possuidos pelo espírito do imperialismo - lair amaro

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Possuidos Pelo Espírito Do Imperialismo - LAIR AMARO

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  • POSSUDOS PELO ESPRITO DO IMPERIALISMO: LENDO MC 5,1-20 COM

    HOMI BHABHA

    Lair Amaro dos Santos Faria1

    http://lattes.cnpq.br/8136626937111109

    Resumo:

    A interpretao dos livros do chamado Novo Testamento fortemente influenciada pelo

    contexto discursivo de seus intrpretes. Nesse sentido, eruditos que no sentem os

    efeitos do imperialismo estadunidense no levam em conta os reais efeitos da presena

    imperial romana na Palestina em que Jesus circulava. A teoria ps-colonial lana um

    desafio a essas interpretaes padro, propondo uma releitura dos textos evanglicos sob

    a ptica dos povos colonizados e da maneira como esses negociavam com o colonizador

    suas identidades e formas de resistncia.

    Palavras-chave: Contexto discursivo, crtica ps-colonial, exorcismo, possesso, mmica

    Abstract

    The interpretation of the books of the so called New Testament is strongly influenced by

    the discursive context of its interpreters. In this sense, scholars who do not feel the

    effects of U.S. imperialism do not take into account the real effects of the Roman imperial

    presence in Palestine where Jesus circulated. The post-colonial theory poses a challenge

    to these standard interpretations, proposing a rereading of the Gospel texts from the

    perspective of the colonized peoples and the way they negotiated with their colonial

    identities and forms of resistance.

    Key-words: Discursive context, Post-Colonial criticism, Exorcism, Possession, Miming

    1 Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Histria Comparada PPGHC/UFRJ. Orientando

    do prof. Dr. Andre Leonardo Chevitarese.

  • 64

    I. Todas as narrativas evanglicas cannicas so unnimes em apontar Jesus de

    Nazar como um campons judeu que atraa multides em funo de sua capacidade

    incomum de restabelecer a sade mental e fsica de pessoas acometidas por distrbios

    psicolgicos e/ou disfunes corporais. Com efeito, a narrativa cannica mais antiga, o

    evangelho de Marcos, assinala que aps a cura de um endemoninhado na sinagoga de

    Cafarnaum (Mc 1,21-28), a fama de Jesus se espalhou em toda a redondeza da

    Galileia e, em decorrncia daquele fato, eram-lhe trazidos todos os que estavam

    enfermos e endemoninhados, a ponto de a cidade inteira aglomerar-se porta (Mc

    1,32-33).

    Numa perspectiva ps-colonial2, uma questo que imediatamente se apresenta

    por si mesma como tais histrias de curas e exorcismos podem estar relacionadas

    ao imperialismo romano. Elas assumem um tom antagonista? Elas so aquiescentes?

    Elas reproduzem a ideologia imperial? Ou elas podem ser entendidas numa forma

    alternativa? Essas questes tendem a ser respondidas diferentemente pelos eruditos

    em funo do contexto discursivo em que eles prprios se inserem.

    Dentre essas histrias de curas e exorcismos, convm destacar o episdio

    descrito no evangelho de Marcos (5,1-20) em que Jesus e seus companheiros,

    adentrando em territrio gentio, so surpreendidos pela presena agressiva e

    ameaadora de um homem possudo por demnios. O episdio como um todo e o seu

    desfecho, em que a pedido do prprio endemoninhado as entidades perturbadoras so

    lanadas sobre porcos que se encontram prximo do local e esses imediatamente se

    jogam no mar, receberam mltiplas interpretaes ao longo da pesquisa bblica e das

    tentativas eruditas de reconstruo histrica do movimento de Jesus e sua

    continuao, os cristianismos primitivos.

    A primeira parte desse trabalho analisa, crtica e resumidamente, duas

    interpretaes acerca das histrias de curas e exorcismos narradas pelo evangelho de

    Marcos, em geral, e o caso do possesso geraseno, em particular, comparando-as e

    relacionado-as ao lugar discursivo dos autores dos respectivos comentrios. Da

    comparao resulta, naturalmente, uma sucinta abordagem das premissas tericas de

    Edward Said, um dos pioneiros da crtica ps-colonial. Em seguida, assume-se como

    paradigma a teoria de Homi Bhabha sobre as relaes tipicamente desenvolvidas entre

    colonizadores e colonizados, ou seja, a construo e negociao de uma identidade

    colonial pelo colonizado por meio da mmica, conceito tomado emprestado por Bhabha

    da teoria lacaniana, que uma ao que subverte o discurso colonizador ao mostrar

    sua ambivalncia. Outros aportes tericos obtidos no trabalho de I. M. Lewis

    2 Crtica ps-colonial um campo de pesquisa heterogneo que, segundo Leander (2010: 309),

    desafia as tradies de conhecimento ocidentais e sua fixao nas relaes globais de dominao e submisso.

  • 65

    acrescidos de uma pesquisa de campo levada a efeito pelo antroplogo Jeffrey

    Snodgrass acerca do poder mimtico das possesses fornece elementos, por assim

    dizer, empricos, para a perspectiva empregada por Bhabha. Assim, a terceira parte do

    trabalho aborda conclusivamente a narrativa marcana do possesso geraseno

    apontando os caminhos abertos pela perspectiva ps-colonial.

    II. O decano dos estudos neotestamentrios, o falecido Raymond E. Brown, ao

    comentar o evangelho de Marcos sugere que os leitores desse texto do cnon cristo

    podem aprender muito sobre Jesus e a vocao de seus seguidores, por meio do

    estudo das tradies de suas parbolas e poderosas aes, apenas se esse estudo

    estiver intimamente ligado ao quadro de sua vitria por meio do sofrimento (2004:

    205).

    As narrativas de expulso dos demnios descritas nesse evangelho, em

    particular, so parte indissocivel do ensinamento que acompanha a proclamao do

    reino indicando quelas pessoas que testemunharam o ministrio pblico de Jesus que

    a presena do mal, visvel na aflio humana, no sofrimento e no pecado precisa ser

    contraposta; o demnio, por sua vez, deve ser derrotado (2004: 208).

    Na sequncia de seu comentrio, Brown aventa que as aes miraculosas

    descritas em Mc 4,35-5,43 parecem ter uma serventia prosaica: chamar a ateno do

    leitor atual para que esse no se esquea que as pessoas do sculo I tinham uma

    mentalidade bem diferente da nossa (2004: 213). Sua observao acerca da cura do

    endemoninhado geraseno (Mc 5,1-20) frisa unicamente a dramaticidade do episdio e,

    mais que isso, sublinha que nele os elementos coloridos e imaginativos so mais

    fortes.

    primeira vista, portanto, os comentrios de Brown sobre as curas e os

    exorcismos do Jesus marcano3 deixam explcito o interesse limitado do renomado

    pesquisador no que tange aos contextos que aquelas poderosas aes tiveram lugar.

    Afirmar que a mentalidade atual difere da mentalidade antiga mencionar o bvio. E,

    mesmo assim, dificilmente se pode escusar Brown por no ponderar que as

    sociedades antigas mediterrnicas diferiam das sociedades modernas tambm na

    maneira como encaravam a relao entre (1) religio e poltica e (2) sade e doena.

    Apesar disso, ao caracterizar o Oriente em seu mbito poltico nos sessenta

    primeiros anos do sculo I, medida que ele considera importante conhecer o

    contexto e a mundivivncia das pessoas que viviam em torno de Jesus e descobrir

    como isso poderia ter afetado a proclamao da f em Jesus, Brown visa a oferecer

    uma compreenso geral do perodo que emoldura o NT (2004: 119). O biblista

    3 Jesus marcano diz respeito representao sui generis que o Evangelho de Marcos fornece a

    respeito de Jesus de Nazar e que deve ser entendida como distinta das representaes desse mesmo personagem histrico pelos outros evangelhos, seja cannicos, seja extracannicos.

  • 66

    reconhece que, naquela poca, como comum em governo estrangeiro, distrbios e

    momentos de tenso teriam ocorrido. Apesar dessa constatao, a presena imperial

    romana no poderia ter sido opressiva, medida que a permanncia de dois prefeitos

    estrangeiros por dez anos seguidos, cada um, indicaria, antes, que aquele no foi um

    tempo de revoluo violenta (Brown, 2004: 125). Os tempos eram de calma, ele

    conclui. Justifica-se assim, em parte, a perspectiva de Brown em torno de uma cidade

    inteira que acorre at Jesus em busca de curas para seus males e a expulso de seus

    demnios como algo que em si era independente das mudanas scio-polticas

    provocadas pela presena imperial romana. O mal j estava ali, antes da chegada e

    apesar dos romanos.

    Desde o final da dcada de 70 do sculo XX, no entanto, vrios pesquisadores,

    interessados no contexto social de Jesus e dos evangelhos, j vm trazendo para o

    debate essas questes. Assim, Bruce Malina (2004) indaga sobre qual espcie de

    problema social a proclamao de Jesus acerca do reino de Deus pretendia ser uma

    soluo. Com efeito, considerando-se o modo como se deu o fim do ministrio pblico

    de Jesus, ou seja, sua morte por crucifixo, inevitavelmente conclui-se que sua

    proclamao a respeito do reino de Deus foi poltica, no metafrica e muito menos

    espiritual, qualquer que tenha sido o significado da palavra no sculo dezenove

    (2004: 11). Ademais, Malina alerta que a Bblia necessariamente mal compreendida

    se algum leitor dela no est fundamentado numa apreciao dos sistemas sociais nos

    quais seus documentos surgiram (2004: 15).

    Por conseguinte, abordar as histrias de curas e de exorcismos de Jesus nos

    evangelhos cannicos, em geral, e no evangelho de Marcos, em particular, sem

    atentar para os sistemas sociais da poca e as formas como as sociedades daquele

    tempo relacionavam religio e poltica, sade e doena, enseja interpretaes, no

    mnimo, enviesadas.

    O fato de Brown no associar as curas e os exorcismos do Jesus marcano ao

    cenrio da presena imperial romana, dessa maneira anulando completamente

    quaisquer relaes possveis de causa e efeito entre umas e outras se liga,

    inexoravelmente, ao contexto discursivo em que seu trabalho foi produzido. Essa

    suposio, portanto, conduz direto ao centro da crtica ps-colonial e a um de seus

    fundadores, o intelectual palestino Edward Said.

    Em seu trabalho, Said qualifica o orientalismo como uma disciplina acadmica

    que construiu um discurso, no sentido foucaultiano, acerca dos povos e culturas no-

    europeias, que possibilitou cultura europeia administrar e at produzir o Oriente

    poltica, sociolgica, ideolgica, cientfica e imaginativamente durante o perodo ps-

    Iluminismo (1990: 15). Por conseguinte, Said pode dizer que houve assim (e h) um

    Oriente lingstico, um Oriente freudiano, um Oriente spengleriano, um Oriente

  • 67

    darwiniano, um Oriente racista e assim por diante (1990: 34). Se tivesse discutido

    a produo de discursos acerca do Oriente pelos biblistas e intrpretes do

    cristianismo, certamente Said teria postulado algum tipo de Oriente correspondente. O

    imprio, no contexto discursivo de Brown, no pode ser culpado pelo mal vivenciado

    pelos povos colonizados.

    III. Em uma srie de livros Richard A. Horsley vem propondo, persuasivamente,

    que intrpretes modernos de Jesus realizaram, com sucesso, a construo de um

    Jesus despolitizado e, portanto, domesticado. Assim, conforme essa viso padro,

    Jesus condescendente com o imprio e foi reduzido a uma mera figura religiosa

    (2004: 12).

    Esses intrpretes contrapem o imprio, um ente poltico, a um Jesus

    meramente religioso que, por esse motivo, no tem qualquer relevncia ou implicao

    para Roma. Esse construto moderno seria oriundo da interrelao de quatro fatores:

    (1) o pressuposto ocidental de que a religio est separada da poltica e da economia;

    (2) a esse pressuposto associa-se o individualismo ocidental; (3) a eliminao de

    palavras autnticas de Jesus desde que essas impliquem juzos embaraosos e (4) a

    orientao cientfica dos intrpretes acadmicos que requer a excluso de todos os

    resduos do que possa ser categorizado como milagroso, mtico ou fantstico (2004:

    12-13).

    Combatendo essa domesticao de Jesus Horsley afirma, peremptoriamente, que

    querer compreender as palavras e as aes de Jesus sem saber com o imperialismo

    romano determinava as condies de vida na Galileia e em Jerusalm seria como

    tentar compreender Martin Luther King sem saber como a escravatura, a reconstruo

    e a segregao determinaram as vidas dos afro-americanos nos Estados Unidos

    (2004: 19). Alm disso, o pesquisador, aproximando-se bastante da perspectiva da

    crtica ps-colonial, constata (2004: 20):

    O reino de Deus um pouco anlogo ao programa bipartido de movimentos

    anticolonialistas (antiimperialistas) recentes e atuais em que a retirada (ou

    derrota) do poder colonizador a contrapartida e a condio de recuperao da

    independncia e da autodeterminao por parte do povo colonizado.

    Em contraposio ao discurso aquiescente de Brown, para quem o cotidiano na

    Palestina romana era marcado socialmente pela estabilidade, Horsley afirma que a

    condio colonial, por parte dos povos colonizados, em funo da ameaa permanente

    sobre sua cultura tradicional e at mesmo de sua prpria terra sagrada, propcia

    formao de movimentos que buscam ajustar ou renovar seu modo de vida tradicional

    (2010: 13). Com efeito, Horsley advoga ser preciso ver a situao em que se

    encontrava Jesus e seus contemporneos como uma situao marcada por uma

  • 68

    violncia institucional ou violncia estrutural. Essa violncia, extensiva e

    amplamente difundida, cometida contra pessoas, em grande parte de modos

    indiretos, e tanto de forma encoberta como manifesta (2010: 20).

    Com base nessas consideraes, Horsley volta-se para o evangelho de Marcos e

    sugere repensar esse texto cannico inserindo-o em seu contexto histrico prprio.

    Apesar da obviedade de tal sugesto, Horsley indica que isso o que no acontece no

    mbito da interpretao moderna do evangelho de Marcos medida que uma srie de

    suposies e prticas problemticas permeia muitos estudos acadmicos.

    Em primeiro lugar, essencial compreender que o evangelho de Marcos foi

    composto como uma histria e, por conseguinte, era lido/ouvido na antiguidade como

    uma histria completa. Implica dizer, inapropriado ler Marcos como lies ou versos

    separados e desconexos entre si, removendo a histria, por assim dizer, de seu

    contexto. Em decorrncia dessa primeira compreenso, torna-se evidente que essa

    histria era sobre e era endereada para um povo antigo em condies equivalentes

    s pessoas do Terceiro Mundo submetidas ao Imprio (2001: xxi).

    Nesse sentido, ele prossegue, passa a ser possvel lanar outro olhar em relao

    literatura bblica tal como o evangelho de Marcos. Comeando por situar o cenrio

    original de Marcos em um pas colonizado ou do terceiro mundo, o passo seguinte

    consiste em reler a histria e ver se conseguimos discernir uma histria de pessoas

    que foram submetidas ao Imprio. Finalmente, ele conclui, com o sucesso dessa

    releitura pode ser possvel distinguir se esse evangelho dirige-se a pessoas sujeitas ao

    Imprio e se ele verbaliza suas preocupaes.

    Redefinida a maneira sobre a qual o evangelho de Marcos deve ser lido, Horsley

    trabalha a histria que esse documento cannico conta como se ele efetivamente

    retratasse uma luta envolvendo o projeto de renovao de Israel por Jesus em

    contraposio aos interesses de Roma e aos dos governantes judeus

    colaboracionistas. Os exorcismos descritos nesse evangelho, portanto, so

    componentes proeminentes do programa de Jesus (2001: 121). O problema central,

    que escapa completamente aos intrpretes modernos, que o combate entre foras

    espirituais transcendentais, entre Deus e Sat, entre Jesus e os demnios tambm

    uma luta poltica. A razo porque os intrpretes modernos no conseguem encarar

    dessa forma relaciona-se com a suposio padro de uma separao entre religio e

    poltica. Assim, Horsley pondera que a melhor forma de entender os exorcismos de

    Jesus como batalhas na luta contra o imperialismo romano envolve estabelecer

    analogias com as experincias de povos modernos com o colonialismo (2001: 141).

    A experincia colonial, aponta Horsley, faz com que o nativo, o colonizado,

    descubra-se em tenso permanente (2001: 144). O colonizado logo aprende que ele

    precisa ficar no seu lugar e no avanar alm de certos limites. Ademais, ele tambm

  • 69

    forado a lembrar-se, por meio de repetidas demonstraes de fora, que o

    colonizador seu superior e tem o controle sobre os destinos do colonizado.

    Nesse sentido, ao tratar do homem possudo por demnios em Mc 5,1-20,

    Horsley considera ser esse um caso em que se combinam os efeitos da violncia

    imperial romana, um deslocado protesto contra esses efeitos e uma atitude de auto-

    proteo contra um ataque suicida em relao aos romanos (2001: 145). Por

    conseguinte, aquele homem, ao tornar-se possudo e violentamente louco, sacrificava

    sua sanidade, mas, pelo menos, mantinha-se vivo. Como a histria desse exorcismo

    tambm enfatiza que as pessoas opuseram-se a Jesus por conta da expulso dos

    demnios que atormentavam a vida daquele homem annimo, Horsley assevera que

    eles, longe de se sentirem libertados, viram nesse ato de Jesus uma ameaa ao seu

    ajustamento delicadamente equilibrado ordem romana (2001: 145).

    Assim, as duas leituras analisadas assumem posicionamentos distintos no que

    tange maneira como a narrativa do possesso geraseno pode estar ligada ao contexto

    das relaes entre colonizador e colonizado. Brown passa ao largo dos efeitos da

    presena romana e, em funo de seu contexto discursivo, pode-se dizer que sua

    interpretao aquiescente ao imprio. Horsley, por sua vez, representa uma tpica

    posio anticolonial. Dialogando fortemente com a antropologia cultural e

    estabelecendo paralelos com a situao de populaes terceiro-mundistas, sua

    argumentao deficiente num nico ponto, se pensada em perspectiva ps-colonial,

    que a falta de uma discusso acerca da negociao de identidade que

    invariavelmente ocorre na tenso entre colonizador e colonizado. Feitas essas

    comparaes, hora de reler o episdio descrito em Mc 5,1-20 conforme os

    postulados da crtica ps-colonial.

    IV. Na esteira dos postulados de Said, emergiu a crtica ps-colonial que, como

    frisa Gyan Prakash, teve como um de seus efeitos forar a um repensar e a uma

    reformulao radicais das formas de conhecimento e de identidade social autorizadas

    pela dominao ocidental e pelo colonialismo (1992: 8). Assim, os proponentes desse

    recente campo de pesquisa desafiaram a historiografia existente, percebida como

    elitista, e puseram em seu lugar uma perspectiva subalterna, combatendo a produo

    de discursos colonialista e oferecendo, por conseguinte, um tipo de resistncia

    apropriao pelas elites coloniais e nacionalistas de sua prpria Histria. O subalterno,

    que opera nesse campo to ocultado pela historiografia oficial, uma figura produzida

    pelos discursos de dominao histrica. o colonizado, o brbaro, o selvagem, o

    nativo, enfim, aquele que no tem voz, no tem vontade poltica, nem aspiraes de

    qualquer tipo. Todavia, essa mesma figura quem providencia um modo de ler a

    Histria diferente daquela inscrita nos relatos da elite. Com efeito, a teoria ps-

  • 70

    colonial salienta a conscincia autnoma, os rumores, as vises mticas, a

    religiosidade e os laos comunais desses subalternos.

    A crtica ps-colonial avanou, tanto em seus estudos quanto em suas anlises,

    e outros tericos adotaram essa perspectiva enriquecendo o campo de pesquisa. Em

    resposta reflexo de Said acerca das relaes entre colonizador e colonizado, que

    gravitariam em torno da busca por poder, Homi Bhabha tomou essas relaes num

    outro ponto de vista, concentrando-se nos processos de identificao imitativos e de

    ruptura que, segundo ele, surgem tipicamente nessas relaes. Entre colonizador e

    colonizado existiriam tradues e negociaes em torno da construo de uma

    identidade colonial.

    Tomando emprestado da teoria psicanaltica Lacaniana o conceito de mmica,

    Bhabha postula que a mmica colonial tem um efeito sobre a autoridade do discurso

    colonial que profundo e perturbador (1998: 130). Ela o signo de uma articulao

    dupla, uma estratgia complexa de reforma, regulao e disciplina que se apropria

    do Outro ao visualizar o poder. A mmica colonial ambivalente, proporo que no

    apenas rompe o discurso, mas se transforma numa incerteza que fixa o sujeito

    colonial como uma presena parcial. A mmica produz quase o mesmo, mas no

    exatamente (1998: 131). Por conseguinte, inevitvel que a mmica represente uma

    ameaa, pois sua viso dupla revela a ambivalncia do discurso colonial como tambm

    desestabiliza sua autoridade.

    Nesse sentido, a narrativa marcana do possesso geraseno sugestiva quando

    aponta que os demnios que atormentavam o personagem eram denominados

    Legio, numa clara aluso s legies romanas. Seria esse um caso de mmica em

    que o sujeito colonizado produz quase o mesmo, mas no exatamente?

    Carmen Ubieta assinala que todos os estudos antropolgicos e etnogrficos

    tornaram claro que quando homens em distino s possesses por espritos em

    mulheres e em crianas sofrem possesses, essas se do em circunstncias muito

    concretas: uma submisso extrema e atpica no grupo familiar e de parentesco, ou

    alguma situao de opresso sociopoltica como a que se d no colonialismo (2009:

    103).

    Alm disso, as possesses podem ser consideradas como estratgia indireta de

    protesto medida que as pessoas possessas, de formas diversas, denunciam as

    situaes opressivas em que se encontram. Esse tipo de possesso, com essa

    estratgia, denominada por Ioan M. Lewis, de possesso perifrica, medida que

    envolve a crena que os espritos que assolam as pessoas frequentemente provm de

    povos vizinhos hostis e inimigos e que essas possesses expressam os protestos dos

    politicamente impotentes (1977: 32-33).

  • 71

    Cumpre assinalar, portanto, que essas consideraes se ajustam e parecem

    confirmar que o possesso de Gerasa negociava sua identidade colonial por meio de

    uma mmica, de uma possesso perifrica, que produzia, em relao ao Imprio e seu

    instrumento mais visvel de opresso, as legies, uma cpia desse, mas no

    exatamente o mesmo.

    Estudos de casos especficos vm em apoio aos insights de Lewis. Com efeito, ao

    empreender um trabalho de campo sobre a possesso por espritos em Rajasthan,

    ndia, Jeffrey G. Snodgrass (2002) constatou que a incorporao de espritos, mesmo

    se essas entidades sobrenaturais fossem julgadas boas e benficas, era vista

    tipicamente como indesejvel em funo da perda de controle dos sentidos por aquele

    que tomado pelos espritos. Porm, numa viso alternativa, a incorporao de

    espritos vista como desejvel, at mesmo necessria, para a sade e sobrevivncia

    do sujeito possudo. Com efeito, tornar-se a si mesmo igual s foras poderosas e

    mesmo ameaadoras, de alguma maneira, trazia a cura (2002: 33). Em funo

    dessas observaes de campo, Snodgrass perguntou-se: de que jeito ganha-se poder

    sobre alguma coisa perigosa imitando-a?

    Tomando como interlocutores os Bhats (literalmente, bardos), animadores

    nmades provenientes das regies desrticas de Rajasthan que trabalham como

    historiadores orais, criadores de mitos, bufes e declamadores e, dessa forma,

    entretendo turistas locais e estrangeiros, Snodgrass conduziu uma pesquisa

    etnogrfica por dois anos e meio em torno do poder da imitao nos casos de

    possesso por espritos. Os Bhats, em contraste maioria dos Rajasthanis com quem

    o antroplogo dialogou, falam das pessoas possudas como se essas fossem artistas,

    referindo-se a elas como kalakar (artistas). Mais especificamente, muitos Baths

    denominam a possesso pelos termos hindus nakal karna e nakal utarna (copiar).

    Considerando essa construo dos Baths sobre a possesso por espritos como

    uma espcie de imitao artstica, ou seja, uma imitao de nveis sobrenaturais de

    uma realidade povoada por deuses, demnios e espritos que vivem em paralelo ao

    mundo visvel, Snodgrass referencia essa compreenso de seus informantes noo

    aristotlica de mimesis. A mimesis um termo geral para a finalidade

    representacional da esttica (2002: 34) e, na concepo do antroplogo, uma

    categoria analtica que se mostra apropriada para uma reflexo acerca da possesso

    espiritual.

    Aps discorrer sobre quatro tipos diferentes de possesso espiritual, Snodgrass

    sugere que os rituais de possesso criativamente reinventam o mundo (2002: 49).

    Assim, eles utilizam uma fora que similar quelas da linguagem, do teatro e da arte

    assim como de outras formas de expresso e comunicao uma fora imaginativa

    que no s replica, mas retrabalha maneiras de ser e assim, potencialmente,

  • 72

    transformam enfermidades em sade. Em um desses tipos de possesso por espritos

    analisados, no qual mulheres incorporam espritos com caractersticas e trejeitos

    masculinos, o antroplogo descobre que a mmica, ou imitao, permite a essas

    mulheres possudas usurpar o poder do macho a fim de rechaar a presena

    ameaadora do outro.

    V. A ttulo de concluso cumpre distinguir e situar as histrias de curas e de

    exorcismos contidas nos evangelhos cannicos, em geral, e o episdio especfico do

    possesso geraseno, presente unicamente no evangelho de Marcos, em dois campos de

    anlise: (1) por si mesmas, no contexto primitivo de sua produo e (2) consoante as

    leituras dos biblistas e eruditos modernos em seus contextos discursivos.

    John D. Crossan observa que difcil no perceber ou simplesmente ignorar o

    simbolismo embutido na narrativa do possesso geraseno (1994: 352). O demnio que

    assedia o homem, e , ao mesmo tempo, um e muitos, chamado Legio, um smbolo

    do poder romano, lanado ao mar. Implica dizer, o relato em resumo do sonho de

    todo revolucionrio judeu (1994: 352). Cumpre observar, portanto, que em seu

    contexto discursivo original, a narrativa desempenhava um papel explicitamente

    antiimperial.

    A interpretao bblica e a reconstruo histrica do movimento de Jesus,

    quando assumem posturas aquiescentes com o imperialismo romano estabelecendo

    uma separao entre religio e poltica, impensveis na Antiguidade, produzem um

    discurso que abranda, ou exclui quase inteiramente, os efeitos daquela presena no

    solo palestino. Com os aportes da crtica ps-colonial torna-se possvel uma nova

    leitura do episdio em si e, dessa maneira, enxergar a carreira pblica de Jesus como

    um movimento de resistncia popular no-violenta opresso romana.

    BIBLIOGRAFIA

    UBIETA, C. B. A cura do endemoninhado de Gerasa a partir da antropologia cultural.

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