qualificação de mestrado
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPEPRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS – PROFLETRAS
UFS / ITABAIANA
CURTO OU LONGO, O POEMA NO ENSINO FUNDAMENTAL
COMO CORPUS SENSÍVEL E POSSÍVEL
Waldemar Valença Pereira
Itabaiana – SEjulho de 2014
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPEPRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS – PROFLETRAS
UFS/ITABAIANA
CURTO OU LONGO,O POEMA NO ENSINO FUNDAMENTAL
COMO CORPUS SENSÍVEL E POSSÍVEL
Projeto de Dissertação de Mestrado apresentadoao Programa de Pós-Graduação do Mestrado
Profissional em Letras (PROFLETRAS), UFS/Itabaiana.
WALDEMAR VALENÇA PEREIRAOrientadora: Prof.a. Dr.a. Christina Bielinski Ramalho
Itabaiana – SEjulho de 2014
2
Resumo
Centrando-nos em composições sobre indígenas brasileiros, reunimos dez poemas líricos e curtos, de Olga Savary (1933), em forma de haicais que, somados a um poema épico, não tão longo, pois de 712 versos, A lágrima de um Caeté (1849), de Nísia Floresta (1810 – 1885), possam ser utilizados como corpus na pratica de ensino de leitura literária. Entendendo o discurso literário como único e inesgotável, a teoria da Semiotização Literária do Discurso (1984), de Anazildo Vasconcelos da Silva, proporcionou, juntamente com uma releitura do gênero épico e lírico, o necessário aprofundamento teórico a partir do qual pudéssemos elaborar uma metodologia de trabalho em sala de aula com o texto lírico/épico. Buscamos, assim, promover o debate sobre a “autonomia feminina”, o “eu do poema” e o “heroísmo épico”, a partir de obras como Poemas épicos: estratégias de leitura, de Christina Ramalho. Além disso, pesquisamos sobre como construir um corpus possível ao estímulo da leitura, a partir da sensibilização estética durante leituras de poemas. Paralelamente, abordamos algumas questões sobre ensino e literatura a partir de nomes como Umberto Eco, Roland Barthes, Constância Lima Duarte, Marisa Lajolo, Regina Zilberman, Antônio Cândido, Afrânio Coutinho, Massaud Moisés, Hênio Último Tavares, Salvatore D’onofrio, Vilson Leffa, Rildo Cosson, Tzevtan Todorov, Carlos Magno Gomes, Roberto William Cereja, entre outros pesquisadores.
Palavras-chaves: Ensino; Haicai; Epopeia; Heroísmo.
3
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – pág. 05
1 – SOBRE O POEMA NA SALA DE AULA - pág. 11
1.1 Literatura e ensino– pág. 11
1.2 O poema como corpus – pág. 15
2 – AS FORMAS LÍRICAS CURTAS E OS POEMAS DE OLGA SAVARY–
pág. 21
2.1 O poema curto: variantes e recepção teórica – pág. 21
2.2 A poesia de Olga Savary – pág. 25
2.3 A seleção e análise de poemas curtos de Olga Savary – pág. 27
3 – ESTRATÉGIAS DE RECEPÇÃO EM “A LÁGRIMA DE UM CAETÉ” (1849) DE NÍSIA FLORESTA - pág. 38
3.1 Nísia Floresta (1810-1885), uma escritora poliglota – pág. 38
3.2 A lágrima de um Caeté (1849) de Nísia Floresta: estratégias para uma nova leitura do gênero épico – pág. 40
3.3 A lágrima de um Caeté (1849) e a questão do indianismo romântico indigenista – pág. 45
4 – DO CURTO AO LONGO: UMA EXPERIÊNCIA SIMBIÓTICA – pág. 54
CONSIDERAÇÕES FINAIS – pág. 57
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – pág. 58
ANEXOS – pág. 62
Anexo 1 – Seleção de poemas de Olga Savary - pág. 62
Anexo 2 – A lágrima de um caeté, de Nísia Floresta - pág. 64
4
INTRODUÇÃO
Discutir sobre “o papel da arte literária no ensino de Língua Portuguesa
para o Ensino Fundamental” é imprescindível. Mas qual seria o papel da produção
artística de viés literário ao ser inserida em sala de aula? E essa produção literária
encontra-se, por acaso, em ampla concorrência com o ensino de Língua
Portuguesa, no Ensino Fundamental, ou, simplesmente, faz parte dele, no
currículo, integrando-o e o redimensionando em salas de aula?
Essas perguntas surgem no momento em que pesquisadores de
universidades brasileiras promovem estudos sobre o que é mais necessário para
o ensino de Língua Portuguesa executado em nível fundamental de escolas
públicas. Queremos também, por menor que seja, corporificar cientificamente a
nossa contribuição didático-pedagógica na área de Língua Portuguesa com vista
ao ensino multidisciplinar ou interdisciplinar.
Neste debate sobre “Literatura e Ensino de Língua Portuguesa”
destacamos também a importância de ser fundamentar um ensino que tenha
como meta a valorização das “variedades do português brasileiro como elemento
de identidade cultural, apontando também as nomenclaturas afro-brasileiras e
indígenas como constituintes dessa identidade” (REFERENCIAL, 2001, p. 81).1
Quando a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei 9394 de
1996 – foi modificada pela Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabeleceu-se as
diretrizes e bases da educação nacional, no currículo oficial da rede de ensino,
em prol da obrigatoriedade temática, não só da História e Cultura Afro-Brasileira,
com também da Indígena. Em 10 de março de 2008, o Governo altera essa
1 REFERENCIAL CURRICULAR – REDE ESTADUAL DE ENSINO DE SERGIPE, numa abordagem sobre as competências gerais para o 9º (nono) ano do Ensino Fundamental. Disponível em: http://www.lefgb.fe.ufrj.br/wp-content/uploads/2013/02/Referencial-Curricular_SE.pdf. Acessado: 04/07/ 2014.
5
mesma LDB, através da Lei 11.645/08, para redigir dois parágrafos de um mesmo
artigo da LDB, mais exatamente, o artigo 26, alínea A. No primeiro parágrafo, há a
referência à importância de se estudarem diversos aspectos históricos e culturais
desses dois enormes grupos étnicos (Africanos e Indígenas); no segundo
parágrafo, o Governo decreta que conteúdos “referentes à história e cultura afro-
brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e
história brasileiras”.2
Essas preocupações denotam que, além das questões relacionadas ao
gosto pela leitura literária e à instrumentalização teórica que deve orientar a
preparação dos jovens alunos em sua formação como leitores de textos literários,
há aspectos de ordem conteudística, ou seja, relacionados aos conteúdo
veiculados pela literatura que devem ser inseridos nas práticas cotidianas de
leitura literária na escola, de modo a contribuir para que temas importantes
relacionados à cultura brasileira sejam problematizados através desses textos.
Assim, ao centrarmos nossas reflexões no trabalho com a literatura no
Ensino Fundamental, tendo como foco investigativo a poesia, tratando, em
especial, de suas formas opostas, o poema curto e o longo, necessitaremos, de
um lado, refletir sobre o conhecimento teórico relacionado a essas formas do qual
não deve prescindir um professor de Língua Portuguesa e Literatura,
independentemente do nível em que atue; e, de outro, pensar sobre como a
abordagem a essas duas formas poéticas podem, ainda, levar em consideração
2 Lei 11.645, assinada em 10 de março de 2008, pelo presidente do Brasil Luís Inácio Lula da Silva (1945 - ), quando Fernando Haddad era o Ministro da Educação, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm . Acessado em 01 /07/ 2014.
6
essa preocupação com o dimensionamento da presença das minorias na
sociedade brasileira.
Em vista disso, optamos por selecionar duas autoras, Olga Savary e
Nísia Floresta, o que já demonstra nossa preocupação em dar espaço à autoria
feminina no espaço escolar, e, de sua produção, destacar textos que contemplem
o universo indígena. Assim, de Olga Savary recolhemos poemas curtos com
temática ou repertório léxico indígena; e, de Nísia Floresta, escolhemos o poema
A lágrima de um caeté, cuja feição épica será devidamente comentada no
capítulo destinado à obra. Feitos os estudos, sempre com base em teorias
compatíveis com o corpus selecionado, partimos para a proposta de uma
metodologia a ser desenvolvida em turmas do 9º. Ano do Ensino Fundamental,
com vistas a proporcionar, simultaneamente, a esses estudantes, o contato com
duas formas poéticas opostas, o poema curto e o poema longo, e a possibilidade
de, através de uma leitura sistematizada das obras escolhidas, redimensionar a
imagem cultural do índio brasileiro e problematizar questões relacionadas aos
enfrentamentos que as etnias indígenas sofreram e têm sofrido no Brasil.
A proposta, portanto, se orienta pela visão de que tanto o poema curto
quanto o longo, se estudados a partir de orientações teóricas consistentes, podem
promover um maior envolvimento dos estudantes com a leitura de poesia. E, para
estimular o gosto pela leitura e a intensidade das reflexões, optamos pelo trabalho
com a poesia ilustrada, com foco óbvio na imagem do indígena brasileiro, tal
como se discriminará no capítulo 4.
Em termos de estrutura, este trabalho se divide em quatro capítulos.
No primeiro, tratamos de questões relacionadas à presença do poema na sala de
aula e à formação do gosto pela leitura literária. Para isso, fizemos uso de
7
reflexões de nomes como Antônio Candido, Magda Soares, Carlos Gomes,
Roland Barthes, Rildo Cosson, Tzevtan Todorov, Salvatore D’Onofrio, Massaud
Moisés. Ainda nesse capítulo, discriminamos avalição prévia que fizemos de livros
didáticos, com o intuito de dimensionar, dentro da perspectiva que nos interessa,
a presença neles do poema curto e longo assim como de conteúdos relacionados
às questões indígenas em atendimentos aos preceitos da Lei 11.645/2008. Os
livros didáticos estudados foram os de Menna, (2012), Discini e Teixeira (2012) e
Travaglia (2012). Concluímos o capítulo com breve reflexão de Funari e Piñón
sobre o trabalho com questões indígenas na escola.
No capítulo 2, passamos à categoria poema curto e à abordagem aos
poemas de Olga Savary, sem deixar de oferecer algumas informações sobre a
autora e sua obra. Hênio Tavares e Massaud Moisés foram os nomes em que nos
apoiamos para investigar as formas líricas curtas e sobre elas trazer algumas
observações, com o intuito de ilustrar os procedimentos de pesquisa que, mais
adiante, nos levaram ao haicai (ou hai-kai) e à poesia de Olga Savary. No âmbito
da análise dos poemas selecionados, fizemos uso das reflexões teóricas de
Anazildo Vasconcelos da Silva. Também é importante registrar que as análises
foram apresentadas de forma a explicitar que tipo de reflexões prévias orientaram
a preparação da metodologia. Como nos encontramos em um momento de
qualificação, é importante termos a oportunidade de verificar se o
encaminhamento crítico da leitura dos poemas está bem estruturada e coerente
com a proposta metodológica apresentada. Assim, restringimo-nos à análise de
um poema, enquanto sugerimos o desenvolvimento das outras. Após a
8
qualificação, teremos mais parâmetros para desenvolver mais profundamente a
leitura analítica dos haicais de Savary.
No capítulo 3, estudamos, teoricamente, a poesia épica e nos
debruçamos, especificamente, sobre Nísia Floresta e sua epopeia A lágrima de
um caeté. A base teórica sobre o épico veio de Anazildo Vasconcelos da Silva e
Christina Ramalho. Já o estudo crítico do poema de Floresta partir da importante
contribuição crítica da nisiana Constância Lima Duarte.
No capítulo 4, apresentamos, neste momento, um rascunho da
metodologia a ser desenvolvida. Iniciamos com reflexões de Perini e Leffa sobre o
ensino de gramática e os estudos metacognitivos e passamos a descrever os
primeiros esboços da metodologia a ser proposta, adiantando que a mesma
envolve os seguintes passos: a) trabalho de leitura crítica de dez haicais de Olga
Savary; b) atividade lúdica de ilustração dos poemas; c) leitura crítica do poema A
lágrima de um caeté; d) atividade lúdica de ilustração de trechos do poema
nisiano.
Quantos aos anexos, esclarecemos que, além de apresentarmos todos
os poemas selecionados, cuidamos de inserir, sob forma de notas de rodapé,
informações sobre alguns aspectos dos poemas e questões que brotaram da
observação de algumas peculiaridades dos mesmos. Posteriormente decidiremos
quais dessas notas serão mantidas e quais delas suprimidas, ou em função do
esclarecimento da dúvida ou por concluirmos não ser necessário ampliar ou
aprofundar o debate sobre o aspecto destacado. De toda maneira, em relação ao
poema de Nísia floresta, nossa intenção é preparar uma versão comentada do
9
poema e oferecê-lo a professores do Ensino Fundamental que desejem trabalhá-
lo em sala de aula.
O objetivo maior deste trabalho, enfim, é, dos poemas curtos ou haicais
de Olga Savary ao poema longo de Nísia Floresta, criar uma maior habilidade
estratégica à competência leitora de estudantes do 9º (nono) ano do Ensino
Fundamental.
10
1 – SOBRE O POEMA NA SALA DE AULA
Graças ao Romantismo, a nossa literatura pôde se adequar ao presente.(CANDIDO, 2003, p.327)
1.1 Literatura e Ensino de Língua Portuguesa
As produções literárias antigas, modernas e/ou contemporâneas não
são realizações mecânicas que possam ser apenas decodificadas. Devidamente
elucidadas, as obras literárias ultrapassam a barreira da decodificação textual,
indo mais além de uma análise ingênua.
Por sua vez, a crítica literária ofereceu leituras de viés historiográfico,
psicológico, sociológico, linguístico ou semiológico, a fim de promover uma leitura
mais apurada. As obras literárias, no âmbito específico das aulas de Língua
Portuguesa, no Ensino Fundamental, são abordadas através de práticas
pedagógicas interacionistas ou conservadoras. Hoje, é quase um consenso entre
os pesquisadores, a afirmação de que o ensino, através do recurso do texto
literário, ocupa um lugar de destaque no âmbito educacional brasileiro público ou
privado. De quem ensina é exigido, cada vez mais, estratégias inovadoras, pois
nelas “O leitor precisa desenvolver uma consciência crítica que reconheça as
fronteiras identitárias e passe a produzir o saber de um lugar atual (...)” (GOMES,
2009, p. 02), o que é primordial.
Essa busca pela abordagem do texto literário como uma forma eficaz
de proporcionar o estímulo à leitura, realmente, corrobora-se em livros didáticos,
por todo o país, substituindo o tradicional e ineficaz método de ensino de
memorização pela memorização, de textos como “pretextos”, onde jaziam
ensinamentos ausentes de teor crítico.
11
Embora inquestionável pela sua eficácia, nos resultados de proficiência
em leitura e escrita com crianças, jovens ou adolescentes, essa abordagem
didática do ensino de Língua Portuguesa, através da utilização de textos ou obras
literárias, ainda é inovadora, pois não apresenta sequer 50 anos. Na maior parte
das aulas de língua materna, apesar da importância dada ao estudo do texto
literário, mesmo assim, sua presença ainda surge como obstáculo à aquisição do
saber.
Se, nas épocas da Colônia e do Império, o texto literário apresentava
respaldo, principalmente por existirem sociedades que valorizaram as
manifestações clássicas, excluindo os outras para o ensino-aprendizagem,
atualmente, o texto literário funciona, em livros didáticos, como uma forma de
minimizar o insucesso registrado. Seja por meio de regras gramaticais normativas
impostas e nunca debatidas, seja por meio de interpretações textuais
descompromissadas, poemas podem promover a inércia intelectual, em relação à
construção de competências textuais neste século XXI. Essas competências
leitoras a que nos referimos tornaram possível o reconhecimento da importância e
da necessidade de que os excluídos sociais “(...) adquiram o domínio do dialeto
de prestígio, não para que ele substitua o seu dialeto de classe, mas para que se
acrescente a ele, como mais um instrumento de comunicação” (SOARES, 2002,
p. 74).
Antes de ser uma ferramenta didática, em caráter multimodal ou não, o
texto literário é obra de arte a priori que provoca interpretações, em muitos casos,
ambíguas ou paradoxais. Ensinar, permitindo o acesso direto aos textos literários,
é visar a superação do seguinte desafio: como utilizar didaticamente um texto
literário (poético) de modo satisfatório e motivador (possível e sensível)?
12
Muitas respostas em formas de novas ideias aparecem, na imprensa
jornalística, em livros publicados, resultados de teses acadêmicas de mestrados e
doutorados, e todas elas, direta ou indiretamente, apontam para a legitimidade do
uso do texto literário (por si mesmo), no geral, e do poema, em particular, como
sem pretexto para o ensino de outras habilidades que não estejam relacionadas à
leitura, interpretação e produção textual. A obra literária para ensinar Literatura, o
poema lírico ou épico para ensinar o “eu do poema”, “eu do poeta” e “heroísmo
épico”, eis o princípio norteador de várias estratégias de ensino em Língua
Portuguesa.
Em um momento de Aula (1991), o crítico Roland Barthes sintetizou
bem esse assunto, ao afirmar: “Se, por não sei que excesso de socialismo ou de
barbárie, todas as disciplinas tivessem de ser expulsas do ensino, exceto uma, é
a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no
monumento literário” (BARTHES, 2001, p.18). Desse modo, educadores(as) não
podem (ou não deveriam, ao menos) resumir os estudos literários aos estudos
gramaticais normativos, aparentando dissecar a obra de arte literária como uma
reunião artificial de regras fonológicas, morfológicas, sintáticas ou semânticas.
Analisar esses níveis estruturais, no discurso literário, e, em especial, no discurso
lírico e épico, é “quebrá-los” (sondá-los das menores às maiores partes e vice-
versa) até reconstruir o significante poético3, que exaure deles durante o processo
de mimesis (ou mimeses) literária4.
3 Segundo os pesquisadores Silva e Ramalho, para que possamos entender melhor o que seja o significante poético: “A semiose literária neutraliza a condição enunciatória do sujeito histórico, impede a expressão da experiência existencial da relação factual, e instaura, ao mesmo tempo, a condição significante do investimento literário no discurso, possibilitando a elaboração sígnica da experiência lírica” (SILVA e RAMALHO, 2007, p. 29). 4 Se formos fazer uma analogia com o grego antigo, em face de uma harmonia com o nosso conceito de “analisar”, confirmamos que a palavra “análise”, realmente, significa “quebra” (BAGNO, 2004, p. 87).
13
No século XXI, o pesquisador Rildo Cosson, a partir de estudos de
Wilson Leffa sobre a leitura como um processo de meta-cognição, no final do
século XX, de modo sintético, teorizou sobre a existência de três perspectivas
para o estudo da leitura e, por conseguinte, para a evolução da competência
leitora: a do texto, a do leitor e a da interação social.
O estudo da leitura poderia ser centrado no texto ou, contrariamente,
ser centrado no leitor. Entretanto, de modo mais prudente e racional, o professor
centralizado na interação conciliatória, entre o texto e o leitor, atua de modo mais
promissor (COSSON, 2011, p. 40). A partir dessa conciliação, a leitura apresenta-
se como “(...) o resultado de uma série de convenções que uma comunidade
estabelece para a comunicação entre seus membros e fora dela” (IBIDEM, 2011,
p. 40).
Nessa releitura sobre esse terceiro grupo, que entende a leitura como
um ato conciliatório entre leitor e texto, em simbiose, Cosson adverte-nos para o
fato de que “Leffa não traz as críticas que ela tem sofrido” (IBIDEM, 2011, p. 40).
Cosson defende a tese de que, envolto à individualidade de cada leitura (literária),
o leitor é remetido mais uma vez ao mesmo texto literário do qual partiu
inicialmente, encerrando com ele o processo interpretativo (IBIDEM, 2011, p.40).
Sobre esse assunto, inclusive, no texto “A descrição em significação em
literatura”, o pensador Tzvetan Todorov advertiu-nos sobre o perigo de sujeitar o
ato interpretativo aos mandos e desmandos de leitores(as), já que “A
interpretação de uma imagem na consciência do leitor é necessária e pode não
ter fim nunca” (TODOROV, 1972, p. 152).
Na obra Letramento literário: teoria e prática (2011), o pesquisador
Cosson defendeu que leitores(as), em seu processo linear de construção do
14
significado textual, percorrem três etapas distintas: “antecipação”, “decifração” e
“interpretação”.
A “antecipação” funciona como a etapa de ativar as operações, antes
da leitura do texto, ou seja, detectar diferenças conceituais entre uma receita
médica e um poema de amor, por exemplo; já na decifração, segunda etapa, o
momento torna-se fundamental na distinção entre um leitor iniciante e um outro
leitor mais maduro ou crítico. O leitor maduro “(...) nem percebe a decifração
como uma etapa do processo de leitura” (COSSON, 2011, p. 40); e, na terceira e
última etapa, a interpretação restringe o sentido da leitura diante das “(...)
relações estabelecidas pelo leitor quando processa o texto” (IBIDEM,, 2011, p.40)
A partir das ideias de Cosson, aprendemos que a interpretação não é
um mero sinônimo de leitura, já que:
O centro desse processamento são as inferências que levam o leitor a entretecer as palavras com o conhecimento que tem do mundo. Por meio da interpretação, o leitor negocia o sentido do texto, em um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade” (IBIDEM, 2011, p. 40-41).
1.2 O poema como corpus
De todos os textos literários, os poemas são aqueles que mais
satisfazem o estímulo pela leitura, por serem textos em versos e, aparentemente,
de fácil leitura e compreensão. Entretanto, contrariando essa premissa
insustentável, no campo da razão, os textos poéticos são quase sempre
complexos, de difíceis interpretações, sejam eles clássicos, românticos, modernos
ou pós-modernos, em suas Retóricas.
Geralmente, poemas curtos são utilizados por livros didáticos de
Língua Portuguesa, mas suas interpretações resumem-se a métodos
15
conservadores de leitura (depreensões óbvias) que transformam a interpretação
do texto poético em um mero pretexto para o ensino de conteúdos gramaticais ou,
no máximo, para um debate com resposta previamente elaboradas e
demarcadoras de “certo” ou “errado”, sob o disfarce atual de “resposta pessoal”.
Absorvemos a mudança de perspectiva (da conservadora à inovadora) com a
implantação, a partir dos anos 90, século XX, de questões respondidas como
“Resposta pessoal”. No entanto, aqui se fazem necessárias duas críticas: a
primeira é que existe uma proporção, aproximadamente, entre cinco ou mais
questões arbitrárias para uma só questão menos arbitrária com “Resposta
pessoal”; em segundo lugar, as questões de “Respostas Pessoais” são
delimitadas pelo contexto arbitrário de quem educa, enclausurando o aluno dentro
de um esquema pronto para uma educação depositária ensinada em Paulo Freire.
Se o texto for de um grandioso José de Alencar (1829 – 1877) ou de um exímio
Machado de Assis (1839 – 1908), por mais libertários que sejam autores e alunos,
a (o) educanda (o) é excluída (ou sem respaldo) a permissão de questionar “por
que este e não outro artista?”. Uma estética literária também singularmente
sofisticada, poderia ser encontrada (e aqui o é) nas escritas diferentemente
revolucionárias de escritoras poliglotas como Nísia Floresta ou Olga Savary,
ambas ausentes em livros didáticos destinados ao Ensino Fundamental.
Segundo Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários
(2013), o vocábulo corpus é proveniente do Latim e significa “corpo”. Aqui,
modernamente, adotamos esse termo referindo-se “às obras selecionadas para
objeto de uma dissertação ou tese acadêmica” (MOISÉS, 2013, p.92). Nosso
corpus, constituiu-se por um total de dez haicais (forma oriental), de Olga Savary,
16
tematizando indígenas brasileiros e de títulos (formas ocidentais) em Tupi-
guarani5, somados à epopeia A lágrima de um caeté (1849), de Nísia Floresta.
Com dez poemas curtos e líricos (haicais) fomentando o acesso a um só poema
longo e épico, de 712 versos, no 9º (nono) ano do Ensino Fundamental, partimos
do pressuposto de que “(...) poesia, segundo seu étimo grego, indica todo fazer
artístico, qualquer criação literária (...)” (D’ONOFRIO, 2007, p. 181).
Em seguida, enfatizamos outro pressuposto: o de construir uma
pesquisa original sobre as práticas de ensino, em Língua Portuguesa, no Ensino
Básico, elencada a partir das propostas pedagógicas (para leitura, interpretação e
escrita) ausentes, nos livros didáticos brasileiros, infelizmente. Não se cogita
muito a presença dos debates acerca do gênero épico, no Ensino Fundamental,
assim como já é consolidada a presença do gênero lírico, inclusive, cada vez mais
presente, poemas líricos modernos e pós-modernos.
Mediante esse descaso, no ensino de um gênero textual, o épico, tão
imprescindível à formação identitária de uma sociedade, mas excluído do conceito
de “textos de uso”, por autores e mercados editoriais, iniciamos nossos debates
entre orientadora e orientando, em busca sempre de sanar essa carência. Para
nos certificarmos de que as novas abordagens didáticas não resolveriam esta
latência curricular, principalmente, diante de novas leis pluriculturais para o
ensino, realizamos uma investigação de nove obras didáticas6, para o 9º (nono)
ano de ensino de Português, publicadas em 2012.
5 Segundo os pesquisadores Funari e Piñón, os principais grupos linguísticos, nesta época, na América do Sul, eram cinco: Aruaque, Caribe, Macro-jê, Tucano e Tupi (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p. 58). 6 Selecionamos obras de diferentes editoras, entre elas a Moderna, Saraiva, Ática, Editora do Brasil, FTD, Leya, Dimensão e Edições SM.
17
O intuito era o de compreender como a presença do texto poético (lírico
e épico) foi percebida por autores(as) dessas obras didáticas, ou seja, focalizando
um pouco mais, procuramos investigar quantos (as) autores (as) buscam cumprir
os preceitos da Lei 11. 645/2008, que obriga o estudo da História e Cultura afro-
brasileira e das nossas comunidades indígenas7.
Nos livros didáticos, constatamos a presença do poema lírico muito
maior do que a do épico. Os nove livros didáticos investigados trabalharam textos
poéticos e apenas dois deles não dedicaram a nomenclaturas de seus capítulos
uma reverência especial ao estudo do poema em versos, direta ou indiretamente.
Por outro lado, subcapítulos confirmam que todos esses livros
abordaram o estudo do texto poético. Mesmo assim, a poesia épica não foi
contemplada, não recebendo o mesmo prestígio que recebeu as formas líricas
que, para agravar o problema do desprestígio, se comparado às formas
prosaicas, foi visível uma enorme desvantagem de formas poéticas frente à prosa.
Muitas obras didáticas sequer fizeram menção aos poemas épicos clássicos, no
mínimo, quase sempre excluídos do ensino brasileiro público ou privado, sem
nenhuma razão preliminar convincente, a ser falsamente motivada pelo tamanho
longo ou pela linguagem hermética, no contexto de um jovem público leitor, pois
para isso, autores de obras didáticas são livres para amalgamar trabalhos com
fragmentos textuais, portanto que sejam em número reduzidos em relação
número de textos completos, preferenciais.
Emoldurando as obras didáticas, encontramos poemas dos mais
diversos estilos: clássicos, românticos, modernos e pós-modernos. Não obstante,
7 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acessado em 06/07/2014.
18
um breve debate sobre a epopeia aparece somente em dois livros didáticos.
Ambos trazem a abordagem mais convencional possível e elegem Camões e Os
lusíadas (1572) como modelo estereotipado para os estudos do gênero épico
(MENNA et al., 2012, p. 224) e (DISCINI e TEIXEIRA, 2012, p. 263).
A questão do debate sobre a temática indígena, nesses livros que
estão funcionando como um suporte didático imprescindível para o ensino de
língua materna, é quase ausente. Apenas dois livros dos que foram analisados
apresentaram um debate significativo. Um deles, inclusive, apresentou-se com
dois capítulos exclusivos para a compreensão das culturas indígenas
(TRAVAGLIA, 2012, p. 99-165). Já o outro livro didático trouxe um fragmento do
poema lírico “I-Juca Pirama”, publicado em Últimos Cantos (1851), de Gonçalves
Dias (1823 – 1864), acompanhado de uma brevíssima explicação (um parágrafo)
sobre o Indianismo da 1ª Geração de poesia do Romantismo brasileiro, em razão
da utópica exaltação da natureza (MENNA et al., 2012, p. 233).
No mais, admiramos a ousadia desse livro discutir sobre estéticas
literárias já em nível Fundamental. Infelizmente, o senso crítico não foi o viés
preferido para o debate de temas tão importantes para a formação cultural de
estudantes brasileiros. Segundo os pesquisadores Funari e Piñón, ao debater
sobre a presença da temática indígena, nas escolas brasileiras, afirmam que, na
atualidade, “(...) os livros didáticos de História são os que mais tratam dos temas
indígenas na escola, ainda que estes apareçam também em obras de Geografia
(...)” (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p. 99). Eles defendem o pensamento de que:
Se a convivência com os indígenas constitui a primeira e mais profunda maneira de se conhecer seu modo de vida e de pensamento, ela não é a única. Além da experiência etnográfica, o conhecimento da arqueologia e da literatura é fundamental. Por literatura, entenda-se não apenas tudo o
19
que os indígenas escreveram como também o que sobre eles tem sido escrito. (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p. 34)
20
2 – AS FORMAS LÍRICAS CURTAS E OS POEMAS DE OLGA SAVARY
2.1 O poema curto: variantes e recepção teórica
A poesia lírica nasceu em forma de canto na Grécia Antiga. Sua
inscrição ainda não habitava em papiros. O texto oral ou poema oral era feito para
ser cantado com o auxílio de um instrumento musical conhecido como lira, é o
que tudo indica, pois que já havia outros instrumentos musicais, na antiguidade,
como por exemplo, a cítara e a flauta. Entretanto, a lira fora mais consagrada e
segundo Moisés:
A significação do vocábulo “lírica” articula-se estreitamente à sua etimologia: no início, designava uma canção que se entoava ao som da lira. Assinalava, pois, a aliança entre a música e o poema, ou entre a melodia e as palavras. (...) Após os gregos, fora da Europa os mais recuados e numerosos documentos concernentes à poesia lírica se encontram entre os egípcios, cujos Textos das Pirâmides datam do século III a.C. (MOISÉS, 2013, p. 269)
Se passarmos a considerar a poesia lírica como relacionada ao canto,
sem obrigatoriedade da composição escrita, então, estaremos a par de toda a
carga histórica que o poema transmite ao leitor. Até a Idade Média, os poemas
eram feitos em formas de cantigas e, na língua portuguesa, prestigiamos
belíssimas composições “de amor, de amigo, de escárnio, de maldizer”, assim
como eram conhecidas as famosas cantigas trovadorescas, registradas em
antigos cancioneiros. Essas cantigas portuguesas assemelhavam-se às canções
provençais (MOISÉS, 2013, p. 68). O que sabemos é que “(...) o consórcio com a
música persistiu como timbre dessa espécie de poesia. Até que se operasse, com
o Renascimento, o definitivo corte de relações” (IBIDEM, 2013, p. 270).
21
Investigando sobre as origens do poema curto, não podíamos deixar de
notificar que só após o século XV, “(...) com a dissociação havida entre o poema e
a pauta musical, o vocábulo “cantiga” passou a significar toda peça lírica em
versos curtos, sobretudo o redondilho, menor e maior (cinco e sete sílabas)”
(IBIDEM, 2013, p. 68).
Para melhor esclarecer essas questões, encontramos no livro Teoria
Literária (2002), de Hênio Tavares, uma obra de fôlego sobre os estudos de
Teoria Literária e, em particular, para os objetivos desta nossa pesquisa, que são
os estudos poéticos. O quinto capítulo dessa obra é dividido em duas partes para
eficácia metodológica no estudo do poema ou Poética8: Versificação e Poemática
(TAVARES, 2002, p. 161). De acordo com o poder de síntese desse autor, vimos
a saber que a Versificação é o estudo do verso poético, ou seja, uma análise
sobre os seus quatro elementos fundamentais: Ritmo, Metro, Estrofe e Som
(IBIDEM, 2002, p. 166). Por outro lado, a parte que completa o estudo da Poética,
além da Versificação, será a Poemática que busca estudar o conceito do poema9
e classificar os textos poéticos, de acordo com o gênero épico, lírico ou satírico ou
humorístico (IBIDEM, 2002, p. 224). Para Tavares, em relação aos estudos sobre
a Poética:
Tivemos, por exemplo, a arte poética dos trovadores, a “Gaia Ciência”, na época medieval da literatura portuguesa; no classicismo renascentista refluíram os preceitos de Aristóteles e de Horácio, através de suas respectivas Poéticas. (IBIDEM, 2002, p. 161)
8 Tavares faz questão de explicar que investigará o termo Poética, em seu sentido mais restrito, como: “o simples arrolamento ou compendiação de preceitos versificatórios e do estudo formal dos poemas” (TAVARES, 2002, p. 161).9 Para Tavares, o poema “É o nome genérico de toda composição literária com intenção poética. O poema pode ser em verso (o que é mais comum) ou em prosa (...)” (TAVARES, 2002, p. 225)
22
Concentrando-se, agora, nesse período medieval, uma época em que
a poesia lírica foi bastante rica em suas formas, embora ainda sendo registrada
em cancioneiros associada à musicalidade, mas já apresentando além das
cantigas ou canções trovadorescas (de amor, de amigo e de escárnio ou
maldizer), formas outras diversificadas e musicais como a Canção Redonda10,
Baladas11, Barcarolas12, por exemplo e, nas formas do gênero épico, as Canções
de Gesta13, Romances14 ou Xácaras 15, aprendemos com o pesquisador Salvatore
D’Onofrio, na terceira parte do seu livro chamada de “Teoria da Lírica”, na obra
Forma e sentido do texto literário (2007), antes de iniciarmos esta pesquisa sobre
o estudo de poemas no Ensino Fundamental, o seguinte sobre a poesia lírica sui
generis:
Evidentemente, os arroubos líricos só existem em fugazes momentos, não podendo sustentar uma longa composição literária. Daí decorre que a lírica se manifesta por meio de poemas curtos. Muito embora momentos líricos possam ser encontrados em gêneros literários de textos maiores, na epopéia (como o episódio de Inês de Castro em Os lusíadas, de Camões) ou no romance (a abertura de Iracema, de José de Alencar), a lírica, como gênero literário à parte, opera por meio de formas poéticas reduzidas: a cantiga, o soneto, o rodó etc. (D’ONOFRIO, 2007, p. 181)
10 “É a “cansó redonda” dos trovadores provençais; consiste numa variante de “leixa-pren” (poema estrófico que repete no início de cada estância o último verso da estrofe anterior), – em que o verso inicial vem a ser o último do poema” (TAVARES, 2002, p. 276).11 “As baladas, sob o aspecto narrativo, são antigos poemas medievais, cujo assunto se prende à vida cavalheiresca” (IBIDEM, 2002, p. 234).12 “Composição sentimental, acompanhada ou não de música, acusa sempre referência a caminhos por água. Em música, é típica dos gondoleiros de Veneza” (IBIDEM, 2002, p. 272)13 “São composições em versos, geralmente decassílabos e assonânticos, cujo conteúdo é a exaltação dos feitos heróicos, algumas também relatando passagens religiosas e da vida de santos. Estilizadas em linguagem popular, parecem ter surgido mais ou menos pelo século XI (...)” (IBIDEM, 2002, p. 233).14 “Etimologicamente, o termo “romance” significa “língua popular”, opondo-se à “língua literária”, que era ainda o latim nos primeiros tempos da época medieval nas civilizações dos povos ocidentais, integrantes do antigo império romano. Ficou, em conseqüência, como sinônimo de “vernáculo”, e como os poemas narrativos eram escritos “em romance”, a palavra passou a especificar essas composições (...)” (IBIDEM, 2002, p. 226). 15 “Essa espécie literária é também conhecida pelo nome de “xácara”, palavra de origem árabe, e pela variante “rimance” (...) (IBIDEM, 2002, p. 226)”.
23
Além de explicar esse lugar comum do poema, quando pertencente ao
gênero lírico, que é o lugar do poema curto, e que muito nos interessa tal certeza,
nesta pesquisa, D’Onofrio ainda realiza uma dedução elementar e muito útil, na
fundamentação teórica, aqui presente, quando argumentamos sobre a eficácia de
se elaborar uma “passagem” do poema curto e lírico ao o longo e épico, em nível
fundamental de ensino. A dedução dele consiste exatamente no seguinte: “(...) se
toda lírica é sempre poesia, não importa se em verso ou em prosa, nem sempre a
poesia em verso é lírica (...)” (IBIDEM, 2007, p. 181).
De muitos poemas curtos que existem, não há como nos abstermos da
Trova16, que é uma forma lírica de apenas uma estrofe, ou seja, “(...)
monostrófica, formada de quatro versos que condensam todo o pensamento ou
emoção.” (TAVARES, 2002, p. 309). Tentando elucidar melhor, D’ Onofrio explica-
nos que a Trova é “(...) apenas um poema, de 4 versos, medindo cada verso 7
sílabas. (IBIDEM, 2002, p. 309). Então, em uma rápida leitura, percebemos a
produção de Trovas em poetas modernistas como, por exemplo, Carlos
Drummond de Andrade e Mário Quintana. No entanto, uma outra forma, assim
como a Trova, por consistir em uma forma popular de poema curto, talvez
comparando-se apenas ao Mote17. O Mote, como não consiste a priori em uma
forma poética autônoma, assim como a Trova, na Idade Medieval, restou a lírica
moderna reduzir ainda mais o tamanho de um poema lírico. Muito provavelmente
inspirados no Mote, os poetas modernistas começaram a minimizar o poema a tal
ponto de criar a forma lírica conhecida como Micrologia. Mais uma vez, é 16 Segundo Tavares, o Rubai pode ser classificado como “(...) a trova popular dos persas, turcos, árabes, etc., gênero em que se imortalizou Omar Khayiám com o seu famoso Rubayát escrito no século XII (...)” (TAVARES, 2002, p. 301). 17 Com os Motes, eram produzidos poemas líricos como a Glosa, por exemplo. Segundo Tavares, a Glosa nasce a partir de “(...) um motivo (ou mote) e desenvolvê-lo ideativamete, repetindo-lhe os versos ou verso, através da composição ou final dela. É uma espécie de variante do vilancete.” (IBIDEM, 2002, p. 285).
24
D’Onofrio que nos ensina que Micrologia pode ser um sinônimo de “poema
minuto” dos modernistas, em outras palavras, uma forma lírica muito sintética e
breve (IBIDEM, 2002, p. 288).
2.2 A poesia de Olga Savary: seleção e análise de poemas curtos da autora
Em 1933, na cidade de Belém, no estado brasileiro do Pará, sob o ar
atmosférico da Floresta Amazônica, apresentando-se à sociedade geneticamente
e culturalmente constituída por sangue e ideias de ancestrais indígenas do Brasil
com europeus portugueses, por parte da mãe, misturados aos de europeus
russos, por parte do pai, nasceu Olga Savary.
Radicou-se no Rio de Janeiro, e, aos 19 anos, conheceu o poeta
Carlos Drummond de Andrade de que se tornou bastante amiga18.
Em entrevista concedida ao jornalista Luiz Lobo, em 2013, pela Rio TV
Câmara19, a poeta Olga Savary relata brevemente uma pequena parte de sua
imensa biografia: o seu amor pela leitura e as mais de 50 obras traduzidas, assim
o amor pela filha Flávia Savary (escritora e artista plástica) e a morte do filho
Pedro Savary (artista plástico), ambos legados da união ou casamento, no
passado, com o cartunista Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe (1932 - ), mais
conhecido pelo pseudônimo de Jaguar.
Apresentada como uma das fundadoras do Pasquim, semanário que
dura de 1969 a 1991, nessa conversa com o jornalista Lobo, ela mais uma vez
confessa a preferência de ser chamada de poeta, em vez de poetisa. Segundo a
18 Segundo ela mesma, o poeta mineiro investigou e descobriu que as famílias Savary e Drummond apresentavam ligações parentais de segundo grau, mais especificamente, famílias de primos na Rússia. 19 Olga Savary, gentilmente, concede uma entrevista à rede pública de televisão do Rio de Janeiro por aproximadamente 45 minutos. Disponível em << http://www.youtube.com/watch?v=WfsSzWk_hCQ>>. Acessado: 21 /07/2014.
25
autora, no Colégio Moderno, em Belém, foi o seu professor de filosofia Benedito
Nunes (1929 – 2011) quem a ensinou que poetas (mulheres ou homens) são os
fazem bons poemas.
Atualmente, aos 81 anos de idade, ela continua a organizar antologias
poéticas e nos revela ter um romance guardado há 20 anos, mas por ser
perfeccionista nunca o considerou publicável. Em 1982, publicou a primeira
antologia de poesias eróticas, no Brasil, reunindo 77 poetas. Entretanto, a
produção poética da Monalisa de Copacabana, assim como era chamada por
alguns artistas plásticos contemporâneos, começou doze anos antes.
Em 1970, através da Livraria José Olympio Editora, prefaciado pelo
escritor Ferreira Gullar, a poeta Olga Savary publicou Espelho provisório. Com
essa coletânea de poemas que reúne textos de 1947 a 1970, a escritora foi então
agraciada com o Prêmio Jabuti (1971) como “Autor revelação”, exatamente no
mesmo ano em que o estudioso Antônio Houaiss recebeu, esse mesmo prêmio,
como “Personalidade literária do ano”20.
Poucas vezes, referimo-nos aqui às formas líricas orientais, como o
Rubai, aqui já definido. Só que, buscando formas que se assemelham à Trova ou
ao Rubai, pesquisadores hão de se deparar com a estética (e por que não a
brevidade estética) do Haicai.
Segundo o consenso geral dos grandes estudiosos de teoria literária, o
Haicai consagrado é definido como uma:
Espécie literária japonesa de forma fixa, em estrofes de 3 versos. A estrofe deve conter 17 sílabas métricas, na seguinte ordem: 1º verso: 5 sílabas; 2º verso: 7 sílabas e o último com as cinco sílabas restantes (5 – 7 – 5). (IBIDEM, ANO, p. 285)
20 Essa informação encontra-se no site da Câmara Brasileira do Livro, a instituição organizadora do Prêmio Jabuti desde 1960. Disponível em: <http://premiojabuti.com.br/edicoes-anteriores/premio-1971/>. Acessado: 15/07/2014.
26
Direcionando-se neste sentido do poema curto de viés oriental, a fim de
concretizar nossa proposta pedagógica de criar estratégias de leitura do poema,
selecionamos dez haicais de Olga Savary, retirados do livro Hai kais (1986). Dos
cem poemas curtos, em forma de Haicais, que compõem essa obra organizada
em forma de coletânea, selecionamos justamente dez poemas líricos que
pertencem aos Inéditos de Repertório selvagem (1975-1986)21.
Em relação a essa suposta ortodoxia do Haicai (5 – 7 – 5), já
rapidamente explicada, este estudo vai em outra direção de perspectiva crítica.
Nas palavras do escritor e jornalista, também membro da Academia Brasileira de
Letras, o crítico Antônio Olinto, em 1998, prefaciando Repertório selvagem (1998),
admite que “(...) rebelde é o que a poeta Olga Savary revela ser, nos poemas
breves, nos haicais, tanto quanto nos poemas espraiados e quase como água
tocando como corpos e objetos” (SAVARY, 1998, p. 16). Por fim, já que esse
assunto será retomado no próximo subcapítulo, reproduzimos a priori, como
forma de concluir esse tema, as próprias palavras de Savary, no prefácio de Hai
kais (1986) sobre sua estética:
(...) os hai-kais destes 36 anos de poesia (1950 – 1986) têm uma liberdade que na origem não existe, condicionados às tradicionais 5/7/5 sílabas em seus 3 versos. Também não tratam só dos temas habituais: impressões da natureza e uma filosofia ligada ao fluir do tempo. Embora alguns estejam nessa linha, outros estão distantes disso, pois foram escritos com uma visão ocidental, por mais oriental que eu possa me sentir. (SAVARY, 1986, p. 7)
2.3 A seleção e análise de poemas curtos de Olga Savary
A obra poética de Olga Savary, de tão vasta, imprime ao pesquisador
um magnânimo desafio: o de se ater aos estudos de poemas compostos por
21 A obra poética Repertório Selvagem (1998) é composta pela reunião de textos líricos retirados de 12 (doze) livros de poemas de Olga Savary.
27
pessoas vivas. Inspirando-se naquelas pessoas que, como Savary, elaboraram
organizações de Antologias “não só para dar visibilidade aos colegas do fazer
poético, como também para deixar de olhar o próprio umbigo” (SAVARY, 2011,
p.83), selecionamos dez haicais de Olga Savary, uma autora de relevância no
cenário artístico brasileiro.22
Aqui, podemos mencionar as palavras de Antônio Candido, em uma
entrevista, quando se referia aos desafios de uma pesquisa voltadas para a obra
literária e a gama de autoras e autores disponíveis. Candido, afirmando que a
tradição literária brasileira, há séculos, defende a impossibilidade de se realizar
uma boa pesquisa sobre uma obra escrita por uma pessoa ainda viva. Citando o
crítico literário português Fidelino de Figueiredo (1889 – 1967), é com Candido
que aprendemos que a tese conservadora legitimada e praticada pelos estudiosos
literários era a seguinte: “enquanto o autor está vivo, ele pode mudar”23. Ele
relembra subjetivamente sua visão historicista, entre uma ótica individual-coletiva:
A minha mulher deu o primeiro curso de Modernismo na Universidade de São Paulo. Depois a coisa mudou: os jovens hoje só querem fazer tese sobre autores atuais. (...) A Universidade está aplicando os métodos de pesquisa erudita à atualidade. Cada época tem seu perfil. Não é melhor, nem pior! (CANDIDO, 2011)24
O que, contudo, é tradicionalmente visto como um empecilho para uma
avaliação crítica pertinente, porque restrita a uma obra acabada (no caso dos
escritores falecidos), parece-nos instigante desafio e forma interessante de
revelar aos estudantes uma “poesia viva” e em transformação, já que é
justamente a renovação por que todo escritor passa durante uma vida dedicada à
22 Para a SPTV, uma emissora televisiva paulista, Antônio Cândido concedeu uma entrevista brilhante sobre Literatura. Disponível em:<< https://www.youtube.com/watch?v=z912yXNZY94>>. Acessado: 20-07-2014.23 Em uma parte da entrevista de Antônio Cândido, referida aqui, há essas afirmações do crítico literário. 24 Disponível em: << https://www.youtube.com/watch?v=z912yXNZY94>>. Acessado: 20-07-2014.
28
literatura a prova de que a criação literária se renova constantemente, assim
como se renovam as leituras que se fazem das obras literárias.
Na poesia lírica de Olga Savary, há dez haicais que podem ser
pensados didaticamente a partir de nossa proposta, todos eles intitulados com
nomes de origem tupi-guarani, são eles: “Teipó” (Finalmente); “Enuçaua”
(Postura); “Uaruá/Caápura! (Espelho/ Dentro do mato); “Umbuéçaua” (Aula),
“Mairamé” (Quando); “Amurupe” (Diferente); “Iaraqui” (Bebida inebriante); “Uíre”
(Vir à tona); “Aetecupi” (Assim sim); e, por último “Catuana” (Paz). Esta foi a
ordem de retirada desses poemas curtos, no livro de coletâneas Hai Kais (1986).
Todos esses haicais também foram republicados no livro Repertório Selvagem
(1998). No entanto, nem sempre será essa a mesma ordem para a análise dos
poemas, levando-se em consideração seu discurso lírico pós-moderno25.
O poema “Teipó” e mais os outros nove haicais integram um
estratégico corpus de pesquisa, cujo intuito é estimular o gosto pela leitura crítica
em ambientes literários e poéticos do Ensino Fundamental.
A seleção e análise dos poemas exigiu-nos que dividíssemos os dez
poemas em três grupos e um de abertura. Todos são haicais, com nomes em tupi
e legendados em nota de rodapé, revelando um eu-lírico que não possui, em
nenhum momento, a visão do colonizador. Ao contrário, leitores e leitoras são
postos diante de uma voz poética que nem sempre permite a definição do gênero
desse eu lírico, partindo do ponto que estamos diante de uma escritora feminista
e erótica, no que mais de Eros (Deus do amor na mitologia grega) tem a nos
oferecer essa palavra: a ótica de Eros ou erótico.
25 Além das características modernas, os haicais de Olga Savary apresentam, esteticamente, uma manifestação discursiva que transpõe o projeto modernista, acrescentando: notas de rodapé ao poema; desconstrução das formas fixas do haicai; e, a presença do idioma indígena Tupi-guarani, propriamente dito.
29
Na abertura do projeto, será utilizado o haicai “Umbuéçaua”, com seu
significado misterioso, pois “aula” é, com certeza, um outro modelo de aula para
os povos nativos do Brasil. Talvez esse modelo de aula seja proveniente da
escola, não a moderna, mas sim a noção de skholé, na Grécia Antiga, enquanto
sinônimo de “ócio, lazer, tempo sem trabalho (...)” (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p.
65). Os indígenas não conceberam as palavras do mesmo jeito que a
concebemos, ou seja, uma tradução que não seja crítica, felizmente, não serve e
é justamente isso, essa interpretação mais aguçada, que pretende Olga Savary,
ao escrever haicais de um jeito bem brasileiro.
Até mesmo a concepção do José de Anchieta (1534 – 1597), quando
construiu uma gramática e um dicionário sobre o idioma Tupi-guarani26, não é
igual à que compartilham as mulheres e os homens da inevitável era digital. Uma
aula é uma “Umbuéçaua”, como nos informa a nota de rodapé, editada pela
poeta, mas uma aula gerada por eu lírico que em nenhum momento permite que
seja identificada seu gênero sexual, mas que se revela como um suposto
indígena capaz de entender “de coisas plenas”, ou melhor, do amor.
É pelo tema do “amor para o indígena” que iniciaremos nossa análise,
propondo uma Sequência Didática27, no quarto capítulo. Irrompemos na busca de
interpretar o hermetismo envolto no eu-lírico, que, como já dissemos, não permite
26 José de Anchieta publicou, em vida, a Arte de Grammatica da Lingva Mais Vsada na Costa do Brasil (1595), em Coimbra, pela Editora Antonio Mariz. A cópia digital do exemplar da primeira edição pertence à Biblioteca Nacional do Rio. Disponível em: << http://biblio.etnolinguistica.org/local--files/anchieta-1595-arte/anchieta_1595_Arte_de_Grammatica.pdf>> Acessado: 25 – 06 – 2014.27 Com Délia Lerner aprendemos que as “Sequências Didáticas” ou “As sequências de atividades estão direcionadas para se ler com as crianças diferentes exemplares de um mesmo gênero ou subgênero (poemas, contos de aventura, contos fantásticos...), diferentes obras de um mesmo autor ou diferentes textos sobre um mesmo tema. Ao contrário dos projetos, que se orientam para a elaboração de um produto tangível, as sequências incluem situações de leitura cujo único propósito explícito – compartilhado com as crianças – é ler. ” Disponível em: << http://revistaescola.abril.com.br/producao-de-texto/modalidades-organizativas.shtml>>. Acessado em: 27/07/2014.
30
ser identificado como eu lírico feminino ou masculino. Isso emana do poema pós-
moderno, na medida em que ele afasta-se da “autoreferenciação modernista”, em
detrimento de uma “hetero-autoreferenciação pós-moderna”28. É por isso que:
A intertextualidade pressupõe uma relação externa de contraposição do referente original com o novo, propiciando o diálogo; já a intratextualidade cria uma relação interna de assimilação dos fragmentos referenciados no significante do novo poema, impedindo o diálogo explícito entre os textos. Ou seja, o diálogo torna-se implícito, intratextual, podendo todavia, ser resgatado pelo crítico que, conhecendo as obras referenciadas, faz uma leitura dos enunciados no interior da nova obra, contrapondo os textos na instância dialógica da comparação. (SILVA, 2010, p. 24)
Utilizamo-nos da teoria do pesquisador Anazildo Vasconcelos da Silva,
e aprendemos que o discurso moderno está voltado mais para a natureza da
intertextualidade, enquanto que o discurso literário apresenta-se mais soerguido
por um arcabouço intratextual, exigindo, indiscutivelmente, do analista leituras
prévias. No âmbito da intratextualidade, quem lê uma obra poética como a de
Olga Savary29, por exemplo, precisa remontar a outros discursos poéticos
(haicais, indianismo crítico, notas de rodapé, etc.), implícitos no texto lírico pós-
moderno. Em outras palavras, o poema curto, forma escolhida por nós e, em
muitos momentos, na poesia lírica de Savary, remete-nos a outras análises ou
observações conclusivas sobre os poemas minutos ou Micrologia (TAVARES,
ANO, p. 288) do poeta modernista Oswald de Andrade (1890 - 1954) ou sobre os
milenares poemas orientais (japoneses).
28 Segundo Silva, “A retomada modernista converte a referenciação poética num processo metapoético que inscreve o ato da criação poética no âmbito discursivo do próprio poema” (SILVA, 2010, p. 22); enquanto que, por outro lado, na lírica pós-moderna, referir-se a “hetero-referenciação poética consiste, basicamente, em fazer de enunciados poéticos a matéria do poema, desvinculando-os, porém, de seus referentes originais (IBIDEM, 2010, p. 23)29 Silva define Olga Savary esteticamente de poesia autoral. Para ele, esse grupo não se incompatibiliza, de forma alguma, “com o fechamento metalinguístico das vanguardas”, já que, na geração de 1960, autores como Mário Faustino, Marly de Oliveira, Carlos Nejar, Ivan Junqueira, Affonso Romano Sant’Anna, Ildásio Tavares, Marcos Accioly, Olga Savary e dezenas de outros sustentaram “o esgotamento da tradição modernista na continuidade poética da série literária” (SILVA, 2010, p. 15).
31
Em “Umbuéçaua”, temos um poema arquitetado sob a base de versos
escritos em redondilhas maiores, ou seja, na forma 7/7/7. Savary30 reconstruiu
assim, a partir das mais antigas formas orientais de poetas como Bashô, Buson e
Issa31, formas ligadas a uma escrita transmitida por ideogramas, mas que agora
são vivenciadas com a poeta brasileira, partindo de temáticas ocidentais e/ou
indianista crítica. O eu-lírico volta-se para outros valores e visões sobre a
colonização europeia.
Embora composto por três versos, em redondilhas maiores,
“Umbuéçaua” é um poema lírico com apenas duas frases (ou dois movimentos). A
primeira é: “De coisas plenas melhor não fazer alarde.” Só para essa frase,
Savary usou dois versos ou duas linhas poéticas. O que isso quer dizer?
Há uma metáfora implícita nisso, ou seja, “coisas plenas” merecem um
tempo-espaço maior nas preocupações humanas e, no contexto poético,
poderíamos sentir isso. O eu-lírico (implícito), como se quisesse induzir leitores
(as) a interpretar que “coisas plenas” seriam um sinônimo de “Amor”, já que essa
palavra é a que segue após o término da frase, fechando a métrica do segundo
verso: “não fazer alarde. Amor”.
A visão pessimista do amor, quando pergunta o eu-lírico de modo
satírico, no terceiro verso, “que mais é senão gorjeta?”, não pode ser vista sem o
mínimo de criticidade.
30 Todos foram haicais brasileiros que dificilmente seguem a fixação da contagem métrica de 5/7/5. 31 Sabemos que Olga Savary foi uma poeta que se mostrou “Apaixonada pela cultura japonesa desde menina, tendo traduzido O LILVRO DOS HAI-KAIS, de Bashô, Buson e Issa, os 3 mestres do hai-kai (editado em 1980 por Massao Ohno/ Roswitha Kempf/ Editores, com prefácio de Octávio Paz e desenhos de Mabe) (...) (SAVARY, 1986, p. 7)”.
32
A expressão “Umbueçaua” e “Gorjeta” são pares paradoxais32. Não há
aulas de como conquistar “gorjeta” entre os nativos brasileiros, a não ser que o
aluno perceba que “gorjeta” tem parentesco etimológico com o verbo gorjear,
relacionado ao canto das aves e que os índios assobiam para atiçar os pássaros
a gorjearem. Logo, em uma leitura mais crítica, a polissemia da palavra “gorjeta”,
misto de canto de pássaro e dinheiro pago por um serviço, revela um amor
pessimista. No entanto, esse pessimismo sobre o conceito de “Amor”, associado
friamente (ou não, pois canto de pássaro) à “gorjeta”, é totalmente focalizado
numa espécie de “Amor Europeu”. É como se, em uma aula indígena, os mais
velhos ensinassem, por tradição, aos mais novos, que suspeitem sempre que
ouvirem a palavra “Amor” em boca de homens europeus, já que esses
colonizadores são mal acostumados a transformar “gorjetas de pássaros” em
“gorjetas de dinheiro”, com seus espelhos e suas doenças venéreas.
Essa noção de amor assemelha-se àquela que os europeus
ensinaram, teoria e prática: a de ser, no final das contas, uma simples “gorjeta”.
Psicologicamente, o eu lírico de “Umbueçaua” propõe que é “melhor não fazer
alarde”, ou seja, não subestimar a fraqueza e a falta de plenitude desse amor, o
que é paradoxal. No entanto, não haveria aula mais crítica e mais justa, a ser
ministrada entre os nossos ancestrais indígenas, já que a palavra “Amor” tem, no
espaço lírico dessa composição poética, um teor severamente crítico, ou melhor,
“amor” entendido e ensinado como “forma de pagamento”, seja em canto ou
dinheiro. Deparamo-nos diante de uma metáfora inteligente para aquele momento
de colonização em que europeus deram espelhos e doenças venéreas, como 32 Encontramos que gorjeta “Vem de gorja, sinônimo desusado de garganta, de onde proveio também o gorjeio dos pássaros. A gorjeta era uma pequena quantia que se dava a quem tivesse realizado trabalho extenuante e cansativo, a fim de que ele comprasse uma bebida para molhar a garganta" Disponível em: << http://www.dicionarioetimologico.com.br >> . Acessado em: 27/07/2014.
33
forma de “gorjeta”, além do alarde que fizeram para ditar o “Amor” através de
procissões e missas católicas portuguesas ou cultos protestantes holandeses ou
franceses. O “Amor europeu” que busca destruir ou expulsar os povos nativos do
litoral para o interior, subestimando-os ou, simplesmente, aculturando-os, desde o
final do século XV até – e por que não dizer? – os nossos dias atuais do século
XXI.
A seleção dos outros nove poemas, como já frisamos, ocorreu em três
grupos contendo três poemas em cada grupo, já que a nossa intenção
metodológica é envolvermos os demais poemas com três grandes temas: a
“autonomia feminina”, o “eu do poema” e o “Heroísmo épico indianista”).
Começando pelo tema da Autonomia Feminina, já que tanto Nísia
Floresta quanto Olga Savary mostraram ser mulheres feministas, mergulhadas no
estudo intensivo das letras e das artes e nos postergando produções inovadoras,
revolucionárias e imemoráveis, iremos analisar três haicais, em função da
autonomia da mulher. Os poemas que integraram este grupo para facilitar um
debate sobre a “autonomia feminina” serão: “Teipó”, pois apresenta uma
personagem feminina em simbiose com a água “e arde sem saber”; outro poema
deste grupo é “Aetecupi”, que apresenta duas personagens pela perspectiva do
“ventre”, por que não, feminino; e, por fim, integra este grupo o haicai “Mairamé”,
que exigirá uma interpretação de fôlego, já que o “Amor”, antes debatido no
poema “Umbueçaua” como “gorjeta”, ganha novas proporções, a partir de novas
relações metafóricas com a “prisão” e a “religião”.
O segundo trio de poemas a ser analisado aqui será por nós formulado
para que se proporcione sentido (Sequência Didática) aos estudos literários sobre
o “Eu do poema”. Esse eu lírico que irá ser apresentado, na segunda parte do
34
trabalho ligada ao épico, apresentar-se-á como um eu lírico/narrador. Para
trabalhar o “eu do poema”, apenas no gênero lírico, pensando na perspectiva do
estudo de gênero (feminino ou masculino) do eu lírico, a fim de diferenciá-lo do
“eu do poeta”, aqui sempre feminino pois são duas poetas em estudo. Serviram-
nos, então, os haicais “Catuana”, por apresentar um eu-lírico feminino “não
completamente revelado” pela palavra “aleluiada”, já que esta pode referir-se ao
eu lírico, mas também à questão da “sangria”; depois, pensamos em analisar o
haicai “Iaraqui”, por identificar-se como um vampiro, possibilitando associações
com o gênero masculino para um eu lírico antropofágico, assim como em
“Catuana”; e, para fechar a tríade, analisaremos o poema “Uíre” e seu
envolvimento com o plano maravilhoso sustentado pelo fato de o eu lírico
comparar-se não a uma “esfinge”, mas sim, a “estátuas de sal e de mel”,
dificultando perpetuamente a identificação do gênero (masculino ou feminino)
desse mesmo eu-lírico, diferente do “eu do poema”, fácil de ser depreendido, em
seu eu feminino ou masculino identificado, através de dados biográficos apenas.
Por último, analisaremos o terceiro grupo de poemas que serão
apresentados com o intuito de fortalecer e estimular o debate sobre o tema do
“heroísmo épico indianista”, já pensando que, depois dessas análises, nesse
bloco, o projeto irá inserir o poema épico, no Ensino Fundamental, facilitado pela
concepção do poema curto, em forma de haicai, e pela estética romântica da
epopeia nisiana que, por ser revolucionária, não apresenta mais de 712 versos
eivados de momentos líricos.
Nesse terceiro e último bloco, analisaremos o haicai “Enuçaua”, por
versar sobre o “perigo” e o “amor natural”, descontruindo agora aquela noção
primeira de amor que apresentamos como “gorjeta”; em seguida, analisaremos
35
“Uaruá/ Caápura” e todo seu lirismo no prisma do verbo “perseguir”; e, por fim,
analisaremos o poema “Amurupe”, já que o simbolismo do “mar” e temos,
novamente, a temática do “Amor”, só que agora, sob o prisma do “prazer” como
forma de libertação.
No último capítulo, desta dissertação, dispusemo-nos a delimitar as
estratégias de leituras, em prática, para fomentar um ensino-aprendizagem
autônomo e plenamente capaz de promover uma apreciação literária estético-
crítica. Do poema longo e, por extensão, do gênero épico em diálogo com o
gênero lírico, dissertaremos sobre uma possível simbiose que condensará o
entendimento do estudante sobre o eu lírico num eu lírico/ narrador, capaz de se
movimentar com a primazia de um heroísmo épico.
Já o que demarcamos como contexto histórico-literário, dos poemas
deste projeto, a seleção percorre o indianismo romântico do século XIX e chega
aos resquícios da poesia autoral (SILVA, 2010, p 15) pós-modernista intratextual
(IBIDEM, 2010, p. 23).
O próximo capítulo irá, justamente, tratar de tais fundamentações
teóricas para a construção de uma metodologia didática, a fim de se construir
uma experiência simbiótica possível (e sensível), a partir da percepção mais
apurada do corpus, dos poemas, e mais especificamente, dos haicais (ao épico),
numa busca intelectual pela medida exata da fruição textual em cada estudante
sem o abandono do senso crítico e das técnicas de leitura.
36
3 – ESTRATÉGIAS DE RECEPÇÃO EM A LÁGRIMA DE UM CAETÉ (1849) DE NÍSIA FLORESTA
3.1 Nísia Floresta (1810-1885), uma escritora poliglota
Além de conhecida principalmente como Nísia Floresta, a educadora
Dionísia Gonçalves Pinto adotou vários pseudônimos durante sua carreira
profissional de escritora ou de tradutora: de Telesila a Nísia Floresta Brasileira
Augusta, ou de Floresta Augusta Brasileira a Mme. Brasileira Augusta ou então a
F. Brasileira Augusta, entre outros em formatos abreviativos desses mesmos
nomes citados. Esses pseudônimos marcaram a carreira dessa escritora poliglota
e intercontinental. Segundo a pesquisadora Constância Lima Duarte, ela atingiu
um status internacional de escritora, em sua época, e foi amiga (discípula às
avessas, pois Metafísica)33 de Auguste Comte, filósofo positivista do século XIX.
Em 1856,
(...) na medida em que o poeta se distingue do cidadão, a voz do poema equivale à do poeta. E dado que a voz do poeta é, pelo menos, um “eu” contíguo do “eu social”, podemos supor que a voz do poema seja igualmente um “eu”, agora insulado, livre de qualquer sujeição à origem, incluindo o “eu do poeta”. (MOISÈS, 2003, p. 137)(…) Nísia já estava na Europa e, mais precisamente, em Paris. Neste período, uma Lettre au Brésil (datada de 1846) atribuída a ela, era publicada na revista francesa Ideal dos Povos (n° 3), ao lado de uma colaboração de Auguste Comte. (…) (DUARTE, 1995, p. 45).
Era a fase da maturidade de Nísia? Talvez sim, segundo Duarte (1995,
p.45). Nísia publicou de 1832, iniciando com Direitos das mulheres e injustiça dos
homens (1832), que foi uma tradução livre do livro Vindication of the rights of
33 Constância Lima Duarte é uma cientista brasileira do campo literário que, ao ler as 13 cartas de Auguste Comte e de Nísia Floresta, datada em 1856 (Duarte, 1995, p. 45-49), destaca que, para o filósofo francês, a pessoa amiga e discípula de Nísia era de “hábitos metafísicos”, mas preciosa discípula.
37
woman – with Scritures on Political and Moral Subjects (1792), da autoria original
em inglês de Mary Wollstonecraft, até 1878, em Paris, com a publicação intitulada
de Fragments d’un Ouvrage Inèdit – Notes Biographiques (1878). Nísia produziu
por completo 15 obras34. E nesse todo encontra-se A lágrima do Caeté (1849)35.
Duarte (1995) elaborou, no final do século passado, uma opção de
releitura, não só da vida, mas também da obra de Floresta, incluindo publicações
internacionais (França, Itália e Londres), e elucidando cientificamente o segredo
autoral de obras36 de autoria(s) duvidosa(s), sob o rótulo (autoral) de
pseudônimos, como, por exemplo, o poema épico A lágrima de um Caeté (1849),
publicado sob o mistério de um nome secretíssimo: o pseudônimo de Telesila37.
Os pseudônimos de Nísia (ou textos sob o véu dos anonimatos) foram
criados também na intenção de evitar a censura imperial brasileira, principalmente
por suas obras geralmente incutirem um teor revolucionário contra o
conservadorismo vigente, seja na educação, seja na estética literariamente
romântica em vigor no Brasil Império, perto da metade do século XIX. Não era,
portanto, apenas uma questão de marketing editorial voltado aos jornais e aos
livros.
Na juventude dessa artista oitocentista, o Brasil já era bem dividido em
dois grupos políticos: conservadores e liberais. Pode-se dizer, inclusive, que Nísia
34 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/NisiaFloresta/obr.html Acessado: 15/03/2014.35 A veracidade dessas informações e de outras informações aqui sobre vida e obra de Nísia Floresta – também agora um nome de um município do brasileiro (antiga cidade de Papari), localizado no Estado do Rio Grande do Norte, provém de estudos da especialista no assunto Constância Lima Duarte (1995; 1997).36 Ao encontrar na Itália, um único exemplar de uma única edição italiana de Le lágrime de un Caeté, traduzido por Ettore Marcucci e publicado em Florença no ano de 1860, a pesquisadora Constância Lima Duarte termina por comprovar a veracidade da autoria de Nísia Floresta nesta obra que, como era de teor revolucionário, foi publicada sob o recurso do pseudônimo “Telesila”.37 Conta-se que Telesila, poetisa grega, nascida provavelmente no século VI a. C., viveu em Argos e assumiu a liderança da resistência contra as tropas espartanas de Cleómenes. Na ausência do exército, vestindo-se de forma masculina, Telesila com outras mulheres e escravos conseguiriam a vitória na resistência frente aos guerreiros espartanos.
38
herdou do anonimato ou dos pseudônimos dos revolucionários poetas árcades
(brasileiros), um referencial épico. Mas ela acrescentou à estética neoclássica
novas intenções estilísticas panfletárias e um romantismo de viés tão crítico que
incomodou muita gente. Por isso mesmo, muito tempo depois de viver o
anonimato nos manuais de literatura, inclusive até os dias atuais, por uma
questão não só de erro de percurso historiográfico, a princípio, mas por razões
talvez de dificuldade ao acesso a suas obras e escritos jornalísticos. Nísia
Floresta, contudo, foi aos poucos redescoberta, ainda mais, a partir de 1938, com
uma reedição editada pela Revista das Federações das Academias de Letras,
contendo um estudo crítico de Modesto de Abreu e comentários de Adauto
Câmara. Foi o próprio Adauto Câmara que fez uma pesquisa e a publicou no livro
História de Nísia Floresta (1941) 38, abrindo caminho para um novo viés crítico
sobre a escritora poliglota.
Aproximadamente 17 anos depois do primeiro livro, viria a outra
consagração, com o poema épico A lágrima de um Caeté (1849).
3.2 A lágrima de um Caeté (1849) de Nísia Floresta: estratégias para uma
nova leitura do gênero épico
O que possibilitaria uma comparação do heroísmo épico de um índio,
no poema A lágrima de um Caeté (1849) de Nísia Floresta, com o heroísmo épico
através dos feitos bélicos do personagem Ulisses, na Odisseia (século X a.C.), de
38 Somente dez anos depois, em dezembro de 1948, um Decreto-lei de número 146, modifica o nome da cidade de Papari para o nome Nísia Floresta, agora também um nome do Município Nísia Floresta no Estado atual do Rio Grande do Norte.
39
Homero? Essa será a pergunta a ser paulatinamente respondida até o final deste
artigo.
Primeiro, é preciso notar que, infelizmente, não é pequena a lista de
estudiosos da crítica literária que, em vão, argumentam sobre a decadência, no
século XIX, e a extinção, no século XX, da poesia épica e, por extensão, da
epopeia. No entanto, desde tempos imemoriais, a produção literária acontece de
modo soberano diante da crítica literária. É fato. Caso assim não fosse, todo
processo literário estagnaria em um simples modelo, uma só estética e um
exclusivo estilo individual e coletivo. A cada século, no mínimo, os estilos literários
são atualizados pelos artistas num processo ideológico e crítico, como foi o caso
das escolas românticas e modernas brasileiras. Sendo assim, a
contemporaneidade é ainda até hoje arrematada pelo discurso épico i,
retoricamente atualizado. De acordo com a teoria de Anazildo Vasconcelos da
Silva:
O discurso épico caracteriza-se por sua natureza híbrida, isto é, por apresentar uma dupla instância de enunciação, a narrativa e a lírica, mesclando por isso mesmo, em suas manifestações, os gêneros narrativo e lírico. (…) Com a conversão da proposta aristotélica em teoria do discurso épico, impõe-se o reconhecimento da epopéia apenas por sua instância narrativa, predominante na elaboração discursiva da épica clássica, fazendo com que a crítica, inadvertidamente, arrolasse a epopéia ao gênero narrativo, figurando-a ao lado de uma narrativa de ficção (…) (SILVA e RAMALHO, 2007, p.49).
O discurso híbrido (lírico e narrativo) é o que definirá o discurso na
epopeia. A tendência mais para um ou outro polo, lírico ou narrativo, não anula o
discurso épico, como julgou a crítica literária que compreendeu o romance como a
nova forma do épico.
i “Os discursos são semiologicamente neutros, isto é, não determinam a natureza significante de suas manifestações, que é uma atribuição das semióticas que os investem” (SILVA e RAMALHO, 2007, p. 26).
40
Retirando esse atraso conceitual da crítica literária oitocentista, que,
atrelada aos paradigmas do filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.),
terminou por descontextualizar e por não perceber os fenômenos de
transformação da épica clássica em épica romântica e, posteriormente, em
moderna e em pós moderna, pode-se dizer que um Caeté pode ser tão herói
quanto Ulisses. Porém, a falta de advertência encontra-se em muitos livros de
teoria literária, que confundem o gênero narrativo com o gênero épico, afirmando
que este sucumbiu diante daquele. Só que, por outro lado, há pesquisadores que
conseguiram atualizar as reflexões críticas acerca da epopeia e do gênero épico,
chegando à conclusão de que o épico ainda sobrevive ii, com seu discurso
transformado ao longo do tempo, com sua matéria épica e com seus elementos
referenciais ressignificados, embora a crítica literária vigente não os tenha
reconhecido totalmente.
Não seguindo a mesma proposta teórica aqui empregada, que é a da
dupla semiotização do discurso épico, nas instâncias lírica e narrativa (SILVA e
RAMALHO, 2007, p. 62), Massaud Moisés é mais um consagrado nome a
defender a existência de poemas épicos na produção de escritores consagrados e
modernos. Segundo suas palavras:
(…) Com as transformações introduzidas pela estética romântica e subseqüentes, a poesia épica despojou-se de seu caráter narrativo, mas preservou os demais ingredientes: eis por que, apesar da aparência contrária, a poesia épica continua a ser cultivada. T.S. Eliot, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima são alguns dos exemplos modernos do gênero. Sucede, porém, que a rejeição da peripécia faz que a poesia épica dos nossos dias se assemelhe à poesia lírica. (MOISÈS, 2007, p. 53)
ii Para aprofundar no assunto, sugere-se o site do Centro Internacional de Estudos Épicos (CIMEEP)/ Universidade Federal de Sergipe. Disponível em: <<www.cimeep.com>> Acesso: 20-07-2014.
41
Por peripécias, Moisés quis referir-se ao heroísmo épico clássico e
seus feitos grandiosos, aventureiros. Embora esse crítico literário defenda, assim
como este estudo, a presença obrigatória do maravilhoso na epopeia, “isto é, a
interferência dos deuses na ação dos heróis” (MOISÉS, 2007, p. 53), ele
compreende que o “plano dramático” pertence às esferas do gênero épico. Neste
artigo, por outro lado, compreendemos o poema épico obrigatoriamente como
uma composição em que o plano maravilhoso funde-se ao plano histórico, e os
dois fundidos em si mesmos, a engendrar o plano literário, de onde emana o
estético. Moisés chega a discriminar as atribuições de um possível analista que
venha a interpretar um poema épico – clássico ou não –, depois de ser alertado
para a presença da dupla instância lírico e narrativa dos versos:
(…) cabe-lhe orientar sua atenção no sentido da macroestrutura do poema (…). Por macroestrutura, entende-se o arcabouço que sustenta o poema todo, o modo como se engrenam suas partes maiores (introdução, narração e epílogo), formando a unidade do conjunto: o nexo entre as peripécias, o plano dramático, etc. (…) (IBIDEM, 2007, p.53)
A concepção de macroestrutura do poema épico, proposta por Moisés,
visivelmente rompe com as concepções conservadoras que apenas entendiam o
poema épico como uma cópia inautêntica do viés retoricamente clássico. Neste
estudo, “(…) identifica-se como épico ou epopeia todo poema longo que
desenvolva uma matéria épica por meio da dupla instância de enunciação lírica e
narrativa” (RAMALHO, 2013, p. 19). Nele ou nela estará a ação heroica integrada
somente aos seguintes planos: maravilhoso e histórico.
No entanto, não se deve confundir a matéria épica com a manifestação
épica ou com o texto épico. A matéria épica preexiste diante da macroestrutura do
poema épico. Explicando melhor, a matéria épica, em formação, “pode estar
42
configurada como uma unidade autônoma que faz e se dá pronta ao poeta, ou
apenas como epos, referenciais históricos e simbólicos dissociados no processo
de formação da tradição cultural, mas que podem ser unificados literariamente”
(SILVA e RAMALHO, 2007, p.54).
No primeiro caso, em que a matéria épica surge pronta para o poeta, já
estão configurados o plano histórico e mítico simultaneamente; já no segundo
caso, em que essa mesma matéria aparece no âmbito cultural, enquanto epos, é
mais visível o seu engendrar-se a partir do plano literário (SILVA E RAMALHO,
2007, p. 55). Sendo assim, após uma revisão conceitual de estudiosos que se
debruçaram sobre a investigação do gênero épico, depois de Aristóteles, como,
por exemplo, Emil Staiger, Cecília M. Bowra, Leo Pollmann, Gilbert Highet,
Ronald Daus, Lynn Keller, os pesquisadores Silva e Ramalho (2007) publicaram a
História da epopéia brasileira (2007) e reconstruíram a noção de matrizes épicas
que estariam ligadas aos discursos épicos e à Retórica. E assim definiram:
(…) A Retórica Clássica compreende quatro períodos definidos no curso da Civilização Ocidental, o da antiguidade greco-romana, o do Renascimento do século XVI, o do Neoclassicismo do século XVIII e do Realismo do século XIX; a Retórica Romântica compreende também quatro períodos, o da Idade Média, o do Barroco do século XVII, o do Romantismo do século XIX e o do Simbolismo/Decadentismo da virada do século XIX; e a Retórica Moderna compreende os períodos do Modernismo do século XX e o do Pós-Modernismo do final e virada do século XX. (SILVA e RAMALHO, 2007, p. 24)
Diante dessas novas propostas de recepção teórica à poesia épica, o
passado esquecido tem se preenchido, e a escritora Nísia Floresta tem sido cada
vez mais reconhecida entre o público leitor moderno e pós-moderno. O nome dela
é agora o mesmo nome do município onde ela nasceu, no Rio Grande do Norte;
as obras dela estão sendo aos poucos republicadas; estudos acadêmicos têm se
debruçado sobre a vida e obra dessa patriota. Em prova de reconhecimento
43
àquela primeira mulher que teve sua imagem num quadro de parede, após ser
reconhecida como primeira escritora abolicionista brasileira, na Fundação
Joaquim Nabuco, a Petrobrás anunciou Nísia Floresta como temática para a
realização do Projeto Memória 200639.
Buscando contribuir para esse resgate, esta pesquisa, através da
perspectiva da dupla semiotização do discurso épico (SILVA, 1984) apresentada
e dos conceitos da obra Poemas épicos: estratégias de leitura (2013), de
Christina Ramalho, investigou o poema A lágrima de um Caeté (1849), três vezes
publicado (em 1849, 1938, 1997), com foco no tema do heroísmo histórico
híbrido, elaborado pelo plano literário, atualizando a questão do indianismo
romântico brasileiro.
3.3 A lágrima de um Caeté (1849): a questão do indianismo romântico indigenista
Buscando contribuir para esse resgate, esta pesquisa, através da
perspectiva da dupla semiotização do discurso épico (SILVA, 1984) apresentada
e dos conceitos da obra Poemas épicos: estratégias de leitura (2013), de
Christina Ramalho, investigou o poema A lágrima de um Caeté (1849), três vezes
publicado (em 1849, 1938, 1997), com foco no tema do heroísmo histórico
híbrido, elaborado pelo plano literário, atualizando a questão do indianismo
romântico brasileiro. Pareceu-nos importante levar a estudantes do Ensino
Fundamental, mais especificamente do 9º (nono) ano, uma obra que revela o
índio de outra forma, a engendrar poemas longos e curtos, realçando aspectos de
uma sobrevivência que só pode ocorrer a partir do enfrentamento da única
39 Disponível em: << http://www.projetomemoria.art.br/NisiaFloresta/pro.html>>. Acessado em: 26/07/2014.
44
realidade possível: a fuga. Inclusive, de acordo com os estudos historiográficos de
Silva e Ramalho (2007):
O isolamento geográfico de sociedades indígenas, apesar de sido fator importante para a sobrevivência de sua cultura, promoveu um distanciamento cada vez maior dessas sociedades do percurso registrado como história do Brasil. (SILVA e RAMALHO, 2007, p. 287)
A fuga tornou-se uma atitude heroica diante da escravidão que foi
imposta às pessoas indígenas que ficaram. Em sua obra The making of new
world slavery (1997), traduzida para o português por Maria Beatriz de Medina, em
2003, o historiador Robin Blackborn, um britânico nascido em 1940, ao dissertar
sobre “A seleção da escravidão no Novo Mundo”, na primeira parte de sua obra, é
exatamente no quarto capítulo, ao tematizar “a ascensão do açúcar brasileiro”,
revela que, no ano de 1570, no Brasil, durante o governo de Mem de Sá (1557-
72), “havia apenas uns dois ou três mil escravos africanos nas povoações
portuguesas, comparados ao número dez ou quinze vezes maior de escravos
indígenas” (BLACKBURN, 2003, p. 207). Talvez os estudiosos que, mesmo
assim, não compreendam a fuga como um ato heroico, em se tratando de um
poema longo que tematiza um contexto sociocultural de colonização brutal dos
portugueses – e de seus aliados espanhóis com a União Ibérica (1580 – 1640) –,
com todo viés crítico necessário à literatura nacional brasileira, seja pelo simples
fato de ainda hoje afirmarem que não houve escravidão das tribos indígenas
durante a colonização europeia40. Um dado muito curioso, por exemplo:
Em 1571, o Engenho Sergipe, fundado por Mem de Sá, tinha 21 trabalhadores indígenas nas tarefas especializadas da fabricação de açúcar; em 1591 já não havia nenhum trabalhador indígena nessas
40 Segundo Blackburn (2003), no século XVI, no Brasil, “Índios ‘brutos’ eram vendidos por um escudo cada, em comparação com o preço de 13 a 40 escudos de um escravo africano; índios treinados para as plantações de cana ou nos engenhos eram vendidos por cerca de metade do preço dos africanos treinados (…)” (BLACKBURN, 2003, p. 207-208)
45
funções, e sim 30 africanos, dos quais treze ocupados nas tarefas básicas da fabricação de açúcar (…). (BLACKBURN, 2003, p. 208)
Com 712 versos, o poema longo A lágrima de um Caeté discursa sobre um
“vulto de um homem”, mais tarde identificado de modo épico como um índio
Caeté que viveu e que lutou contra a colonização portuguesa, ainda no século XV
e XVI. Esse índio surge no poema, depois de uma proposição nomeada de
“Avant-Propos” em forma de prosa, às margens do Rio pernambucano
Capibaribe:
Lá quando no Ocidente o sol haviaSeus raios mergulhado, e a noite tristeDenso ebânico véu já começavaVagarosa a estender por sobre a terra;Pelas margens do fresco Beberibe,Em seus mais melancólicos lugares,Azados para a dor de quem se aprazSobre a dor meditar que a Pátria enluta!Vagava solitário um vulto de homem,De quando em quando ao céu levando os olhosSobre a terra depois tristes os volvendo…(FLORESTA, 1997, p. 35)
Esse início em decassílabo já faz alusão às solenidades do poema épico
de um Camões, por exemplo. O texto prossegue com o herói Caeté que está com
sentimentos de vingança contra o invasor português. Disposto a deixar a mata do
Catucá, nas proximidades do Recife, o índio é interpelado pelo Gênio do Brasil.
Mas, como já se advertira ao leitor, no “Avant-Propos”, esse poema foi
severamente censurado em algumas partes, inclusive essa, em que, na primeira
interseção do Gênio do Brasil, parece. Como demarcação dessa censura, a
autora põe linhas pontilhadas, e, ao se ler o poema, percebe-se uma visível
fragmentação, um ar de estrofes incompletas.
46
O Caeté segue rumo à luta de modo consciente, em busca de se aliar a
inimigos dos portugueses, os revolucionários praieiros. Antes de isso acontecer, o
Caeté rememora lembranças de nomes de personagens históricos das revoluções
que ocorreram, três séculos depois da derrota da tribo dos Caetés.41 O índio, após
ouvir o grito de guerra “Eia, avante guerreiros!”, seguido de um grande estopim,
quando pode ver melhor a cena, depara-se com o herói morto Nunes Machado
(1809-1848)42, um dos líderes da Revolução Praieira.
O Caeté, que dignamente chora, recebe a presença do Gênio do Brasil, um
personagem bastante enigmático e mitológico, pertencente ao plano maravilhoso.
O gênio quer que ele desista da vingança, argumentando onipotentemente que
essa luta não seria a mesma luta do Caeté e de seu povo há séculos e que os
objetivos dos Praieiros eram políticos e partidários, diferentes dos seus, contra o
invasor luso.
Ainda não totalmente convencido, o Caeté vê sair da cidade, partindo em
direção à boca da mata, onde ele estava, duas personificadas figuras femininas: a
Realidade e a Liberdade. Primeiro vem a Realidade, com um rosto feio, que
causa horror ao Caeté, deixando-o receoso. Depois vem a Liberdade, descrita
como uma bela virgem, que o convida à batalha e à vingança. Quando o Caeté
tendia para aceitar a Liberdade como escudeira, a Realidade conseguiu vencer
pelo argumento, mostrando ao Caeté, através de palavras, que a Liberdade era,
na verdade, um ilusório caminho, fadado ao insucesso.
41 Os Caetés tornaram-se inimigos dos portugueses e fugiram ou foram extintos, durante a época colonial. Tornaram-se inimigos antropofágicos, já que provavelmente se uniram aos franceses, na Invasão Francesa, em 1555, no Rio de Janeiro, e quase quarenta anos mais tarde no Maranhão. 42Nunes aparece apenas como revolucionário no poema, morto durante a Revolução. Entretanto, muitos brasileiros sabiam que ele era deputado liberal e que morreu em batalha, inspirando o poema longo.
47
Enfim, triste, mas principalmente resignado por tomar a decisão certa de
não se vingar (por não haver como se vingar), já que a luta constituirá outra futura
derrota, diante do forte poderio bélico do opressor português, o canhão contra as
flechas, o herói Caeté resolve voltar à mata e terminar sua trajetória às margens
do Rio Goiana, buscando respostas para suas perguntas que, mais uma vez, o
revelam como um índio protagonista consciente.
Na antepenúltima estrofe, encontram-se os seguintes versos:
- Goiana!...clama ele ali vagando,Mais triste do que lá no Beberibe:Onde está teu Herói? o filho teu!43
- No céu…(IBIDEM, 1997, p. 56)
O heroísmo é dual, histórico e híbrido, como se verá daqui em diante. A
pergunta “Onde está teu herói?”, feita pelo Caeté, é justamente a que aqui tenta
se resolver. O eu lírico/narrador sabe da incapacidade de existir no Caeté o
heroísmo épico clássico.
Predominantemente lírico, contextualizado na concepção literária do
Romantismo, e com traços de oralidade, A lágrima de um Caeté teve sua
categorização estabelecida como épico, a partir da perspectiva da dupla
semiotização do discurso épico (SILVA, 1984). Encontrar uma interpretação
satisfatória para o heroísmo épico por meio de História da Epopéia Brasileira
(2007), de Anazildo Vasconcelos da Silva e Christina Ramalho, tornou-se uma
tarefa menos complexa. Na segunda parte, alertando para a importância
imprescindível do nacionalismo presente no texto, quando o assunto é epopeia,
Ramalho, ao debater sobre a questão do Mito, na poesia épica, afirma que, no
43 Depois do sinal interrogativo, na 4ª edição do poema longo de Floresta, vem letra minúscula mesmo.
48
Brasil, “nesse gênero, reúnem-se diversas manifestações que incluem as imagens
míticas étnico-regionais (…)” (SILVA& RAMALHO, 2007, p.285), como, por
exemplo:
(…) Prosopopéia, de Bento Teixeira, Caramuru, de Santa Rita Durão, O Uraguai, de Basílio da Gama, A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, A lágrima de um Caeté, de Nísia Floresta, Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, Cobra Norato, de Raul Bopp, Sociologia Goiana, de Gilberto Medonça Teles, ou Brasiliana, de Silvia Jacintho, só para citar alguns são exemplos desse enfoque. (Ibidem, 2007, p. 285-286)
O enfoque a que se refere a citação acima é o do recurso poético às
imagens míticas étnico-regionais, bastante presente na consolidação do herói
épico no poema de Nísia. O outro enfoque, do qual não participa A lágrima de um
Caeté (1849), segundo Ramalho, seria o daqueles poemas “que ampliam o
universo mítico étnico-regional brasileiro remetendo-o para o contexto mítico das
Américas. (…) (IBIDEM, 2007, p. 286). Com esse outro enfoque, há poemas
longos como O Guesa, de Sousândrade (1832-1902), Toda a América (1925), de
Ronald de Carvalho, A grande fala do índio guarani perdido na história e outras
derrotas (1978), de Affonso Romano de Sant’Anna, e Latinomérica (2001), de
Marcus Accioly.
Voltando ao poema nisiano, encontra-se uma estrofe que é uma peça
chave na análise do heroísmo que se apresenta como histórico (com o herói
Caeté e com Nunes Machado) e híbrido, pois, ao mesmo tempo em que é
individual, pela presença de personagens singulares, mas que de forma
metonímica, representam uma grande metáfora coletiva do brasileiro, apelidado
abaixo de “caboclo”:
Indígenas do Brasil, o que sois vós?Selvagens? os seus bens já não gozais…Civilizados? não… vossos tiranosCuidosos vos conservam bem distantes
49
Dessas armas com que ferido tem-vosDe sua ilustração, pobre Caboclos!44
(…) (FLORESTA, 1997, p. 39)
Partindo de uma fala autoral engajada, como se pode ver pelos
questionamentos acima, fazendo um percurso cíclico que inicia no plano
maravilhoso, segue pelo histórico e depois retorna ao maravilhoso, esse heroísmo
histórico híbrido, acentuado de forma crítica, já que dificilmente os excluídos
assumiriam o direito de ter voz e expor seus sofrimentos, remete o crítico a uma
revisão sobre a questão do indianismo romântico no Brasil.
Em Vozes épicas: história e mito segundo as mulheres, tese de doutorado
defendida pela UFRJ, em 2004, Ramalho faz um estudo dedicado aos poemas
épicos escritos por mulheres. Em seu capítulo X, temos uma referência ao poema
de Floresta aqui estudado que serve para a compreensão de como essa
construção do heroísmo histórico híbrido, no poema nisiano, atualiza o
indianismo:
(…) a epopéia de Nísia Floresta destaca-se no conjunto das produções românticas indianistas, pois abarca condições históricas opressoras e perversas não assinaladas, ao menos de modo tão contundente, em outras obras do Romantismo brasileiro. A projeção do fato histórico cultural na subjetividade de um índio alia a dimensão privada à coletiva, pois esse índio, simultaneamente, retrata os danos pessoais e coletivos gerados pelo processo de colonização portuguesa no Brasil.(…) (RAMALHO, 2004, p. 648)
São então duas dimensões: a privada e a coletiva que distinguem o
hibridismo, quanto à forma heroica. Como aparecem dois heróis, o Caeté e Nunes
Machado, um que foge e outro que luta e morre, é válido lembrar as seguintes
44 A metáfora “armas da ilustração” que fere aos “pobres caboclos”, é uma forte crítica ao estrangeiro e, ao mesmo tempo, aos brasileiros que, índios ou não, são homogeneizados como “caboclos”, ou seja, não haveria necessariamente no caboclo o sangue do índio, já que caboclo era uma designação genérica para a complexidade da mestiçagem brasileira em meados do século XIX.
50
palavras: " A lágrima é, pois, a única forma possível de conciliação dos dois
heróis, o que partira martirizado e o que, igualmente martirizado, ficara” (IBIDEM,
2004, p. 647).
A pesquisadora mineira Constância Lima Duarte esclarece melhor e
sinteticamente o que a autora Maria José de Queiróz, em sua obra Do Indianismo
ao Indigenismo – nas letras hispano- americanas (1962), em uma tese
apresentada à Faculdade de Filosofia da UFMG para a cátedra de Literatura
Hispano-Americana, em Belo horizonte, quis dizer com o termo técnico
indigenismo: “pretende tratar o índio como ele é” (QUEIROZ, 1962, p.95 apud
DUARTE, 1995, p.125). E, embora o poema nisiano não expresse um heroísmo
épico clássico (“Onde está teu Herói?”), mesmo assim, vale recordar aqui que o
herói grego Ulisses, no poema épico de Homero, capítulo X, após ser expulso por
Éolo ( Deus dos Ventos), encontra-se diante dos Lestrigões, monstros que
dominavam a ilha de Lemos, na Lestrigônia, e, sem poder enfrentá-los, para não
morrer, por ser bem mais fraco, assim como o Caeté diante dos portugueses
invasores, foge com seus sócios para escapar da morte, perdendo onze navios:
eu, arrancando da espada cortante , que ao lado pendiaLogo as amarras cortei do meu barco de proa anegradaE muito à pressa dei ordem aos meus companheiros, dizendoque a toda força remassem, por ver se da Morte escapávamos.(HOMERO, 2011, p. 198)
Se alguém quiser entender o porquê de se compreender que o poema
longo de Nísia Floresta, A lágrima de um Caeté (1849), pode ser considerado um
poema épico ou epopeia, aplicaria a esse poema certamente:
(…) o que Silva fixou como especificidade estrutural de um poema épico foi: a dupla instância de enunciação – narrativa e lírica, sem importar qual das duas seja predominante – e a existência de uma matéria épica, inerente à epopeia, na qual o plano histórico e o maravilhoso, integrados através da ação heróica, representam, respectivamente, a dimensão real
51
e a mítica (e sua fusão), ambas inerentes à experiência humano-existencial que motiva a criação poemática. As formas como a instância lírica e a instância narrativa incidem para a elaboração do texto épico e o modo como a matéria épica é apresentada variam sempre em função da concepção literária à qual determinado poema se prende. (…) (RAMALHO, 2013, p. 19)
Na perspectiva teórico-crítica aqui adotada, foi detectado que, no heroísmo
épico nisiano, além do histórico, marcado pela presença dos caetés e de Nunes
Machado, há intrínseco um heroísmo híbrido que perpassa por todo o poema.
Isso porque esses dois heróis, na verdade, são metonímicos, pois apontam
enquanto parte para todo um povo brasileiro e toda uma tribo indígena. Vê-se,
também, no poema, um Caeté consciente do seu destino, que precisa fugir do
invasor português como única opção de sobrevivência. O leitor é forçado a ver um
índio mais consciente, diferente de índios mais idealizados como o de Gonçalves
Magalhães (1811-1882) ou Gonçalves Dias (1823-1864). Por fim, em Nísia
Floresta e A lágrima de um Caeté (1849) encontra-se um texto que é
esteticamente bem mais do que um simples poema-manifesto da Revolução
Praieira (1848), como julgou erroneamente a crítica, segundo Constância Lima
Duarte (1995, p. 100), já que traça contornos indigenistas, de viés crítico-
engajado. O índio apresenta-se mais realista e mais consciente do que nas
correntes puramente indianistas do Romantismo brasileiro.
52
4 - DO CURTO AO LONGO: UMA EXPERIÊNCIA SIMBIÓTICA
Aqui, levamos em conta que “(…) estudar gramática não leva, nunca
levou, ninguém a desenvolver suas habilidades de leitura, escrita ou fala, nem
sequer seu reconhecimento prático do português padrão escrito” (PERINI, 2010,
p. 18)45. Partindo dessa premissa, não nos referindo em momento nenhum ao
ensino gramatical de modo investigativo e, assim, científico e não-dogmático,
perguntamo-nos sobre como desenvolver competências e habilidades referentes
à aptidão de um modo de ler mais competente, capaz de transformar leitores
iniciantes em leitores críticos e ativos?
Para o pesquisador Wilson Leffa (1996), os estudos metacognitivos, ou
seja, aqueles que refletem sobre o próprio ato de ler, não apenas sobre o
conteúdo explícito ou implícito, na leitura, poderiam ajudar na realização dessa
missão. Leffa defende que “O domínio dessas estratégias não é apenas um
conhecimento que o leitor já possui da língua, mas um conhecimento
complementar, que às vezes pode até compensar deficiências linguísticas do
leitor” (LEFFA, 1996, p. 65). E quase sempre compensamos essa ausência de
conhecimentos prévios, através da leitura de mundo anterior à leitura da palavra
textual, em um ensino que integra autonomia e pesquisa, segundo os princípios
mais sólidos ensinados por Paulo Freire (1921 – 1997).46
45 Buscando compreender melhor a importância do ensino gramatical, embora desprezando esse conservadorismo que predomina no ensino de regras gramaticais estereotipadas, incapazes de se sustentarem no cotidiano dos falantes, cultos ou não, Mário Perini argumenta que “(…) Se quisermos manter os estudos gramaticais na escola, temos que descobrir outra justificação para eles (…) a gramática é uma disciplina científica (…)” (PERINI, 2010, p. 18), exigindo de quem a ensina uma abordagem científica. 46 Em uma palestra sobre O papel da educação na humanização, realizada em 1967, na capital do Chile, Santiago, Paulo Freire ensinou o seguinte: “A concepção humanista, problematizante, da educação, afasta qualquer possibilidade de manipulação do educando.” Disponível em: <http://acervo.paulofreire.org/xmlui/bitstream/handle/7891/1127/FPF_OPF_01_0003.pdf>. Acessado em: 02/07/2014.
53
Para escrever este capitulo, precisamos transpor as fronteiras que
ligam as teorias acadêmicas aprendidas, em aulas de Mestrado Profissional, com
as práticas de ensino, mais precisamente, na escola pública em que somos
vinculados. Em particular, concentrei-me na realidade do Colégio Estadual
Arabela Ribeiro, Município de Estância, em pleno Estado de Sergipe, no Brasil.
A ideia de trabalhar as duas extremidades da produção poética, o
poema curto e o longo, com foco na temática indígena, envolvendo autoria
feminina, uma do século XIX, outra viva e em plena capacidade de criação,
nasceu tanto do desejo de tratar de tema importante no âmbito das questões
educacionais da atualidade quanto de expandir o contato dos estudantes com a
poesia, proporcionando-lhe duas experiências estéticas bem distintas, a leitura
crítica de poemas curtos e a de um poema longo, o que, a nosso ver, amplia e
potencializa a capacidade de leitura literária dos estudantes.
Quanto à sequência proposta, esclarecemos que o trabalho com os
haicais de Savary se insere na metodologia como uma “antecipação” à obra
nisiana, já que faz os estudantes mergulharem no universo léxico indígena e, ao
mesmo tempo, iniciar as reflexões sobre os valores culturais dessa natureza
étnico-temática. Todavia, a própria leitura crítica desses poemas envolve
“decifração” e “interpretação”, logo, a sequência com os poemas de Savary é,
simultaneamente, uma etapa de preparação para o trabalho com o poema
nisiano, e uma sequência completa em si mesmo, já que dela resultarão trabalhos
ilustrativos que demostrarão o envolvimento dos estudantes com as questões
nascidas das leituras analíticas realizadas em aula.
Assim, esquematicamente, temos:
54
Haicais de Savary
Sequência 1
Antecipação: leitura-estímulo do poema
Sequência 2
Decifração: leitura crítica dos outros 9 haicais
Sequência 3
Interpretação: registro interpretativo, sob forma de ilustrações dos
poemas lidos e analisados
Epopeia de Nísia floresta
Sequência 1
Antecipação: todo o processo anterior com os poemas de Savary,
despertando os alunos para as questões indígenas + reflexões básicas sobre o
poema longo, em linguagem simples, mas esclarecedora em relação às ideias
contidas no “épico”.
Decrifração: leitura analítica do poema
Sequência 3: registro interpretativo, sob forma de ilustrações de
trechos do poema que se relacionem mais diretamente às questões indígenas.
No final do processo, esperamos ter reunido material para possível
edição de publicação com os poemas ilustrados.
55
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria acadêmica, com muito zelo, foi por nós, os pós-graduandos da
Universidade Federal de Sergipe (UFS), Campus de Itabaiana, aprendida (ou
apreendida) com ensinamentos no qual fizeram discursos um corpo docente,
qualificado por doutoras e doutores concursados (as), sob a tutela das
orientações acadêmicas estabelecidas pela coordenação do Prof. Dr. Carlos
Magno Gomes, com auxílio do Colegiado formado por estudantes e professores,
durante o período de agosto em 2013 ao de agosto em 2015, os anos esses
letivos, levando-se em consideração o nosso curso conhecido como Mestrado
Profissional em Letras (PROFLETRAS). Esse Mestrado Profissional é oferecido,
em nível nacional, por sua vez, sob a coordenação nacional da Prof.a Dr.a. Maria
das Graças Soares Rodrigues, representando a Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN).
Neste momento de qualificação, sabemos ser ímpar a oportunidade de
recebermos a contribuição dos olhares atentos de mais dois professores-
doutores, que, a partir do que até aqui foi desenvolvido, poderão avaliar o
encaminhamento do projeto em execução.
Para finalizar, esclarecemos que, em termos de cronograma de
desenvolvimento das partes ainda incompletas, projetamos dedicar os próximos 2
meses à análise críticas dos haicais de Savary, os três meses seguintes à
complementação da metodologia, discriminando, em detalhes, todas as etapas
das sequências didáticas propostas; e, nos meses finais, aplicarmos a
metodologia em uma turma de 9.o. ano do Ensino Fundamental, de modo a
termos, no trabalho final, registrado como a proposta se realizou na prática.
56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALLIENDE, Felipe & CONDEMARÍN, Mabel. A leitura: Teoria, avaliação e desenvolvimento. Trad. Ernani Rosa- Porto Alegre, Artmed, 2005.
BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? – um convite à pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Parábola editorial, 2004.
BORTONNI-RICARDO, Stella Maris. Educação em Língua Materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
BORTONNI-RICARDO, Stella Maris. Professor pesquisador: introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
BRASIL, SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. Parâmetros Curriculares Nacionais: Orientações curriculares para o ensino médio. MEC/SEB, Brasília, 2006.
BRASIL. Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBs).Brasília: MEC,1996.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: (idade da fábula): história de deuses e heróis. Trad. David J. Júnior. 11ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
CANDIDO, A. O estudo analítico do poema.São Paulo:Humanitas, 2006.
CEREJA, William Roberto. Ensino de Literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com literatura. São Paulo: Atual, 2005.
CHIAPPINI, L. Literatura: como? por quê? para quê? In: _____. Reinvenção da catedral. São Paulo: Cortez, 2005.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1986.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007.
D’ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário.São Paulo: Ática, 2007
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo, 1985.
ECO, U. Interpretação e Superinterpretação. Trad. Mônica Stahel. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ECO, U. Teoria Geral da Semiótica. Trad. Antônio de Pádua Danesi e Gilson Cesar Cardoso de Souza. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
57
FUNARI, Pedro Paulo; PINÓN, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1996. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/espanhol/pdf%5Cpedagogia_da_autonomia_-_paulofreire.pdf . Acessado ; 22/12/2013.
GENS, Armando. Formação de professores de literatura brasileira: conservação e desvio. In: GOMES, Carlos (Org.). Língua e literatura: propostas de ensino. São Cristóvão: Editora UFS, 2009, p. 65-80.
GENS, Rosa; SANTOS, Leonor Werneck dos; MARTINS, Georgina. (Orgs.) Literatura infantil e juvenil na prática docente. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 2010.
GERALDI, J. W. (Org.). O texto na sala de aula. Cascavel, PR: Assoeste, 1985.
GOMES, Carlos (Org.). Língua e literatura: propostas de ensino. São Cristóvão: Editora UFS, 2009.
JAUSS, H. R. A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, L. C. (Coord., sel., notas). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
KLEIMAN, Ângela B. Leitura: Ensino e pesquisa. São Paulo: Pontes, 2004.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2006.
MELO, Edsônia de S. O.; OLIVEIRA, Paulo W. M.; e, VALEZI, Sueli C. L. Gêneros Poéticos em interface com gêneros multimodais. In: Multiletramentos na escola. Roxane Roxo (org.). São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Anuário Brasileiro da Educação Básica 2013. São Paulo: Moderna, 2013. Disponível em: http://www.todospelaeducacao.org.br/biblioteca/1479/anuario-brasileiro-da-educacao-basica-2013/ . Acessado: 04/10 2013.
MOISÉS, Massaud. A análise literária. 18ª ed. São Paulo: Cultrix, 2007.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. Cultrix, São Paulo, 1974.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: poesia. 16ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
OLIVEIRA, Luciano Amaral. Coisas que todo profesor de português precisa saber: a teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
58
OSAKABE, H.; FREDERICO, E. Y. Literatura. Orientações curriculares do ensino médio. Brasília: MEC/ SEB/ DPPEM, 2004.
PAULINO, G. Letramento literário: por vielas e alamedas. Revista da Faced, n. 5. Salvador: Faced/ UFBA, 2001. PERINI, Mário. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Parábola
editorial, 2010.
PERRONE-MOISÉS, L. Crítica e intertextualidade. Texto, crítica e escritura. São Paulo: Ática, 1993.
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Trad. Maria Alice Magalhães D’Amorim e Paulo Sérgio Lima Silva. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
RANGEL, E. O. Letramento literário e livro didático de Língua Portuguesa: ‘Os amores difíceis’. In: PAIVA, A.; MARTINS, A.; PAULINO, G.; VERSIANI, Z.(Org.) Literatura e letramento. Espaços, suportes e interfaces. O jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica/ Ceale/ FaE/ UFMG, 2003.
MOISÉS, Massaud. A análise literária. 18ª ed. São Paulo: Cultrix, 2007.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. Cultrix, São Paulo, 1974.
RAMALHO, Christina. Elas escrevem o épico. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2005.
RAMALHO, Christina. Vozes épicas: história e mito segundo as mulheres. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Tese de Doutorado.
RAMALHO, Christina. Poemas épicos: estratégias de leitura. Rio de Janeiro: Uapê, 2013.
ROMERO, Sílvio. Literatura, história e crítica. Luiz Antônio Barreto (org.). Rio de Janeiro: Imago Ed.; Aracaju - Se: Universidade Federal de Sergipe, 2002.
SAVARY, Olga. Hai Kais. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1986.
SILVA, Anazildo Vasconcelos. Semiotização literária do discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984.
SILVA, Anazildo Vasconcelos. Formação épica da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Elo, 1987.
SILVA, Anazildo Vasconcelos; Ramalho, Christina. História da Epopéia Brasileira: teoria, crítica e percurso. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
59
SILVA, Anazildo Vasconcelos. Quem canta comigo: representações do social na poesia de Chico Buarque. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
SANTAELLA, Lúcia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano. In: Revista FAMECOS, no 22. Porto alegre: 2003. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/3229/2493 . Acessado: 05/01/2014.
SANTAELLA, Lucia e NÖRTH, Winfriend. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: iluminuras, 2008.
TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
XAVIER, A. C. A Era do Hipertexto: linguagem e tecnologia. Recife:Editora da UFPE, 2009.
ZILBERMAN, Regina. A leitura no mundo digital.Revista Signo, Santa Cruz do Sul, v. 34 n.56 p. 22-32, jan./jun. 2009. Disponível em: http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/viewFile/960/681.Acessado: 20/09/2012.
ZILBERMAN, Regina. Leitura: dimensões culturais e políticas de um conceito. In:.Revista Nonada. Ano 15, n. 18, p. 47-70. Porto alegre: 2012. Disponível em: <http://seer.uniritter.edu.br/index.php/nonada/article/view/528/313>. Acessado:04/10/2013.
60
ANEXO 1 - Haicais pré-selecionados de OLGA SAVARY47
HAI-KAIS (1975-1986)(Inéditos do livro REPERTÓRIO SELVAGEM)
Teipó
Tudo o que seiaprendi da água, ela diz.E arde sem saber. (SAVARY, 1986, p. 79)
TEIPÓ, em Tupi, significa FINALMENTE.
Enuçaua
Culpa sem falta e sem volta,só sobrevivo entre aurorasse o perigo é o que amo na vida natural. (SAVARY, 1986, p. 80)
ENUÇAUA, em Tupi, significa POSTURA.
Uaruá / Caápura
De tanto perseguir-te mato adentroo que deixo de meus passos pela trilhaé confundir teu rastro no meu rastro. (SAVARY, 1986, p. 85)
UARUÁ/CAAPURA, em Tupi, significa ESPELHO /DENTRO DO MATO.
Umbueçaua
De coisas plenas melhornão fazer alarde. Amorque mais é senão gorjeta? (SAVARY, 1986, p. 94)
UMBUEÇAUA , em Tupi, significa AULA.
Mairamé
Amor é de se ver comoreligião ou uma prisão.Afinal tenho uma. (SAVARY, 1986, p. 95)
MAIRAMÉ , em Tupi, significa QUANDO.
47 Digitalização e notas de rodapé realizadas pelo mestrando da Universidade Federal de Sergipe (UFS), campus Itabaiana, pelo programa de mestrado profissional em Linguística (PROFLETRAS 2013/2 à 2015/2) Waldemar Valença Pereira e orientado pela professora Dra. Christina Ramalho. No ano de 2014, primeiro semestre.
61
Amurupe
Ao mar, ao mar – diz o velame à naveao levar a confundida cabeça: Eu não te amoamo só o prazer que tu me dás. (SAVARY, 1986, p. 97)48
AMURUPE , em Tupi, significa DIFERENTE.Iaraqui
Vampiro, em uma tardebebo-te todo o sangueda vida. (SAVARY, 1986, p. 98)
IARAQUI , em Tupi, significa BEBIDA INEBRIANTE.Uíre
Não sou esfinge, mas daqui não saio.E vivo estátua de sal?Não: de mel. (SAVARY, 1986, p. 100) UÍRE , em Tupi, significa VIR À TONA.
Aetecupi
Dois ventres destilam licores rarosno momento final de êxtase e horrorE quatro olhos vêem a beleza do náufragio. (SAVARY, 1986, p. 103)
AETECUPI , em Tupi, significa ASSIM SIM.Catuana
Sangria desatada.Vais me diluviandoaleluiada. (SAVARY, 1986, p. 116)49
CATUANA , em Tupi, significa PAZ.
48 Após os dois pontos, por decisão pessoal, provavelmente por aludir a uma iniciação de um novo discurso, mesmo que sem aspas, a poetisa utilizou letra maiúscula após dois pontos.49 Este poema estabelece, entre outras interpretações como as de batalha e lutas sangrentas, já que pertence ao repertório do livro “Repertório Selvagem” (Ano), uma grande metáfora com a menstruação do eu-lírico feminino que agora, mais de um século depois de Nísia Floresta e sua epopeia A lágrima de um Caeté (1849), esse eu-lírico pode ser ressignificado com a voz feminina no discurso lírico ou épico.
62
ANEXO 2 – A lágrima de um caeté
A LÁGRIMA DE UM CAETÉ (1849)
Autora: NÍSIA FLORESTA (1810-1885)
Avant-Propos
O infeliz Caeté, apesar de ter chegado a esta corte no mês de Fevereiro logo depois da revolta dos Rebeldes em Pernambuco, é somente agora que lhe permitiram aparecer, e isto depois de o terem feito passar por mil torturas inquisitoriais! ... Graças à benfazeja mão, que o fez renascer, qual Fênix, das cinzas a que o haviam ou queriam reduzir!
Lá quando no Ocidente o sol haviaSeus raios mergulhado, e a noite tristeDenso ebânico véu já começavaVagarosa a estender por sobre a terra;Pelas margens do fresco Beberibe,Em seus mais melancólicos lugares,Azados para a dor de quem se aprazSobre a dor meditar que a Pátria enluta!Vagava solitário um vulto de homem,De quando em quando ao céu levando os olhosSobre a terra depois tristes os volvendo…
Não lhe cingia a fronte um diadema,Insígnia de opressor da humanidade…Armas não empunhava, que os tiranosInventaram cruéis, e sob as quaisSucumbe o rijo peito, vence o inerte,Mata do fraco a bala o corajoso,Mas deste ao pulso forte aquele foge…Caia-lhe dos ombros sombreadosPor negra espessa nuvem de cabelos,Arco e cheio carcaz de simples flechas:Adornavam-lhe o corpo lindas penasPendentes da cintura, as pontas suasseus joelhos beijavam musculosos50
50 Verso que termina sem pontuação no livro de Constância Lima Duarte.
63
Em seu rosto expansivo não se viamOs gestos, as momices, que contraiA composta infiel fisionomiaDesses seres do mundo social,Que devorados uns de paixões feras,No vício mergulhados falam outros,Altivos da virtude, que postergamDe Deus os são preceitos quebrantando!Orgulhosos depois…51 ostentar ousãoDe homem civilizado o nome, a honra!...52
Não era um homem destes o que láSolitário vagava meditando,Como aquele, que busca uma lembrança,Uma idéia53 chamar, que lhe recordeUm fato anterior da vida sua,Vivamente um lugar, que já foi seu,Do qual o Despotismo o despojara…
Era um homem sem máscara, enriquecidoNão do ouro roubado aos iguais seus,Nem de míseros africanos de além mar,Às plagas brasileiras arrastados54
Por sedenta ambição, por crime atroz!Nem de empregos que impudentes vendem, A honra traficando! o mesmo amor!!55
Mas uma alma, de vícios não manchada,Enriquecida tinha das virtudesQue valem muito mais que esses tesouros.
Era da natureza o filho altivo,Tão simples como ela, nela achandoToda a sua riqueza, o seu bem todo…O bravo, o destemido, o grão selvagem,
51 Será uma ruptura com padrões clássicos a poetisa escrever letra minúsculas após o uso do sinal de pontuação das reticências? No original de CLD está com letra minúscula. 52 O exagero da pontuação, com dois sinais de pontuação (a exclamação e as reticências) em semiose, atesta um discurso romântico com retórica romântica. 53 Ideia está no texto original de CLD com acento, de acordo com a norma ortográfica vigente até o ano de o novo código ortográfico54 Observar que a poetisa utiliza muitos jogos de masculinos versus femininos na estruturação do poema. Isso reflete-se atraves de hipérbatos (inversão de ordem sintática da frase do sujeito ao predicado, terminando com os adjuntos adverbiais ou adnominais) e jogos de concordância nominal entre substantivos que são associados pelas questões de número (singular e plural), em meio às questões de gênero (masculino e feminino). Por exemplo: “brasileiras arrastados”.55 No original, depois das reticências vem letra minúscula. Seria possível investigar o por quê? Seria também possível associar o início dos versos com letras maiúsculas com um recurso de glamour, embelezamento estético, puro arranjo ornamental ou associar a uma ruptura com os padrões clássicos que não permitem a letra maiúscula, quando a frase não foi ainda acabada e por isso o recurso do “enjambement”? Pesquisar mais sobre o assunto.
64
O Brasileiro era… - era um Caeté!
Era um Caeté, que vagavana terra que Deus lhe deu,Onde Pátria, esposa e filhosEle embalde defendeu!...
É este… pensava ele,O meu rio mais querido;Aqui tenho às margens suasDoces prazeres fruído…
Aqui, mais tarde trazendoNa alma triste, acerba dor,Vim chorar as praias minhasNa posse de usurpador!
Que de invadi-lasNão satisfeito,Vinha nas matasFerir-me o peito!
Ferro nos trouxe,Fogo, trovões,E de cristãosOs corações
E sobre nós Tudo lançou!De nossa terraNos despojou!
Tudo roubou-nos,Esse tirano,Que o povo diz-seLivre e humano!
Filho se dizDe Deus PotenteDe quem profanaA obra ingente!
Ó terra de meus pais, ó Pátria minha!Que seus restos guardando, viste de outrosLongo tempo a bravura disputarAo feroz estrangeiro a Pátria nossa,A nossa liberdade, os frutos seus!...
65
Recolhe o pranto meu, quando dispersosPelas vastas florestas tristes vagamOs poucos filhos teus à morte escapos56,Ao jugo de tiranos opressores,Que em nome do piedoso céu vieramTirar-nos estes bens que o céu nos dera!57
As esposas58, a filha, a paz roubar-nos!...Trazendo d’além-mar as leis, os vícios,Nossas leis e costumes postergaram59!
Por nossos costumes singelos e simplesEm troco nos deram a fraude, a mentira.De bárbaros nos dando o nome, que delesNa antiga e moderna História se tira.
Maldito, ó maldito sejas60
Renegado Tapeirá!...Teu nome em nossas florestasEm horror sempre será!
Tabajaras miserandos61! Raça escrava!Que a voz incautos desse chefe ouvisteMandando exterminar os irmãos teus,Para um povo estrangeiro auxiliar!O anátema do céu feriu-te, ó mísera!
Para ele um país conquistaste:Em paga te deu ele a ignomínia!!
Em eterno desprezo eis-te62 esquecido,Como estão tantos outros teus iguais!Que perdendo na Pátria os seus costumes,As vantagens não gozam desses homens,A quem sacrificaram Pátria, honra!...
56 Refletir sobre a palavra “escapos”, qual sua Morfossintaxe.57 A visão panteísta modificada por uma visão monoteísta que contradiz o céu com a terra, em forma de um espírito barroco.58Possivelmente há aqui uma alusão a poligamia, observe o binômio singular x plural na forma “esposas” x “filha”, o que não justificaria apenas o uso de uma voz coletiva monogâmica. Abre-se brechas para a percepção do indigenismo? Pesquisar mais sobre o assunto.59 Analisar o sentido de “postergaram” neste verso e um pouco mais acima, na 3ª estrofe, onde lê-se:“Altivos da virtude, que postergam”, parece haver polissemia e situação antitética. Pesquisar sobre.60 O uso do pronome “tu”, no século XIX; o uso do “você”, no século XX; e, agora, a escrita “vc” nos meios digitais de redes sociais na internet, merecem provavelmente um pequeno debate.61 A autora, pertencente à sua época, provavelmente distingue bem “miserando” de “esmolés”. Pesquisar mais sobre esses dois termos.62 Forma presente do verbo haver. Pesquisar mais.
66
Indígenas do Brasil, o que sois vós?Selvagens? os seus bens já não gozais…63
Civilizados? não… vossos tiranosCuidosos vos conservam bem distantesDessas armas com que ferido tem-vosDe sua ilustração, pobre Caboclos!64
Nenhum grau possuís!... Perdeste tudo,Exceto de covarde o nome infame…
Dos Caetés os manes vingados estão!Desse Camarão, também renegado,Que bravo guerreiro a Fama65 apregoa,O título de nobre lá jaz desprezado!
Nobreza, que o crimeAudaz transmitiuaquele que aos seus66
Cruel perseguiu;Somente sorrisoDe mofa devia,Excitar depoisQue já não vivia;
E que de seu braçoCruel parricidaMais não precisavaUm Liberticida:Um vil estrangeiroCom quem se aliou,E de seus irmãos
63 Além da letra minúscula, possível ruptura da retórica romântica, no discurso épico, é bom compreender a relação “bens” com grande efeito estético, pois essa palavra é revestida de um teor materialista para o estrangeiro e essencialista para os/as índios (as). Daí mesmo é que emana a relação romântico-crítica, aparentemente, anti-romântica, de “bens/propriedade privada” e “gozo/capitalismo egoísta”; mas, quando interpretada pela semiótica literária na perspectiva de um povo enquanto um signo literário, proveniente do signo linguístico relativo a povos indígenas, aqui no poema épico de Nísia Floresta, deve-se associar a ideia de “bens”, enquanto “propriedade coletiva” e de “gozo”, por sinônimo aproximado para socialismo e heroísmo épico”. Tanto é que os Tabajaras, antagonistas no poema ao lado dos estrangeiros portugueses, não desfrutaram do “gozo”, ou seja, do heroísmo épico. Em outras palavras, o Caeté adquire o heroísmo épico que categoriza-se como um heroísmo híbrido histórico, ou seja, num plano individual e coletivo, num percurso que vai do histórico ao maravilhoso, sob a ação heróica de feitos bélicos e políticos. 64 A metáfora “armas da ilustração” que fere aos “pobres caboclos”, é uma forte crítica ao estrangeiro e, ao mesmo tempo, aos brasileiros que, índios ou não, são homogeneizados como “caboclos”, ou seja, não haveria no caboclo o sangue do índio, já que caboclo era uma designação genérica para a complexidade da mestiçagem brasileira em meados do século XIX.65 Por que Fama é escrito com letra maiúscula? Pensar sobre a possibilidade de personificação e sobre a existência mitólógica da “Fama”.66 Não entendeu-se bem porquê desse verso iniciar com letra minúscula. Erro tipográfico?
67
O bem lhe outorgou!
Dos Caetés os manes vingados estão!Em triste abandono, sem Pátria, sem bens,Às cegas seguindo a voz de um senhorPureza e costumes perdido tu tens!...67
Dos Caetés os manes vingados estão!Aqui neste solo a nós arrancado,Tem vindo outros povos também d’além-marAos nossos tiranos o tem usurpado!
Dos Caetés os manes vingados estão!Como nosso sangue, o sangue correuNas mãos do Batavo seu poder caiu!Como nós o dele seu julgo sofreu...
Dos Caetés os manes vingados estão!Curvaram-se os Lusos da Ibéria ao poderGemeram, choraram, por anos sessenta!Quis Deus ao opróbio fazê-los descer…
Mais tarde se viuOs seus descendentesContra eles se armarem;Pô-los em correntes!Alguns filhos seusQue crime! que horror!68
Cruéis lhe mandaramA morte, o terror!...
Assim pune Deus um crime com outroQuem fere, quem mata, ferida ou a morteRecebe de mão feroz como a sua…É esta dos homens, das nações a sorte.
Conosco cruelFoi uma nação,Lançou-lhe o Eterno69
Sua maldição
67 Pode-se ver metáforas do índio idealizado romântico, mas aqui neste poema, os índios chamados manes (antagonistas) perderam a guerra ao se aliar com o povo português e ser por ele dominados.68 Original vem com letra minúscula após o sinal indicativo de exclamação.69 A personificação da palavra “eterno”, referente provavelmente para uma ação mítica, de uma mística monoteísta, que, ao aparecer com letra maiúscula “Eterno”, no texto original, remete o leitor ao plano do maravilhoso, além dos outros dois planos: histórico e literário.
68
Depois de seus filhosO braço se armou,Em seu próprio sangueO crime lavou!70
Injustos! ingratos!71
Vai ela bradando;A seus descendentesSeu mal exprobando.
Não vês, ó Luso povo, em teu sofrerDo Onipotente o dedo, que te apontaO mal, que sobre nós lançado tens,No mais de séculos três? oh dor pungente!Oh lembrança fatal de males tantos!…………………………………………….
Onde as choças estão, simples asilo,Santuário feliz de nosso amor?Onde as frondosas árvores, cujos ramosFagueiros balouçavam inclinadosSobre as águas dos nossos prediletosMelancólico-amoroso Beberibe,Capibaribe undoso, que abraçandoSe vão em sua foz, já não sorrindo,Como outrora faziam, mas do prantoEngrossado dos filhos seus instintos,Gemendo confundir-se nos bramidosDo terrível-majestoso Atlântico?!...72
70 A expressão “lavar o crime”, durante o século XIX, assim como no século XX e XXI, teria o sentido coloquial e formal e o verso de Nísia Floresta um tom de oralidade: “o crime lavou!”, com direito a um uso de sinal de pontuação exclamativo, apesar do hipérbato que permeia a estrofe em redondilha menor impecavelmente, ou seja, paradoxalmente, cometendo o crime da métrica em meio ao estilo romântico de cunho histórico-crítico.71 No texto original vem com letra minúscula. Será que, se confirmando a devida tipografia usual aqui, com os textos revisados criticamente de Constância Lima Duarte, poderia ser também, além dos motivos de rebeldia românticos na forma e nas regras de pontuação, paradoxalmente aos versos iniciarem sempre com letra minúscula, enfim um caso de desmerecimento não tornar maiúsculas a letra em palavras que tornam-se expressões de desabafo: “ingratos!”. Em outras palavras, o “Injusto!” só teria aparecido com letra maiúsculas por ser do princípio estilísticos de iniciar os versos assim. Por outro lado, são “injustos” e são “ingratos”, ou seja, além de não personalizados, os portugueses ocupam o papel de colonizadores e são maldizidos por “ela”, a “nação”, que de certa forma, apresenta-se como centro do plano histórico. Seria a nação a “Pátria”, a mesma que sempre surgindo com letras maiúsculas.72 Uma ótima imagem a ser trabalhada a nível de interpretação: Vai das choças ao rio Beberibe/Capibaribe e termina no par singular “terrível-majestoso” para um oceano, que o leitor do Ensino Fundamental terá o pleno direito de desafiar o professor a explicar a possibilidade de personificação na palavra “Atlântico”. A letra maiúscula seria para determinar substantivos próprios apenas? Acredita-se que Nísia Floresta, mesmo tendo sofrido impáctostipograficos, pois seu texto ficou a mercê de publicação e de reedições, que só veio a ressurgir em 1938. (BARBOSA, 2006,
69
Quanta vez, oh, lembrança doce-amarga!Depois de longa pesca fatigado,Ou voltando das selvas, onde eu iaAs feras perseguir, alegres vinhamA meu encontro aqui, a esposa, os filhos73
Oferecer-me felizes os seus cuidados!...Venturoso em triunfo me levavamAo tosco asilo nosso, onde maiorQue um Pagé74 me julgava, onde TupãNosso puro prazer abençoava,Nosso amor de selvagem tão ditoso75!
Amor de selvagem,Amor venturoso,Teu riso amorosoÉ d’alma expressão.
Mentir tu não sabes,Não sabes fingir,Só sabes fruirSeus doces prazeres.
Se Anhangá76contra nós mandava o mal,Para longe a cabana transferíamos;Nossas eram as matas, suas frutas,Seus regatos, seus rios, tudo eraPropriedade nossa… A NaturezaPor toda a parte bela nos sorria-nos…Sorria-nos o amor, o céu sorria-nos…
Onde estão, fero Luso ambicioso,Estes bens, que eram nossos?Porangaba77 perdi, perdi os filhos; Ai de mim! inda vivo!!Com a Pátria lá foram esses tesouros!
p. 30)73 Hoje, sabendo-se que o índio, até mesmo na mesma tribo, era dividido entre monogamias e poligamias, sendo diferente seu conceito de adultério em relação aos portugueses colonizadores, em nada desafeta o comentário anterior sobre a alusão possível à poligamia. Sabendo que Nísia era uma poetisa de esquerda, muitas vezes podia criar falsos golpes de vista no leitor, como crítica implicita à familia patriarcal feliz. 74 No original com “g”. Pagé, e não “Pajé”. Pesquisar a ortografia ao longo dos anos dessa palavra.75 O amor do eu lírico/narrador (índio) não é sublimado, mas sim carnal, prazeroso, até mesmo, e por que não, erótico, dionisíaco.76 Plano maravilhoso, mitologia indígena. Pesquisar sobre a divindade Anhangá, antagonista de Tupã.77 Segundo Constância Lima Duarte, Porangaba é um nome para mulher de indígena, que no poema seria a esposa do Caeté.
70
O pranto só me resta!...78
Só me resta um sentir, um só desejo, Desejo de vingança!Vingança de selvagem tão tremenda, Tão nobre como ele!
Não vingança de balas despedidas Pela mão do assassinoMiserável covarde, que não ousa De frente acometer!Nem de ferro à traição, que ao bravo priva79
De uma vida de glória!!
Mais nobre, que o selvagem das cidades, As armas ocultando,O selvagem dos bosques se apresenta A peito descoberto…
Vingança contra os tiranosQue a nossa terra tomaram!Que com perfídias e com astúciasAlguns dos nossos armaram!Com eles pereça a glóriaNos anais de sua história!80
78 Destaque para duas questões estéticas de valor literário aguçado: a primeira, essa transformação metamorfoseada do eu lírico/narrador que virá um nós, que assume polifônico, assume a voz do índio, da poetisa, dos revolucionários brasileiros; e, em segundo lugar, a ideia bem posta da reticências concedendo a ideia de “pranto”, possivelmente, uma duração/longevidade (o pranto é do século XV ao XXI) e uma profundidade/autenticidade (o índio é digno de pranto, diferente do estrangeiro que invade a terra chamando-a de Brasil, destruindo a organização social coletiva indígena, em nome de um agir colonizador materialista do Despotismo)79 A vírgula, transformando a oração adjetiva restritiva, ou seja “que priva o bravo de uma vida de glória”, em oração adjetiva explicativa, Nísia mostra que está a explicar o que seria uma “traição de ferro”. Após desfeito o hipérbato, no final da estrofe, o objeto direto preposicionado “transforma-se” (retorna à condição de) em objeto direto: “ao bravo” em “o bravo”. “Privar alguém de algo” ou “privar algo de alguém”, com embasamento mais que jurídico aqui em Nísia Floresta, NÃO funcionaria na forma atual do verso com dois objetos indiretos (privar ao bravo, privar de glórias) com diferentes ligações prepositivas. 80 Acredito que Nísia, como educadora, sabia desse duplo sentido da palavra “Anal”/”Anais”. Num primeiro momento significando conjunto de documentos escritos e científicos (“Os anais de sua história”), para, já demonstrando isso com a inicial minúscula de “História”, um sentido mais pejorativo, mais vingativo, mais sexual, talvez como forma do eu lírico/narrador encontra para expurgar a repressão sexual sofrida pelos indígenas com termos do colonizador, que ambíguos, demonstram crítica implicita ao “anal” que vem de “anus” e que remete à noções, não só do alívio fecal humano, mas principalmente, à ideia de o alívio ser implicitamente não mais que o acúmulo de sujeira ou fezes. Uma metáfora possível para “anais da história” seria, então, “fezes da história”, pois esses anais da História seriam construídos pelos colonizadores, sem fundo crítico.
71
Sobre os nosso opressoresMande o céu seu raio ardente!E na pátria dos Caetés Sofram eles dor pungente!Mas dor tão grande, que possaFazê-los lembrar da nossa!...
Então talvez um remorsoLhes entre no coração,Pelos males que trouxeramÀ nossa feliz nação!E de seu peito um gemidoCruel se escape o dorido!
Sentirá talvez aindaTardio arrependimento!Correrá à igreja suaA minorar-lhe o tormento81:E nela crê ele acharO céu que buscou calmar!...82
Mas o céu não deu ao homemDe perdoar o poder,Quando o homem à humanidadeBarbaramente fez sofrer!Se assim não pensa o cristão,Não tem ele um coração!83
Mas hipócrita, fanáticoÉ esse povo somente,Quando diz que o céu clementeAo homem deu tal poder!...Iria o mau cometer
Terrível crime nefandoA salvação esperandoDa mão do homem da terra
81 Pesquisar um pouco mais sobre a forma verbal “minorar”, usada com ou sem o pronome “lhe”. 82 Nesta estrofe, a crítica aos valores religiosos dos colonizadores brancos com suas igrejas e crenças que não serviram para sossegar/acalmar a dor na hora da vingança que cairá sobre eles. Interessante ver que a palavra calma (substantivo) forma verbos derivados como “calmar” (verbos), que possui um significado próximo do verbo “acalmar”. A mudança, embora mantenha o ritmo métrico da estrofe, toda ela formada por versos com redondilhas maiores, repercute diretamente na acentuação do tom de oralidade desta e de outras epopeias.83 Pode-se notar, se por um lado uma Nísia Floresta cristã, que sempre faz alusão a um ato cristão generesos, diferente daqueles atos praticados pelos colonizadores “que não tem coração”, ou seja, generosidades, por outro lado, há no eu lírico/narrador, intencionalmente e indiretamente uma valorização da divindade indígena Tupã e uma forma de ecumenismo religiosos, ou seja, o deus monoteísta nivelado aos deuses politeístas pelos ideais da “Bondade, Força e Coragem”.
72
Que a santa vontade encerraEm seu mundo miserando!...
Lamenta povo infeliz,Em tua hora finalA tantas nações estranhasTeres feito tanto mal!
E lá da borda do túmuloA nação tua deplora,Que em decadência jazendoSe debate, geme e chora!...
Se ambiciosa não forasTerras d’África conquistar,Teu jovem rei não veriasSem dinastia acabar!
Do fanatismo os teus filhosTriste presa não seriam,Nem no teu solo os seus padresA fogueira acenderiam.84
Mas buscando estranhas terrasTu crias85 correr à glória,Tão falsa como te achasPequena hoje na história.
Outras nações guerreandoTe esqueceste de ilustrar86
A tua, que jaz pobre,Nas trevas, próxima a expirar.
Ó gênio do Brasil, às plagas tuasVolta… oh! volta a vingar os filhos teus!87
…………………………………………….
84 Crítica que o eu lírico/narrador, assumindo a voz do Caeté, faz crítica às punições de pena capital (mortes na fogueira) que a igreja católica patrocinava com o Tribunal de Inquisição do Santo Ofício, criado em épocas medievais e trazido para as colônias.85 “Tu crias” tem o valor aproximado interpretativo de “Tu querias”, mas lógico, que o ritmo e o tom da oralidade continuam a ser modificado, acentuando ritmo do poema, enxugando-o e o aproximando do coloquial. Mas lógico que a forma “crias” tem mais proximidade com o verbo crer, que por sua vez, estabelece traços semânticos com o verbo querer.86 Ilustrar é uma palavra que tem a ver com Ilustração, neoclassicismo, racionalismo. Por que o índio valorizaria a ilustração? Sabendo disso, Nísia Floresta constrói um eu-lírico que rejeita essa ilustração como sinônimo de derrota do colonizador, não pela Ilustração (conhecimento científico) em si, mas pela forma de ilustrar errônea, impositiva, inquisitorial.87 A presença de letras minúsculas, após sinais de pontuação de exclamação, de interrogação ou de reticências é constante.
73
E dá que de vulcão medonha horrívelA cratera se expanda abrasadoraPara o povo engolir88, que a nós de povoO nome até roubou-nos… extinguiu!
Estas vozes soltando angustiadosEmudece o Caeté… quedo ficou,Com os olhos no céu, dele esperandoA tardia, porém certa justiça!89
……………………………………………
De repente troar ao longe ouviu-seDa artilharia o fogo… e de milharesDe peitos Brasileiros90 sai o brado,Simulando o trovão91, que o raio manda – Eia! avante! Guerreiros libertemosA terra dos Caetés, a terra nossa! –92
E qual tempestade por Deus fulminadaSobre um povo ingrato, que Ele amaldiçoaVarão denodado às fileiras voaDos filhos que a Pátria querem libertada!
Dos bravos Caetés se diz descendente,Sua triste raça jurou de vingar…Desde lá do berço aprendeu a amarO triste oprimido; dele é defendente.93
Apóstolo é daqueles que vem debelarOs vis celeratos, que à força, ao desterroSeus filhos mandaram! De alguns no enterro94
88 Na edição de Duarte (1997), encontra-se a forma “engulir”, ao invés de “engolir”. Será necessário investigar ou foi apenas um erro na tipografia?89 Duas observações são válidas de se notar nesta estrofe: o eu lírico/ narrador que deixa de ser o Caeté, emudecido (mudo) e passa a ser o eu lírico/narrador na voz da poetisa; a outra coisa é a espera do Caeté pela intervenção do plano maravilhoso diante do plano histórico no qual ele se encontra vencido.90 Brasileiros, no texto original, vem com iniciais maiúsculas.91 Mais uma vez vale ressaltar que esse olhar do índio para o céu, está associado também a divindade indígena mais conhecida como Tupã, para muitos identificado como o sol, para outros como o sol e os raios e trovões.92 Cena de luta: o trovão é o fogo da artilharia do colonizador no plano histórico e “uma tempestade de um Deus” no plano maravilhoso. Tudo isso a compor o plano literário desta poesia épica.93 Defendente, ao ser empregado em lugar de “defensor”, pode ser considerado efeitos de oralidade? Defende seria um sinônimo, no século XIX, para advogado, justamente a profissão do esposo de Nísia? Pesquisar sobre isso, se possível. 94 No original “De” aparece com letra maiúscula como pede a regra depois de pontos de exclamação.
74
De sangue a bandeira se viu tremular!Viram-se as cabeças e de outros as mãosno alto de postes ao povo oferecendoExemplo feroz, espetáculo horrendo,Que de dor enluta os peitos cristãos!95
Oh! crime execrável de um povo civil!...Crime sem igual, que nos coraçõesSensíveis calando vai às geraçõesFuturas vinganças pedindo, bradando…
Ei-los que avançam nessa mesma praçaAonde os Martins, Teotônio, Miguel,Caneca, Agostinho tragaram o feldo bárbaro estrangeiro, feroz despotismo!96
O Anjo da Vitória ia coroá-los;Libertar ia enfim as plagas suas:………………………………………………
O primeiro caiu dos filhos seus,Que nesta nobre luta se empenhara!...Qual atleta romano denodadoDa Pátria só curando, o seu trinfoQuerendo aos seus primeiros anunciar,À frente se arremessa da batalha97,Impávido ao inimigo o peito mostra,Esquecendo, ai da Pátria! que era homem,Livre Pernambucano, a quem as balasDe pérfidos inimigos mais buscavam!
Caiu o Chefe imortalDos bravos Pernambucanos!Debandados estes foram;Sorriram-se os seus tiranos!Mas seu riso é convulsivo,Anuncia horrível siso!...
95 Parece que neste momento, Nísia põe novamente o símbolo “peito cristão” com teor crítico, ou seja, é capaz de “espetáculos horrendos”, por isso será acometido pela dor.96 Citação de personagens históricos da Revolução Pernambucana de 1817 e 1824 (Domingos José Martins, Domingos Teotônio Jorge, Miguel joaquim d’Almeida e Castro, todos eles decapitados em 1817; Frei joaquim do Amor divino Rebêlo e Caneca e Major Agostinho Bezerra Cavalcante Souza – enforcados em 1824. (Duarte, Ano, p. 45)97 Em Duarte (1997), “arremeça” encontra-se ao invés de “arremessa”. Seria erro de publicação ou uma intenção poética nisiana? Apurar também esse caso.
75
Eis voa da margem triste98
Do Beberibe a Saudade99
Acompanhando o CaetéAo bairro da Soledade…Ali vê no chão prostradoO herói NUNES MACHADO!!100
Transido de dor o triste CaetéSuspira, lamenta, chora, se exaspera…Os joelhos dobra! Do céu inda esperaProdígio estupendo! que pós Lázaro em pé!101
Mas ah! Da Eternidade a horrível portaO Goianense Herói transposto havia!E quando os umbrais seus (lei insondável!)Uma vez se transpõe, não mais se volveDos vivos à morada, ao seu exílio!A quem da triste campa a dor somente,O desespero fica da saudadePor aqueles, que além dela passaram!
Da Natureza humana lei tremenda!Infalível tributo à morte paga!Decreto de um Deus Pio! Oh! Quem puderaResignado a ti feliz curvar-se!…………………………………………….
Do Caeté embalde o pranto correu;Seus tristes lamentos, sua intensa dor,Da sorte implacável o cruel rigorPoder não tiveram de um pouco ameigar!
Do Herói os restos insultados vão,Por míseros covardes, condiscípulos seus,A quem os seus brios jamais dera Deus,
98 A supressão do “que”, ajeita o ritmo métrico do verso, diferentemente se fosse, “eis que voa”.99 Assim como o “Eterno”, a palavra “Saudade”, vem personificada, no plano maravilhoso. Então fica do Beberibe (plano histórico) à Saudade.100 O fato de terem autorizado a publicação de A lágrima de um Caeté (1849) deve ter se dado no plano argumentativo: a mentalidade da censura era incapaz de conceber heróis que no plano histórico são vencidos, mas que, ao apresentarem voz no plano maravilhoso e também no plano literário, diante do discurso crítico, instaurado sob o discurso de uma retórica romântica, são heróis que escapam da condição de vencidos e passam ao status de vencedores. 101 Vale ressaltar, que embora haja a subvenção aos contextos do cristianismo por parte de Nísia Floresta, o fato é que o vencido NUNES MACHADO, não ressucita no plano histórico, confirmando, indiretamente, que o índio estava e continuou a estar descrente de milagres cristãos. Ou seja, esta estrofe pode ser lida, e por que não, também como uma crítica do índio frente aos dogmas religiosos cristãos, ao invés de uma suposta impottência de o herói “índio” não ser comparável ao herói “Jesus” e não ser capaz do milagre da ressucitação.
76
Nem nome tão grande na História terão!102
O ódio, a intriga, a calúnia, a invejaDo profundo Averno Satanás desprende103
Contra os que sem armas um déspota prendeQue a lei proclamando afere, pragueja104…
Se diz Brasileiro, mas deste não temHumano sentir, que da DivindadeNós vem com o fogo de mor liberdadeQue os homens eleva, distingue as nações.
Aquece-lhe105 o peito centelha infernal106
Do negro, execrável, atroz despotismo,107
Que tostar protesta, quem ao servilismoCurvar-se não sabe, não pode, não quer.
Do Herói vil zoilo ele tostavaDe seu nome a glória, como vai tostandoMesmo agora a Fama108 sempre o decantando,Apesar dos ferros, masmorras, torturas!
O povo PernambucanoTosta, discípulo de Nero!109
Novo espetáculo esta Roma110
Te pode oferecer mais fero.
Tudo podes tu fazer, Menos descerÀs trevas do esquecimento
102 Agora, no poema, o termo “História” aparece com inicial maiúscula, pois não apresenta o mesmo sentido pejorativo que tinha antes na expressão “anais da história”. 103 Agora, no plano maravilhoso, mais uma figura cristã “Averno Satanás”, representando parte da antagonia no poema ao lado do povo português e dos tabajaras (índios que uniram-se na guerra ao Luso). 104 No sentido literal seria um jogar “pragas, pestes”, mas aqui o sentido é figurado, pois, segundo o eu lírico/ narrador, o déspota “pragueja” discursivamente, e depois em atos, utilizando-se da própria lei que havia antes instaurado contra àqueles que se criticam seu governo.105 Como explicar sobre esse pronome oblíquo “lhe”. É o verbo “aquecer-se” que está sendo utilizado, provavelmente. 106 Segundo a pesquisadora Constância Lima Duarte (UFMG), Nísia Floresta refere-se a Manoel Vieira Tosta, Presidente da Província que veio substituir Herculano Ferreira Pena.107 No original, “despotismo” com letra inicial minúscula.108 Mais um ser que quando não personificado, mesmo assim polissêmico, pois representa, no mínimo, uma abstração: Fama. Outros exemplos de polissemias envoltas ao tom de personificações: Eterno, Eternidade, Divindade, Realidade e Liberdade, Pátria, Ele (Deus), Satanás, Herói, Chefe, Pernambucano, Luso, Trovão, Tupã.109 Serão feitos então trocadilhos com o nome do presidente da província de Pernambuco Manoel Vieira Tosta.110 Roma, em língua portuguesa, anagrama de “amor”.
77
Os mártires da Liberdade, A DivindadeLhes tem marcado o momento.111
Da decisiva vitória que a glóriaNeste solo firmar deve;Aqui onde o bem fruir De um porvirVenturoso iremos breve.
Sangram nobres corações Nas prisões!O despotismo cruentoTudo tem aqui tostado! NUNES MACHADONão morreu em pensamento!... 112
A causa, que defendia, Por quem ardia,Era causa da Nação.Mais tarde o Brasil dará, Afirmará,A prova desta asserção.
- Não chores, ó Caeté, o amigo teu!Do Brasil consternado, o Gênio exclama:Foi minha inspiração, foi meu brado, Que fiel seguiu Ele.
- Não chores, ó Caeté, o Amigo113 teu:Sua sorte, o mal seu, não mais lamentes!Pela Pátria viveu, deu tudo à Pátria, A Pátria o cantará.
- Não chores, ó Caeté, o Amigo teu:Que caiu, não morreu... porque114 o bravo Constante defensor da Pátria sua
111 No original, o verbo Ter, na forma presente, mesmo no plural, não apresentou acento. Seria uma questão de tipografia? Recentemente? Antigamente?112 Esta estrofe reflete o heroísmo épico que acontece de forma simbólica, após os embates bélicos e políticos, e de modo híbrido, pois trafega do eu individual ao eu coletivo.113 Nesta estrofe e nas seguintes, no texto de Duarte (1997), a palavra “amigo” vem grafada com letra maiúscula.114 A palavra após a reticência vem com letras minúsculas na edição de Constância Lima Duarte (1997).
78
Para a Pátria não morre.
- Não chores, ó Caeté, o Amigo teu:Nas falanges de livres Brasileiros115
Combatendo mostrou à Pátria, ao mundo Que as honras desprezava.
As honras, que a vil preço vão comprandoOs anti-Brasileiros... Patricidas!Do infame interesse vis idólatras, O que foram esquecem!
Na Pátria tudo foi, fez ele tudoPara o destino seu triste mudar...De sua voz enérgica em prol da Pátria Inda soa a Tribuna.
Como do Equador RepublicanoCobarde não fugiu, abandonandoNa luta os irmãos seus, para da Pátria Longe um riso soltar!
Soltar de amor doces ais,Os prazeres seus fruindo,Enquanto da Pátria os filhosMais nobres iam caindo!...116
E depois voltando à PátriaNela o que foi, esqueceu!Em sua alma a LiberdadePouco a pouco feneceu!...
E renegado curvou-seÀ corte, que perseguiuNo tremendo vinte e quatro,Quando a república seguiu!117
De quarenta e nove o herói precla
115 Com letra maiúscula, a palavra “brasileiros” revela uma intenção metonímica, sem dúvida. Um herói que representa um povo.116 Os vencidos são, aqui, verdadeiros vencedores que terão suas memórias como patrimônio cultural da nação e os mais nobres que são os “vencedores” no plano histórico, os portugueses, na visão da autora, são os “perdedores”, derrotados pelos atos heroicos do Caeté e da autora que manteve viva a memória de um indígena épico. 117 A palavra “república”, no texto original, está com letra inicial minúscula.
79
Que jamais com outro há de se confundirA morte a opróbio soube preferir;118
Seus bravos irmãos deixar jamais quis.
Não! que vale antes morrerSeus princípios defendendo,119
Que de um polo a outro polo120
Político, ir percorrendo.
Esta voz atentoEscuta o CaetéJá seu triste prantoAmargo não é;Não é sua dorJá sem esperança:Um feliz porvirSua ideia alcança…Já crê de outros bravosOuvir o chamado: - Às armas! às armas!O Povo é vingado…Do Una ao ParaíbaDo mar aos Sertões.
A vingança abalaTodos os coraçõesEnquanto ali morrem,Combatem guerreiros, Aquém, além gememOs bons brasileiros!Os maus riem, folgamAo som dos gemidos,Que dá Pátria soltamOs filhos queridos!
Mas lá inda está!...Respira o tirano,Que o povo extermina
118 Pela ausência do sinal de crase, diante do verbo “preferir uma coisa à outra”, que pode-se concluir que “a morte” é o objeto direto. Entretanto, em nada essa escolha modificaria o sentido do texto, já que se trata de justaposição de objetos: direto e indireto.119 Cabe aí um ótimo debate pertinente: morrer por defender os seus princípios? Buscar para elencar novas opiniões, sempre preocupando-se em extirpar preconceitos socio-culturais. Depois de várias reivindicações, os brasileiros criam agora manifestações que recebem nome de “rolezinhos”, ou seja, milhares de jovens, através de comunicação pelas redes sociais com colegas e amigos, marcam simultaneamente um passeio no Shopping, em protesto contra a exclusão do mundo capitalista.120 “Polo”, no texto original, sem acento. Hoje, concordando com o Novo Código Ortográfico.
80
Bom Pernambucano!
Do Catucá as matas, eis que demandaO infeliz Caeté, buscando um povoQue julga o céu armar para vingá-lo, Vingando a Pátria sua!...
Dos Caetés descendente, ó povo, disse,Que hoje Pernambucano te apelidas,Onde está o valor, que ao Brasil todo Testemunhado tens?!...
Três vezes tem o sol aparecidoE no mar mergulhado os raios seus,E teu chefe imortal que lá caiu Vingado inda não tens!!
Aqueles, que perdido o Chefe seuA Pátria, a Liberdade, tudo tem,Deixar podem na vida, o que da vida Estes bens lhe tirou?!...
A cadeia de males que há tantoArrocha os pulsos teus; ah! bem o vejo121
Degenerado tem-te, ilustre povo!122
Assaz sofrido tens!
Mas se um peito Caeté, como o meu nobre123
Lá exangue caiu… eis o meu braço!Para vingá-lo é o bastante. Eia! indicai-me Do palácio o caminho!...
Manejar eu não sei de fogo as armasPara o feroz tostar, que vil insultaUm cadáver maior que a vida sua, Mais que ela venerando!...
Tenho flechas e um braço de CaetéDa dor o coração compenetradoDe uma inteira, infeliz, extinta raça… Vingando-te, eu a vingo.
121 A palavra “bem” aparece na edição de Duarte (1997), com letra minúscula, mesmo após um sinal de exclamação.122 Dificilmente utilizamos o pronome obliquo, no português do Brasil, adotando a forma, por exemplo, “tem-te”, embora ela seja uma forma válida, parece ter entrado em desuso.123 Conferir no texto original porque a estrofe da página 51 acaba com vírgula, depois da palavra “sertões”.
81
E pronto o Caeté o arco brandiu…E como inspirado as matas deixando,Já de seus rodeios lá ele saiu…Ei-lo a capital feroz demandando.
Metade do espaço transposto já tinha, Quando de mulher vulto descarnadoDe longe avistou… para ele vinha:De triste cor era seu rosto afeiado.
- Pára, miserando, disse ela ao Caeté.Os restos depõe de tanta bravura;Encara-me atento… perderás a féCom que praticar vás uma loucura!
O bravo selvagem atônito ficou…- Quem és, lhe pergunta, infernal deidade?- Uma visão de inferno não sou:Sou cá deste mundo a Realidade.
Volta às selvas tuas, vai lá procurar124
Alguns desses bens, que aqui te hão tirado:Não creias, ó mísero, jamais encontrarA paz, a ventura que aqui tens gozado.
Este grande povo, que o nome tomouDe um pau simulando das brasas a corNascido na terra, que Deus te outorgou,De seu bem só cura, não de tua dor.
Em campo ei-lo agora com as armas na mãoMas seja um partido, ou outro que vençaA tua ventura não creias farão!São outros seus planos, outra a sua crença.125
Nos ares ouviu-se lá nesse momentoCelestes acordes, vozes sonorosas:Em nuvens douradas vem do firmamentoA mais bela virgem num trono de rosas!
Feições tem risonha, olhar cintilante,Um ar varonil, porte majestoso;
124 Neste momento, se o índio de Nísia aparece como um ser consciente e ávido de vingança diante da colonização do povo português, agora se faz ainda mais consciente de que a luta “Revolucionária dos brasileiros e pernambucanos” não há de ser a mesma luta dos Caetés. 125
82
Lê-se em sua fronte o fogo vibrante,126
Que o peito lhe abrasa, forte, grandioso!...
Nos aires pairando olhou a cidade:Seu rosto divino contrai-se de dorApenas em luto viu a Soledade!Foi lá que caiu seu grande Amador!127
Absorto o Caeté vinha admiradoAquele prodígio, quando de repenteSai da capital um monstro enroscado,Feroz simulando enorme serpente!
Após ele vinham as fúrias cantando,128
Em funéreo coro a morte, as torturasCom que a virtude, suas criaturas129
No mundo vão elas cruéis flagelando!
Do lado da Virgem toma direçãoAquele cortejo horrendo, infernal…Do bravo Caeté treme o coraçãoPrevendo a desgraça de um encontro tal.
Da terra não pode aos ares subirPara ao lado pôr-se da Virgem formosa,Por quem a sua alma começa a sentirVeemente amor, paixão primorosa.
Um movimento fez de impaciência Da natureza o filho.Seus braços estendendo à bela Virgem, Quis ir ao seu encontroMas os olhos volvendo à terra vê Realidade horrível!
- Dissipa as ilusões, filho dos bosques, A meu rosto te afaze;E verás que tão feia eu não serei,
126
? Fronte, em lugar de, frente. Linguajar de época, século XIX. Fronte de frontal, que no século XX, passou a ser frente.127 A palavra “Amador”, no texto original, vem com inicial maiúscula, ou seja, é aqui personificada, abstraída.128 Com os estudos de Thomas Bulfinch (1796 – 1867), traduzido por David Jardim Júnior, no século XX, aprendemos que “As Erínias, ou Fúrias, eram três deusas que puniam com tormentos secretos, os crimes daqueles que escapavam ou zombavam da justiça pública. Tinham as cabeças cobertas de serpentes e o aspecto terrível e amedrontador. Conhecidas também como as Eumênides, chamavam-se, respectivamente, Alecto, Tisífone e Megera. (BULFINCH, 2000, P. 15)129 Embora não com maiúsculas, o termo “virtude’ não assume um ar de entidade mítica?
83
Como agora pareço.
Se de ilusões a mísera humanidade Não amasse nutrir-se,Horrenda a face minha não seria A seus olhos depois…
- “Cruel!”130 Em desespero o Caeté bradaQue falas fria assim a um malfadado,Pois que és a inexorável Realidade,Que os passos meus retendo, me vás n’almaDo desengano o gelo derramando;Aclara a mente minha… ilusão éO que ali veem meus olhos?131 dize; oh! Dize,Ou tira-me esta vida, que se escoaNa dor, que a vista tua mais acerba.
- Não é ilusão, não, o que lá vês.Pausadamente diz a que tão duraO infeliz Caeté desabusara;Mas não temas, que seja a tua belaDo monstro que a persegue triste vítima…Contempla-a bem agora; ela sorri-teComo a um de seus filhos mais diletos132
Que nela vira sempre o seu bem todo.
Tu dobras o joelho!... oh! Sim, adora;Adora o que na vida mais tu prezas;A Liberdade adora e nela Deus.
Linda e pura se vai elaDa capital separando;Na fileira de seus filhosSeus defensores buscando.
Esse monstro que ali vêsDas fúrias todas cercado,É o feroz Despotismo
130 No texto original, não há fechamento de aspas, achou-se por melhor, fechá-la após a exclamação, como uma forma de discurso consolidado pelo Caeté com um dissílabo. Talvez como forma de vingança, pois na visão do eu lírico/narrador nem precisa de muitas palavras, nem, o povo português é merecedor de definição etnico-cultural extensa no entendimento dos que foram colonizados. Lógico que é um brado romântico, esse do Caeté, mas sem deixar de ser crítico social. Note que a expressão adjetiva vem no singular, mas representa uma coletividade.131 Aqui, retiramos o acento plural do verbo “ver”, presente em Duarte (1997), já que a nova norma ortográfica parece não criar novas interpretações que não sejam a do verbo “ver”. 132 Por que será que Nísia, além do recurso estético, usou a forma “dileto’, ao invés de usar a forma “predileto”? Será uma questão de linguagem formal de época ou linguagem informal de época? Será possível pesquisar isto?
84
Inimigo seu votado.
Embalde procura eleO trono seu derrubar;Nas plagas PernambucanasUm abismo lhe cavar!
Da Liberdade um sorrisoDe desprezo esmagadorResponde só aos uivosDo Despotismo eversor…
Ele, que cruel se apraz133
Perseguir os filhos seus,Mil suplícios inventando134
Sem lembrar-se que há um Deus.
Deus, que uma raça não fezPara sobre as outras raças terRevoltante primazia,Ilimitado poder!
Deixa pois o DespotismoContra ela em vão lutar,Como do céu os maus anjosDaqui Deus o vai lançar.
Do Amazonas ao PrataO povo lhe está bradando:- Sacia-te monstro atroz,Teu império está finando!135
Mas tu, meu pobre Caeté,Escuta a Realidade;Busca as matas, lá somenteGozarás da Liberdade,
Que aqui teriasTalvez gozado,Se todos fossemNUNES MACHADO!Dos pobres índios,
133 ‘Apraz”, atualmente, é uma palavra polissêmica, pois hoje, além de apaziguar ou acalmar, “Apraz” pode significar o nome/marca de um remédio antidepressivo – (Ler proposta na nota de rodapé 79).134 Esta hipérbole “Mil suplícios” tem um tom de coloquial de oralidade, através do exagero expresso em valor numérico subjetivo.135 Pesquisar se é um neologismo “finando”? Ou uma forma abreviada de “findando”?
85
que tanto amava,Mudar a sorteTambém pensava!...Mas ah! mui cedoSe foi da terra!!Teu pranto agoraNo peito encerra.………………………………………………….
E súbito o Caeté foi-se saudoso!…………………..Nas Margens do Goiana agora expande Sua dor!...
- Goiana!... clama ele ali vagando,Mais triste do que lá no Beberibe:Onde está teu Herói? o filho teu! - No céu…
- No céu… responde o eco!136 E sabe o mundoSuas grandes virtudes; sabe a glória,Que seu nome deixou, nome imortal Na Pátria!...
E lá do CaetéO triste pungir137,com ele se foiNo céu confundir!
(FIM)
* Digitalização e notas de rodapé realizadas pelo mestrando da Universidade Federal de Sergipe (UFS), campus Itabaiana, pelo programa de mestrado profissional em
136 Certamente Nísia Floresta sabia que “Eco” é uma entidade mitológica greco-romana. Se o índio, foi ao céu, mas isso é confirmado pela resposta de “Eco”, que foi condenado por Vênus a repetir o final de tudo que os outros falam, pode-se duvidar desse céu, na autora. Ela mesmo admite no poema que os indígenas apresentam outras crenças. Por que seria que “com triste pungir do Caeté” foi-se ele “confundir o céu”? 137 Tirar a foto desse remédio e utiliza-lo como demonstração de uma ilustração desta estrofe. Aproveitar e debater a relação entre o espírito romântico e a depressão. O poema curto de Olga Savary intitulado “Desperdício” traz a ideia de amor como desperdício enquanto for uma “ideia fixa”. Lembrar que o conceito de “ideia fixa” foi tracejado pelo escritor Machado de Assis, quando fez Brás Cubas imaginar o Emplasto Brás Cubas, que nada mais seria, que o que chamamos hoje de remédios antidepressivos. Além disso, seria bom explorar a série de poemas curtos de Savary intitulados “Amor”, “Amor:” e “Amor?”.
86
Linguística (PROFLETRAS 2013/2 à 2015/2) Waldemar Valença Pereira e orientado pela professora Dr.a. Christina Ramalho. No ano de 2014, primeiro semestre.
87