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Estudo de caso sobre experiencia com hipertensão arterial na perspectiva socioantropologicaTRANSCRIPT
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903Estudo de caso sobre a experinciacom a presso alta
| 1 Ana Maria Canesqui |
1 Doutora em Cincias e Livre-Docente em Cincias Sociais Aplicadas Medicina. Departamento de Sade Coletiva. Faculdade de Cincias Mdicas. Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]
Recebido em: 16/04/2013.Aprovado em: 15/09/2013.
Resumo: Aborda-se a experincia com a presso alta e enfermidades associadas postas como sofrimentos fsicos e morais na totalidade da pessoa que vive, reflete e atua em meio s circunstncias de vida que a afetam. Trata-se de estudo de caso integrante de uma investigao qualitativa sobre narrativas e significao da presso alta, feita com 17 homens e 20 mulheres diagnosticados h mais de um ano com hipertenso arterial, usurios de uma unidade de Sade da Famlia de uma cidade interiorana paulista. Dois motivos nortearam a seleo do caso: estar includo entre os sete indivduos entrevistados que mencionaram ter descoberto a hipertenso na ocasio em que passaram pelo infarto cardaco ou pelo derrame cerebral e pertencer ao gnero feminino. As informaes foram obtidas mediante entrevistas semiestruturadas sobre as condies percebidas de sade, a descoberta da enfermidade, as explicaes sobre sua gnese, os itinerrios teraputicos, os apoios sociais recebidos; as relaes com os servios de sade e outros agentes de cura e o gerenciamento das prescries mdicas. Demonstram-se as interconexes da experincia pessoal e singular do adoecimento com os contextos socioculturais mais amplos, com os valores morais, relaes sociais e as representaes sociais sobre corpo, sade, doena e cuidado compartilhados com a classe trabalhadora.
Palavras-chave: experincia com a enfermidade; hipertenso arterial, cincias sociais e sade; pesquisa qualitativa em sade.
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Introduo bastante pertinente abordar a experincia com as enfermidades de longa
durao consideradas crnicas pela biomedicina, geralmente invisveis,
multifatoriais, cujas causas nem sempre so conhecidas, e que impem aos
adoecidos prolongado convvio com elas, demandando encontros frequentes com
os mdicos e profissionais de sade, sem a eles se restringirem. Essas doenas
produzem impactos sobre as vidas dos sujeitos e seu entorno, em funo de
suas especificidades e transtornos ocasionados. Anselm Strauss foi o primeiro
socilogo a abordar os significados e a experincia com essas enfermidades,
afirmando que as doenas crnicas so de longa durao, incertas, mltiplas,
requerem paliativos, porque so incurveis (STRAUSS; GLASER, 1975, p. 16).
A hipertenso arterial sistmica, clinicamente apresentada como assintomtica,
crnica, multifatorial, de risco para outras enfermidades (cardiovasculares,
complicaes renais, cerebrovasculares e outras leses) incurvel, porm
controlvel pelas tecnologias mdicas. crescente problema de sade pblica
e seu controle, vigilncia e monitoramento so objeto da poltica nacional de
sade. Sua prevalncia abrange 35% da populao jovem e adulta acima de 40
anos (BRASIL, 2006).
Nas anlises sociolgicas das enfermidades crnicas, destacam-se no contexto
anglo-saxo as abordagens da experincia da enfermidade revistas por Pierret
(2003). A autora aponta uma fase inicial das pesquisas centrada na experincia
subjetiva, abordando as metforas, representaes cognitivas, imagens e
aprendizagem em relao ao adoecimento, formas de enfretamento e os manejos
para amenizar seus efeitos. Os estudos tambm incluram nesta fase o estigma,
a vergonha e a perda do eu em torno de algumas enfermidades e anlises das
narrativas. Outra fase das investigaes centrou-se nas interaes dos pacientes
com os demais, incluindo a organizao familiar e as atividades ocupacionais; as
diferenas de gnero, tnicas e sociais; as aes de coping, estilo e normalizao,1 integrantes das modalidades ou estratgias de ajustamento enfermidade,
apontando-se mais recentemente a necessidade de relacionar a experincia pessoal
e subjetiva com os contextos polticos, econmicos e socioculturais mais amplos.
Compartilha Pierret das sugestes do socilogo ingls Michel Bury (1991, p.
453), sobre a necessidade de as pesquisas relacionarem as experincias singulares
e os significados com a organizao do cuidado mdico, a interferncia da mdia,
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905das associaes e movimentos de pacientes e com o consumismo, a que esse autor
designa de externalidades contextuais experincia, enquanto Pierret prefere
report-los genericamente estrutura social2 (2003, p. 8). Sugere a autora que
esse tipo de anlise deve ultrapassar a anlise dos fatores sociais e econmicos
para incluir os efeitos dos pertencimentos de classe social, gnero, etnia, idade
e as influncias do contexto geral na experincia da enfermidade, assim como
os efeitos sobre a organizao do cuidado, das instituies e no saber mdico,
sempre mutveis no tempo e na histria das sociedades.
Pierret admite a raridade de estudos anglo-saxes nesta direo, que aderem
s perspectivas sincrnicas e anistricas. Entretanto, menciona algumas
investigaes britnicas como exemplares da ultrapassagem da experincia
subjetiva e individualizante da enfermidade, enfocando os impactos do contexto
socioeconmico e das ideologias sociais mais amplas na construo de certos
eventos vitais (menopausa e envelhecimento) e doenas; o papel da poltica
de sade, do sistema de cuidado, do conhecimento mdico e dos modelos e
imagens corporais difundidos pela mdia sobre a experincia com a enfermidade.
Acrescenta a necessidade de os estudos abordarem a relao entre a biologia, as
emoes e o corpo na experincia da enfermidade e incapacidade.
A sociologia est mais presente do que a antropologia nas investigaes anglo-
saxnicas sobre a experincia com as enfermidades de longa durao. Entretanto,
a antropologia mdica norte-americana aproximou-se do paciente, afirmando ser
a doena profundamente individual por alcanar o mundo subjetivo, corporal
e ntimo, inscrevendo-se nas biografias dos sujeitos e nos contextos cultural e
moral (KLEINMAN; SEEMAN, 2000), sempre localizados nos tempos e nos
espaos sociais historicamente construdos, transcendentes ao mundo prtico e
imediato. Uma parte desta literatura abordou a relao da experincia pessoal
com o sofrimento e os construtos socioculturais, morais e relacionais sem se ater
to somente dimenso pessoal/subjetiva e orgnica.
relativamente escassa a produo acadmica nacional sobre a hipertenso do
ponto de vista da investigao qualitativa em interlocuo com as cincias sociais e
humanas. Uma reviso a respeito nas bases eletrnicas de informaes cientficas
como Lilacs e Biblioteca Virtual de Sade Pblica identificou 146 artigos,
teses de doutorado e dissertaes de mestrado na palavra-chave hipertenso
(CANESQUI, 2007). Distribuiu-se esta produo cientfica, segundo os tipos
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de estudo, em: epidemiolgicos (40%); servios mdicos-assistenciais (17,0%);
clnicos, experimentais e farmacolgicos (13,0%); adeso/no adeso aos
tratamentos mdicos (2,5%); psicologia e cognio (2,5%); cincias sociais e
humanas (8,0%); outros (17,0%). Incluram-se nesta ltima categoria os estudos
reportados palavra-chave hipertenso, sem abord-la exclusivamente.
As investigaes relacionadas s cincias sociais e humanas, geralmente feitas
entre mulheres pertencentes s classes trabalhadoras de baixa renda, aproximaram-
se mais raramente da anlise da poltica de sade dirigida hipertenso, mas
principalmente da pesquisa antropolgica, enfocando o modelo de signos,
significados e aes; a anlise de narrativas; as representaes da enfermidade;
a identidade e localidade, perpassando os discursos sobre a enfermidade e as
relaes com os tratamentos mdicos. Os estudos se deram a partir do final
da dcada de 1980 em diferentes contextos urbanos e regies do pas, sendo
seus autores cientistas sociais ou profissionais de sade. No se registraram nesta
reviso da literatura pesquisas sobre a experincia com a presso alta.
Investigaes sobre o uso de servios de sade em reas cobertas pela Estratgia
de Sade da Famlia (ESF) no municpio de So Paulo apontam certo nvel de
acesso e uso dos servios de sade na populao residente em reas empobrecidas
daquele municpio, mesmo que no cobertas pela ESF (GOLDBAUM et al.,
2005). Admitem os autores que esta estratgia foi capaz de reduzir os efeitos
das condies sociais desiguais, medidas atravs de variveis socioeconmicas
e demogrficas selecionadas sobre o perfil do acesso e de uso dos servios de
sade com melhora da equidade social. Acrescentam tambm que, uma vez
efetivamente implantada, esta estratgia produz impactos no perfil do acesso e
uso dos servios de sade (GOLDBAUM et al., 2005).
Voltando a ateno a uma parcela de hipertensos usurios de uma unidade da
ESF da cidade de Amparo, Estado de So Paulo, no se investigou localmente
a implementao desta estratgia, vigente h 11 anos na cidade no momento de
realizao da pesquisa que deu origem ao estudo de caso abordado neste texto.
Entretanto, avaliaes e pesquisas sobre os vrios aspectos daquela estratgia
apontam os obstculos e efetiva implementao no territrio nacional, em especial
a desejada mudana do modelo assistencial, admitindo possibilidades de superao
dos problemas encontrados (CAMARGO JR., 2008). Apontam tambm as
avaliaes empreendidas diferenas na cobertura populacional, a importncia no
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907acesso das populaes empobrecidas ateno bsica, os problemas relacionados
ao financiamento, a implementao parcial de algumas atividades previstas, alm
de outros aspectos (BRASIL/MS, 2002a; 2002b; 2005).
Esse tipo de ateno bsica procura submeter os pacientes s normas mdicas
no controle da hipertenso arterial e na preveno de seus riscos. Apesar disto,
importante abordar a complexidade da experincia com a enfermidade. Trata-se
de um processo atravessado por mltiplas dimenses: situacionais, sociais, morais,
afetivas, relacionais sempre permeando os contextos das vidas dos sujeitos, de seu
entorno e grupo social, vivendo sob determinadas condies sociais e de sade,
de classe e gnero.
Este trabalho se centra na experincia com a presso alta e outras doenas
coadjuvantes e consequentes, ancorado em um estudo de caso, integrante de
uma pesquisa socioantropolgica e qualitativa sobre narrativas e significados da
presso alta realizada em 2009, entre 17 homens e 20 mulheres diagnosticados
com hipertenso arterial h menos de um ano, segundo informaes do Cadastro
Hiperdia de uma Unidade de Sade da Famlia (CANESQUI, 2010).3
Os informantes desta pesquisa eram de baixa renda e pertencentes aos
segmentos da classe trabalhadora urbana, descobertos pelos planos de sade
privados e primordialmente dependentes dos servios pblicos e filantrpicos de
sade. Residiam nos diferentes setores territoriais de uma rea coberta por aquela
unidade. Sem abrir mo da interpretao da pesquisadora, enfoca-se o relato na
primeira pessoa de uma mulher diagnosticada com hipertenso arterial sistmica.
Seleo do caso, procedimentos e instrumentos da investigaoA ESF, dirigida s famlias empobrecidas da cidade de Amparo, permite
aos hipertensos cadastrados na unidade de sade acessar periodicamente a
ateno clnica, obter medicamentos e ser acompanhados por uma equipe
multiprofissional, atuante na prpria unidade e nos domiclios. Nestes ltimos
do-se principalmente a visitao e os aconselhamentos mdicos e teraputicos
pelos agentes comunitrios de sade aos adoecidos cadastrados.
As informaes para o estudo de caso procederam de trs entrevistas
feitas mediante roteiro semiestruturado. Elas foram gravadas, transcritas e
analisadas. Extraiu-se o caso do universo de 37 entrevistados do mencionado
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estudo, selecionando-o por dois motivos: encontrar-se entre os sete indivduos
entrevistados que mencionaram ter passado pela experincia de infarto cardaco
ou de derrame cerebral, como momentos primordiais de descoberta da hipertenso
arterial e pertencer ao gnero feminino.
Esse tipo de estudo qualitativo circunscrito e no pretende generalizar seus
resultados. D-se sempre em torno de uma unidade (pessoa, instituio, classe
de crianas, grupo, comunidade, entre outros). O estudo de caso, segundo Stake
(2000), microscpio, localizado, particular e organizado em torno de um
pequeno nmero de questes, comportando sempre um recorte. Para o autor, o
propsito do relato de caso no representar o mundo, mas representar o caso
(STAKE, 2000, p. 448). Sua anlise transcende a experincia pessoal/subjetiva,
permitindo dialogar com o contexto mais amplo onde se insere.
A tcnica de relato oral foi utilizada, sem conferir total autonomia ao
entrevistado medida que os temas so sugeridos e controlados pelo pesquisador
(QUEIROZ, 1987). Os relatos orais so sempre verses da experincia com o
adoecimento e os eventos que a cercam. Eles foram fornecidos pela entrevistada
pesquisadora e por ela interpretados. Vislumbra-se, portanto, uma anlise do
ponto de vista socioantropolgico em torno da experincia com o adoecimento e
os sofrimentos fsicos e morais.
A exposio do caso, atravs da leitura da experincia com a enfermidade,
ultrapassa a doena como fato biologicamente informado, inserindo-a no contexto
sociocultural, econmico, moral, relacional e biogrfico de quem age, reflete e
atua diante dos eventos, no destitudo das capacidades reflexiva, interpretativa e
da ao. Este estudo de caso pontual nos aspectos da experincia da enfermidade
considerados, tais como: as interpretaes das condies de sade no momento
da entrevista; o uso dos conhecimentos eruditos e no eruditos (do prprio grupo
social); as explicaes gnese da enfermidade; representaes e significaes da
enfermidade e da condio de adoecimento; a mobilizao de recursos de cura
(itinerrios teraputicos), os apoios sociais recebidos; a descoberta da presso
alta; as formas de control-la e de interpret-la.
LucianaLuciana (nome fictcio) nasceu em Amparo, onde reside h 58 anos. Casada, mora
em casa prpria com o marido e uma filha. Os demais filhos casados residem
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909em outras cidades. Cursou o ensino fundamental e trabalhou como faxineira
diarista durante algum tempo. Dedicava-se, no momento das entrevistas, apenas
aos afazeres domsticos no remunerados, apresentando-se como do lar. A
renda familiar soma trs salrios mnimos e meio, advindos da aposentadoria do
marido e de alguns servios feitos por ele como bicos remunerados.
Apesar de hipertensa diagnosticada, omitiu esta enfermidade quando
discorreu sobre seu estado de sade atual, enfatizando os problemas cardacos,
as dores (no peito e na coluna) e os problemas vaginais, atribudos ao clima frio,
que segundo o senso comum, responsvel pelos desequilbrios da temperatura
ambiental com o corpo quente, impedindo-a sentir-se sadia. Submeteu-se
cirurgia cardaca h dez anos. Relembra este evento marcante em sua vida,
que lhe alterou as rotinas dirias, a prpria vida, as condies percebidas de
sade, a capacidade de trabalhar como faxineira e a identidade social de pessoa
considerada anteriormente sadia. Nas palavras de Luciana:Eu no ia ao mdico, eu estava com a sade perfeita, sade boa. Eu trabalhava, eu cuidava de tudo, fazia de tudo. A aconteceu aquele sangramento. Fui correndo para o hospital. Passaram algumas horas e o mdico mandou voltar para a casa e procurar um cardiologista. Fiz cateterismo, a enfermeira me levou para So Paulo e melhorei um pouco. Mas no teve jeito. Passei por muitos exames, fiz duas angioplastias, exames de sangue, exame do corao. Sofri bastante. No teve jeito. Operei o corao. Voltei a casa e estava bem, mas eram muitos problemas na famlia [...]. Depois faleceu meu filho, h trs anos. Eu sofro muito. Sinto falta dele, mas minha tristeza porque quem morava com ele no cuidava dele e eu no podia cuidar. Sabe o que pensar no filho desde a hora que levanta at quando vai dormir?Tomo remdio, levanto, penso de novo nele o dia inteiro. No me esqueo dele... e a fiquei pior porque aumentaram as dores.
A centralidade no relato de Luciana das dores, dos eventos relacionados ao
corao e s perdas (da sade e do filho) traduz sofrimentos fsicos e morais.
Ao lado disso, o corao condensa simbolismo socialmente compartilhado
como rgo sede da vida e das emoes, compreendendo as significaes e a
importncia da cirurgia neste rgo nas suas explicaes e os efeitos simblicos e
concretos sobre seu corpo e pessoa.
Alm do sangramento, simbolizando perigo de vida e necessidade urgente
de atendimento mdico, ela relata detalhadamente o atendimento obtido no
hospital por ocasio da cirurgia cardaca. Exceto a cirurgia, os demais atos
mdicos aos quais se submeteu por ocasio da internao hospitalar no foram
inteiramente inteligveis. Refere-se s frequentes manipulaes de seu corpo nos
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atos de examinar, de controlar os sinais vitais feitos por mdicos e enfermeiros, aos
vrios exames laboratoriais e por imagem aos quais se submeteu, a administrao
frequente de medicamentos nos horrios previstos e a maior concentrao naquele
espao de profissionais, especialistas e tecnologias mdicas.
Este conjunto de atos mdicos e o uso de tecnologias mais sofisticadas
forneceram Luciana certeza de ter sido examinada exaustivamente, solucionando
temporariamente os problemas e as dores no peito. O hospital, nas representaes
do senso comum, lugar onde se dispe de bom atendimento, ou seja, do
acesso s tecnologias mdicas, aos mdicos especialistas e aos exames sofisticados
(CANESQUI, 1992), todos indisponveis na ateno bsica. tambm espao
pouco familiar s pessoas das classes trabalhadoras.
No tempo decorrido aps a cirurgia, Luciana reitera seus esforos permanentes
e contnuos de procurar os servios de sade, da frequente relao com os mdicos
para resoluo dos males fsicos e morais que a afligem, vendo-se transformada
de pessoa forte (disposta para o trabalho e resistente, segundo o senso comum)
em pessoa nervosa, fragilizada fsica e moralmente. Relata: faz dez anos, no
fiquei bem mais. Passa uma semana, semana passa e eu fao as coisas e voc pode
ver. No so como eram antes.
A ruptura biogrfica, na expresso de Bury (1982), inclui a experincia com
as condies crnicas na qual a estrutura da vida cotidiana, seus significados e
formas de conhecimento so interrompidos, levando o adoecido a questionar o
sentido de sua existncia, a autoimagem e as explicaes do adoecimento e de
sua condio. Este processo no estanque comporta a reorganizao biogrfica
contnua no desenrolar do tipo de enfermidade, das circunstncias de vida e de
seu entorno e, provavelmente, no contato com as intervenes mdicas regulares.
Os itinerrios teraputicos percorridos por Luciana incluem, alm da
medicina, dos mdicos e servios de sade, os agentes religiosos e o uso de
recursos informais de cura. Este conceito se refere busca de cuidados, s aes,
interpretaes e significao no submetidas a um nico padro. Mass (1984)
lembra as mltiplas variveis (situacionais, sociais, psicolgicas, econmicas,
ideolgicas e culturais) envoltas na procura e busca de cuidados mdicos tambm
circunscritos, tanto pela ideologia e valores, quanto pelo perfil do acesso e
disponibilidade de tecnologias.
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911No caso da hipertenso arterial, os itinerrios teraputicos investigados
apontam a valorizao do sistema formal de sade e do saber mdico especializado
(TRAD et al., 2010) sem que o processo interpretativo seja esttico e inicialmente
apreendido em um dado momento das vidas dos adoecidos. Luciana circula entre
os vrios servios pblicos ou filantrpicos de sade ofertados na cidade sem
encontrar soluo para as queixas, sofrimentos e obteno do exame de raios X,
considerado indispensvel. Nas suas palavras:Fui trs vezes, trs semanas em seguida ao Grmio (servio mdico do Sindicato). Fui l porque no aguento ir ao postinho de manh. Eu no aguento ir cedo. Fui ao Grmio, tomei injeo que tira a dor. A o mdico passou Dipirona com Benzetacil. Tomei, mas a dor voltou aps alguns dias. Fui l de novo. A o mdico falou: no precisa vir mais, no precisa voltar aqui para fazer exame mais minucioso para ver esta dor nas costas porque a dor no peito j foi operada. Eu no voltei. Vou voltar l dia trinta. Vou passar com a enfermeira. A eu tenho que tirar radiografia, tem que pedir. Eu acho que tenho que tir-la com urgncia.
As dores no cessam na interpretao do sofrimento de Luciana. Ela insiste
em encontrar soluo junto aos mdicos e servios de sade. Dirigiu-se a um
pronto-socorro na expectativa de obter o pedido de raios X. Diante da nova
recusa do mdico, justificada, por ela, pelo fato de no apresentar dor na coluna
no dia da consulta, no desistiu. Planejava retornar unidade de Sade da Famlia
para solicitar aquele exame. A relao com os mdicos, os servios e profissionais
de sade, com seus saberes, informaes e intervenes tambm compem o
universo da experincia com o adoecimento, seja para legitimar, demandar ou
recusar as intervenes mdicas.
De um lado, a experincia do sofrimento fsico e moral de Luciana
expresso nas queixas frequentes e insolveis das dores so deslegitimadas pela
biomedicina, empurrando-a para o limbo diagnstico (CORBIN; STRAUSS,
1985) ou na incerteza existencial (ADAMSON, 1977). Alm disso, observa-
se nas investigaes feitas com pacientes cardacos atendidos em uma unidade
de pronto-atendimento na cidade de So Paulo que, aos classificados como
poliqueixosos (CHAMM, 2000) pelos profissionais de sade, imputam-se
dores imaginrias ou psicolgicas e a busca frequente dos vrios servios de
sade. Ele observa que esse tipo de paciente: [...] constantemente envolto em processos por ele prprio denominado de procura pela cura rotinizando aes, perfazendo trajetrias, ritualizando costumes, ilustran-
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do situaes, descrevendo o prprio corpo adoecido segundo as instncias de seu imaginrio alimentado pelas condies inumerveis de convivncia com as doenas. Procurando fazer-se compreender espera, em vo pela ateno mdica e consequente diagnstico favorvel aos seus desejos de ser, ao mesmo tempo, ouvido, seduzido e amado (CHAMM, 2000, p. 277).
No dispomos de informaes se Luciana foi categorizada poliqueixosa pelos
profissionais de sade. Mas sabe-se pelo seu relato que, apesar de ser hipertensa
diagnosticada e de ter passado por problemas cardacos, suas queixas e insistentes
dores expressando o sofrimento fsico e moral so pouco ouvidas pelos mdicos. A
presena de dores expressa a condio de adoecimento, segundo os parmetros de
Luciana e do seu grupo social. No casual que ela se queixe, demande remdios
e raios X insistentemente. Tesser (2010, p. 64) observa que: atravs do contato
exotrico, a metamorfose de sentido d-se sob maior simplificao e maior grau
de anomias vivenciais nas interpretaes e tratamentos mdicos dos adoecidos.
Alm dos servios de sade acionados, Luciana, contrariando a opinio do
marido, retornou aps a cirurgia religio catlica em busca de proteo e de
amparo divinos, que acredita serem eficazes para acalm-la e minimizar os
sofrimentos. Oraes, as palavras do padre e a frequncia ao ritual catlico (missa
aos domingos) possibilitam manejar e amenizar a experincia com os sofrimentos
fsicos e morais que a acometem. As observaes de Loyola (1984) sobre os agentes
religiosos catlicos enquanto recursos de cura so pertinentes:[...] as religies onde a separao matria e esprito, corpo e alma, maior, os agentes religiosos (padre, religiosas, pastores) tendem a se limitar cura da alma, o papel que exercem no domnio do corpo, consistindo apenas em reforar o ato mdico; onde a autonomia do corpo menor, o espiritual acaba por encontrar a prpria autonomia, a matria a submeter-se ao esprito. (LOYOLA, 1984, p. 18).
Alm de obter o apoio do marido e de uma filha, sempre premidos pelas obrigaes
e deveres familiares e pelo prprio valor da famlia para as classes trabalhadoras,
Luciana recorre a uma amiga que ouve seus lamentos, dores e queixas, ao contrrio
dos profissionais de sade que se recusam a ouvi-la. O apoio da amiga ancora-se na
solidariedade e ajuda, como valor moral das classes trabalhadoras, permeando as
relaes sociais. Referindo-se a esta amiga, Luciana relata:Eu tenho uma amiga desde que eu fiquei doente ela nunca me deixou. amigona mesmo. Ela conversa, s vezes estou aborrecida eu vou l. Eu descarrego tudo nela: converso, conto e choro. Olha, mas no foi fcil estes trs anos. No foi fcil e
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913nunca ser. O Dr. X fala para mim: cuide-se mais. A senhora nova. No sei o qu a senhora tem. A senhora precisa deixar de usar roupa preta. Mas, eu no consigo. Eu sou assim e vai ser assim...
Luciana persiste no luto simbolicamente expresso no uso de roupa preta, publicamente anunciado e comunicado, insistindo junto aos mdicos a obteno do exame de raios X, sem xito. Acredita na eficcia deste tipo de exame para diagnosticar as dores permanentes na coluna e no peito, que a afligem. similaridade dos demais componentes de sua classe social, deposita na medicina, nos mdicos, nos exames e nos remdios esperanas de resoluo do estado de perturbao fsica e moral em que se encontra.
Vale observar a magia exercida nas representaes e demandas do senso comum dos exames de raios X e de sangue, assim como das cirurgias (representadas como extrativas do mal) fortemente valorizados, no apenas pela extenso do acesso aos processos de diagnstico e teraputico, mas pelo fato de responderem lgica da concretude e no da abstrao posta por Lvi-Strauss (1970) em relao ao pensamento selvagem. Aquele exame permite ao mdico visualizar as imagens do interior do corpo e, segundo as representaes de Luciana, compartilhadas com seu grupo social, tambm poder fornecer-lhe visualizao e concretude s inexplicveis, recorrentes e persistentes dores na coluna e no peito, associadas por ela cirurgia cardaca e perda do filho, mobilizando seus lamentos e sofrimentos fsicos e morais.
Luciana relata no conversar com outras pessoas sobre a presso alta, exceto com a amiga, que a atribui ao nervoso, explicao que tambm endossa. Acredita que o nervoso deve ser evitado pelo esquecimento das aflies, pela ingesto de calmante, pela prtica de relaxamento e feitura de trabalhos manuais (confeco de panos de prato). Acrescenta ao relato do prprio estado de sade o suor que lhe escorre pelo pescoo, pressupondo-o gerado pela falta de hormnios, ressentindo-se do fato de o mdico no receitar remdios para alivi-lo. O suor desperta vergonha e incmodo, acompanhando-a em todos os lugares. Deteriora e macula publicamente a autoimagem de pessoa asseada e limpa, cuja visibilidade quer evitar. Lembra-se que asseio e limpeza so socialmente valorizados em relao imagem da mulher pertencente aos grupos sociais trabalhadores.
A extenso das categorias higiene e limpeza tambm se aplica casa, comida e aos objetos domsticos, sempre sob os cuidados e obrigaes das esposas e mes
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de famlia (CANESQUI, 2005). Ao lado do suor, Luciana se autorrepresenta
atacada de tudo, de depresso, de obesidade, dos problemas de tireoide, sempre
aludidos ao tempo decorrido aps a perda do filho e a cirurgia, como expresses
dos sofrimentos fsicos e moral que a afligem.
A descoberta da presso alta e as explicaes sobre sua gneseLuciana detalhou a descoberta da presso alta respondendo interrogao
da pesquisadora. Associou-a aos sinais corporais de sangramento, quando
acometida de infarto, simbolizando perigo de vida, gravidade e necessidade de
busca imediata dos servios mdicos. Ela hesitou associar os eventos cardacos s
consequncias da hipertenso arterial, postos pelo saber biomdico. Mencionou
ter sido diagnosticada anteriormente de hipertenso, somente em outro momento
da entrevista. Discorreu detalhadamente o sangramento, a cirurgia, o atendimento
hospitalar e a busca contnua dos servios de cura.Como eu descobri a presso alta? Porque uma vez eu estava dormindo, eu acordei cedo quando saiu sangue pelo nariz. Comeou a sair sangue pelo nariz, pela boca, todo coalhado; coisa que eu sujei toda a cama. No vencia toalha de banho. No ven-cia toalha de rosto. Ento meu marido me levou correndo para o hospital. No hospital falei para o mdico: olha como estou. Ele falou: d graas a Deus que est saindo sangue pela boca e pelo nariz. Sabe, saiu sangue at pelo nus. A ele falou: se tivesse sado pelo olho e ouvido voc teria morrido. A ele me encaminhou ao Dr. X e come-cei a fazer tratamento aos 45 anos. Eu fiz tratamento, no adiantou. O meu corao no estava aguentando mais. A ele me mandou para So Paulo. Operei o corao.
Luciana interpretou que aps a cirurgia do corao, a presso alta
tambm pudesse estar curada, tal como a extrao do mal por esta tcnica
mdica, dispensando a ingesto de remdio prescrito para ser tomado para
toda a vida. Revelou ter sido anteriormente diagnosticada como hipertensa
(denominao da doena usada tanto pelos profissionais de sade quanto pelos
adoecidos), afirmando que:Olha, eu tinha 31 anos e fui ao mdico. Ele falou que eu estava com presso alta, mas eu no liguei. Eu achei que no era; eu era nova ainda. Eu no tomei remdio. Da veio aquele problema, saiu sangue [...]. Eu achei que no era, continuei comendo o que tinha que comer, a veio este problema. Eu fui ao mdico que cuida de mim at agora, quando eu vim de So Paulo. No deixei de ir. Ele sabe tudo. Sabe?
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915Uma das explicaes do senso comum sobre a gnese da presso alta,
compartilhada com o grupo social, associa-se ao envelhecimento visto como processo
natural. O fato de Luciana considerar-se jovem e sadia, quando fora diagnosticada de
hipertenso pela primeira vez, provavelmente interferiu no descrdito do diagnstico
e na recusa de tomar os medicamentos prescritos na ocasio.
insuficiente a comunicao do diagnstico mdico para que o adoecido
reconhea e assuma a condio de adoecimento. Este um processo envolto
nas circunstncias da vida, nas representaes de sade/doena, nas condies
corporais percebidas, na identidade e na prpria biografia da pessoa. frequente
o desconhecimento da hipertenso pelos adoecidos, segundo atestam as vrias
pesquisas populacionais quantitativas feitas localmente ou nas diferentes
regies brasileiras.
No incomum homens e mulheres das classes trabalhadoras ignorarem e
desconfiarem do diagnstico da hipertenso arterial sistmica, especialmente
quando no contam com as sensaes corporais. Geralmente desconhecem esta
enfermidade e suas consequncias, deixando de trat-la e de control-la pelo
uso de remdios e de outras medidas preventivas de seus futuros e agravantes
efeitos, dentre eles os problemas cardiovasculares e o derrame cerebral, sempre
advertidos pelos mdicos.
Boltanski (1979) referiu que as classes populares francesas subordinam o uso
do corpo s funes sociais, manifestando a doena brutalmente porque no
percebem os sinais precursores ou porque se recusam a perceb-los; a doena
vista como acidente imprevisvel. A ausncia das sensaes corporais percebidas,
quando fora diagnosticada de hipertenso, tambm explica em parte o descrdito
de Luciana no diagnstico mdico.
Pode-se, entretanto, estender esta explicao corporal a outros domnios, como
sugere Barsaglini (2011, p. 149) reportando-se interpretao da experincia
em determinado ponto ou circunstncias de vida atrelando-se, portanto a
descoberta da enfermidade no somente informao do diagnstico mdico
ao paciente. Luciana, quando fora diagnosticada como portadora de hipertenso
arterial sistmica, no se convencera. Julgou-se jovem e ativa para estar acometida
da enfermidade. Reportou-se histria da hipertenso na famlia, envolvendo
seus genitores, uma de suas filhas e o marido, sem associar esta condio
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hereditariedade, como o fazem os mdicos, reiterando a importncia do nervoso
e dos comportamentos alimentares na gnese da enfermidade.
Observam-se nas representaes sociais das classes trabalhadoras sobre o
nervoso as mltiplas configuraes dos signos associados, isto : os relacionais,
de violncia, isolamento, agitao, alteraes no discurso, problemas no campo da
percepo (delrio e alucinao), ataques e crise, desempenho de papis sociais,
aparncia e comportamentos bizarros (RABELO; ALVES; SOUZA, 1999, p. 45).
Esse conjunto de signos se associa s concepes de loucura abordada por
aqueles autores, enquanto Luciana ao referir-se como pessoa nervosa reporta-
se ao conjunto das aflies de vida que a acometem, materializadas fisicamente
nos problemas do corao, nas dores sentidas e em outras queixas, associadas
simbolicamente perda do filho e ao estado geral de sofrimento. Duarte (1986)
tambm lembra as inmeras perturbaes fsicas e morais em torno do cdigo do
nervoso nas classes trabalhadoras, expressando os embaraos da prtica da vida.
Revendo as pesquisas qualitativas nacionais de hipertenso feitas entre mulheres
das classes empobrecidas (CANESQUI, 2007), nelas figuram explicaes da
gnese da presso alta, os signos relacionais, as emoes contidas, os conflitos
e as preocupaes domsticas e familiares (MACIEL, 1988; FIRMO; COSTA-
LIMA; UCHOA, 2004; CARVALHO et al.,1998; VIEIRA, 2004).
Pode-se condensar que esta gnese se reporta simbolicamente aos acmulos
dos excessos (sangue, emoes, preocupaes, nervoso, conflitos e dificuldades
familiares) que necessitam sair, cuja conteno gera exploses em partes do
corpo. As mulheres das classes trabalhadoras geralmente as contm em virtude
da preservao moral da famlia, mantendo-se em silncio. Entre mulheres negras
de New Orleans (HEURTIN-ROBERTS; RUSIN, 1983), o temperamento e
as emoes estavam entre as explicaes das causas da hipertenso, um idioma
expressando a interao entre a pessoa e o ambiente social.
Luciana tambm reitera a importncia da alimentao na gnese da presso
alta dialogando com as informaes mdicas aprendidas no controle no
medicamentoso da doena, de restringir a ingesto de comidas gordurosas, de sal e
de bebidas alcolicas. Ela reproduz os julgamentos dos profissionais de sade sobre
estes hbitos, que consideram errados e postos como responsabilidade moral dos
sujeitos, representando a doena como sano moral conduta desviante. Essas
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917explicaes tambm so compartilhadas com o grupo social de pertencimento de
Luciana, aplicando-se gnese da presso alta e de outras enfermidades.
Entretanto, as explicaes de homens e mulheres sobre a gnese da
hipertenso do grupo de pertencimento de Luciana foram mais amplas,
incluindo, alm dos conflitos e dificuldades familiares e no trabalho, o nervoso e o tipo de alimentao, a hereditariedade, as causas externas (clima e o tipo de
vida na cidade) juntamente com o envelhecimento/menopausa (CANESQUI,
2010, p. 34). Luciana no dispensa tais referncias, mobilizando-as segundo
interpreta a condio prpria do adoecimento e do sofrimento, sempre somada
s circunstncias de vida e sua biografia.
O senso comum reproduz expresses da linguagem usada pelos mdicos
nas comunicaes com a clientela, referindo-se presso alta como doena
traioeira, silenciosa, grave, imprevisvel e incurvel. Para o senso
comum, ela se explica basicamente pela movimentao e qualidade do sangue e
dos nervos (CANESQUI, 2010).
A relao de Luciana com os tratamentos mdicos prescritosO controle da hipertenso arterial pelo saber mdico inclui o uso regular de
medicamentos, a prtica de atividades fsicas, a verificao regular da presso
arterial, o acompanhamento mdico peridico e a restrio do consumo de
alguns alimentos, tabaco e bebidas alcolicas. Os mdicos e as agentes de sade
da ESF recomendam mudar o estilo de vida, combater o sedentarismo, alterar
os hbitos alimentares, tomar remdio diariamente e submeter-se aos controles
e acompanhamento mdico regularmente. Luciana no dispensa inteiramente
esses aconselhamentos, gerenciando-os segundo suas interpretaes, experincias
corporais, conhecimentos de senso comum e convenincias da vida diria.
Ela relata ingerir medicamentos para controlar a presso alta, regulando
seu uso segundo interpreta e observa as sensaes corporais. Acessa os anti-
hipertensivos gratuitamente na unidade de Sade da Famlia, cuja disponibilidade
irregular, segundo opera a poltica governamental de doao de medicamentos s
populaes de baixa renda portadoras de hipertenso arterial sistmica. Acredita
que tanto os remdios, quanto as restries alimentares, ao lado do autocontrole
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do nervosismo, do descanso e do lazer favorecem equilibrar a presso alta,
cuja cura significa libertar-se do consumo de remdios e da restrio alimentar.
Em contrapartida, a dependncia dos remdios e a necessidade de adotar dietas
especficas associam-se representao de estar doente, cuja superao no
dispensa a f em Deus, nos mdicos e na medicina simultaneamente.
Luciana no pratica exerccios fsicos. V-se impedida desta prtica pelos
problemas cardacos, cujos esforos corporais demandados a cansam. Tambm
no usa outros tratamentos caseiros, endossando a viso cosmolgica do mundo
regido por um ser superior capaz de castigar, recompensar e proteger. Neste sentido,
evoca a proteo divina preservao da prpria sade e de seus familiares. Como
responsvel pela sade da famlia, relata atender s recomendaes mdicas,
alterando a forma de preparar e selecionar as comidas (reduo do sal, introduo
de legumes e verduras na alimentao, recomendados pela nutricionista), em
parte facilitadas pela presena da mesma doena no grupo domstico.
Essas mudanas no acontecem sem conflitos e tenses com o marido e os
filhos, que demandam observar seus gostos pessoais e as tradies alimentares do
grupo social em que foram socializados. Luciana gerencia com flexibilidade as
restries alimentares recomendadas, burlando-as para favorecer o prprio gosto
e das demais pessoas do grupo domstico, preservando tambm as tradies
alimentares aprendidas e as formas de lidar com o processo sade, doena e os
cuidados com o corpo, a alimentao e a sade.
Refere preparar comidas fortes, significando as que so capazes de saciar a
fome, de fornecer a sensao de saciedade por tempo prolongado, de proporcionar
maior energia ao corpo para trabalhar e as mais nutritivas pelo fato de possurem
vitaminas, segundo o senso comum. Costuma preparar macarronada farta de
molho de tomate e usar pimenta, que acredita elevar a presso. No dispensa
consumir torresmo, muito apreciado por todos e consumido parcimoniosamente
(pelo menos uma vez ao ms) embora no desconhea as recomendaes mdicas
e nutricionais de restringir o consumo de comidas gordurosas, como forma no
medicamentosa de controlar a hipertenso arterial.
Comer bem, ou seja, ingerir quantidade abundante de comidas,
consideradas fortes e saborosas, segundo as escolhas e os gostos alimentares
valorizados pelo grupo social, ope-se ao comer mal nas representaes das
classes trabalhadoras. Isto significa dispor de pequenas quantidades de alimentos
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919e da ausncia no prato dos alimentos fortes (as carnes e alimentos gordurosos,
principalmente). Comer mal reporta-se ainda s restries alimentares,
associadas simbolicamente penria, privao e misria, dispensando tambm
os alimentos que satisfazem o gosto, os sabores e as escolhas alimentares capazes
de preservarem a identidade de pertencer a um grupo social (CANESQUI,
2005). Razes como esta conduzem compreenso de uma das dificuldades
de homens e mulheres das classes trabalhadoras de seguir as recomendaes
dietticas restritivas.
Se as normas dietticas de tratamento no medicamentoso da hipertenso
arterial prescrevem reduzir o sal, o consumo de alimentos com gorduras saturadas
e das bebidas alcolicas, as recomendaes de substituio por outros itens
alimentares aspiram reorientar o comportamento alimentar, implicando sempre
a resocializao do gosto e das escolhas alimentares cultivados ao longo das vidas
e do processo de socializao dos sujeitos na famlia. Se, de um lado, a atribuio
de falta de educao dos pacientes serve extenso da rede biomdica e a seus
interesses no controle dos riscos e das doenas (TESSER, 2010, p. 68), de outro,
Boltanski (1979, p. 69) lembra que:[...] o efeito de legitimidade do conhecimento biomdico no tem um peso suficiente para impedir que os agentes sociais mantenham um discurso qualquer sobre a doen-a, ou, pelo menos [...] reconstruir um discurso com materiais fragmentados e hete-rclitos, palavras mal entendidas, frases desconexas, arrancadas do discurso mdico.
A experincia de Luciana com a doena vivida de forma destrutiva,
correspondendo ao que se d com o doente:[...] a partir da interrupo da atividade provocada pela mesma, que se acompanha tanto pela destruio dos laos com os outros como as perdas diversas em suas ca-pacidades e em seus papis ele no consegue visualizar nenhuma possibilidade de reconstruir sua identidade, dependente inteiramente da integrao social. (ADAM, HERZLICH, 2001, p. 78).
A condio de adoecimento por certas enfermidades de longa durao afeta
profundamente a identidade da pessoa, impedindo reconstru-la de forma positiva.
Apesar dos sofrimentos morais e fsicos que acompanham esta experincia e a
prpria vida de Luciana, agravados pelo fato de ela no se julgar inteiramente
atendida em suas demandas e queixas pelos mdicos e servios de sade, ela
tambm se julga bem atendida e cuidada por eles. Condensa este cuidado e a
confiana com a frase: Para mim valeu. Est bom!.
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Para concluir, observa-se que a presso alta figura, nas representaes do grupo investigado, entre aquelas enfermidades que permitem conduzir normalmente a vida. Luciana no interpreta os acontecimentos fsicos de maneira isolada e abstrada dos contextos, acontecimentos e circunstncias da vida pessoal e social, como faz a biomedicina, mas conjuga a experincia com a enfermidade, com o corpo, sade e doena e as aflies de vida aos sofrimentos morais, perturbadores de sua existncia fsica, social, afetiva e relacional ou seja, pessoa concebida como totalidade.
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Notas1 Pierret compreende a relao no causal e determinista, mas circular e recproca da experincia sin-gular da enfermidade com a dinmica da estrutura e organizao da sociedade dadas pelas condies polticas, econmicas, ideolgicas e sociais, mutveis nas diferentes pocas e contextos histricos. Estes elementos coletivos e macro-estruturais interferem tanto na organizao do cuidado mdico,
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923no saber e instituies mdicas e nas vises de mundo coletivas, quanto nas diferenas de gnero e origem social dos adoecidos (dadas em termos de condies ou dos modos de vida, dos valores e re-presentaes individuais e coletivas sobre corpo, sade e doena e s formas concretas de convvio e de ajustamento s enfermidades integrantes da experincia com a enfermidade.Critica as investigaes anglo-saxnicas sincrnicas, formais e atemporais da experincia da enfermida-de que no a inscrevem na dinmica social, mutvel no tempo e inscrita nas referncias sociais, na his-tria social, nas transformaes institucionais, do saber e prticas mdicas de uma poca, sempre per-meadas da interferncia das condies polticas, econmicas, ideolgicas e sociais (PIERRET, 1988).Outras referncias experincia com a enfermidade (HERZLICH; PIERRET, 1984), extradas da produo acadmica francesa, ultrapassam a dimenso individual medida que cada sociedade possui suas doenas e seus doentes, sendo a doena e a experincia socialmente construdas e historicamente si-tuadas. Sua anlise demanda articular a histria social com a sociologia, o recurso a diferentes fontes de informaes e o acompanhamento longitudinal e comparativo das doenas e das diferentes categorias sociais de doentes na sociedade. As doenas tambm encarnam simbolicamente a relao do indivduo com a sociedade, abandonando, portanto, sua materialidade nos corpos, posta pela biomedicina.Para Pierret (2012), a sociedade que est na origem das categorias sociais fundadas nas desigualda-des sociais bsicas expressas nos lugares ocupados pelos grupos e indivduos na organizao social, nas condies de vida, nas diferenas em relao educao ou aos tratamentos mdicos, assim como em relao aos valores de referncia. Trata-se de incluir a experincia nestes condicionantes de natureza social, mdico-institucionais e valorativos.Estudo sobre a experincia de enfermos de Aids (PIERRET, 2007) aborda a evoluo da construo social e mdica da doena no contexto histrico da sociedade francesa no perodo 1990 a 2000; a gnese da mobilizao miditica e associativa dos enfermos; as consequncias dos modos de vida e dos recursos mobilizados pelos adoecidos; as representaes sociais da conduo da vida normal com a enfermidade, ao lado das representaes flutuantes vigentes no contexto concreto da sociedade, do estado do conhecimento mdico e da experincia concreta de convvio com a enfermidade, incluindo tambm os diferentes modos de ajustamento condio de enfermo. 2 As investigaes anglo-saxnicas sobre as estratgias de ajustamentos s enfermidades crnicas em geral se valem do conceito de coping, que se refere ao processo de aprendizagem individual de convvio ou tolerncia com os efeitos das enfermidades, que segundo Bury (1991), ancora-se nos fatores psicolgicos e relacionais. Estilo outro conceito usado e entendido como a forma como as pessoas manejam no presente a enfermidade, os regimes e os tratamentos (BURY, 1982). Radley & Green (1985), influenciados pelo trabalho de Pierre Bordieu sobre os estilos de classe que acom-panham os comportamentos corporais ou do self, referem-se ao estilo aos significados e s prticas sociais das diferentes classes sociais afetando as formas de manejar as enfermidades. Normalizao, no sentido biomdico, associa-se adaptao, enquanto para os socilogos o conceito reporta-se a um conjunto de aes e de interpretaes que possibilitam construir uma nova atitude natural (ADAM; HERZLICH, 2001, p. 125).3 O estudo original do qual se extraiu o caso analisado foi aprovado pelo Comit de tica da Fac-uldade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas. Foi tambm financiado pelo CNPq (processo n 471418-2007-2), ao qual a autora agradece pelo apoio recebido.
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A case study about the experience with high blood pressureThis paper discusses the experience with high blood pressure and associated diseases posited as physical and moral sufferings in the whole person who lives, works and reflects amid life circumstances that affect him. This is a case study of a qualitative research on narrative and meaning of high pressure, made with 17 men and 20 women diagnosed for over a year with hypertension, users of a Family Health Unit of an inland city in So Paulo state. Two reasons guided the case selection: being included among the seven interviewees who mentioned having discovered hypertension at the time spent by the heart attack or stroke, and being female. Data were obtained through semi-structured interviews about perceived health conditions, discovery of the disease, explanation of its genesis, therapeutic itineraries, social support received; relations with health services and other curing agents and management of medical prescriptions. This study displays the interconnections and unique personal experience of illness with the broader socio-cultural contexts, moral values, social relations and social representations of the body, health, illness and care shared with the working class.
Key words: illness experience; arterial hypertension; social sciences and health; qualitative research on health.
Abstract