüência a atenção de estudos sobre questões urbanas. Isso não

ocorre ao acaso. O lixo, sua produção em volumes cada vez maiores, contendo

quantidade crescente de material inorgânico, é apontado, por ambientalistas e técnicos

em planejamento urbano, como um dos principais problemas enfrentados na atualidade

pelas administrações locais. Por outro lado, o seu gerenciamento, adotando práticas

como a coleta seletiva e a reciclagem, é visto como uma possível solução para o

problema.

No Brasil, onde o gerenciamento do lixo urbano não é organizado através de

uma política em âmbito nacional, sendo responsabilidade isolada dos municípios, o

problema revela seus contornos dramáticos. Nos últimos trinta anos, o país foi

marcado pelo crescimento vertiginoso da sua população urbana. O conseqüente

inchaço das cidades foi acompanhado, entre outros problemas, pela crescente escassez

de espaços apropriados para o destino final do lixo que se produz. Por dificuldades

diversas, como por exemplo, ausência de recursos financeiros e técnicos, as

administrações locais não têm conseguido superar esse obstáculo. Elas priorizam os

serviços de coleta e limpeza dos espaços públicos. Recolhem o lixo, mas o mesmo

acaba sendo disposto de maneira inadequada. Eis a origem de vários problemas

urbanos.

A título de exemplo, sabe-se que o despejo do lixo em depósitos inadequados

implica no agravamento de problemas ligados à saúde pública. De acordo com o

relatório Meio Ambiente Brasil - Avanços e Obstáculos Pós Rio 921, a ocorrência de

doenças relacionadas à mortalidade infantil aumenta em aproximadamente 70% nas

1 Preparado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pelo Centro Internacional de Desenvolvimento Sustentável (CIDS) da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o relatório representa um balanço da situação brasileira em relação às propostas de sustentabilidade elaboradas durante a Conferência Rio-92.

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áreas próximas a esses depósitos.

Também é bastante conhecida a relação entre lixões e o agravamento de

problemas sociais. O Fórum Nacional Lixo e Cidadania através do programa Criança

no Lixo, Nunca Mais2, afirma que esses depósitos estão relacionados com a

mobilização de um grande contingente de miseráveis e desempregados que

sobrevivem a custa da cata de resíduos para comercialização e consumo próprio. Em

alguns lugares, três gerações da mesma família vivem da coleta de lixo. Parte

significativa dessa população é formada por crianças, fato que aumenta a evasão

escolar e sua exposição a problemas como gravidez na adolescência e uso de drogas.

Por fim, citando um último exemplo, é fato bastante divulgado a degradação

ambiental provocada pelos lixões. O Centro de Referência e Gestão ambiental para

Assentamentos Humanos3 mostra que o acúmulo de lixo, ligado ao crescimento urbano

em direção às áreas de mananciais e combinado com baixos padrões de habitabilidade,

constitui uma das principais causas de perda dos recursos hídricos para o consumo da

população urbana.

A lista de problemas pode prosseguir de forma extensa4. É por isso que o lixo

representa um objeto de análise extremamente relevante, ocupando a atenção de

ambientalistas, técnicos, acadêmicos, poder público, organizações não governamentais

e organismos internacionais. É por isso, também, que a preocupação em desenvolver

práticas como reciclagem e coleta seletiva segue a mesma tendência. Se a geração de

lixo é uma fonte de problemas, essas práticas são apontadas como possíveis soluções.

2 O fórum é patrocinado pelo UNICEF e tem como objetivo principal a promoção de ações que contribuam para erradicar a cata de lixo por crianças e melhorar as condições de vida e trabalho das pessoas que vivem dessa atividade.

3 Esse centro é mantido pela Universidade Livre do Meio Ambiente, ligado à Prefeitura Municipal de Curitiba. Seu objetivo é coletar e difundir experiências de gestão ambiental consideradas bem sucedidas.

4 Essa lista será detalhada adiante. Ver capítulo 1, seção 1.4.

8

O Compromisso Empresarial para a Reciclagem (CEMPRE)5 faz eco a esse

ponto de vista. Instituição de referência na promoção dessas práticas no Brasil,

responsável por diversas publicações, ele sustenta o argumento de que reciclagem e

coleta seletiva são elementos fundamentais numa política de gerenciamento do lixo.

Trazem benefícios que extrapolam os ganhos econômicos, servindo como ponto de

partida para um processo de conscientização da comunidade a respeito dos problemas

ambientais. Consciência ambiental é vista aqui como um elemento que induz à

reflexão sobre valores e comportamentos. A partir dessa reflexão os indivíduos

percebem que muitos desses valores e comportamentos são incompatíveis com a

construção de uma sociedade sustentável. Um destaque muito privilegiado é dado aos

hábitos de consumo. Assim, mudança nos hábitos de consumo, possibilitando a

redução do volume de lixo gerado, seria um dos grandes benefícios trazidos pela

prática da separação do lixo, mediante formação de uma consciência ambiental.

Esse tema da consciência ambiental também está presente em duas séries de

levantamentos quantitativos (survey) realizados em 1992 e 1997. Responsável por

esses levantamentos, S. CRESPO (1998) aponta que é possível falar em um aumento

da consciência ambiental entre a população brasileira. Ao mesmo tempo, a autora

aponta que, para essa população, a disposição em contribuir com as causas ambientais

tem como atitude mais evocada a participação em campanhas que envolvem a

separação do lixo. Ou seja, para a população brasileira, a participação em programas

de reciclagem e coleta seletiva é o meio mais concreto de se combater os problemas

ambientais.

De qualquer forma, não existe um consenso a respeito das implicações

práticas disso que vem sendo chamado de consciência ambiental. Da mesma maneira,

a relação entre programas de coleta seletiva, reciclagem e consciência sobre as

5 O CEMPRE elabora publicações que orientam a implantação e o gerenciamento de experiências voltadas para a reciclagem e a coleta seletiva. Também mantém um banco de dados sobre programas de reciclagem e coleta seletiva no Brasil.

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implicações ambientais dos hábitos que estão ligados à crescente produção de lixo é

controvertida.

É necessário ressaltar que, a despeito da extensão dos problemas que suscita,

no Brasil a conversão da questão do lixo em objeto de demanda social para a criação

de políticas públicas é bastante tímida. Esse fato é suficientemente significativo para

colocar em questão os efeitos do que vem sendo chamado de consciência ambiental.

Isso pode ser ilustrado pelas iniciativas para criação de cooperativas de catadores de

lixo. Responsáveis pela coleta da maior parte do lixo reciclável em área urbana, eles

desempenham importante função econômica e ambiental. Ao mesmo tempo, são

relegados a condições precárias de trabalho e de vida. Ainda assim, não se consegue

articular um movimento suficientemente amplo para remediar essa situação através de

uma política pública.

Em estudo sobre o potencial econômico representado pela reciclagem, S.

CALDERONI (1997) observa algumas conseqüências negativas derivadas dessa

timidez de demandas por intervenção governamental. Sem intervenção, a prática da

reciclagem dá origem a um mercado informal e oligopolista. Nele, grandes empresas

pagam preços extremamente baixos pelo material coletado por miseráveis e

desempregados que trabalham sem o amparo da lei. Trata-se de uma relação brutal de

exploração. Nesse caso, impulsionada por motivações exclusivamente econômicas, a

reciclagem apenas transforma o lixo e os problemas que provoca em justificativa para

a produção de lucro. Não contribui para a geração de renda, de emprego e de equilíbrio

ambiental e nem representa uma prática que reflete consciência em relação a

problemas ambientais ou sociais.

Ao analisar a prática da reciclagem de latas de alumínio no Brasil, P.

LAYRARGUES (2002) argumenta que a ausência de um encaminhamento

genuinamente político para a questão do lixo ultrapassa os limites apontados acima.

Para o autor, além de não serem convertidos em política pública, os problemas ligados

ao lixo têm recebido um tratamento prioritariamente técnico. Analisando a bibliografia

que trata do tema, ele conclui que a abordagem do lixo sob o prisma da técnica esvazia

10

a importância de relações sociais fundamentais à compreensão da questão. Uma

reflexão que deveria começar pelo modelo de sociedade que se organiza para produzir,

estimulando o consumo através da obsolescência programada, originando um estilo de

vida insustentável, é reduzida à tarefa técnica de separar o lixo produzido, destinando-

o, através de coleta seletiva, à reciclagem.

O autor também argumenta que a reciclagem e a prática da coleta seletiva

têm sido vinculadas a um discurso ambiental conservador. Visando uma mudança de

comportamento das pessoas em relação ao lixo, sem que se desenvolva uma visão mais

crítica sobre a complexa cadeia de causas e efeitos que regem a sua produção, esse

discurso cria a percepção equivocada de que, enquanto houver separação e reciclagem,

haverá, também, a possibilidade de geração ilimitada de lixo.

Seguindo esse mesmo raciocínio, ao refletir sobre a prática da educação

ambiental, P. BRÜGGER (1994) afirma que os problemas ambientais como os

originados pelo lixo têm origem numa mentalidade instrumental, refletida em

comportamentos utilitaristas, próprios de uma sociedade capitalista que se organiza de

maneira insustentável. Enfrentar tais problemas, sob a perspectiva da autora, implica

na construção de uma crítica profunda a todo um modelo de civilização, pois o

privilégio dado a soluções estritamente técnicas reproduz uma situação de alienação.

Leva a acreditar, de forma equivocada, que produzir lixo é algo natural, que seus

problemas afetam a todos indistintamente e que a sua correta manipulação técnica,

através da coleta seletiva e da reciclagem, viabiliza a reprodução dos padrões atuais de

organização social.

Com sua argumentação, a autora pretende demonstrar que a resolução de

problemas ambientais sob uma ótica técnica não leva à construção de consciência

ambiental, mas apenas ao que chama de adestramento ambiental. Caracterizado por

uma mudança inconsciente de comportamento, ele permite que se dê solução pontual a

um problema e que, ao mesmo tempo, a causa desse problema continue se repetindo.

Como se pode observar, há consenso no reconhecimento de que o lixo traz

problemas graves e de todas as ordens. Ao mesmo tempo, há uma série de

11

questionamentos sobre a maneira como a coleta seletiva e a reciclagem vêm sendo

usadas para solucionar esses problemas. CALDERONI demonstra que a prática da

reciclagem pode avançar em função de motivações alheias à preocupação com o

gerenciamento adequado do lixo. LAYRARGUES e BRÜGGER argumentam que a

separação do lixo pode ocorrer sem que exista uma reflexão sistematizada sobre

problemas ambientais.

Os questionamentos apresentados acima demonstram que é possível formular

uma problemática a partir de interpretações opostas relacionadas às conseqüências dos

programas de reciclagem e coleta seletiva de lixo. De um lado está o argumento de que

esses programas permitem a formação de uma consciência ambiental, ponto de partida

para a redefinição de valores e práticas compatíveis com o desenvolvimento de uma

sociedade sustentável. De outro, está o argumento de que os mesmos programas têm

gerado uma mudança que se limita ao adestramento, perigoso por sugerir que através

da correta manipulação técnica do lixo será possível manter os atuais padrões de

organização social, inerentemente insustentáveis.

O presente trabalho pretende contribuir com a discussão dessa problemática

através de um estudo de caso. Tendo como pano de fundo a Teoria das Representações

Sociais, seu objetivo é investigar, descrever e analisar, os discursos e práticas

estabelecidos em relação ao lixo por uma comunidade que vive em Curitiba, capital do

estado do Paraná, no bairro São Braz, e é atendida por um programa municipal de

coleta seletiva conhecido como "Câmbio Verde".

Tanto o programa de coleta seletiva como a cidade de Curitiba oferecem

elementos importantes para dar suporte ao estudo de caso.

Curitiba, em primeiro lugar, possui uma imagem bastante difundida de

cidade planejada6. Mais do que isso, é descrita como a cidade que conseguiu implantar

uma sistemática eficiente de planejamento urbano enquanto outras cidades brasileiras

6 O tema do planejamento urbano em Curitiba será discutido adiante. Ver capítulo 2, seção 2.4.

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de mesmo porte fracassaram em suas tentativas. Em segundo lugar, também é

difundida, embora bastante questionada, a imagem de que Curitiba teria conseguido

equacionar o seu planejamento com as prerrogativas de um desenvolvimento urbano

sustentável em termos ambientais. Apontada como um exemplo a ser seguido por

outras cidades, recebeu inclusive, no início da década de 1990, o apelido de "capital

ecológica". Dessa forma, pelo menos a princípio, o programa de coleta seletiva em

questão não seria um programa como outro qualquer, mas o programa de uma cidade

planejada e preocupada com as questões ambientais.

Outro traço importante é que Curitiba fornece um cenário privilegiado para

se observar uma administração que, desde longa data, procura legitimar suas

intervenções através do discurso da racionalidade técnica, representada por uma

burocracia pública descrita como ativa e eficiente.

A presença da valorização do discurso técnico é refletida no programa de

coleta seletiva de lixo. Em estudo sobre o estilo de gestão municipal de Curitiba, K.

FREY (1996) observa que esse programa foi elaborado sem que houvesse participação

da sociedade, vista pela administração municipal como um entrave à racionalidade e

ao bom andamento do planejamento urbano. A lógica da Prefeitura Municipal de

Curitiba (PMC) considera que, terminada a fase de concepção, a sociedade deve aderir

aos programas, engajando-se na sua implementação. Dito de outra forma, no

funcionamento do programa, a sociedade é convocada a desenvolver um novo

comportamento em função de uma solução, primordialmente técnica, para os

problemas gerados pelo lixo.

Cabe ressaltar que, além disso, o programa de coleta seletiva em questão foi

implementado em 1991. Desde então, foi mantido pelas administrações subseqüentes,

todas pertencentes ao mesmo grupo político, organizado ao redor da figura de Jaime

Lerner, ex-Prefeito de Curitiba e ex-Governador do estado do Paraná. Essa

continuidade permitiu um acúmulo de informações, tanto em relação a dados oficiais,

como em relação às percepções das pessoas que o utilizam.

Em relação ao programa, ao todo a Prefeitura Municipal o disponibiliza em

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sessenta e um locais da cidade. Ele visa atingir famílias, moradoras de regiões

periféricas, cuja renda média é de até três salários mínimos mensais. Nele, a população

troca, com freqüência quinzenal, lixo reciclável por alimentos. O fato desse programa

estimular a participação da população através de um mecanismo de troca é

particularmente valioso para o estudo de caso, pois permite que o mesmo possa avaliar

as conseqüências do seu funcionamento.

De acordo com a apresentação oficial, o programa traz uma série de

conquistas positivas: limpeza imediata da região, diminuição do lixo destinado ao

aterro sanitário através da reciclagem, mitigação de carências sociais, melhoria na

alimentação das pessoas e contribuição para escoar a produção de alimentos

produzidos na Região Metropolitana de Curitiba. A conseqüência mais divulgada e

comemorada pelo poder público, no entanto, é a criação de uma forte consciência

ambiental que contribui para produzir um sentimento de identificação entre o

indivíduo e a sua cidade. Argumenta-se que essa identidade é fundamental para

explicar a participação ativa dos cidadãos nos programas que a Prefeitura Municipal

elabora.

O estudo de caso está orientado em função de uma premissa geral: as

práticas cotidianas das pessoas, visando particularmente a participação no programa de

coleta seletiva, podem ser compreendidas a partir das representações que elas

constróem em relação ao lixo. Assim, a hipótese de pesquisa orienta a investigação a

mapear as representações sobre o lixo, confrontando uma dimensão mais genérica e

abstrata relativa aos problemas ambientais, com outras dimensões marcadas por

problemas cotidianos, relativas a aspectos sanitários e econômicos.

Para possibilitar a verificação da premissa e da hipótese mencionadas acima

é que se optou pelo referencial teórico das Representações Sociais. Embora esse tema

receba atenção mais detalhada adiante7, é importante ressaltar que a escolha desse

referencial está vinculada à preocupação de se cotejar, através das representações

7 O referencial teórico das Representações Sociais será discutido adiante. Ver capítulo 3.

14

elaboradas pelos moradores, as práticas relacionadas ao lixo e os significados que as

acompanham. É justamente através do acesso às representações que se pretende

verificar se, ou em que extensão, o programa "Câmbio Verde" tem promovido algum

tipo de educação ambiental.

Em sua estrutura, o trabalho está dividido em cinco capítulos.

No primeiro, é apresentada uma discussão a respeito do lixo e de suas

práticas correlatas como objeto de reflexão. Esse capítulo procura demonstrar, através

de revisão bibliográfica, que ambos representam, ao invés de objetos dados e

portadores de características objetivamente intrínsecas, construções sociais. Também

procura sistematizar a problemática central da pesquisa, opondo a noção de

consciência à de adestramento ambiental.

No segundo, é elaborado um panorama geral, embora sintético, a respeito do

gerenciamento do lixo no Brasil. Esse panorama sugere que o caso de Curitiba é

paradigmático em relação aos programas de reciclagem e coleta seletiva de lixo. Dessa

forma, o capítulo também procura, novamente através de revisão bibliográfica, refletir

a respeito desse suposto traço paradigmático do caso curitibano.

No terceiro, é apresentada a Teoria das Representações Sociais bem como os

aspectos metodológicos que orientaram o estudo de caso. Essa apresentação procura

demonstrar que a análise das representações é particularmente valiosa para o estudo de

caso contido no presente trabalho, à medida que toma o conhecimento produzido pelo

senso comum como um conhecimento provido de eficácia, tanto atribuindo sentido à

realidade como orientando e justificando práticas cotidianas.

No quarto, é feita a descrição e a análise dos dados levantados através do

estudo de caso realizado no bairro São Braz.

Por fim, no quinto capítulo, são apresentadas as conclusões gerais do

trabalho.

15

1 DO LIXO E DE SUAS PRÁTICAS CORRELATAS COMO OBJETO DE

REFLEXÃO

1.1 DO SIGNIFICADO DE ALGUMAS EXPRESSÕES

Os textos e discussões que tomam o lixo como objeto de reflexão apresentam

algumas expressões específicas. Reciclagem, coleta seletiva, resíduos sólidos e

gerenciamento de resíduos são apenas algumas dessas expressões. Elas nem sempre

são usadas com o mesmo sentido. E comum, por exemplo, o emprego indistinto das

expressões coleta seletiva e reciclagem para designar a mesma prática: recuperar do

lixo aquilo que seria descartado. Por conta disso, é necessário um breve esclarecimento

sobre essas expressões, salientando o sentido que lhes será atribuído no presente

trabalho.

Reciclagem é um processo que reduz um produto a suas matérias-primas

originais para que elas possam ser usadas novamente. Permite que uma matéria que já

havia sofrido transformação prévia possa ser introduzida novamente no circuito

econômico. Pode ocorrer antes da realização do consumo, quando os materiais são

recuperados na própria linha de produção. Nesse caso é chamada de reciclagem direta.

Também pode ocorrer após a realização do consumo, quando um material já foi

descartado como lixo depois de utilizado. Nesse caso é chamada de reciclagem

indireta. Tanto a reciclagem direta como a indireta são atividades que envolvem o

consumo de água, energia, poluição do ar e da água, bem como geração de resíduos.

Em outras palavras, também geram impacto ambiental. No entanto, esse impacto pode

ser reduzido quando comparado àquele gerado pela transformação de uma matéria-

prima original. (BURNIE, 2001, p. 128)

Por envolver a necessidade de transformação e a geração de algum impacto

ambiental, a reciclagem não pode ser confundida com a simples reutilização. Esta

ocorre quando um material é novamente introduzido no circuito econômico, mas sem a

16

modificação de suas características físicas. Assim, as garrafas retornáveis podem ser

reutilizadas. Suas características não se alteram. Já as garrafas descartáveis devem ser

recicladas, pois suas características precisam passar por algum processo de

transformação. Evidentemente, as primeiras são mais adequadas que as segundas sob o

ponto de vista ambiental.

Coleta seletiva, por sua vez, é uma etapa entre os processos de separação do

lixo e reciclagem ou reutilização. Sua realização pressupõe que o lixo passará

previamente por algum tipo de separação. Essa separação pode obedecer a diferentes

critérios de oposição, como: orgânico e inorgânico, seco e úmido. A partir da

separação, a coleta seletiva viabiliza, num primeiro momento, a conservação de

materiais recicláveis que, de outra forma, seriam danificados ou teriam seu valor

reduzido pelo contato com materiais não recicláveis. A separação também pode ser

realizada por diferentes sujeitos e em diferentes contextos. Ela pode ser feita pelos

moradores em suas próprias residências, por catadores nas vias públicas e lixões, bem

como por trabalhadores em usinas de lixo. Quando a separação ocorre em lixões e

usinas, a coleta seletiva deixa de ser viável, pois o lixo já foi misturado e uma melhor

conservação dos materiais não é mais possível. (GRIPPI, 2001, p.31)

No presente trabalho, coleta seletiva será utilizada como sinônimo de coleta

articulada à triagem prévia do lixo por moradores, tanto em suas residências como no

entorno delas. É importante ressaltar que o estudo de caso apresentado neste trabalho

está baseado em entrevistas com indivíduos que não devem ser confundidos com

catadores, pois a prática da triagem do lixo, embora lhes traga algum retorno material,

conforme dados apresentados adiante no capítulo 4, não constitui atividade central de

subsistência.

Os programas de coleta seletiva podem obedecer a diferentes sistemáticas de

funcionamento. Podem ocorrer de porta em porta, quando algum tipo de veículo

coletor percorre as vias públicas recolhendo o lixo previamente selecionado e disposto

em frente aos domicílios. Outra sistemática é a utilização de postos de entrega

voluntária (PEVs), geralmente constituídos por caçambas ou conjuntos de tambores

17

identificados para receber o lixo de acordo com diferentes categorias: plásticos, vidros,

metais e papéis. Embora não seja muito difundido no Brasil, alguns países adotam o

sistema de máquinas onde se introduz determinado tipo de lixo reciclável e por isso se

recebe uma determinada quantia em dinheiro. Existem, ainda, programas que

envolvem a parceria entre poder público, ou organizações da sociedade civil, e os

catadores, responsáveis pela coleta do reciclável em troca de algum tipo de apoio,

como construção de galpões, instalação de prensas e assim por diante. Finalmente,

existem os programas onde o lixo reciclável é levado pela população a pontos onde é

comprado ou trocado por outras mercadorias (CEMPRE/IBAM, 1997, p. 38). O estudo

de caso que será apresentado adiante toma como objeto de estudo um programa que

segue esta última sistemática.

"Resíduos sólidos" é outra expressão que demanda esclarecimentos.

Segundo CRUZ (1995, p. 7), "resíduos sólidos correspondem a, ou representam,

materiais sólidos de composições químicas variadas, resultantes das diferentes

atividades e/ou funções do homem em sociedade. Sofrem alterações diversas, como

putrefação, oxidação e combustão, em função de sua natureza química". Nesse

sentido, trata-se de uma designação técnica para lixo. Tendo surgido no início dos anos

1960 ela reflete uma conjuntura em que o lixo adquire relevância cada vez maior como

objeto de estudo.

Diante dessa definição, opta-se no presente trabalho pela manutenção da

expressão lixo quando o tema fizer referência a questões típicas do cotidiano. A

expressão resíduos sólidos será usada apenas em referências, comentários e citações de

textos de caráter técnico.

Por fim, a expressão gerenciamento de resíduos refere-se, genericamente, às

medidas combinadas que visam equacionar os problemas originados pelo lixo.

Geralmente, esse gerenciamento é composto por algumas atividades que caracterizam

os serviços de limpeza pública: coleta, transporte e disposição final do lixo. De uma

perspectiva sustentabilista, essas atividades devem ser precedidas por estratégias que,

em primeiro lugar, evitem ou diminuam a geração de lixo e, em segundo lugar,

18

procurem a recuperação do lixo que foi gerado. Por fim, encerradas as duas primeiras

estratégias, deve-se dar ao lixo um destino final que implique nos menores impactos

ambientais possíveis. É dessa seqüência de estratégias que deriva o princípio

representado pelos 3Rs, junção das letras iniciais de reduzir, reutilizar e reciclar.

(GRIPPI, 2001, p. 17)

As expressões glosadas acima não resumem, obviamente, o amplo

vocabulário, particularmente o de termos técnicos, utilizado em textos e discussões

sobre lixo. Como a utilização dessas expressões nem sempre é consensual, optou-se

apenas por um rápido esclarecimento e pela delimitação de como serão empregadas no

presente trabalho. Outras expressões eventualmente mencionadas e que necessitem de

esclarecimentos serão explicadas através de notas de rodapé.

1.2 DA ABORDAGEM DO LIXO E DE SUAS PRÁTICAS CORRELATAS

A partir da elaboração de um quadro histórico sobre o lixo e as práticas a ele

correlatas, R. BARBALACE (1998) argumenta que os problemas gerados pelos

resíduos produzidos em sociedade não constituem traço distintivo ao século XX. Ao

contrário, é possível elaborar um longo inventário desses problemas desde o início da

civilização. Acompanhando esses problemas, também é possível listar quatro práticas

que sempre os combateram: enterrar, queimar, reciclar e diminuir o volume de lixo

gerado.

Sob este ponto de vista, lixo e práticas correlatas representam uma unidade

temática que se repete em diversas sociedades e períodos históricos. Portanto, os

problemas levantados durante o século XX, ligados à geração crescente de lixo,

particularmente o lixo inorgânico, representam um capítulo pontual dentro de um

quadro histórico muito mais amplo.

Apresentando um argumento oposto ao esboçado acima, J. RODRIGUES

(1995) sustenta que, embora toda vida social produza resíduos, nem sempre se

atribuem a estes os mesmos valores e se elaboram as mesmas práticas. Para o autor, os

19

valores e práticas relacionados ao lixo são construções sociais.

A história, sob esse ponto de vista, não se refere ao lixo em si, mas ao

conjunto de percepções que, resultantes de uma dinâmica social, permitem a

classificação de algo como lixo, solicitando, ao mesmo tempo, determinadas práticas

para viabilizar o seu manejo. Além disso, a idéia de que lixo e práticas correlatas

representam uma unidade temática, independente de um contexto, é questionável, pois

é recente sua importância como fenômeno socialmente relevante.

O estudo que envolve um programa de coleta seletiva coloca em evidência

certas práticas relacionadas ao lixo. Em particular, evidencia a sua separação, mediante

critérios de oposição como orgânico e inorgânico. Se, por um lado, várias sociedades

desenvolveram essa prática, como sugere o primeiro ponto de vista, por outro lado, é

forçoso admitir que a essa prática não se atribuiu sempre os mesmos valores e

significados, como sugere o segundo. Portanto, a reflexão sobre coleta seletiva e

separação não deve ser orientada por um histórico das práticas em relação ao lixo, mas

por um histórico que demonstre como o lixo e práticas correlatas assumiram

determinados significados.

Dessa forma, é forçoso reconhecer que para as sociedades modernas, pelo

menos dois significados paralelos têm sido associados ao que se chama de lixo,

exigindo conjuntos distintos de práticas para realizar o seu manejo.

Lixo é aquilo que se classifica a partir do que causa nojo, embaraço, asco,

sentimentos ligados à noção de suj idade, exigindo o seu afastamento, a sua segregação

em relação aos sentidos. Mas lixo, mais recentemente, também se classifica a partir do

que se considera desperdício, irracionalidade, sentimentos ligados à noção de uma

relação insustentável entre o homem e o seu meio, exigindo a sua recuperação, o

resgate daquilo que ainda tem valor mas foi jogado indevidamente fora.

20

1.3 DO LIXO, DAS PRÁTICAS CORRELATAS E DA NOÇÂO DE SUJIDADE

COMO CONSTRUÇÕES SOCIAIS

Em Higiene e ilusão — O lixo como invento social, J. RODRIGUES sugere

que a idéia de lixo presente nas sociedades modernas, concebida através da noção de

suj idade, deve ser compreendida através de um contraste com as mentalidades e

sensibilidades típicas da sociedade medieval:

As mentalidades e as sensibilidades medievais são aquilo contra o que a cultura capitalista e, mais adiante, a cultura industrial - territórios próprios da questão do lixo - se definiram. As culturas capitalista e industrial olham para a cultura medieval e se dizem: isto é o que não queremos ser, isto é o que renegamos. Esta parte de nós, de nossa tradição cultural e histórica que recusamos no plano dos ideais, seria um bom começo para contrastar e relativizar nossas concepções e nossas sensibilidades atuais acerca da temática do lixo. (RODRIGUES, 1995, p. 19)

Com base nesse pressuposto, o autor procede a um inventário de hábitos,

costumes e valores medievais. Nesse inventário, citando autores que se ocupam da

cultura popular e da vida cotidiana8, ele procura demonstrar que aquilo que hoje causa

nojo, embaraço e repugnância, não provocava as mesmas reações na sociedade

medieval. Da mesma forma, aquilo que hoje é classificado como lixo, requerendo

práticas específicas, não recebia então a mesma classificação e os mesmos cuidados.

Aquilo que se convencionou chamar de lixo é uma construção histórica. Passou a ser

possível a partir do momento em que certas noções, como a de suj idade, ausentes no

mundo medieval, foram construídas em sociedade.

Sua análise reflete, através de exemplos e ilustrações, aquilo que, em O

processo civilizador, Norbert ELIAS chamou de construção de um padrão civilizado

de comportamentos. Em sua origem, esse processo aponta para a dissolução da

sociedade medieval, particularmente do seu segmento formado pelas cortes

estabelecidas ao redor dos senhores feudais. A partir de então, inicia-se uma trajetória

de mudança na estrutura social, acompanhada pela constante transformação dos

8 São utilizados como referência principalmente os trabalhos de P. ARIES (1978, 1981), M. BAKHTIN (1987), L. MUMFORD (1961), A. CORBIN (1987) eN. ELIAS (1991).

21

padrões que estabelecem os tipos de comportamento aceitáveis em sociedade. Essa

trajetória, quando observada em sua totalidade, apresenta um sentido nítido: o avanço

crescente do sentimento de embaraço, explicitado sob a roupagem do refinamento. E o

avanço do sentimento de embaraço que permite a concepção da idéia de suj idade e,

por extensão, da idéia de lixo.

Assim como ELIAS atribui a um processo de mudança social a formação de

comportamentos aceitáveis em sociedade, RODRIGUES atribui a esse processo a

construção daquilo que permite a classificação de algo como lixo. Da mesma forma,

mantendo o paralelo com ELIAS, RODRIGUES sugere que práticas mais espontâneas

foram sendo substituídas por práticas cada vez mais racionais em relação ao lixo.

Em seu estudo sobre a dissolução da sociedade medieval e formação da

sociedade moderna, ELIAS identifica a construção de formas de conduta

desenvolvidas lentamente em sociedade e impossíveis de serem interpretadas como

comportamentos naturais. Existe uma conexão entre a transformação da estrutura

social e a construção de novas formas de determinação do comportamento. Enquanto

uma classe alta se dissolve e outra está emergindo, as hierarquias sociais vão sendo

violentamente reformuladas. É em meio a esse turbilhão que a questão do bom

comportamento passa a ser cada vez mais relevante. Ele observa que uma nova

configuração da estrutura social, particularmente relacionada a uma nova classe alta,

expõe os indivíduos às pressões dos demais e ao controle social:

O que ocorre, é que uma nova maneira de viver em sociedade torna as pessoas mais sensíveis às pressões das outras. Essas pressões, lentamente, tornam o código de comportamento mais rigoroso; elas aumentam o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente (ELIAS, 1991, p. 91).

A conexão entre a transformação da estrutura social e a construção de novas

formas de determinação do comportamento, deixa claro que o processo civilizador é

desencadeado pelo desenvolvimento de novos costumes entre a classe alta. Em

seguida, esses costumes passam a ser impostos ao restante da sociedade. Nesse

22

movimento, eles desempenham uma função: produzem um sinal de distinção entre as

classes que os desenvolvem, aquelas que os recebem e aquelas que os desconhecem. O

crescente movimento em direção ao embaraço, ao refinamento, longe de representar

uma mera frivolidade aristocrática, é peça ativa num processo que envolve dominação

e a delimitação de fronteiras rígidas entre grupos sociais.

RODRIGUES estende essa observação ao contexto representado pela noção

de sujidade. Para o autor, sujeira é algo que está estritamente ligado à marcação de

distâncias sociais, pois, fazer ou entrar em contato com algo que para o outro é sujo,

implica em manifestar automaticamente uma relação de hierarquia:

Podemos perceber isto mesmo em pequenos atos que explicitamente têm outras intenções. Assim, por exemplo, um gesto sutil como o de alguém de casa limpar com as próprias mãos a cadeira em que nos convida a sentar, ou como o de lavar em nossa frente um copo ou uma xícara que retirou já limpos do armário, dotando-os de uma limpeza adicional, são, além de simples demonstração de 'boas maneiras', uma expressão das respectivas posições sociais. Igualdade e familiaridade dispensariam totalmente estes atos (RODRIGUES, 1995, p. 95).

Mas como havia sido dito, é a necessidade de produzir distinção que leva à

formação de um abismo entre o mundo civilizado e o mundo medieval. Para ELIAS,

esse abismo faz com que o padrão de comportamento aceitável no segundo pareça

repugnante quando comparado àquele aceitável no primeiro. Está na origem desse

caráter repugnante:

A inexistência de uma parede invisível de emoções que se ergue entre um corpo humano e outro, repelindo e separando. Essa parede é perceptível à mera aproximação de algo que esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa; assume a forma de embaraço à mera vista das funções corporais de outrem ou até mesmo à sua mera menção; também assume a forma de vergonha quando nossas próprias funções são expostas à vista de outros (ELIAS, 1991, p. 82).

A construção dessa parede invisível de emoções é fundamental para pensar o

avanço do sentimento de embaraço. É por isso que RODRIGUES argumenta que ela

contribui para a compreensão da emergência das noções relacionadas à idéia de

sujidade, necessárias à classificação de algo como sendo lixo. O processo civilizador,

ainda que lentamente, irá delimitar rigorosamente aquilo que pertence ou não ao

23

indivíduo, aquilo que deve ou não ser considerado seu domínio. Ele irá construir a

parede invisível de emoções. Quanto mais rigorosa essa delimitação, quanto mais

rígida ela se apresentar, maior será a distância em relação ao contexto típico da

sociedade medieval. Ao mesmo tempo, maior será o padrão de embaraço, maior a

possibilidade de identificar a sujidade e de classificar algo como lixo.

O distanciamento crescente dos padrões observados na sociedade medieval

pode sugerir que certos comportamentos são eliminados, enquanto outros são

desenvolvidos e adotados, em função de causas higiênicas. ELIAS descarta essas

possíveis causas. Ele argumenta que, no início do processo de transformação dos

comportamentos, não se observa a utilização de razões higiênicas para produzir maior

condicionamento ou controle sobre os indivíduos. O que existem são razões

relativamente triviais, ilustradas por explicações como: "não faça isso porque não é

cortês", "porque não demonstra civilidade", "porque não é civilizado", "porque não

demonstra cultura".

Todas essas explicações reforçam a idéia de que a transformação dos

comportamentos deve ser atribuída a causas sociais. Mais especificamente, à

necessidade de adaptação em relação aos novos comportamentos que são

freqüentemente estabelecidos entre a classe alta:

Nada indica que a condição afetiva, o grau de sensibilidade, sejam mudadas pelo que descrevemos como evidentemente racional, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais. Não se diz, como se diria mais tarde, que é anti-higiênico ou prejudicial à saúde tomar sopa na mesma sopeira com outra pessoa. Não há dúvida de que a delicadeza de sentimentos é aguçada sob pressão da situação de corte, isto de uma maneira que mais tarde será parcialmente justificada por estudos científicos, mesmo que grande parte dos tabus que as pessoas gradualmente se impõem em seus contatos recíprocos, parte esta muito maior do que em geral se pensa, não tenha a menor ligação com a higiene, sendo motivada apenas por uma delicadeza de sentimentos (ELIAS, 1991, p. 123).

Mas, se as razões higiênicas não estão na origem do processo de

transformação dos comportamentos, isso não significa que se encontram divorciados

desse processo. Desempenham uma função. Uma vez definido um novo padrão de

comportamento, essas razões contribuem para reforçá-lo. Elas fazem com que aumente

24

sobre o indivíduo a pressão para que incorpore esse novo padrão. Incorporado, o

comportamento aceitável tende a ser visto como natural. Ele parece ao indivíduo um

reflexo de sua própria vontade, do seu desejo de zelar pela própria saúde. Em outras

palavras, as razões higiênicas contribuem para que o controle sobre os

comportamentos passe a ser realizado através de mecanismos internos ao indivíduo,

mecanismos de autocontrôlé.

Ao transformar o padrão de comportamentos aceitáveis em sociedade numa

questão de autocontrôlé, o processo civilizador faz com que o sentimento de embaraço

e suas conseqüências sejam percebidos como elementos absolutamente naturais. Uma

das conseqüências do embaraço, que passa a ser desempenhada como prática

corriqueira e natural, é o ato de segregar. Trata-se de remover o que é percebido como

embaraço para longe dos sentidos, para um espaço que ELIAS chama de fundo da vida

social, onde será contido e isolado.

Acompanhando até aqui os argumentos de ELIAS e RODRIGUES, é

possível delinear traços de um processo social que acompanha a construção da

sociedade moderna, possibilitando a emergência de uma noção que permite a

classificação de algo como lixo. Possibilita, também, a emergência de uma prática, a

segregação, até então inexistente, visto que inócua, para o manejo daquilo que passa a

ser identificado como sujo.

Se os argumentos apresentados acima demonstram o processo que resulta na

construção de uma noção e de uma prática, ao estudar a dinâmica social que está por

trás de alterações operadas sobre o olfato, A. CORBIN (1987) salienta que essa noção

e essa prática começam a ser particularmente visíveis entre o final do século XVIII e

início do XIX, quando emerge no continente europeu uma acentuada preocupação em

organizar o espaço urbano, dispondo, mediante separação, cada objeto, cada ser e cada

condição social, em seu lugar específico. Retomando argumento já abordado acima, o

autor sustenta que essa preocupação não revela uma causa higiênica, não é

desencadeada por uma relação cientificamente estabelecida entre causa e efeito. Ela é

tributária de uma nova fonte de embaraço: pânico em relação ao miasma, nojo em

25

relação à emanação da matéria orgânica em decomposição, agora vista como algo sujo.

Para CORBIN, organizar, segregando e separando, é, antes de mais nada,

evitar a presença daquilo que a sujeira da matéria em decomposição evoca: a passagem

do tempo, a presença da morte. Assim, coletar e afastar o lixo, expulsar os cemitérios e

isolar os mortos, pavimentar ruas e canalizar os rios para drenar os líquidos, são tarefas

que emergem com o objetivo de evitar o embaraço provocado por uma nova percepção

em relação à matéria orgânica em decomposição. Ele ressalta que a preocupação com a

segregação do lixo e dos mortos emerge simultaneamente, segregação que se inicia por

um sentimento de embaraço produzido socialmente. Em ambos os casos, a

preocupação em segregar dá origem a um movimento utópico, cujos contornos

dramáticos se estendem aos dias atuais, pois à medida que os restos são expulsos do

espaço urbano, este cresce, fazendo com que os mesmos voltem a fazer parte do seu

interior.

O primeiro projeto de reunião e segregação do lixo urbano data de 1779 e foi

colocado em prática em Paris. Segundo CORBIN (1987, p.150), o caráter utópico

desse projeto já demonstrava seus limites em 1826, quando a cidade de Paris decreta

uma espécie de guerra para combater o material em decomposição. Neste ano, o

incipiente projeto de segregação é transformado em um rigoroso processo de

elaboração de regras para ordenar a fisiología urbana para segregar. Procura-se

eliminar o material em decomposição sistematicamente. Desde então, o lixo passa a

receber atenção detalhada por parte das autoridades públicas, recebendo, inclusive, um

orçamento próprio. Alvo de estudos específicos, sua segregação adquire caráter cada

vez mais profissionalizado.

Percebe-se, portanto, através dos argumentos de CORBIN, como ocorreu, a

partir da construção social da noção de suj idade, o início do processo de

institucionalização da prática da segregação. Iniciado no século XVIII, é óbvio que

esse processo possui uma longa trajetória. Essa longa trajetória, no entanto, foge aos

26

objetivos do presente trabalho.9

1.4 DO LIXO, DAS PRÁTICAS CORRELATAS E DA NOÇÃO DE

SUSTENT ABILID ADE COMO CONSTRUÇÕES SOCIAIS

A construção da noção de sujidade é condição para a classificação de algo

como lixo. Também é importante para o estabelecimento de práticas que visem o seu

manejo. No entanto, particularmente a partir da segunda metade do século XX, além

de sujidade, o lixo começa a sugerir um problema sem precedentes. Num período em

que a modernidade em sua fase industrial atinge o seu auge, o lixo passa a representar

uma contradição: quanto mais essa sociedade se expande, mais gera resíduos; quanto

mais gera resíduos, mais sua expansão parece insustentável. Ao lado da evocação de

algo sujo, que deve ser segregado, o lixo também passa a representar um contraponto a

essa sociedade e ao seu padrão expansivo. Agora, não se trata apenas de segregar.

Trata-se também de desenvolver práticas que permitam recuperar aquilo que foi

jogado fora mas ainda guarda algum valor. Daí a relevância que a separação do lixo,

articulada a programas de reciclagem e coleta seletiva, passa a adquirir.

Em A era dos extremos, o historiador marxista E. HOBSBAWN caracteriza

as primeiras décadas da segunda metade do século XX como um período dourado para

o capitalismo. Marcado por um crescimento econômico vertiginoso, esse período

presenciou o aumento expressivo de todos os índices de produção, da indústria à

agricultura, até mesmo em países menos desenvolvidos. Isso permitiu, entre outras

coisas, a constituição da sociedade de bem-estar em alguns países europeus. Permitiu

também uma combinação bastante característica: crescimento populacional,

urbanização acelerada e a perseguição de um padrão de desenvolvimento ilimitado.

Segundo o autor, nessa época:

Mal se notava um subproduto dessa extraordinária combinação, embora em retrospecto ele

9 Para uma discussão a respeito desse tema ver L. MUMFORD (1961).

27

já parecesse ameaçador: a poluição e a deterioração ecológica. Durante a Era de Ouro, isso chamou pouca atenção, a não ser de entusiastas da vida silvestre e outros protetores de raridades humanas e naturais, porque a ideologia de progresso dominante tinha como certo que o crescente domínio da natureza pelo homem era a medida mesma do avanço da humanidade. (HOBSBAWN, 1997, p.257)

Pois bem, com o tempo e a partir da crítica à ideologia de progresso então

dominante, essa combinação revelou-se explosiva. O aumento exponencial da geração

de lixo foi um dos subprodutos inevitáveis dessa combinação. O problema que esse

aumento passou a representar pode ser verificado pela criação de uma expressão

específica para designar o lixo de maneira técnica: resíduos sólidos. De acordo com J.

DEMAJOROVIC (1995), nesse contexto o lixo deixa de ser visto apenas sob o prisma

da suj idade. Percebido como a origem de problemas sem precedentes, passa a ser

objeto de estudos cada vez mais freqüentes. Daí a elaboração de uma expressão técnica

para designá-lo.

A partir da bibliografia consultada é possível inventariar algumas das

objeções que contribuíram para transformar o lixo em origem de problemas sem

precedentes: problemas típicos ao campo do gerenciamento, como aumento dos custos

que envolvem as atividades de tratamento e a progressiva escassez de espaços que

servem como depósito; problemas de saúde pública, sociais ou de ordem estética

provocados pelo seu acúmulo; problemas ambientais relacionados às denúncias sobre

o esgotamento de recursos naturais e a degradação do meio; e, por fim, problemas

percebidos a partir de críticas feitas ao funcionamento do sistema produtivo e hábitos a

ele implícitos, particularmente o consumo.

Dessas objeções, especialmente as duas últimas podem ser apontadas como

decisivas para conferir ao lixo a reputação de um problema global. Elas impedem que

o lixo seja percebido como um mero problema da área de limpeza. Transformam-no

em contraponto de um modelo de sociedade apontado como contraditório e

insustentável. A partir daí, o lixo passa a integrar as discussões sobre a relação entre

sociedade e meio ambiente.

Os questionamentos sobre os rumos tomados pela relação entre sociedade e

28

meio ambiente, de acordo com K. THOMAS em O homem e o mundo natural,

acompanham o desenvolvimento do mundo moderno desde a sua formação. Para o

autor, esses questionamentos revelam uma contradição sobre a qual assenta a própria

modernidade: o conflito crescente entre as sensibilidades desenvolvidas em relação ao

mundo natural e os fundamentos materiais da sociedade. Ou ainda, é típico da

modernidade produzir sentimentos incompatíveis com os métodos que desenvolve

para possibilitar a apropriação do meio ambiente. Segundo o autor esse dilema pode

ser expresso da seguinte forma:

Como reconciliar as exigências físicas da civilização com os novos sentimentos e valores que essa mesma civilização engendra. Diz-se, com demasiada freqüência, que as sensibilidades e a moral são mera ideologia: uma racionalização conveniente do mundo tal como ele é. Mas, para o período moderno, a verdade é quase o oposto, pois, por uma lógica inexorável, emergem aos poucos atitudes face ao mundo natural essencialmente incompatíveis com a direção em que se move a sociedade. O crescimento das cidades conduz a um novo anseio pelo campo. O progresso da lavoura fomenta um gosto por ervas daninhas, montanhas e natureza não dominada. A segurança diante dos animais selvagens produziu um empenho cada vez maior em proteger aves e conservar as criaturas selvagens no seu estado natural. Doravante, uma visão cada vez mais sentimental dos animais enquanto bichos de estimação e objetos de contemplação irá acomodar-se mal com a sombria realidade de um mundo no qual a eliminação das 'pestes' e a criação de animais para abate torna-se a cada dia mais eficiente. (THOMAS, 1988, p. 356)

Pois bem, é consenso que esse dilema típico à modernidade passou a ter

repercussões superlativas após a segunda metade do século XX, incorporando a pauta

de movimentos sociais preocupados com os problemas ecológicos. De acordo com C.

GONÇALVES (2000), esses movimentos, como os demais que surgiram na década de

1960, têm sua emergência ligada ao declínio do movimento operário. Eles são a marca

de um contexto onde a crítica e o combate ao modo de produção capitalista deixam de

ser centrais, dando lugar a novos tipos de questionamentos. Entre esses

questionamentos encontram-se os referentes à degradação ambiental.

Como foi exposto acima, de acordo com HOBSBAWN, um dos fatores que

concorreu para a valorização da temática ambiental foi a atuação de alguns entusiastas

da vida silvestre. Entre esses entusiastas, Rachel CARSON, autora de um livro cujo

título é Primavera Silenciosa, publicado em 1962, desempenhou importante papel.

29

Nesse livro, a autora faz um alerta sobre o risco de envenenamento mundial pela ação

de agentes como o DDT. Segundo BURNIE (2001, p. 10), esse alerta representou um

marco, pois rompeu com a ótica de que a degradação ambiental era um fenômeno

regional, revelando suas possíveis implicações globais.

É nesse contexto que a produção crescente de lixo ganha novos significados.

Deixando de ser percebido como um problema restrito apenas ao âmbito da limpeza,

ele passa a refletir, ao mesmo tempo, a exploração irracional de recursos naturais e o

perigo de poluição do meio ambiente. Além disso, não apenas o lixo, mas também as

práticas que se estabelecem em relação a ele ganham novos significados. É por isso

que a separação do lixo, articulada a programas de reciclagem e coleta seletiva, passa a

ser vista como algo de extrema importância. Ela sempre foi praticada, em diferentes

sociedades e períodos históricos, mas agora também representa um instrumento para

economizar recursos e diminuir a poluição.

Não é à toa que justamente nessa década começam a surgir as primeiras leis

e programas oficiais organizando a prática da reciclagem. Tendo os Estados Unidos

como referência, R. BARBALACE (1998) mostra que é a partir da década de 1960

que começaram a ser elaboradas as primeiras leis federais para organizar o

gerenciamento do lixo, estimulando a prática da reciclagem, sempre enfatizando a

necessidade de se economizar recursos e reduzir impactos ambientais.

Comentando os programas de reciclagem que começam a funcionar nesse

período, W. ZALOUF (1995) observa que o tipo de reciclagem que se praticava pouco

contribuía para atingir esses objetivos. Sua realização dependia de usinas que

separavam o lixo coletado. Como o lixo orgânico era coletado junto ao inorgânico, um

diminuindo o potencial de aproveitamento do outro, a recuperação de materiais era

muito baixa e a redução dos impactos ambientais pouco significativa. Daí a reciclagem

demandar a separação prévia do lixo, desenvolvendo-se a coleta seletiva entre uma

prática e outra.

Nas décadas subseqüentes, diferentes estratégias foram elaboradas para

assegurar a prática da separação do lixo. Desde campanhas de conscientização

30

ambiental, procurando despertar nos individuos a importância dessa prática, até a

utilização de mecanismos de mercado, instituindo uma cobrança diferenciada para a

coleta do lixo que não foi separado. Em qualquer um desses casos, no entanto, é

importante ressaltar que nunca houve um consenso a respeito das virtudes de práticas

como separação, coleta seletiva e reciclagem para resolver o problema do lixo. Ao

longo da década de 1970, outros acontecimentos contribuíram para inviabilizar esse

consenso.

Não se pode esquecer que no início dessa década, além da divulgação do

Relatório Meadows - Os limites do crescimento, ocorreu a Conferência Mundial sobre

o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo. Os dados divulgados pelo primeiro,

embora cercados de controvérsias, tiveram grande repercussão. Apontavam para o

inevitável esgotamento dos recursos naturais, caso o modelo de desenvolvimento

econômico predominante fosse mantido. Já a segunda representou um marco decisivo

para a elaboração do conceito de desenvolvimento sustentável.

Analisando os discursos que defendem práticas voltadas para o

desenvolvimento sustentável, E. LEFF (2001) observa que nunca houve

homogeneidade entre os mesmos. Trata-se de um tema apropriado pela conveniência

de diferentes interesses e grupos sociais. Assim, desenvolvimento sustentável para

alguns pode significar pequenas alterações nos rumos do desenvolvimento econômico,

caracterizadas por mudanças de padrão tecnológico e aperfeiçoamento de mecanismos

de mercado. Trata-se de operar pequenas adaptações na organização social para que a

mesma possa comportar princípios de respeito ao meio ambiente. Para outros, no

entanto, desenvolvimento sustentável é algo que pressupõe uma verdadeira ruptura,

implicando em um extenso projeto de mudança de valores e comportamentos. Aqui, a

origem das agressões ao meio ambiente não se encontra apenas na maneira de se

produzir e consumir mercadorias, mas acima de tudo, em uma cultura instrumental que

gera valores e comportamentos insustentáveis.

Dentro da primeira perspectiva apontada por LEFF, separação, coleta

seletiva e reciclagem representam práticas fundamentais para a construção do

31

desenvolvimento sustentável. São, antes de mais nada, exemplos de aplicação da

técnica e de mecanismos de mercado que corrigem os padrões insustentáveis de

organização social. Já para a segunda perspectiva, essas práticas são vistas apenas

como secundárias, pois não garantem mudanças na cultura que é compatível com a

manutenção de uma sociedade insustentável. Atacar essa cultura, reduzindo o volume

de lixo gerado e reutilizando sempre que possível é a estratégia principal. Daí a

elaboração do já consagrado princípio conhecido como 3Rs, formado pelas iniciais das

palavras reduzir, reutilizar e reciclar.

A crítica formulada ao padrão cultural que está na base do modelo de

produção e consumo das sociedades modernas demonstra o porquê de se atribuir

limitações às práticas corretivas, que atuam após o lixo ter sido gerado.

Analisando a produção da teoria social contemporânea, D. GOLDBLATT

(1996) observa que a crítica mais influente a esse padrão cultural foi elaborada por A.

GORZ. Para o autor:

Gorz partilhou a linhagem intelectual de ambientalistas com tendências radicais. Observou o mundo industrializado segundo um padrão de referência semelhante, lamentando o apetite insaciável desse mundo pelos recursos naturais e o seu espírito de consumo evidente. Gorz tentou, pois, diagnosticar um conjunto paralelo de problemas sociais e ecológicos: a interrupção da degradação do ambiente; a criação de padrões culturais alternativos; uma revisão radical dos modelos de consumo e produção. (GOLDBLATT 1996, p. 117)

Utilizando o modelo clássico do marxismo, segundo o qual a dinâmica

capitalista aponta sempre para a redução da taxa de lucratividade do capital, GORZ

(1975) analisa as estratégias utilizadas para viabilizar a geração de lucro em meio aos

obstáculos dessa crise estrutural. Duas estratégias são evidentes: vender maior

quantidade de bens ou produzir bens cujo valor agregado é maior. Em ambos os casos,

a dinâmica do crescimento econômico entra em choque com os limites físicos do

mundo natural, pois a superação do obstáculo é obtida à custa do aumento dos níveis

de danos ecológicos.

Mas, se as duas estratégias acima são evidentes, a estratégia principal para

contornar os obstáculos da crise estrutural acaba sendo a redução intencional das

32

capacidades de duração, segurança e reparo dos produtos. Trata-se da obsolescência

programada, estratégia que obriga a substituição freqüente dos produtos, implicando

em aumento dos padrões de consumo. Essa é a lógica, por exemplo, da substituição de

embalagens reutilizáveis por embalagens descartáveis. Da mesma forma, é o que

ocorre com a redução da qualidade de produção, tornando inviável a reparação. O

aumento do volume de vendas implica obrigatoriamente na utilização de um volume

maior de recursos naturais e na geração de um volume maior de resíduos. Assim como

os recursos naturais são limitados, os espaços para a disposição desses resíduos

também o são.

Nessa perspectiva, os problemas ligados ao crescente volume de lixo

representam um reflexo da cultura ligada à obsolescência programada. A crítica

elaborada por GORZ deixa uma interrogação: seria possível combater essa cultura

dentro dos limites da própria sociedade capitalista? E, nesse sentido, seria possível

pensar práticas como separação, coleta seletiva e reciclagem como não sendo

meramente corretivas?

Num trabalho que levanta o histórico do conceito de desenvolvimento

sustentável, FOLADORI e TOMMASINO (2000) argumentam que,

independentemente da leitura política que se faça da noção de sustentabilidade, essa

possibilidade é sempre limitada. Para os autores, o conceito de desenvolvimento

sustentável está sempre vinculado, teórica e praticamente, a três esferas: a

sustentabilidade ecológica, a sustentabilidade econômica e a sustentabilidade social.

Nessas três esferas, ao longo dos últimos trinta anos, o conceito de desenvolvimento

sofreu uma espécie de processo evolutivo. No entanto, esse processo não permitiu a

ultrapassagem de um limite demarcado pela perspectiva técnica, aquela que reduz a

polêmica sobre o desenvolvimento sustentável às mudanças possíveis dentro do

sistema capitalista. O conceito permanece restrito às regras do jogo de mercado

capitalista, sem atacar as relações sociais de produção, responsáveis por variados

problemas, dentre eles a degradação ambiental. Seja qual for a prática inspirada pelo

conceito de desenvolvimento sustentável, ela sempre carregará a limitação estrutural

33

de atacar conseqüências e não as suas causas.

Portanto, separação, coleta seletiva e reciclagem, carregam uma limitação.

Mesmo quando pensadas sob o prisma da crítica do consumo e da obsolescência

programada, sugerindo mudanças de comportamentos e valores, o fazem dentro das

regras do jogo do sistema de mercado capitalista, sem alcançar nem questionar as

relações sociais de propriedade e apropriação.

1.5 DA SEPARAÇÃO, DA COLETA SELETIVA E DA RECICLAGEM:

PRÁTICAS GERADORAS DE EDUCAÇÃO OU ADESTRAMENTO

AMBIENTAL?

A idéia de que a prática da separação do lixo, através de programas de

reciclagem e coleta seletiva, está ligada a algum processo de educação ambiental virou

uma afirmação banal. E difundida e, ao mesmo tempo, bastante questionada.

Nos Cadernos de reciclagem, publicação de referência no Brasil sobre o

tema, muito utilizada por administrações locais para orientar a organização dos seus

programas de coleta de lixo, a relação acima é expressa de forma clara:

Um programa de reciclagem tende a desenvolver na população uma nova consciência sobre questões que envolvem a economia e a preservação ambiental. O cidadão, ao acondicionar corretamente o lixo de sua residência, passará a se colocar como peça integrante de todo um sistema de preservação do meio ambiente, bem maior e mais concreto do que um mero espectador de todas as campanhas comumente veiculadas em favor da preservação de sua própria espécie. (CEMPRE/IBAM, 1997, p. 12)

Aqui, a separação do lixo aparece como uma estratégia importante para

contribuir com o desenvolvimento sustentável, pois representa uma atividade mais

concreta do que campanhas em defesa do meio ambiente que abordam temas muito

genéricos e abstratos. Essa prática concreta é descrita como um ponto de partida para a

construção de uma nova consciência, elemento importante para conduzir o indivíduo a

pensar a respeito da sua relação com o meio ambiente. Da forma como está exposto, o

mero ato de acondicionar o lixo corretamente já implica na existência de um processo

de educação ambiental.

34

Um outro exemplo da relação entre a prática da separação do lixo e o

processo de educação ambiental pode ser observado em um guia de reciclagem

destinado às prefeituras brasileiras. Nesse guia afirma-se que:

É sempre bom lembrarmos desta questão [da educação ambiental], pois na grande maioria dos municípios brasileiros, principalmente aqueles cujas gestões municipais não estão focadas nos aspectos do meio ambiente, as coisas para funcionarem razoavelmente precisam primeiro virar lei para depois serem uma realidade. Isso não é bom, pois no que tange ao meio ambiente muita coisa poderia ser espontânea se houvesse interesse na preservação e consciência acima de tudo (...) E importante a execução de campanhas de educação visando inserir as pessoas no contexto ambiental e envolvê-las na solução de problemas. E sabido que a população em sua maior parte não coopera com as questões ambientais devido à desinformação. Não pode haver conservação nem preservação ambiental sem educação e a participação em programas de reciclagem é um dos meios mais eficientes para se promover essa educação. (GRIPPI, 2001, p. 61)

No diagnóstico desse autor, quando a população não coopera com as

questões ambientais isso se deve à falta de informação. Educar, para que haja

"consciência acima de tudo", é disponibilizar informações. A separação do lixo em

programas de reciclagem é um eficiente meio para realizar essa tarefa.

Para citar um último exemplo a respeito dessa relação, é válido observar que

o mesmo ponto de vista pode ser encontrado em discursos oficiais da Prefeitura

Municipal de Curitiba. A Sra. Marilza Oliveira, Superintendente de Controle

Ambiental da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA) afirma que:

Na época que optamos por implantar a coleta seletiva, outros lugares do Brasil optaram por uma sistemática diferente, coletando o orgânico e o inorgânico de forma conjunta. A partir disso, as pessoas contratadas separavam. Uma parte era destinada à compostagem e outra à reciclagem. Muitas dessas unidades não operam mais hoje em dia, estão fechadas. Em primeiro lugar porque a qualidade do lixo não é boa. O material reciclado fica muito sujo e isso diminui o seu valor de comercialização. Em segundo lugar porque as técnicas de compostagem daquela época não eram muito adequadas. Em Curitiba foi criado outra coisa, que é o envolvimento da população. As pessoas separam o lixo dentro de casa. No começo foram realizadas muitas campanhas, o que não se faz mais hoje em dia. A própria prática da separação faz com que as pessoas acabem criando uma consciência de que aquilo é importante para o meio ambiente como um todo. Quem separa o lixo, no nosso entendimento, separa porque entende que de alguma maneira está contribuindo para cuidar do meio ambiente.10

2j Entrevista concedida ao autor (09 de janeiro de 2003).

35

Tal como as citações acima sugerem, a prática da separação do lixo como

ponto de partida para a educação ambiental evoca a metodologia da resolução de

problemas ambientais locais. Essa metodologia tem como marco inicial a conferência

organizada pela UNESCO na cidade de Tbilisi, na então União Soviética, em 1977.

Nessa conferência, a partir de um diagnóstico que atribui a origem dos problemas

ambientais atuais à cultura utilitarista e instrumental que está na base das sociedades

modernas, a educação ambiental foi apontada como instrumento decisivo para a

construção de uma sociedade sustentável. Para orientar a prática dessa educação

ambiental a conferência aconselhou a utilização da metodologia de resolução de

problemas ambientais locais.

Analisando essa recomendação metodológica, P. LAYRARGUES comenta

que:

A característica mais importante da educação ambientai é, provavelmente, a que aponta para a resolução de problemas concretos. Trata-se de que os indivíduos, qualquer que seja o grupo da população a que pertençam e o nível em que se situem, percebam, claramente, os problemas que restringem o bem-estar individual e coletivo, elucidem as suas causas e determinem os modos de resolvê-los. Deste modo, os indivíduos estarão em condições de participar na definição coletiva de estratégias e atividades encaminhadas para eliminar os problemas que repercutem na qualidade do meio ambiente. (LAYRARGUES, 2001, p. 133)

A metodologia procura criar vínculos entre o processo de educação

ambiental e a realidade cotidiana dos indivíduos. Mais especificamente, procura

envolver os indivíduos em um mecanismo comunitário onde os problemas ambientais

são coletivamente percebidos, suas causas elucidadas e possíveis soluções são

apontadas.

A partir disso, percebe-se porque a relação entre a prática da separação do

lixo e o processo de educação ambiental pode ser questionada. Trata-se, de fato, de

uma prática que coloca o indivíduo em contato imediato com a temática ambiental. Por

outro lado, esse contato não significa necessariamente o cumprimento de todos os

aspectos que envolvem a metodologia em questão. Separar o lixo não implica

obrigatoriamente em estar engajado numa reflexão coletiva a respeito do tipo de

problema com que se está lidando, ou a respeito das origens e possíveis soluções desse

36

problema.

A esse respeito, LAYRARGUES (2001, p. 135) observa que a estratégia da

resolução de problemas ambientais locais não tem sido usada necessariamente como

uma prática a partir da qual se irradia uma concepção pedagógica comprometida com a

compreensão e a transformação da realidade. Predominantemente, ela é utilizada como

uma atividade fim, visando unicamente a resolução pontual de um problema

específico. Nesse último caso, o autor argumenta que qualquer esforço educativo tende

a ser infrutífero, pois as informações recebidas não serão necessariamente convertidas

em mudança de atitudes ou reflexão sobre comportamentos e valores arraigados.

Tomando um programa de coleta seletiva que siga essa orientação como exemplo, as

informações que ele disponibilizar não terão outro efeito além de preparar um

indivíduo para separar o seu lixo.

Ao refletir sobre o tipo de prática apresentada acima, P. BRÜGGER (1994,

p. 32) comenta que as próprias noções de educação e consciência ambiental acabam

sendo colocadas em questão. A responsabilidade pelos danos ambientais é atribuída,

genericamente, à falta de educação ou de consciência dos indivíduos, reproduzindo

uma visão ingênua que identifica no homem a predisposição natural para a degradação

do seu meio. Visto como um ser desprovido de cultura e até mesmo de uma dimensão

ética, esse homem naturalmente predisposto á degradação precisa ter seus hábitos

transformados. E nessa perspectiva, segundo a autora, ele é treinado, não educado.

A autora faz referência ao treinamento de maneira pejorativa. Assim, treinar

implica em um tipo de formação de caráter estritamente técnico, cujos conteúdos

limitados preparam para a execução de tarefas previamente definidas: "um treinamento

se aproxima bastante de um adestramento, um tipo de instrução onde as pessoas são

levadas a executar determinadas funções e tarefas, identificadas com um determinado

padrão utilitarista e unidimensional de pensamento e ação." (BRUGGER, 1994, p. 34)

Adestrar, portando, ao invés de educar, é o resultado obtido por um

programa que visa a mudança pontual de comportamentos, sem remeter essa mudança

a discussões mais amplas sobre os valores que orientam tais comportamentos. Mudam-

37

se os comportamentos e preservam-se os valores. Ou ainda, resolve-se um problema

específico sem que suas causas principais sejam atacadas.

É nesse sentido que a autora, em trabalho dedicado à análise da influência

dos meios de comunicação sobre o processo de educação ambiental, questiona a

formação de uma consciência ambiental (BRUGGER, 2002, p. 144). Falar em

consciência ambiental frente a um padrão cultural hegemônico que é francamente

insustentável, valorizando hábitos e comportamentos antagônicos ao meio ambiente,

constitui uma incoerência. Por outro lado, constatar que comportamentos adequados

do ponto de vista ambiental têm sido pontualmente criados dentro desse padrão

cultural hegemônico, sem criticá-lo ou alterá-lo, constitui prova de que o adestramento

prevalece sobre a educação e a conscientização.

LAYRARGUES (2002) estende esse raciocínio à análise da reciclagem,

observando que os programas de coleta seletiva em geral têm sido caracterizados por

uma tônica: enfatizam a separação do lixo em detrimento de uma reflexão mais

elaborada sobre as origens sociais desse problema. Há mais preocupação com a

promoção de uma mudança pontual de comportamento, relacionada à técnica da

disposição domiciliar do lixo, do que com o padrão cultural que serve de base a uma

sociedade que se organiza de maneira insustentável. Ao invés do questionamento a

respeito das causas e conseqüências relacionadas ao problema do lixo, remete-se à

discussão alienada sobre procedimentos técnicos que favorecem a reciclagem. A

prática da separação se esgota nela mesma.

Por fim, o autor argumenta que práticas de educação ambiental

desenvolvidas para a resolução de problemas ambientais pontuais, orientadas como um

fim em si mesmas, fomentam a percepção equivocada de que o problema ambiental

não está inserido numa cadeia sistêmica de causa e efeito, e que sua resolução depende

apenas de soluções técnicas ou mudanças de comportamento.

Em resumo, este capítulo procurou demonstrar que tanto o lixo como as

práticas a ele correlatas são construções sociais. Dessa forma, assim como deve ser

datada e contextualizada a percepção do lixo como um problema ambiental que

38

assume proporções globais, o mesmo deve ser feito em relação à percepção que

redefine o significado de práticas como separação, reutilização e reciclagem. Por outro

lado, é importante frisar que, mesmo com a valorização recebida ao longo do último

quarto de século, essas práticas estão longe de representar uma solução consensual

para os problemas relacionados ao lixo. Ao contrário, elas podem ser associadas a

conseqüências francamente antagônicas. Vimos que se de um lado elas são associadas

à emergência de algo que vem sendo chamado de consciência ambiental, de outro são

associadas ao mero treinamento, também chamado de adestramento. É através dessa

problemática que opõe consciência a adestramento que se pretende situar o estudo de

caso que será apresentado adiante no capítulo quatro.

39

2 DO GERENCIAMENTO DO LIXO E DA COLETA SELETIVA: O

CONTEXTO BRASILEIRO E O CASO DE CURITIBA

2.1 DO GERENCIAMENTO DO LIXO E DA COLETA SELETIVA NO BRASIL:

ALGUNS DADOS

No Brasil, tanto por uma questão de tradição quanto devido à legislação, os

serviços de limpeza pública são uma responsabilidade das administrações locais. São

elas as responsáveis pela sua execução direta ou pela contratação e fiscalização de

empresas prestadoras de serviço. Esses serviços compreendem, basicamente, a limpeza

dos espaços públicos, a coleta domiciliar do lixo, seu transporte e o seu destino final.

Mesmo isoladamente, essa característica é importante. S. CALDERONI

(1998, p. 190) ressalta que a ausência de uma política nacional que oriente e organize

o setor constitui um grande obstáculo. Isso ocorre, pois os municípios, combinando

limitações políticas, técnicas e financeiras, encontram-se obrigados a solucionar um

problema que, a princípio, não tem sua origem delimitada ao contexto urbano. Mais

especificamente, trata-se de um problema cujas dimensões fogem à capacidade de

gerenciamento dos municípios. Como exemplo, o autor comenta sobre a necessidade

de leis que regulamentem o mercado de reciclagem. Essas leis, relacionadas

principalmente à esfera do trabalho e da tributação, dependem do poder federal. Nesse

caso, a ausência de uma política nacional implica na expansão informal do setor, tendo

como uma de suas principais conseqüências a brutal exploração do trabalho dos

catadores de lixo.

Quanto aos dados sobre os serviços de limpeza pública e gerenciamento do

lixo no Brasil, eles podem ser obtidos através dos levantamentos elaborados pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que compõem a Pesquisa

Nacional de Saneamento Básico (PNSB, 2000). Sobre esses dados, duas ressalvas são

necessárias.

40

Em primeiro lugar, todos os sistemas de limpeza urbana são constituidos

essencialmente de serviços cuja operação depende de um fluxo permanente de

recursos. Por conseqüência, qualquer alteração nesse fluxo pode gerar mudanças

significativas sobre o serviço que está sendo prestado. Um aterro sanitário, por

exemplo, pode ser transformado num lixão em questão de dias, bastando que a sua

manutenção técnica adequada deixe de ser realizada. Assim, o próprio relatório do

IBGE (PNSB, 2000, p. 50) aponta que, embora permitam um certo conhecimento do

setor, os dados levantados pela instituição não são capazes de acompanhar a dinâmica

potencial dos serviços de limpeza pública nos municípios brasileiros.

Em segundo lugar, a sistemática de coleta dos dados apresentados pelo

levantamento tem sido questionada. Elizabeth GRIMBERG, coordenadora do Fórum

Nacional Lixo e Cidadania, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo (28/03/2002,

p. C4), comenta que as informações divulgadas pelo IBGE são obtidas através dos

próprios órgãos responsáveis pela execução dos serviços de limpeza, as prefeituras e

as empresas contratadas. Ela observa que essa fonte de informações pode ter levado o

IBGE a conclusões inadequadamente otimistas.

Feitas essas duas ressalvas, deve ficar claro que as informações apresentadas

a seguir, com base na Pesquisa Nacional de Saneamento Básico realizada pelo IBGE

em 2000, podem estar refletindo apenas uma imagem aproximada do setor.

O primeiro destaque da pesquisa é referente à questão do destino final que se

dá ao lixo coletado. Segundo o levantamento do IBGE, esse destino vem melhorando:

47,1% em aterros sanitários, 22,3% em aterros controlados e 30,5% em lixões. De

acordo com os critérios adotados pelo IBGE, tanto os aterros sanitários como os

controlados podem ser considerados destinos adequados. Portanto, 69,4% do lixo

coletado nas cidades brasileiras estaria recebendo um destino final adequado. Em i

comparação com os dados levantados em 1989, quando 10,7% dos municípios faziam

o mesmo, o novo dado sugere uma significativa melhora.

Para explicar essa melhora, o IBGE levanta fatores como: maior consciência

da população sobre a questão da limpeza urbana; a forte atuação do Ministério

41

Público, que vem agindo ativamente na indução à assinatura, pelas prefeituras, dos

Termos de Ajuste de Conduta para recuperação dos lixões; a força e o apelo popular

do programa da UNICEF (Lixo e Cidadania - Criança no Lixo, Nunca Mais); o aporte

de recursos do governo federal para o setor, através do Fundo Nacional de Meio

Ambiente; e, finalmente, o apoio de alguns governos estaduais.

Após a questão do destino final, a pesquisa aborda a tendência de aumento

na geração do lixo domiciliar. Esse aumento ocorre em relação direta com o número

de habitantes dos municípios brasileiros. Nos municípios com população até 200.000

habitantes, pode-se estimar a quantidade coletada variando entre 450 e 700 gramas por

habitante/dia. Nas cidades com mais de 200.000 habitantes essa quantidade aumenta

para a faixa entre 800 e 1200 gramas por habitante/dia. Nesse tópico, a pesquisa ainda

informa que, no momento da sua realização, eram coletados 125.281 toneladas de lixo

domiciliar, diariamente, em todos os municípios brasileiros.

Um terceiro destaque da pesquisa diz respeito aos aspectos institucionais do

serviço de limpeza pública. Existe uma tendência para a terceirização desses serviços

em todas as regiões brasileiras. No entanto, essa tendência é mais acentuada

principalmente nos municípios de maior porte. Além disso, onde há terceirização, há

também a cobrança de alguma taxa específica. Isso resulta da necessidade das

prefeituras garantirem a remuneração das empresas contratadas, gasto que já não pode

ser coberto apenas com recursos do próprio orçamento.

Até aqui, os dados divulgados pelo IBGE apontam um cenário grave.

Embora exista a percepção de que o destino final dado ao lixo melhorou, isso ocorre

ao mesmo tempo em que o volume de lixo gerado aumenta e os serviços necessários

ao seu gerenciamento ficam mais caros. Em função disso, percebe-se que a questão do

destino final, embora importante, não é suficiente para gerar otimismo em relação aos

problemas representados pelo lixo.

Um quarto destaque da pesquisa diz respeito à relação entre recursos

investidos no setor do gerenciamento do lixo e sua capacidade de geração de

empregos. São aproximadamente 317.744 pessoas empregadas formalmente em todo o

42

Brasil, seja nos quadros das prefeituras ou das empresas terceirizadas. No entanto,

deve-se ressaltar que esse número não inclui o trabalho informal, realizado por

catadores que atuam em lixões e vias públicas. Nesse ponto, a própria pesquisa revela

a dificuldade de se contabilizar o setor informal de trabalho que vem sendo mobilizado

em torno do gerenciamento do lixo.

Por fim, o levantamento do IBGE traz também alguns números referentes à

coleta seletiva. Dos 5.507 municípios brasileiros, 451 apresentam programas em

atividade, aproximadamente 8% do total. Dos municípios que implantaram programas,

50 interromperam o seu funcionamento, aproximadamente 10% do total. Entre as

principais causas levantadas para a interrupção dos programas estão: a falta de local

adequado para acondicionar o material coletado; a má aceitação por parte da

comunidade; a falta de campanhas de conscientização e os custos de manutenção do

programa. Por outro lado, 951 municípios declaram planejar a implantação desses

programas. Estimando toda a população urbana em 169,5 milhões de habitantes, 8

milhões, aproximadamente 4,7%, têm acesso a esses programas.

Quanto ao alcance, 39% dos programas atuam em todo o município, 28%

somente no distrito sede e 24% em bairros selecionados. No total são coletadas 4.290

toneladas/dia, aproximadamente 3,4% de todo o lixo gerado no país.

Com esses números, é possível perceber que os programas de coleta seletiva,

em que pesem a abrangência dos serviços prestados ou os resultados em termos de

volume de lixo coletado, têm desempenhado uma contribuição tímida na resolução dos

problemas ligados ao lixo.

2.2 DO GERENCIAMENTO DO LIXO E DA COLETA SELETIVA EM

CURITIBA: ALGUNS DADOS

O gerenciamento do lixo em Curitiba tem suas orientações mais genéricas

inscritas na Lei n.°699 de julho de 1953. Trata-se do Código de Posturas e de Obras do

Município. Esse código (SMMA, 1998, p.71) discorre sobre três pontos principais: a

43

proibição, sob pena de multa, de se jogar lixo nas vias públicas ou outros logradouros;

a responsabilidade privativa da Municipalidade sobre as atividades de limpeza das vias

públicas e retirada do lixo domiciliar e, por fim; a obrigatoriedade de um determinado

tipo de recipiente para fins de depósito de lixo.

Já a Lei n.° 7833, de 19 de dezembro de 1991 (SMMA, 1998, p.122), que

dispõe sobre a política de meio ambiente do município, além de determinar

procedimentos específicos sobre o gerenciamento do lixo, capacita a Secretaria

Municipal do Meio Ambiente (SMMA) a elaborar as diretrizes para orientar esse

gerenciamento.

A partir da lei citada acima, depreende-se que a SMMA coordena o

gerenciamento do lixo em Curitiba. Subordinado à SMMA, o Departamento de

Limpeza Pública (DLP) é o responsável pela execução dos serviços através de uma

empresa terceirizada. Portanto, seguindo a tendência apontada pelo IBGE para os

grandes municípios brasileiros, o serviço é terceirizado e há a cobrança de uma tarifa

específica, vinculada ao IPTU e calculada a partir do valor venal do imóvel.

A empresa executora dos serviços é a CAVO - Serviços e Meio Ambiente.

Atuando, também, em pequenos municípios do interior paulista e em três grandes

centros urbanos (Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas), a empresa executa cinco

modalidades de serviço em Curitiba desde 1996: a coleta domiciliar, a coleta de

recicláveis, a coleta do lixo hospitalar, a varrição das ruas e o controle do ateno

sanitário.

Sobre esses serviços, a Pesquisa de Satisfação do Cidadão (FGV/PESC,

2002, p. 11) revela que Curitiba apresenta o serviço de coleta de lixo melhor avaliado

entre noventa e dois municípios brasileiros, dentre os quais nove capitais. De acordo

com o índice de Satisfação com os Serviços Públicos (ISSP) utilizado pela pesquisa,

dentro da capital paranaense o serviço de coleta de lixo é superado apenas pelo serviço

de transporte coletivo.

Além da coleta em si, a pesquisa aponta o destino final dado ao lixo como

um dos pontos principais do serviço prestado em Curitiba. Quanto ao destino final

44

dado especificamente ao lixo domiciliar, desde novembro de 1989 ele vem sendo feito

num depósito conhecido como Aterro Sanitário da Caximba. Situado no extremo sul

da cidade, está a 23 quilômetros do centro. Antes de utilizar esse aterro, o município

depositava seus resíduos no Lixão de Lamenha Pequena. Esse lixão, utilizado durante

mais de vinte anos, esteve ligado à poluição do Rio Passaúna, responsável por parte da

água que abastece Curitiba. Portanto, nesse quesito, a cidade, pelo menos a princípio,

segue outra tendência detectada pelo levantamento do IBGE: melhora em relação ao

destino final dado ao lixo.

É válido observar que essa melhora é vista com ressalvas. Em estudo sobre

as características geográficas do local onde se encontra o novo depósito, A. GAIESKI

(1991, p.141) conclui que o terreno não dispõe das características adequadas para o

recebimento de lixo. Trata-se de uma área de mananciais e o terreno permite a

migração rápida da lixivia para as águas do rio Iguaçu. Além disso, o autor observa

também que a escolha do terreno não deve ser atribuída à falta de outros espaços, pois

a região sul do município, à época da construção do aterro, dispunha de terrenos mais

adequados.

Em relação à geração de lixo, dados fornecidos pela SMMA (2002, p.6)

indicam que, em 2001, o serviço de coleta domiciliar foi responsável pelo

recolhimento de 378.981 toneladas, o que representa algo em tomo de 1.100 toneladas

de lixo por dia. A média de lixo produzida por habitante/dia é superior àquela

apontada pelo IBGE para os grandes municípios: 1.300 gramas/dia.

Quanto à presença de catadores nas vias públicas, a SMMA estima a

existência de aproximadamente 3.500 indivíduos vivendo dessa atividade. A Sra.

Marilza Oliveira, Superintendente de Controle Ambiental da SMMA" comenta que

esse número é bastante polêmico. Em primeiro lugar, porque oscila com bastante

freqüência. Em segundo lugar, porque há divergência em relação à metodologia de

contagem. Ela afirma que, para alguns grupos ligados à defesa desses trabalhadores,

2j Entrevista concedida ao autor (09 de janeiro de 2003).

45

toda a sua família deve ser incluída na contagem, o que elevaria o número a quase

17.000 indivíduos. De qualquer forma, é relevante o fato de que esses catadores são

responsáveis pela coleta de 350 toneladas/dia de lixo reciclável. Isso representa 85%

de todo o lixo que a cidade encaminha para a reciclagem. Enquanto isso, os caminhões

dos programas oficiais coletam 60 toneiadas/dia.

Finalmente, quanto à coleta seletiva, Curitiba dispõe de dois programas

oficiais que funcionam há mais de uma década: o "Lixo que não é Lixo" e o "Câmbio

Verde". O primeiro entrou em funcionamento em outubro de 1989 e o segundo em

junho de 1991.

Situando esses programas em relação aos existentes em outros municípios,

Curitiba assume uma posição de destaque. Em 1993 o Compromisso Empresarial para

a Reciclagem (CEMPRE) iniciou uma série de levantamentos paia monitorar o

funcionamento dos programas de coleta seletiva e reciclagem no Brasil. De acordo

com essas informações (CEMPRE, 1999, p.2), os programas de coleta seletiva de

Curitiba superam significativamente os de outros municípios em dois quesitos: parcela

da população atendida (99,2%) e quantidade de material reciclável coletado (2300

toneladas/mês)12. Além disso, o custo da coleta seletiva em Curitiba é um dos mais

baixos no Brasil, US$ 59,4/tonelada enquanto a média nacional é US$ 157/tonelada.

E importante ressaltar que os dados apresentados acima não significam a

existência de um consenso positivo sobre os programas de coleta seletiva em Curitiba.

Na própria cidade, as críticas a esses programas procedem de diferentes segmentos

sociais.

Um primeiro exemplo dessas críticas procede de setores do movimento

ambiental. Ligada a esses setores, Tereza URBAN, em entrevista ao jornal Gazeta do

Povo (02/03/1999, p. 6), comenta os limites dos programas de coleta seletiva num

12 Como foi apontado anteriormente, os números sobre o lixo destinado à reciclagem em Curitiba não podem ser atribuídos somente aos programas de coleta seletiva. Os catadores são responsáveis por mais de 80% desse total. Os dados levantados pelo CEMPRE não apresentam essa distinção.

46

plano genérico e também em Curitiba. Ela argumenta que esses programas obedecem a

uma lógica contraditória. Procuram equacionar os imensos problemas originados pelo

lixo, responsabilizando apenas o consumidor, muitas vezes representado pela dona de

casa. Ao mesmo tempo, atenuam a responsabilidade dos grandes geradores de lixo.

Não combatem um problema ambiental. Apenas criam a falsa idéia de que o fazem.

Outro exemplo procede de setores de oposição ao grupo político

identificado com a criação e gerenciamento dos programas de coleta seletiva. Marcelo

Almeida13, Vereador pelo PMDB, afirma que a Prefeitura Municipal de Curitiba

(PMC) não tem sido correta ao divulgai- os êxitos da coleta seletiva na cidade.

Segundo o Vereador, o avanço da coleta seletiva teve como causa primordial o

trabalho dos catadores que coletam a maior parte do material reciclável. Ou seja, a

coleta seletiva ocorre a despeito dos programas oficiais.

Por fim, um último exemplo dessas críticas procede do Fórum Lixo e

Cidadania - Criança no Lixo Nunca Mais. A Sra. Margareth Carvalho14, Promotora

Pública e representante do fórum no Paraná, questiona os impactos sociais causados

pelos programas de coleta seletiva. Em relação ao "Câmbio Verde", ela afirma que o

programa permite o envolvimento de crianças e adolescentes na coleta de material

reciclável. Isto faz com que a PMC estimule um tipo de trabalho proibido pela

Constituição e combatido por várias organizações da sociedade civil. Em relação ao

"Lixo que não é Lixo", ela afirma que esse programa encobre um enorme descaso da

PMC com os catadores. Para a Promotora, é inadmissível que os mesmos respondam

pela coleta de mais de 80% do material reciclável sem que o poder público

desencadeie alguma política para melhorar suas condições de trabalho.

A validade dessas críticas torna relativo o aparente sucesso dos programas de

coleta seletiva de lixo em Curitiba. Nesse sentido, elas sugerem que a repercussão

Entrevista concedida ao autor (21 de junho de 2002).

14 Entrevista concedida ao autor (02 de maio de 2002).

47

alcançada pelos mesmos deve ser atribuída menos a méritos próprios do que ao tímido

cenário apresentado pelo país em termos de coleta seletiva e gerenciamento do lixo.

2.3 DA COLETA SELETIVA EM CURITIBA E DO PROGRAMA CÂMBIO

VERDE

A cidade de Curitiba conta, desde 1989, com um programa de coleta seletiva

abrangendo todo o município. Fazendo menção ao programa "Lixo que não é Lixo",

os documentos oficiais frisam o seu caráter original e inovador. Uma publicação da

SMMA (2002, p.l), por exemplo, ao comentar os serviços de limpeza pública da

cidade, destaca logo em sua introdução que, com esse programa, "Curitiba inovou o

sistema de recolhimento de resíduos urbanos no Brasil, garantindo a produção de

consciência ambiental, mostrando que no lixo existem materiais que podem ser

reaproveitados e reciclados."

O programa "Lixo que não é Lixo" começou a funcionar através de aulas de

educação ambiental realizadas em escolas da rede municipal de ensino. Logo em

seguida, teve início uma abrangente campanha de comunicação, descrita pelo discurso

oficial como um programa de conscientização ambiental, utilizando cartilhas e a

grande imprensa. Através de personagens criados pelo escritor e cartunista Ziraldo,

essa campanha enfatizou elementos como: o potencial de reciclagem do lixo que

estava sendo jogado fora; a economia de recursos naturais que a prática da separação

poderia promover; e, além disso, informações gerais sobre os novos procedimentos de

coleta.

O presente estudo não teve acesso, ou conhecimento, a pesquisas que tenham

avaliado de forma precisa e confiável os impactos dessa campanha. Da mesma forma,

dados sobre a efetiva participação da população no programa são escassos e

imprecisos.

A. GAIESKI (1991) efetuou a aplicação de 400 questionários sobre o tema

em estabelecimentos de ensino de Curitiba. Constatou que 98% dos entrevistados

4o

conhecem o programa "Lixo que não é Lixo" e a sua dinâmica de funcionamento,

enquanto 79% realiza a separação do lixo em seus domicílios. S. CRUZ (1995, p. 35)

observa que a prefeitura realiza levantamentos regulares desde 1991 em determinados

setores da cidade. E possível verificar que existe uma média onde 71% do lixo

reciclável é previamente separado, sendo que a maior parte desse lixo é coletada pelos

catadores. A respeito desse tema, a Sra. Marilza Oliveira, Superintendente de Controle

Ambiental da SMMA15 informou que os dados sobre a participação da população e a

quantidade de lixo separado são sempre imprecisos e difíceis de se obter. A atuação

dos catadores, responsáveis pela coleta da maior parte dos recicláveis, torna uma

aferição mais apropriada impossível. Assim, o dado verificado pela Prefeitura é a

quantidade aproximada de lixo destinado à reciclagem e não a quantidade previamente

separada pelos moradores em seus próprios domicílios.

Mesmo não dispondo de critérios objetivos para avaliar a participação dos

munícipes, a prefeitura afirma que entre os benefícios proporcionados pelo programa

está o envolvimento da população na resolução dos problemas ligados ao lixo. Esse

envolvimento teria como elemento fundamental o desenvolvimento da consciência

ambiental, que levou a população a contribuir para a manutenção da limpeza, para

aliviar o montante de lixo destinado ao aterro e para economizar recursos naturais.

Ressalte-se esse ponto, pois a participação popular exemplificada através da

coleta seletiva, explicada em função de uma consciência desenvolvida a partir de um

processo de educação ambiental, constitui a interpretação predominante observada nos

discursos e documentos elaborados pela Prefeitura Municipal de Curitiba. Segundo

essa interpretação oficial, Curitiba representa um caso singular de cidade que

conseguiu despertar em sua população o compromisso com as questões ambientais.

Jaime LERNER (1992), Prefeito Municipal à época em que a coleta seletiva

foi implantada, em entrevista à revista Ecologia e desenvolvimento, argumenta que sua

administração, mais do que gerenciar os problemas ambientais, definiu uma política

15 Entrevista concedida ao autor (14 de junho de 2002).

49

ambiental visando ampliar uma série de avanços obtidos em décadas anteriores. No

núcleo dessa política, estava o objetivo de modificar valores e práticas da população

em relação ao meio ambiente. Com isso, a própria população passou a ser protagonista

de uma ampliação cumulativa e permanente em termos de qualidade de vida:

A aplicação dessa política ambiental pressupôs a existência de uma identificação positiva entre a população e a sua própria cidade, um sentido de orgulho em pertencer à Curitiba. Para construir essa identificação positiva é que surgiu a idéia de promover a cidade como a 'capital ecológica'. O maior patrimônio de uma cidade é a identidade de seus moradores com ela. Respeitada e informada, sabendo-se co-responsável, a população responderá mais prontamente ao apelo em favor da parceria e da participação. (LERNER, 1992, p.25)

Em documentos elaborados pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento

Urbano de Curitiba (IPPUC), é possível encontrar outra referência a esse vínculo entre

a população e sua cidade. Detalhe bastante especial dessa referência, ela menciona a

importância da educação ambiental. Cada intervenção pontual da administração

municipal é interpretada como um esforço para a criação de consciência ambiental:

Em Curitiba, a tarefa de educar para o conhecimento, o uso e a preservação dos recursos naturais é responsabilidade de todos os organismos e departamentos da administração da cidade. Quando a Secretaria Municipal das Finanças reduz ou isenta de pagamento de IPTU as áreas de preservação florestal que representam o interesse da coletividade, está fazendo educação ambiental. Quando a prefeitura legisla sobre o uso do solo e impede a ocupação de fundos de vale, também educa para a convivência não predatória com os recursos naturais. Quando o IPPUC moderniza o sistema de transporte coletivo, permitindo reduzir o volume de tráfego na cidade e, em conseqüência, diminuindo a emissão de gases poluentes no ar, está formando na população uma consciência ambientalista. (IPPUC, 1992, p. 29)

Particularmente em relação à coleta seletiva de lixo, o documento é explícito.

Os programas funcionam, pois despertam, através da educação e da consciência

ambiental, um vínculo positivo entre a população e o local onde vive.

Mencionando o programa "Câmbio Verde", o documento salienta sua

importância estratégica para desenvolver esse vínculo positivo em relação à população

de áreas mais carentes: "Um dos resultados mais consistentes da política de meio

ambiente da cidade de Curitiba é a transformação cultural que está ocorrendo,

principalmente nas populações que habitam as áreas mais carentes da cidade. O

programa 'Câmbio Verde' computa, entre outros resultados importantes, a mudança de

comportamento dessas populações em relação ao meio ambiente." (IPPUC, 1992,

p.36)

Curiosamente, o programa "Câmbio Verde", cuja operação iniciou em junho

de 1991, não teve originalmente sua formulação atrelada de maneira explícita à

questão da educação e da consciência ambiental. Mais precisamente, esse programa

derivou de outro, o "Compra do Lixo", que funciona desde janeiro de 1989.

O programa "Compra do Lixo" representa, de acordo com a Secretaria

Municipal do Meio Ambiente (SMMA, 2002, p. 07), uma forma alternativa de coleta

do lixo, destinada à população de baixa renda, localizada em áreas desurbanizadas e de

difícil acesso aos caminhões de coleta. Em seu funcionamento, a população recebe

sacos de lixo e, à medida que os deposita em caçambas estacionárias, recebe alimentos

em noca.

Nesse programa, onde os objetivos oficiais combinam a tarefa da limpeza de

áreas comprometidas com o combate a carências sociais, chama a atenção o cálculo

econômico realizado para a sua viabilização. Os recursos economizados com os

caminhões coletores são investidos na compra de alimentos a serem trocados. A partir

de uma grande safra de h o rti fruti granj e i ro s que ocorreu na Região Metropolitana de

Curitiba em 1991, aliada à epidemia de cólera que, no mesmo ano, fez diminuir o

preço dos alimentos, a possibilidade de troca foi estendida a uma parcela maior da

população. Daí o surgimento do programa "Câmbio Verde".

Também operacionalizado através da troca de alimentos por lixo, só que

neste caso reciclável, o programa funciona em locais e datas predefinidas com

periodicidade quinzenal. Em algumas datas específicas, como natal, páscoa e dia das

crianças, outros produtos servem como base de troca: panetones, chocolates, material

escolar e brinquedos. Quanto aos locais de troca, a Prefeitura afirma realizar uma

espécie de arranjo com as associações de moradores, que também cedem o espaço paia

a realização de aulas de educação ambiental. Os últimos dados revelados pela

Prefeitura apontam a existência de sessenta e um pontos de troca e a participação de

aproximadamente 18.000 pessoas. (SMMA, 2002, p. 19)

51

É importante frisar que o cálculo econômico que está na origem e na base do

funcionamento do programa é central para a Prefeitura justificar a sua existência.

Argumenta-se que, limpeza, melhora na alimentação de famílias carentes e auxílio no

uso racional do aterro sanitário, são resultados obtidos com custos pequenos. Não há a

necessidade de contratação de pessoal, visto que se utiliza os quadros de diferentes

departamentos da própria Prefeitura. Não se investe na aquisição de materiais, visto

que a empresa prestadora de serviço já os possui e precisa apenas desloca-los,

Finalmente, o alimento usado para estimulai- a participação é negociado diretamente

com os produtores que precisam garantir o seu escoamento (SMMA, 1999, p. 4).

Nesse sentido, o programa é considerado legítimo porque não implica em aumento de

gastos.

O funcionamento do programa com baixos custos, no entanto, depende de

um fator fundamental que não foi listado acima. E necessário que a população separe e

colete o lixo reciclável para que o mesmo possa ser recolhido pelos caminhões da

empresa prestadora de serviço. E necessário, portanto, contar com a participação dessa

população, participação que terá um custo baixo, pois será remunerada com alimentos

obtidos de maneira bastante favorável com os produtores da Região Metropolitana de

Curitiba. Mas, de qualquer forma, a participação terá um custo.

Observa-se, então, um problema. Se a aderência das pessoas é obtida através

da troca ou do estímulo material, como o programa "Câmbio Verde" poderia

representar uma iniciativa que, seguindo a apresentação oficial, promove a identidade

da população com a cidade, desencadeando a participação, gerando cidadania,

consciência e educação ambiental?

Em resposta à questão acima, a Sra. Gisele Martins dos Anjos, Gerente de

Limpeza do Departamento de Limpeza Pública16 da Prefeitura Municipal de Curitiba

afirma que, embora exista o estímulo material, a própria prática da separação,

despertando na população a preocupação com o acondicionamento adequado do lixo,

2j Entrevista concedida ao autor (09 de janeiro de 2003).

vem colaborando com a construção de hábitos saudáveis num segmento da população

que tem tido, historicamente, pouca consciência e oportunidade para se preocupar com

questões ambientais e até mesmo higiênicas.

Reforçando o argumento acima, V. CARVALHO, em apresentação feita

sobre o programa, afirma que:

Se considerando o pleno exercício da cidadania, a população seria levada pela sua consciência a colaborar com a limpeza da cidade, mas cidadania não é algo que se adquire de uma hora para a outra; logo, parece saudável estimular a tomada de consciência a partir de cálculo racional mesmo, somando disposição e criatividade para a solução dos problemas. Essa prática, desenvolvida pelo poder público de Curitiba, altera a relação entre cidadãos, sociedade civil e poder público, exatamente na confiança mútua e na abertura de canais de comunicação com a população. O poder público ganha em confiabilidade e a população percebe a importância de sua colaboração. (CARVALHO, 1997, p. 112)

Ou seja, a coleta seletiva, de acordo com o discurso oficial da Prefeitura

Municipal de Curitiba, mesmo no caso do programa "Câmbio Verde" que estimula a

participação através do incentivo material, está na origem de diversas conquistas,

Garantiria, entre outras coisas, a possibilidade de transformar hábitos arraigados no

cotidiano do cidadão, fazendo-o perceber a necessidade de mudar seus

comportamentos em relação ao lixo. O envolvimento da comunidade, agora consciente

do seu papel para evitar o acondicionamento inadequado do lixo e o envio excessivo

de resíduos ao aterro sanitário, permitiria a implantação de uma verdadeira estratégia

de desenvolvimento sustentável:

Para separar o lixo reciclável, optou-se por um caminho arrojado: em vez de implantar uma grande, cara e discutível usina de separação e compostagem de lixo, a Prefeitura 'criou' 200 mil pequenas usinas. A população foi convocada a separar o lixo doméstico e cada lar transformou-se em uma micro-usina. A era do desperdício ficou para trás e a cidade caminha para o terceiro milênio com a consciência tranqüila de ter exercido sua solidariedade ao máximo, em benefício de sua geração atual e de suas gerações futuras. (IPPUC, 1992, p93)

Caso esse discurso oficial seja considerado válido, é necessário admitir que

os programas de coleta seletiva, ao lado de outras iniciativas da PMC, são viáveis e

funcionam, pois refletem um processo eficiente de educação ambiental que cria

vínculos entre a população e sua cidade, desencadeando um amplo processo de

participação na busca por desenvolvimento sustentável e melhoria na qualidade de

vida.

2.4 DA COLETA SELETIVA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CASO DE

CURITIBA

Analisando algumas características recentes da administração pública em

Curitiba, R. FIGUEIREDO e B. LAMOUNIER (1996, p. 37) observam que a cidade

foi pioneira, entre as cidades brasileiras, ao implementar um programa de coleta

seletiva abrangendo toda a municipalidade. Ao lado de outras inovações, esse

programa, segundo os autores, faz de Curitiba um paradigma de política urbana

consistente e bem implementada.

Seguindo o mesmo tom de louvor da condensação apresentada acima,

CARVALHO (1997, p. 113) afirma que através dos programas de coleta seletiva, a

administração municipal em Curitiba conseguiu viabilizar um sistema de coleta

eficiente, possibilitou uma melhora na limpeza da cidade e, ao mesmo tempo,

estimulou a tomada de consciência ambiental por parte dos indivíduos. Para o autor,

esses programas servem como exemplo de uma administração com vontade política,

engajada em uma concepção ambientalmente correta e comprometida com a

construção do desenvolvimento sustentável.

Mantendo a tendência das condensações anteriores, MENEZES (1996, p.

158), ao analisar a relação entre desenvolvimento urbano e meio ambiente em

Curitiba, interpreta as soluções encontradas para gerenciar o lixo como uma forma de

partilha, de divisão de responsabilidades entre Prefeitura e população. Para o autor, a

atuação da administração municipal representaria um exemplo de valorização da

sociedade civil na construção de soluções para a melhoria da qualidade de vida de uma

cidade.

A lista de condensações como essas pode prosseguir longamente, pois é

grande o repertório de trabalhos, acadêmicos ou não, que tomam a administração

54

pública de Curitiba como um paradigma, um modelo de eficiência em planejamento

urbano a ser copiado por outras cidades no Brasil e no mundo. Os comentários sobre

os programas de coleta seletiva, como pode ser observado acima, evocam com

freqüência essa imagem de uma cidade paradigmática.

Para estimular esse tipo de evocação, acrescente-se o fato de que as

iniciativas desenvolvidas em Curitiba no campo xda coleta seletiva têm recebido

inclusive respaldo internacional.

Em 1990, durante o Congresso Mundial de Autoridades Locais para um

Futuro Sustentável, a cidade recebeu um prêmio conferido pela Organização das

Nações Unidas (ONU) em função dos programas voltados para o gerenciamento do

lixo no contexto do planejamento urbano. (IPPUC, 1992, p.93)

Mais recentemente, em 2002, durante a realização do Fórum Latino-

Americano para o Desenvolvimento Sustentável, as autoridades reunidas apontaram o

lixo como o maior problema ambiental de suas cidades e, como solução ideal,

elegeram os programas de coleta seletiva desenvolvidos em Curitiba. (Gazeta do Povo,

16/04/02, p. 3)

Por fim, para citar um último exemplo, o Conselho Internacional para

Iniciativas Ambientais Locais (ICLEI), uma instituição ligada à ONU, utiliza os

programas de coleta seletiva de Curitiba para ilustrar o que deve fazer uma cidade

preocupada com o desenvolvimento sustentável, a qualidade de vida e a inclusão

social, (www.iclei.org - acesso em 10/02/02)

Frente às referências positivas apontadas acima, é necessário lembrar que

todas elas passaram a ser construídas após as eleições municipais de 1988, quando

Jaime Lerner, numa campanha de apenas 15 dias, foi conduzido pela terceira vez ao

cargo de Prefeito de Curitiba. Foi durante o seu terceiro mandato como Prefeito que a

cidade se notabilizou através do apelido de "capital ecológica".

Dessa forma, é nítida a relação entre tais referências e a liderança política de

um grupo representado por Jaime Lerner. Ou ainda, a positividade dessas referências

contribuiu para a construção da hegemonia política desse grupo. Não foi ao acaso que

55

em 1992, logo no primeiro turno, Lerner elegeu seu sucessor ao cargo, Rafael Greca.

Em seguida, em 1994, Lerner elegeu-se Governador do Estado do Paraná, cargo para o

qual é reeleito em 1998, permanecendo até 2002. Antes disso, em 1996, mais uma vez

esse grupo elege em primeiro tumo um dos seus representantes à Prefeitura de

Curitiba, Cassio Taniguchi, que também é reeleito em 2000. Apenas mais um detalhe

para completar o quadro, em função dessa hegemonia, Rafael Greca, posteriormente,

ascendeu, durante o segundo mandato à Presidência de Fernando Henrique Cardoso,

ao cargo de Ministro dos Esportes e Turismo.

Pois bem, se na década de 1990 esse grupo construiu em Curitiba uma

imagem positiva evocando principalmente as soluções encontradas para problemas

ambientais, dentre elas os programas de coleta seletiva, algo semelhante já havia

ocorrido na década de 1970, quando a cidade foi projetada como um caso de sucesso

no campo do planejamento urbano. Esse fato a fez ser considerada um modelo para as

outras cidades do país, inclusive levando o então Ministério do Interior (MINTER) a

encomendar ao Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ) uma

pesquisa para levantar os motivos desse sucesso.

A pesquisa (IUPERJ/MINTER, 1975), coordenada por Edmundo Campos

Coelho, formulou a principal tese de que se dispõe para explicar as origens do sucesso

do planejamento urbano em Curitiba. A partir dela, inicia-se uma longa trajetória de

estudos sobre o campo do planejamento urbano na cidade. Alguns desses estudos são

bastante valiosos para ajudar a situar a repercussão positiva que os programas de

coleta seletiva receberam.

Retomando a pesquisa referida acima (IUPERJ/MINTER, 1975), ela propõe

que o sucesso do planejamento em Curitiba não deve ser atribuído a méritos

propriamente urbanísticos, mas a arranjos de natureza institucional. Dito de outra

forma, do ponto de vista técnico, aquilo que foi feito em Curitiba estava ao alcance de

outros centros urbanos no país. O que marcou a peculiaridade do caso curitibano é que,

ao contrário desses outros centros urbanos, não houve apenas a elaboração1 de um

projeto de reforma urbana, mas a sua plena execução viabilizada pela

56

institucionalização da prática do planejamento.

O primeiro projeto de reforma urbana em Curitiba remonta à década de 1940

e ao plano diretor elaborado por Alfredo Agache17. Colocado em prática apenas

parcialmente, ele começou a ficar obsoleto em função do crescimento da cidade. A

obsolescência desse plano foi acompanhada pela formação de um grupo de

engenheiros, egressos da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Paraná

e ligados à criação do Curso de Arquitetura e Urbanismo na mesma instituição. Dentro

desse grupo formou-se a preocupação com a necessidade de se institucionalizar a

prática do planejamento urbano (IUPERJ/MINTER, 1975, p. 24).

Elaborou-se, então, em 1965, um novo Plano Diretor. Submetido à

apreciação de vários grupos na cidade, ele foi transformado em lei pela Câmara

Municipal em 1966. Em seguida, foi criada também uma agência burocrática para

detalhar e executar o plano, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba

(IPPUC).

A partir disso, duas variáveis foram cruciais para a implantação do novo

Plano Diretor e para a institucionalização do processo de planejamento: a centralização

do trabalho de planejamento através do IPPUC, evitando o caos burocrático

encontrado em outras cidades brasileiras, caracterizado pela sobreposição de funções e

pelos conflitos daí decorrentes; e a nomeação, em 1971, do primeiro diretor do IPPUC,

Jaime Lerner, filiado à ARENA, extremamente comprometido com a execução do

plano, à Prefeitura de Curitiba. (IUPERJ/MINTER, 1975, p. 25)

D. OLIVEIRA (2000, p. 81), em complemento à tese exposta acima,

argumenta que a nomeação de Lerner à Prefeitura possibilitou que um grupo

especializado na tarefa do planejamento assumisse a responsabilidade pela execução

17 Segundo OLIVEIRA (2000, p. 73), esse plano foi um típico representante da escola moderna de urbanismo, que pensava a cidade como um conjunto que deveria atender a um certo número de funções essenciais como trabalho, habitação e circulação. Assim, o plano dividia a cidade em áreas funcionais e propunha a ligação entre cada uma, estabelecendo traçados para a implantação de vias expressas.

57

do Plano Diretor. No entanto, um mandato apenas não teria sido suficiente para a

realização dessa tarefa. Então, outra variável mostrou-se fundamental para o sucesso

do caso curitibano: a continuidade administrativa. De fato, Lerner exerceu o mandato

de 1971 a 1975, sendo substituído por Saul Raiz (1975-1979), representante do mesmo

grupo filiado à ARENA e também bastante comprometido com a implantação do

Plano Diretor. Mais ainda, Lerner retornou ao cargo no mandato de 1979 a 198218.

Foi assim que durante a década de 1970 e início dos anos 1980 ocorreu um

vigoroso processo de reforma urbana em Curitiba. A cidade foi equipada em diversos

setores como recreação, educação, terminais de transporte e de abastecimento. Datam

deste período, entre outros projetos, a implantação das vias estruturais com o sistema

trinário, a adoção do ônibus expresso no transporte coletivo, a criação da Cidade

Industrial de Curitiba, a pedestrianização de ruas centr ais, a criação do setor histórico,

a padronização da paisagem urbana e a formação de bosques e grandes parques.

Mesmo a eleição de Maurício Fruet pelo PMDB (1982-1985), representante

de um grupo de oposição a Lerner, não significou uma ruptura com o padrão de

planejamento implantado até então. A execução do Plano Diretor permanecia com

poucas alterações. (OLIVEIRA, 2000, p. 81)

A única ruptura significativa ocorreu com a eleição de Roberto Requião,

também pelo PMDB (1985-1989), que resultou numa alteração drástica da correlação

de forças na estrutura institucional responsável pela prática do planejamento urbano.

Essa alteração foi caracterizada pelo esvaziamento do IPPUC tanto em termos de

quadros profissionais como em termos de funções. Suas principais funções foram

descentralizadas e repassadas a novas secretarias criadas principalmente em áreas

sociais, como a Secretaria do Abastecimento, a Secretaria do Bem-Estar Social e a

Secretaria do Meio Ambiente. Da mesma forma, quantidade significativa dos técnicos

18 Além da continuidade administrativa, o autor também chama a atenção para a compatibilidade de interesses que ocorreu entre empresários e urbanistas em torno de questões essenciais à execução do Plano Diretor. (OLIVEIRA, op. cit., p. 113)

58

dessa agência foram transferidos para as novas secretarias. (OLIVEIRA, 2000, p. 105)

Essa ruptura é relevante, pois ao retornar ao cargo de Prefeito em 1989,

Lerner encontrou desfeita a estrutura institucional que havia contribuído para a

construção. Além disso, o próprio Plano Diretor que norteava a atividade de

planejamento já havia sido integralmente executado, passando a revelar os seus limites

em função do rápido crescimento da cidade. (OLIVEIRA, 2000, p. id.)

Nesse contexto, a recém criada Secretaria do Meio Ambiente passou a contar

com um expressivo aporte de recursos, incluindo aí recursos de origem internacional.

Então, como foi dito acima, a ruptura mencionada é relevante, pois em parte ajuda a

explicar a ênfase que foi dada a partir da terceira administração de Jaime Lerner às

questões ambientais. (OLIVEIRA, 2000, id.)

Observa-se, durante essa terceira administração, algo semelhante ao que

havia ocorrido durante a década de 1970 com o IPPUC. As ações da Prefeitura voltam

a ter um aspecto centralizado sob o comando de uma agência que acumula diversas

funções. Mas desta vez, ao invés do IPPUC, a agência centralizadora passa a ser a

Secretaria Municipal do Meio Ambiente. (OLIVEIRA, 2000, id.)

Ocupando o centro da ação administrativa, as questões ambientais,

traduzidas em variados programas, como os de coleta seletiva, permitiram "reatualizar

o mito curitibano de vanguarda urbanista" (OLIVEIRA, 2000, p. 60). Contribuíram,

além disso, para reafirmar a imagem de competência e eficiência associada ao grupo

político representado por Jaime Lerner, projetando-o nacional e internacionalmente.

Retomando a longa trajetória referente ao planejamento urbano de Curitiba,

percebe-se, portanto, que a mesma está entrelaçada com o processo de construção da

hegemonia de um determinado grupo político. A atenção dada a questões ambientais,

resultando, entre outras coisas, no apelido de "capital ecológica", representa o remate

desse processo.

Dentro dessa trajetória que revela a emergência da temática ambiental

entrelaçada à construção da hegemonia de um determinado grupo político, observa-se

uma primeira pista para se situar os programas de coleta seletiva, mais especificamente

59

o programa "Câmbio Verde". Por se tratar de um processo que envolve a construção

da hegemonia de um determinado grupo, existe a necessidade, inerente a esse tipo de

processo, de se buscar legitimidade através de algum tipo de retribuição material às

classes mais populares. Nesse sentido, um programa como o "Câmbio Verde" é

fundamental, pois consegue fazer com que significativa parcela da população de mais

baixa renda se sinta participante de um mesmo projeto comum de cidade. (OLIVEIRA,

2000, p. 188)

F. GARCIA (1997), sem contrariar a tese referente à institucionalização do

planejamento urbano, interpreta o processo de construção de hegemonia referido

acima como uma estratégia deliberada de apropriação do espaço da cidade visando a

prática do city marketing. A autora não coloca em questão o mérito propriamente

técnico das intervenções urbanas realizadas em Curitiba nas últimas três décadas. O

que ela questiona é a maneira como essas inovações são apropriadas através da criação

de imagens síntese: "cidade planejada", "cidade modelo", "capital da qualidade de

vida", "capital de primeiro mundo" e "capital ecológica".

A criação dessas imagens síntese é relacionada pela autora a duas

conseqüências negativas. Em primeiro lugar, por serem apresentadas através de um

sujeito genérico - "Curitiba quer", "Curitiba pensa", "Curitiba sabe", "Curitiba

consegue" - essas imagens transmitem uma imagem de consenso absoluto. É como se

a dinâmica social encontrada na cidade estivesse desprovida de qualquer tipo de

conflito. A administração municipal transforma a técnica do planejamento em um

instrumento de validade inquestionável. Sua racionalidade garante várias conquistas e,

justamente em função da sua eficiência, não deve ser questionada. Questioná-la

implica em fazer oposição à essência de um processo que é tomado como modelo.

Em segundo lugar, essas imagens produzem, na própria população da cidade,

um comportamento extremamente passivo e próximo ao imobilismo. Trata-se de uma

população em compasso de espera. Ela aguarda, apoia e participa das inovações que

não cessam. A positividade das imagens síntese associa-se, portanto, um sentimento

específico de orgulho em pertencer à cidade, em compartilhar de suas conquistas.

60

Atreladas à prática do city marketing, essas imagens criam a idéia de um

espetáculo urbano, responsável por definir aquilo que Curitiba é e aquilo que é ser

curitibano. Assim, à "capital ecológica" corresponde uma população que utiliza

transporte coletivo, que passeia em parques e bosques, que separa o seu lixo e que,

participando das inovações promovidas pela administração municipal, identifica-se

com a cidade e tem consciência ambiental.

É por isso que, para a autora, o principal instrumento de gestão utilizado pela

administração pública de Curitiba não é o planejamento urbano propriamente dito, mas

uma deliberada estratégia de city marketing. Com essa estratégia, a administração

pública colhe dois resultados favoráveis: garante a adesão da população às suas

iniciativas e promove externamente a cidade para qualifica-la cada vez mais a atrair

novos investimentos.

Com esse argumento, observa-se uma segunda pista para situar os programas

de coleta seletiva em Curitiba. Tais programas fazem parte de um conjunto de medidas

que, intencionalmente, pretendem criar um espetáculo urbano, útil para promover

imagens síntese da cidade e, acima de tudo, o grupo político que delas se beneficia.

Outro trabalho que pode ser vinculado à tese sobre o processo de

institucionalização do planejamento urbano em Curitiba é o de K. FREY (1996, p.

112), para o qual esse processo resultou em um estilo de gestão municipal de perfil

técnico-pragmático.

Esse estilo de gestão é caracterizado pela predominância de um pensamento

político que, paradoxalmente, se apresenta como apolítico. Nesse sentido, a

administração pública acredita estar encarregada de decifrar a vontade da população,

atendendo-a através da adequada realização do trabalho técnico. Isso implica em

considerar o processo político, e por extensão a própria democracia, como um mero

momento de definição e escolha de representantes. Ultrapassado esse momento, a

participação popular passa a ser requisitada apenas para possibilitar a implantação e o

funcionamento de um novo projeto.

Dentro desse estilo de gestão, existe mesmo a convicção de que a

61

participação popular no diagnóstico de problemas e construção de soluções é

indesejável, pois introduz conflitos ideológicos contrários à lógica do processo de

planejamento, diminuindo sua eficiência e sua capacidade de agir com rapidez (FREY,

1996, p. 114). Disso resulta um padrão de relacionamento entre poder público e

população em que o primeiro é sempre o polo ativo enquanto o segundo é sempre

passivo. O poder público age para informar e conscientizar a população, mas jamais

estimular o seu envolvimento efetivo com as questões coletivas.

Outra característica do estilo de gestão identificado pelo autor é a tendência

marcante do uso de decretos por parte do poder executivo. Isto transforma a Câmara

Municipal em uma espécie de "apêndice" que se limita a aprovar as decisões do

aparato técnico ligado ao Prefeito. Somado à primeira característica, o uso de decretos

contribui sobremaneira para gerar uma aparência despolitizada do funcionamento da

administração pública. (FREY, 1996, p. 115)

Por fim, uma terceira característica desse estilo de gestão é o uso da emoção

como instrumento para pautar o relacionamento entre população e administração

pública. Assim, o uso exaustivo das imagens síntese já comentadas - "capital de

primeiro mundo", "capital ecológica", etc. - termina por levar o curitibano a acreditar

no privilégio de viver numa cidade bem gerenciada e exclusiva. Além de explicar o

apoio significativo conferido pela população ao grupo representado por Jaime Lerner,

essa característica coloca a oposição na incômoda situação de relativizar suas críticas e

reconhecer os feitos da administração municipal.

Essas três características apontam que o modelo de gestão municipal

observado em Curitiba, modelo que se confunde com a liderança do grupo político

representado por Jaime Lerner, não pode prescindir de uma intensa política que visa a

construção de identidade local. É o forte sentimento de identidade local que permite à

administração municipal legitimar o seu funcionamento desvinculado de intervenção

popular, mantendo, ao mesmo tempo, essa mesma população predisposta a participar

dos programas desenvolvidos pela Prefeitura. (FREY, 1996, p. 134)

Com esse argumento, observa-se uma terceira pista para situar os programas

62

de coleta seletiva em Curitiba. Tais programas refletem não apenas um estilo de gestão

municipal, mas acima de tudo, um determinado padrão de relacionamento entre o

poder público e a população. Refletem, à medida que criam um forte sentimento de

identidade local, um tipo de participação passiva. A população não participa da

identificação dos problemas que a afetam e da elaboração de soluções. Recebe o

programa pronto e apenas acomoda-se ao seu funcionamento.

Finalmente, um último trabalho que pode ser alinhado à tese referente ao

processo de institucionalização do planejamento urbano em Curitiba é o de M.

OLIVEIRA (1998, p. 80). Em estudo sobre o processo de criação de parques e bosques

na cidade, o autor analisa como as ações da Prefeitura Municipal têm sido elaboradas e

justificadas segundo a ótica oficial. Ele observa que, a partir da década de 1990, a

PMC desenvolveu uma espécie de filosofia ambientalista.

Essa filosofia ambientalista, refletida através de documentos oficiais, passou

a atribuir um sentido ao crescimento da cidade: o sentido ambiental. Tal sentido, sob a

ótica oficial, mais do que um mero modismo, estaria sendo construído desde o início

da década de 1970. Segundo ele, cada ação pontual da Prefeitura teria sido orientada e

desencadeada por uma nítida concepção de ecologia urbana.

O caso da criação dos parques e bosques, no entanto, demonstra que os

mesmos não derivam de uma idéia precisa vinculada à ecologia urbana. Ao contrário,

refletem a preocupação com uma questão de saneamento. Assim, através da ótica da

filosofia ambientalista recentemente desenvolvida, opera-se uma espécie de

reconstrução da história da cidade. Os aspectos pontuais e pragmáticos que orientaram

a ação da administração municipal são preteridos. Projetos, como os de criação dos

parques e bosques, que poderiam ser justificados técnica, política e financeiramente,

passam a representar a materialização de um projeto de ecologia urbana. (OLIVEIRA,

1998, p. 82)

Para explicar a utilização post facto da questão ambiental como variável

explicativa para apresentar e justificar a atuação da administração municipal, o autor

trabalha com a seguinte hipótese:

63

Surgida fortuitamente, a questão ambiental vem atribuindo sentido e coerência, visibilidade e respeitabilidade social e científica, ao conjunto das ações municipais. Nesse processo ela teria acabado por tão bem vestir a cena discursiva municipal, que se insurge hoje como uma noção de referência incontornável, como um espaço prenhe de sentidos, capaz de justificar todas e quaisquer ações municipais sejam elas ambientais ou não, tanto para o público interno quanto para o público externo. (OLIVEIRA, 1998, p. 82)

A hipótese apresentada acima oferece uma quarta pista para situar os

programas de coleta seletiva em Curitiba, mais especificamente o programa "Câmbio

Verde". Como foi visto na seção anterior, esse programa está originalmente ligado à

idéia de se realizar um tipo alternativo de coleta de lixo em regiões de difícil acesso e

entre a população de baixa renda. A realização dessa coleta tem como ponto de partida

um cálculo de viabilidade econômica. É economicamente viável trocar alimentos

conseguidos a custos baixos pelo lixo coletado entre a população.

Então, observa-se que o programa é originalmente motivado pela

combinação das seguintes variáveis: possibilidade de escoar a safra de alimentos,

necessidade de limpar áreas de difícil acesso e a possibilidade de realizar essas tarefas

mediante custos favoráveis. No entanto, sob a ótica da filosofia ambientalista

mencionada acima, ele passa a representar um programa ecológico que visa, entre

outros objetivos, contribuir para uma estratégia de desenvolvimento sustentável e para

a formação da consciência ambiental.

Em resumo, este capítulo procurou apresentar alguns dados sobre o tema da

coleta seletiva no Brasil e em Curitiba. Em oposição à timidez apresentada em relação

ao cenário nacional, Curitiba destaca-se como uma cidade modelo em termos de coleta

seletiva. Esse destaque, no entanto, deve ser relativizado e quatro argumentos foram

apresentados nesse sentido. Em primeiro lugar, os programas de coleta seletiva podem

ser interpretados como uma contrapartida para o processo de construção da hegemonia

de um determinado grupo político. Em segundo lugar, eles fazem parte de uma

estratégia mais ampla de city marketing que visa promover a imagem da cidade tanto

no contexto interno como no externo. Em terceiro lugar, eles representam um padrão

de relacionamento entre poder público e população, no qual essa última é caracterizada

64

por um tipo de participação nitidamente passiva. Por fim, o discurso oficial vem se

apropriando desses programas, preterindo suas motivações originais em função da

criação de um sentido ambiental elaborado post facto.

65

3 DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E DA METODOLOGIA

DE PESQUISA

3.IDA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: A TRAJETÓRIA DO

CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO DENTRO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

MINAYO (2000, p. 89) afirma que nas Ciências Sociais o conceito de

representação nos remete a um fenômeno relacionado às categorias de pensamento que

expressam a realidade, explicando-a, justificando-a ou questionando-a. Além disso,

esse tipo de fenômeno, por ser amplamente reconhecido como relevante, recebeu a

atenção das mais diferentes correntes de pensamento sobre o social.

Uma primeira corrente, representada pela concepção marxista, nos leva a

interpretar o fenômeno através da relação entre as idéias, ou a consciência, e a base

material que condiciona a sua produção. Embora essa relação não seja tratada por Karl

MARX de maneira homogênea na totalidade dos seus escritos, encontra-se em A

ideologia alemã uma formulação considerada clássica. Opondo-se a filósofos de

inspiração hegeliana, que consideravam a consciência como o ponto de partida para

explicar a dinâmica do mundo das idéias, MARX propõe a interpretação do

pensamento como uma atividade determinada pelo modo de vida dos indivíduos. Mais

especificamente, a produção das condições materiais de vida desses indivíduos

antecede a produção da consciência:

A produção das idéias, representações, da consciência está a princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como efluxo direto do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo. Os homens são os produtores das suas representações, idéias, etc., e precisamente os homens condicionados pelo modo de produção da sua vida material, pelo seu intercâmbio material e o seu desenvolvimento posterior na estrutura social e política. (MARX, 1982, p. 13)

Destaca-se nessa concepção o papel fundamental atribuído à consciência

66

como um elemento decisivo para a estruturação do conflito e da dominação em uma

sociedade dividida em classes:

As idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as idéias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As idéias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias: portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as idéias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de idéias, regulam a produção e a distribuição de idéias do seu tempo. (MARX, 1982, p. 38)

Sendo assim, o subproduto dessa consciência determinada pelas condições

materiais de existência é necessariamente parcial. Parcial porque ideológico e

ideológico porque inevitavelmente falso e/ou alienado.

Uma segunda corrente, representada pela concepção weberiana, nos leva a

interpretar o fenômeno em termos de idéias, mentalidade e espírito que compõem uma

determinada visão de mundo. Fazendo oposição às interpretações mais simplistas do

materialismo histórico, Max WEBER (1985) procura demonstrar que a realidade não

pode ser compreendida como o resultado de um processo mecânico de determinação.

Em A ética protestante e o espírito do capitalismo ele afirma:

Aqui se tratou do fato e da direção em apenas um, se bem que importante ponto de seus motivos. Seria importante investigar mais adiante a maneira pela qual a ascese protestante foi por sua vez influenciada em seu desenvolvimento e caráter pela totalidade das condições sociais, especialmente pelas econômicas. Isto porque, se bem que o homem moderno seja incapaz de avaliar o significado de quanto as idéias religiosas influenciaram a cultura e os caracteres nacionais, não se pode pensar em substituir uma interpretação materialista unilateral por uma igualmente bitolada interpretação causai da cultura e da história. (WEBER, 1985, p. 132)

Nessa obra, WEBER oferece uma análise do avanço do capitalismo ocidental

como resultado de uma certa visão de mundo, formulada a partir de uma leitura

específica do protestantismo, na qual o trabalho e a vocação são associados à virtude

67

máxima dos homens. Para WEBER, as idéias de prosperidade como benção divina e

lucro como fator legítimo das relações econômicas foram tão relevantes para a

emergência e o desenvolvimento do capitalismo quanto o processo de acumulação

primitiva.

Dito de outra maneira, sem negar a possibilidade de que a organização

material da sociedade influencie certas concepções e atitudes, WEBER chama a

atenção para o fato de que cada sociedade, paia se manter e reproduzir, necessita de

visões de mundo abrangentes e unitárias que peipassam todos os seus grupos.

Uma terceira corrente, representada pela concepção de Emile DÜRKHEIM,

nos leva a interpretar o fenômeno sob o rótulo de representações. É em DÜRKHEIM

que o fenômeno ocupa um lugar central na análise sociológica e é a esse autor que se

deve atribuir a formulação do conceito de representações coletivas.

Em As regras do método sociológico, ao formular os princípios que nos

permitem distinguir o fato social, DÜRKHEIM propõe que a vida social é inteiramente

feita de representações. Em seguida, para justificar uma ciência específica para esse

objeto igualmente específico, preocupa-se em delimitar o campo da Sociologia frente à

Psicologia:

Que a matéria da vida social não possa se explicar por fatores puramente psicológicos, ou seja, por estados da consciência individual, é o que nos parece de todo evidente. Com efeito, o que as representações coletivas traduzem é o modo como o grupo se pensa em suas relações com os objetos que o afetam. Ora, o grupo não é constituído da mesma maneira que o indivíduo, e as coisas que o afetam são de outra natureza. Representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos objetos, não poderiam depender das mesmas causas. Para compreender a maneira como a sociedade representa a si mesma e o mundo que a cerca, é a natureza da sociedade, e não a dos particulares, que se deve considerar. (DÜRKHEIM, 1999, p. 23)

Ao construir essa delimitação, DÜRKHEIM argumenta que uma

representação é sempre o resultado da relação entre um sujeito e um objeto que o afeta.

Pois bem, o sujeito da representação é sempre o grupo, visto aqui como uma entidade

coletiva capaz de pensar a si mesma. Por outro lado, o objeto é a própria realidade que

afeta o grupo. Portanto, a partir de DÜRKHEIM verifica-se que todo grupo é capaz de

traduzir as suas relações com a realidade através de representações. Sendo estas

68

portadoras das características distintivas dos fatos sociais - autonomia, exterioridade e

coercitividade - abre-se a possibilidade para o seu estudo com o rigor exigido pela

análise científica.

Foi dentro desta perspectiva que DÜRKHEIM se dedicou ao estudo das

formas elementares da vida religiosa, constatando que as representações religiosas são

representações coletivas que exprimem realidades coletivas. Como tal, não poderiam

ser consideradas meras formas de ilusão ou alucinação.

M. OLIVEIRA (1999), analisando a contribuição teórica de DÜRKHEIM,

comenta que:

As representações apareceram assim como um conceito capaz de materializar e de atribuir sentido a qualquer tipo de realidade. Uma espécie de conceito-espelho cuja maior virtude seria a revelação dos atos e das práticas sociais. As potencialidades teórico-metodológicas anunciadas pelos trabalhos de Dürkheim eram ilimitadas. Fossem quais fossem as realidades, elas sempre estariam representadas em algum nível por algum grupo ou subgrupo social. Sendo relacionai e dinâmica, estudando-se as representações seria possível captar o movimento da sociedade. E mais: diante de novas realidades, as representações seriam também novas, embora o conceito e a teoria para análise se mantivessem sem alteração. (OLIVEIRA, 1999, p. 177)

Mesmo com o registro dessas possibilidades, o autor observa que o conceito

acabou sendo apropriado pela Etnologia e pela Antropologia, enquanto foi

paulatinamente ignorado pela Sociologia. Buscando conhecer os sentidos das práticas

sociais cotidianas, retratando-as sob a ótica daqueles que as realizam, a Etnologia e a

Antropologia preservaram a essência relativa ao conceito, ao passo que a Sociologia,

priorizando debates político-econômicos, viu emergir um cenário onde o conceito de

ideologia encontrou condições francamente favoráveis para o seu desenvolvimento.

Nesse cenário, ou o conceito de representação era simplesmente ignorado, ou evocado

como um conceito secundário e integrante do universo mais relevante da ideologia.

Não se trata de afirmar que o conceito de representação foi fundido ao de

ideologia. Ao contrário, trata-se de afirmar que durante mais de meio século a

Sociologia privilegiou temas para os quais a questão do poder constituiu uma clivagem

central, clivagem essa que impossibilitou a utilização do conceito de representação, tal

como enunciado por DÜRKHEIM, para analisar como as categorias do pensamento

69

expressam a realidade.

É por isso que ao analisar o recente resgate do conceito de representação,

comentando sobre o contexto característico à Sociologia, OLIVEIRA afirma:

Não se questionava a essência das representações, mas seus tipos; não se questionava sua origem e sentido, mas sua falsidade ou veracidade. Não se discutia sua operacionalidade nem sua fundamentação teórica, uma vez que seus resultados eram presumidos de antemão. Eis talvez porque não seria no interior da Sociologia que o conceito de representação social seria retomado, mas sim no interior da Psicologia Social e dos estudos sobre a imaginação simbólica. (OLIVEIRA, 1999, p. 183)

3.2 DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: O RESGATE DO

CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO ATRAVÉS DA PSICOLOGIA SOCIAL

De maneira consensual, a Teoria das Representações Sociais tem sido

apresentada como uma forma sociológica de Psicologia Social originada na Europa, no

início da década de 1960, com o estudo de Serge MOSCOVICI a respeito de como a

Psicanálise foi apropriada pelo conhecimento de senso comum (FARR, 2000, p. 31).

De acordo com S. JOVCHEOLOVITCH (2000, p. 19), desde o seu início, o

estudo de MOSCOVICI demonstrou o interesse explícito pela superação do

individualismo que até então caracterizava a Psicologia Social. Mais do que isso, o

autor procurava articular fenômenos individuais e sociais, sem que um fosse

necessariamente reduzido ao outro. Ou ainda, procurava relacioná-los sem que para

tanto um fosse submetido ao outro como uma variável dependente.

Foi justamente para superar o enfoque individualista da disciplina que

MOSCOVICI resgatou o conceito de representações coletivas elaborado por

DÜRKHEIM. Para o propósito intelectual de MOSCOVICI esse conceito possuía uma

utilidade óbvia. Como foi argumentado na seção anterior, atribuindo às representações

as características distintivas dos fatos sociais - autonomia, exterioridade e

coercitividade - DÜRKHEIM tomou os indivíduos como portadores das

representações, mas sempre sem reduzi-las ou explica-las a partir da esfera individual.

Portanto, a abordagem de DÜRKHEIM fornecia um contraponto ao individualismo.

70

Esse contraponto representado pelo resgate do conceito de representações

coletivas não significou, no entanto, a sua imediata inserção dentro de um novo corpo

teórico. Antes disso, ele foi reformulado:

Do ponto de vista de Dürkheim, representações coletivas articulam uma vasta classe de formas intelectuais, incluindo a ciência, a religião, mitos, as categorias de espaço e tempo, etc. Sabemos tanto por intuição como por experiência que não é possível se articular uma tão vasta classe de conhecimento e crenças, tanto por causa de sua heterogeneidade quanto por causa da impossibilidade de defini-las através de umas poucas características. Estamos assim compelidos a adicionar duas modificações importantes. Representações sociais precisam por um lado ser compreendidas como uma forma particular de adquirir conhecimento e comunicar o conhecimento que já tem sido adquirido. Elas ocupam uma posição curiosa em algum lugar entre conceitos cujo propósito é o de destilar o significado do mundo, torná-lo mais ordenado e entre percepções que reproduzem o mundo de uma maneira razoável. (MOSCOVICI, mímeo., p. 4-5)

A reformulação esboçada acima demonstra que o interesse de MOSCOVICI

aponta para um fenômeno específico. Para DÜRKHEIM o que está em questão são

sociedades estáticas e tradicionais, caracterizadas por processos de mudança que se

manifestam lentamente, onde as dimensões sociais são mais cristalizadas e

estruturadas. Nessas sociedades, as representações são duradouras e amplamente

distribuídas entre os indivíduos. Institucionalizadas, transmitidas vagarosamente de

geração em geração, estão contidas na esfera da cultura. As duas modificações

adicionadas por MOSCOVICI, por outro lado, tomando as representações como uma

forma de produzir e comunicar conhecimento sobre o mundo, apontam para

sociedades mais dinâmicas:

Estou pensando nas representações sociais de nossa sociedade presente, de nosso solo político, científico e humano, onde o tempo é muito curto para permitir sedimentação própria, e para criar tradições estáveis. Representações sociais tornam-se cada vez mais importantes enquanto que os sistemas unificadores que temos (ciência, religião, ideologia, o Estado) se tornam mais e mais mutuamente incompatíveis. As comunicações de massa aceleraram esta tendência e aumentaram a necessidade de uma sutura entre o status abstrato de nossas ciências e nossas crenças gerais de um lado, e nossas atividades concretas enquanto indivíduos sociais de outro. Em outras palavras, há uma necessidade cada vez maior de se continuar reconstituindo o senso comum, aquela soma de conhecimentos que constituem o substratum de imagens e significados sem os quais nenhuma coletividade pode operar. (MOSCOVICI, mímeo., p. 6)

Observa-se assim que o conceito foi reformulado ao ser relacionado a um

71

fenômeno de natureza distinta. Para DÜRKHEIM, as representações coletivas ilustram

grandes variáveis sociais das quais os indivíduos aparecem como meros suportes. Por

outro lado, em MOSCOVICI, as representações sociais ilustram uma esfera de

interseção onde o conhecimento não representa mais a influência duradoura e estável

da sociedade, mas ao mesmo tempo não constitui um campo para a livre produção dos

indivíduos. O senso comum, tal como MOSCOVICI se refere, é o conhecimento

produzido por indivíduos, mas indivíduos socialmente localizados, capazes de

manipular elementos estáveis como cultura, tradição e ideologia para produzir e

comunicar conhecimento a respeito de uma realidade que não cessa de mudar.

JOVCHELOVITCH (2000, p. 24), analisando esse processo de reformulação

conceituai, comenta que o trabalho de MOSCOVICI abre um vasto campo de estudos

constituído pelas teorias do senso comum. Dotadas de racionalidade, embora não

sendo metódicas ou rigorosas, essas teorias são vistas como eficazes, pois estão na

origem da atividade de produção do sentido, da sua comunicação e, acima de tudo, da

justificação de condutas.

3.3 DO CONTEÚDO DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Em suas proposições sobre a Teoria das Representações Sociais,

MOSCOVICI divide as sociedades contemporâneas em duas ordens distintas de

pensamento: o universo consensual e o universo reificado. Sobre ambos ele comenta:

No primeiro, a sociedade se reconhece como uma criação visível, contínua, imbuída de significados e objetivos; fala com uma voz humana, é parte e parcela de nossas vidas e age e reage como um ser humano. Em suma, o homem é a medida de todas as coisas. Na última, que compreende entidades sólidas, fundamentais e imutáveis, onde particularidades e entidades individuais são desconsideradas, a sociedade falha em se reconhecer e a seus trabalhos, que lhe aparecem sob a aparência de objetos isolados. Uma vez que as disciplinas científicas estão ligadas a estes objetos, a autoridade científica é capaz de impor sua forma de pensar e experimentar a cada um de nós, prescrevendo em cada caso o que é e o que não é verdade. Sob tais circunstâncias, as coisas se tornam a medida do homem. (MOSCOVICI, mímeo., p. 7)

Em outras palavras, ao universo consensual correspondem as representações

sociais propriamente ditas, as teorias do senso comum que são geradas sem a

observação de critérios metodológicos rigorosamente estabelecidos. Por outro lado, o

universo reifícado está relacionado às ciências, ao discurso técnico e ao saber erudito,

esferas onde o conhecimento é caracterizado pela teorização abstrata e pela

preocupação com a objetividade e a neutralidade.

Como em uma espécie de sistema, o universo reificado produz o

conhecimento estranho e exótico que perturba a ordem do universo consensual, ao

passo que este último, para restabelecer a ordem, apropria-se daquilo que é estranho

através das representações.

A necessidade, própria ao universo consensual, de tomar o estranho em algo

familiar revela-se o motivo central para a elaboração das representações sociais. A

familiarização, no entanto, não ocorre ao acaso. Ela obedece uma determinada

dinâmica:

Estamos confrontados aqui com a dinâmica da familiarização, onde objetos, indivíduos e eventos são reconhecidos e compreendidos com base em encontros anteriores ou modelos. Como resultado, a memória tende a predominar sobre a lógica, o passado sobre o presente, a resposta sobre o estímulo e a imagem sobre a 'realidade'. Acertar e aprender o familiar, acostumar-se a ele e torná-lo uma rotina, estas são as ocorrências ubíquas. Nossa confiança no familiar como o ponto de referência preferido é um fenômeno igualmente universal. (MOSCOVICI, mímeo., p. 10)

Assim, o ato de representar, motivado pela necessidade de familiarização,

traduz o desconhecido em termos daquilo que já se conhece, ou ainda, aproxima aquilo

que é estranho através de uma categoria reconhecida. É por isso que um grupo, ao se

deparar com algo novo, irá elaborar a sua representação a partir das imagens, conceitos

e linguagens que são compartilhadas pelos seus indivíduos.

Mais detidamente, a familiarização envolve dois processos paralelos, a

ancoragem e a objetivação. A ancoragem consiste na integração do desconhecido a um

sistema de pensamento preexistente. Nas palavras de MOSCOVICI, ancorar implica

em "classificar e nomear". Se tudo aquilo que não pode ser classificado e nomeado

parece estranho, inexistente e até ameaçador:

O primeiro passo para se superar a resistência e trazer o objeto ou pessoa mais próximo de

73

nós é realizado quando o atribuímos a uma categoria preferida, para rotulá-lo com uma palavra que pertence a nossa linguagem. O mero fato de ser capaz de falar ou fazer um julgamento sobre alguém, isto é, de ser capaz de comunicar sobre ele, nos permite imaginar o incomum dentro de nosso mundo ordinário. Ao categorizar o não categorizável ou nomear o não nomeável, nós já o estamos representando. (MOSCOVICI, mímeo., p. 16)

A classificação constitui um processo cuja lógica não admite a neutralidade.

Ela implica em atribuir valores, positivo ou negativo, bem como estabelecer posições

hierárquicas em relação aquilo que está sendo representado. Trata-se de enquadrar o

novo através de um modelo contido na memória e estabelecer uma relação positiva ou

negativa em relação a ele. Trata-se, ainda, de enquadrar o novo através de

generalizações ou individualizações.

A nomeação, por sua vez, implica em retirai- o desconhecido do anonimato,

atribuindo-o um rótulo contido numa rede de palavras tidas como especiais. Da

nomeação, resultam três efeitos: o novo torna-se passível de ser descrito, distinguido e

sujeito a uma convenção.

Por fim, a objetivação consiste em conferir um aspecto material aquilo que

até então constituía uma entidade abstrata, ou ainda, descobrir o aspecto icônico de

uma idéia. Através do processo de objetivação gera-se um núcleo figurativo, uma

estrutura de imagem que reproduz um conceito abstrato de maneira visível.

C. SÁ (1993, p. 40), analisando o processo de objetivação, enfatiza que, uma

vez gerado um núcleo figurativo, o grupo passa a ser capaz de falar com mais

facilidade sobre o que esse modelo representa. E por causa dessa facilidade que as

palavras referentes ao núcleo figurativo tendem a ser usadas com mais freqüência

quando um determinado tema é evocado. Isso ocorre, pois:

Cortada e jogada dentro do ambiente social, a imagem associada com uma palavra ou idéia vem a ser tratada como uma realidade: uma realidade convencional, é claro, mas ainda assim uma realidade (...) Atinge-se um ponto onde a diferença entre a imagem e a realidade é eliminada. A reprodução do conceito perde seu valor enquanto símbolo e se torna uma cópia da realidade, um "simulacrum", como os gregos usavam o termo. Neste ponto, o conceito ou entidade de que parecia imanar é despido de seu caráter arbitrário e abstrato e parece ser acrescido de uma existência autônoma, quase física. Para aquele que o utiliza, ele adquire a autoridade de um fato natural. (MOSCOVICI, mímeo., p. 24)

74

3.4 DOS ASPECTOS METODOLÓGICOS

C. SÁ (1998, p. 24) recorda uma proposição teórica elementar ao campo das

representações sociais: "uma representação social é sempre de alguém (sujeito) e de

alguma coisa (objeto)". Nesse sentido, o estudo empírico das representações deve

passar sempre por duas etapas obrigatórias: o enunciado do objeto da representação e a

identificação do grupo em cujas manifestações de discurso e de comportamento se

materializam as representações.

Quanto ao enunciado do objeto da representação, uma precaução faz-se

necessária. Não é qualquer objeto que demanda, em relação a um determinado grupo, a

elaboração de representações. SÁ (1998, p. 45) comenta que esse objeto precisa ter

suficiente "relevância ou espessura social". Mais do que originar meras opiniões, esse

objeto precisa ser socialmente significativo para levar um grupo a produzir suas teorias

de senso comum. Usando as palavras de MOSCOVICI, o objeto deve ser capaz de

gerar "pressão à inferencia". Deve estar presente nas interações cotidianas dos

indivíduos, deve ser foco das conversas, dos diálogos, da troca de informações.

Quanto à delimitação do grupo portador da representação, outra precaução

faz-se necessária. B. MEDRADO (1998, p. 16) comenta que um dos aspectos mais

criticados da teoria proposta por MOSCOVICI é justamente a noção de grupo que o

autor utiliza. Assim como o grupo é caracterizado pela posse comum de uma

determinada representação, a representação também é caracterizada por ter sua origem

em função de um grupo. Essa tautología não deixa claros os critérios que precisam ser

observados para a delimitação empírica de um grupo. Em face desse comentário, uma

observação faz-se importante:

De fato, em uma concepção forte de representações sociais, não deveríamos nos ocupar senão de grupos orgânicos ou estruturados. Mas, outros conjuntos sociais cujos membros não se encontram em uma relação face a face ou contratual, tais como as mulheres, os professores, os jovens, etc., podem apresentar algumas das propriedades dos grupos ideais, como, por exemplo, interesses comuns e mesmo senso de identidade. É pois plausível que tenham também representações razoavelmente compartilhadas, dependendo da natureza dos objetos. (SÁ, 1998, p. 55)

75

Inicialmente, portanto, duas considerações elementares começam a estruturar

o estudo empírico das representações. Em primeiro lugar, deve-se eleger um objeto de

relevância social para um determinado grupo, relevância que seja suficientemente

significativa para que o grupo não formule meras opiniões. Em segundo lugar, não

havendo a possibilidade de se trabalhar com grupos formais, deve-se eleger um grupo

que, a partir de um tema ou problemática comum, compartilhe algum tipo de interesse

ou vínculo identitário.

Pois bem, em relação à primeira consideração, o presente trabalho define o

objeto da representação a ser investigada em função da problemática central de

pesquisa. Pretende-se verificai" em que medida o programa "Câmbio Verde" vem

provocando transformações na relação que os moradores de um determinado bairro

estabelecem com o lixo. Mais especificamente, pretende-se verificar se esses

moradores têm redefinido suas práticas cotidianas a partir de algum tipo de

preocupação e/ou representação ambiental adquirida em função do programa.

O objeto da representação a ser investigada, portanto, é o lixo. E através do

discurso e das práticas dos indivíduos em relação ao lixo que se pretende verificar os

impactos do programa "Câmbio Verde". Em função da problemática de pesquisa e do

objeto da representação, elaborou-se a seguinte hipótese para orientar a investigação;

as representações sobre o lixo, das pessoas que participam do programa "Câmbio

Verde", não o articulam a genéricos e abstratos problemas ambientais, mas a

problemas cotidianos, diretamente colocados à comunidade, tanto no campo sanitário

(saúde, higiene e limpeza), como no campo econômico (sobrevivência e

complementação de renda).

Em relação à segunda consideração, o grupo portador da representação foi

definido em função de três variáveis: da localização, dos dados sócio-econômicos e do

fato dos indivíduos estarem em contato com um programa em comum19. E importante

frisar que o grupo investigado não é formado por indivíduos que dependem da cata do

19 Essas variáveis serão apresentadas com maiores detalhes no próximo capítulo.

76

lixo como fonte de renda. Além disso, é nítido o fato de que o programa leva esses

mesmos indivíduos a estabelecerem interações em função da tarefa de coletar e

guardar o lixo que será trocado por alimentos.

Feitas essas duas considerações iniciais, abre-se uma grande variedade de

procedimentos metodológicos para orientar a pesquisa. SÁ (1998, p. 80) atribui essa

variedade de procedimentos metodológicos ao fato de MOSCOVICI, ao elaborar a sua

teoria, não ter privilegiado nenhum método de pesquisa em especial. Isso permite que

cada pesquisador, pautado por seus interesses específicos, respeitando as regras

básicas para a produção do conhecimento científico, construa os procedimentos mais

convenientes.

M. SPINK (1993, p. 88), por sua vez, aprofunda a observação acima e atribui

a variedade de procedimentos metodológicos ao fato de que MOSCOVICI formulou,

mais do que um quadro teórico rigorosamente acabado, dispondo de um sistema

formal de hipóteses que podem ser testadas e falsificadas, apenas um campo de saberes

que orienta a compreensão daquilo que as pessoas fazem em suas vidas reais e em

situações significantes. A teoria fornece pistas para a identificação de um fenômeno,

mas não determina de maneira rigorosa como esse fenômeno deve ser abordado e

tratado.

Sendo assim, paia fugir à escolha aleatória de uma determinada metodologia

de pesquisa, a autora propõe que essa escolha seja pautada pela interpretação que se dá

ao fenômeno. Se o mesmo for tomado como uma forma de conhecimento prático sobre

um objeto de relevância social, esse posicionamento solicita o esclarecimento de dois

aspectos: a teoria do conhecimento que lhe é subjacente e os determinantes de sua

elaboração. (SPINK, 2000, p. 118)

Por um lado, a representação reflete uma estrutura estruturada, pois revela a

maneira como os indivíduos manifestam as tendências do grupo, sua pertença ou

filiação a um contexto social que lhes é comum. Por outro lado, a representação reflete

uma estrutura estruturante, pois revela a capacidade dos indivíduos para criar e

transformar a realidade social. No primeiro caso, a representação é tomada como um

nn i /

produto. No segundo, ela é tomada como um processo.

Como produto, a representação precisa ser remetida ao contexto de sua

produção. Como processo, ela precisa ser relacionada à atividade de reinterpretação

contínua que ocorre no espaço da interação. No entanto, a noção de contexto não deve

ser marcada apenas por fatores situacionais, mas também pelos diferentes tempos

históricos que permeiam a construção dos significados sociais:

Considerando que os conteúdos que circulam na sociedade podem ter sua origem tanto em produções culturais mais remotas, constituintes do imaginário social, quanto em produções locais e atuais, deduzimos que o contexto pode ser definido não apenas pelo espaço social em que a ação se desenrola como também a partir de uma perspectiva temporal: o tempo curto da interação que tem por foco a funcionalidade das representações; o tempo vivido que abarca o processo de socialização, das disposições adquiridas em função da pertença a determinados grupos sociais; e o tempo longo, domínio das memórias coletivas onde estão depositados os conteúdos culturais cumulativos de nossa sociedade, ou seja, o imaginário social. (SPINK, 2000, p. 122)

Nessa perspectiva o contexto aparece como uma justaposição. Existem as

construções sociais mais estáveis que alimentam nossa subjetividade. Existem também

construções mais funcionais que alimentam nossas interações. Então, quanto mais o

conteúdo da representação se aproxima do tempo longo, mais próximo ele está das

permanências. Da mesma forma, quanto mais ele se aproxima do tempo curto, mais

próximo ele fica da diversidade e da criação.

Segundo SPINK (2000, p. 123), quando a análise da representação pretende

enfocar o processo, a diversidade e a criação, sua funcionalidade na orientação da ação

e da comunicação, isso pode ser feito através de estudos de caso. Esses estudos,

buscando a distribuição de conteúdos numa dada população, abordam o indivíduo

como uma entidade social, como um símbolo do grupo a que pertencem.

Tomando essa orientação, as técnicas de análise da representação devem

desvendar a associação de idéias que lhe são subjacentes. Tais técnicas podem variai-

ent função da linguagem utilizada e do número de sujeitos necessários para efetuar as

operações estatísticas. Quando se trabalha com um número mais expressivo de

sujeitos, utiliza-se procedimentos quantitativos. Esses procedimentos, através da

agregação de casos, em detrimento do significado, permitem uma visão mais

78

panorâmica das associações de idéias. Por outro lado, quando se trabalha com um

número mais reduzido de sujeitos, utiliza-se procedimentos qualitativos. Nesse caso,

perde-se a visão de conjunto, mas ganha-se o significado das associações de idéias.

(SPINK, 2000, p. 124)

No presente trabalho, a análise das representações sobre o lixo não pretende

verificar a extensão com que idéias relativas às esferas sanitária, econômica ou

ambiental estão distribuídas entre os indivíduos. Ao contrário, pretende-se verificar os

significados dessas idéias e de que maneira esses significados estão associados à

prática da separação do lixo, condição básica para a participação no programa

"Câmbio Verde". Portanto, optou-se por trabalhar com procedimentos qualitativos e

com um número reduzido de sujeitos.

3.5 DA COLETA E DA ANÁLISE DOS DADOS

A coleta de dados teve início com a observação do funcionamento do

programa "Cambio Verde" no ponto de troca do bairro São Braz. O acompanhamento

in loco do programa começou em 23 de maio de 2002 e se estendeu até 12 de

dezembro do mesmo ano. Ao todo foram feitas quatorze visitas ao ponto de troca.

A primeira visita foi feita sob a supervisão de funcionários da Prefeitura

Municipal de Curitiba que trabalham na filial da Secretaria Municipal do

Abastecimento da Administração Regional do bairro Santa Felicidade. Esses

funcionários, basicamente, fizeram a apresentação do funcionamento do programa. As

visitas posteriores foram feitas sem a presença dos mesmos.

A partir da segunda visita foram feitos os primeiros contatos com os

moradores do bairro através de conversas informais. E necessário ressaltar que todo o

período de visitas ocorreu em paralelo às campanhas eleitorais de 2002. Isso é

relevante, pois em princípio trouxe prejuízo ao trabalho de observação. Os moradores

abordavam o pesquisador como uma espécie de representante da Prefeitura que se

fazia presente para monitorá-los.

79

Havia a nítida preocupação, por parte dos moradores, em elogiar o programa

e a atuação da Prefeitura. Essa preocupação estava associada ao receio de sofrer algum

tipo de represália, caso alguma iniciativa da Prefeitura fosse criticada. Posteriormente,

principalmente com a passagem do primeiro turno das eleições, no qual o candidato ao

governo do estado apoiado pela Prefeitura foi derrotado, os moradores alegaram que a

qualidade e a quantidade dos alimentos trocados havia caído significativamente. Para

eles o fato era legível. Não apoiaram o candidato oficial e por isso estavam sendo

punidos.

Foi necessário tempo, portanto, para que essa primeira imagem fosse

desfeita. A partir do momento em que passou a ser possível explicai' o vínculo do

pesquisador com uma instituição de ensino, a Universidade Federal do Paraná, os

propósitos da pesquisa em andamento e, principalmente, o fato de que a pesquisa não

era encomendada pela própria Prefeitura, iniciou-se o levantamento dos principais

temas relacionados pelos moradores ao programa "Câmbio Verde".

A partir da combinação desses temas, dos objetivos anunciados pela

Prefeitura em relação ao programa e da problemática de pesquisa, elaborou-se um

questionário piloto para orientar a condução das entrevistas20. O questionário foi

dividido em quatro blocos. No primeiro, de identificação, foram dispostas questões

para melhor situar os moradores em função de variáveis como renda e educação

formal. No segundo, de evocação, as expressões lixo, reciclagem, coleta seletiva,

separação e meio ambiente foram usadas para acessar o discurso dos moradores. No

terceiro, dos objetivos gerais do programa, foram confrontados os temas limpeza,

alimentação e consciência ambiental. No quarto, por fim, a partir de uma situação

hipotética, a continuidade da prática de separar o lixo foi confrontada com a suspensão

do funcionamento do programa.

Em seguida, esse questionário piloto foi testado através de cinco entrevistas.

Com esse teste, três problemas foram percebidos, sendo que dois estavam no segundo

20 Sobre o questionário piloto, ver APÊNPICE 1.

80

bloco de questões e um no terceiro.

Em relação ao segundo bloco, as expressões coleta seletiva e reciclagem não

se revelaram relevantes para acessar o discurso dos moradores entrevistados. Ao usá-

las, os moradores acabavam discursando apenas sobre o ato de separação do lixo.

O mesmo ocorreu com a expressão meio ambiente. No entanto, neste caso, a

expressão revelou ser ainda menos relevante, pois os moradores não produziram

nenhum tipo de associação de idéias. Mais ainda, ao ouvir a expressão permaneciam

em silêncio ou solicitavam que outra questão fosse feita. Indagados se já haviam

ouvido a expressão, afirmavam que, eventualmente sim, em programas de televisão.

Finalmente, indagados sobre o que ouviram em relação à expressão, evocavam a idéia

de natureza.

Dessa forma, o segundo bloco foi alterado. As expressões coleta seletiva e

reciclagem foram retiradas, sendo mantida a expressão separação do lixo, que acabava

englobando as precedentes. Quanto à expressão meio ambiente, ela foi mantida, mas

sempre acompanhada das questões: "você já ouviu essa expressão?", "onde você a

ouviu?" e "o que foi dito sobre ela?".

Em relação ao terceiro bloco, os moradores demonstraram uma espécie de

embaraço ao avaliar os objetivos apresentados como aqueles anunciados pela própria

Prefeitura. Nesse caso, pareceu mais apropriado indagar-lhes se o programa estava

trazendo algum tipo de benefício e que benefício seria esse. Dessa forma, poderiam

expor suas avaliações sobre o programa sem confronta-las obrigatoriamente com o

discurso oficial.

A partir dessas modificações no questionário piloto, chegou-se ao

questionário definitivo21. Com ele foram realizadas dezessete entrevistas entre os dias

9 e 30 de janeiro de 2003. Essas entrevistas foram realizadas nas residências dos

moradores e duraram em média trinta minutos. O número de entrevistados foi

estabelecido a partir do critério de saturação. De acordo com SÁ (1998, p. 92), esse

21 Sobre o questionário definitivo, ver APÊNDICE 2.

81

critério permite que o número limite de entrevistados seja estabelecido no decorrer da

pesquisa, quando os temas e/ou argumentos começam a se repetir, pouco

acrescentando de significativo ao conteúdo da representação.

Concluída a coleta dos dados, o material foi submetido à técnica de análise

do discurso sugerida por SPINK (2000). Essa técnica inicia com a transcrição e a

leitura flutuante das entrevistas, intercalando a audição do discurso gravado com a

leitura do discurso transcrito. A partir desse procedimento procuia-se deixar aflorai- os

aspectos mais gerais do discurso, como os temas abordados, o seu tipo de construção,

a retórica e a emergência de investimentos afetivos.

Em seguida determina-se as dimensões centrais à representação e elabora-se

um mapeamento do discurso. SPINK (2000, p. 131) sugere dois caminhos possíveis

para a construção desse mapeamento. No primeiro, quando a entrevista está centrada

em um tema mais delimitado, o discurso é mapeado a partir das dimensões internas à

representação: elementos cognitivos, a prática do cotidiano e o investimento afetivo.

No segundo, mais adequado no caso de representações complexas, o discurso é

mapeado a partir de dimensões que resultam da combinação entre os temas emergentes

e os objetivos da pesquisa.

No presente trabalho, em função da hipótese de pesquisa e dos temas

verificados a partir de uma primeira análise dos discursos, optou-se pelo segundo

caminho. Assim, os discursos foram mapeados de acordo com as seguintes dimensões:

a teoria de conhecimento elaborada em relação ao lixo; a identificação das práticas

cotidianas estabelecidas em relação ao lixo; o posicionamento dos moradores em

relação a essas práticas; o posicionamento dos moradores em relação à temática

ambiental; a identificação dos benefícios trazidos pelo programa; e, por fim, o padrão

de relacionamento entre moradores e poder público que se estabelece em função do

programa:

Finalmente, ainda de acordo com a técnica sugerida por SPINK (2000) o

mapeamento do discurso deve ser transportado para um gráfico onde as associações de

idéias podem ser pontuadas.

82

4 DO ESTUDO DE CASO REALIZADO NO BAIRRO SÃO BRAZ

4.1 DO BAIRRO SÃO BRAZ E DAS CARACTERÍSTICAS DO "PONTO DE

TROCA" DO PROGRAMA "CÂMBIO VERDE"

De acordo com informações fornecidas pelo Instituto de Pesquisa e

Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC, 2002), o bairro São Braz, até meados da

década de 1970, era formado por extensas chácaras onde predominava a atividade

agrícola e havia uma baixa integração com a malha urbana. A partir desse período,

com o rápido crescimento da cidade, as chácaras foram sendo progressivamente

desmanchadas através do processo de loteamento.

O bairro está a aproximadamente oito quilômetros do centro de Curitiba e faz

parte da Administração Regional de Santa Felicidade. De acordo com o levantamento

mais recente (IBGE / IPPUC, 2000), sua população total é de 23.119 pessoas (11.163

homens e 11.965 mulheres), sendo que a idade média dessa população é de 27,75 anos.

O rendimento mediano por domicílio é de 3,27 salários mínimos.

Em termos de serviços públicos, o bairro é servido por 5 escolas, 3 estaduais

e 2 municipais, 3 creches e 2 Unidades Municipais de Saúde Básica. A Prefeitura

Municipal de Curitiba disponibiliza, além do programa "Câmbio Verde", mais 3

programas relacionados ao abastecimento: "Direto da Roça e do Mar", "Lavouras" e

"Mercadão Popular". A coleta de lixo convencional é realizada três vezes por semana

e o Programa "Lixo que não é Lixo" é realizado uma vez por semana. Não há a

manutenção de espaços públicos como praças, parques ou bosques.

O local denominado "ponto de troca", onde é realizado o Programa Câmbio

Verde, fica no cruzamento das Ruas Concriz e Durval Pinto Cordeiro. De acordo com

83

informações da Secretaria Municipal do Abastecimento (SMA)22, esse local foi

escolhido a partir de levantamentos feitos pela Prefeitura, verificando a concentração

de famílias que se integram no perfil atendido pelo programa, bem como a existência

de áreas de risco devido ao acúmulo de lixo. Por outro lado, alguns moradores e o

responsável pela Associação de Moradores23 comentaram que o local foi determinado

por conta de um litígio. Inicialmente, o programa funcionava em frente à sede da

Associação de Moradores (à Rua Ângelo Massignan). No entanto, os vizinhos e a

própria Associação organizaram um movimento para mudar o "ponto de troca",

alegando que o acúmulo de lixo trazia conseqüências intoleráveis.

Além do desencontro de informações exposto acima, o episódio é

representativo por ilustrar um tipo de conflito que se originou em função do programa

"Câmbio Verde". Assim como os primeiros vizinhos do ponto de troca inicial, os

vizinhos do ponto de troca atual reclamam do acúmulo de lixo. Também desejam que

o ponto de troca seja mudado de lugar. Como será discutido adiante, consideram o

programa importante para a manutenção da limpeza do bairro. Mas nesse caso,

contudo, a limpeza do bairro implica, quinzenalmente, no acúmulo de lixo em frente

de suas casas. Acreditam, finalmente, que a Associação de Moradores não agiu de

maneira adequada e por isso questionam sua representatividade.

O tema relativo ao local onde funciona o programa não constituiu o único

ponto de desencontro entre as informações oficiais e as informações coletadas com os

moradores. Como foi discutido no Capítulo 2 do presente trabalho, a Prefeitura

apresenta a realização de aulas de educação ambiental como um dos elementos que

compõem o programa "Câmbio Verde". Pois bem, dos moradores entrevistados,

nenhum confirmou a realização dessas aulas. Todos afirmam que a Associação de

" As informações obtidas através de conversa informal com os funcionários da Secretaria Municipal do Abastecimento, alocados na Administração Regional de Santa Felicidade, não puderam ser gravadas, pois este procedimento não foi autorizado.

2j Entrevista concedida ao autor (09 de janeiro de 2003).

84

Moradores nunca foi utilizada com esse propósito.

Em relação à troca do lixo reciclável pelos alimentos, ela ocorre às quintas-

feiras, entre nove e dez horas da manhã. Antes dos caminhões coletores estacionarem,

forma-se uma fila que, em média, reúne 20 pessoas e é composta predominantemente

por mulheres e idosos. Eventualmente, crianças aparecem acompanhando os adultos.

A maior parte dos moradores utiliza carrinhos para carregar o lixo. Detalhe não

divulgado pela Prefeitura, esses carrinhos são fornecidos aos moradores através das

Administrações Regionais. No momento em que os caminhões coletores estacionam, o

fluxo de pessoas aumenta. A média nas sessões acompanhadas foi de

aproximadamente 60 pessoas. Especificamente na sessão de 12 de dezembro de 2002,

última realizada antes do Natal, ocasião em que o programa inclui panetones na lista

de alimentos, geralmente marcada pela presença de banana e repolho, a fila reuniu

mais de 120 pessoas.

Pelo tipo de lixo reciclável que se leva para a troca, percebe-se que o mesmo

não é coletado e separado apenas dentro do espaço doméstico. Como a troca por

alimentos é mediada através do peso, os moradores, obviamente, procuram acumular

aquele lixo que é composto por materiais mais pesados, como metais, madeiras e

vidros. Geladeiras e fogões estragados, cascos de bebidas que não são mais produzidas

e móveis despedaçados estão entre os materiais mais cobiçados. Não foi possível

estabelecer a quantidade média de lixo trocada individualmente pelos participantes do

programa. Por outro lado, foi possível identificar que duas estratégias são bastante

usadas para aproveitar ao máximo as sessões de troca: mais de uma pessoa da mesma

família contribui para carregar o lixo, ou a mesma pessoa carrega o lixo em várias

"viagens" sucessivas. O alimento obtido com a troca é levado para casa no mesmo

carrinho que foi usado para transportar o lixo.

Ainda um último detalhe referente ao "ponto de troca" localizado no Bairro

São Braz, percebido em função do contraste com outros "pontos de troca"24, diz

24 Entre os dias 20 e 24 de maio de 2002 foram visitados 8 pontos de troca.

85

respeito ao perfil dos moradores encontrados nas filas do programa. Ao contrário de

outros lugares, no "ponto de troca" do bairro São Braz não se observou a presença de

pessoas que têm a coleta do lixo como atividade principal de sobrevivência. Foi

principalmente em função da ausência dos "catadores" que se escolheu esse "ponto de

troca" como ponto de partida para a realização das entrevistas, pois dessa forma seria

possível relativizar o peso da variável econômica sobre as práticas estabelecidas em

relação ao lixo.

4.2 DOS MORADORES ENTREVISTADOS

Como foi exposto no Capítulo 3, seção 3.5, o presente estudo de caso

envolveu a realização de dezessete entrevistas entre os dias 9 e 30 de janeiro de 2003.

Após um período de observação e aproximação, os entrevistados foram escolhidos

através de conversas informais realizadas na própria fila do programa "Câmbio

Verde". Dois critérios principais foram usados para a escolha dos entrevistados: o

tempo de residência no bairro e a freqüência na participação do programa. Dessa

forma, foram descartados os moradores mais recentes, impossibilitados de elaborar

uma narrativa sobre a trajetória do programa, bem como os moradores que participam

esporadicamente, cujas práticas relacionadas ao lixo não sofrem uma influência

constante do programa.

Todos os entrevistados residem no bairro há mais de uma década e

acompanham o funcionamento do programa desde o seu início. Todos os entrevistados

participam quinzenalmente do programa e, além disso, envolvem, de alguma maneira,

outros membros da família nas atividades que possibilitam a troca de lixo reciclável

por alimentos.

Dos entrevistados, 10 são mulheres e 7 são homens. E importante ressaltar

que não se estabeleceu uma clivagem através da variável gênero, identificando dois

grupos e comparando suas respectivas representações. Todos estão na faixa etária

compreendida entre os 45 e os 55 anos. Todos se apresentaram como alfabetizados,

86

tendo cursado, no máximo, a 5 série do ensino fundamental (4 concluíram a 2 série, 8

concluíram a 4 série e 5 concluíram a 5° série). Quanto à situação profissional,

nenhum se apresentou como desempregado ou à procura de emprego (5 aposentados, 7

donas de casa, 3 serventes e 2 domésticas). Em relação à renda familiar, ela oscila

entre R$ 300,00 e R$ 500,00 (4 entre R$ 200,00 e R$ 300,00, 7 entre R$ 300,00 e R$

400,00, 6 entre R$ 400,00 e R$ 500,00).

Por fim, é interessante observar que nenhum dos entrevistados faz parte da

Associação de Moradores. Em relação ao papel que ela desempenha na comunidade,

revelam uma postura de indiferença ou desconfiança. Este é outro tema onde ocorre o

desencontro entre a informação oficial da Prefeitura, segundo a qual o programa

"Câmbio Verde" procura estimular a participação dos moradores em suas Associações,

e as informações coletadas durante a realização da pesquisa.

4.3 DAS ASSOCIAÇÕES DE IDÉIAS PRESENTES NO DISCURSO DOS

ENTREVISTADOS

4.3.1 DO QUE FOI DITO SOBRE O LIXO

A primeira associação de idéias verificada neste estudo de caso corrobora

informações já apontadas por outros estudos.

A. KUHNEN (1995) investigou as representações sociais do lixo entre os

participantes de um programa de coleta seletiva em Florianópolis, capital do estado de

Santa Catarina. C. BASTOS (1998) investigou atitudes e representações sobre o lixo

entre os moradores de cidades localizadas na região do Algarvé, em Portugal. P.

CERDEIRA (1999), a partir de uma abordagem fenomenológica, investigou as

percepções de diferentes estratos da população de Paranaguá, cidade portuária situada

no litoral do estado do Paraná, em relação ao lixo.

A despeito de todas as diferenças que caracterizam os trabalhos mencionados

acima - variação dos procedimentos teóricos e metodológicos, singularidades do local

87

de realização das investigações e especificidade das variáveis sociais que caracterizam

os grupos investigados - é possível verificar uma associação de idéias homogênea:

predominantemente se atribui ao lixo um significado ligado à idéia de sujidade.

A associação entre sujidade e lixo pode parecer excessivamente óbvia. No

entanto, é válido ressaltar que essa associação de idéias foi observada por estudos

preocupados em investigar a influência da temática ambiental sobre as práticas

relacionadas ao lixo. Mesmo com diferentes perfis populacionais, em diferentes

contextos sociais, marcados pela presença de diferentes tipos de informação, o lixo

carrega significados que, construídos socialmente desde longa data, prevalecem sobre

a temática ambiental.

Nesse sentido, parece oportuno retomar, ainda que rapidamente, a discussão

elaborada no Capítulo 1 do presente trabalho. Através de revisão bibliográfica,

baseada principalmente nos trabalhos de N. ELIAS (1991), A. CORBIN (1987) e J.

Rodrigues (1995), foram delineados alguns dos traços característicos do processo

social que, paralelo à formação da sociedade moderna, possibilitou a emergência da

noção de sujidade. A emergência dessa noção foi discutida sob a ótica de uma

construção social.

Para N. ELIAS (1991), essa noção é um elemento característico do processo

civilizador. Para A. CORBIN (1987), ela integra um conjunto de pressões sociais que

educam os nossos sentidos. Para J. RODRIGUES (1995), por fim, ela constitui um

elemento extremamente arraigado em nossa cultura. Assim, a recorrência da

associação entre sujidade e lixo, pode ser interpretada como o predomínio de um

conteúdo pertencente ao tempo longo que marca o contexto de elaboração das

representações sociais. (SPINK, 2000)

Nas entrevistas realizadas neste estudo de caso, a associação entre sujidade e

lixo foi manifestada de maneira bastante homogênea. Inicialmente, a pergunta - "o que

é lixo?" - gerou perplexidade, visto que para os entrevistados a resposta parecia breve

e evidente:

88

É uma coi sá, muito, suja. É aquilo que agente não pode jogar em qualquer lugar, senão daí fica tudo nojentor

Lixo é tudo aquilo que precisa recolher, cuidar e jogar fora porque se não junta tudo que é tipo de sujeira.

Lixo é sujeira né. Ë aquilo que traz bicho e doença. Que nem tem gente aí que dá até raiva, porque joga a sujeirada na frente da casa da gente. Tem que jogar é lá longe!

É aquilo que você ajunta e coloca num saco pro caminhão levar. É aquilo que não serve mais e fica sujando a nossa casa.

Em seguida, questionados sobre o fato de coletarem e separarem o lixo para

participar do programa "Câmbio Verde", passaram a elaborar um padrão de resposta

diferente. Nesse padrão, há a presença de dois significados distintos articulados através

de construções adversativas:

E mesmo, até um tempo aí, o lixo era só aquilo que não prestava mais. Mas agora, com a situação hoje em dia, é um negócio que tem o seu valor. Vale alguma coisa. Nem é mais propriamente lixo.

Olhe, que lixo é sujo ele é mesmo. Não dá pra dizer que não. Tem muito resto, muita porcaria. Agora, tem muita gente que precisa, que tem necessidade. Nem é o meu caso. Aqui em casa a minha família se garante. Só que se for ver por aí... Daí já passa a ser uma coisa mais importante.

Prevalece a noção de sujidade. Mas agora, esta noção passa a ser

acompanhada pela idéia de utilidade. Há no lixo algo de valor. Esse valor, que

possibilita algum tipo de retorno material, por vezes faz com que o lixo não pareça ser

aquilo que, de acordo com a associação de idéias inicial, ele deveria ser. Os discursos

revelam uma permanente contradição: se a sujidade leva à repugnância, a utilidade

estimula a valorização.

Essa contradição pode ser compreendida novamente em função dos tempos

que caracterizam o contexto de produção das representações sociais. De acordo com

M. SPINK (2000, p. 122-123), esse tipo de contradição revela a funcionalidade das

representações para orientar as práticas cotidianas. Como já foi dito, a noção de

sujidade constitui o conteúdo da representação que sinaliza o tempo longo, a

permanência. Então, de um lado está a pressão realizada por um conhecimento que

89

está amplamente distribuído pela sociedade. Do outro, estão as questões concretas da

vida cotidiana que exigem práticas incompatíveis com esse conhecimento. E assim

que, no contexto caracterizado pelo tempo curto da representação, abre-se o espaço

para a diversidade.

Pois bem, como a associação de idéias presente nos discursos aponta, são

condições materiais de vida que, percebidas como recentes, levam os moradores a

identificar um possível valor em algo repugnante:

De uns tempos pra cá, lixo também é economia. Quando você troca o lixo acaba economizando em outro lugar... Que nem no mercado, ta tudo tão caro. Ta chegando num ponto em que as pessoas apelam até pro lixo pra poder levar a vida.

Sabe que isso é de desemprego... Porque antes não era assim. Agora quando você tem uma lata, uma garrafa, esse tipo de coisa, você já se preocupa até em conseguir alguma coisa.

Em função disso, os moradores concluem que o ato de considerar o lixo

como algo repugnante tem passado a ser, cada vez mais, um privilégio dos que

possuem uma situação material mais favorável:

Devia ser algo sujo. Antes era mais assim. Hoje pra quem pode comprar e jogar fora, lixo é sujeira mesmo. É aquilo que não tem serventia. Mas ai é porque você já não precisa... Mas hoje tem muita gente com necessidade e que precisa.

Ao possibilitar a postura que identifica no lixo um objeto de possível valor, a

idéia de utilidade não se sobrepõe à de sujidade. Contribui para justificar práticas

cotidianas, particularmente utilizar o lixo como fonte para algum ganho material,

acumulando-o dentro da própria residência, mas não altera profundamente o

significado que se atribui ao objeto. Também é conveniente comentar que a idéia de

utilidade aparece constantemente associada ao lixo através da esfera econômica. Não

houve o registro da associação entre essa idéia e a temática ambiental.

90

4.3.2 DO QUE FOI DITO SOBRE AS PRÁTICAS COTIDIANAS

RELACIONADAS AO LIXO

A predominância da associação entre lixo e sujidade está diretamente ligada

às noções de perigo e ameaça. Lixo é algo que demanda atenção e cuidado. Assim, a

prática imediatamente evocada para controlar essa fonte potencial de risco é a

segregação. Eliminar é fundamental para que o lixo não se acumule.

A idéia de acúmulo é particularmente significativa nessa associação. E

através dela que o risco cresce, passando pela atração de bichos e insetos até chegar à

proliferação de doenças.

Mais uma vez poderia ser dito que esse tipo de associação parece evidente.

No entanto, vale ressaltar que, para participar do programa "Câmbio Verde", os

moradores entrevistados acumulam uma quantidade significativa de lixo em suas casas

durante um intervalo de quinze dias. Portanto, a associação entre lixo, sujidade, perigo,

acúmulo e a necessidade de segregação, não é compatível com as práticas cotidianas

desses moradores. Pode-se dizer que, seguramente, o programa "Câmbio Verde" é

responsável por essa incompatibilidade, passível de ser expressa pela oposição:

sujidade / segregação x utilidade / acumulação.

Durante as entrevistas, eles não foram questionados a respeito dessa

contradição. Espontaneamente evocaram a prática da separação como algo que

possibilita um certo controle sobre o risco representado pelo acúmulo de lixo.

Aparentemente, pela segunda vez, as associações de idéias presentes no discurso dos

entrevistados apontaram a oposição entre permanência e inovação, entre os conteúdos

dos tempos longo e curto que marcam o contexto de produção das representações. O

acúmulo, visto como algo inaceitável, por isso um elemento contraditório com a

prática cotidiana de armazenar o lixo, passa a ser tolerado quando ocorre a separação.

Seria incorreto afirmar, no entanto, que a separação do lixo está sendo

meramente associada à justificativa de uma conduta que visa o ganho material

promovido pelo programa. Ao iniciar a abordagem desse tema, os moradores

91

imediatamente evocam idéias relativas ao campo sanitário: higiene e limpeza. Para que

ambas sejam possíveis, a separação é imprescindível. Questionados se o programa

"Câmbio Verde" os havia estimulado a adotar essa prática, produziram um padrão de

resposta extremamente relevante. Segue um exemplo:

Olhe, esse negócio aí de separar o lixo é uma coisa que precisa fazer... Porque senão a casa fica suja, o bairro fica sujo. Fica tudo sujo né. Não é só separar também. Quando é uma coisa que nem casca de fruta, resto de comida assim, aí enterra. Tem o papel que aí queima, caixa, essas coisas. Aquilo que suja mesmo você coloca no saco plástico e deixa pro caminhão levar. Mas tem que separar porque daí você faz limpeza. Só que tem esse negócio aí da prefeitura que eu já fazia muito antes. Bem antes deles vir aí com o negócio do caminhão agente já separava...Isso aí é sempre. Até na casa da minha mãe isso aí já tinha.

É necessário ressaltar novamente a relevância desse padrão de resposta. Ele

permite pelo menos três comentários extremamente importantes para o presente

trabalho.

Em primeiro lugar, ele revela que a prática da separação, um hábito, está

associada a significados que antecedem o funcionamento do programa "Câmbio

Verde". Não se pode compreender esses significados, portanto, através da oposição

entie os conteúdos do tempo longo e do tempo curto das representações. Eles estão

contidos no tempo vivido, aquele que abarca o processo de socialização. (SPINK,

2000, p. 122)

Em segundo lugar, ele permite refutar um argumento presente na

apresentação oficial do programa "Câmbio Verde", o de que esse programa atinge

pessoas que tem tido, historicamente pouca consciência e oportunidade para se

preocupar com questões higiênicas.

Em terceiro lugar, ele sugere que, entre o grupo investigado, a prática da

separação é pensada através de significados que não estão ligados exclusivamente à

esfera econômica. Ou seja, a troca de lixo reciclável por alimentos pode estimular a

prática da separação em termos de intensidade. Mas não é o propósito contido na troca

que desperta e dá início à prática.

92

Em função dessa associação com a esfera sanitária, a prática da separação

aparece vinculada a uma espécie de classificação dos moradores do bairro.

Predominantemente, o entrevistado afirma separar o lixo por uma questão de higiene,

enquanto "os outros" o fazem por uma questão de necessidade. Quem não separa o

lixo é visto como relaxado, pois não demonstra preocupação com a limpeza, ou

vaidoso, pois não admite sua condição de necessitado. Quanto aos moradores que

apresentam condições econômicas mais favoráveis, aqueles que separam, além da

preocupação com a higiene, com o capricho, são vistos como solidários, pois

disponibilizam o lixo reciclável para os outros. Já os que não separam, mais do que

relaxados, são vistos como egoístas.

Ao fazer comentários a respeito dos moradores que apresentam condições

econômicas mais favoráveis, os entrevistados esboçam uma reflexão sobre a prática do

consumo. Não se critica o quanto os outros consomem, desde que o material reciclável

seja separado e não jogado indiscriminadamente. Como foi dito acima, a prática da

separação, nesse caso, reflete uma forma de solidariedade. Contudo, essa forma de

solidariedade só passa a ser possível quando o lixo está sendo associado à idéia de

utilidade.

Essa reflexão pode ser usada para reforçar um argumento proposto por P.

LAYARARGUES (2002) em estudo sobre a separação das latas de alumínio. A idéia

de utilidade, ligada à possibilidade do ganho material, demonstra uma limitação

incontornável ao processo de educação ambiental que, eventualmente, possa estar

associado à prática da separação: para aumentar o ganho, é necessário aumentar a

quantidade de lixo.

4.3.3 DO QUE FOI DITO SOBRE DA TEMÁTICA AMBIENTAL

Em todas as entrevistas realizadas para este estudo de caso, a temática

ambiental demandou uma significativa quantidade de estímulos para possibilitar algum

tipo de evocação por parte dos moradores. Até mesmo durante o teste do questionário

93

piloto, como foi dito no Capítulo 3, Seção 3.5, do presente trabalho, momento em que

foram experimentadas variadas formas de apresentação para as questões, a construção

do discurso dos entrevistados foi extremamente tímida. O padrão inicial de respostas

pode ser ilustrado pela fala que segue:

Esse negocio de meio ambiente né [pausa acentuada]. Deve ser alguma coisa importante né. Tem gente que até fala disso, mas o que quê eu posso dizer? Tudo tem sua importância né. Daí tem que valorizar.

A timidez inicial do discurso, no entanto, não deve ser atribuída à ausência

de associações de idéias, ou à ausência de representações. Como os entrevistados

afirmaram já ter ouvido falar algo, propunha-se as questões "onde você ouviu?" e "o

que foi dito?". Com a primeira, foi possível verificar que a televisão, principalmente

através dos programas de notícias, é apontada como principal fonte de informações.

Com a segunda, foi possível verificar que, para falar sobre meio ambiente, os

entrevistados sempre precisam fazer uso da palavra "natureza".

A idéia de natureza são associados conteúdos que seguem o seguinte padrão:

A natureza está lá nas florestas, nas árvores. E uma coisa bonita que nem agente vê na televisão.

Tem os rios, a água limpa... E mais tranqüilo... E mais saudável. Agora aqui já ta tudo estragado, aqui já não é mais assim.

A natureza tem coisas bonitas. A floresta, os bichos e esse tipo de coisa. É bom quando agente vê esse tipo de coisa.

S. CRESPO (1998), através de levantamentos quantitativos, argumenta que

predomina entre os brasileiros uma concepção naturalizada de meio ambiente. Essa

concepção é marcada pela presença de elementos que identificam a natureza como

algo distante, divorciado do contexto sócio-espacial ocupado pelos indivíduos. Ela

revela a dificuldade em situar o homem, o seu contexto próximo e os seus problemas

concretos como parte do meio ambiente.

Esta concepção está presente nos discursos elaborados pelos entrevistados.

Em função dela, uma série de problemas concretos apresentados em seu cotidiano não

são percebidos como pertencentes à esfera ambiental. Os problemas ambientais que

94

mais evocam são a derrubada de árvores e a poluição do ar. Assim, o córrego repleto

de entulhos que atravessa o bairro, passando ao lado da sede da Associação de

Moradores, representando um risco permanente de enchente, é visto como um

problema sanitário. Diz respeito à falta de higiene e ao relaxo. O mesmo ocorre em

relação aos abundantes terrenos desocupados, utilizados como depósitos para detritos

de construção civil, refugos de oficinas mecânicas e despejo de lixo doméstico.

Ao associar esses problemas com a falta de higiene e com o relaxo, os

entrevistados frisam que os responsáveis não são os próprios moradores. Reclamam

que vários veículos coletores oriundos de outras regiões utilizam o córrego e os

terrenos do bairro, já há bastante tempo, como local para despejo de lixo:

Tem muita gente que vem de caminhão, de carro e que joga tudo ali [aponta para um terreno desocupado que fica na esquina de sua casa], Eles não moram aqui mesmo. Tudo que é sujeira eles jogam ali. As vezes eu saio por aí, que eu dou umas caminhadas, e o que eu vejo até assusta. Revolta mesmo sabe. Isso é relaxo. Fica até uma falta de consideração muito grande com as pessoas que moram aqui. Você sabe que as pessoas mais humildes são até mais conscientes. Não pegam e não jogam as coisas fora assim.

Questionados se o acúmulo de lixo pode representar um problema para o

meio ambiente, retomam a associação entre lixo e sujidade. Então, se o meio ambiente

recebe uma concepção naturalizada, o perigo representado pela sujidade é visto como

potencialmente danoso para a sua distante pureza. Os dois elementos aparecem como

um par excludente: onde há lixo e seu acúmulo, não pode haver natureza.

Também foram questionados se a prática da separação pode trazer alguma

contribuição para o meio ambiente. Nesse momento, além de associar essa prática à

dimensão sanitária, evocaram o papel da reciclagem como elemento que reduz o

acúmulo de lixo. Novamente, a redução do acúmulo de lixo está associada à idéia de

que a natureza deve permanecer limpa.

A associação entre separação, reciclagem e natureza, no entanto, não se

esgotou aí. Os entrevistados elaboraram uma longa lista dos materiais que, separados

do lixo, através da reciclagem passam a ter algum valor. Esse valor não está limitado

ao ganho realizado com a troca por alimentos. Percebem que a reciclagem está

95

associada a ganhos econômicos mais amplos, dos quais não participam. Quem ganha é

principalmente a Prefeitura. Mas, além disso, também afirmam que a reciclagem

permite reduzir a quantidade de lixo que é destinada ao aterro sanitário.

É importante ressaltar que no período próximo à realização das entrevistas,

os meios de comunicação locais estavam divulgando uma farta quantidade de

informação a respeito do iminente esgotamento do aterro sanitário da Caximba. Esse

episódio foi mencionado nos discursos coletados.

A partir disso, a associação entre separação, reciclagem e natureza foi

expandida. Passou a englobar a necessidade de se usar o espaço do aterro sanitário

com cuidado. Percebendo o aterro sanitário como um espaço adequado para a

disposição do lixo, os moradores relacionaram o seu possível esgotamento com o risco

de se acumulai" muito lixo num local indevido. Insistentemente, a natureza é apontada

como esse local indevido.

Finalmente, o programa "Câmbio Verde" também foi envolvido nessa

associação de idéias. De maneira esquemática ela fica assim. A natureza deve

permanecer limpa. O acúmulo de lixo - a sujidade - representa um perigo para a

natureza. O aterro sanitário da Caximba é um espaço adequado para se depositar o

lixo. A possibilidade de esgotamento desse aterro potencializa o risco do lixo em

relação à natureza. Por um lado, a prática da separação traz ganhos aos moradores do

bairro, principalmente em termos econômicos e sanitários. Por outro, a reciclagem traz

ganhos econômicos mais significativos, tendo a Prefeitura como principal beneficiária,

e ajuda a diminuir a quantidade de lixo destinado ao aterro. Por sua vez, o programa

"Câmbio Verde" é identificado como o elemento que permite a combinação entre os

diferentes interesses da Prefeitura e dos moradores, possibilitando ao mesmo tempo

um benefício para a natureza com o uso adequado do aterro sanitário.

Dessa forma, é possível observar que a temática ambiental está sendo

associada ao lixo, às práticas cotidianas e ao funcionamento do programa "Câmbio

Verde". No entanto, é necessário ressaltar que, justamente em função da concepção

naturalizada de meio ambiente, a temática ambiental é percebida através de

96

conseqüências que o programa produz fora do contexto próximo à vida cotidiana dos

moradores entrevistados.

4.3.4 DO QUE FOI DITO SOBRE O FUNCIONAMENTO DO PROGRAMA

"CÂMBIO VERDE"

Como foi discutido anteriormente, no Capítulo 2 do presente trabalho, a

origem do programa "Câmbio Verde" está ligada a um cálculo de viabilidade

econômica. Havia a disponibilidade de alimentos em abundância e a preços favoráveis.

Ao mesmo tempo, havia a necessidade de se resolver o problema do acúmulo de lixo

em áreas de difícil acesso. A troca de alimentos pelo lixo coletado pela população

revelou-se uma solução economicamente viável.

Uma vez em funcionamento, novos objetivos foram sendo atribuídos ao

programa. De acordo com o argumento apresentado por M. OLIVEIRA (1996; 2001),

isso reflete uma característica típica do discurso elaborado pela Prefeitura Municipal

de Curitiba para atribuir sentido às suas intervenções sobre o espaço urbano. Assim, de

solução pontual para um problema sanitário e justificável do ponto de vista da

racionalidade econômica, o programa "Câmbio Verde" passou a carregai" objetivos que

o caracterizam, por exemplo, como integrante de uma estratégia de desenvolvimento

sustentável.

Considerando que os objetivos oficiais atribuídos ao programa integram um

discurso elaborado post facto, seria pouco produtivo investigar a efetividade com que

cada um deles está sendo colocado em prática. Isso poderia prejudicar a observação

dos impactos concretos causados pelo programa e que estão sendo percebidos pelos

moradores que o utilizam.

Dessa forma, optou-se por solicitar aos entrevistados que apontassem os

objetivos e / ou benefícios que eles atribuem ao programa. Nesse momento, o

elemento mais evocado passou a ser a palavra ajuda. O programa representa uma

97

possibilidade de ajuda oferecida pela Prefeitura aos moradores. A idéia de ajuda está

associada tanto à esfera sanitária como à econômica.

Na esfera sanitária, os entrevistados identificam a tarefa de manter o bairro

limpo como uma responsabilidade compartilhada entre moradores e Prefeitura. Em

relação aos moradores, trata-se de uma tarefa individual, uma prática que deve ser

realizada individualmente dentro do espaço doméstico. Se cada um cuidar

adequadamente do seu lixo, atividade que envolve principalmente o acondicionamento

correto através da separação, evitando o despejo indiscriminado, estará cumprindo

com a responsabilidade que lhe cabe. Já em relação à Prefeitura, a disponibilização da

coleta regular resume o papel que ela precisa desempenhar por obrigação.

Nessa associação, a soma das tarefas individuais de cada morador com a

tarefa obrigatória da Prefeitura deveria garantir a limpeza do bairro. No entanto, o

bairro não é considerado limpo como idealmente deveria ser. E isso ocorre, a despeito

da Prefeitura e dos moradores cumprirem adequadamente com suas responsabilidades.

Os terrenos desocupados e o córrego são identificados como pontos críticos pelo

acúmulo de lixo. Esses pontos são percebidos como focos de sujidade que

comprometem a limpeza do bairro como um todo. Ao mesmo tempo, esses pontos são

considerados espaços que escapam à responsabilidade da Prefeitura e dos moradores

do bairro. O acúmulo de lixo é atribuído ao relaxo e ao descaso de moradores que vêm

de outros locais. Ou ainda, é atribuído aos caminhões coletores que utilizam

indiscriminadamente esses pontos como depósito de entulho.

Dessa maneira, percebe-se o porquê do programa "Câmbio Verdev ser

considerado uma forma de ajuda. Moradores e Prefeitura cumprem com a sua tarefa.

Por motivos externos, há acúmulo de lixo em pontos considerados críticos. Esses

pontos causam desconforto aos moradores entrevistados. Então, menciona-se o

programa "Câmbio Verde" como algo que contribui para diminuir esse desconforto.

Como essa contribuição foge à função obrigatória da Prefeitura, que se resume a

garantir a coleta regular, o programa é visto como uma ajuda.

98

Estabelecendo a associação entre o funcionamento do programa e a idéia de

ajuda, os entrevistados atribuem uma justificativa para a troca de alimentos por lixo.

Se a Prefeitura está fazendo algo que foge à obrigação, é porque está recebendo

alguma coisa em contrapartida:

É uma ajuda que a Prefeitura faz pra gente. Se não tivesse isso aí, daí sim você ia ver. Aí sim que o bairro ia ficar com lixo por tudo que é canto. Porque tem gente que vem e joga mesmo. O riozinho ali, se você limpar hoje, amanha já vem o caminhão e despeja tudo que é tipo de porcaria. Então ajuda bastante. Só que daí quem faz isso também tá ajudando a Prefeitura, porque a Prefeitura também ganha né. Porque eles pegam isso aqui e levam lá prum lugar e daí vendem. Então também tem essa ajuda.

O funcionamento do programa "Câmbio Verde" reflete, portanto, na

percepção dos entrevistados, uma ajuda que também traduz um padrão de

relacionamento entre a população e o poder público. Deste se recebe ajuda quando

algo é oferecido em contrapartida.

Esse padrão de relacionamento não deve ser considerado fortuito. O fato das

entrevistas terem sido realizadas em período eleitoral reforçou essa constatação.

Verificou-se que o referido padrão é bastante legível para os entrevistados. O

candidato ao cargo de Governador apoiado pela Prefeitura não chegou ao segundo

turno das eleições. Por isso, na percepção dos moradores, a quantidade e a qualidade

dos alimentos obtidos no programa sofreram uma brusca queda. Esse fato não foi

percebido com surpresa. Pareceu esperado. Afinal, se o padrão é legível, se o seu

funcionamento é compreendido e considerado normal, os entrevistados demonstraram

saber como proceder para adaptar-se a ele.

Em relação a esse tema, é válido comentar, ainda que rapidamente, o bastante

citado trabalho de T. SALES (1994). Nele, a autora sustenta o argumento de que, no

Brasil, a construção da cidadania resulta de um processo de concessão. Essa concessão

está ligada a um tipo de cultura política onde a dádiva ocupa posição central. Os

direitos são concedidos como uma dádiva, dentro de uma relação de poder pautada

pelo mando e pela subserviência. O direito como dádiva preserva essa relação,

99

impedindo que se criem condições efetivas para se superar a condição de

subalternidade.

A associação que os entrevistados elaboram entre o funcionamento do

programa "Câmbio Verde" e a idéia de ajuda prestada pela Prefeitura reflete os tr aços

da cultura política da dádiva. Ao pensar na limpeza do bairro, eles não relacionam essa

tarefa com um serviço público que implica em direitos. Trata-se de algo que acaba

sendo realizado como uma forma de concessão. Se a Prefeitura está em condições de

conceder, os moradores, por sua vez, encontram-se na condição de retribuir.

A proximidade entre a idéia de ajuda e a cultura política da dádiva torna-se

ainda mais visível, quando o funcionamento do programa é relacionado aos impactos

que produz na esfera econômica. Para os moradores, o ganho material possibilitado

pelo acesso aos alimentos também é visto como uma forma de ajuda da Prefeitura. Só

que nesse caso, a ajuda está ainda mais distante da esfera do direito.

E importante ressaltai" que nesse ponto, os entrevistados elaboram uma

distinção. Quem responde às questões, posiciona-se como alguém que participa do

programa por escolha, por decidir aceitar uma ajuda que trará algum benefício. Ao

mesmo tempo, aponta "os outros" genericamente como participantes que se

encontram, por necessidade, obrigados a aceitar a ajuda. No entanto, essa distinção cai

por terra quando os entrevistados comentam sobre a qualidade, a quantidade e a

variedade dos alimentos obtidos através do programa. Há um consenso. Não se

considera compatível à quantidade de lixo trocada a quantidade de alimentos

recebidos. Também não se considera adequada a qualidade predominante dos

alimentos. E constante a reclamação de que há alimentos inadequados - banana muito

madura, repolho muito velho, cenouras e batatas com muitos buracos, etc. - sendo

disponibilizados aos moradores. E finalmente, não se considera adequada a realização

da troca quinzenal. Justamente por ser quinzenal, ela acaba gerando um acúmulo de

alimentos que são perecíveis e estragam rapidamente.

Em face desses comentários, os entrevistados foram convidados a indicar

quem era participante do programa por efetiva necessidade - "os outros". Novamente

100

houve um consenso. Todos indicaram a todos como pessoas necessitadas e que

dependem do programa "Câmbio Verde" como uma forma de complementar suas

condições de subsistência.

Essa dependência revelou-se ainda mais significativa quando os

entrevistados foram confrontados com a última pergunta do questionário usado nesse

estudo de caso, que simulou uma situação hipotética: e se o programa deixasse de

funcionar? O padrão de respostas apontou uma situação percebida como muito grave.

Imediatamente foi evocada a necessidade de que, caso o programa fosse extinto, algo

semelhante fosse criado para desempenhar a sua função: ajudar.

Retomando a comparação entre a idéia de ajuda e a cultura política da

dádiva, percebe-se que ao fazer referência aos impactos materiais produzidos pelo

programa, os entrevistados possibilitaram a verificação de uma dependência bastante

significativa em relação ao que está sendo concedido pela Prefeitura. Como foi dito

anteriormente, a ajuda é percebida como componente de um padrão legível que rege o

relacionamento com o poder público. Compreendendo esse padrão e adaptando-se a

ele, os entrevistados esperam que ele continue se reproduzindo.

101

5. CONCLUSÃO

O estudo de caso contido neste trabalho partiu de uma problemática inicial.

Os programas de coleta seletiva e reciclagem têm despontado como uma possível

solução para os problemas suscitados pela crescente geração de lixo. Através da

bibliografia consultada, verificou-se, no entanto, que o papel desempenhado por esses

programas não vem recebendo uma interpretação consensual.

Afirma-se que a prática da separação do lixo desperta reflexões a respeito da

temática ambiental. Nesse sentido, ela possibilita a mudança de comportamentos e

valores incompatíveis com um modelo de sociedade sustentável. Por outro lado,

afirma-se que essa prática tem sido vinculada a projetos que, inspirados por uma lógica

eminentemente técnica, possibilitam mudanças pontuais de comportamento. Em

essência, são preservados os valores de uma cultura instrumental típicos de uma

organização social insustentável.

A reflexão sobre as práticas cotidianas ligadas ao lixo entre os participantes

do programa "Câmbio Verde" partiu, portanto, de uma problemática que opõe a noção

de consciência à de adestramento ambiental. Sobre esse tema, a análise das

representações indicou que, entre os entrevistados, a reflexão a respeito da temática

ambiental é tímida. Essa reflexão está vinculada ao funcionamento do programa, mas

relaciona a prática da separação a conseqüências que estão distantes. Não se pode

afirmar que o programa possibilitou aos entrevistados uma nova postura perante as

questões ambientais. Mesmo porque, a prática da separação foi mencionada como algo

que antecede o seu funcionamento. Sobre essa prática, prevalecem significados que

pertencem ao tempo vivido da representação. Ainda assim, ao evocarem a importância

da separação e da reciclagem para o uso adequado do aterro sanitário, os entrevistados

estavam refletindo sobre os possíveis impactos ambientais provocados pelo lixo.

Ainda que através de uma concepção naturalizada de meio ambiente, a reflexão pôde

ser percebida.

102

Essa reflexão, no entanto, não pode ser considerada sem que se ressalte o tipo

de referência que os entrevistados fazem à possibilidade de troca proporcionada pelo

programa. O lixo, associado à noção de sujidade, também passa a ser relacionado à

idéia de utilidade. Forma-se uma oposição entre os pares sujidade-segregação e

utilidade-acúmulo, conteúdos que refletem, respectivamente, o tempo longo e o tempo

curto da representação. Essa contradição simboliza a necessidade de se ajustar o

conteúdo da representação às práticas concretas da vida cotidiana. Daí a associação

positiva entre o aumento do volume de lixo acumulado e, através da separação, o

aumento do ganho material obtido. Certamente, essa associação ofusca qualquer tipo

de reflexão a respeito dos benefícios ambientais trazidos pela separação do lixo e,

paralelamente, aproxima os efeitos produzidos pelo programa a um tipo de

adestramento ambiental.

Para possibilitar a verificação da problemática inicial, o estudo de caso foi

orientado por uma hipótese propondo que: as representações sobre o lixo, das pessoas

que participam do programa "Câmbio Verde", não o articulam a genéricos e abstratos

problemas ambientais, mas a problemas cotidianos, diretamente colocados à

comunidade, tanto no campo sanitário como no campo econômico.

Sobre essa hipótese, através das entrevistas realizadas, foi possível verificar

que as associações de idéias estão predominantemente ligadas a temas contidos nos

campos sanitário e econômico. Mas isso não refletiu ausência de inferências sobre

problemas ambientais. Como já foi dito, ainda que percebida fora do contexto próximo

à vida cotidiana, a associação entre lixo e problemas ambientais está presente nas

representações analisadas pelo estudo de caso. Portanto, a hipótese não foi plenamente

confirmada.

Ainda sobre a hipótese, é importante ressaltar que a prática da separação do

lixo não esteve predominantemente vinculada à variável econômica. Mais do que isso,

foi possível perceber que os entrevistados a associam a importantes significados

sanitários que não foram construídos recentemente. Dessa forma, observa-se que, para

eles, o programa "Câmbio Verde" não pode ser apontado como o início do estímulo

103

para a separação.

Finalmente, através desse estudo de caso, obteve-se acesso a pequenas

informações que escaparam aos objetivos delimitados pela problemática e pela

hipótese de pesquisa. O material coletado possibilitou associar o funcionamento do

programa "Câmbio Verde" a um padrão de relacionamento entre o poder público e o

grupo de pessoas entrevistadas. E nítido que esse grupo interpreta o funcionamento do

programa como uma forma de ajuda prestada pela Prefeitura. Da mesma forma, é

nítido que essa ajuda é interpretada como algo que precisa de retribuição.

Por se tratar de um estudo de caso baseado em número restrito de entrevistas,

é óbvio que esse padrão de relacionamento com o poder público não pode ser

estendido ao universo de pessoas atendidas pelo programa. Seja como for, é fato que o

funcionamento do programa "Câmbio Verde" guarda uma grande quantidade de

informações ainda não acessadas e que, por isso mesmo, demandam mais estudos.

104

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APÊNDICE 1 - QUESTIONÁRIO PILOTO

108

Bloco 1 - Identificação:

1 .1 - Idade:

1.2 - Sexo:

1.3 - Escolaridade:

1.4 - Ocupação:

1.5 - Situação Familiar:

1.6 - Renda:

1.7 - Há quanto tempo mora no local:

1.8 - Há quanto tempo participa do programa:

1.9 - Freqüência com que participa do programa:

1 .10- Qual a origem do lixo que usa para participar do programa:

Bloco 2 - Evocação (O que você entende por:)

2 .1-Lixo:

2.2 - Coleta Seletiva:

2.3 - Reciclagem:

2.4 - Separação:

2.5 - Meio Ambiente:

Bloco 3 - Dos objetivos oficiais do programa (Como você avalia a seguinte

afirmação?)

3.1 - A Prefeitura afirma que o programa contribui para melhorar a

alimentação das pessoas.

3.2 - A Prefeitura afirma que o programa contribui para manter o bairro

limpo, evitando que o lixo seja depositado em lugares inadequados.

3.3 - A Prefeitura afirma que o programa estimula a consciência para

problemas ambientais, fazendo com que as pessoas desenvolvam práticas

que têm por objetivo preservar o meio ambiente.

109

Bloco 4 - Situação hipotética (O que aconteceria se?)

4 . 1 - 0 que aconteceria se o programa "Câmbio Verde" fosse suspenso e não

houvesse mais a troca de lixo por alimentos?

- Você continuaria separando o lixo se não houvesse a possibilidade de

troca?

APÊNDICE 2 - QUESTIONÁRIO DEFINITIVO

110

Bloco 1 - Identificação

1.1 - Idade:

1.2 - Sexo:

1.3 - Escolaridade:

1.4 - Ocupação:

1.5 - Situação Familiar:

1.6 - Renda:

1.7 - Há quanto tempo mora no local:

1.8 - Há quanto tempo participa do programa:

1.9 - Freqüência com que participa do programa:

1.10 - Qual a origem do lixo que usa para participar do programa:

Bloco 2 - Evocação (O que você entende por:)

2.1 - Lixo:

2.2 - Separação do lixo:

2.3 - Meio Ambiente:

XVocê já ouviu essa expressão?

Onde você ouviu essa expressão?

O que você ouviu a respeito dessa expressão?

Bloco 3 - Dos objetivos do programa

3 . 1 - 0 programa "Câmbio Verde" traz algum benefício para os moradores

desse bairro? Que benefícios ele traz?

Bloco 4 - Situação hipotética (O que aconteceria se?)

4.1 - O que aconteceria se o programa "Câmbio Verde" fosse suspenso e não

houvesse mais a troca de lixo por alimentos?

112

- Você continuaria separando o lixo se não houvesse a possibilidade de

troca?