poubel e silva, e. f. s. de criança a aluno - as representações da escolarização da infância...

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ELIZABETH FIGUEIREDO DE SÁ POUBEL E SILVA De criança a aluno De criança a aluno De criança a aluno De criança a aluno As representações da escolarização da infância em As representações da escolarização da infância em As representações da escolarização da infância em As representações da escolarização da infância em Mato Grosso (1910 Mato Grosso (1910 Mato Grosso (1910 Mato Grosso (1910-1927) 1927) 1927) 1927) São Paulo 2006

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  • ELIZABETH FIGUEIREDO DE S POUBEL E SILVA

    De criana a alunoDe criana a alunoDe criana a alunoDe criana a aluno As representaes da escolarizao da infncia em As representaes da escolarizao da infncia em As representaes da escolarizao da infncia em As representaes da escolarizao da infncia em

    Mato Grosso (1910 Mato Grosso (1910 Mato Grosso (1910 Mato Grosso (1910----1927)1927)1927)1927)

    So Paulo 2006

  • ELIZABETH FIGUEIREDO DE S POUBEL E SILVA

    DE CRIANA A ALUNO As representaes da escolarizao da infncia em Mato Grosso

    (1910-1927)

    Tese apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Educao

    rea de concentrao: Histria da Educao e Historiografia Orientadora: Prof. Dra. Diana Gonalves Vidal.

    So Paulo 2006

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Poubel e Silva, Elizabeth Figueiredo de S. De criana a aluno: as representaes da escolarizao da infncia em Mato Grosso (1910-1927). / Elizabeth Figueiredo de S Poubel e Silva. So Paulo: USP, 2006. 220 f.:fig.

    Tese (Doutorado Programa de Ps Graduao rea de concentrao : Histria da Educao e Historiografia Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo) Orientadora: Profa. Dra. Diana Gonalves Vidal

    1.Histria da Infncia. 2.Grupos Escolares. 3.Histria da Educao.

    CDU: 37

  • FOLHA DE APROVAO

    Elizabeth Figueiredo de S Poubel e Silva DE CRIANA A ALUNO: As representaes da escolarizao da infncia em Mato Grosso (1910-1927).

    Tese apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Educao. rea de concentrao: Histria da Educao e Historiografia

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Orientadora: Prof. Dra. Diana Gonalves Vidal Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo Assinatura:_____________________________

    Prof. Dr. Nicanor Palhares S Instituto de Educao da Universidade de Mato Grosso Assinatura_______________________________

    Prof. Dr. Wojciech Andrzej Kulesza Centro de Educao da Universidade Federal da Paraba Assinatura:_____________________________

    Profa. Dra. Rosa Ftima de Souza Universidade Estadual de So Paulo Araraquara Assinatura:_______________________________

    Profa. Dra.Maurilane de Souza Biccas Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo Assinatura:_____________________________

  • Paula, Gabriela e Camila, parceiras nas horas de alegrias e sofrimentos no longo perodo de elaborao deste trabalho, meu amor e profundo agradecimento.

  • Agradecimentos

    A Diana Vidal, que me orientou durante o todo o processo de elaborao deste trabalho. Contribuiu atravs de indicaes de referncias nos campos da Histria e da Educao, que me auxiliaram na elaborao desta tese. Estimulou a minha produo acadmica, incentivando a escrita dos resultados das minhas pesquisas. Muito mais que uma orientadora, demonstrou ser uma verdadeira amiga.

    A Nicanor Palhares S, que vem acompanhando a minha vida acadmica desde o mestrado, defendido em 2000 na Universidade Federal de Mato Grosso, sob sua orientao. No poderia deixar de se fazer presente na banca examinadora desta tese.

    A Rosa Ftima de Souza e Maurilane de Souza Biccas, pelas preciosas contribuies na ocasio da qualificao. E a Wojciech Andrzej Kulesza, que juntamente com as referidas professoras, compe a banca examinadora desta tese, por aceitar gentilmente o convite.

    A Elizabeth Madureira Siqueira, pela leitura atenciosa de parte deste trabalho. Desde o mestrado sempre foi solcita na indicao de fontes documentais que contriburam com as pesquisas em Histria da Educao de Mato Grosso.

    A Maria Lucia S. Hilsdorf e Waldir Cauvilla que me acolheram carinhosamente no meu ingresso na FEUSP. Acompanharam, mesmo de longe, o meu percurso durante o doutorado, especialmente o professor Waldir, que se tornou um grande amigo.

    Aos colegas do Ncleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Histria da Educao (NIEPHE) e do Grupo de Pesquisa em Histria da Educao e Memria da Universidade Federal de Mato Grosso (GEM-UFMT), por acompanharem e contriburem nesse processo de doutoramento.

    Aos amigos Surya Aaronovich, Eneida Figueiredo, Atayde e Marilia Falco por tornarem a minha estada em So Paulo mais agradvel.

    A Aluisio, colaborador das pesquisas nos arquivos de Mato Grosso. A Margarida Felgueiras, que acompanhou a minha pesquisa em Portugal. Contribuiu

    no debate em questes sobre a histria da educao naquele pas, sugeriu fontes, foi parceira nas pesquisas, tanto nas escolas quanto na Biblioteca do Porto. Apresentou-me a pesquisadores portugueses da rea. Foi companheira e amiga, acalmando o meu corao em relao saudade da famlia.

  • Aos professores Antnio Ferreira Gomes e Rogrio Fernandes que contriburam com informaes que nortearam a pesquisa sobre as escolas centrais.

    A Snia Cmara, que estando comigo em Portugal, foi parceira nas pesquisas e descobertas naquele pas. Juntas, passamos por muitos momentos felizes e, tambm, por muitas tristezas. Compartilhamos a saudade dos familiares.

    Diolinda, amiga e irm, Vianna, David, Victor, e Catarina, entre tantos outros, pelo carinho e ateno que tornaram a minha estada em Portugal mais agradvel. Foram companheiros em todos os momentos. Compartilharam comigo a saudade da minha famlia. Apresentaram-me Portugal.

    Ao padre Torres, uma amizade valiosa. Acompanhou toda a minha estada naquele pas, me mostrando alguns lugares maravilhosos e, principalmente, muitas igrejas. Sugeriu referncias que impulsionaram e definiram o rumo da pesquisa sobre as escolas centrais.

    Linet, minha irm- me, que acompanhou toda a minha vida. Amiga e companheira, partilhou comigo um pouco da vida em Portugal e da angstia da escrita deste trabalho.

    A Iracy Poubel , Arlindo Gomes e Terezinha da Silva, sem os quais a minha ida para Portugal seria impossvel. Cuidaram da minha casa e das minhas filhas durante todo o perodo, deixando-me mais tranqila.

    Secretaria Municipal de Educao de Cuiab, por me conceder bolsa remunerada indispensvel minha dedicao pesquisa.

    CAPES, que concedeu seis meses de bolsa para o meu estgio no exterior. A Euclides Poubel e Silva, grande incentivador da minha vida acadmica, a qual vem

    acompanhando desde longo tempo. Sempre me estimulou a prosseguir e a ir em busca dos meus sonhos...

  • Resumo

    POUBEL E SILVA, E.F.S. De criana a aluno: as representaes da escolarizao da infncia em Mato Grosso (1910-1927). 2006. 220 fls. Tese (Doutorado). Faculdade de Educao. Universidade de So Paulo, So Paulo, 2006.

    Esta tese objetiva compreender a implantao dos primeiros grupos escolares em Mato Grosso. O olhar se desloca das reformas educacionais e da histria institucional e recai sobre a histria da infncia. Pretende perceber como este modelo escolar foi organizado para formar o futuro cidado desejvel para atuar na sociedade, inquirindo a cultura escolar que nela surgiu e as representaes concorrentes de infncia, presentes na sociedade mato-grossense. O perodo delimitado, de 1910 a 1927, refere-se ao tempo que vigorou o Regulamento da Instruo Pblica Primria de 1910, responsvel pela introduo deste modelo institucional no Estado. Entre muitas formas de se examinar a cultura escolar, privilegiei as fontes documentais encontradas no Arquivo Pblico de Mato Grosso, Arquivo da Casa Baro de Melgao, Arquivo da Escola Estadual Presidente Mdici, Arquivo da Secretaria Estadual de Educao, os quais oferecem enorme quantidade de informaes a respeito do funcionamento dos grupos escolares e das representaes dos governantes e dos profissionais da educao naquele momento. Refiro-me a regulamentos, legislaes, mensagens de presidentes de estado, relatrios da direo dos grupos escolares e da instruo pblica, atas da Congregao, ofcios internos dos grupos, jornais em circulao na poca, entre outros. A tese est dividida em duas partes. Na primeira, discorro sobre a infncia brasileira, principalmente a mato-grossense, e as vrias representaes sociais em luta na poca. Rivalizavam-se representao de infncia associada escolarizao dos grupos escolares (idade correspondente srie, afastamento da criana da famlia e da produo por cinco anos consecutivos, dentre outros) disseminada pelos governantes, outras concepes do lugar social da criana manifesta por pais e representantes da Igreja. Na segunda parte, analiso aspectos da cultura escolar, tais como o tempo, espao, saberes e mtodos. Busco, tambm, indcios para a construo da identidade da criana-aluno dos grupos escolares, perscrutando suas caractersticas; o acesso escola; permanncia e problemas com o fracasso escolar. O estudo da implantao dos grupos escolares, viabilizada pelo conjunto documental, permitiu-me perceber a existncia de representaes concorrentes de infncia e de sua escolarizao, materializadas na organizao de escolas pblicas e privadas voltadas para o atendimento da criana em idade escolar. Possibilitou-me, tambm, constatar que o currculo dos grupos escolares foi organizado com a finalidade de constituir uma infncia produtiva e ordeira, concebida como necessria a progresso social.

    Palavras-chave: grupos escolares; histria da infncia; histria da educao.

  • Abstract

    POUBEL E SILVA, E.F.S. From child to student: the representations of infants schooling in Mato Grosso (1910-1927). 2006. 220 pages. DSc Thesis. Faculdade de Educao. Universidade de So Paulo, So Paulo, 2006.

    This thesis aims at understanding the implementation of the first scholar groups in Mato Grosso. The view departs from educational reforms and institutional history and looks at the infancy history. It tries to perceive how this scholar model was organized to form the future desirable citizen to act in the society, inquiring a scholar culture that arose and the concurrent representations of infancy, present in the Mato Grosso society. The chosen period, from 1910 to 1927, refer to the time which was enforced the 1910 Primary Public Instruction Regulation, responsible for the introduction of this institutional model in the State. Among the several forms to examine the scholar culture, I privileged the documental sources found in the Public Archive of Mato Grosso, the House of Baro de Melgao Archive, the Presidente Mdice State School Archive, the State Education Secretary Archive, which offer an enormous amount of information related to the way the infants schools and the government representation and the education professionals worked at that time. I refer to regulations, legislations, messages from state presidents, reports from the infants schools and public instruction directors, Congregation reports, internal documents from the infants schools, newspapers circulating at the time, among others. The thesis is divided in two parts. In the first part, I describe about the brazilian infancy, particularly in Mato Grosso, and the several social representations fighting at the time. The representation of infancy associated to the scholarization of the infants schools (ages corresponding to the series, child away from the family and from the production for five consecutive years, among others) disseminated by the governants, rivaled other conceptions of the social place for children by the parents and Church representatives. In the second part, I analyze aspects of the scholar culture, such as time, space, knowledge and methods. I search, also, indications for the construction of the child-student identity in the infants schools, investigating minutely their characteristics; the access to school; permanency and problems with scholar failure. The study of the implementation of the infants schools, made possible by the documentary set, allowed me to observe the existence of concurrent representations of infancy and its schooling, materialized in the organization of public and private schools directed toward the attendance of the child in pertaining to school age.It made possible, also, for me to evidence that the curriculum of the infants school was organized with the purpose to constitute a productive and orderly infancy, conceived as necessary to a social progress.

    Key-words: infants school; infancy history; education history.

  • Lista de ilustraes

    Figura 1.

    Figura 2.

    Figura 3. Figura 4.

    Figura 5. Figura 6.

    Figura 7.

    Figura 8.

    Figura 9.

    Figura 10.

    Figura 11.

    Figura 12.

    Figura 13.

    Figura 14.

    Figura 15

    Figura 16 Figura 17

    Figura 18.

    Figura 19.

    Crianas cuiabanas. Acervo pessoal da D. Helena Muller................................. Escola Primria do sexo masculino. Acervo pessoal da D. Helena Muller....... Crianas cuiabanas. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914.......................... Escola Primria do sexo feminino. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914... Rua Treze de Junho. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914......................... Tabela de salrio dos operrios jornaleiros das indstrias de alimentao. Recenseamento do Brazil, 1920......................................................................... Trabalho das crianas para a Usina Itaicy. Acervo da Secretaria de Cultura de Santo Antnio de Leverger................................................................................ Escola primria do sexo masculino em Campo Grande. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914............................................................................................ Escola primria do sexo feminino Nioac. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914................................................................................................................... Aluna da Escola Modelo Baro de Melgao. Acervo pessoal da D. Helena Muller.................................................................................................................

    Palcio da Instruo. Acervo do Ncleo de Documentao e Informao Histrica Regional da Universidade de Mato Grosso........................................ Ilustrao do livro Nossa Ptria de autoria de Rocha Pombo................... Fachada do Palcio da Instruo. Revista Matto Grosso, 1920......................... Fachada do Grupo Escolar Senador Azeredo. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914........................................................................................................ Planta do Grupo Escolar Senador Azeredo. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914................................................................................................................... Capa do livro Nossa Ptria. Biblioteca Estevo de Mendona...................... Sala de aula do incio do sculo XX. Acervo do Arquivo Pblico de Mato Grosso................................................................................................................ Criana cuiabana. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914............................. Fachada com alunos do G.E. Senador Azeredo. lbum Graphico de Matto Grosso, 1914........................................................................................................

    Capa 23

    24

    35 53

    69

    69

    71

    91

    117

    120

    142

    159

    164 179 185

  • Tabelas

    Quadro 1. Quadro 2. Quadro 3. Quadro 4. Quadro 5.

    Quadro 6. Quadro 7. Quadro 8. Quadro 9. Quadro 10. Quadro 11. Quadro 12. Quadro 13. Quadro 14. Quadro 15. .

    Quadro 16. Quadro 17.

    Quadro 18. Quadro 19. Quadro 20.

    Quadro 21. Quadro 22. Quadro 23.

    Quadro 24.

    Quadro 25.

    Grupos Escolares nos estados brasileiros 1922............................. Populao infantil dos municpios de Mato Grosso- 1920.............. Coeficiente da populao de Cuiab segundo a idade 1890......... Etnias indgenas 1848................................................................... Nmero de trabalhadores e salrios da Indstria de Cermicas em Mato Grosso 1920........................................................................ Conflitos armados em Mato Grosso: 1896-1908............................ Expanso da iniciativa particular 1912 a 1923................................ Mapa Geral da Matrcula dos Alunos da Escola Mista da Lagunita Materiais da Escola Mista Primria da Lagunita- 1916................. Horrio modelo para as escolas isoladas........................................ Programa para as Escolas Isoladas de Mato Grosso........................ Mapa das escolas isoladas de 1910 a 1924..................................... Corpo docente do G.E. Senador Azeredo 1921............................ Formao dos professores dos grupos escolares-1927.................... Classificao das escolas primrias segundo o regulamento de 1927................................................................................................. Programa de Leitura da Escola Modelo - 1911 e 1924................... Distribuio das disciplinas na Escola Modelo e nos grupos escolares- 1911.................................................................................. Horrio geral da Escola Modelo em 1912......................................... Metodologia e objetivos do ensino de Leitura na Escola Modelo.... Programa de Educao Moral e Cvica da Escola Modelo 1911 1924.................................................................................................. Programa de Histria da Escola Modelo e Grupos Escolares- 1924 Programa de Ginstica e Exerccios Militares 1911...................... Inventrio de materiais pedaggicos do G.E. de Rosrio Oeste 1923 e 1927....................................................................................... Penas disciplinares aos alunos da Escola Modelo 1915 a 1926.....

    Movimento de matricula dos alunos nos Grupos Escolares nas

    51 55 57 58

    68 74

    94 99 101 105 107 109 113 114

    115 136

    138 139 149

    150 154 157

    161 177

  • Quadro 26. cidades do interior de Mato Grosso (1911 1927)........................... Movimento anual da Escola Modelo 1911 -1915.........................

    188 197

  • Lista de Grficos

    Grfico 1. Grfico 2.

    Grfico 3. Grfico 4.

    Coeficiente da populao de Mato Grosso 1872, 1890,1900 e 1920...... Populao infantil de Mato Grosso segundo sexo e idade: 1872,1900 e 1920........................................................................................................... Alunos matriculados nos grupos escolares de Cuiab .............................. Movimento anual da Escola Modelo 1911 -1926...................................

    54

    55 186 186

  • Lista de Abreviaturas

    APMT- Arquivo Pblico de Mato Grosso NDHIR- Ncleo de Documentao e Informao Histrica Regional ACBM- Arquivo da Casa Baro de Melgao AEEPM- Arquivo da Escola Estadual Presidente Mdici

  • Sumrio

    INTRODUO..........................................................................................................

    PARTE I- A INFNCIA BRASILEIRA: REPRESENTAES, CULTURA E ESCOLARIZAO..................................................................................

    Captulo 1. As representaes da infncia brasileira ........................................................

    1.1. A infncia pobre e moralmente abandonada..................................................................... 1.1.1. O universo da criana pobre nos grandes centros urbanos .......................................... 1.1.2. As instituies de disciplinarizao e formao para o trabalho................................. 1.1.3. A contribuio mdico-higienista para os cuidados da infncia..................................

    Captulo 2. A escolarizao da infncia: educao infantil e ensino primrio................

    2.1. Educao Infantil: Jardim-de-infncia para a elite e Escola Maternal e Creches para as crianas pobres...................................................................................................................

    2.2. A circulao de um modelo de escolarizao da infncia: a escola graduada..... 2.2.1. As variadas formas de apropriaes de um modelo escolar.........................................

    Captulo 3. A populao infantil mato-grossense e o seu universo cultural....................

    3.1. A populao infantil mato-grossense............................................................................... 3.2. O cotidiano das crianas cuiabanas..................................................................................

    Captulo 4. A escolarizao da infncia em Mato Grosso..................................................

    4.1. O contexto educacional de Mato Grosso.......................................................................... 4.2. As representaes da escolarizao da infncia................................................................ 4.2.1. Instruo Popular: base fundamental para o progresso social....................................... 4.2.2. . O conflito de representaes da infncia e de suas escolarizao entre o Estado e a Igreja............................................................................................... 4.2.3. A misso dos professores primrios...............................................................................

    Captulo 5. A escolarizao da infncia: modalidades do ensino primrio.....................

    5.1. As escolas de iniciativa particular..................................................................................... 5.2. As escolas pblicas de ensino........................................................................................... 5.2.1. Escolas isoladas ou avulsas............................................................................................ 5.2.2. Grupo Escolar: um novo modelo de escolarizao da infncia.....................................

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    24

    25 25 27 30

    35

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    111

  • PARTE II - O CURRCULO E A FORMAO DA CRIANA-ALUNO ..................

    Captulo 6. Os tempos e espaos da escola e da infncia....................................................

    6.1. Arquitetura: uma forma silenciosa de ensino.................................................................... 6.1.1. A escola- monumento em Mato Grosso........................................................................ 6.1.2. A organizao pedaggico-espacial dos grupos escolares............................................ 6.2. . O tempo e sua representao na escolarizao da infncia.............................................

    Captulo 7. Os saberes necessrios para a formao do cidado miniaturizado.............

    7.1. O Programa Curricular: sua organizao e finalidades................................................... 7.1.1. O ensino da leitura, da escrita e da gramtica: a formao do cidado leitor............... 7.1.2. Investindo na formao moral e cvica.......................................................................... 7.1.3. A educao fsica e a escolarizao dos corpos............................................................

    Captulo 8. Mtodo intuitivo: observao x memorizao...............................................

    8.1. Os primeiros ensaios para a implantao do mtodo intuitivo em Mato Grosso............. 8.2. A formao de professores para o uso do mtodo intuitivo.............................................. 8.3. Da legislao prtica educacional nos grupos escolares................................................

    Captulo 9. De criana a aluno ... .........................................................................................

    9.1. O acesso das crianas escola.......................................................................................... 9.1.1.A obrigatoriedade escolar............................................................................................... 9.1.2. A definio das crianas aceitveis na escola................................................................ 9.2. As crianas dos grupos escolares..................................................................................... 9.2.1.Alunos dos grupos escolares da capital......................................................................... 9.2.2. Os alunos dos grupos escolares do interior do estado................................................... 9.3. A permanncia do aluno na escola: problemas com a evaso e a repetncia................... 9.3.1. Aluno apto e no apto: a reprovao velada.......................................................... 9.3.2. Repetncia e a evaso escolar......................................................................................

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................................

    REFERNCIAS ....................................................................................................................

    117

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    203

  • Introduo

    Da parede da sala Os olhos saltam Para um dia de chuva qualquer Em que a rua virava festa de ltima hora E estar sob o cu em cachoeira Era uma liberdade sem precedentes

    Depois vinha o jogo da fita O esconde-esconde A queimada E correr pelo mundo Era pegar a sorte pelos cabelos.

    Um barulho qualquer (derrubaram um copo na cozinha?) provoca a viagem de volta e os olhos (trazendo um pouco de gua) deixam a foto na parede e saem da sala.

    A infncia aquela saudade que, quando a gente visita, sente cheiro de caf passado e um aperto no corao.

    Marta Helena Cocco

  • O poema de Marta Helena Cocco, portal desta tese, retrata com infinda sensibilidade os saudosos e inesquecveis tempos fragmentrios da infncia. Nas raras horas vagas, ocupava meu tempo burilando idias para selecionar uma pessoa das letras, da literatura brasileira, que pudesse associar-se, em verso e prosa, temtica deste estudo. Num rpido descortinar, meus olhos puderam perceber que Marta, integrada s coisas mato-grossenses, poderia ser essa pessoa das letras, responsabilizando-se por captar a essncia deste estudo e retrat-la em composio potica, pois acompanhou grande parte desta trajetria acadmica. Eis o resultado de seu entusiasmo criador! Aps alguns minutos, estava ela ofertando-me com sua escrita, versejando coisas da infncia e despertando sentimentos profundos. Quem de ns ao fixar os olhos na parede no sente o cheiro de caf passado? No se depara com os momentos da infncia, jogo da fita, esconde-esconde, a queimada... e, junto com tantas recordaes, no rememora a vida escolar?

    Graciliano Ramos, em Infncia (escrito em 1945, reeditado em 1993), seu romance de memrias, revela o quanto foi rdua a sua experincia de criana, nos fins do sculo XIX e incio do sculo XX, vivida praticamente no interior de Alagoas. Primognito de um casal sertanejo de classe mdia, cresce em meio a uma prole numerosa, distanciado de pequenos gestos de afeto, aventuras e estripulias infantis. Ao contrrio, o leitor indagar, a todo o momento, como foi possvel para uma criana, vivenciando rituais de passagem a ponta de faca, sobreviver e tornar-se um dos escritores brasileiros dos mais expoentes.

    A histria da infncia, para uma parcela crescente da populao, anda paralelamente histria da instituio escolar, pois, ao inserir a criana no espao escolar, ensinando-a a ser aluno, percebo a concepo de uma nova infncia: a escolarizada. Nesse sentido, o desenvolvimento da escola primria inventou uma nova tradio e condio da infncia, a criana-aluno.

    Concomitantemente, a sociedade moderna organizou a escola graduada, e sua cultura escolar (JULIA, 2001), adaptada s caractersticas das crianas e combinada s finalidades do ensino, de ordem religiosa, scio-poltica, psicolgica, cultural ou, at mesmo, s mais sutis, explicitadas por Chervel (1990, p.188) como as de socializao do indivduo no sentido amplo, da aprendizagem da disciplina social, da ordem, do silncio, da higiene, da polidez, dos comportamentos decentes, etc., variveis conforme as pocas.

    Esse novo modelo organizacional implicou numa mudana drstica em todos os aspectos da vida escolar, pretendendo uma menor heterogeneidade na idade e conhecimentos dos alunos por classe; uma ao mais constante, simultnea e direta do mestre sobre os alunos e uma menor fatiga com a nova organizao do tempo escolar, entre outras. Pretendeu,

  • tambm, um maior controle do trabalho docente, pela introduo do cargo de diretor. No Brasil, a escola graduada primria foi introduzida nos fins do sculo XIX, vinculada ao projeto educacional republicano. Expandiu-se pelos estados brasileiros, adaptando-se s realidades scio-econmicas regionais, como foi o caso de Mato Grosso.

    Esta investigao est voltada implantao dos primeiros grupos escolares mato-grossenses, abordada em diferentes aspectos por alguns pesquisadores regionais, tais como Humberto Marclio, Gervsio Leite, Lzara Nanci Amncio, Edmar Joaquim Santos e Rosinete Reis.

    Humberto Marclio em Histria do Ensino em Mato Grosso (1963) e Gervsio Leite em Um sculo de instruo pblica (1970), cujas obras so referncias para os pesquisadores em Histria da Educao, escreveram sobre histria poltica e educacional do estado e, nesse contexto, abordaram a implantao dos grupos escolares.

    Em tese intitulada Ensino de Leitura na escola primria no Mato Grosso: contribuio para o estudo de aspectos de um discurso institucional no incio do sculo XX, defendida em 2000, Lzara Nanci de Barros Amncio trata sobre o ensino de leitura nas escolas pblicas e analisa as cartilhas e mtodos de leitura propostos. Inaugura o estudo sobre a vinda dos normalistas paulistas, destacando a atuao desses na implantao dos grupos escolares no estado.

    Alguns trabalhos foram produzidos no mbito do projeto A recuperao da educao mato-grossense na Primeira Repblica, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa em Histria da Educao e Memria da Universidade Federal de Mato Grosso (GEM-UFMT), do qual participo desde 1997, sob a coordenao de Nicanor Palhares S e colaborao de Elizabeth Madureira Siqueira. Dentre eles, destaco a dissertao de Edmar Joaquim Santos (1999) sobre a A Educao Fsica Higienista em Mato Grosso: fase de implantao (1910 a 1920), em que analisa a prtica da ginstica e dos exerccios calistnicos nas escolas primrias e secundrias, incluindo nos grupos escolares da capital; a dissertao de Rosinete Reis (2003) intitulada Palcios da Instruo: Institucionalizao dos Grupos Escolares em Mato Grosso (1910-1927), analisou as reformas educacionais de 1910 e 1927, centrando-se na construo da cultura escolar dos grupos escolares, principalmente em sua arquitetura e metodologia.

    Entretanto, embora o olhar da presente tese esteja voltado para os grupos escolares, foco da ateno dos pesquisadores citados, a anlise se desloca das reformas educacionais e da histria institucional para a histria da infncia, sendo este o grande diferencial desta pesquisa.

  • A anlise da histria da infncia no Brasil vem se ampliando muito nas ltimas dcadas, culminando na produo de livros, artigos, dissertaes e teses voltados para o tema. Nesses estudos, possvel perceber a diversidade de fontes utilizadas para tratar os processos histricos de educao e reeducao das crianas em diferentes ambientes, bem como os diversos discursos presentes sobre a infncia.

    Alm das publicaes, ressalto grupos de pesquisa que vm desenvolvendo pesquisas referentes infncia, como o caso do NIEPHE-FEUSP (Ncleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo) sob a coordenao de Diana Gonalves Vidal, que, atravs do subprojeto Mltiplas Estratgias de Escolarizao da Infncia, aglutina pesquisadores de diferentes estados brasileiros e, do GRUTHIMEL (Grupo de Trabalho para a Histria da Infncia e dos Materiais Ldicos), coordenado por Luciano Mendes de Faria Filho e Rogrio Fernandes, contendo vrios subprojetos com a participao de pesquisadores brasileiros e portugueses. Esta pesquisa se insere em ambos os projetos, sendo resultado de investigaes tanto no Brasil, especialmente em Mato Grosso, quanto em Portugal.

    A idia de desenvolver esta pesquisa surgiu no decorrer do mestrado. Formada em pedagogia, e, incitada pela leitura de Goodson (1995) a pesquisar a histria do currculo, desenvolvi a minha dissertao, defendida na UFMT, em 2000, sobre a histria do currculo no curso de formao de professores em Mato Grosso. Durante a pesquisa, ao ler atentamente as documentaes, vrias questes foram surgindo, instigando-me a conhecer mais sobre a organizao, principalmente curricular, da Escola Modelo, por ser o local onde as normalistas tinham o primeiro contato com a sala de aula.

    Inicialmente, pensei em me dedicar escrita da implantao dos grupos escolares em Mato Grosso, inquirindo sobre a cultura escolar das escolas primrias graduadas. Iniciei, ento, a pesquisa no Arquivo Pblico de Mato Grosso, onde encontrei as mensagens de presidentes de estado, relatrios da diretoria da instruo pblica, relatrios dos diretores dos grupos escolares, entre outros.

    Entretanto, no percurso, direcionei o meu olhar para a infncia e o seu processo de escolarizao. Atravs do projeto desenvolvido pelo GRUTHIMEL, que toma a infncia como objeto de investigao histrica, fui, em misso de estudo, por seis meses, para Portugal, a fim de investigar as representaes de infncia presentes na sociedade portuguesa, a implantao das escolas graduadas naquele pas e, a sua similitude, ou no, com o processo de implantao desse modelo escolar no Brasil.

  • A escola graduada em Portugal, denominada Escola Central, at o momento desta pesquisa, era uma incgnita. Nenhum trabalho acadmico portugus havia sido publicado sobre o tema e poucas pessoas se lembravam da sua existncia. Havia apenas dois indcios, dos quais tive conhecimento atravs da professora Margarida Felgueiras, que comprovavam a sua existncia: a bandeira da Escola n 1, onde se encontrava bordada Escola Central e a citao no conceituado livro de Rmulo de Carvalho (2001) o qual se refere escola central quando trata acerca da legislao educacional de 1901.

    Mediante a pista fornecida por Carvalho (2001), atravs de sua citao e da bibliografia utilizada, comecei a pesquisa na Biblioteca Pblica Municipal do Porto recorrendo aos livros citados, publicados no sculo XX, que tratavam do ensino em Portugal, no encontrando neles nenhuma referncia s escolas centrais. Recorri tambm leitura de uma gama de peridicos educacionais. No entanto, foi somente na Revista Pedaggica e no peridico A Instruo que encontrei artigos sobre as escolas centrais, sendo a grande maioria de autoria do professor da Escola Central de Santos (Lisboa), Ulysses Machado.

    Tais documentos, embora citassem a importncia das escolas centrais, me levaram a perceber que a sua criao, mesmo estando limitada aos grandes centros urbanos, esbarrou em grandes entraves financeiros e administrativos. Os questionamentos foram ento se alargando, mas o que mais me preocupava que eu no conseguia delimitar o perodo de sua existncia e nem, tampouco, estabelecer relaes com os grupos escolares que funcionaram no Brasil.

    Recorri preciosa ajuda dos professores Rogrio Fernandes, da Universidade de Lisboa, Antnio Gomes Ferreira, da Universidade de Coimbra e, do Padre Torres, prior da Catedral de Pvoa de Varzim. Suas contribuies me ajudaram a conhecer a histria das Escolas Centrais portuguesas. Atravs dos arquivos das Escolas Centrais das freguesias do Bomfim, de Paranhos e de Cedofeita, contando com a interferncia da professora Margarida Felgueiras, pude ter acesso caixa preta das escolas, estabelecendo, sempre que possvel, comparaes entre o discurso legal e o cotidiano escolar.

    Retornei, ento, pesquisa aos peridicos do sculo XIX, a partir de 1869, data de implantao das escolas centrais, no entanto, no encontrei nenhum artigo que fizesse meno s mesmas. A referida pesquisa foi realizada no acervo da Biblioteca Pblica Municipal do Porto, das Bibliotecas da Universidade do Porto das Faculdades de Letras e Cincias da Educao e das Escolas Pblicas do Bomfim, de Cedofeita e de Paranhos.

    Paralelamente pesquisa a que me propus desenvolver, fui em busca de bibliografias que auxiliassem a fundamentao terica da minha tese. Encontrei vrios livros nas livrarias do Porto e de Lisboa, na Biblioteca da Faculdade de Psicologia e Cincias da Educao e da

  • Faculdade de Letras da Universidade do Porto, entre outros indicados e cedidos por Margarida. Apesar das dificuldades enfrentadas, localizei uma significativa documentao que me permite discorrer sobre a origem e caractersticas das escolas centrais em Portugal, as expectativas em relao a este modelo escolar e sua importncia para a escolarizao da infncia portuguesa, cujo tema est presente nesta tese e, em artigo escrito conjuntamente com Margarida Felgueiras intitulado A implantao das escolas centrais em Portugal (2006).

    De volta ao Brasil, dediquei-me a ir em busca de novas documentaes que me auxiliassem a perceber a infncia mato-grossense, sua cultura, cotidiano, brincadeiras, e, a descobrir quem era a criana- aluno que freqentava os grupos escolares do estado.

    No arquivo da Escola Estadual Presidente Mdici tive acesso a documentaes especficas da Escola Modelo que me levaram ao entendimento do processo educativo dessa instituio e do comportamento de seus alunos, consultando relatrios dos diretores e livro de registro de penas disciplinares. Na Casa Baro de Melgao, especificamente no Acervo de Dunga Rodrigues, pude pesquisar livros de atores da poca que auxiliaram a compreender o contexto scio-poltico e o cotidiano da criana cuiabana. Procurando perceber a reao da sociedade ao modelo escolar imposto, recorri aos jornais em circulao no perodo, consultados nos arquivos no Ncleo de Documentao e Histria Regional da Universidade Federal de Mato Grosso. Tive acesso tambm ao acervo da D. Helena Mller, filha de Julio Muller e da professora Maria Muller, que, por meio das imagens cedidas, auxiliaram a elaborao desta tese.

    Embasada nesse conjunto documental e na pliade de estudiosos, esta tese tem como objetivo perceber como os grupos escolares foram organizados para formar o futuro cidado desejvel para atuar na sociedade, inquirindo a cultura escolar (JULIA, 2001) que nela surgiu e as representaes concorrentes (CHARTIER, 1990) de infncia presentes na sociedade mato-grossense. Busco responder s seguintes questes: Quais as representaes concorrentes da infncia e escolarizao existiam em Mato Grosso em 1910 a 1927? Que representaes de infncia e de escolarizao fundamentavam a organizao da escola graduada? Como o currculo desse modelo escolar foi organizado para formao da nova infncia idealizada pelos governantes e reformadores paulistas? O perodo delimitado neste estudo vai de 1910 a 1927, compreende a implantao dos grupos escolares at a nova reorganizao da instruo pblica, quando houve alteraes na organizao do ensino primrio no estado.

    O texto foi organizado em duas partes, sendo que a primeira contm cinco captulos e, a segunda, quatro. No primeiro captulo da 1 parte, atravs das produes dos pesquisadores

  • brasileiros dirigi-me aos debates e aes referentes infncia nas dcadas de 10 e 20 do sculo XX. No segundo, trato sobre a escolarizao da criana, detendo-me nas diversas apropriaes da escola graduada em circulao em diferentes pases europeus, nos Estados Unidos e no Brasil.

    Procuro, no terceiro captulo, traar o perfil da populao infantil mato-grossense, seus hbitos e processo de escolarizao. Ao discorrer sobre a populao infantil, trabalho com dados censitrios, no intuito de definir a infncia residente no estado, em relao idade, sexo e etnia. Em seguida, trao fragmentos da cultura infantil, recorrendo literatura regional, a fim de conhecer o ambiente em que se inseria e o seu cotidiano, procurando compreender as diferenas existentes entre os hbitos dessas crianas e daquelas das grandes capitais, observadas no primeiro captulo.

    Retomo a construo do processo educacional no estado, no quarto captulo, buscando compreender os movimentos existentes na sociedade paralelamente s reformas educativas. Sem este entendimento, a leitura e anlise dos relatrios dos diretores da Instruo Pblica e dos grupos escolares, que subsidiaram as anlises nos captulos subseqentes, ficariam comprometidas. Analiso, tambm, as representaes sociais de infncia em luta na sociedade mato-grossense da poca, compreendendo que tais representaes supem um campo de concorrncias e de competies, conforme afirma Chartier (1991).

    Em seguida, no quinto captulo, abordo como os diferentes segmentos da sociedade vo organizar o ensino primrio para a consolidao das suas respectivas representaes de infncia e de sua escolarizao.

    Na 2 parte, nos captulos seis, sete e oito, analiso alguns aspectos da cultura escolar dos Grupos, trazendo a concepo de Souza (2002) quando revela a proximidade entre o conceito de cultura escolar com o de currculo entendendo que as pesquisas sobre a cultura escolar no podem ser indiferentes ao currculo e as suas determinaes e implicaes diretamente envolvidas na conformao de prticas levando-se em considerao o fato dele se constituir em um dispositivo, um artefato pedaggico capaz de colocar uma ordem comum na educao escolarizada (SOUZA, 2002).

    Para Goodson (1995, p.118), a histria curricular importante porque nos permite penetrar nos processos internos ou na caixa preta da escola, procurando explicar como as matrias escolares, mtodos e cursos de estudo constituram um mecanismo para designar e diferenciar estudantes. Compreendendo que, como afirma Fourquin (1993, p. 90), os saberes veiculados na escola influenciam, com efeito, a construo da identidade entre os alunos. O intuito trazer discusso como o currculo dos grupos escolares

  • compreendendo os saberes, mtodos de ensino, a organizao do tempo e do espao escolar, e a concepo de avaliao foi organizado para a constituio da nova criana pretendida e de seu papel na sociedade republicana.

    No nono e ltimo captulo, escrevo sobre a criana-aluno que estuda no Grupo Escolar: suas caractersticas; o acesso escola; permanncia e problemas com o insucesso escolar.

    O conjunto documental coligido nesses arquivos, associado minha compreenso e anlise, possibilitou esta tese a comprovar que havia em Mato Grosso, no perodo de 1910 a 1927, representaes concorrentes de infncia e de sua escolarizao materializadas atravs da organizao de escolas pblicas e privadas voltadas para o atendimento da criana em idade escolar. Privilegiando a anlise dos grupos escolares, foi possvel perceber que o seu currculo foi organizado como resultado de um processo dos interesses dos governantes e intelectuais, voltado para a produo de uma infncia idealizada.

  • PARTE I

    A INFNCIA BRASILEIRA:

    REPRESENTAES, CULTURA E ESCOLARIZA0

    Escola Primria do sexo masculino In: Acervo particular de D. Helena Muller

  • CAPTULO 1

    AS REPRESENTAES DA INFNCIA BRASILEIRA

    Crianas da sociedade cuiabana In: ALBM, 1914.

  • Infantes, crianas, alunos, expostos, rfos, desvalidos, petizes, peraltas, vadios, capoeiras, menores, entre tantos outros, fazem parte da diversidade de nomes atribudos infncia brasileira no final do sculo XIX e incio do XX, que esto relacionados sua classe social, faixa etria, ao grupo cultural, raa, ao gnero e s diferentes situaes em que se encontra, como a de abandono e de excluso na famlia, na escola e na rua. Tais designaes carregam em si as mltiplas representaes de infncia presentes nos discursos e prticas dos diferentes segmentos da sociedade brasileira.

    1.1 A Infncia pobre e moralmente abandonada

    1.1.1.O universo da criana pobre nos grandes centros urbanos

    A dcada de 1870 tem sido considerada por autores como Jorge Nagle (2001) e Boris Fausto (2000), dentre outros, o momento inicial da industrializao no Brasil. Para eles, a concentrao de renda decorrente da expanso do setor cafeeiro e a introduo do brao imigrante na regio centro-sul favoreceram a consolidao desse processo j nos anos 1910.

    Nesse contexto, a industrializao determinou mudanas substanciais na organizao do trabalho no Brasil, contribuindo para a consolidao da burguesia industrial como classe hegemnica contrapondo-se a uma nova classe trabalhadora fortalecida pelo processo de migrao e imigrao.

    Com o crescimento demogrfico dos grandes centros urbanos - causado pelo trmino do sistema escravista, que conduziu um expressivo nmero de brasileiros aos grandes centros urbanos, e pela entrada macia da mo-de-obra imigrante - aumentou a pobreza, multiplicando-se as habitaes precrias, as favelas e os cortios, favorecendo a explorao da mo-de-obra da mulher e da criana, remuneradas com salrios aviltantes (MARCILIO, 1998). Nesse encadeamento de acontecimentos, o trabalho infantil se apresentava como um recurso das famlias pobres, j que precisavam unir os parcos salrios de todos os integrantes para garantir a sobrevivncia.

    A relao da criana pobre com o trabalho vinha ao encontro dos interesses do liberalismo econmico. A populao, at ento no trabalhadora, era transformada em mo-de-obra, possibilitando a reduo de salrios, constituindo o lado cruel do desenvolvimento. At mesmo as crianas que se encontravam em asilos eram recrutadas para o trabalho a partir

  • dos cinco anos de idade, sob a alegao de propiciar-lhes uma ocupao considerada mais til, capaz de combater a vagabundagem e a criminalidade (RIZZINI, 2002).

    Essas crianas, menores de 14 anos, em 1901, representavam 8% dos trabalhadores industriais. Em 1920, no Brasil, o ndice era de 19,3% da populao industrial total, correspondendo a 29,4% da cidade de So Paulo e 20% dos operrios industriais do Distrito Federal (PINHEIRO, 1978).

    Moura (2002, p. 262-3) afirma que

    Durante a Repblica Velha, o trabalho infanto-juvenil foi o espelho fiel do baixo padro de vida da famlia operria, pautado em salrios insignificantes e em ndices de custo de vida extremamente elevados.() A presena de crianas e adolescentes no trabalho industrial tornou-se, talvez, o referencial mais importante de que a pobreza no deixara de rondar as famlias de muitos e muitos imigrantes, cuja precria sobrevivncia dependia em parte do trabalho dos prprios filhos.

    As fbricas, que abrigavam inmeras crianas trabalhadoras, espelhavam na sua fachada o progresso to exaltado pelos governantes, mas, no seu interior, deixavam transparecer a falta de estrutura atravs de espaos improvisados para as mquinas e para os trabalhadores e da falta de iluminao e ventilao.

    Nesse ambiente, as crianas e adolescentes partilhavam do mundo adulto e, muitas vezes, tinham o curso de suas vidas interrompido devido aos constantes acidentes de trabalho ou eram feridas pelos maus-tratos dos patres e dos representantes dos cargos de chefia. Esses maus-tratos tinham como finalidade coloc-las na linha, pois a desobedincia, a malcriao, as brincadeiras pontuavam o cotidiano do trabalho no perodo, iluminando com uma forma peculiar de resistncia, a histria desses pequenos trabalhadores (MOURA, 2002, p.270).

    Alm das fbricas e oficinas, as crianas se ocupavam do trabalho na construo civil ou nas atividades informais, vendendo bilhetes de loteria, engraxando sapatos, etc., ou at mesmo das prticas que, resultado do abandono, aludiam mendicncia, delinqncia, e criminalidade. Esmolando, roubando, agredindo-se mutuamente e aos passantes, foram muitos os menores que fizeram das ruas paulistanas o cenrio de sua histria (MOURA, 2002, p.274-5).

    Essas crianas eram consideradas pelos juristas, policiais e mdicos higienistas como um perigo sociedade, transformando-se em foco de aes e discursos pautados no trabalho enquanto instrumento regenerador capaz de resgat-las da m influncia das ruas.

  • 1.1.2.As instituies de disciplinarizao e a formao para o trabalho

    O combate criminalidade, juntamente com a formao do trabalhador e a incorporao do povo Repblica apresentado como justificativa para a maioria das reformas na rea da educao e da assistncia criana abandonada (FARIA FILHO, 2001).

    As iniciativas nesse sentido atendem determinao do Cdigo Penal de 1890 e demonstram a preocupao dos juristas e legisladores com a questo do menor abandonado e com a criminalidade infantil, relacionados questo do trabalho.

    O Cdigo Penal no considerava criminosos os menores de nove anos completos e os maiores de nove anos e menores de 14 anos, que obrarem sem discernimento, porm, se houvessem agido conscientemente, estes ltimos deveriam ser recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriais, pelo tempo que ao Juiz parecer, no devendo l permanecer depois dos 17 anos. O objetivo no era confinar as crianas e adolescentes, mas recuper-las atravs da disciplina de uma instituio de carter industrial, deixando transparecer a pedagogia do trabalho coato como principal recurso para a regenerao daqueles que no se enquadravam no regime produtivo vigente (SANTOS, 2002, p.216).

    Na dcada de 20 esta questo ganha maior destaque no universo jurdico. Em 1921, a Lei 4.242 modifica o Cdigo Civil, determinando que se considere abandonado o menor sem habitao certa ou meios de subsistncia, rfo ou com responsvel julgado incapaz de sua guarda. Tentando por esta via pressionar as famlias pobres a exercer controle sobre seus filhos (ALVIN; VALLADARES, 1988, p.6).

    A partir de ento a palavra menor passa ao vocabulrio corrente, tornando-se na categoria classificatria da infncia pobre. O cdigo distingue dois tipos de menores, os abandonados e os delinqentes, como que reconhecendo duas variantes possveis no universo da pobreza. (ALVIN; VALLADARES, 1988, p.6).

    Alm dessa iniciativa, os juristas conseguem pressionar o Estado a criar o Juzo de Menores no Distrito Federal em 1923, dirigido pelo Dr. Mello Mattos, que tinha por objetivo proteger a mo-de-obra infantil e combater o mal-estar social provocado pela mendicncia e criminalidade. Para isso, toma para si a iniciativa de criar o Abrigo dos Menores, a Casa Maternal Mello Mattos, a Escola da Reforma Joo Luiz Alves, o Recolhimento Infantil Arthur Bernardes e a Casa da Mezinha (ALVIN; VALLADARES, 1988).

    A criao do juzo de Menores foi sucedida da aprovao do primeiro Cdigo de

  • Menores, em 1927, sendo considerado, por alguns autores, como marco na histria da assistncia infncia, organizado exclusivamente para o controle da infncia e da adolescncia abandonadas e delinqentes, cujo lema era: vigiar e punir (MARCILIO, 1998).

    Tais iniciativas jurdicas foram recebidas com descontentamento pela imprensa do Distrito Federal, alegando que o poder judicirio arrebanhava aqueles que passavam ao seu alcance sem estabelecer as devidas distines entre os bons e os maus elementos, no cogitando saber se eram vadios ou laboriosos, honestos ou viciados (CMARA, 2004). Em contraposio, Mello Mattos concebe tais empreendimentos como uma campanha santa, necessria por

    usar de medidas preventivas que a lei o obrigava com relao aos menores de catorze anos do sexo masculino e de dezoito para o sexo feminino que se empregavam em ocupaes na via pblica, sujeitadas a todos os tipos de riscos e atrativos que a rua representava com seus exemplos e moralidades (CMARA, 2004).

    Tais discusses a respeito da atuao jurdica sobre a infncia, deixam evidentes as lutas de representaes presentes na sociedade em relao ao desenho da infncia pobre.

    Paralelamente s aes jurdicas, outros projetos foram gestados voltados para a recuperao de jovens infratores ou proteo infncia e adolescncia desamparada. Diversas instituies foram criadas ou transformadas em institutos, escolas profissionais e patronatos agrcolas, numa dimenso do que Foucault chamou de grande confinamento, ou seja, o surgimento de prises, escolas e hospcios para fins de correo e coero moral (KENNEDY, 1999, p.138).

    O estado de So Paulo, desde o sculo XIX, contava com o Lyceo do Sagrado Corao de Jesus, o Abrigo Santa Maria, o Instituto D. Ana Rosa e o Instituto D. Escholastica Rosa, instituies privadas de recolhimento de menores voltadas para o ensino profissional, mas que apresentavam resistncia em aceitar menores que houvessem sido incriminados judicialmente. Em 1902, foi criado pelo governo o Instituto Disciplinar, constituindo um local onde os menores tinham acesso instruo literria, profissional, industrial e, principalmente, agrcola (SANTOS, 2002).

    Aps breve perodo de adaptao, o jovem era imediatamente integrado s frentes de trabalho, que naquele momento inicial era essencialmente agrcola. A regenerao pelo combate ao cio e a pedagogia do trabalho eram moedas correntes no cotidiano do instituto. Tentava-se de todo custo incutir naquelas mentes, hbitos de produo e convvio aceitveis pela

  • sociedade que os rejeitava. Por meio de contnuas sees de exerccios fsicos, tentava-se doutrinar os jovens para uma vida mais regrada e condizente com os anseios de uma cidade pautada pela lgica da produo (SANTOS, 2002, p..225).

    No Liceu de Artes e Ofcios, anteriormente conhecido como Escola Propagadora do Ensino, alm dos conhecimentos de francs, portugus, matemtica, geografia e histria, os alunos tinham o ensino da msica, da escultura e do canto. Em 1918, foi fundado pelo governo federal, o primeiro Patronato Agrcola do Pas, onde seriam administradas as noes prticas de agricultura, zootecnia e veterinria, juntamente com a instruo primria e cvica (MARCILIO, 1998, p. 216-219).

    Seguindo princpios higinicos e disciplinares, mdicos e juristas criaram um verdadeiro projeto de priso-modelo para os menores carentes ou infratores, de acordo com os valores e as normas cientficas propostas pelo filantropismo, segundo os quais os meios fundamentais de recuperao eram a educao, o trabalho e a disciplina (MARCILIO, 1998, p.218).

    Em 1901, foi fundada a Colnia Penal Agrcola, na Fazenda Santa Mnica, no estado do Rio de Janeiro, a cargo da Sociedade Nacional de Agricultura. Para l foram transferidos os menores da Escola Premonitria 15 de Novembro, criada no final do sculo XIX (MARCLIO, 1998). No ano seguinte, foi criada a Colnia Correcional de Dois Rios que tinha como funo a reabilitao pelo trabalho e educao dos meninos, do sexo masculino, vagabundos ou vadios, capoeiras, brios habituais, jogadores, ladres, os quais praticarem lenocnio e dos menores viciosos que forem encontrados e, como tais, julgados pelo Distrito Federal (MARCILIO, 1998, p.213). Esta instituio, conforme Vianna (2002), obedecia ao perfil de uma instituio de deteno e internao de criminosos e encontrava na linguagem do trabalho cotidiano um aliado importante.

    Em Belo Horizonte, em 1909, surgia o Instituto Joo Pinheiro, uma iniciativa exemplar que aliava a assistncia social infncia desvalida ao ensino agrcola, com o intuito de formar futuros trabalhadores. Para os seus fundadores, o Estado deveria intervir na soluo dos problemas das crianas abandonadas, primeiramente para resolver um dos grandes problemas da Repblica: a ausncia de um cidado republicano bem formado; o que levaria a evitar um mal maior: a criminalidade, a transformao dessas crianas em marginais e, por fim, sanaria um problema srio enfrentado pela economia mineira no momento: a falta de mo-de-obra para a lavoura (FARIA FILHO, 2001; VEIGA & FARIA FILHO, 1999).

    No Par, o Instituto Lauro Sodr foi convertido em Colnia Orfanolgica, Artstica,

  • Industrial e Agrcola Providncia em 1899, com o objetivo de retirar o menor infrator das ruas com o fim de instru-lo e capacit-lo para o mundo do trabalho (MARCILIO, 1998).

    Em Mato Grosso, o presidente de Estado lastimava, em discurso proferido em 1899, a falta de um estabelecimento destinado a receber os menores rfos desvalidos. Havia, no entanto, j funcionando em Cuiab, o Liceu Salesiano de Artes e Ofcios de So Gonalo. O projeto educacional desenvolvido em terras mato-grossenses estava alicerado no projeto Salesiano de educao estabelecido e definido pelo seu fundador como sistema preventivo (FRANCISCO, 1998, p.10). Atravs dele eram oferecidos o ensino primrio e secundrio de cunho humanstico-cientfico e, para as crianas pobres, o curso profissionalizante, atravs de oficinas de carpintaria, serralheria, alfaiataria, curtume, marcenaria, encadernao e tipografia.

    A atuao jurdico-policial de proteger a mo-de-obra infantil atravs da criao de instituies de abrigo s crianas pobres e filhos de operrios; e de combater o mal-estar social decorrente da mendicncia e criminalidade, isolando as crianas em instituies especializadas, muito se aproximava das propostas dos mdicos e higienistas.

    1.1.3. A contribuio mdico-higienista com os cuidados da infncia

    Preocupados com questes referentes infncia pobre, os mdicos, num esforo conjunto com os polticos, policiais e juristas, ficaram atentos a questes referentes ao trabalho infantil, promoveram aes que garantissem a sade fsica e moral do infante e, criaram polticas assistencialistas.

    Em relao explorao da mo-de-obra infantil, motivo de grandes debates sociais, a debilidade da criana trabalhadora foi alvo de grande preocupao dos higienistas, principalmente com as doenas e mutilaes que as afligiam por ficarem encerradas por 12 horas por dia em locais insalubres, o interior das fbricas, sob rgida disciplina.

    Essas crianas, geralmente com uma alimentao inadequada devido pobreza, e trabalhando em locais onde a luz e o ar pouco penetravam, eram facilmente vtimas da tuberculose. Em 1914, o mdico Moncorvo Filho ao examinar 88 menores aprendizes de duas oficinas do Rio de Janeiro, verificou que 70% deles estavam com a doena (RIZZINI, 2002;

  • MOURA, 2002). A explorao do trabalho infantil e suas conseqncias atingiram tamanho vulto que

    a imprensa paulista e os trabalhadores, por diferentes motivos, se posicionaram veementemente contra a presena dos menores no mercado de trabalho.

    Em maio de 1898, o jornal Fanfulla informava que entre as reivindicaes dos trabalhadores, estavam includas as proibies do trabalho para os menores de 14 anos, do trabalho noturno independente da idade, devendo a infncia ser protegida at os 16 anos. Em 1901, o jornal O Estado de So Paulo se manifestou por ocasio de um grande acidente ocorrido em uma indstria txtil, onde uma menina de 10 anos sofreu queimaduras por todo corpo. Em 1915, O Combate relatou um acidente de trabalho em uma oficina de mveis onde um menino de 14 anos foi apanhado por uma polia de transmisso, sofrendo fraturas no brao direito (MOURA, 2002).

    As crticas direcionavam-se ao empresariado, ao Servio Sanitrio, responsvel pela fiscalizao e tambm aos pais, acusados de serem gananciosos explorando os filhos, muito embora, muitas vezes, essa situao fosse decorrente da necessidade econmica (MOURA, 2002).

    Somadas s questes mencionadas, outra grande preocupao dos mdicos higienistas relacionava-se ao alto ndice de mortalidade infantil proveniente do aborto e do infanticdio que aconteciam com constncia e em nmero cada vez mais elevado nas cidades brasileiras. Tal preocupao, presente na sociedade brasileira desde o sculo XVIII, impulsionou a criao da roda de expostos, garantindo o anonimato das mes. No entanto, para que essa instituio obtivesse o sucesso esperado, se tornava muito importante a escolha do local a ser instalada, pois se as mes de alguma maneira se sentissem visveis, continuariam a abandonar os bebs em lugares ermos, ocasionando a sua morte, ou nas casas de famlias.

    Esta situao aconteceu em Mato Grosso, que teve a roda criada em 1833 junto Santa Casa da Misericrdia, mas em que, durante seus vinte e quatro anos de funcionamento, teve somente trs crianas depositadas (NOVAIS, 1997). O presidente da provncia alegou que

    A facilidade dos meios de subsistncia e o gnio independente que caracteriza a populao pobre desta Capital so talvez os motivos do completo abandono em que est esta instituio apesar dos dezessete anos de sua existncia mas julga a Comisso, que se a Roda fosse transferida para o lado oposto, isto , para a Roda dos Prazeres, onde podero as mes a seu salvo entregar os inocentes filhos sem serem conhecidas e importunadas pela

  • guarda do Hospital Militar, cuja proximidade parece vedar a aproximao da roda, poder-se-ia tirar o fruto desta to pia obra (RELATRIO, 1850).

    No entanto, seria somente a localizao um fator determinante para o desuso da roda dos expostos em Mato Grosso? Volpato (1993) e Florence (1977) nos levam a acreditar que no.

    Volpato (1993), ao analisar o procedimento sexual das mulheres pobres, afirma que elas no se envergonhavam de ter filhos naturais e ilegtimos, independente do casamento. A esse respeito, Hercules Florence (1977, p.177), ao descrever os costumes dos habitantes de Cuiab (1825-1829) afirmou que:

    as mulheres de classe mdia e sobretudo inferior, so muito livres nas suas conversas, modos e costumes. Alm do contnuo exemplo da licena geral e quase desculpada, recebem pernicioso influxo do contato dos escravos, negros e negros, cujas paixes violentas no vem peias sua expanso. A fidelidade conjugal , muitas vezes, falseada. Apesar de temerem os maridos e consider-los como amos e senhores, sabem perfeitamente engan-los. (...) As moas filhas de pais pobres nem sequer pensam em casamento. No lhes passa na cabea a possibilidade de arranjarem marido sem o engodo do dote e, como ignoram os meios de uma mulher poder viver de trabalho honesto e perseverante, so facilmente arrastadas vida licenciosa (...).

    Diante de tais afirmaes, possvel afirmar que as prprias famlias criassem as crianas rfs e bastardas.

    Em outros estados, como Salvador, Rio de Janeiro, Minas Gerais e So Paulo, muitas crianas foram depositadas na Roda, mas, devido falta de estrutura das Casas dos Expostos, com poucas acomodaes, surtos epidmicos facilitados pelo contato direto entre as crianas, aleitamento coletivo e falta de asseio; somadas prpria idade e aos maus-tratos at chegarem Roda, devido ao fato de virem de longe e ficarem expostas ao frio ou ao calor do dia e, por vezes ficar demoradas horas nas escadarias da igreja; ao invs de cuidado, encontraram a morte. Mesmo as que sobreviviam no tinham, em sua grande maioria, os cuidados necessrios (GONDRA, 2002, p.112).

    Os mdicos, que antes se posicionavam a favor desse mecanismo, alegando ser uma escapatria para a mulher que errou, salvando a dignidade das famlias e a preservao dos costumes; desencadearam a campanha, juntamente como os juristas, contra essa instituio, culminando na sua extino, no mbito legal, em todo territrio nacional atravs do Cdigo de Menores de 1927, artigo 15, porm permanecendo em atividade at parte da dcada de 1950.

    Para os higienistas, no bastava somente acabar com a Roda, era necessrio tambm

  • instruir as mes para que no abandonassem os filhos aps o parto. Nesse perodo, as polticas sociais de assistncia que estavam sob os cuidados dos religiosos, voltados para a assistncia caritativa, sofreram a influncia das cincias que direcionaram o projeto de proteo e educao das crianas incorporando-a ao projeto de civilizao da sociedade que se expande ao longo do sculo XX (VEIGA, 2003). Os mdicos comearam a participar ativamente de congressos internacionais e de exposies objetivando a troca de idias para implementao de aes sociais.

    Participante de tais movimentos, o mdico Arthur Moncorvo Filho foi grande defensor de iniciativas para assistir e proteger a infncia pobre, implementando diversas aes nesse sentido. Em 1899, criou o Instituto de Proteo Infncia no Rio de Janeiro (IPAI-RJ), entidade que se espalhou pelo pas contando, em 1929, com 29 filiais, tendo como objetivos:

    Inspecionar e regulamentar a lactao, inspecionar as condies de vida das crianas pobres (alimentao, roupas, habitao, educao, instruo, etc.); dispensar proteo s crianas abandonadas; auxiliar inspeo mdica nas escolas e indstrias, zelar pela vacinao, difundir meios de combate tuberculose e outras doenas comuns s crianas; criar jardins de infncia e creches; manter o dispensrio Moncorvo, para tratamento das crianas pobres; criar um hospital para crianas pobres; auxiliar os poderes pblicos na proteo das crianas necessitadas; criar sucursais nos bairros do Rio de Janeiro; concorrer para que fossem criadas, nos hospcios e casas de sade, escolas para imbecis, idiotas etc.; criar filiais nos outros estados; propagar a necessidade de leis protetoras da infncia e tambm de regulamentao da indstria das amas de leite; finalmente, aceitar, favorecer, auxiliar e propagar qualquer idia em proveito da caridade, maxim em prol da infncia (KUHLMANN Jr. ,1991, p.21)

    Kuhlmann Jr. (1991) afirma que o IPAI-RJ dividia seus servios em puericultura intra-uterina e extra-uterina que inclua o programa Gota de Leite, creche, consulta de lactantes, higiene da primeira idade, exame e atestao das amas de leite, exame das mes, que pedem leite esterilizado para seus filhos, e vacinao.

    O IPAI constitui-se um espao por intermdio do qual o mdico carioca agregava aliados, testava suas hipteses, aprofundava suas reflexes, articulava aes e irradiava um padro de assistncia infncia, o qual, como ele mesmo assinalara, tinha por objetivo inaugurar uma nova era no que se referia a esta questo, j que, o que existia anteriormente 1899 eram, segundo ele, instituies mantidas em moldes arcaicos, funcionando como matadouros de inocentes (PEREIRA apud GONDRA, 2002, p.308).

    Em 1919, esse mesmo mdico fundou o Departamento da Criana no Brasil, que pretendia centralizar informaes e tambm estudos e pesquisas sobre a criana, cuidando da

  • ampla divulgao de seus preceitos (KUHLMANN Jr. ,1991, p.22). Em paridade ao argumento econmico de melhorar a sociedade e ao jurdico em prol

    da defesa da sociedade, a medicina acopla a razo eugnica de aperfeioar a espcie. O brasileiro robusto era o ideal a ser alcanado (GONDRA, 2000, p.9).

    Nesse sentido, o IPAI-RJ, entre as muitas atribuies, promoveu concursos de robustez para bebs, atribuindo prmios em dinheiro s mes que amamentavam seus filhos (KUHLMANN JR., 1991). Em Belo Horizonte foram promovidos concursos de robustez e beleza infantil, a partir de 1935, voltados para a comemorao da criana sadia e para a disseminao do ideal de aprimoramento da raa. Entretanto, esses eventos j aconteciam no Pas desde o incio do sculo XX, onde o corpo infantil era identificado como exemplar, modelo de aprimoramento racial, que devia ser exibido e premiado (VEIGA , GOUVA, 2000).

    Conforme Veiga e Faria Filho (1999, p.35):

    Os mdicos, em geral, estabeleceram uma relao estreita entre classes pobres e doenas, e no medo do contgio ploriferaram-se as internaes dos mdicos sanitaristas. Era necessrio erradicar as doenas oriundas das pssimas condies de moradia, da precria alimentao, dos maus hbito morais e sexuais das classes pobres, para que outras classes no fossem contaminadas.

    *

    * *

    Conforme pudemos observar, os mdicos, higienistas, juristas e policiais expressaram, atravs de seus discursos e prticas, algumas dimenses do processo de transformao ao qual a sociedade brasileira foi sendo submetida rumo modernizao de suas estruturas e comportamentos.

    Em relao infncia, tais segmentos da sociedade implementaram aes no sentido de preparar a criana para exercer a cidadania e atuar no mundo do trabalho. No prximo captulo, veremos a atuao dos governantes e da sociedade civil na educao das crianas brasileiras, atravs da implantao de instituies pr-escolares e de ensino primrio.

  • CAPTULO 2

    A ESCOLARIZAO DA INFNCIA: EDUCAO INFANTIL E ENSINO PRIMRIO

    Escola Primria do Sexo Feminino. In: ALBUM, 1914.

  • No sculo XIX, principalmente no perodo imperial, os discursos dos governantes e da elite brasileira voltavam-se para a necessidade da escolarizao das crianas pobres e livres, concebidas como camadas inferiores da sociedade, sendo que, para essas, a escolarizao no deveria ultrapassar os rudimentos do saber ler, escrever e contar. No havia, para elas, pretenses de estabelecer relaes dessa escola com o ensino secundrio e o superior (FARIA FILHO, 2000). Nesse sentido, a grande preocupao voltava-se para a criana pobre a fim de form-la afinada com os novos smbolos da modernidade: a sociedade do trabalho, sendo a sua educao representada como um investimento, no sentido de gerar/produzir sujeitos que pudessem ser integrados produtivamente ao universo econmico (GONDRA, 2000).

    Segundo Faria Filho (2000, p. 135), questes como a necessidade e pertinncia ou no da instruo dos negros (livres, libertos ou escravos), ndios e mulheres eram amplamente debatidas em busca do ordenamento legal da educao escolar. Nesse sentido, em 1879, a Reforma do Ensino Primrio e Secundrio, proposta por Lencio Carvalho, instituiu a obrigatoriedade escolar dos 7 aos 14 anos e eliminava a proibio de escravos freqentarem as escolas pblicas. Gonalves (2000, p.327) afirma que, no entanto, o fato de existirem iniciativas com vistas incluso dos escravos e dos negros livres em cursos de instruo primria e profissional no nos autoriza inferir que essa tenha sido uma experincia universal, pois a criana escrava vivia uma realidade bem distinta das demais.

    Sobre o assunto Fonseca (2002) afirma que, por desconhecer a sua condio social, a criana escrava, para conhecimento das obrigaes inerentes sua condio, deveria ser preparada para assumir a sua posio no mundo escravista. Entre os quatro e onze anos, as crianas aprendiam um ofcio e a serem escravas. Dessa forma, uma criana de seis anos valia 60% a mais que a de quatro anos, chegando a valer o dobro ao completar os onze anos. Aos doze anos, o adestramento que as tornava adultas j estava se concluindo, sendo que, nesta idade, os meninos e as meninas comeavam a trazer a profisso por sobrenome: Chico Roa, Joo Pastor, Ana Mucama (GES; FLORENTINO, 2002, p.184).

    As crianas imigrantes tambm foram motivos de preocupao no final do sculo XIX e incio do XX, pois, na dcada de 1890, quando houve uma maior entrada de imigrantes no pas pelo porto de Santos, o Brasil, conforme afirma Kreutz (2000), tinha um sistema educacional deficitrio, com uma populao de 80% de analfabetos. Esse quadro levou alguns grupos a pressionarem o Estado em favor das escolas pblicas. Outros, especialmente os que haviam se estabelecido em ncleos mais homogneos, investiam em escolas tnicas (KREUTZ, 2000, p.353).

  • Vrias foram as iniciativas de educao da infncia na passagem do sculo XIX para o XX. Destaco aqui dois movimentos educacionais que foram significativos no perodo: a educao infantil e a implantao da escola graduada; embora, como vimos, no tenham sido nicos.

    2.1. Educao Infantil: Jardim-de-infncia para a elite, Escola Maternal e Creches para as crianas pobres.

    A infncia e sua educao esto presentes nas Exposies Universais, que ocorreram em diferentes pases desde 1851 at os primrdios do Sculo XX.

    As Exposies Universais tiveram uma repercusso significativa em seu tempo () elas prestigiaram a educao como signo de modernidade, difundindo um conjunto de propostas nessa rea, que abarcavam diferentes instituies- da creche ao ensino superior, passando pelo ensino profissional e pela educao especial -, mtodos pedaggicos e materiais didticos. A educao era identificada como um dos elementos do progresso cultuado, ao lado da eletricidade, das mquinas, das inovaes tecnolgicas, dos produtos industriais (FERNANDES; KUHLMANN Jr, 2004, p.26).

    Nesse perodo, as modalidades educacionais se reconfiguram, compondo-se de creches e jardim-de-infncia ao lado das escolas primrias, ensino profissional, educao especial, entre outros (KUHLMANN Jr, 2001b, p.12).

    A expresso jardim-de-infncia a traduo do vocbulo alemo Kindergarten, de autoria de Froebel. Foi em 1840, que deu esse nome ao seu estabelecimento (VRARD-FIQUEMONT, 1958).

    Para Froebel a criana deve estar em contato estreito com a natureza, possui o seu jardinzinho e o cultiva, comparada, ela prpria, a uma planta, e seu professor a um jardineiro que dela cuida. Da o seu primeiro nome viveiros infantis, que Froebel substituiu mais tarde por jardins de infncia (VRARD-FIQUEMONT, 1958, p.28).

    Froebel desejava uma escola apropriada criana, que, segundo a sua vontade, deveria estar em contato com a natureza. Pedia para ela a amplido de uma atividade livre e espontnea, dirigida para um fim til, onde o educador deveria explorar a curiosidade da criana, sua necessidade de tocar, agir e criar. Apregoava a liberdade do brinquedo como uma

  • atividade primordial e de significao profunda. Morreu em 1852, deixando discpulos entre membros de sua famlia e amigos.

    Vinte e trs anos aps a sua morte, 170 cidades da Europa e Amrica tinham, cada qual, um ou vrios jardins-de-infncia. Em 1880 j eram 524 as cidades dos Estados Unidos que os possuam e em 1881 s na Sua, 108 cidades tinham os seus (VRARD-FIQUEMONT, 1958, p.29). Suas idias e experincias foram divulgadas em diferentes pases europeus e nos Estados Unidos.

    No Brasil, o Inspetor Geral da Instruo Pblica, Souza Bandeira Filho, ao retornar de viagem Frana, Sua, ustria e Alemanha em 1883, para obter informaes sobre o jardim-de-infncia e outras instituies de educao infantil, publicou um relatrio. Nele

    o autor afirmava que eram raros, nesses pases, os Kindergarten abertos gratuitamente freqncia pblica. Em geral, eram mantidos por associaes que exigiam uma contribuio mensal mais ou menos elevada, preferindo, na admisso, os filhos dos associados, pertencentes a famlia abastadas (KUHLMANN Jr, 2001, p.4).

    Souza Bandeira percebeu que para atender as crianas pobres foram criadas instituies com fins assistencialistas.

    A implementao de instituies de educao pr-escolar no Brasil tambm aconteceu de forma dual: os jardins-de-infncia para as crianas da elite, e as creches e escolas maternais para a classe popular.

    O primeiro jardim-de-infncia do pas era de origem privada. Foi criado em 1875, no estado do Rio de Janeiro, funcionando no Colgio Menezes Vieira. O Jardim de Crianas, idealizado por Menezes Vieira, mdico educador, e sua esposa D. Carlota de Menezes Vieira, funcionava em um dos melhores bairros do Rio de Janeiro, com instalaes apropriadas para atender a uma clientela de elite de 3 a 6 anos. Utilizava a metodologia propagada por Pestalozzi e as atividades sugeridas por Froebel e Mme. Pape-Carpentier (BASTOS, 2001).

    A sua instalao provocou a reao de alguns membros da sociedade que compreendiam ser tais instituies apropriadas para o cuidado da infncia pobre e no para educao dos filhos da elite. Conforme o Sr. Junqueira:

    O jardim-de-.infncia no tem nada com a instruo, uma instituio de caridade para meninos desvalidos, que serve para me ou pai, sendo minimamente pobres, quando vo ao trabalho, entreguem seus filhos queles asilos, como j se faz entre ns e at na Bahia, em algumas casas dirigidas pelas irms de caridade. Mas aqui era preciso dar esse nome pomposo

  • (DOCUMENTOS PRIMEIRA EXPOSIO PEDAGGICA, 1884, apud BASTOS, 2001, p. 63)

    As ponderaes feitas pelo Sr. Junqueira expressavam a sua inquietao em preservar os pequenos fora de perigo de ficarem entregues a si mesmos, enquanto suas mes trabalhavam. Nesse momento, a preocupao com a infncia girava em torno do cuidado e assistncia s crianas pobres, no sentido de tir-las da rua, isolando-as dos meios que pudessem contamin-las, visando, desta forma, prevenir a criminalidade (KUHLMANN Jr., 1991, p.25).

    Entretanto, Menezes Vieira defendeu a criao dessa instituio para as crianas mais abastadas, alegando que na alta sociedade, os espetculos lricos, os passeios da Rua do Ouvidor, s estaes de Petrpolis e Friburgo no permitem que as crianas recebam todo desvelo de que carecem. Se no vagam pelas ruas, vivem com os fmulos e com os escravos, cuja influncia desgraadamente nenhum brasileiro pode ignorar (BASTOS, 2001, p. 75). A educao para a elite estava voltada em oferecer a essas crianas, a ateno e a educao que no tinham nos lares.

    No estado de So Paulo, a Escola Americana instalou, em 1877, um jardim-de-infncia sob a orientao de norte-americanos e, em 1888, a professora Guilhermina Loureiro de Andrade fundou o Kindergarten Modelo, no Rio de Janeiro.

    No setor pblico, os jardins-de-infncia foram instalados somente na Repblica, sendo um criado em 1896, em So Paulo, anexo Escola Normal Caetano de Campos, onde, juntamente com a escola primria, serviria de local de estgio para os futuros professores. Conforme Kuhlmann Jr. (2001a, p.122) o jardim-de-infncia fazia parte da proposta educacional do Partido Republicano Paulista PRP, do projeto da Escola Normal (decr. N27, 12/13/1890) e dos planos do seu diretor, Gabriel Prestes (filiado ao PRP desde 1890).

    Para viabilizar institucional e didaticamente o seu funcionamento, Maria Ernestina Varella, Zalina Rolim e Rosina Soares traduziram e adaptaram algumas obras estrangeiras que serviriam de orientao. O curso foi distribudo em trs perodos, de acordo com as orientaes de Parker, funcionando de segunda a sbado, das 11h s 15h. As horas eram dedicadas a cantos, marchas, exerccios de linguagem e intervalo para o lanche. (MONARCHA, 2001, p.83-4)

    Essa iniciativa tambm contou com alguns confrontos. O Sr. Jos Feliciano de Oliveira, ex-professor da Escola Normal, e Joo Kopke, fundador da Escola da Neutralidade em So Paulo e ex-professor do Colgio Rangel Pestana, se posicionaram contra a criao dos

  • jardins-de-infncia, alegando ser a educao da infncia de responsabilidade materna. O prprio Froebel recebeu as mesmas crticas, sendo acusado de querer tirar as crianas do meio familiar.

    As crticas foram relatadas por Gabriel Prestes numa srie de artigos publicados no jornal O Estado de S. Paulo.

    O Jardim-de-infncia s se instituiu depois de bem amadurecida a idia de sua criao. Nesta mesma capital, j o dr. Horcio Lane havia institudo o ensino froebeliano em um Jardim-de-infncia que, por longo tempo se manteve na Escola Americana. E, se esse exemplo no foi seguido, que, naquela poca, pouqussimos se preocupavam os poderes pblicos com o problema do ensino. Veio, porm, a repblica e desde logo se iniciou esse benemrito movimento reformador que tem por base a Escola Modelo Caetano de Campos. Era ento natural e oportuna a criao dos Jardins-de-Infncia. (PRESTES, 1897 apud MONARCHA, 2001, p.86).

    Em contraposio aos Jardins-de-infncia, as creches e as escolas maternais eram destinadas s crianas pobres, voltadas para o seu cuidado e sua formao moral e fsica, subordinadas aos rgos de sade pblica ou de assistncia.

    A necessidade de tais instituies vinha sendo divulgada entre 1879 a 1888, por meio do Jornal A Mi de Famlia. Sua grande nfase estava em dar respaldo para as famlias pobres a fim de que estas assumissem a criao de seus filhos e no mais utilizassem a roda dos expostos, abandonando-os. Para isso, a creche era compreendida como uma instituio assistencial e educacional voltada para o atendimento de crianas at 2 anos de idade, sucedida da sala de asilo da segunda infncia, que posteriormente passou a ser chamada de escola maternal, para as crianas dos 3 aos 6 anos (KUHLMANN Jr, 1991, p.25).

    A concepo de assistncia cientfica em conformidade s propostas das instituies de educao popular veiculadas nos Congressos e Exposies Universais, j previa que o atendimento da pobreza no deveria ser feito com grandes investimentos. A educao assistencialista promovia uma pedagogia da submisso, que pretendia preparar os pobres para aceitar a explorao social (KUHLMANN Jr., 2000, p.8).

    As creches foram criadas e organizadas, inicialmente, atendendo s concepes de infncia mdico-higienista e jurdico-policial, cujos discursos e aes estavam direcionados para a infncia moralmente abandonada.

    Atravs do IPAI-RJ, foi instituda a creche Sra. Alfredo Pinto, mantida pelas Damas da Assistncia Infncia. A creche tinha 20 leitos para atender as crianas, em sua grande

  • maioria filhos de empregadas domsticas, e no de operrias. Em 1929, havia 22 filiais do IPAI no Brasil, sendo que 11 delas possuam creche (KUHLMANN Jr, 1991, p.21-22).

    A recomendao da criao de creches agregadas s indstrias era defendida com freqncia nos congressos que abordavam assistncia infncia, demonstrando a preocupao com o amparo aos filhos dos operrios, de modo que estes no ficassem na rua, criados a esmo, aumentando os ndices de vadiagem e marginalidade j existentes. Tal empreendimento resultou na instalao de creches nas indstrias no Rio de Janeiro e So Paulo, como a creche da Companhia de Fiao e Tecidos Corcovado (RJ), a primeira instituio para filhos de operrios; a da vila operria Maria Zlia, que foi instalada em 1918 e a da indstria Votorantim, em 1925 (KUHLMANN Jr., 1991, p.23).

    Sob a iniciativa do jurista Ataulpho de Paiva, que em 1908 organizou o Patronato dos Menores no Rio de Janeiro, foi criada a Creche Central, denominada assim para ser matriz de outros institutos semelhantes a serem abertos nos bairros afastados do centro da cidade visando abrigar as crianas cujas mes trabalhassem fora do lar.

    As disparidades entre as modalidades de instituies pr-escolares deixam exposta a segregao social, explcita atravs da criao de sistemas especficos para atender a criana pobre e a da elite. Nesse sentido, Marcilio (1998, p.224) destaca que

    possvel afirmar que as polticas destinadas infncia so concebidas de dupla forma: criana da elite, alvo de atenes e da polticas da famlia e da educao, com o objetivo de prepar-la para dirigir a Sociedade, enquanto que a criana pobre deveria ser objeto de controle especial, de educao elementar profissionalizante, que a preparasse para o mundo do trabalho.

  • 2.2. A circulao de um modelo de escolarizao da infncia: as escolas graduadas

    No incio do sculo XX havia, na sociedade brasileira, representaes sociais concorrentes de infncia e de sua escolarizao consolidadas atravs de diferentes modelos educacionais: as escolas unidocentes e a escola graduada.

    A escola graduada nasceu no final do sculo XIX, no bojo do discurso da modernidade. Constituiu-se assumindo uma nova concepo de escola primria (FARIA FILHO, 2000; VIDAL, 2005a), contrapondo-se escola isolada, em que um s mestre, ensinava a um grupo de alunos cujas idades e conhecimentos cobriam todo o ensino primrio. Pressupunha alunos classificados e agrupados o mais homogeneamente possvel, em funo da sua idade e conhecimentos.

    A escola moderna seria a escola-colgio. A escola unitria, a escola-aula, era entendida como o vestgio do tempo da escola antiga de acordo com Antnio Viao Frago (1990). Faria Filho (1990, p.31-2) afirma ser a representao dos grupos escolares, construda tendo como uma de suas bases a produo das escolas isoladas como smbolo de um passado que deveria ser ultrapassado, quando no esquecido.

    A substituio do mtodo individual pelo simultneo constituiu um eixo importante da escola graduada. Atravs do ensino simultneo, o professor ensinava a mesma lio a todos os alunos com se fossem um s, sendo, para isso, necessrio homogeneizar os grupos redistribuindo os alunos em graus e classes. Essa organizao escolar sofreu influncias do princpio da diviso do trabalho, presente na revoluo industrial. R. Blanco, afirma que a escola graduada uma organizao das escolas fundamentada na lei econmica da diviso do trabalho. Segundo o autor, aplicando a teoria da diviso homognea do trabalho, o resultado ser semelhante ao de uma fbrica. Para exemplificar, utiliza a ilustrao do escocs Adam Smith, um dos primeiros a investigar o processo da diviso do trabalho no setor industrial:

    Catorze obreiros, tendo a seu cargo a totalidade do processo, fariam 20 alfinetes dirios cada um; 280 no total. Mas se estes 14 operrios em vez de trabalharem separadamente, se reunirem numa fbrica, sob a direo de uma pessoa inteligente, e dividirem o trabalho poderiam produzir diariamente mais de 100.000 alfinetes (BLANCO apud FRAGO, 1990, p.29).

    Para Adam Smith, dividir o trabalho implicava numa nova estrutura da atividade produtiva substituindo o sistema familiar artesanal, pela reunio de trabalhadores em um s local e pela distribuio, entre eles, do trabalho em partes. Desta forma, o novo modelo

  • organizacional do trabalho, alm de aumentar a produtividade, possibilitava um maior controle, pelo empregador, do tempo, impondo aos operrios um ritmo mais intenso. Segundo esta teoria, o que proporciona maior riqueza a um pas no o aumento do volume de moedas acumuladas, como pensavam os mercantilistas, mas a ampliao da produtividade mediante a diviso do trabalho (ABRO, COSCODAI, 2002, p.363-4-6).

    Aplicando este conceito educao, V. Pinedo afirmou em Congresso em Barcelona, em 1909, que na escola graduada, como em qualquer indstria, h poupana ou aproveitamento de tempo, maior destreza do artfice e ocasio de descobrir novos meios de aperfeioar e abreviar o trabalho (PINEDO apud FRAGO, 1990, p.30). Tyack e Cuban (1999), ao escreverem sobre as escolas norte-americanas, afirmam que:

    Muitos defensores da escola graduada destacando-se, entre eles, os superintendentes municipais e estaduais e os lderes dos quadros administrativos escolares estavam muito bem impressionados com a diviso do trabalho e a superviso hierrquica freqentemente utilizadas nas fbricas. Ento, perguntaram-se: por que este sistema bem-ordenado no poderia ser adaptado educao pblica? Eles no questionaram a antiga assertiva de que uma sala de aula um lugar independente onde um professor estabelece tarefas para um grupo de estudantes e avalia seus desempenhos. Ao contrrio, eles buscaram uma maior eficincia concentrando o trabalho do professor em uma srie, na qual os estudantes poderiam ser agrupados de acordo com a sua proficincia acadmica e poderiam aprender um currculo uniforme. Assim, um professor poderia ensinar a todas as crianas na sala de aula os mesmos assuntos, da mesma maneira e no mesmo ritmo (TYACK, CUBAN, 1999, p. 7-8, traduo mimeo)

    Sendo assim, o emprego do mtodo simultneo e a conseqente organizao dos alunos em classes sob a regncia de um professor para cada grupo de alunos, favorecia no somente a distribuio do trabalho, como tambm a maior capacidade de superviso e controle da ao dos professores e dos alunos. organizao das escolas graduadas, ento, foram acrescidas as tcnicas de superviso e eficincia das instituies, cercadas de racionalidade cientfica, o exame e classificao cientfica das crianas e a distribuio, previamente planejada, de tempos e tarefas, movimentos e aes (FRAGO, 1998).

    possvel relacionar as estruturas e modalidades organizativas da escola com a inculcao de valores e normas de comportamentos, com a estatizao do ensino, com a evoluo de formas de organizao do trabalho, com o desenvolvimento de uma administrao escolar burocratizada, com a afirmao da escola como organismo social, com a definio das estruturas de poder no seu interior e com a evoluo do currculo.

  • Dessa forma, as escolas graduadas foram organizadas no sentido de formar as crianas no s com os conhecimentos morais e cientficos necessrios, mas tambm com hbitos e valores pertinentes ao mundo do trabalho.

    2.1.1.As variadas formas de apropriaes de um modelo escolar

    Esta organizao de escola primria tornou-se um modelo que representava a excelncia da educao, sendo apropriado (CHARTIER, 1990) rapidamente por vrios pases. Situou sua universalizao no centro dos processos de transformao social e cultural que atingiram todo Ocidente nos sculos XIX e XX, tendo o ensino simultneo como questo nuclear.

    Nos Estados Unidos, a escola graduada foi introduzida na dcada de 1840 na Quincy Grammar (SOUZA, 1998). Tyack e Cuban (1999) afirmam que, por volta de 1860 a escola graduada era comum nas grandes cidades e, em 1870, j haviam se expandido por todos os lugares em que havia crianas suficientes para classificar em sries.

    No incio da dcada de 1870, segundo os autores, a escola graduada recebia crticas referentes rigidez do seu currculo e ao sistema de exames promocionais que, compreendendo ser normal o estudante que