pontifÍcia universidade catÓlica de minas gerais … · 2016-12-15 · pontifÍcia universidade...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
Em convênio de co-tutela com
UNIVERSITÉ PARIS I – SORBONNE École Doctorale de Droit
Marinana Andrade e Barros
REGIME DEMOCRÁTICO E DIREITO INTERNACIONAL NA
AMÉRICA LATINA:
A construção normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos
multilaterais regionais
Belo Horizonte 2016
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Marinana Andrade e Barros
REGIME DEMOCRÁTICO E DIREITO INTERNACIONAL NA
AMÉRICA LATINA:
A construção normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos
multilaterais regionais
Tese apresentada em quadro de co-tutela aos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e em Direito Internacional e Europeu da Université Paris I – Sorbonne, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Relações Internacionais e em Direito Internacional e Europeu. Orientadores: Prof. Dr. Jorge Lasmar Prof. Dr. Jean-Marc Sorel
Belo Horizonte 2016
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Barros, Marinana Andrade e
B277r Regime democrático e direito internacional na América Latina: a construção
normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos multilaterais
regionais / Marinana Andrade e Barros. Belo Horizonte, 2016.
462 f. : il.
Orientador: Jorge Lasmar
Coorientador: Jean-Marc Sorel
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais / Université Paris I –
Sorbonne École Doctorale de Droit.
1. Direito internacional público. 2. Democracia – América Latina. 3. América
Latina - Condições sociais. 4. Relações internacionais. 5. Organizações
internacionais. 6. Tratados. I. Lasmar, Jorge. II. Sorel, Jean-Marc. III. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Relações Internacionais. IV. Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne.
Département de Droit International et Européen de l'École Doctorale de Droit. V.
Título.
CDU: 341
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Marinana Andrade e Barros
REGIME DEMOCRÁTICO E DIREITO INTERNACIONAL NA
AMÉRICA LATINA:
A construção normativa da promoção da democracia nos acordos e arranjos
multilaterais regionais
Tese apresentada em quadro de co-tutela aos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e em Direito Internacional e Europeu da Université Paris I – Sorbonne, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Relações Internacionais e em Direito Internacional e Europeu.
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Prof. Dr. Jorge Lasmar – PUC Minas (Orientador) ___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Jean-Marc Sorel – Université Sorbonne (Orientador) ___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Aziz Saliba – UFMG (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Emmanuelle Tourme-Jouannet – Sciences Po (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Leonardo Estrela Borges – Inst. Brasiliense de Direito Público (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Ramos – PUC Minas (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Otávio Dulci – PUC Minas (Banca Examinadora) ___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Fátima Anastasia – PUC Minas (Banca Examinadora – Suplente)
Belo Horizonte, 05 de dezembro de 2016
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Para Frederico, que fez de cada passo desta caminhada uma demonstração de companheirismo. “Se é pra sonhar, não seja no fim”.
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AGRADECIMENTOS
Ao fim de um longo processo como esse, resta um profundo sentimento de gratidão aos que
dele participaram.
Ao Frederico, por me inspirar diariamente com seu amor e cuidado. E, como se não bastasse,
ter me ajudado a compreender minhas próprias ideias sobre este trabalho com conversas que
tornaram mais leve esta trajetória.
Ao Felipe, que no início desta tese era apenas um sonho e que se tornou meu coração batendo
fora de mim, por me mostrar em cada sorriso o que importa acima de tudo.
À minha mãe e aos meus pais por protegerem cada passo. À Roberta, João Felipe e Francisco,
pela companhia, carinho e apoio sempre e a qualquer hora. Aos familiares e amigos, pelas
palavras de incentivo e por compreenderem os momentos de distância e de saudade.
Aos que tão gentilmente me concederam seu tempo e compartilharam comigo seus
conhecimentos sobre o tema deste trabalho, que me é tão caro: Professor Jean-René Garcia,
Thomas Carothers e Katalina Montaña.
À CAPES pela bolsa concedida que me propiciou o aprofundamento deste estudo.
Por fim, agradeço imensamente aos meus orientadores, Professor Jorge Lasmar e Professor
Jean-Marc Sorel. Tive a sorte de ter podido contar com dois professores cuja vocação se faz
notar em cada gesto. Obrigada pela generosidade comigo e com meu trabalho ao longo destes
anos. Com vocês, reparto a alegria da tese concluída e lhes dedico meu profundo respeito e
admiração.
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“(...) lo que descubre uno es que ya en América Latina, la literatura, la ficción, la novela, es más fácil de hacer creer que la realidad” (Gabriel Garcia Marques, 1995)
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RESUMO
Com o fim da Guerra Fria, a promoção da democracia consolidou-se como tema para além
das fronteiras nacionais, implicando a revisão de tradicionais paradigmas das relações
internacionais e trazendo consigo profundas controvérsias. Afinal, o conteúdo daquilo que se
nomeia como democracia é preenchido a partir de posicionamentos ideológicos que diferem,
por vezes de forma cabal, entre os atores internacionais. Ainda assim, prevalece na sociedade
internacional uma concepção específica de democracia, qual seja, a liberal representativa,
produto do desenvolvimento político ocidental. Na América Latina, locus que se constrói
tendo como parâmetros políticos categorias que não lhes são necessariamente próprias, essa
discussão ganha contornos bastante particulares devido tanto à construção histórica da região
quanto à sobreposição de arranjos multilaterais regionais. Esses arranjos – OEA, Mercosul,
Unasul, SICA, CAN e ALBA – criaram, ao longo da década de 1990, quadros normativos que
tratam do regime político de seus Estados membros. Como consequência, a América Latina
possui um denso conjunto de diretrizes que se estabelece com a adoção de normas abstratas,
que versam sobre a necessidade da manutenção de regimes democráticos, e de normas
concretas, que operacionalizam esse imperativo quando crises políticas atingem países da
região. O conteúdo desse corpo normativo varia dependendo do arranjo analisado, do tipo de
crise enfrentada e do governo objeto das medidas propostas, refletindo, no fenômeno da
promoção da democracia, a complexidade da cena política regional.
Palavras-chave: Promoção da democracia. América Latina. Arranjos multilaterais regionais.
Direito Internacional.
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RÉSUMÉ
A la fin de la Guerre froide, la promotion de la démocratie s’est consolidée en tant que thème
au-delà des frontières nationales, ce qui impliqua de revoir les paradigmes traditionnels des
relations internationales et engendra de profondes controverses. Le contenu de ce que l’on
nomme démocratie est ainsi formé de positionnements idéologiques différents, voire parfois
opposés, entre les acteurs internationaux. Dans la société internationale, la conception
spécifique de démocratie libérale représentative prévaut néanmoins en tant que produit
politique occidental. En Amérique latine, un locus construit sur la base de paramètres
politiques représentés par des catégories qui ne lui sont pas nécessairement propres. Cette
discussion prend ainsi des contours très particuliers du fait de la construction historique de la
région et de la superposition des accords et arrangements multilatéraux régionaux. Ces
arrangements – OEA, Mercosur, Unasur, SICA, CAN et ALBA – créèrent, tout au long des
années 90, des cadres normatifs qui traitent du régime politique de leurs États membres.
L’Amérique latine possède ainsi un ensemble très dense de directives établi par l’adoption de
normes concrètes qui mettent en œuvre cet impératif lorsque des crises politiques surviennent
dans des pays de cette région. Le contenu de ce corps normatif varie selon l’arrangement
analysé, le type de crise auquel il faut faire face et le gouvernement qui fait l’objet des
mesures proposées. La complexité de la scène politique régionale se reflète ainsi dans le
phénomène de promotion de la démocratie.
Mots-clés : Promotion de la démocratie. Amérique latine. Arrangements multilatéraux
régionaux. Droit international.
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ABSTRACT
With the end of the Cold War, the promotion of democracy has established itself as a theme
beyond national boundaries, implying a review of traditional paradigms of international
relations and leading to deep controversy. This is a consequence of the fact that the content of
what is named as democracy is filled from ideological positions that differ, sometimes vastly,
among international actors. Nevertheless, it still prevails in international society a specific
conception of democracy, namely, the representative liberal, product of Western political
development. In Latin America, locus that is built having as political parameters categories
that were necessarily created locally, this discussion gets very specific contours due to both
the historical construction of the region and to the existence of overlapping regional
multilateral arrangements. These arrangements – OAS, Mercosur, Unasur, SICA, CAN and
ALBA – created, throughout the 1990s, regulatory frameworks to deal with the political
system of its member states. As a result, Latin America has a dense set of guidelines
established with the adoption of general rules, which relate to the need to maintain democratic
regimes, and specific rules, that operationalize this imperative when political crises hit the
region. The content of this regulatory framework varies depending on the arrangement
analyzed, the crisis type and the government object to the measures proposed, reflecting, in
the phenomenon of promotion of democracy, the complexity of the regional political scene.
Keywords: Democracy promotion. Latin America. Regional multilateral arrangements.
International Law.
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LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Sistemas eleitorais na América Latina..................................................... 190
TABELA 2 Participação política popular na América Latina..................................... 194
TABELA 3 Característica mais importante da democracia (a) ................................... 198
TABELA 4 Característica mais importante da democracia (b) .................................. 200
TABELA 5 Característica mais importante da democracia (c) ................................... 203
TABELA 6 Característica mais importante da democracia (d) .................................. 205
TABELA 7 Apoio à democracia (1996) ..................................................................... 208
TABELA 8 Apoio à democracia (2015) ..................................................................... 210
TABELA 9 Satisfação com a democracia (1996) ....................................................... 212
TABELA 10 Satisfação com a democracia (2015) ....................................................... 213
TABELA 11 Classificação da democracia segundo os cidadãos de cada país (2004). 215
TABELA 12 Classificação da democracia segundo os cidadãos de cada país (2013). 216
TABELA 13 Status da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose Da Costa Rica) – América Latina.............................................. 251
TABELA 14 Quadro resumo das normas sobre promoção da democracia nos arranjos regionais latino americanos – a partir dos anos 1990................. 295
TABELA 15 Quadro resumo das reações dos arranjos regionais às crises de 1a ordem da democracia................................................................................................. 348
TABELA 16 Quadro resumo das reações dos arranjos regionais às crises de 2a ordem da democracia................................................................................ 402
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LISTA DE ABREVIATURAS Art. – Artigo B. C. Int'l & Comp. L. – Boston College of International and Comparative Law Brit. Y.B. Int'l L. – British Yearbook of International Law Comp. – Compilador Coord. – Coordenador Dec. – Declaração Dir. – Diretor E.g. – Por exemplo Ed. – Editor Estud. Econ. – Estudos Econômicos (Revistas Universidade de São Paulo) Et al. – E outro Harv. Int'l. L. J – Harvard International Law Journal Inf. – Informativo I.e. – Isto é Mich. J. Int'l L – Michigan Journal of International Law Org. – Organizador Res. – Resolução Rev. Bras. Polít. Int. – Revista Brasileira de Política Internacional
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LISTA DE SIGLAS
AD – Áccion Democrática AG – Assembleia Geral ALBA – Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América ALBA-TCP – Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos ALCA – Área de Livre Comércio para as Américas ASIL – American Society of International Law BBC – British Broadcast Corporation BICE – Banco Centro-Americano de Integração Econômica CAN – Comunidade Andina CARICOM – Comunidade do Caribe CCDHRN – Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional CDH – Conselho de Direitos Humanos CEDLAS – Centro de Estudios Distributivos Laborales y Sociales CELAC – Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos CIA – Central Intelligence Agency CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIJ – Corte Internacional de Justiça CJI – Comissão Jurídica Interamericana CMC – Conselho Mercado Comum CNE – Consejo Nacional Electoral CNN – Cable News Network CONALDE – Consejo Nacional Democrático COPEI – Comité de Organización Política Electoral Independiente
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CP – Conselho Permanente CR – Constituição da República CS – Conselho de Segurança CSN – Comunidade Sul-Americana de Nações EJIL – European Journal of International Law EUA – Estados Unidos da América FMI – Fundo Monetário Internacional FSLN – Frente Sandinista de Liberación Nacional GMC – Grupo Mercado Comum IFIS – Instituições Financeiras Internacionais LGDJ – Librairie générale de droit et de jurisprudence MAS – Movimiento Alianza País MERCOSUL – Mercado Comum do Sul MICIVIH – Missão Civil Internacional no Haiti MINUHA – Missão das Nações Unidas para o Haiti MINUSTAH – Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti MOE – Missão de Observação Eleitoral MRE – Ministério das Relações Exteriores OC – Opinião Consultiva ODECA – Organização dos Estados Centro-Americanos OEA – Organização dos Estados Americanos ONU – Organização das Nações Unidas PIB – Produto Interno Bruto PLC – Partido Liberal Constitucionalista PRI – Partido Revolucionário Institucional
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RBDI – Revista Brasileira de Direito Internacional SICA – Sistema de Integração Centro-americano TIAR – Tratado Interamericano de Assistência Recíproca TPP – Acordo Transpacífico UE – União Europeia UNASUL – União das Nações Sul-Americanas UPD – Unidade para a Promoção da Democracia UNIDO – United Nations Industrial Development Organization
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................... 19 I. ENQUADRAMENTO TEÓRICO................................................................. 22 A. Promoção da democracia: a sociedade internacional entre o pluralismo e o solidarismo....................................................................................
23
B. Especificidades do Direito Internacional na esfera da promoção da democracia..............................................................................................................
32
1. As fontes do Direito Internacional previstas pelo artigo 38 do Estatuto da CIJ e os atos unilaterais dos Estados................................................................... 35 2. O soft law como expressão do Direito Internacional............................... 37 3. A regionalização do Direito Internacional............................................... 40 4. A concorrência e a sobreposição de arranjos multilaterais regionais...... 43 II. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS................................................. 44 PRIMEIRA PARTE – ENTRE O “UNIVERSAL” E O PARTICULAR: DIMENSÕES DA DEMOCRACIA.....................................................................
50
TÍTULO I. A DEMOCRACIA NA AGENDA INTERNACIONAL............. 51 CAPÍTULO 1. PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA: QUAL DEMOCRACIA?................................................................................................... 52 SEÇÃO 1. A democracia em sua dimensão internacional..................... 52 § 1 – A concepção liberal de democracia................................................ 53 § 2 – O triunfo da democracia liberal?.................................................... 62 SEÇÃO 2. Os discursos legitimadores da promoção da democracia..............................................................................................................
74
§ 1 – A paz democrática.......................................................................... 75 A. A difícil aprovação da guerra em uma democracia liberal............. 77 B. O reflexo dos valores domésticos da democracia liberal nas relações internacionais.............................................................................................
80
C. A relação direta entre comércio e paz............................................. 81 § 2 – A democracia como condição e conteúdo para efetivação da justiça e dos Direitos Humanos............................................................................... 83 A. A democracia como condição para o respeito às potencialidades humanas................................................................................................................... 83 B. A democracia como conteúdo dos Direitos Humanos.................... 86 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO .................................................................. 90 CAPÍTULO 2. LIMITES E OPOSIÇÕES À PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA.....................................................................................................
92
SEÇÃO 1. Um fenômeno que desafia concepções tradicionais da sociedade internacional.........................................................................................
92
§ 1 – A democracia como fenômeno internacional e a soberania estatal.......................................................................................................................
93
§ 2 – A democracia como justificativa para a intervenção internacional.............................................................................................................
98
A. Uso da força.................................................................................... 99
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B. Intervenção por convite................................................................... 105 SEÇÃO 2. Perspectivas críticas e proposições conciliadoras da promoção da democracia......................................................................................
107
§ 1 – Abordagens céticas diante da promoção da democracia................ 108 A. A universalização de um valor particular....................................... 108 B. A paz democrática em questão ....................................................... 112 1. Democracias beligerantes............................................................ 112 2. Contestação da relação causal entre democracia e paz................ 115 a. A estrutura do sistema.............................................................. 116 b. A paz capitalista....................................................................... 117 § 2 – A “terceira via” entre os céticos e os entusiastas............................ 118 A. Por uma nova forma de se promover a democracia........................ 119 B. O projeto da democracia cosmopolita............................................. 121 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 124 TÍTULO II. AS PARTICULARIDADES DO DESENVOLVIMENTO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA.........................................................
126
CAPÍTULO 1. FUNDAÇÃO E DESENVOLVIMENTO POLÍTICO DA AMÉRICA LATINA: ENTRE CAUDILHOS, POPULISTAS E DITADORES..........................................................................................................
128 SEÇÃO 1. A formação das Repúblicas Oligárquicas............................. 128 § 1 – A dicotômica inserção de elementos liberais na América Latina....................................................................................................................... 129 § 2 – Vários caudilhos, um imperador e o imperialismo......................... 133 A. A América espanhola pós-independência....................................... 135 B. O Brasil pós-independência............................................................ 141 C. O início do imperialismo norte-americano..................................... 146 SEÇÃO 2. Dos Populismos às Ditaduras................................................. 150 § 1 – O autoritarismo e o carisma como instrumentos políticos.............. 151 § 2 – A força como instrumento político................................................. 160 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 169 CAPÍTULO 2. A REDEMOCRATIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA.................................................................................................................. 171 SEÇÃO 1. Os novos rumos da América Latina a partir dos anos 1990.........................................................................................................................
172
§ 1 – As reformas políticas e econômicas liberais................................... 172 § 2 – Novas formas de se pensar a democracia na passagem para o século XXI...............................................................................................................
179
SEÇÃO 2. As características e o significado da democracia na América Latina......................................................................................................
188
§ 1 – A conformação da democracia na América Latina......................... 189 § 2 – A democracia segundo os latino-americanos.................................. 196 A. A compreensão pelos latino-americano do significado da democracia...............................................................................................................
197
B. A Democracia nos países latino-americanos segundo seus cidadãos...................................................................................................................
207
CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 218
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CONCLUSÃO DA PARTE ................................................................................. 220 SEGUNDA PARTE – DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA SOB A PERSPECTIVA INTERNACIONAL.............................................................. 222 TÍTULO I. DIMENSÕES JURÍDICA E SÓCIO-POLÍTICA DA PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA......................... 223 CAPÍTULO 1. A EMERGÊNCIA DA PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA NO DIREITO INTERNACIONAL ENTRE O SÉCULO XIX E O FIM DA GUERRA FRIA NA AMÉRICA LATINA.......................... 224 SEÇÃO 1. As primeiras manifestações coletivas pró-democracia........ 224 § 1 – Congressos e Conferências no continente americano: o início da convergência em torno da democracia..................................................................... 225 § 2 – O reconhecimento de governo como instrumento de defesa da democracia............................................................................................................... 230 SEÇÃO 2. A promoção da democracia no sistema interamericano durante a Guerra Fria........................................................................................... 234 § 1 – A democracia como tema constante e inconsistente na agenda regional.................................................................................................................... 235 A. Disposições sobre democracia representativa na Carta da OEA.... 237 B. Entraves jurídicos e políticos para a operacionalização da promoção da democracia......................................................................................... 240 § 2 – O sistema regional interamericano de proteção aos Direitos Humanos e a promoção da democracia................................................................... 246 A. A construção convencional da promoção da democracia no sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos.................................... 246 B. Manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca da democracia................................................................. 252 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 254 CAPÍTULO 2. A EXPANSÃO NORMATIVA DA PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA APÓS A GUERRA FRIA........................................................ 257 SEÇÃO 1. Das normas sobre promoção da democracia nos arranjos regionais de maior abrangência entre os países da América Latina................. 259 § 1 – Organização dos Estados Americanos............................................ 260 § 2 – União das Nações Sul-Americanas................................................. 272 SEÇÃO 2. Das normas sobre promoção da democracia nos arranjos regionais de menor abrangência entre os países da América Latina................ 277 § 1 – Mercado Comum do Sul................................................................. 278 § 2 – Comunidade Andina....................................................................... 282 § 3 – Sistema de Integração Centro-Americano...................................... 286 § 4 – Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 290 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 294 TÍTULO II. A OPERACIONALIZAÇÃO DOS INSTRUMENTOS JURÍDICOS LATINO-AMERICANOS NA ABORDAGEM DE CRISES DOS REGIMES DEMOCRÁTICOS................................................................... 299
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CAPÍTULO 1. OPERACIONALIZAÇÃO DO QUADRO NORMATIVO SOBRE PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA EM CRISES DE PRIMEIRA ORDEM: GOLPES E TENTATIVAS DE GOLPES DE ESTADO................................................................................................................. 300 SEÇÃO 1. Alterações inconstitucionais do poder soberano: golpes e autogolpes.............................................................................................................. 300 § 1 – Golpe de Estado no Haiti (1991-1994)........................................... 301 A. Organização dos Estados Americanos........................................... 302 § 2 – Golpe de Estado em Honduras (2009)........................................... 311 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 313 B. Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 315 C. Sistema de Integração Centro-Americano...................................... 317 D. União das Nações Sul-Americanas................................................. 319 E. Mercado Comum do Sul................................................................. 320 F. Comunidade Andina........................................................................ 321 § 3 – Autogolpe no Peru (1992)............................................................... 322 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 323 § 4 – Autogolpe na Guatemala (1993).................................................... 325 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 326 B. Sistema de Integração Centro-Americano...................................... 328 SEÇÃO 2. Aspirações de alteração inconstitucional do poder soberano: tentativas de golpe de Estado.............................................................. 329 § 1 – Tentativa de golpe de Estado na Venezuela (1992)........................ 330 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 331 § 2 – Tentativa de golpe de Estado e assassinato do Vice-Presidente no Paraguai (1996/1999)............................................................................................... 332 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 333 B. Mercado Comum do Sul................................................................. 334 § 3 – Tentativa de golpe de Estado na Venezuela (2002)........................ 336 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 337 § 4 – Tentativa de golpe de Estado no Equador (2010)........................... 341 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 343 B. Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 344 C. União das Nações Sul-Americanas................................................. 345 D. Comunidade Andina....................................................................... 346 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 347 CAPÍTULO 2. OPERACIONALIZAÇÃO DO QUADRO NORMATIVO SOBRE PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA EM CRISES DE SEGUNDA ORDEM: INSTABILIDADES POLÍTICAS........................... 352 SEÇÃO 1. Instabilidade política com alteração constitucionalmente prevista de titularidade do poder soberano: processos de impeachment e renúncia presidencial........................................................................................... 352 § 1 – Processo de impeachment presidencial no Equador (1997)........... 354 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 355 § 2 – Processo de impeachment presidencial no Paraguai (2012).......... 357 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 359 B. Mercado Comum do Sul................................................................. 360 C. União das Nações Sul-Americanas................................................. 362
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§ 3 – Renúncia pesidencial no Equador (2000)...................................... 364 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 365 B. Comunidade Andina....................................................................... 366 § 4 – Denúncias de irregularidades nas eleições e renúncia presidencial no Peru (2000)......................................................................................................... 367 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 368 § 5 – Renúncias presidenciais na Bolívia (2003, 2005).......................... 369 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 371 B. Comunidade Andina....................................................................... 372 § 6 – Denúncia de irregularidades nas eleições e renúncia presidencial no Haiti (2000/2004)................................................................................................ 374 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 375 SEÇÃO 2. Instabilidade política com ameaça à ordem democrática: desequilíbrios entre poderes e protestos.............................................................. 377 § 1 – Desequilíbrio entre os poderes e impeachment presidencial no Equador (2005)........................................................................................................ 378 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 379 B. União das Nações Sul-Americanas (Comunidade Sul-Americana de Nações) e Comunidade Andina........................................................................... 381 § 2 – Desequilíbrio entre os poderes na Nicarágua (2004, 2005)............ 383 A. Sistema de Integração Centro-Americano...................................... 384 B. Organização dos Estados Americanos............................................ 385 § 3 – Desobediência civil de Departamentos e protestos na Bolívia (2008)....................................................................................................................... 388 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 389 B. União das Nações Sul-Americanas................................................. 390 C. Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 391 § 4 – Protestos civis na Venezuela (2014).............................................. 393 A. Organização dos Estados Americanos............................................ 394 B. Mercado Comum do Sul................................................................. 397 C. União das Nações Sul-Americanas................................................. 398 D. Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América................... 399 CONCLUSÃO DO CAPÍTULO................................................................... 401 CONCLUSÃO DA PARTE.................................................................................. 409 CONCLUSÃO GERAL......................................................................................... 411 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 416
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho se desenvolve a partir das controvérsias geradas pela emergência da
promoção da democracia como temática multilateral na agenda latino-americana. Objetiva-se
analisar o processo de elaboração, o conteúdo e a operacionalização do aparato normativo
multilateral para a promoção da democracia na América Latina. Duas perguntas guiam a
pesquisa. A promoção da democracia na América Latina se relaciona às particularidades dos
regimes políticos da região? Qual o impacto da coexistência de organizações regionais, sub-
regionais e acordos de cooperação nos arranjos normativos sobre democracia na América
Latina? Busca-se, assim, estabelecer um diálogo entre a forma como internamente se
configuram os regimes políticos e a dimensão normativa regional da promoção da
democracia. Da mesma maneira, atenta-se para as possíveis consequências da concorrência e
sobreposição de arranjos regionais desta temática. As duas questões se encontram na hipótese
que orienta esta tese: a institucionalização da promoção regional da democracia, ou seja, sua
inserção nas normas e nas práticas, pode ocorrer de formas díspares em diferentes arranjos
políticos regionais, refletindo a história, os interesses, as alianças políticas e a fluidez do
conceito de democracia. Por um lado, a democracia, compreendida como poder exercido pelo
povo é, em si, um valor fundamental. Por outro lado, o transbordamento de sua defesa dos
grupos domésticos para o âmbito multilateral tem reverberado as características e, portanto,
também as incoerências da sociedade internacional. Forma-se, assim, uma dicotomia que deve
ter seu significado e suas consequências explicitados.
A emergência da democracia como tema da agenda internacional é resultado da revisão de
tradicionais paradigmas que informaram durante séculos as relações internacionais tanto em
seu contexto político quanto jurídico. A configuração dos regimes políticos formava uma das
últimas importantes separações entre assuntos domésticos e internacionais. Até a ascensão de
uma agenda internacional pró-democracia, predominava a concepção de que os contornos do
regime político de cada Estado seriam resultado de sua própria história, construída a partir de
caminhos particulares, sem que atores internacionais pudessem, legitimamente, ser parte neste
processo. Esse cenário se modifica com a crescente compreensão de que a democracia
constitui um valor a ser defendido para além das fronteiras nacionais. Uma mudança de tal
amplitude não ocorre sem questionamentos e incongruências. O termo “democracia” padece
de um significado extremamente fluido, preenchido a partir de posicionamentos ideológicos e,
portanto, não-partilhados de forma homogênea na sociedade internacional. Esse fato
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20
fundamenta a dicotomia que se desenvolve a partir da existência de uma dimensão
internacional de promoção da democracia1. O exercício do poder pelo povo – que está na base
daquilo que foi classicamente compreendido como demokratia2 – é parte do desenvolvimento
legítimo de uma sociedade política. Não há, contudo, uma só forma de se participar de uma
sociedade política. A existência de uma pluralidade de contextos sócio-políticos resulta,
necessariamente, na diversidade de construções normativas e institucionais domésticas sobre
a participação popular nos assuntos públicos. Mas o Direito Internacional não reflete
imperiosamente a diversidade que caracteriza a sociedade internacional.
O Direito, afinal, relaciona-se ao poder e aos fatos políticos. Ele não é independente do
comportamento, da vontade e do interesse (KOSKENNIEMI, 2005, p. 18). Caso o fosse,
confundir-se-ia com uma espécie de moralidade natural. No entanto, não se pode reduzir o
Direito Internacional ao jogo político, ainda que ele tenha propósitos políticos. Sua
concretude não dissipa a normatividade que o informa (KOSKENNIEMI, 2005, p. 19). Os
arranjos normativos internacionais sobre democracia refletem esses traços. A flexibilidade do
conteúdo da democracia, somada aos interesses políticos muitas vezes conflitantes entre os
atores internacionais, leva à possibilidade de instrumentalização do discurso e das práticas da
promoção da democracia para fins outros, distantes do aprofundamento da participação
política. A ingerência travestida na intenção de uma finalidade louvável é um dos principais
riscos deste fenômeno. Como bem coloca Rein Müllerson, “[o] idealismo, que às vezes está
próximo da ingenuidade, e a hipocrisia que pode ter de homenagear a virtude, juntamente às
1 Opta-se, aqui, pela utilização das expressões “promoção da democracia” e “promoção internacional ou
regional da democracia” como equivalentes e que contêm em si tanto a noção de fomentar quanto de proteger este regime político. Neste sentido, segue-se a tendência majoritária da doutrina (e.g. FOX, ROTH, 2004; FOX, NOLTE, 2004; CAROTHERS, 2006; GUÉNARD, 2008; HOBSON, 2009; PETROVA, 2011; MARKAKIS, 2012 CAMARGO, 2013) e também os documentos internacionais que lidam com o assunto tanto no âmbito global (no sistema ONU, e.g., A/52/129 de 1997 e E/CN.4/RES/1999/57, da Assembleia Geral e da Comissão de Direitos Humanos, respectivamente) quanto no regional americano (na Organização dos Estados Americanos, e.g. Compromisso de Santiago e o Protocolo de Washington, além da existência da Unidade de Promoção da Democracia). É preciso esclarecer que parte da literatura sobre o tema tem preferido outros termos para referir-se ao mesmo fenômeno, como “ajuda” (KNACK, 2004), “assistência” (BURNELL, 2007; CAROTHERS, 2009), ou “exportação” (STIVACHTIS, 2006; TEIXEIRA, 2010) da democracia. Kurki sugere a terminologia deveria ser modificada para “facilitação”, “diálogo” ou “encorajamento” da democracia como forma de sublinhar-se a necessidade de uma interação mútua entre as partes deste processo (2010, p. 381). O argumento de Kurki confunde-se com o pano de fundo que justifica a existência deste trabalho. Contudo, por acreditar-se que o termo “promoção da democracia” é o que melhor caracteriza o atual estado deste fenômeno, seguir-se-á com ele.
2 O termo demokratia teve diferentes significados na Grécia Antiga, especialmente devido às mutações do entendimento do termo demos (LARSEN, 1973, p. 45). Thucydides, na oração fúnebre atribuída a Péricles, afirmava que a Constituição ateniense seria chamada de demokratia por ser administrada não por poucos, mas pela maioria (SEALEY, 1973, p. 280), aproximando-se, assim, do sentido de governo do povo.
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considerações pragmáticas, estão todos presentes no negócio da exportação-importação da
democracia” (2010, p. 24, tradução nossa3).
As polêmicas que envolvem a internacionalização da promoção da democracia não frearam,
contudo, seu desenvolvimento. Na América Latina, as primeiras manifestações neste sentido
ocorreram de forma pouco sistematizada e pouco profunda ainda no século XIX. Apenas com
o término da Guerra Fria, quando este se torna um dos temas mais regulares da agenda
internacional, é possível observar a sistematização dos esforços regionais e sub-regionais para
a operacionalização da disseminação do regime político democrático. O fim da configuração
bipolar do sistema coincidiu com intensas mudanças domésticas nos países da região –
redemocratização de uma parte significativa da América Latina e emergência de políticas
econômicas liberais – que contribuíram para a criação de um importante e peculiar quadro
normativo sobre a democracia.
O fim da bipolaridade levou a um novo impulso do regionalismo. Diante de uma recém
inaugurada agenda internacional, as principais instâncias regionais de concertação política –
Organização dos Estados Americanos (OEA), Mercado Comum do Sul (Mercosul), União das
Nações Sul-Americanas (Unasul), Comunidade Andina (CAN), Sistema de Integração
Centro-Americano (SICA) e Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) –
posicionaram-se, de formas variadas e com níveis diversos de institucionalização, sobre a
conformação dos regimes políticos de seus membros. Neste cenário, a América Latina se
estabelece como um relevante caso de desenvolvimento do aparato normativo internacional
acerca da promoção da democracia. Ainda que este seja um fato conhecido, ele é
surpreendente em algumas perspectivas. Os países latino-americanos estiveram entre os que
mais vezes sofreram intervenções militares dos Estados Unidos da América (EUA) sob o
argumento da necessidade de democratização. Como reação, na América Latina se
desenvolveram algumas das mais importantes doutrinas sobre a não-intervenção no âmbito
das relações interestatais, as quais se chocam, a princípio, com a própria concepção da
promoção da democracia. A trajetória não-linear e conturbada dos regimes políticos contribui
para as particularidades da conformação desta agenda. Golpes, cerceamento de direitos civis e
políticos e concentração de poder fazem parte da história política da região. Nas últimas
décadas foram instituídos alguns traços homogêneos nos regimes políticos (e.g. a existência
3 Idealism, which is sometimes close to naivety, and hypocrisy, which may have to pay homage to virtue,
together with pragmatic considerations are all present in the export-import business of democracy.
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de eleições periódicas), mas em termos de ideologia política – fator fundamental para o
preenchimento do conceito de democracia – a heterogeneidade é marcante.
Para dar cabo ao estudo proposto, duas reflexões prévias se fazem necessárias. Elas versam
acerca do enquadramento teórico (I) e da metodologia (II) que fundamentarão as análises
realizadas. O pano de fundo teórico será responsável por elucidar os conceitos e o paradigma
que informam a concepção adotada sobre a sociedade internacional, os atores que nela se
destacam, sua dinâmica política, o fenômeno jurídico que a compõe e as interações entre
assuntos internacionais e internos aos Estados. Já no contexto metodológico, serão traçados os
procedimentos científicos que direcionarão esta pesquisa. Nele, serão definidos os limites
temporais e geopolíticos do estudo proposto, além de explicitados os níveis de análise e as
dimensões compreendidas como essenciais para o exame do fenômeno da promoção da
democracia na América Latina.
I. ENQUADRAMENTO TEÓRICO
O estudo acerca da promoção da democracia na América Latina será realizado partindo-se da
concepção de uma sociedade internacional construída socialmente e que influencia assim
como é influenciada pelos seus membros. No âmbito da sociedade internacional, duas
tendências podem ser verificadas: a pluralidade ou a convergência entre os atores
internacionais (A). Essas tendências são apreendidas pelo Direito Internacional, que visa a
conformar o comportamento dos atores. Ao estabelecer normas acerca do regime político dos
Estados, firma-se um arranjo que tende a instigar os Estados a homogeneizar suas estruturas
políticas domésticas. Tais normas fazem parte de um quadro bastante particular na esfera do
Direito Internacional, que reflete algumas de suas mais recentes transformações (B). Segundo
Andrew Hurrell, normas tendem a ser compreendidas em dois sentidos. No primeiro, entende-
se que elas são regularidades nos comportamentos dos atores, refletindo, portanto, padrões de
comportamento que resultam em expectativas sobre o que será feito em situações particulares.
Na segunda acepção, normas refletem padrões de comportamento prescritos que levam a
expectativas sobre o que deve ser feito em determinadas situações. Neste caso, tende-se a
criticar em o ator que desobedece a norma (HURREL, 2002, p. 194). Neste trabalho, o termo
“norma” será utilizado neste segundo sentido. O termo “quadro normativo” se refere ao
conjunto de normas sobre um determinado tema (e.g. democracia). Pode-se, então, afirmar
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que o significado aqui adotado de norma é amplo e se refere a enunciados prescritivos que
incluem regras, padrões e princípios tanto procedimentais quanto substantivos (CHAYES;
CHAYES, 1994, p. 68). As normas são prescrições para a ação dos atores internacionais em
situações em que esses devem realizar uma escolha, havendo, portanto, um senso de
obrigação que decorre do enunciado da norma. Seguindo os ensinamentos de Antonia Chayes
e Abram Chayes, assume-se que não importa qual a motivação da obrigação, ou seja, se ela
resulta de um cálculo utilitário, de um condicionamento social ou da crença (1994, p. 68).
Além destas possibilidades, pelas premissas estabelecidas neste trabalho, a coerção também
seria uma maneira de levar um Estado a aderir a uma norma internacional.
A. Promoção da democracia: a sociedade internacional entre o pluralismo e o solidarismo
A promoção da democracia é um fenômeno que ocorre no âmbito da sociedade internacional,
arena que tem, como unidades principais, Estados que interagem entre si4. Ao considerar o
viés social das interações – ou seja, partindo-se de uma ontologia estatal social –, deduz-se
que os Estados dão forma à sociedade internacional ao mesmo tempo em que são
influenciados por ela (BUZAN, 2004, p. 08). A criação e a manutenção de normas, regras e
instituições compartilhadas são a base da sociedade internacional e formam arranjos
acordados que versam sobre o comportamento que se espera dos atores (BUZAN, 2004, p. 07,
p. 110-111). Assim, a inserção de um determinado tema como pauta internacional – como é o
caso dos regimes políticos –, significa sua integração ao tecido normativo internacional por
meio da concepção de novos parâmetros para avaliação das condutas dos Estados. Na
sociedade internacional, a forma como Estados percebem-se uns aos outros é fundamental
para determinar os termos de suas relações. O compartilhamento de uma identidade comum
(e.g. o regime político) ou de um conjunto de normas e de regras (e.g. relativas ao Direito
Internacional) torna as compreensões intersubjetivas definidoras também das fronteiras dos
sistemas sociais (BUZAN, 2004, p. 08). Dessa forma, os contornos das interações entre os
atores se delineiam nas convergências e nas divergências destes em relação ao que o é
4 Alguns esforços têm sido feitos para compreender o impacto das particularidades regionais na configuração
de possíveis sociedades internacionais regionais. Ainda há, contudo, pouca literatura desenvolvida neste sentido. Para análises sobre a região na sociedade internacional, ver: Hurrel, 2007a; Buzan, 2014a, p. 57-59. Para um estudo sobre a possível existência de uma sociedade internacional latino-americana, ver: Merke, 2011.
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prescrito no quadro normativo internacional. Quando o tema dos regimes políticos adentra a
cena internacional, ele se torna uma variável capaz de influenciar as relações entre os atores.
A promoção da democracia ganhou importância devido ao ímpeto dos Estados Unidos5 e,
posteriormente, também da Europa, para inseri-la e mantê-la na agenda. A ideia segundo a
qual certa “unidade cultural” traria mais estabilidade e coesão à sociedade internacional
(BUZAN, 2010, p. 01) colaborou para a criação de um quadro normativo sobre a temática.
Contudo, ainda que haja um forte viés estatal nesse assunto, é inegável que sua legitimidade
está relacionada à sua inserção na esfera dos arranjos regionais de cooperação, especialmente
nas organizações internacionais (e.g. ONU, no âmbito global, OEA no regional Unasul no
sub-regional) e nos processos de integração (e.g. Mercosul), e também em arranjos menos
institucionalizados6 (e.g. ALBA). Desta forma, a promoção da democracia é uma faceta da
governança internacional que se reflete na configuração das instituições primárias e na agenda
das instituições secundárias.
Instituições primárias são aqui compreendidas como práticas relativamente duráveis e
fundamentais que podem ser modificadas ao longo do tempo. São constitutivas dos Estados e
da sociedade internacional, já que definem suas características e propósitos (BUZAN, 2004,
p. 166-167). Caracterizam-se, assim, como a fundação normativa da sociedade internacional
(REUS-SMIT, 1997, p. 556). A elaboração de um quadro de promoção internacional da
democracia ocorre especialmente a partir de sua inserção na esfera do Direito Internacional7,
por definição uma das mais importantes instituições primárias desde a criação dos Estados
5 Sobre as intervenções norte-americanas fundamentadas na promoção da democracia ver: Peceny, 1999. 6 As normas sobre democracia na América Latina são, portanto, produzidas a partir de foros que têm variados
graus de institucionalização. A partir das ideias de John Ruggie, compreende-se que existem três diferentes níveis de institucionalização das respostas coletivas dos Estados: (1) puramente cognitivo; (2) estabelecimento de expectativas mútuas, regras acordadas, regulamentações e planos; (3) organizações internacionais formais (RUGGIE, 1998, p. 55). Neste trabalho, os arranjos estudados encontram-se no segundo e no terceiro níveis de institucionalização. Para abrangê-los sem perder de vista este fato, opta-se neste trabalho por referir-se a eles com termos abrangentes como “arranjos multilaterais regionais”, ou ainda “foros multilaterais/regionais”.
7 Nesse sentido, por exemplo, os tratados e as declarações que versam sobre democracia na OEA (Carta da Organização dos Estados Americanos e Carta Democrática Interamericana), no Mercosul (Protocolos de Ushuaia sobre Compromisso Democrático), na Unasul (Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre o Compromisso com a Democracia) e nas Nações Unidas (Declaração de Viena sobre Direitos Humanos, Resoluções do CS sobre a necessidade de recondução ao poder do Presidente democraticamente eleito do Haiti, Resoluções da AG sobre o papel das Nações Unidas na promoção da democracia), os quais serviram como fundamento para diversas ações destas organizações em relação ao regime político de seus membros.
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Modernos 8 . Já as instituições secundárias são definidas como organizações criadas com
propósitos específicos (BUZAN, 2004, p. 164). No âmbito de instituições secundárias, como
OEA, Mercosul e Unasul, foram concebidos arranjos normativos para a promoção da
democracia. Este fenômeno, de emergência de um quadro normativo sobre democracia nas
instituições secundárias, coincide com aquela que Emmanuelle Tourme-Jouannet classifica
como a fase mais expansiva da existência do Direito Internacional (2007, p. 849).
As características das normas, regras e instituições comungadas na sociedade internacional e
representadas pelo Direito Internacional variam no tempo e no espaço. A natureza e as
potencialidades deste compartilhamento podem ser compreendidas considerando-se a
existência de tipos analíticos ideais que formam um espectro. Neste espectro há, como se
espera, gradações e dois extremos opostos se relevam. De um lado, há uma inclinação
pluralista na qual se observa um exíguo grau de convergência entre os atores. De outro lado,
há uma tendência solidarista 9 na qual a convergência se adensa na medida em que se
aproxima do extremo. Evidencia-se uma sociedade internacional pluralista no extremo em que
o compartilhamento se restringe ao necessário para a coexistência pacífica e a ordem no
sistema internacional (BUZAN, 2004, p. 46). Nela, as interações entre os Estados têm como
objetivo a sobrevivência e, portanto, a cooperação tem como fonte o auto-interesse (BUZAN,
2004, p.145). Concepções pluralistas relacionam-se ao lado realista do racionalismo. Além
disso, estão associadas ao modelo westfaliano de Estados, pautado no reconhecimento mútuo
da soberania das unidades (BUZAN, 2004, p. 141). A forte adesão ao princípio da soberania
estatal, concebido em termos de autoridade do Estado, resulta em uma maior tendência à
tolerância em relação à diferença e, consequentemente, ao respeito à não-intervenção. Isso
ocorre porque, como não há uma convergência densa entre os Estados em termos de valores, a
ingerência por motivos associados à forma como cada um se desenvolve dentro de suas
fronteiras é pouco provável. A instituição estatal e a soberania fornecem uma proteção para a
8 Além do Direito Internacional, outras instituições primárias serão analisadas em sua relação com a promoção
da democracia: a soberania e a não-intervenção. É interessante notar a recente discussão sobre a possibilidade de a democracia configurar-se, da mesma forma, como uma instituição primária. De acordo com Buzan, a democracia é uma instituição emergente e altamente contestada por não ter alcançado uma legitimidade generalizada como norma segundo a qual se determinam os regimes políticos dos Estados (BUZAN, 2014b, p.588).
9 O termo solidarismo tem diferentes utilizações, além da aqui proposta. Pode referir-se à possibilidade de enforcement das normas internacionais e de declaração de guerra em nome da sociedade internacional; a uma consideração maior aos indivíduos e menor aos Estados quando da construção do quadro normativo internacional; ou, ainda, às ideias e doutrinas de Direito Internacional desenvolvidas no fim do século XIX e início do século XX na França, que sublinhavam a importância da interdependência social (HURREL, 2007b, p. 58).
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diversidade. Tem-se como pilar a concepção de que cada Estado constitui uma comunidade
política amparada no valor moral que informa a autodeterminação (HURREL, 2007b, p. 28).
Concepções pluralistas sobre a sociedade internacional apoiam-se fortemente na ideia de que
a diversidade é uma característica típica da humanidade e que, portanto, deve ser
compreendida como um reflexo da multiplicidade de valores que fundamenta os
entendimentos sociais de cada comunidade política (HURREL, 2007b, p. 47). Para pluralistas,
tais como John Williams, a diversidade é algo desejável na esfera internacional, não se
configurando como “(...) um produto do sistema de Estados, mas uma característica
fundamental da condição humana” (2005, p. 29, tradução nossa10). Desta forma, visões que
preconizam a possibilidade de que a modernização traga consigo uma maior e/ou uma natural
convergência entre os Estados – tais quais a marxista e a liberal – são consideradas como
mera ilusão pelos pluralistas (HURREL, 2007b, p. 47). Por esta perspectiva, a convergência
de estruturas internas e de valores entre os Estados não é um objetivo, tampouco algo
desejável ou a ser conscientemente buscado.
Seguindo essas máximas, o Direito Internacional no âmbito pluralista é construído em torno
do Estado e do conceito de soberania (HURREL, 2007b, p. 49). No pluralismo reside aquilo
que Tourme-Jouannet classifica como o principal papel do Direito Internacional, qual seja, de
regular a conduta dos Estados tendo como objetivo a resolução de conflitos e a promoção da
coexistência entre entidades soberanas (2007, p. 829). As dificuldades de conciliação entre a
soberania e a existência de um Direito constituído no âmbito da sociedade internacional são
equacionadas a partir da ideia de consentimento (HURREL, 2007b, p. 49). Neste sentido, é no
consentimento dos Estados que está a legitimidade do Direito Internacional. O viés pluralista
assume, portanto, o Direito Internacional em termos positivistas (BUZAN, 2004, p. 46;
HURREL, 2007b, p. 49) e voluntaristas, afastando a possibilidade de existência de uma
obrigação para o Estado que não tenha sido criada por ele mesmo.
Partindo do extremo pluralista, na medida em que o conjunto de regras compartilhadas pelos
atores internacionais ultrapassa a mera coexistência buscando outros objetivos relacionados
aos âmbitos econômico, social, comunicação e meio ambiente, esta sociedade aproxima-se de
um viés solidarista (BULL, [1977] 2000, p. 67). Caminhar do pluralismo ao solidarismo
10 (...) a product of the states system, but a fundamental feature of the human condition.
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significa aumentar o grau de convergência entre os Estados para além do entendimento basilar
segundo o qual todos seriam um mesmo tipo de entidade soberana (BUZAN, 2004, p. 147).
Requer-se, assim, a construção de um senso de pertencimento entre as unidades que
ultrapasse o mero fato de serem Estados soberanos. O solidarismo se edifica a partir de dois
princípios. Primeiro, os Estados tendem a buscar conscientemente uma semelhança maior
entre suas estruturas. Nesse sentido, o solidarismo pode resultar em uma substancial
homogeneidade das estruturas políticas domésticas (BUZAN, 2004, p. 146). A consolidação
do solidarismo afeta, portanto, de forma profunda a organização e a conformação interna dos
Estados. Além disso, os Estados devem reconhecer a existência de valores compartilhados
que levem à coordenação de suas políticas e de suas ações coletivas com a criação de normas,
regras e organizações e à alteração de suas instituições, de acordo com aquilo que é
comungado (BUZAN, 2004, p. 147).
No âmbito do Direito Internacional, o movimento em direção ao viés solidarista pode ser
observado especialmente a partir de 1945, com o fim da II Guerra Mundial. Desde então,
além dos papéis prescritivo e organizacional, outros também passam a ser atribuídos às
normas internacionais. Tem início, então, o papel substantivamente interventor do Direito
Internacional que influencia assuntos domésticos, reconstrói Estados, lida com questões como
saúde, cultura e meio ambiente, além de promover a democracia (TOURME-JOUANNET,
2007, p. 829). O resultado destes eventos é, ainda segundo Tourme-Jouannet, um dos mais
extraordinários acontecimentos para o Direito Internacional contemporâneo, qual seja, “a
regulação não somente de relações interestatais, mas também de situações domésticas” (2007,
p. 829, tradução nossa11). O Direito Internacional reflete, a partir daquele momento, uma
maior convergência de valores entre os Estados, ao mesmo tempo em que requer que as
estruturas domésticas sejam dirigidas a um ponto comum.
A trajetória percorrida por Estados e por organizações internacionais ao se posicionarem em
relação ao regime político estatal preferível na esfera da sociedade internacional aponta,
portanto, para um fortalecimento do solidarismo. A compreensão das estruturas políticas
como um assunto exclusivamente doméstico, como outrora, possuía um viés eminentemente
pluralista. Então, diferentes concepções e práticas quanto ao regime político dos Estados eram
igualmente aceitas. Não havia, na sociedade internacional, uma opção clara por um ou outro
11 (...) the regulation not only of interstate relations, but also of domestic situations.
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regime político. O desenvolvimento da democracia como valor nas instituições internacionais
configura-se como a busca pelo aprofundamento da convergência das estruturas estatais.
Diminui-se, assim, a aceitação da pluralidade de possibilidades no que concerne aos regimes
políticos. Caminha-se para uma perspectiva menos condescendente com regimes que destoam
do regime democrático. Neste contexto, os entendimentos acerca da soberania e da não-
intervenção são relativizados sob a justificativa da necessidade de proteção da democracia.
Este fenômeno não deve, no entanto, ser encarado como um processo de convergência que se
desenvolve uniformemente no âmbito global. Ele passa por contestações que não podem e não
devem ser ignoradas. Se nos Estados Unidos e na Europa Ocidental a confluência em torno da
caracterização dos regimes políticos é densa, o mesmo não ocorre de maneira homogênea nas
demais regiões. Na América Latina, este não é um movimento que se estabelece de forma
coesa e livre de contradições. Para compreendê-lo, é importante ter em mente que a região é
profundamente influenciada por três dimensões sistêmicas: a proximidade geográfica com os
Estados Unidos; sua posição periférica no contexto econômico-capitalista mundial; e a
instabilidade política doméstica que marca historicamente os países da região (MERKE,
2011, p. 03). Estes três fatores condicionaram a trajetória regional da promoção da
democracia.
Desde o fim do século XIX, o modelo de interações dos Estados Unidos com a América
Latina passa, de forma recorrente, por intervenções – muitas vezes apoiadas na justificativa de
implementar uma maior liberalização e/ou democratização nos países da região. Isto se
configurou como um padrão de relações que Federico Merke chama de “solidarismo
ofensivo” por parte dos Estados Unidos e um “pluralismo defensivo” por parte dos demais
Estados da região (2011, p. 21). De um lado, os Estados Unidos, por vezes ferindo os
princípios da soberania e da não-intervenção12, buscam influenciar os regimes políticos dos
demais países americanos. De outro lado, tentando manter a independência de seus processos
decisórios, os países da América Latina reafirmam sua distância em relação à política norte-
americana. Não se trata, este, contudo, de um movimento linear e uniformemente
estabelecido. Em diferentes momentos históricos, a ascensão de grupos politicamente
próximos dos Estados Unidos em países latino-americanos resultou em uma alteração desse
12 Nesse sentido foi considerada ilegítima pela Corte Internacional de Justiça a intervenção dos Estados Unidos
na Nicarágua (1984). Além deste caso, as ações dos EUA em Granada (1983) e no Panamá (1989-1990) também foram questionadas.
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padrão (MERKE, 2011, p. 21). Da mesma forma, a democratização e a liberalização que
marcaram tantas vezes o discurso norte-americano para a América Latina foram neutralizados
com o apoio a regimes ditatoriais, quando assim pareceu mais conveniente aos interesses
políticos de Washington. Com estas incongruências, ficam expostas aquilo que Buzan
denomina de hipocrisias do universalismo normativo liberal (2014b, p. 593).
A posição periférica da América Latina na estrutura do capitalismo mundial somada à
instabilidade política contribuiu para que os regimes políticos na região tenham contornos
muito particulares. É possível encontrar uma ampla variação de estruturas de participação
popular, que diferem no grau e no tipo de participação e que possuem inspirações ideológicas
diversas. De democracias liberais bem estabelecidas – como é o caso do Chile e da Costa Rica
– a governos que afirmam se apoiar na ideia da democracia participativa – como os da
Venezuela e Bolívia – a América Latina é um microcosmo que bem representa multiplicidade
de entendimentos sobre o que é um regime político democrático. Neste contexto, manifesta-se
uma das principais tensões da promoção da democracia na região. De um lado, diferentes
visões sobre o regime democrático. De outro, o fato de, ao tornar-se mais solidarista,
partilhando normas e valores sobre a estrutura de seus regimes políticos, a América Latina
estabelecer uma maior possibilidade de enforcement coletivo em relação a estas disposições.
Tratar no âmbito internacional uma temática a princípio doméstica implica na possibilidade
de se reivindicar para além das fronteiras nacionais o cumprimento daquilo que é previsto
normativamente. Afinal, quanto mais profunda for a convergência da sociedade internacional
em relação a uma temática, mais abrangente será a percepção do enforcement como algo
aceitável e habitual (BUZAN, 2004, p. 149).
O percurso para a convergência entre os Estados pode se dar por diferentes motivos e de
formas diversas. A internalização de um valor pode ocorrer por meio de coerção, cálculo ou
crença (BUZAN, 2004, p. 151). Cada uma destas motivações resulta em intensidades
diferentes para o fortalecimento do solidarismo – ou do pluralismo – e, portanto, no caso do
solidarismo, para o grau de aderência dos atores às normas. O grau de internalização de um
valor internacional relaciona-se diretamente ao motivo pelo qual um determinado Estado
adere a ele. A internalização por crença resulta, obviamente, em um valor mais estável.
Aquela que advém de um cálculo instrumental será menos estável. A coerção é, certamente, o
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meio menos desejável e com resultados mais volúveis para a internalização de um valor13.
Dessa forma, as variações nos laços que mantêm o solidarismo importam, apesar de não
definirem sua existência. Ainda que seja inteiramente baseada na coerção, a convergência no
sentido de práticas ou de estruturas compartilhadas configura uma expressão de solidarismo
(BUZAN, 2004, p. 154). Geralmente, segundo Buzan, a expansão de padrões considerados
mais adequados à sociedade internacional ocorre por meio de uma mistura de coerção, cálculo
e crença, com uma preponderância da coerção (2004, p. 150). No mesmo sentido, Andrew
Hurrel afirma que o paradoxo do universalismo está no fato de que o sucesso da promoção de
valores “universais” ou “globais” depende da vontade de Estados que detém poder e o sucesso
desta empreitada implica na reafirmação da desigualdade entre os Estados (2007b, p. 160). O
recurso à coerção revela um traço potencialmente abusivo na busca pela consolidação do
solidarismo. Trata-se da possibilidade de, em nome de valores pretensamente universais,
travestidos de uma “função civilizadora”, ser imposta uma visão de mundo particular. O
universalismo coercitivo traz em si uma dicotomia moral insuperável por se basear na
imposição de valores e não na livre compreensão e convencimento sobre a importância destes.
Análises que têm como objeto eventos internacionais anteriores à II Guerra Mundial
apresentam com certa frequência o conceito de “padrão de civilização”, que era utilizado pelo
Ocidente em relação aos que não comungavam de seus valores (BUZAN, 2014b, p. 577).
Essa ideia remete à criação dos Estados Modernos na Europa14 e à perspectiva segundo a qual
os Estados que reproduzissem o arquétipo europeu – somente eles – seriam considerados
civilizados (STIVACHTIS, 2006). Estabelecia-se, desta forma, uma cisão entre os
“civilizados” e os “bárbaros” ou “não-civilizados” fundada especialmente no
desenvolvimento econômico e político – mensurados a partir da uma construção europeia
sobre o desenvolvimento – em uma pretensa autoridade intelectual e cultural e, da mesma
forma, em concepções raciais de cunho determinista15. Esta divisão transbordava para além
das relações políticas. Na esfera do Direito Internacional, Estados “não-civilizados” eram
considerados inferiores e, portanto, tinham uma personalidade jurídica incompleta e não
gozavam do mesmo nível de proteção dispensado aos demais (GONG, 1984, p. 05-06). O
13 Apesar disso, os solidaristas por vezes advogam pela intervenção (coerção) para a garantia da observância
dos Direitos Humanos, relativizando a importância daquilo que motiva a aderência a um valor (BUZAN, 2004, p. 152, 153).
14 Para mais sobre a relação entre a ideia de “civilização” e a formação dos Estados Modernos europeus, ver: Elias, [1939] 2000.
15 Sobre a questão da raça e seu tratamento em termos “científicos” especialmente no caso do Brasil, ver: Schwarcz, 1993.
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“padrão de civilização” é uma construção unilateral europeia que visa, por um lado, a tornar
clara a diferença existente entre os Estados e, por outro, a sublinhar a necessidade de
adequação do comportamento dos “não-civilizados” às normas e às expectativas dos
“civilizados” o que levaria a uma possível expansão da sociedade internacional16. Apesar de
ter sido abandonado e substituído por instrumentos analíticos considerados politicamente
corretos (e.g. condicionalidade, boa governança e desenvolvimento), o conceito de “padrão de
civilização” segue, segundo Buzan, significativo para a compreensão da sociedade
internacional contemporânea, já que as práticas a ele relacionadas permanecem (2014b, p.
577). A democracia, assim como os Direitos Humanos, o capitalismo, o meio ambiente e o
desenvolvimento, são as formas contemporâneas daquilo que Buzan denomina “novo padrão
de civilização” (2004, p. 586).
O regime democrático passou a ser considerado como um “critério de civilidade” após a I
Guerra Mundial, com a campanha wilsoniana pró-democracia (STIVACHTIS, 2006). Entre
aqueles que atuam na promoção da democracia há uma clara tendência em equiparar governos
democráticos à “civilização” e os não-democráticos à “barbárie” (BUZAN, 2014b, p. 589). Os
que dela comungam fariam, assim, parte de um grupo moralmente superior aos demais.
Estados não-democráticos seriam, nas palavras de Clark, “fora da lei ontológicos”, cuja
anomalia está na forma como se constituem politicamente (CLARK, 2009, p. 566). Este
fenômeno foi favorecido pela ascensão dos Estados Unidos como potência hegemônica após a
II Guerra Mundial (STIVACHTIS, 2006). Da mesma forma, o colapso da União Soviética e
consequente fim da Guerra Fria apontaram tanto para uma tendência normativista da
sociedade internacional quanto para a consolidação dos valores ocidentais (CLARK, 2009, p.
567). Nesse contexto ocorreu a inserção da promoção da democracia na agenda internacional
global e o reforço na agenda regional latino-americana. Não por coincidência, estes
16 Andrew Linklater bem examina a possibilidade de expansão do “padrão de civilização” para outras
sociedades que não a europeia no século XIX: “The ‘standard of civilization’ (...) expressed the idea that the European colonial powers would decide when non-European societies had reached a level of social and political development that made it possible for them to join the European society of states. The possibility of admission to international society on equal terms with the original members was recognised although most of those who designed the standard of civilization believed that would take several decades, and in some cases, many centuries. The main assumption was that entry into the society of states would require more than compliance with Western principles of international relations that were based on the idea of sovereignty and non-intervention, and on respect for Western diplomatic practice and international law; it would depend on parallel changes in the internal organisation of the societies involved. At a deeper level, the expansion of international society would only occur as a result of the Westernisation or ‘modernisation’ of non-European communities” (LINKLATER, 2010, p. 4-5).
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acontecimentos se delineiam naquele que ficou conhecido como o “momento unipolar”17,
quando os Estados Unidos tiveram, de maneira extraordinária, a capacidade de influenciar a
agenda internacional18.
A América Latina definitivamente não se caracteriza como um espaço em que a existência da
democracia encontra seus limites mais extremos. Não se trata de uma região dividida nem em
democracias bem assentadas, como a Europa, nem em ditaduras tradicionais, tais como as que
podem ser encontradas em alguns países do mundo árabe e da África. A qualificação dos
regimes políticos latino-americanos transcende a oposição simplista adotada por grande parte
da literatura que analisa a promoção da democracia, que tende a dividi-los em democráticos e
não-democráticos. A partir deste cenário, tanto o conteúdo quanto os instrumentos usados na
promoção da democracia configuram-se de uma maneira muito particular. Desde a década de
1990, é possível observar na região a emergência da promoção da democracia em outros
organismos multilaterais além da OEA – que começou a tratar do tema em seus primeiros
anos. Mercosul, Unasul, CAN, SICA e ALBA também deram início à criação de arranjos
normativos sobre o regime político de seus membros. Ao dispor sobre este assunto em
diferentes organizações sub-regionais, a América Latina multiplica as fontes produtoras de
normas, possibilitando sua fragmentação. Duas consequências podem surgir deste fato. Por
um lado, a multiplicidade normativa em torno da democracia pode refletir a diversidade
política da região. Por outro lado, ela pode expor as vulnerabilidades e as fragilidades deste
fenômeno, já que possibilita a propagação de duplos padrões, aplicações seletivas e de
apreciações baseadas no alinhamento político e ideológico dos atores. Este contexto, tão
particular, demonstra que a América Latina se configura como um objeto único para análise
da promoção da democracia.
B. Especificidades do Direito Internacional na esfera da promoção da democracia
A promoção de democracia ganha robustez a partir de sua inserção nos arranjos normativos
internacionais, especialmente pela previsão de mecanismos de ação multilateral concertada
nos casos de crise que possam comprometer o regime democrático. Como instituição
17 O termo “momento unipolar” foi cunhado pela primeira vez por Krauthammer (1990) para designar a grande
lacuna de poder que se forma entre os Estados Unidos e o resto do mundo logo após o fim da Guerra Fria. Foi a primeira vez desde a modernidade em que se assistiu à unipolaridade.
18 Apesar de os EUA seguirem como o Estado com maior poder no sistema internacional em termos materiais, a ascensão de novas potências – como a União Europeia e a China – significou um novo equilíbrio de forças na definição da agenda internacional.
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primária, o Direito Internacional faz parte da fundação normativa da sociedade internacional.
Influencia, portanto, a própria sociedade e os Estados na configuração de seus atributos e na
definição de seus objetivos. Ainda que na ausência de um poder central a utilidade do Direito
Internacional como instrumento de mudança social seja limitada se comparada ao direito
doméstico (WILSON, 2009, p. 169), compreender sua configuração e suas mudanças
significa apreender relevantes características da sociedade internacional e dos valores por ela
compartilhados. Ele reflete, em larga medida, a própria sociedade internacional, suas
transformações, a criação de novas agendas, assim como suas incoerências. O conteúdo do
Direito Internacional repercute, afinal, sua estreita associação com a política internacional e,
consequentemente, com as relações de poder que, da mesma maneira, informam sua
existência (DUPUY; KERBRAT, 2014, p. 10-11).
Neste contexto, é possível observar diferentes tendências, sendo duas antagônicas quanto à
interpretação da construção contemporânea do Direito Internacional. Uma que compreende o
Direito Internacional como resultante das relações de poder (e.g. o Realismo) e outra que o
concebe como um instrumento racional para a realização da justiça (e.g. o Liberalismo). Estes
dois extremos diminuem, contudo, as possibilidades de utilização do Direito Internacional
como instrumento capaz de refletir efetivamente a sociedade internacional como fenômeno
complexo e repleto de nuances. O Direito Internacional é, afinal, uma instituição multilateral
dicotômica no sentido de que representa, ao mesmo tempo, um possível instrumento de poder
e um obstáculo para o seu exercício (KRISCH, 2005, p. 371).
Por um lado, enquanto a cena política estrutura-se hierarquicamente (e.g. os assentos
permanentes do Conselho de Segurança da ONU), a esfera jurídica internacional tem seu
fundamento na igualdade soberana entre os Estados (KRISCH, 2005, p. 370). É preciso ter em
mente que o Direito Internacional se constrói, em grande parte, com o consentimento –
expresso ou, no caso dos costumes, por vezes, tácito – dos Estados. Por isso, equivaler o
Direito Internacional a meras relações de poder denota uma hiper-simplificação da realidade
que, portanto, deve ser afastada. Por outro lado, é inegável que a assimetria de poder da
sociedade internacional se reflete na ordem jurídica. Isto é perceptível tanto na aprovação de
normas (e.g. as resoluções do Conselho de Segurança da ONU) quanto no reverberamento de
temas importantes para os países centrais na agenda internacional (e.g. Direitos Humanos,
democracia, liberalização do comércio). Nas palavras de Tourme-Jouannet, o Direito
Internacional contemporâneo é profundamente influenciad