racismo e branquitude

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22/02/2015 Agência FAPESP | Racismo e “branquitude” na sociedade brasileira http://agencia.fapesp.br/print/racismo_e_branquitude_na_sociedade_brasileira/20628/ 1/7 Racismo e “branquitude” na sociedade brasileira 05 de fevereiro de 2015 Por José Tadeu Arantes Agência FAPESP – O racismo é crime no Brasil, previsto pela Constituição Federal, nos termos do Artigo 5º, Inciso XLII. “A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, diz o texto. No entanto, ao longo do ano passado, manifestações abertas de racismo multiplicaramse nas redes sociais e nos espaços públicos, pondo em xeque a cômoda ideia da “democracia racial” brasileira. Esse racismo estava encoberto e veio à superfície? Ou foi acirrado recentemente? Perguntas como essas preenchem o dia a dia de Lia Vainer Schucman, doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) que atualmente conclui um pósdoutorado com a pesquisa “Famílias interraciais: estudo psicossocial das hierarquias raciais em dinâmicas familiares” , apoiada pela FAPESP. Também com o suporte financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, sua tese de doutorado foi recentemente publicada em livro, com o título Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo .[* ] Descendente de família judaica, Schucman ouviu muitos relatos de perseguições movidas pelo racismo. “Fui socializada em um lar em que qualquer forma de preconceito e discriminação era totalmente intolerável e automaticamente associada aos horrores passados pela minha família na Segunda Guerra Mundial”, escreveu. Algumas linhas adiante, porém, reconheceu que essa formação não a eximiu de um racismo mais sutil, que, de seu ponto de vista, perpassa a sociedade inteira: “Nosso racismo nunca impediu que convivêssemos com negros ou que tivéssemos relações de amizade e/ou amorosas com eles. No entanto, muitas vezes essas eram relações em que os brancos se sentiam quase como fazendo caridade ou favor de se relacionarem com os negros”.

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Racismo e“branquitude” nasociedade brasileira05 de fevereiro de 2015

Por José Tadeu Arantes

Agência FAPESP – O racismo écrime no Brasil, previsto pelaConstituição Federal, nos termos

do Artigo 5º, Inciso XLII. “A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, diz o texto. No entanto, ao longo do anopassado, manifestações abertas de racismo multiplicaram­se nas redes sociais e nos espaçospúblicos, pondo em xeque a cômoda ideia da “democracia racial” brasileira. Esse racismoestava encoberto e veio à superfície? Ou foi acirrado recentemente?

Perguntas como essas preenchem o dia a dia de Lia Vainer Schucman, doutora em PsicologiaSocial pela Universidade de São Paulo (USP) que atualmente conclui um pós­doutorado coma pesquisa “Famílias inter­raciais: estudo psicossocial das hierarquias raciais emdinâmicas familiares”, apoiada pela FAPESP.

Também com o suporte financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de SãoPaulo, sua tese de doutorado foi recentemente publicada em livro, com o título Entre oencardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade deSão Paulo. [*]

Descendente de família judaica, Schucman ouviu muitos relatos de perseguições movidaspelo racismo. “Fui socializada em um lar em que qualquer forma de preconceito ediscriminação era totalmente intolerável e automaticamente associada aos horrores passadospela minha família na Segunda Guerra Mundial”, escreveu.

Algumas linhas adiante, porém, reconheceu que essa formação não a eximiu de um racismomais sutil, que, de seu ponto de vista, perpassa a sociedade inteira: “Nosso racismo nuncaimpediu que convivêssemos com negros ou que tivéssemos relações de amizade e/ouamorosas com eles. No entanto, muitas vezes essas eram relações em que os brancos sesentiam quase como fazendo caridade ou favor de se relacionarem com os negros”.

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Schucman concedeu a seguinte entrevista à Agência FAPESP.

Agência FAPESP – Parece haver atualmente um recrudescimento de expressões do racismo.Esse racismo estava reprimido ou está sendo acirrado? Lia Vainer Schucman – É o chamado “medo branco”. Falo disso em um capítulo do livro.Enquanto os negros se encontravam em uma posição subalterna, o racismo existia, mas nãoassumia formas tão ostensivas, porque os negros não disputavam com os brancos o acessoaos bens públicos e a outras posições na sociedade – coisas que os brancos consideravamsuas por merecimento. Porém, quando as lutas dos movimentos sociais negros produziramcertas conquistas, alguns brancos passaram a se sentir ameaçados. Isso foi claramenteperceptível nas entrevistas que fiz. Era comum, por exemplo, os entrevistados brancosconsiderarem as cotas para negros nas universidades como privilégios. Mas não lhes ocorriapensar que o lugar que antes ocupavam com exclusividade fosse um privilégio. Havia umaideia embutida de merecimento. No meu livro, há a foto de uma escola do bairro do Limão, emSão Paulo, com a pichação “Vamos cuidar de nossas crianças brancas” em um muro. Isso foimotivado pelo fato de a escola ter decidido fazer, naquele ano, uma festa junina com motivosnegros, motivos de origem africana. E alguns pais se revoltaram com isso, sem levar em contaque o currículo oficial, adotado como se fosse um currículo genericamente humano, é, naverdade, pautado pela história e por valores europeus, valores que expressam a supremaciabranca. Essa pichação, que expressa um ponto de vista racista, foi uma reação à conquistados negros, no sentido de terem sua história e suas realizações reconhecidas.

Agência FAPESP – A mudança de mentalidade é um processo muito mais longo e difícil doque a conquista de direitos e a adoção de políticas públicas afirmativas? Schucman – Sim. Parte do meu doutoramento foi feita nos Estados Unidos, na Universidadeda Califórnia. Lá, recebi a orientação da afro­americana France Winddance Twine, que fezuma pesquisa com brancos que interagiam com negros no dia a dia, procurando entendercomo esses brancos se relacionavam com sua branquitude. Ela formulou o conceito de racialliteracy, que eu traduzi, em meu livro, por “letramento racial”. O letramento racial é uma formade responder individualmente às tensões raciais. Ao lado de respostas coletivas, na forma decotas e políticas públicas, ele busca reeducar o indivíduo em uma perspectiva antirracista. Aideia subjacente é a de que quase todo branco é racista, mesmo que não queira, porque oracismo é um dado estrutural de nossa formação social. Por exemplo, um jovem estudaarquitetura em uma das melhores universidades brasileiras e, depois de formado, projeta umbanheiro de empregada com o chuveiro em cima do vaso sanitário. Ele não gostaria de usarum banheiro desses. Mas projeta esse banheiro para a empregada como se isso fosse a coisamais natural do mundo. Veja, ele não está aderindo à ideologia escravista ao fazer isso. Eleestá simplesmente reproduzindo um racismo de fundo que perpassa todo o nosso sistemaeducacional e toda a nossa cultura. Então, se ser racista é um aprendizado, se nósaprendemos desde cedo a ser racistas em nossa sociedade, o letramento racial é a propostade um desaprendizado.

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Agência FAPESP – E como o letramento racial funciona? Schucman – É um conjunto de práticas, baseado em cinco fundamentos. O primeiro é oreconhecimento da branquitude. Ou seja, o indivíduo reconhece que a condição de branco lheconfere privilégios. O segundo é o entendimento de que o racismo é um problema atual e nãoapenas um legado histórico. Esse legado histórico se legitima e se reproduz todos os dias e,se o indivíduo não for vigilante, ele acabará contribuindo para essa legitimação e reprodução.É o mesmo que acontece em relação ao machismo. Seja homem ou mulher, se a pessoa nãofor vigilante, ela acabará contribuindo para a legitimação e reprodução do machismo. Oterceiro é o entendimento de que as identidades raciais são aprendidas. Elas são o resultadode práticas sociais. O quarto é tomar posse de uma gramática e de um vocabulário racial. NoBrasil, evitamos chamar o negro de negro. Como se isso fosse um xingamento e como seevitar essa palavra pudesse esconder o racismo. Para combatê­lo, temos de ser capazes defalar de raça abertamente, sem subterfúgios. O quinto é a capacidade de interpretar oscódigos e práticas “racializadas”. Isso significa perceber quando algo é uma expressão deracismo e não tentar camuflar, dizendo que foi um mal­entendido. É o caso daquele casalbranco do Rio de Janeiro que foi comprar um carro levando junto o filho negro adotado. E ovendedor enxotou a criança, que considerou um “menino de rua”. Depois, o vendedor oualguém da loja tentou se desculpar, dizendo que havia sido um mal­entendido. Não, não foium mal­entendido. Foi uma expressão pura e simples de racismo.

Agência FAPESP – Esses cinco fundamentos permitiriam construir uma individualidadeantirracista? Schucman – Sim. É semelhante a uma alfabetização. Daí a palavra letramento. Foi essaperspectiva de uma alfabetização antirracista que me fez eleger, como tema do pós­doutoramento, as famílias inter­raciais. Porque o racismo da sociedade se reproduz de váriasmaneiras dentro das famílias, inclusive das famílias inter­raciais.

Agência FAPESP – Dê um exemplo. Schucman – Em uma família inter­racial, é comum que o filho de pele mais clara sejabeneficiado com a possibilidade de estudar, enquanto seus irmãos de pele mais escuraapenas trabalham. Os pais acham que o mais claro terá melhores oportunidades, entãoinvestem em sua educação, mesmo que não possam dar a mesma condição para os outrosfilhos. Há toda uma hierarquia na sociedade que se reproduz no interior das famílias, embrancos e negros. A sociedade constrói significados sobre as coisas, e as pessoas, de umamaneira ou de outra, introjetam esses significados.

Agência FAPESP – No seu livro, você se coloca dentro da pesquisa, não vendo o tema defora, com uma pretensa objetividade, mas questionando o seu próprio ponto de vista. Comoescolheu e desenvolveu o tema? Schucman – Quando iniciei meu doutoramento, em 2008, a ideia era pesquisar o racismo. Euqueria entender, do ponto de vista psicológico, como o negro introjetava o racismo. Mas, ao

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cursar disciplinas da pós­graduação na USP, alguns colegas, militantes dos movimentosnegros, me disseram que estava na hora de “olhar outras coisas”. O que eles estavamafirmando era que o negro constituía sempre o tema do pesquisador branco, como se o negrofosse objeto e não sujeito, e como se o negro fosse sempre o “outro”. Eles me fizeramperceber que, ao estudar o negro, ao estudar o indígena, o que o pesquisador branco faz é,mais uma vez, produzir o “outro”. Decidi, então, colocar o branco em questão.

Agência FAPESP – De que maneira sua pesquisa evoluiu a partir daí? Schucman – Comecei com um estudo mais teórico dos conceitos de raça, construídos noséculo XIX. Um desses conceitos trazia a ideia de que o fenótipo determinava todo um modode ser: moral, intelectual, estético, civilizatório. Então, peguei essas quatro variáveis – moral,intelectual, estética e civilizatória – e busquei perceber como elas apareciam na fala daspessoas brancas. Ou seja, como essa ideia de raça, construída no século XIX, continuavaoperando na construção das identidades. E constatei que elas apareciam na fala dos sujeitoso tempo todo. Por exemplo, entrevistei um vigilante noturno branco e perguntei a ele: “O que éser branco, para você?” E ele respondeu: “Para mim, isso tem a ver com atitude. Eu soutrabalhador, eu vivo bem”. Essa ideia fictícia, da superioridade branca, está quase semprepresente na fala dos entrevistados.

Agência FAPESP – Quando você se aproximou do tema? Schucman – Na graduação, obtive bolsa de iniciação científica para estudar preconceito eestereótipo. Eu já tinha uma herança familiar nesse sentido, porque minha avó materna éjudia, sobrevivente de campo de concentração, uma pessoa de esquerda. Na casa dela, hávários retratos de parentes mortos em campo de concentração. Então, o antirracismo, aconsciência daquilo que o racismo é capaz de fazer, sempre foi algo muito presente na minhaformação. Fiz o mestrado com um estudo sobre identidade judaica. E o que mais me marcoufoi entrevistar pessoas que não seguiam a religião, não tinham nada a ver com o judaísmo,mas não conseguiam deixar de ser judias. Eu perguntava: “Mas por que você não conseguedeixar de ser judeu?”. E a resposta era: “Porque os outros me veem como judeu”. A questãodo olhar do outro ou de como o olhar produz o “outro” tornou­se um subtema bem forte emminha pesquisa. E continuou sendo.

Agência FAPESP – Você o retomou e desenvolveu no doutorado? Schucman – Sim. Percebi que só é possível o branco se enxergar como branco, isto é, teruma noção dos privilégios que o fato de ser branco lhe proporciona, quando ele convive comos negros. Percebi, na convivência com meus colegas de pós­graduação negros, que, se eucomparecesse a alguma reunião dos movimentos sociais negros e me pronunciasse contra oracismo, até nisso eu teria privilégio, pois o fato de ser branca e antirracista me dava umstatus especial. Meus colegas eram muito críticos e até isso eles me apontavam.

Agência FAPESP – Como você lidou com isso?

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Schucman – Eu procurava não ser reativa. Mesmo que, às vezes, a crítica fosse pesada eaté mesmo agressiva, eu tentava entender e assimilar. Tinha uma abertura muito grande.Além disso, sempre tive uma ideia muito clara sobre o meu papel: se sou branca e estoutrabalhando ou me aproximando do movimento negro, não posso pretender ser protagonista.O protagonismo é negro. O meu papel é estar junto; não pretender estar à frente. Esta é umaconsideração muito clara para mim, que continua orientando minha participação.

Agência FAPESP – Você fez muitas entrevistas qualitativas, levantando trajetórias de vidasdas pessoas. Lembra­se de alguma especialmente marcante? Schucman – Entrevistei desde “quatrocentões” que ainda vivem da renda de suas fazendas,isto é, que ainda vivem do que seus antepassados ganharam com a escravidão, até mendigosda Praça da Sé. Ao entrevistar pessoas tão diferentes, mas todas brancas, minha intenção erasaber se havia uma característica própria da branquitude, algo capaz de perpassar as classessociais. Um mendigo de rua me disse algo muito forte. Quando perguntei “O que é ser branco,para você?”, ele me respondeu: “Eu posso entrar no banheiro do shopping e meu colega pretonão”. Isso foi muito impactante: na extrema pobreza, a condição de ser branco ainda lhe davaum privilégio. Outra entrevista marcante foi com uma “quatrocentona”, porque os valores delaeram muito diferentes daqueles do imigrante, mesmo do imigrante rico.

Agência FAPESP – Quais eram as diferenças? Schucman – Os imigrantes desfrutaram de vários privilégios no Brasil, porque a imigração foiincentivada e patrocinada pelo governo. E a entrada de imigrantes brancos estava em sintoniacom uma política de “embranquecimento” do país. Mas, para ascenderem econômica esocialmente, os imigrantes foram, de fato, muito trabalhadores. Isso ficou marcado em suaautoimagem. Claro que há exceções, mas, regra geral, o imigrante considera que conseguiusubir na vida devido ao seu mérito. A ideia do mérito é muito forte para ele. Porém, ele nãoconsegue perceber que, ao lado do mérito, sua ascensão também foi favorecida pelo privilégioda branquitude. Porque o negro também está trabalhando há séculos no Brasil e nãoconseguiu ascender da mesma forma. Então, no caso dos imigrantes, a branquitude ficacamuflada na autoimagem. No caso dos quatrocentões não. Eles têm perfeita consciência deseus privilégios, porque nunca trabalharam. A ideia forte, neste caso, é a de herança. E, sepodem desfrutar de uma herança, foi porque os escravos negros trabalharam para seusantepassados. Então a ideia de ser branco e dos privilégios que isso traz está muito presenteem sua visão de si mesmos.

Agência FAPESP – Há alguma peculiaridade que você poderia destacar em seu processo depesquisa? Schucman – Uma peculiaridade é que não separo o que poderia ser chamado de “trabalho decampo” daquilo que vivo no dia a dia. Na tese de doutorado, incluí muitas falas informais, depessoas com as quais eu interagia. Foi o caso de uma que, quando soube que eu pesquisavabrancos, afirmou: “Que bom! Porque agora só se fala de negros”. Durante quatro anos, eu

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registrei entrevistas e conversas do dia a dia. Eu ficava o tempo todo registrando. Eu sópensava nisso.

Agência FAPESP – Isso a afetou pessoalmente? Schucman – Quando se começa a pensar insistentemente nestas coisas, você vai ficandomuito irritada. Já não consegue conviver com a cidade. Porque a cidade de São Paulo temuma geografia da raça: há lugares que só têm brancos. Quando entrava em um lugar desses,eu começava a me sentir mal. Eu me sentia colaborando com o apartheid da nossasociedade.

Agência FAPESP – Como você aborda a questão das cotas raciais? Schucman – Na maioria dos casos, a oposição às cotas não decorre de nenhum critérioracional. Tive a demonstração disso em minha pesquisa. Quando perguntei “você acha quetem privilégios pelo fato de ser branco (ou branca)?”, meus 40 entrevistados responderam quesim. Uma empregada doméstica disse: “Minha patroa é preconceituosa. Se eu fosse negra,não teria este emprego”. Um jovem falou: “O pai da minha namorada é racista. Talvez eu nãopudesse namorar com a filha dele se fosse negro”. E por aí foi. Imediatamente em seguida,perguntei: “Você é a favor das cotas?” Dos 40 entrevistados, 37 responderam: “Não. Somostodos iguais”. Esses 37 tinham acabado de dizer que possuíam privilégios. E, agora, negavamas cotas, com o argumento de que elas privilegiavam os negros. É um posicionamentototalmente irracional. Por isso, eu uso a expressão “medo branco”. E é um discursofragmentado. Só um discurso fragmentado pode acomodar o fato de a pessoa admitir que temprivilégios e, em seguida, dizer que todos somos iguais.

Agência FAPESP – Qual é o foco de sua pesquisa atual, com famílias inter­raciais? Schucman – Tento entender como os afetos podem legitimar o racismo e como podemtambém ajudar a desconstruí­lo. A partir de uma enquete mais ampla, em que entrevisteitodos os membros de várias famílias, escolhi algumas famílias, com as quais estou fazendoum trabalho quase etnográfico há cerca de um ano. Vou dar um exemplo. Em uma dessasfamílias, o pai é negro e afirma que não existe racismo no Brasil. Quando ele está presente,todos os membros da família parecem concordar com seu ponto de vista. Mas, se ele sai dasala por algum motivo, as pessoas aproveitam para dizer o que não têm coragem de falar emsua presença. A filha, que é branca, disse que, por várias vezes, viu seu pai ser discriminadopor racismo. Acredito que, para ele, seja muito difícil admitir isso. Há todo um jogo deambivalências, que eu tento interpretar.

Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder nacidade de São Paulo Autora: Lia Vainer Schucman

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Nota explicativa

[*] A palavra “branquitude”, que a pesquisadora utiliza criticamente em seu livro, não estádicionarizada. É um neologismo empregado em contraposição a negritude. O conceito denegritude foi forjado durante a luta anticolonialista dos povos africanos, no século XX, eutilizado, principalmente pelo poeta e político senegalês Léopold Sédar Senghor (1906 –2001), para resgatar e exaltar as culturas, tradições e características identitárias da África, quehaviam sido subjugadas pelo colonialismo. Já o conceito de branquitude, sem ser identificadopor esse nome, começou a ser construído durante a expansão colonial europeia, a partir dosséculos XVI e XVII, mas principalmente no século XIX, para justificar ideologicamente adominação, pelos europeus, das populações ancestrais da América, da África, da Ásia e daOceania. Nesse processo, a identidade “branca”, definida pela cor da pele e outros traçosfenotípicos, foi estabelecida como norma e padrão humano, sendo os outros gruposapresentados como marginais, desviantes ou inferiores.