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  • ESTABILIZAES

    Relatora: Elisa AlvarengaParticipantes: Cludia de Paula, Cristina Vidigal,

    Fabiana Cmara, Fernanda Monducci Moreira, Francisco Goyat,Maria do Carmo Duarte Ferreira, Maria Wilma S. de Faria e Robson Campos.

    O grupo que se reuniu em torno do tema das estabilizaes trabalhou,a partir das contribuies de seus participantes, uma srie de fenmenos e for-mas clnicas que foram interrogados como pertinentes ou no ao conceito deestabilizao. Partimos de questes bsicas, fundadas na experincia de cada um,como por exemplo: o que caracteriza uma estabilizao? Quais as diferenasentre estabilizao e apaziguamento, estabilizao e cristalizao/petrificao,estabilizao e suplncia? O que haveria de comum, estrutural, entre as diversasformas de estabilizao, ou seja, sob a diversidade fenomenolgica, qual a estru-tura da estabilizao? Uma primeira hiptese-eixo para este relatrio poderia ser:a estabilizao uma operao que circunscreve, localiza, deposita, separa ouapazigua o gozo, correlativa de uma entrada em algum tipo de discurso, por maisprecrio que ele seja.

    O ensino de Lacan parece propor-nos diferentes respostas, em dife-rentes momentos, para a questo da estabilizao.

    Num primeiro momento, o da tese de Lacan sobre a paranoia, talvezpudssemos dizer que a estabilizao se d pela passagem ao ato de agresso aooutro, cujo paradigma a chamada paranoia de autopunio, onde o sujeito atin-ge a si mesmo, especularmente, ao atingir o outro. Na nossa experincia na ins-tituio, isso de fato se verifica em vrios casos de passagens ao ato, colocando-se, no entanto, a questo de saber se a estabilizao consequncia direta da pas-sagem ao ato ou uma consequncia, mais tardia, do encarceramento e/ou do tra-tamento do paciente na instituio. Casos que no foram a julgamento e no seestabilizam fazem-nos pensar que a ausncia de interveno da lei, nos casos emque houve ato infrator, pode deixar o paciente numa zona de perplexidade, ondea subjetivao do ato se torna ainda mais difcil. No entanto, o fato de ter umapena instituda no garante essa subjetivao e tampouco a estabilizao.

    Dentro das estabilizaes pela via da passagem ao ato, temos o exem-plo de um caso estabilizado no tratamento, com desaparecimento dos fenme-nos delirante-alucinatrios aps a realizao, pelo paciente, de marcas no prpriocorpo, marcas que, no seu dizer, inscrevem a experincia traumtica, desencadea-dora da psicose, no seu corpo. Curiosamente, os fenmenos de automatismo

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  • mental se apresentavam, nesse paciente, sob a forma de surgimento, no pensa-mento e depois nas alucinaes, de um ciframento e contabilizao infinitos, apartir das percepes do sujeito.

    Num segundo momento, correspondente ao Seminrio de Lacan sobreAs Psicoses e a Questo Preliminar, o modelo de estabilizao nos fornecido pelametfora delirante de Schreber, escrita por Lacan em seu esquema I, quedemonstra que o estado terminal da psicose no representa o caos petrificadoa que levam as consequncias de um sismo, porm, muito antes, essa evidencia-o de linhas de eficincia que faz falar, quando se trata de um problema de solu-o elegante (LACAN, 1998, p. 578). Como nota Jorge Alemn, o termo esta-bilizao deve ser pensado ento no Lacan para quem o paradigma da subjetivi-dade a neurose. O esquema I, da estabilizao schreberiana, a transformaodo esquema R, cujas linhas circunscrevem o campo da realidade sob a gide dametfora paterna e da significao flica. Quando falta o Nome-do-Pai e, conse-quentemente, a significao flica, pode haver uma restaurao da realidade pelacolonizao de o com figuras estereotipadas s quais o sujeito se identifica, e deP0 pela construo da metfora delirante ou de objetos produzidos pelo sujeito.

    Na nossa experincia, do lado do imaginrio, poderamos citar comoexemplos a identificao dos pacientes com figuras da atualidade, como perso-nagens de filmes, msicos, escritores ou mesmo algum membro da famlia ou dacomunidade. Do lado do simblico, temos as elaboraes delirantes, que permi-tem ao sujeito a localizao do gozo no lugar do Outro, e a produo de obje-tos, escritos, etc., que permitem a deposio e separao de um gozo. No primei-ro caso, trata-se da busca de um sentido para o que aparece no real; no segundo,temos duas possibilidades: o escrito literrio, que veicula sentido, e a produoda letra, da ordem do real, sem sentido; possibilidades que se representam naoposio inventada por Lacan entre literatura e lituraterra.

    Algumas figuras dessas formas de estabilizao podem ser encontra-das nos servios de Sade Mental. Um sujeito se estabiliza aps ter garantido seuauxlio-doena, dinheiro que representa para ele uma insgnia paterna com a qualse identifica. Outro, cuja psicose foi longamente camuflada pelo abuso do lcool,abandona periodicamente o tratamento para passagens ao ato dipsomanacas.Ouvir vozes quando bebe algo permitido, bebendo ele pode delirar, ao passoque abstmio pode falar do delrio. Meu problema a bebida, afirma, poden-do fazer, a partir deste S1, um certo lao social.

    Outro caso, de uma psicose com fenmenos elementares discretos,encontra sua estabilizao em um certo modo de viver. Estabilizada via transfe-rncia, a paciente considera que terminou sua anlise e passa a cuidar do Outro,telefonando ocasionalmente para verificar se o analista est l.

    A questo que se coloca, quando tocamos na transferncia, : de queforma a transferncia pode contribuir para a estabilizao? Como que o analis-

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  • ta permite que o psictico faa seu esquema I? Se o paciente se coloca comoobjeto, o analista deve evitar duas posies: a de fascnio, muito comum, provo-cado no analista pelo psictico, e a de mestre, que sabe o que bom para ele;ambas reforando sua posio de objeto. Por meio de um caso em que se obser-va um apaziguamento sob transferncia, medida que o analista se recusa a dei-xar-se intimidar pelo paciente ou a responder suas questes, retomamos a ques-to do lugar do desejo do analista na clnica da psicose: desejo que se coloca emrelao psicanlise muito mais do que em relao ao sujeito psictico. Cabeaqui pensar a prtica feita por muitos, onde a estabilizao pode ser construdana relao com o acompanhante teraputico, nas oficinas, com a medicao;enfim, na relao com a instituio, sob as mais diversas formas de acolhimentoe permanncia.

    Ainda dentro das formas de estabilizao, temos o escrito nas suasvariadas apresentaes: uma paciente delira em textos, nos quais circunscreveseus dilogos e relaes amorosas delirantes; outra dita terapeuta seus escritos,que ela mesma assina, e a partir dos quais pode falar de maneira mais articulada;outro, ainda, escreve bilhetes no lugar de falar. Sobre a questo do que fazer comos escritos do psictico, se devemos ou no faz-lo falar deles, pensamos que oescrito a base sobre a qual um discurso pode se estabelecer. Pouco importa seo sujeito fala ou no sobre o contedo de seus escritos, o que importa que oescrito tenha o lugar de um S1 a partir do qual uma cadeia pode ser construda,cadeia que faz algum tipo de lao com o Outro. A escrita das letras do psicticono em si mesma um significante estabilizador, a no ser que suporte sobre sium outro significante produzido pelo sujeito, e que tenha um endereo.

    Um paciente, estabilizado aps quatro anos de tratamento na institui-o, tendo passado pela internao, hospital-dia e agora no ambulatrio, apresen-ta-se como aquele que tem a fora fsica, atributo contrrio ao do pai doente, queperdeu as foras. Por outro lado, identifica-se com este pai que desenhava pro-jetos, desenhando ele mesmo roteiros de filmes. De ator de seus delrios elepassa a autor de seus roteiros, que, no entanto, reserva, em segredo, para mos-trar ao analista, no dando a eles nenhum outro destino, at o momento atual. Omesmo paciente permite que os quadros que pinta sejam mostrados em exposi-o, desde que ele mesmo no circule por esse espao, e permanea annimo.

    Outro exemplo, clssico na literatura analtica, nos permite pensar aestabilizao por duas vias: a via significante da metfora delirante e a via de con-densao de gozo por meio de um objeto separado do corpo. Joey, pacienteesquizofrnico acompanhado por anos por Bruno Bettelheim, inventa um novocdigo, onde ele a galinha que se engendra a si mesma. A partir da ele podeconstruir sua mquina, que tem a funo de localizar o gozo. Se na metfora deli-rante o significante dA mulher aqui A galinha vem no lugar do Nome-do-Pai que falta, permanecendo a estabilizao no nvel do significante, a produo

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  • de um objeto, fora do corpo, exteriorizado, permite ao psictico no ser elemesmo esse objeto de gozo do Outro.

    Pela via da metfora delirante, nosso modelo de estabilizao perma-nece no nvel da compensao dos efeitos da forcluso do Nome-do-Pai, ele-mento que estabiliza, na neurose, a cadeia significante. Se passamos a um segun-do momento do ensino de Lacan, onde o paradigma da subjetividade a psico-se, ou seja, onde o Nome-do-Pai apenas um suplemento, entre outros, for-cluso generalizada, a uma falta estrutural no simblico, passamos a pensar oproblema das suplncias, outro nome para a estabilizao onde no houve umdesencadeamento. A suplncia, ou sinthoma, cujo paradigma no ensino deLacan Joyce, no busca a restaurao de um sentido, no faz metfora, e podeprescindir do analista. Nesse segundo momento do ensino de Lacan pode-seapoiar uma nova clnica, onde cada sujeito encontra as solues que podem ensi-nar ao analista que nem s de Nome-do-Pai vive o homem. A suplncia podepermitir uma conexo com a vida e mesmo uma sanso do Outro, como no casode Joyce, que prescinde da significao flica. Trata-se, ento, na suplncia, deum sinthoma que no busca um complemento de sentido, e a questo, para oanalista, pode vir a ser, diante de cada caso, a de saber at que ponto deve arris-car-se a desestabilizar uma suplncia bem sucedida. Em muitos casos, os mes-mos elementos que levantamos como fatores de estabilizao, aps um desenca-deamento, podem funcionar como aquilo que evita o desencadeamento ou ape-nas o disfara. Temos, por outro lado, vrios exemplos de sujeitos ditos toxic-manos, alcoolistas, delinquentes, deprimidos, etc., onde a suplncia no temnenhum valor esttico, como em Joyce, apenas encobridora de uma psicose.

    a que o analista deve intervir, com cautela, evitando desencadear apsicose, mas permitindo ao sujeito encontrar uma soluo mais eficaz do pontode vista do lao social.

    Concluindo, devemos ressaltar que o termo estabilizaes, ao serusado, aqui, no plural, no diz respeito a uma estabilidade garantida. No corres-ponde exclusivamente ao modelo de estabilizao proposto por Lacan a partirdo caso Schreber, onde temos a metfora delirante, o empuxo--mulher e oescrito de suas Memrias, que lhe permitem argumentar com o Outro e obter umasada num determinado momento, nem ao modelo de suplncia proposto comJoyce. As estabilizaes so multiformes, precrias, instveis e nos fazem pensarque so tanto mais promissoras, no sentido de solues para o sujeito, quantomais permitirem a sua inscrio em algum tipo de discurso.

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    Elisa Alvarenga

  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBENETI, A. O tratamento psicanaltico da psicose. In: Artigos 2, Belo Horizonte: 1996.FREUD, S. (1911) Notas psicanalticas sobre o relato autobiogrfico de um caso de paranoia(Dementia paranoide) In: Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud (Edio Standard Brasileira), v.12, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969. GRASSER, F. Stabilisations dans la psychose. Texte present a Marseille le 7 mars 1998.LACAN, J. De uma questo preliminar a todo tratamento possvel da psicose. In: Escritos. RJ: JorgeZahar Editor, 1998.LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.LACAN, J. Apresentao da traduo francesa das Memrias do Presidente Schreber. In: Falo I,Rio de Janeiro: 1987.LAURENT, E. Estabilizaciones en las psicosis. Buenos Aires: Manantial, 1989, p. 7-45.LAURENT, E. O sujeito psictico escreve. In: Verses da clnica psicanaltica. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1995.LAVIGNE, J. A. Seminrio de leitura da Questo Preliminar, realizado em Crdoba, 1995.

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