provinha brasil no municÍpio de porto alegre: … (descritor) detalhamento da habilidade...

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PROVINHA BRASIL NO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE: EFEITOS NA PRÁTICA DOCENTE. Darlize Teixeira de Mello E.M.E.F.Nossa Senhora de Fátima ULBRA/Curso de Pedagogia/Canoas Introdução O presente trabalho faz parte de uma pesquisa interinstitucional intitulada A inclusão escolar e as avaliações em larga escala: efeitos sobre o currículo e o trabalho docente na Educação Básica” 1 . A referida pesquisa objetiva analisar as relações estabelecidas entre as avaliações em larga escala e os processos de inclusão em escolas de Educação Básica no Rio Grande do Sul, problematizando os efeitos sobre o currículo e o trabalho docente. Inscreve-se no campo de Estudos de Currículo. A investigação é orientada pelas seguintes questões: Como as avaliações em larga escala visibilizam o desempenho dos alunos incluídos nas escolas de Educação Básica, no Rio Grande do Sul, e quais efeitos as referidas avaliações estão provocando no currículo e no trabalho docente? Assim sendo, a pesquisa, a ser apresentada nesse artigo, vincula-se a esse projeto interinstitucional, como um subprojeto intitulado Provinha Brasil no município de Porto Alegre: análise de resultados e efeitos na prática docente e discente, objetivando a análise dos resultados estatísticos da aplicação da Provinha Brasil - Edições de 2008-2010/ Testes 1 e 2 - no município de Porto Alegre e seus efeitos nas práticas docentes e discentes de duas escolas da referida rede de ensino. São destacadas, para essa pesquisa, entrevistas realizadas com oito professores de classes de 2º ano do 1º ciclo dessas duas escolas municipais com o intuito de analisar os efeitos da aplicação dos testes e levantamento dos resultados (gabarito da turma) em suas práticas docentes 2 . 1 O projeto interinstitucional “A inclusão escolar e as avaliações em larga escala: efeitos sobre o currículo e o trabalho docente na Educação Básica” é coordenado pela Drª. Profª. Clarice Salete Traversini (PPG/Edu/UFRGS) e tem como parceiras as seguintes instituições: ULBRA, SMED/POA, UNISINOS e FURG. 2 Na referida pesquisa também foram analisadas entrevistas com alunos do 2º ano do 1º ciclo que realizaram a Provinha Brasil nessas escolas, no ano de 2010. Para saber mais ver PEREIRA; MELLO (2014).

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PROVINHA BRASIL NO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE: EFEITOS NA

PRÁTICA DOCENTE.

Darlize Teixeira de Mello

E.M.E.F.Nossa Senhora de Fátima

ULBRA/Curso de Pedagogia/Canoas

Introdução

O presente trabalho faz parte de uma pesquisa interinstitucional intitulada “A

inclusão escolar e as avaliações em larga escala: efeitos sobre o currículo e o trabalho

docente na Educação Básica”1. A referida pesquisa objetiva analisar as relações

estabelecidas entre as avaliações em larga escala e os processos de inclusão em escolas

de Educação Básica no Rio Grande do Sul, problematizando os efeitos sobre o currículo

e o trabalho docente. Inscreve-se no campo de Estudos de Currículo. A investigação é

orientada pelas seguintes questões: Como as avaliações em larga escala visibilizam o

desempenho dos alunos incluídos nas escolas de Educação Básica, no Rio Grande do

Sul, e quais efeitos as referidas avaliações estão provocando no currículo e no trabalho

docente?

Assim sendo, a pesquisa, a ser apresentada nesse artigo, vincula-se a esse

projeto interinstitucional, como um subprojeto intitulado Provinha Brasil no município

de Porto Alegre: análise de resultados e efeitos na prática docente e discente,

objetivando a análise dos resultados estatísticos da aplicação da Provinha Brasil -

Edições de 2008-2010/ Testes 1 e 2 - no município de Porto Alegre e seus efeitos nas

práticas docentes e discentes de duas escolas da referida rede de ensino. São destacadas,

para essa pesquisa, entrevistas realizadas com oito professores de classes de 2º ano do 1º

ciclo dessas duas escolas municipais com o intuito de analisar os efeitos da aplicação

dos testes e levantamento dos resultados (gabarito da turma) em suas práticas docentes2.

1 O projeto interinstitucional “A inclusão escolar e as avaliações em larga escala: efeitos sobre o

currículo e o trabalho docente na Educação Básica” é coordenado pela Drª. Profª. Clarice Salete

Traversini (PPG/Edu/UFRGS) e tem como parceiras as seguintes instituições: ULBRA, SMED/POA,

UNISINOS e FURG. 2 Na referida pesquisa também foram analisadas entrevistas com alunos do 2º ano do 1º ciclo que

realizaram a Provinha Brasil nessas escolas, no ano de 2010. Para saber mais ver PEREIRA; MELLO

(2014).

2

As questões iniciais desdobram-se, então, nos seguintes objetivos:

compreender como os professores se apropriaram da aplicação da Provinha Brasil e

analisar os efeitos dessa avaliação em larga escala sobre o currículo e o trabalho docente

das escolas pesquisadas.

A seguir passo a apresentar o trabalho de pesquisa realizado.

A coleta de informações – dados da pesquisa – apresentação da Provinha

Brasil

Para que o leitor possa compreender o instrumento avaliativo utilizado nas

classes de 2º ano do Ensino Fundamental farei uma breve apresentação desse

instrumento, considerando estudos de Mello (2012) e Pereira e Mello (2014). A

Provinha Brasil é um instrumento de avaliação que objetiva oferecer aos professores e

aos gestores das escolas públicas e das redes de ensino um diagnóstico do nível de

alfabetização dos alunos, ainda no início do processo de aprendizagem, permitindo, com

isso, intervenções com vistas à correção de possíveis insuficiências apresentadas na área

da leitura e da escrita (BRASIL, 2010a). Destinado aos alunos em processo de

alfabetização, tal instrumento avaliativo tem sido aplicado a todos os alunos

matriculados no segundo ano de escolarização do ensino fundamental de nove anos

(BRASIL, 2010a).

O instrumental da Provinha Brasil se constitui em um kit de seis documentos

que foram sofrendo modificações ao longo das edições de 2008 a 20103, sendo assim

nomeados: Orientações para Secretarias de Educação; Passo a Passo; Caderno do

Professor/Aplicador I: Orientações Gerais e Caderno do Professor/Aplicador II: Guia

de Aplicação4, Caderno do Aluno; Guia de Correção e Interpretação de Resultados e

3 De acordo com o Guia de Aplicação (BRASIL, 2011a,), com o intuito de tornar mais objetivo o

instrumental dessa avaliação, o kit da Provinha Brasil foi reformulado em 2011 e o número de

documentos, reduzido (BRASIL, 2011a, p. 2). Na edição de 2011/Teste 2, há detalhes sobre a redução,

informando que o kit está composto por quatro documentos: Guia de Aplicação; Guia de Correção e

Interpretação de Resultados; Caderno do Aluno e Reflexões sobre a Prática (BRASIL, 2011b, p.3). 4 Esse foi o documento que obteve o maior número de alterações em sua nomeação, na edição de 2011, 4ª

edição de aplicação da Provinha Brasil, passa a ser um único documento denominado de Guia de

Aplicação, no Teste 1, enquanto no Teste 2 recebe um acréscimo, passando a ser Guia de Aplicação–

Leitura, em razão da criação da Provinha Brasil de matemática.

3

Reflexões sobre a Prática. Todos esses documentos são compostos de Teste 1 e Teste

25.

Para evidenciar o que é avaliado apresento a matriz de referência da Provinha

Brasil com seus respectivos eixos e descritores da edição de 2010. Essa matriz de

referência está descrita no documento Passo a Passo (BRASIL, 2010a). É embasada no

documento Pró-letramento – Programa de Formação Continuada de Professores dos

Anos Iniciais do Ensino Fundamental (BRASIL, 2007) – e outros documentos que

norteiam as avaliações nacionais desenvolvidas pelo INEP.

Vejamos, a seguir, a Matriz de Referência da Provinha Brasil.

Fonte: Documento Passo a passo (BRASIL, 2010a, p. 11)

Nesse documento, encontramos as capacidades linguísticas da alfabetização

mencionadas diretamente pelo termo habilidades, englobando cinco eixos acima

pontuados.

O estudo sobre as orientações curriculares no ciclo da alfabetização, realizado

por Schneider e Mozz (2011), tendo como corpus a Matriz de Referência da Provinha

Brasil e os testes disponibilizados às escolas entre os anos de 2008 a 2010, evidencia

alteração na Matriz de Referência de 2008 para os testes das edições de 2009 e 2010,

com redução no número de eixos e, por consequência, das habilidades correspondentes

5 O Teste 1 deve ser aplicado no início do ano letivo, com o caráter diagnóstico, embora nem sempre esse

fato ocorra devido à data de chegada da Provinha Brasil nas escolas e o Teste 2 deve ser aplicado ao final

do mesmo ano letivo de cada edição, com caráter prognóstico.

4

aos eixos excluídos, acompanhada do acréscimo do detalhamento dos descritores das

habilidades do processo de alfabetização avaliado. Ao examinar a Matriz de Referência

das edições de 2011, constato que essa manteve os mesmos eixos e descritores; logo, a

Matriz de 2009 a 20116 contemplou dois dos quatro eixos da Matriz de 2008 –

apropriação do sistema de escrita e leitura – e dez dos dezessete descritores, como

podemos ver, a seguir, (QUADRO 1):

1º EIXO APROPRIAÇÃO DO SISTEMA DE ESCRITA: habilidades relacionadas à identificação e ao reconhecimento de princípios do sistema de escrita.

Habilidade (descritor) Detalhamento da habilidade (descritor)

D1: Reconhecer letras.

Habilidades relacionadas à capacidade de diferenciar letras de outros sinais gráficos, identificar pelo nome as letras do alfabeto ou reconhecer os diferentes tipos de grafia das letras.

D2: Reconhecer sílabas.

Identificar o número de sílabas que formam uma palavra por contagem ou comparação das sílabas de palavras dadas por imagens.

D3: Estabelecer relação entre unidades sonoras e suas representações gráficas.

Identificar em palavras a representação de unidades sonoras como: o vogais nasalizadas; o letras que possuem correspondência sonora única (ex.: p, b,

t, d, f); o letras com mais de uma correspondência sonora (ex.: “c” e

“g”); e o sílabas.

2º EIXO LEITURA

Habilidade (descritor) Detalhamento da habilidade (descritor)

D4. Ler palavras.

Identificar a escrita de uma palavra ditada ou ilustrada, sem que isso seja possível a partir do reconhecimento de um único fonema ou de uma única sílaba.

D5: Ler frases. Localizar informações em enunciados curtos e de sentido completo, sem que isso seja possível a partir da estratégia de identificação de uma única palavra que liga o gabarito à frase.

D6: Localizar informação explícita no texto.

Localizar informações em diferentes gêneros textuais, com diferentes tamanhos e estruturas, com distintos graus de evidência de informação, e exigindo, em alguns casos, relacionar dados do texto para chegar à resposta correta.

D7: Identificar assunto de um texto.

Antecipar o assunto do texto com base no suporte ou nas características gráficas do gênero ou, ainda, em um nível mais complexo. Identificar a finalidade, apoiando-se apenas na leitura individual do texto.

6 A Matriz de Referência da edição de 2009 (BRASIL, 2009c) manteve o mesmo número de eixos e descritores nas edições posteriores. Cf. o documento Passo a Passo, para as edições de 2009 e 2010, Testes 1 e 2 (BRASIL, 2009c, p14; 2009d, p.16; 2010c, p.16; 2010d, p.13) e o documento Guia de Correção e Interpretação dos Resultados, para as edições de 2011- Testes 1 e 2 (BRASIL, 2011d, p. 13; 2011e, p. 10).

5

D8: Identificar a finalidade do texto.

Antecipar a finalidade do texto com base no suporte ou nas características gráficas do gênero ou, ainda, em um nível mais complexo, identificar a finalidade, apoiando-se apenas na leitura individual do texto.

D9: Estabelecer relações

entre partes do texto7.

Identificar repetições e substituições que contribuem para a coerência e a coesão textual.

D10: Inferir informação. Inferir informação.

Quadro 1: Matriz de Referência para Avaliação da Alfabetização e do Letramento Inicia - edição de 2009-2011. Fonte: BRASIL (2009a, p14; 2009b, p.16; 2010a, p.16; 2010b, p.13; 2011a, p. 13; 2011b, p. 10).

Em virtude de limitações impostas pela natureza da avaliação – sua estrutura

metodológica em torno de questões de múltipla escolha, as do eixo leitura, ou de

questões abertas, as do eixo escrita –, as questões do eixo desenvolvimento da oralidade

deixaram de ser produzidas na edição de 2008. Novas limitações técnicas – categorizar

respostas, estruturar grade de correção – passam a impedir a inclusão de questões do

eixo escrita na edição de 2009 da Provinha Brasil.

Para entender melhor como os conceitos de alfabetização e letramento e como

os eixos e descritores que os representam estão presentes na Provinha Brasil

examinadas neste trabalho, iniciaremos a apresentação da estrutura desse instrumento

avaliativo com vistas a identificar quantitativamente os eixos e descritores das matrizes

de referência da edição de 2010.

Informamos, inicialmente, que os testes da Provinha Brasil totalizaram 27

questões na edição de 2008 – Testes 1 e 2, passando a totalizar 24 questões, entre as

edições de 2009 a 2010, e mudando para um total de 20 questões, a partir da edição de

2011. Quanto ao tipo de questões, somente na edição de 2008 foram incluídas questões

abertas, todas elas do eixo escrita. Assim, das 27 questões da edição de 2008, 24 delas

eram de múltipla escolha, enquanto três eram abertas. A partir da edição de 2009, todas

as questões passam a ser somente de múltipla escolha.

Quanto ao aumento da complexidade na sequência de apresentação das questões, uma

análise da estrutura da Provinha nas quatro edições permite localizar dois grupos de questões:

um primeiro grupo, formado pelas questões que contemplam os descritores do eixo apropriação

do sistema de escrita, envolvendo, principalmente, o reconhecimento de letras e de sílabas,

como também a relação grafema-fonema; enquanto um segundo grupo, formado por questões

que contemplam os descritores do eixo leitura, envolve, por um lado, a leitura de palavras com

7 De acordo com o documento Provinha Brasil - Guia de Correção e Interpretação de Resultados (BRASIL, 2009l, p. 14), por questões técnicas, o Descritor 9 não foi contemplado no Teste 2 da edição de 2009.

6

sílabas canônicas (consoante/vogal) e não canônicas (vogal/consoante/vogal) e a leitura de

frases e textos curtos, e, por outro, o reconhecimento da finalidade e do assunto de diferentes

suportes e gêneros textuais, como também exploração da tipologia do texto narrativo e do uso

de inferências.

Conforme consta no documento - Guia de Correção e Interpretação dos Resultados,

para constituir os níveis foi feita uma análise da dificuldade das habilidades

medidas no teste. Em seguida, as habilidades foram distribuídas

gradativamente, desde as que estão associadas a processos cognitivos e

conhecimentos mais básicos até os mais avançados (BRASIL, 2010m, p. 4).

Apresentamos os cinco níveis de desempenho na Provinha Brasil, considerando a

edição de 2010 (QUADRO 2)8:

Nível

Edição/Teste

Nível 1 Nível 2 Nível 3 Nível 4 Nível 5

2010/

Teste 1

até 06 acertos de 7 a 11

acertos

de 12 a 17

acertos

de 18 a 21

acertos

de 22 a 24

acertos

2010/

Teste 2

até 06 acertos de 7 a 11

acertos

de 12 a 16

acertos

de 17 a 22

acertos

de 23 a 24

acertos Quadro 2: Números de acertos para identificar os níveis de desempenho dos alunos na 3ª edição da

Provinha Brasil (2010). Fontes: BRASIL (2010c; 201d).

Em uma análise inicial desse quadro, é possível perceber que o posicionamento

dos alfabetizandos nos níveis muda à medida que muda o número de acertos esperados

em cada um deles em cada teste9.

Vejamos, então, como tais habilidades ganham visibilidade em cada um dos

cinco níveis de desempenho apresentados no documento Provinha Brasil – Guia de

Correção e Interpretação dos Resultados10 (BRASIL, 2010l; 2010m). No nível 1

estariam posicionados os alunos que estariam começando a se apropriar do domínio das

regras que orientam o uso do sistema alfabético para ler e escrever; no nível 2, tais

alunos já teriam consolidadas as habilidades do nível anterior e seriam capazes de ler

8 Uma discussão mais aprofundada dessa tabela pode ser vista em Mello (2012). 9 Cabe destacar que, assim como outras avaliações de caráter macro realizadas no nosso país na área da

educação, como o SAEB e a Prova Brasil, a Provinha Brasil “se vale, para elaboração de sua escala e da

seleção dos itens que compõem cada teste, da Teoria da Resposta ao Item, com base no Modelo de

Rasch” (BRASIL, 2010c). Tal teoria focaliza cada item de uma prova, relacionando a probabilidade de o

aluno dar uma determinada resposta a um item, com sua proficiência e com as características

(parâmetros) do item (ANDRADE; TAVARES; VALLE, 2000). 10 É pertinente salientar também que, após a apresentação de cada nível de desempenho esperado na

Provinha, algumas considerações e sugestões de atividades são incluídas e direcionadas aos professores.

7

palavras compostas por sílabas canônicas, incluindo a possibilidade de ler algumas

palavras com ortografia mais complexa; no nível 3, consolidadas as habilidades do nível

anterior, os alunos leriam frases e textos de aproximadamente cinco linhas,

identificando a sua finalidade; no nível 4, o domínio dos textos lidos passaria a ser de

oito a dez linhas, reconhecendo o seu assunto, localizando informações explícitas e

fazendo algumas inferências; no nível 5, seriam posicionados como alfabetizados,

naquilo que a Provinha avaliou em relação aos níveis anteriores, uma vez que outras

habilidades, próprias de eixos que não foram avaliados.

Vale salientar, assim, que a progressão em tais níveis, para garantir um

desempenho de excelência na alfabetização e em um letramento inicial, contaria com a

conquista de todos os itens desses níveis, que nada mais são do que os descritores das

habilidades que constam nos eixos das matrizes de referência previstos para serem

avaliados na Provinha Brasil no período de 2010.

A coleta de informações – dados da pesquisa – Trabalho de campo

Esta seção tem por objetivo evidenciar uma mostra das entrevistas realizadas

com oito professoras que aplicaram a Provinha Brasil, na 4ª edição, período de 2010, de

duas escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre, com vistas a analisar os

efeitos dessa avaliação em suas práticas pedagógicas. O estudo caracteriza-se como

qualitativo com foco descritivo-analítico.

A pesquisa foi realizada em duas escolas da Rede Municipal de Ensino de Porto

Alegre. Uma localizada na região leste da cidade, em uma zona periférica, de

vulnerabilidade social (Escola A) e outra localizada na região sul, em uma zona de

classe baixa (Escola B). A seleção das escolas deu-se pelo fato de uma delas ser a minha

escola de atuação docente e a outra ter solicitado participação da pesquisadora em

formação com os professores dos anos iniciais, via serviço de supervisão escolar.

Os critérios para seleção de professores participantes das entrevistas foram

organizados de acordo com três critérios: a) a professora ou o professor serem os

professores referência das turmas; b) terem sido os aplicadores da Provinha Brasil e c)

aceitarem participar da entrevista.

As entrevistas foram realizadas individualmente com cada professor, em seus

locais de trabalho, sendo gravadas em áudio. De caráter semiestruturado, as seguintes

8

questões foram feitas aos professores: inicialmente foi perguntado o tempo de atuação

nas classes de 2º ano e a formação. Posteriormente, as impressões sobre a Provinha

Brasil, a partir das seguintes questões: a avaliação aplicada prioriza a leitura ou a

escrita? O que é avaliado tem relação com o trabalho realizado com os alunos? Você

considera que seus alunos estão no nível de leitura exigido na avaliação? Quais os

efeitos desse instrumento avaliativo em sua prática docente? As entrevistas ocorreram

no período de novembro e dezembro de 2010. Totalizam para a análise cinco

entrevistas, quatro gravadas em áudio – uma da escola A e três da Escola B e uma

entrevista sem gravação em áudio (Escola A), pois a professora não permitiu. Três

entrevistas não foram realizadas devido a disponibilidade de tempo das professoras e

pesquisadora, sendo duas da Escola A e uma da Escola B..

Os dados das entrevistas serão analisados em uma perspectiva discursiva,

considerando as respostas como práticas sociais e culturais, uma vez que não vermos o

discurso como tradutor da realidade, mas constituindo linguagem. O discurso será

analisado como prática social, pois como atores sociais, nós estamos continuamente nos

orientando em contextos interpretativos em que nos encontramos e construímos nosso

discurso. E como prática cultural, por ser circunstancial, marcado pelo tempo, pelo

espaço e pelos atores que a constituem (GIL, 2002).

A análise qualitativa dos dados de pesquisa está organizada em dois eixos:

Gestão e aplicação da Provinha Brasil – transgressões das práticas docentes. E Gestão

e aplicação da Provinha Brasil – narcisismos nas práticas docentes. Os termos

transgressão e narcisismo foram criados como categoria de análise inspirados no título

do presente Seminário (6º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais em Educação/3º

Seminário Internacional de Estudos Culturais em Educação). No eixo: Gestão e

aplicação da Provinha Brasil – transgressões das práticas docentes, o uso do termo

transgressão serve para evidenciar a “infração”, o atravessamento da gestão escolar aos

discursos relacionados à lógica do mercado quando a prática docente retrata avanços na

aplicação da Provinha Brasil. E no eixo: Gestão e aplicação da Provinha Brasil –

narcisismos nas práticas docentes, o uso do termo “narcisismo” objetiva evidenciar o

quanto algumas práticas docentes focam para uma perspectiva teórica de trabalho, a

crítico social, criando um apartheid pedagógico em relação à aplicação desse

instrumento avaliativo.

9

Destaco que o termo “gestão” foi incluído em razão de o processo docente estar

imbricado no modo como a supervisão escolar mediou à aplicação da Provinha Brasil,

nas duas escolas da referida pesquisa, refletindo nas práticas docentes.

A seguir apresento, então, a análise das entrevistas.

Gestão e aplicação da Provinha Brasil – transgressões das práticas docentes

Para iniciar a análise, destaco que embora reconheça como as políticas

oficiais do Brasil são propostas tendo como uma das referências os imperativos de

organismos internacionais e a relação desses mecanismos de avaliação com o controle

de indicadores de eficiência esses não serão aspectos colocados em evidência na análise.

Nessa seção, discuto algumas evidências obtidas a partir da entrevista realizada

com os três professores da Escola B. Dos três professores entrevistados, duas

professoras (professora A e professora B) e um professor (professor C), todos tinham

formação no ensino superior e cursos de especialização em nível de pós-graduação. O

professor possuía mestrado e estava terminando o doutoramento. As duas professoras

tem longa experiência docente com os anos iniciais, principalmente em classes de

alfabetização, entre 14 e 16 anos de docência. Já o professor, apresenta sua atuação

maior nos anos finais e ensino médio, devido a sua graduação em Letras. Tem em média

também 16 anos de atuação docente. Desde 2009 trabalha como professor de linguística

na Universidade Federal de Ciências da Saúde, no curso de fonoaudiologia. Em razão

de sua atuação no Ensino Superior, de modo a estabelecer relações entre teoria e prática,

o professor iniciou no ano de 2010 sua atuação com o segundo ano do 1º ciclo, sendo

sua primeira experiência com esse ano ciclo.

Uma das evidências a serem destacadas para a análise é a compreensão do

caráter diagnóstico da Provinha Brasil, entre os entrevistados. Todos os três professores

consideraram que o instrumento avaliativo Provinha Brasil era útil para que

percebessem o que estavam enfatizando e seus alunos conseguiam avançar e o que

necessitavam rever, pois não estavam enfatizando e seus alunos demonstravam

dificuldades. É relevante, conforme já dito, o papel mediador da supervisora escolar

Vejamos o que dizem alguns professores: “(...) a gente conversou/a gente fez umas

coisas interessantes de vê mais ou menos as turmas/Vê que nas turmas a gente tem

10

essas disparidades/ que é legal/ (...) houve movimento de reflexão/ eu acho que a gente

precisa fechar com esses resultados agora no conselho de classe pra planeja pro ano

que vem né/ (...)”. (Professor C); “Esse ano tá bem melhor. (...) a supervisora mapeou

como as turmas foram/nos apresentou/ apresentou a prova. Agora tá bem mais

concreto/ tu pode vê aluno por aluno/ nós mandamos inclusive na entrega de avaliação

como foi cada aluno como foi cada aluno/ o que tiveram mais dificuldade”. (Professora

A).

Outro aspecto evidente foi a identificação por parte dos professores da presença

de gêneros textuais e seus portadores na avaliação realizada, destacando-se o letramento

escolar.

Nesse sentido, observo que os entrevistados destacam aspectos condizentes com

os documentos orientadores da Provinha Brasil quanto ao caráter diagnóstico do

instrumento avaliativo

É importante ressaltar mais uma vez, que os resultados da Provinha

Brasil serão utilizados na composição do Índice de Desenvolvimento da

Educação Básica – IDEB. O desejável é que ela seja utilizada com o intuito

de orientar as ações políticas e pedagógicas que poderão, em conjunto com

outras iniciativas, melhorar os índices apresentados até o momento. [...] Ela

foi concebida a partir do pressuposto de que uma avaliação da fase inicial da

alfabetização pode trazer para o professor e para o gestor da escola

informações que podem contribuir para o aperfeiçoamento e a reorientação

das práticas pedagógicas. (BRASIL, 2010c, p.5).

E a análise, divulgação e utilização dos resultados pelos professores

Para que a Provinha Brasil alcance os objetivos para os quais foi proposta, é

necessário que o professor e seus colegas [...] comuniquem os resultados aos

pais, para incentivar o acompanhamento do aluno, orientando-o sobre como

fazê-lo [...]. (BRASIL, 2010c, p. 7).

Assim sendo, parece evidente não haver, por parte dos professores, uma rejeição

ao trabalho de aplicação, análise, divulgação e utilização de resultados por parte dos

professores. Isso, no entanto, não os tolhe de críticas ao instrumento avaliativo, pelo

contrário as apontam de forma contundente. Vejamos o que dizem: “(...) eram diversos

textos que colocaram, né/ tinham coisas que eram meio subjetivas assim para eles/ (...)a

gente prepara para aquela pergunta mais direta, né/(...) tinha coisa ali que eles tinham

que lê no mínimo duas vezes “(Professora A); “ Acho que os alunos ganhariam com

menos textos e questões/ então nesse sentido/ é onde tu nota que eles começam a errá;/

e parte desses erros é porque estão cansados também(...)” (Professor C).

11

A lógica reflexiva em relação a Provinha Brasil dos professores entrevistados da

Escola B destaca, de certo modo, uma transgressão ao modo de olhar as avaliações

externas, no caso Provinha Brasil, uma vez que dão visibilidade a reflexão e não apenas

à crítica, permitindo ouras perspectivas de análises ao instrumento avaliativo.

Gestão e aplicação da Provinha Brasil – narcisismos nas práticas docentes

Nessa seção, discuto algumas evidências obtidas a partir da entrevista realizada

com as duas professores da Escola A. As duas professoras entrevistadas (professora D e

professora E) tinham formação no ensino superior na área da educação, somente uma

das professoras - professora D - tinha curso de especialização em nível de pós-

graduação na área da educação. As duas professoras tem longa experiência docente com

os anos iniciais, principalmente em classes de alfabetização, entre 12 e 14 anos de

docência. A professora D possui também experiência na Educação Infantil.

Destaco que ambas as professoras reconheceram a Provinha Brasil como um

instrumento avaliativo diagnóstico de seus trabalhos, contudo destacando que não há

necessidade dessa avaliação para o diagnóstico de aprendizagem dos alunos

alfabetizandos. Devido a sua experiência nos estudos psicogenéticos a professora D

aponta a aula entrevista 11proposta pelo GEEMPA12, como uma possibilidade de análise

diagnóstica dos alfabetizando de forma mais precisa.

A professora E também menciona como a avaliação dos níveis de escrita pelo teste

das quatro palavras e uma frase é pertinente para o diagnóstico da aprendizagem escolar

dos alfabetizandos relacionadas à escrita. Para a professora E não há necessidade de

mais uma avaliação.

11 A Prova Ampla ou Aula Entrevista é um instrumento utilizado para testar alunos das turmas envolvidas

com a didática geempiana na alfabetização. Apresentado inicialmente nos cursos de especialização do

GEEMPA, no início de 2003. 12 Grupo de Estudos sobre o Ensino de Matemática em Porto Alegre (GEEMPA) –, foi fundado há 37

anos por um grupo de 50 professores que estavam preocupados com a reformulação do ensino de

matemática em Porto Alegre. Por volta de 1979, começou a se voltar para o problema da aprendizagem de

classes populares, centrando os estudos na área da alfabetização. Isso levou o GEEMPA a alterar seu

nome para Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação, em 1982, iniciando um

projeto sobre a construção de uma proposta didática de alfabetização para crianças de classes populares

vinculada aos estudos de Ferreiro e Teberosky (1999) – portanto, à epistemologia genética piagetiana

(KURTZ, 1989).

12

Tal posicionamento das professoras D e E apontam a sustentação teórica e prática

das mesmas no que concerne o modo de organizar o trabalho pedagógico sobre a leitura

e a escrita em bases psicogenéticas. Tradição de práticas muito presentes nessa rede de

ensino, conforme Mello (2012). A entrevista das professoras dá visibilidade ao discurso

do construtivismo pedagógico, como prática naturalizada no ambiente escolar

(DAL’IGNA, 2007) e, nesse sentido narcísea.

As entrevistadas destacam, ainda, o caráter meritório das avaliações externas,

salientando o aspecto da mensuração dos resultados. Nesse sentido, observo uma certa

transgressão, mas também um pensamento narcísico, a partir de metanarrativas criadas e

inventadas pela pedagogia psicogenética.

Considerações finais

A análise das entrevistas, nesse momento, tem me possibilitado pensar algumas

questões sobre a aplicação da Provinha Brasil e as diferentes formas de gerenciar essa

política pública avaliativa e suas implicações pedagógicas no âmbito da gestão escolar,

dando voz aos professores. Procurei, assim, nesse estudo, mostrar como o discurso da

avaliação educacional tem construído posições de docentes que se sustentam em

determinadas concepções de alfabetização, ora ocupando a posição de transgressores

dos discursos pedagógicos hegemônicos, ora ocupando posição de guardiões desses

discursos.

Referências

DAL’IGNA, Maria Claúdia. Currículo, conhecimento e processos de in/exclusão na

escola. In: LOPES, Maura Corcini; DAL’IGNA, Maria Claúdia. In/exclusão: nas tramas

da escola. Canoas: Editora da ULBRA, 2007. P. 35-48.

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