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1 PONTES DE MIRANDA E A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS GEORGE SARMENTO Doutor em Direito Público Professor/UFAL Promotor de Justiça 1. INTRODUÇÃO Pontes de Miranda foi o primeiro jurista a esboçar uma teoria dos direitos fundamentais no Brasil. Para ele, o comprometimento dos governos com a efetivação dos direitos humanos era a única forma de promover o desenvolvimento e a justiça social. A evolução da humanidade dependia da substituição do despotismo estatal pelo equilíbrio entre democracia, liberdade e igualdade na ordem jurídico-constitucional. Esse caminho só seria possível com a cristalização dos direitos humanos nos tratados internacionais e nas constituições dos países democráticos. O fim da 2ª Guerra Mundial era a oportunidade ideal para o Ocidente construir um novo projeto de sociedade baseado na dignidade da pessoa humana e no bem-estar social. A grande preocupação de Pontes de Miranda era dotar as constituições de mecanismos destinados a assegurar-lhes perenidade: rigidez constitucional, aplicabilidade imediata, cerne irrestringível e controle de constitucionalidade. Ele temia que interesses circunstanciais e corporativos pudessem fragilizar o Estado Democrático de Direito, impondo reformas constitucionais ilegítimas. Logo percebeu que o tema deveria sair da dimensão política para ser analisado sob o prisma da ciência constitucional. Procurou então sistematizar os direitos fundamentais desenvolvendo uma classificação estruturalista e dogmática, baseada nos seguintes parâmetros: 1. Subjetividade 2. Ordem jurídica direitos fundamentais subjetivos; direitos fundamentais insubjetivados. direitos fundamentais estatais; direitos fundamentais supra-estatais.

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1

PONTES DE MIRANDA E A TEORIA DOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS

GEORGE SARMENTO

Doutor em Direito Público

Professor/UFAL

Promotor de Justiça

1. INTRODUÇÃO

Pontes de Miranda foi o primeiro jurista a esboçar uma teoria dos

direitos fundamentais no Brasil. Para ele, o comprometimento dos governos com

a efetivação dos direitos humanos era a única forma de promover o

desenvolvimento e a justiça social.

A evolução da humanidade dependia da substituição do despotismo

estatal pelo equilíbrio entre democracia, liberdade e igualdade na ordem

jurídico-constitucional. Esse caminho só seria possível com a cristalização dos

direitos humanos nos tratados internacionais e nas constituições dos países

democráticos. O fim da 2ª Guerra Mundial era a oportunidade ideal para o

Ocidente construir um novo projeto de sociedade baseado na dignidade da pessoa

humana e no bem-estar social.

A grande preocupação de Pontes de Miranda era dotar as constituições

de mecanismos destinados a assegurar-lhes perenidade: rigidez constitucional,

aplicabilidade imediata, cerne irrestringível e controle de constitucionalidade. Ele

temia que interesses circunstanciais e corporativos pudessem fragilizar o Estado

Democrático de Direito, impondo reformas constitucionais ilegítimas.

Logo percebeu que o tema deveria sair da dimensão política para ser

analisado sob o prisma da ciência constitucional. Procurou então sistematizar os

direitos fundamentais desenvolvendo uma classificação estruturalista e

dogmática, baseada nos seguintes parâmetros:

1. Subjetividade

2. Ordem jurídica

direitos fundamentais subjetivos;

direitos fundamentais insubjetivados.

direitos fundamentais estatais;

direitos fundamentais supra-estatais.

Molinaro
Nota
In: http://www.georgesarmento.com.br/wp-content/uploads/2011/02/Pontes-de-Miranda-e-a-teoria-dos-direitos-fundamentais1.pdf
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2

3. Organizabilidade

4. Prestação

5. Garantias

Neste artigo, analisaremos essa classificação à luz do constitucionalismo

contemporâneo, com o intuito de demonstrar que as idéias propagadas pelo

jurista alagoano, há mais de 60 anos, continuam vivas e atuais. Embora pouco

estudada nos meios acadêmicos, a contribuição ponteana é imprescindível para a

compreensão da teoria geral dos direitos fundamentais nas democracias

modernas.

2. PODER ESTATAL E PODER CONSTITUINTE

2.1. Ordem jurídica supra-estatal e ordem jurídica estatal

O estudo dos direitos fundamentais pressupõe a existência de duas

ordens jurídicas: a supra-estatal e a estatal. A primeira banha, colore a periferia

do Estado. É o direito internacional. A segunda preenche o seu interior. É o

direito nacional. A ordem jurídica supra-estatal disciplina desde a criação de

novos Estados até a previsibilidade das relações que se travarão entre eles. O

mesmo acontece com a ordem interna, que vai da Constituição até o mais simples

ato estatal (legislativo, administrativo ou judicial)1.

O Estado é fato jurídico que nasce da incidência das normas de direito

internacional público. Uma comunidade só existe como Estado quando atinge a

simetria com a ordem jurídica supra-estatal pré-existente, que é ordem periférica

e sobreposta aos demais Estados. Tal simetria é alcançada com a concretização

dos fatos previstos pelas normas supra-estatais. Quando o suporte fáctico é

1 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 45.

direitos fundamentais absolutos;

direitos fundamentais relativos.

direitos fundamentais negativos;

direitos fundamentais positivos.

garantias institucionais;

garantias processuais.

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suficiente para a incidência normativa, a comunidade passa a existir com um

novo colorido: personalidade de direito internacional público, Estado2.

A ordem jurídica supra-estatal é fundamento de existência e de validade

das ordens jurídicas nacionais. Criadas por tratados3, as normas de direito

internacional obrigam os Estados a promover medidas necessárias para torná-las

executórias no plano do direito interno4. Possuem a marca do consenso e da

convergência de interesses, vinculando os Estados à cláusula pacta sunt

servanda. Legitimadas pela comunidade internacional, tais normas possuem

força de incidência e prescrevem os mais diversos efeitos jurídicos.

O direito supra-estatal é universal. Incide sobre todos os países do

Planeta. Cabe a ele distribuir competências, fixar limites, revelar direitos

humanos, estabelecer sanções, etc. Para Pontes de Miranda, é o direito da mais

larga esfera jurídica da Terra. A universalidade lhe assegura superioridade

hierárquica sobre as ordens jurídicas estatais. Daí porque “a submissão dos

Estados a regras de direito das gentes significa que desapareceu, juridicamente, a

noção de independência absoluta deles: passaram a ser ordens parciais de direito,

relativamente independentes5”.

A construção do Estado também está condicionada a uma força política

viva, real: a vontade de transformar a comunidade em sujeito de direito

internacional. É o chamado poder estatal, isto é, o poder de construir e

reconstruir o Estado. A construção começa por fora, na periferia, pois é na

ordem supra-estatal que está o seu fundamento de existência. Em seguida,

alcança o interior, constitui o Estado e prossegue até o mais insignificante ato

estatal6.

Não se pode confundir poder estatal com poder constituinte. O poder de

construir e reconstruir é muito mais amplo que o de constituir7. Este está contido

2 Já sustentamos que “o Estado é fato jurídico nascido da incidência das normas de Direito Internacional

Público, cujo suporte fáctico, por ser extremamente complexo, exige intrincada conjunção de fatos para a sua

suficiência. A falta de um dos elementos abstratamente previstos torna o suporte fáctico incompleto, impede a

incidência normativa e o nascimento do fato jurídico esperado. Conseqüência: a comunidade não se personaliza

como Estado, pois o suporte fáctico é insuficiente para a jurisdicização, o que só ocorrerá com a reunião de

todos os requisitos de fato, objeto de anterior previsibilidade pelas normas de direito internacional público”. Cf.

SARMENTO, George. Direitos fundamentais supra-estatais: paradigma de validade das normas

constitucionais. Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, v. 1, n. 1, Recife, OAB/PE, 1997, p.

226. 3 A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados preconiza que o vocábulo tratado deve ser entendido em

sentido amplo. Significa todo acordo internacional escrito, celebrado pelos Estados e disciplinado pelas normas

de direito internacional, não importando sua denominação particular (art. 2o, I, a). Dessa forma, estão contidos

no conceito os seguintes documentos internacionais: pacto, convenção, tratado, ata, código, compromisso,

contrato, convenção, protocolos, convênios, declaração e constituição. 4 Cyntia González Feldman sustenta, com razão, que “al suscribir tratados internacionales, los Estados se

comprometen a que las disposiciones en ellos contenidas se conviertan en derecho interno. Sin embargo, un

Estado no puede invocar las disposiciones de su derecho interno como justificación del incumplimiento de un

tratado”. Cf. La implementación de tratados internacionales de derechos humanos por el Paraguay. In: Cyntia

González Feldman (comp.). El Paraguay frente al sistema internacional de los derechos humanos.

Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer Uruguay, 2004, p. 20. 5 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 216.

6 MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV,

Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946. 7 O poder constituinte, os poderes constituídos e até mesmo o poder pré-constitucional integram o conteúdo do

poder estatal. Pontes de Miranda demonstra que ele se desenvolve em três dimensões: “(a) Exterioridade

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naquele. A construção do Estado é processo perene, que começa ainda na ordem

externa e prossegue na organização interna, abrangendo todos os atos estatais

presentes, passados e futuros. O poder constituinte tem apenas a função de

elaborar normas constitucionais, cabendo ao legislador ordinário continuar o

processo de estruturação do Estado.

Enquanto o poder estatal se insere no plano do ser, o poder constituinte,

que é a mais alta espécie do poder de legislar8, desenvolve-se no plano do dever-

ser. O poder constituinte atua no campo normativo, tendo como missão

primordial a produção de normas jurídicas constitucionais. A ele cabe revelar a

Constituição, diferir atividade constituidora, criar poderes constituídos9.

Para constituir-se, o Estado precisa de uma Constituição. A rigor, as

normas jurídicas federais, estaduais e municipais também exercem função

estruturante do Estado. Mas, por imposição da técnica jurídica, o conceito de

Constituição foi relativizado pela normação seletiva. Assim, só são consideradas

constitucionais as normas jurídicas ditadas pelo poder constituinte (originário ou

reformador) e inseridas na Carta Política. Isso nos leva a concluir que as normas

constitutivas do Estado subdividem-se em duas categorias:

a) as reveladas pelo poder constituinte – normas constitucionais;

b) as reveladas pelo poder legislativo ordinário – leis complementares,

ordinárias, delegadas, medidas provisórias, etc.10

.

Nas democracias o povo é o titular do poder estatal, podendo livremente

decidir o destino e a organização jurídica da comunidade a que pertence. Cabe ao

povo construir, reconstruir, pré-constituir, constituir e reformar o Estado. Por

isso, poder estatal e o poder constituinte estão inexoravelmente unidos pela

relação fonte-produto11

. O primeiro é prius por referir-se à própria existência do

Estado, o que só acontece com o seu reconhecimento internacional; o segundo é

posterius, pois concerne à estrutura de Estado já existente.

O poder estatal popular é enunciado de fato que legitima o Estado

Democrático de Direito. Trata-se de conceito a priori que fundamenta ordem

jurídica interna. Cabe ao poder constituinte a revelação de enunciados

normativos que expressem essa realidade política. A Constituição brasileira, por

exemplo, estabelece o princípio democrático nos seguintes termos: “Todo poder

emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,

(direito das gentes – participação na formação das regras de direito das gentes; atividade negocial de direito das

gentes); (b) Exterioridade/Interioridade (atividade negocial do Estado noutro sistema jurídico que o direito das

gentes e o seu próprio); (3) Interioridade (direito interno – regras jurídicas pré-constitucionais, regras jurídicas

constitucionais, regras jurídicas anti-constitucionais, regras jurídicas de legislação ordinária de acordo com a

Constituição, regras jurídicas de legislação ordinária anti-constitucionais, atos (de acordo com as regras

jurídicas constitucionais) de execução, atos judiciários de acordo com a Constituição, atos judiciários anti-

constitucionais”. Cf. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 180. 8 MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV,

Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15. 9 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 188.

10 MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV,

Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15. 11

MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV,

Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15.

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nos termos desta Constituição” (art. 1º, parágrafo único). Dessa forma, as

atividades legislativas, administrativas e judiciais são a exteriorização da vontade

do povo, conforme veremos mais adiante.

O poder constituinte é democrático quando o povo elege deputados e

senadores para redigir ou reformar o texto constitucional. As Constituições são

legítimas se produzidas por poder constituinte convocado pelo titular do poder

estatal (o povo) ou por ele ratificadas por referendo legislativo. Qualquer outra

forma de construção constitucional não passa de usurpação política. É ilegítima,

produto do arbítrio, das ditaduras, dos regimes despóticos.

2.2. O povo como elemento legitimador do Estado Democrático de Direito

A vontade do povo é elemento essencial à legitimidade das

Constituições. Mas o povo não é um bloco monolítico formado por pessoas

dotadas de pensamento único, de uma volonté générale perfeitamente

identificável. A população de determinado Estado é heterogênea e subdivide-se

em incontáveis círculos sociais como famílias, igrejas, partidos políticos,

empresas, repartições públicas, organizações não-governamentais e instituições

democráticas. Tais círculos estão em permanente interação uns com os outros,

sempre em busca da crescente adaptação social e da civilidade, fim maior da

espécie humana. Como texto normativo de hierarquia superior no sistema

jurídico estatal, as Constituições devem refletir o consenso de valores vigentes

nos mais diversos círculos da sociedade civil.

“Povo” não é mera retórica, mas elemento integrante das normas

jurídicas. O art. 1o, parágrafo único, da Constituição de 1988 é a prova disso.

Para Friedrich Müller, o vocábulo “povo” contido nas prescrições jurídicas deve

ser objeto de interpretação lege artis, em três planos:

1º. “Povo” como povo ativo;

2º. “Povo” como instância global de atribuição de legitimidade;

3º. “Povo” como destinatário das prestações civilizatórias do Estado12

.

O povo ativo é o conjunto dos eleitores que ocupam cargos públicos,

participam das eleições, plebiscitos e referendos por serem titulares de direitos

políticos. É o povo ativo que constrói e constitui o Estado através de

instrumentos da democracia, direta, indireta ou participativa. Elege a assembléia

constituinte, os legisladores ordinários, os chefes do poder executivo, etc. É,

portanto, a base da legitimidade (degré zéro) do Estado Democrático de Direito.

Embora nem sempre tenha participação direta na produção dos atos

estatais, o povo também é instância legitimadora do ordenamento jurídico na

medida em que acata as decisões administrativas, legislativas e judiciais. A

legitimação pelo povo é componente da validade e efetividade das normas

constitucionais, das sentenças, das políticas públicas, dos governos e de qualquer

12

MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max

Limonard, 2003, p. 55-64.

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outra manifestação do Estado. Isto só acontece quando o povo reconhece nas

instituições, autoridades e leis a expressão de sua vontade. As Constituições se

concretizam na práxis quando o povo submete-se espontaneamente às suas

normas sem opor resistência, propagar a revolução ou desobediência civil,

quando os cidadãos participam livremente das eleições, dos conselhos

consultivos e de outras manifestações políticas.

Além de fonte do poder estatal, o povo é destinatário de prestações

civilizatórias. Isto é, a população real de um país é titular de direitos

fundamentais (individuais, políticos, sociais, econômicos, coletivos e difusos)

que devem ser assegurados na Constituição e concretizados pelo Estado. O

respeito à dignidade da pessoa humana, a melhoria da qualidade de vida, a justiça

social, serviços públicos eficientes e a proteção do meio ambiente são apenas

alguns dos requisitos essenciais à efetividade do ordenamento jurídico

democrático.

Temos sustentado em outros escritos que cidadania consiste na

participação política e na fruição dos direitos humanos13

. É a concepção teórica

que mais se aproxima do conteúdo do vocábulo “cidadania” erigido a princípio

fundamental da República Federativa do Brasil (CF, art. 1o, II). Trata-se de

conceito que rompe com a idéia de cidadão-eleitor para abranger todas as pessoas

que vivam no território nacional. A condição de eleitor é secundária porque tal

norma constitucional considera cidadãos todos os destinatários de prestações

civilizatórias do Estado. Nesse sentido, a cidadania abrange os diversos

segmentos da população real do país mediante a positivação não só das

liberdades fundamentais, mas de direitos difusos e coletivos que tutelam o meio

ambiente, o consumidor, as comunidades indígenas, a moralidade administrativa,

os portadores de deficiência, os idosos, crianças e adolescentes.

Sob o aspecto dogmático-constitucional, o povo é conceito polissêmico.

Em algumas situações pode significar o conjunto dos cidadãos detentores de

direitos políticos ou instância legitimadora de atos jurídicos estatais. Também

pode ser interpretado como população real de um país, beneficiária de prestações

positivas e negativas do Estado. É na harmonia dessas dimensões, ensina Müller,

que reside a legitimidade da Constituição brasileira. Caso contrário, o povo seria

um enunciado normativo vazio, um ícone para justificar regimes autoritários.

O doutrinador alemão tem o mérito de alertar para o fato de que o “poder

constituinte do povo” não e um conceito ideológico, despregado da realidade

social ou detentor de alto grau de abstração. Ao contrário, integra o texto

constitucional sob forma de normas jurídicas editadas em respeito a

procedimentos democráticos e passiveis de permanente aferição de legitimidade

na práxis jurídica14

.

Para que o poder constituinte seja legítimo, é preciso ainda que o povo

esteja em condições de escolher livremente os caminhos e a estrutura que o

13

SARMENTO, George. Novos rumos da cidadania brasileira. Revista do Ministério Publico de Alagoas, n.

3, jul/jan.,Maceió, MPEAL/UFAL, p. 67-71. 14

MÜLLER, Friedrich. Fragmentos (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo: RT, 2004, p. 31.

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7

Estado vai encarnar. Tarefa que exige consciência política, sentimento patriótico

e vida digna para os cidadãos. Caso contrário, os eleitores serão presas fáceis do

poder econômico, extremamente hábil na manipulação eleitoral. As

Constituições devem ser a síntese das aspirações dos diversos segmentos que

compõem a população de um país. Devem aproximar-se ao máximo do consenso

em relação a valores vigentes na sociedade civil. É preciso, finalmente, que o

povo se reconheça no texto constitucional, que se veja como protagonista e não

como coadjuvante de interesses impostos pelas classes dominantes ou por

empresas multinacionais.

De tudo que foi dito nesta seção, podemos tirar algumas conclusões

preliminares. Como fenômeno de direito internacional, o Estado só pode ser

constituído após a sua construção. O povo é o titular do poder estatal. A ele cabe

a decisão de construir o Estado em seu sentido mais amplo. O poder constituinte

está contido no poder estatal e dele é dependente. Tem a função de organizar

internamente o Estado, revelando normas constitucionais. Não é soberano, mas

limitado pelas normas de direito internacional, pelos princípios constitucionais

prévios e pela legislação pré-constitucional15

. Caracteriza-se pela atuação intra-

estatal, revogabilidade, indivisibilidade e normação seletiva. Produto do poder

estatal, pode ser cancelado a qualquer tempo pela vontade do povo, que é, nas

democracias, a sua fonte suprema.

3. DIREITO SUBJETIVO FUNDAMENTAL

3.1. Norma de direito fundamental: Classificação de Pontes de Miranda

a) Normas constitucionais bastantes em si e não bastantes em si

Como vimos anteriormente, a característica material mais acentuada das

normas jurídicas é a força de incidência, através da qual se opera a

transformação do suporte fáctico em fato jurídico.

No século XIX, Thomas Cooley tinha consciência de que a matéria era

importante e propôs classificação das normas constitucionais, baseada na

aplicabilidade. Segundo o célebre jurista norte-americano, elas subdividiam-se

em duas categorias: normas auto-aplicáveis (self-executing provisions, self-

enforcing) e normas não auto-aplicáveis (not self-executing, not self enforcing).

Rui Barbosa foi um dos grandes divulgadores dessa doutrina em nosso país16

.

Pontes de Miranda percebeu que a classificação de Cooley pecava por

tomar como ponto de partida a aplicabilidade e não a incidência. A incidência é

elemento essencial, indispensável, imprescindível à criação do fato jurídico.

Depois da incidência é que se pode cogitar a aplicabilidade, ou seja, a

possibilidade de se invocar autoridade estatal para aplicar a norma que incidiu. A

aplicabilidade pode ser simultânea ou posterior, mas jamais pode anteceder a

15

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 226. 16

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998, p.

73.

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8

incidência da norma17

. Por isso o jurista alagoano preferiu chamá-las regras

jurídicas bastantes em si e regras jurídicas não-bastantes em si. Aquelas

estariam aptas a incidir a partir de sua vigência; estas dependeriam de regras

jurídicas de regulamentação para incidirem e, posteriormente, serem aplicadas18

.

A dicotomia regras jurídicas bastantes e não-bastantes em si é de grande

importância para a análise dos direitos fundamentais. Embora existam outras

classificações que buscam explicar a aplicabilidade das normas constitucionais, a

proposta de Pontes de Miranda continua atual e cientificamente correta. Um dos

grandes desafios da hermenêutica constitucional consiste na distinção entre as

normas que estão aptas a incidir e as que dependem de regulamentação

infraconstitucional para atuar como elemento criador do fato jurídico.

b) Normas constitucionais programáticas

A discussão ainda comporta uma questão: qual a natureza normas

programáticas? As normas programáticas são proposições que impõem ao

Estado, em sua atividade legislativa e administrativa, o dever de perseguir

determinados fins, objetivos, diretrizes e caminhos. São dotadas de estrutura

lógica completa, pois possuem suporte fáctico, preceito e, até mesmo, força de

incidência - ainda que dependa de norma infraconstitucional para atuar.

As normas programáticas são cogentes porque vinculam o poder público

ao dever de perseguir os objetivos considerados essenciais ao fortalecimento do

Estado Democrático de Direito. Os deveres estatais consistem quase sempre em

obrigações normativas ou administrativas. Assim, a constitucionalidade das leis e

a validade das ações governamentais estão condicionadas à observância das

diretrizes e objetivos expressos nas normas programáticas.

Também chamadas normas-fins ou normas tarefas pela doutrina

estrangeira, elas manifestam-se como normas bastantes em si: adquirem força de

incidência e coercibilidade no momento de sua promulgação, vinculam a atuação

dos poderes públicos e invalidam os atos jurídicos que lhes forem incompatíveis.

São normas impositivas que não necessitam de legislação reguladora para que

possam atuar. Incidem sempre que o Estado se afastar das diretrizes traçadas pela

Constituição, punindo a violação com a sanção de inconstitucionalidade.

As normas programáticas não são meros aforismos políticos, exortações

retóricas, apelos sentimentais, promessas vazias, boas intenções ou expectativas

de realização dos programas. Elas prescrevem deveres estatais que se

consubstanciam pela intervenção dos órgãos legiferantes ou pela atividade

concretizadora da administração pública e da jurisdição. Os órgãos estatais

devem direcionar suas ações para a realização dos programas constitucionais.

Quando se tratar de programas diretamente relacionados com a efetividade dos

direitos fundamentais, tais normas serão sempre dotadas de impositividade e

justificam a propositura de mandado de injunção ou ação de

17

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 41. 18

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 126.

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inconstitucionalidade por omissão. Da mesma forma, serão desconstituídos por

inconstitucionalidade os atos administrativos, normativos e judiciais que se

distanciarem das diretrizes fixadas nas normas programáticas.

Os magistrados também podem decretar a inconstitucionalidade

incidental de norma jurídica que violar os programas prescritos na Constituição.

Nesse aspecto, Canotilho é contundente: “Além de constituírem princípios e

regras definidoras de diretrizes para o legislador e a administração, as normas

programáticas vinculam também os tribunais, pois os juízes têm acesso à

constituição, com o conseqüente dever de aplicar as normas em referência (por

mais geral e indeterminado que seja o seu conteúdo) e de suscitar o incidente de

inconstitucionalidade, nos feitos submetidos a julgamento (cfr. CRP, art. 204º),

dos atos normativos contrários às mesmas normas19

”.

3.2. Subjetividade e insubjetividade dos direitos humanos fundamentais

A norma jurídica constitucional ou supra-estatal é condição sine qua non

para os direitos humanos fundamentais. A norma jurídica é meio para a

realização do direito como processo de adaptação social. Só ela é capaz de criar o

fenômeno jurídico. Sem ela não se pode falar de direitos fundamentais, mas de

aspirações sociais, valores éticos, aforismos ou meros interesses individuais.

O direito objetivo antecede e define o fato jurídico. A norma jurídica tem

a função de incidir sobre o suporte fático suficiente. Antes da incidência não há

subjetivação. Só após o nascimento do fato jurídico é que se pode falar em direito

subjetivo, pretensão ou ação, entre outras categorias eficaciais. Portanto, a norma

constitucional ou supra-estatal são definidoras dos direitos fundamentais.

Na Constituição brasileira, os direitos fundamentais estão previstos em

duas classes normativas: (a) normas conferidoras de direitos subjetivos

fundamentais e (b) normas não conferidoras de direitos subjetivos

fundamentais.

a) Normas conferidoras de direitos subjetivos fundamentais

Os direitos fundamentais subjetivos são efeitos de fatos jurídicos.

Portanto, pressupõem a incidência da norma constitucional sobre o suporte

fáctico. Toda vantagem atribuída a alguém, em conseqüência desse fenômeno, é

direito subjetivo20

. Nas relações jurídicas, o sujeito de direito é o titular da

vantagem; o sujeito passivo é o devedor em sentido amplo.

O direito subjetivo sempre tem como conteúdo um poder: poder de

exigir do devedor o atendimento do dever, prestação ou obrigação previstos na

norma jurídica; e poder de autodeterminação (faculdade de agir) para a

satisfação de interesses. A posição de titular da vantagem caracteriza o direito

19

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,

2003, p. 1.180. 20

MIRANDA, Pontes de. Tratado das Ações, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p.30.

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10

subjetivo e marca a atividade nas relações jurídicas. A posição de devedor da

obrigação ou da prestação traduz a passividade.

Nas relações jurídicas, a posição de vantagem é categoria eficacial que

supõe fato jurídico cujo efeito acarreta um “benefício” ao sujeito de direito em

relação a determinado bem da vida. A idéia de vantagem refere-se ao efeito

jurídico de assegurar ao titular o poder de autodeterminação para satisfação de

interesses subjetivos ou o poder de exigir do devedor o cumprimento de seus

deveres e obrigações. O direito subjetivo consiste no acréscimo de algo à esfera

jurídica do titular em decorrência da incidência da norma jurídica sobre o suporte

fático.

O direito subjetivo fundamental é a situação em que se encontra

determinada pessoa que detém o poder de exigir do Estado e de particulares o

cumprimento de um dever ou de uma prestação, sob pena de sanções previstas no

texto constitucional e na legislação ordinária. Ressalte-se que o seu objeto não é

a prestação em si, mas o poder de exigir o seu cumprimento. É também o poder

de autodeterminação individual, isto é, o poder de fazer ou não fazer – dentro dos

limites da lei – sem qualquer intervenção estatal.

A todo direito fundamental subjetivo corresponde um dever a ser

suportado pelo Estado, sociedade, pessoas físicas ou jurídicas (princípio da

correlatividade dos direitos e deveres). Grosso modo, o direito subjetivo limita a

atuação do sujeito passivo. A passividade caracteriza-se pela existência de dever

destinado à satisfação do direito subjetivo. O descumprimento da prestação ou da

obrigação tem como conseqüência a reparação do dano, caducidade, invalidade

do ato e outras sanções previstas em lei.

Direito subjetivo público é aquele em que um dos sujeitos da relação

jurídica é o Estado, que atua na condição de pessoa jurídica de direito público.

Os direitos humanos fundamentais se enquadram nessa categoria eficacial,

porque o indivíduo é detentor do poder de exigir do Estado a obrigação de não-

ingerência em sua esfera de liberdade ou o cumprimento de uma prestação. O

Estado também pode ter direito subjetivo público frente aos particulares. Nessa

situação, o indivíduo é obrigado a alguma prestação21

. Exemplo disso, é o dever

fundamental de pagar tributos como forma de assegurar à Administração os

recursos necessários aos programas sociais ou serviços públicos de boa

qualidade.

Por outro lado, as posições subjetivas ativas referem-se a pessoas

individualmente consideradas (princípio da individualidade dos direitos). Elas

são as legítimas titulares de direitos subjetivos fundamentais. Existem

circunstâncias em que o exercício de direitos subjetivos só é possível na

dimensão coletiva. A liberdade de reunião, a liberdade de associação, a liberdade

de expressão e a liberdade de religião são exemplos disso. Embora sejam

vantagens individuais decorrentes da norma constitucional, o titular só pode

exercitá-las em grupo. Não se pode falar em reunião ou associação de uma só

21

AFTALIÓN, Enrique R. VILANOVA, José. RAFFO, Julio. Introducción al Derecho. Buenos Ayres:

LexisNexis Abeledo-Perrot, 2004, p. 521.

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pessoa. Tampouco de religião professada por apenas um fiel. Mas isso não

significa a existência de uma titularidade coletiva. Ao contrário. Isoladamente,

cada indivíduo é titular desses direitos, é beneficiário das vantagens previstas nas

normas jurídicas. Mas só pode fruí-las em grupo, ao lado de seus semelhantes.

Mesmo nos chamados direitos transindividuais, o que se vê são sujeitos

plurais do mesmo direito e não titulares de direitos distintos. Em muitas

situações, os direitos do meio ambiente, consumidor, crianças, adolescentes,

idosos, portadores de necessidades especiais, etc., são direitos que só podem ser

exercidos coletivamente, embora a titularidade pertença a homens individuais.

Por força de lei, instituições como o Ministério Público, associações e sindicatos

estão legitimadas para o exercício de pretensões e ações na condição de

representantes dos titulares de direitos difusos e coletivos22

. A representação foi o

meio encontrado pela técnica jurídica para viabilizar a tutela judicial de direitos

difusos e coletivos. Com isso, as ações civis públicas transformaram-se em

poderosos instrumentos de defesa da cidadania. A eficácia erga omnes de suas

sentenças beneficia milhares de sujeitos de direitos, assegurando-lhes o gozo dos

benefícios legais.

A chamada transindividualidade implica a existência de direitos

subjetivos. Isoladamente, cada pessoa é titular da vantagem. O elemento coletivo

só aparece no exercício da pretensão ou da ação. Todo indivíduo é titular do

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF, art. 225). Mas há

situações em que, sozinho, não pode exigir do Estado o cumprimento do dever de

preservar o bem protegido. Isto porque a lei condiciona o exercício da pretensão

e da ação à dimensão coletiva em que a pluralidade de sujeitos atua para

satisfazer o direito. Por força da Lei 7.347/85, o Ministério Público é um dos

legitimados para representar os titulares de tal direito subjetivo nas ações civis

públicas. Nessa hipótese, o sistema jurídico confiou a uma instituição

democrática de grande prestígio nacional a tarefa de representar a comunidade na

defesa de direitos ambientais e ecológicos inerentes a cada habitante do Planeta.

Conclusão: o direito subjetivo fundamental (1) pressupõe norma

constitucional ou supra-estatal; (2) a incidência da norma sobre o suporte fático;

(3) o nascimento do fato jurídico. (4) É produto do fato jurídico; (5) implica

correlação entre direito e dever; (6) limita a esfera do sujeito passivo pela

imposição de deveres e obrigações; (7) tem como conteúdo poder de

autodeterminação ou poder de exigir; (8) consiste em vantagem atribuída ao

sujeito de direito em razão da incidência de norma constitucional ou supra-estatal

sobre o suporte fáctico.

b) Normas não conferidoras de direitos subjetivos fundamentais

Na Constituição Federal também é possível identificar normas que

prescrevem deveres sem atribuir posições de vantagem. Significa dizer que o 22

Sobre esse aspecto, cf. Pontes de Miranda, “se a outrem se dá, por lei ou por ato jurídico, exercer

direito, pretensão, ação ou exceção, ocorre a representação legal ou voluntária” (Tratado das Ações,

tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 73).

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indivíduo não é titular de direito subjetivo, pretensão ou ação relativa ao dever. A

obrigação existe. Quase sempre recai sobre o Estado. Também pode ser imposta

à sociedade, à família ou a todos. Mas o sistema jurídico não atribui à pessoa

posição subjetiva ativa para exigir o seu cumprimento. Isso impede a

individualização da pretensão pela pessoa que, direta ou indiretamente, seria

beneficiária da vantagem. Nem por isso o direito deixa de existir. O direito

existe, mas não se subjetiva. Permanece nos domínios do direito objetivo23

.

As garantias institucionais, por exemplo, atribuem ao Estado o dever de

legislar para proteger instituições ou institutos considerados essenciais à

dignidade humana ou à estrutura sócio-política do país. Contudo, as normas

constitucionais de criação não conferem ao indivíduo o direito de subjetivo de

exigir o cumprimento da obrigação estatal.

A insubjetivação também pode ser encontrada nos direitos fundamentais

relativos. Por exemplo, os direitos do consumidor, crianças, adolescentes e

idosos são organizáveis pelo Estado. As normas constitucionais impõem ao

legislador o dever estatal de editar leis que lhes assegurem direitos subjetivos de

proteção. Entretanto, nenhuma das pessoas incluídas nessas categorias é sujeito

de direito para exigir o cumprimento do dever estatal: o direito fundamental

existe mas não se subjetiva.

As pretensões insubjetivadas são acionáveis. Existem remédios jurídicos

processuais como a ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, ação

de descumprimento de preceito fundamental e ação de inconstitucionalidade por

omissão, que, de uma forma ou de outra, visam a compelir o Estado a cumprir o

que determina a norma constitucional no que se refere ao exercício dos direitos

fundamentais. Os legitimados para a propositura dessas ações não almejam a

satisfação de interesses individuais, mas a realização do direito objetivo.

3.3. Tipologia das normas de direitos fundamentais

a) Fundamentalidade formal e material

Os direitos fundamentais estão previstos em normas constitucionais ou

supra-estatais. No primeiro caso são chamados direitos formalmente

fundamentais; no segundo, direitos materialmente fundamentais.

Os direitos materialmente fundamentais têm seu fundamento de

existência no direito das gentes. Isto é, existem independente de

constitucionalização. Esta nada mais é que a execução do dever estatal de

positivá-los garanti-los no sistema jurídico nacional. Mesmo que estejam fora do

catálogo, não perdem sua fundamentalidade, dada a sua essência supra-estatal.

b) Direitos fundamentais concentrados e dispersos

Com relação à organização normativa no texto constitucional, os direitos

fundamentais podem ser subdivididos em concentrados e dispersos. São 23

Cf. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 135.

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concentrados quando as normas assecuratórias estão dispostas em um catálogo

de direitos fundamentais, a exemplo do que acontece no Título II da Constituição

Federal.

Também é possível identificar os direitos dispersos que são direitos

fundamentais formalmente constitucionais mas fora do catálogo, que se espraiam

por todo texto constitucional. A dispersão caracteriza opção técnico-legislativa

do constituinte brasileiro. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito

fundamental supra-estatal por força da Convenção de Estocolmo (1972) e da

Carta do Rio de Janeiro (1992). Acontece que a Constituição Federal não o

inseriu em nenhum dos capítulos do Título II – Dos Direitos e Garantias

Fundamentais. Sua condição de direito fundamental decorre da ordem jurídica

supra-estatal, superior e preexistente ao direito interno.

Outro aspecto curioso de disposição normativa no texto constitucional

refere-se aos direitos sociais. O Capítulo II do referido Título trata Dos Direitos

Sociais. Como visto, o art. 6º estabelece seu conteúdo, agrupando todos os

direitos que o integram. Ocorre, porém, que os demais artigos do Capítulo apenas

asseguram direitos sociais dos trabalhadores ativos e inativos, silenciando sobre

educação, saúde, moradia, lazer, segurança, etc. As normas assecuratórias desses

últimos estão dispersas no texto constitucional, fora do catálogo. Os direitos

sociais remanescentes foram dispostos nos diversos capítulos do Título VIII

(Ordem Social). O fato de estarem fora do catálogo não exclui sua condição de

direitos fundamentais.

4. DIREITOS FUNDAMENTAIS ESTATAIS E SUPRA-ESTATAIS

Nas constituições contemporâneas, os direitos fundamentais subdividem-

se em estatais e supra-estatais.

4.1. Direitos fundamentais estatais

Os direitos fundamentais estatais são assegurados pela Constituição antes

de serem reconhecidos pelo direito internacional público. São direitos humanos

que refletem valores e princípios que alicerçam a Constituição de determinado

país. Sua positivação pelo direito interno sempre antecede a inserção em tratados

internacionais – o que nem sempre acontece. A existência de tais direitos

depende única e exclusivamente da edição de norma constitucional.

Nascem no Estado e são devidos à pessoa humana por força da norma

constitucional e não por imposição de tratados internacionais. São direitos que

atingiram a fundamentalidade em razão da importância que lhes é atribuída pelo

povo de determinado país.

Os direitos fundamentais estatais são extremamente importantes para o

fortalecimento do Estado Democrático de Direito. São verdadeiros termômetros

do estágio evolutivo das nações contemporâneas. Através deles, é possível

verificar o nível de desenvolvimento da liberdade, igualdade, solidariedade e

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democracia nos respectivos ordenamentos jurídicos. Nesse particular, a

Constituição de 1988 trouxe avanços significativos no tocante à

fundamentalização de direitos que ainda não foram positivados pela ordem

supra-estatal.

4.2. Direitos fundamentais supra-estatais

Os direitos fundamentais supra-estatais são provenientes da ordem

jurídica internacional. Estão contidos na Declaração Universal dos Direitos do

Homem (1948), nos pactos que a regulamentaram em 1966 e em outras normas

de direito das gentes. Sua incidência não depende de reconhecimento

constitucional, já que pertencem à ordem jurídica exterior e acima do Estado. Em

relação a eles, o Estado atua como definidor de exceções e clarificador de

conteúdo pela mediação do legislador constituinte ou ordinário.

Além disso, os direitos fundamentais supra-estatais são paradigmas de

validade das normas de direito interno, inclusive das normas constitucionais. Por

estarem contidos em ordem jurídica superior, impõem limites tanto ao poder

estatal quanto ao poder constituinte, que são obrigados a incorporá-los à

Constituição, cercando-os das garantias necessárias à sua efetividade. Nesse

sentido, nenhuma das regras do sistema jurídico nacional pode ser interpretada

ou executada em contradição com a Constituição e com as Declarações de

Direito.

Os direitos fundamentais positivados pelo direito internacional são a

prova viva de que é possível que ideologias distintas, com postulados teóricos

antagônicos e, até mesmo, inconciliáveis, cheguem a um consenso sobre valores

universais, comuns a todos os povos civilizados. O exemplo mais contundente

dessa possibilidade pode ser extraído da Declaração Universal dos Direitos do

Homem. Os países signatários, espalhados por todos os continentes, acordaram

em assegurar e garantir em suas Constituições um conjunto de direitos humanos

básicos, comuns a todas as pessoas. O consenso dos sujeitos de direito

internacional fez da Declaração de 1948 a norma fundamental da ordem supra-

estatal.

No plano internacional, os tratados são auto-suficientes. Entram em vigor

da forma estabelecida em seus textos, antes mesmo de serem recepcionados pelos

países signatários. Em caso de omissão quanto à vigência, aplicam-se os

princípios consuetudinários condensados na Convenção de Viena de 196924

.

Os tratados sobre direitos humanos diferenciam-se dos tratados

tradicionais (bilaterais ou multilaterais) e com eles não devem ser confundidos.

Os tratados tradicionais promovem intercâmbios comerciais, tecnológicos,

24

PEROTTI, Alejandro Daniel. Habilitatión Constitucional para la integración comunitaria – Estudio

sobre los Estados del mercosur, tomo I: Brasil y Paraguay. Montevideo: Universidad Austral e Konrad

Adenauer Stiftung, p. 64.

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políticos, sociais, etc., visando à imposição de obrigações e à fruição de

benefícios mútuos. Já os tratados de direitos humanos regulamentam relações

entre o Estado e o indivíduo ou grupos de indivíduos sob sua jurisdição, bem

como entre Estado e órgãos supra-estatais. Ao estudar a posição da Corte

Interamericana de Direitos Humanos sobre esta matéria, Cynthia González

Feldmann observou que “os modernos tratados sobre direitos humanos, em

particular a Convenção Americana de Direitos Humanos, não são tratados

multilaterais do tipo tradicional, concluídos em função de um intercâmbio

recíproco de direitos para o benefício mútuo dos Estados contratantes25

”. E cita a

Opinião Consultiva OC-2/82, de 24 de setembro de 1982:

“Seu objeto e fim são a proteção dos direitos fundamentais

dos seres humanos, independentemente de sua

nacionalidade, tanto frente ao seu próprio Estado como

frente a outros Estados contratantes. Ao aprovar os tratados

sobre direitos humanos, os Estados se submetem a uma

ordem legal dentro da qual eles, visando o bem comum,

assumem várias obrigações, não com relação a outros

Estados, mas em relação aos indivíduos sob sua proteção”.

Os direitos fundamentais supra-estatais são incorporados ao sistema

jurídico brasileiro na condição de (a) normas constitucionais, (b) leis ordinárias

ou de (c) emendas constitucionais.

a) Constitucionalização dos direitos fundamentais

Quando os Estados subscrevem tratados sobre direitos humanos,

assumem o compromisso de adotá-los e protegê-los em seu ordenamento

jurídico, especialmente nas suas Constituições. A submissão dos Estados à ordem

supra-estatal faz com que os direitos fundamentais sejam declarados e não

criados pelo legislador constituinte. Ao constitucionalizá-los, os Estados

declaram expressamente sua subordinação ao direito internacional, mesmo não

fazendo referência expressa ao tratado que os criou. A normatização

constitucional visa basicamente a tornar executórias as normas de direitos

humanos supra-estatais, cumprindo, assim, o compromisso assumido perante os

países signatários.

Com a constitucionalização, os direitos fundamentais supra-estatais são

assegurados ou garantidos no texto constitucional em normas executivas e

declaratórias. Essa técnica jurídica não exige que o constituinte mencione os

tratados de onde foram retirados tais direitos. Basta que a Constituição os

fundamentalize, assegurando-lhes instrumentos de defesa como o cerne

irrestringível e aplicação imediata além de garantias processuais ou

administrativas capazes de concretizá-los. Nesse particular, a Constituição

brasileira é uma das mais avançadas do mundo.

25

FELDMANN, Cynthia Gozález (comp.). El Paraguay frente al sistema internacional de los derechos

humanos. Montevideo: Fundac Konrad-Adenauer Uruguay, 2004, p. 19.

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16

No Brasil, a Constituição Federal adotou direitos fundamentais

pertencentes às seguintes classes:

direitos fundamentais supra-estatais (mundiais e regionais);

direitos fundamentais estatais;

princípios fundamentais;

garantias institucionais;

garantias fundamentais.

Uma vez constitucionalizados, os direitos fundamentais também

adquirem força vinculante em relação ao Estado, que passa a ter a obrigação de

respeitá-los, garanti-los e efetivá-los em todas ações legislativas, administrativas

e judiciais. Pontes de Miranda sintetiza a amplitude dessa força com a seguinte

observação:

Os direitos fundamentais ou a) se asseguram como

dirigidos aos legisladores, para que se abstenham de fazer

lei que atinja os bens da vida, dos quais o mais precioso é a

liberdade; ou b) aos outros poderes públicos, para que não

os firam, por serem deixados ao regramento legal, e só a

ele; ou c) aos legisladores, para que, ao fazerem as leis, não

extingam institutos ou instituições, ou d) para que sigam

determinado rumo (regras jurídicas programáticas). 26

b) Recepção dos tratados internacionais como leis ordinárias

Em geral, as negociações internacionais preliminares são confiadas pelo

Chefe de Estado a ministros e diplomatas de carreira. Eles são responsáveis pelos

estudos prévios, pela análise das implicações jurídicas e pela constitucionalidade

dos tratados, convenções e outros atos internacionais. Entretanto, a celebração de

tratados é competência exclusiva do Presidente da República, nos termos do art.

84, inciso VIII, da Constituição Federal.

Firmado o tratado, o Presidente da República escolherá o momento

adequado para encaminhá-lo ao Congresso Nacional. Para isso, remete

mensagem, acompanhada de exposição de motivos, para ser apreciada pela

Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, respectivamente (CF, art. 64 e

65). A discussão da matéria começa na Comissão de Relações Exteriores,

continua na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação – a quem cabe

apreciar sua constitucionalidade –, segue para as comissões temáticas da Câmara

dos Deputados e termina em plenário. Enviado ao Senado Federal, o projeto de

decreto legislativo é debatido na Comissão de Relações Exteriores e Defesa

Nacional e no plenário. Em ambas as Casas, o projeto só será aprovado se tiver a

maioria dos votos, exigindo-se a presença da maioria dos parlamentares na

sessão.

26

Miranda, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, Tomo IV. São Paulo: RT, 1967, p. 663.

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17

Obtida a aprovação em cada Casa, o Presidente do Senado Federal

editará decreto legislativo (CF, art. 59, VI), autorizando o Presidente da

República a ratificar o tratado. Tal autorização não obriga o Chefe do Executivo

a fazê-lo. Tampouco assegura vigência ao tratado. Simplesmente permite que ele

o promulgue e publique o decreto presidencial no Diário Oficial da União. Se o

Presidente da República desistir ou se negar a ratificá-lo, o tratado jamais terá

aplicabilidade interna. A ratificação, portanto, é conditio sine qua non de

vigência do tratado no direito interno. O processo estará completo quando for

feito o depósito do ato nos órgãos internacionais competentes.

A ratificação é ato presidencial discricionário e irretratável. É a

manifestação expressa do compromisso estatal de executar em seu território as

normas jurídicas de direito internacional. Com a promulgação, o tratado entra em

vigor e pode ser aplicado em todo o país pelas autoridades judiciais e

administrativas. Sua incorporação no sistema jurídico brasileiro se dá em forma

de lei ordinária, submetendo-se, portanto, a controle de constitucionalidade.

É possível que um tratado aprovado pelo Legislativo não seja ratificado.

A recusa em ratificar tratados integra o poder discricionário do Presidente da

República. Entretanto, a decisão pode ser considerada uma quebra do

compromisso contratual, implicando retaliações políticas. Mas inexistem

instrumentos legais destinados a compeli-lo a promulgar o tratado. O art. 7o da

Convenção de Havana assegura-lhe plena liberdade para decidir sobre a matéria.

In verbis: “[1] a falta de ratificação ou a reserva são atos inerentes à soberania

nacional, e, como tais, constituem o exercício de um direito que não viola

nenhuma disposição ou boa forma internacional. Em caso de negativa, esta será

comunicada aos outros contratantes”.

O Presidente da República não tem poderes para ratificar um tratado que

recebeu parecer contrário do Congresso Nacional. A manifestação favorável do

Legislativo é óbice inafastável para a incorporação de tratados ao ordenamento

jurídico brasileiro através do mecanismo denominado ratificação.

Embora estejam incorporados ao ordenamento jurídico, os tratados ainda

são pouco utilizados na vida forense do nosso país. A práxis judiciária ainda não

assimilou completamente o fato de que eles têm força de lei ordinária e podem

ser invocados perante juízes e tribunais para a solução de conflitos

intersubjetivos de interesses. Da mesma forma que qualquer norma jurídica de

direito interno, são dotados de força de incidência, natureza vinculante e

aplicabilidade. Raramente advogados, promotores de justiça e magistrados

invocam os tratados como fundamento das pretensões deduzidas em juízo. A

maioria pensa que eles só servem para disciplinar as relações internacionais, que

eles estão muito distante da nossa realidade judiciária. Sequer percebem que os

tratados sobre direitos humanos são poderosíssimos escudos contra o arbítrio do

poder estatal e violações à dignidade da pessoa humana. A maneira mais eficaz

para expungir essa deformação intelectual consiste em sensibilizar as novas

gerações de operadores do direito para sua importância na defesa dos direitos

humanos fundamentais em território brasileiro.

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Os direitos humanos supra-estatais passaram a ser incorporados com

mais intensidade nas Constituições a partir da criação da Organização das Nações

Unidas (1945) e da Organização dos Estados Americanos (1948).

Posteriormente, outras organizações regionais, a exemplo da União Européia e

Mercosul, seguiram o exemplo e passaram a exigir de seus membros o

reconhecimento e proteção dos direitos humanos nos respectivos ordenamentos

jurídicos.

Acatando as diretrizes da ONU, o Brasil subscreveu a Declaração

Universal dos Direitos do Homem (1948) e os pactos que a regulamentaram em

1966: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional

dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos ratificados pelo Brasil em

24 de janeiro de1992.

Em 1948, a Organização dos Estados Americanos aprovou, em Bogotá, a

Declaração dos Direitos e Deveres do Homem. Tal texto tem grande importância

histórica, pois foi o primeiro instrumento de direito internacional que assegurou

proteção jurídica às liberdades fundamentais, tendo antecedido, por alguns

meses, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Entretanto, o documento

mais importante produzido pela OEA foi, sem dúvida, a Convenção Americana

de Direitos Humanos (1969), mais conhecida como Pacto de São José da Costa

Rica, uma homenagem à cidade em que foi adotada. Além de proclamar direitos

e garantias fundamentais, a Convenção criou a Corte Interamericana de Direitos

Humanos. Foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.

Os tratados de direitos humanos são atos jurídicos na medida em que

expressam a vontade de sujeitos de direito internacional. O processo legislativo

para a edição de tratados na ordem supra-estatal está previsto em dois

documentos: a Convenção de Havana (1928) e as Convenções de Viena (1969 e

1986). Ainda em vigor, a Convenção de Havana tem o mérito de ter sido o

primeiro instrumento normativo destinado à confecção de tratados internacionais.

Mas foram as Convenções de Viena que deram uma nova dimensão à matéria na

medida em que disciplinaram minuciosamente as fases de elaboração dos

tratados.

Muitos tratados, convenções, pactos e declarações de direitos humanos

foram adotados pelo Brasil. Alguns foram ratificados pelo Presidente da

República e passaram a integrar o ordenamento jurídico. Outros são

compromissos formais que servem de paradigma para a elaboração de normas

constitucionais e ordinárias. A prova disso são as Declarações de Direitos que

deram origem a leis de proteção aos direitos das crianças, adolescentes,

portadores de deficiências, comunidades indígenas e vítimas de todas as formas

de intolerância e discriminação, etc. 27

.

27

Exemplo disso são a Declaração dos direitos da criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20

de novembro de 1959; Declaração sobre princípios sociais e jurídicos relativos à proteção e ao bem-estar das

crianças, com particular referência à colocação em lares de guarda nos planos nacional e internacional, que foi

adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 3 de dezembro de 1986; Declaração sobre a eliminação

de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções, que foi proclamada

pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 25 de novembro de 1981; Declaração sobre raça e os

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19

A ordem jurídica supra-estatal está em permanente evolução. Nos

últimos 50 anos, testemunhamos muitos avanços na proteção aos direitos

humanos. Nesse período, dezenas de tratados foram incorporados aos

ordenamentos jurídicos de países espalhados pelos cinco continentes.

Intervenções humanitárias, inspeções internacionais e outras ações destinadas à

consolidação, expansão, aperfeiçoamento e efetivação dos direitos fundamentais

têm sido implementadas com grande sucesso.

Entretanto, existem muitos obstáculos a serem transpostos. No plano do

direito internacional, o principal objetivo é obter a “ratificação universal” das

chamadas core Conventions das Nações Unidas: os Pactos de 1966, as

Convenções sobre a eliminação de todas as formas de discriminação – racial e

contra a mulher, a Convenção sobre a Tortura e a Convenção sobre os direitos

da criança. Em vários países, esses tratados foram incorporados com tantas

reservas que terminaram descaracterizados28

, privando milhares de seres

humanos do exercício de tão importantes direitos fundamentais.

No plano político, existem muitas metas a serem alcançadas, sobretudo o

real comprometimento estatal de efetivação dos direitos sociais, econômicos e

culturais, mediante políticas públicas capazes de combater a fome, a miséria, o

analfabetismo, a violência, o desemprego e a injustiça social que afetam os

segmentos mais pobres da população mundial.

A crise de efetividade dos direitos fundamentais é um dos maiores

problemas da democracia brasileira. Sua solução depende da vontade política dos

governantes em romper com os velhos paradigmas que aprofundam a

desigualdade social e negam a dignidade humana. É preciso destruir as

carcomidas estruturas de poder que impedem o equilíbrio entre a liberdade,

igualdade e solidariedade na vida nacional. Infelizmente estamos muito longe

desse ideal de evolução civilizatória. O quantum despótico ainda é elevado,

necrosa as relações sociais e impede o desenvolvimento sustentável. O

crescimento da civilidade depende da diminuição dos índices de violência,

corrupção, desigualdade social, intolerância racial e religiosa, impunidade e

exploração da mão-de-obra trabalhadora. Assim como os países em

desenvolvimento, o Brasil tem de combater males como a improbidade

administrativa, a falta de alimentos, o desrespeito ao meio ambiente, a tortura, os

preconceitos raciais, aprovada e proclamada pela Conferência Geral das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura, reunida em Paris em 27 de novembro de 1978; Declaração universal dos direitos dos povos

indígenas (1993); Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura ou outros tratamentos ou

penas cruéis, desumanos ou degradantes, que foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 9 de

dezembro de 1975; Princípios de ética médica aplicáveis à função do pessoal de saúde, especialmente aos

médicos, na proteção de prisioneiros ou detidos contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,

desumanos ou degradantes, que foram adotados pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro

de 1982; Declaração de direitos das pessoas deficientes, aprovada pela Assembléia Geral da Organização das

Nações Unidas em 9 de dezembro de 1975; Declaração sobre os direitos humanos dos indivíduos que não são

nacionais do país em que vivem, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 13 de dezembro de

1985 e a Declaração de Pequim adotada pela 4a Conferência mundial sobre as mulheres: ação para a igualdade,

desenvolvimento e paz, proclamada em 15 de setembro de 1995. 28

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado Trindade. Dilemas e desafios da proteção internacional dos direitos

humanos. Educando para os direitos humanos – Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade.

In: José Geraldo de Souza Júnior et alli (coord.). Porto Alegre: Síntese, 2004.

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20

assassinatos no campo, a subnutrição, o abandono dos meninos de rua, o êxodo

rural e tantos outros problemas que impedem a fruição dos direitos humanos.

c) Recepção constitucional dos tratados internacionais

Em 1998, sustentamos a tese de que o sistema jurídico brasileiro deveria

evoluir para a adoção da técnica de recepção formal da Declaração Universal dos

Direitos do Homem como parte integrante da Constituição Federal. O primeiro

passo havia sido dado pela Espanha e Portugal, que constitucionalizaram o

princípio da interpretação conforme a Declaração Universal e tratados de

direitos humanos29

. Mas essa medida era insuficiente. Não bastava interpretar as

normas do sistema jurídico estatal em harmonia com os direitos supra-estatais

revelados por tratados internacionais. Nossa idéia era mais ousada. O propósito

era recepcionar a Declaração Universal dos Direitos do Homem na condição de

emenda constitucional, dar-lhe aplicabilidade imediata e inseri-la no cerne

irrestringível30

.

A lacuna até então existente representava um verdadeiro atraso que

precisava ser corrigido urgentemente pela técnica da recepção formal. Tal

medida representaria um importante salto evolutivo na proteção dos direitos

humanos no Brasil. Foi o que aconteceu anos depois com a Reforma do

Judiciário – EC 45/2004 –, que introduziu o parágrafo 3o no art. 5

o com a

seguinte redação:

§ 3o Os tratados e convenções internacionais sobre direitos

humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso

Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos

respectivos membros, serão equivalentes às emendas

constitucionais.

Tal norma abriu a possibilidade de recepção constitucional de tratados

internacionais sobre direitos humanos mediante processo legislativo especial. Em

primeiro lugar, é preciso que a matéria seja discutida e aprovada em dois turnos

pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Em ambos os turnos a

aprovação deverá ter o quorum qualificado de 3/5 dos membros de cada Casa do

Congresso Nacional.

Embora a matéria ainda não esteja regulamentada por decreto legislativo,

é certo que a promulgação será feita pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do

Senado Federal, a exemplo do que acontece com as emendas constitucionais. A

publicação no Diário Oficial da União ficará a cargo do Congresso Nacional. A

partir daí, o tratado sobre direitos humanos integrará a Constituição brasileira,

vinculando o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e particulares aos seus

comandos.

29

Art. 16, n.2 da Constituição de Portugal e art. 10.2 da Constituição da Espanha. 30

Cf. SARMENTO, George. Direitos fundamentais supra-estatais: paradigma de validade das normas

constitucionais. Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, v. 1, n. 1, Recife, OAB/PE, 1997, p.

241.

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21

A inovação constitucional trazida pela chamada Reforma do Judiciário

não deve ser banalizada. A votação em dois turnos e o quorum de 3/5 são

técnicas destinadas a evitar o ingresso indiscriminado de tratados internacionais

na Constituição Federal. Defendemos vivamente a idéia de que apenas a

Declaração Universal dos Direitos do Homem deve ser recepcionada pela

Constituição Federal. Seria o reconhecimento do povo brasileiro de que ela é a

norma fundamental dos direitos humanos supra-estatais. Os demais tratados

continuariam integrados ao nosso ordenamento jurídico através das técnicas já

analisadas (constitucionalização, ratificação, compromissos legislativos e

governamentais).

A Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma norma pré-

constitucional oponível ao poder constituinte? No direito internacional há muita

controvérsia sobre essa questão.

Alguns autores entendem que ela é apenas um texto de conteúdo

filosófico, moral e programático. Outros sustentam que ela tem natureza cogente

e supra-constitucional. A doutrina francesa afirma que ela enuncia tão-somente

princípios gerais destinados a orientar os legisladores, não podendo ser

considerada norma positiva31

. A Declaração Universal seria desprovida de

cogência porque formalmente trata-se de Resolução da Assembléia Geral das

Nações Unidas (art. 13, I da Carta da ONU), possuindo apenas força de

recomendação aos constituintes para que respeitem os direitos humanos e as

liberdades fundamentais. Para Jean Roche e André Pouille, a Declaração não tem

nenhum valor em si mesma, já que os direitos por ela consagrados só podem ser

aplicados quando ratificados por pactos32

.

Posição contrária é defendida por Jorge Miranda, para quem a

Declaração Universal projeta-se não só sobre os Estados-membros da ONU, mas

também sobre os demais países. Isto porque os princípios nela contidos

representam o mais alto grau de respeito à pessoa humana a que chegou o mundo

civilizado33

. Para o constitucionalista português, tais princípios estão em franco

processo de difusão em vários níveis do direito internacional, a exemplo das

Nações Unidas (pactos de 1966 e convenções sobre problemas setoriais), das

organizações especializadas da ONU (OIT, UNESCO, etc.) e das organizações

regionais (Convenção Européia dos Direitos do Homem, de 1950, a Convenção

Interamericana, de 1969 e Carta Africana, de 1981, entre outras)34

. Recentemente

foi votado em alguns países o tratado que estabelece a Constituição para a

Europa, contendo uma ampla Carta de Direitos Fundamentais35

.

31

Autores franceses que sustentam essa tese: Claude Leclerc, François Luchaire, Jacques Robert, Patrick

Wachsmann e Dominique Turpin. 32

Libertés Publiques. Paris: Mementos Dalloz, 1990, p. 21. 33

MIRANDA, Jorge. A recepção da Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Constituição

Portuguesa – Um fenômeno de conjugação de direito internacional e direito constitucional. Revista de Direito

Administrativo, 199:1-2, Rio de Janeiro, 1992, pp. 10-11. 34

Entre os autores nacionais e estrangeiros que defendem a cogência da Declaração Universal dos Direitos do

Homem estão, Pontes de Miranda, Sefton de Azevedo, Jorge Miranda, Genaro Carrió e Norberto Bobbio. 35

La Convention Européenne. Projet de Traité établissant une Constitution pour l’Europe. Luxembourg:

Communautés européennes, 2003.

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22

Sob a ótica estritamente dogmática, a Declaração Universal não pode ser

considerada um tratado. Entretanto sua cogência tem sido reconhecida pela

jurisprudência dos Estados que integram a ONU e também pelo direito

costumeiro internacional. Além disso, é considerada pela doutrina majoritária a

norma fundante dos direitos humanos supra-estatais. Isto explica por que ela

encabeça a Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of

Rigths), seguida dos Pactos de 1966.

O Brasil assinou a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 10

de dezembro de 1948. Nunca houve ato de ratificação, a exemplo do que

acontece com os tratados. Também não era necessário. Embora a discussão sobre

sua cogência em nosso ordenamento jurídico nunca tenha sido levantada –

mesmo durante a ditadura militar de 1964 –, a melhor solução técnica para

expressar o reconhecimento de que ela é norma fundamental, positiva, vinculante

e cogente é, sem dúvida, sua recepção formal pela Constituição Federal, nos

termos do § 3o do art. 5º. Na prática, a Constituição Federal a recepcionaria como

tratado. Tal medida acabaria de vez com a polêmica e fortaleceria o sistema de

proteção constitucional aos direitos humanos supra-estatais.

Não concordamos com o posicionamento de importantes doutrinadores

que sustentam a tese de que todos os tratados internacionais de direitos humanos

ratificados pelo Brasil têm dignidade constitucional em razão do disposto no art.

5o, § 2

o da CF. Para eles, a ratificação operaria a incorporação automática com o

status de norma constitucional36

. Como já sustentamos anteriormente, tais

direitos nascem na ordem jurídica supra-estatal, propagando-se posteriormente

para o direito interno. Existem, independentemente do reconhecimento e

proteção nacional. Sua condição de direitos fundamentais não está vinculada à

incorporação constitucional ou legislativa. Cabe à técnica jurídica conceber os

mecanismos mais adequados para recepcionar os direitos fundamentais supra-

estais no ordenamento jurídico brasileiro. O importante é que os países

signatários cumpram os compromissos assumidos e os integrem aos respectivos

ordenamentos jurídicos da maneira que lhes for mais conveniente: normas

constitucionais (CF, art. 5o, § 3

o), leis ordinárias (CF, art. 102, III, b) ou políticas

públicas.

Aliás, o compromisso de submissão aos tratados internacionais sobre

direitos humanos tem base constitucional. Em primeiro lugar porque a

prevalência dos direitos humanos é um dos princípios que orientam o Brasil nas

relações internacionais (CF, art. 4o, II). Em segundo lugar porque o catálogo de

direitos fundamentais contido na Constituição Federal não é exaustivo e

excludente. O § 2o assegura a incorporação no ordenamento jurídico pátrio de

outros direitos advindos de tratados internacionais de que o Brasil seja um dos

signatários. Ao contrário do que sustenta a mencionada corrente doutrinária, tal

norma não lhes assegura hierarquia constitucional. Tão-somente declara sua

supra-estatalidade e reafirma o compromisso de assegurar e garantir os direitos

humanos neles contidos.

36

Entre eles Flávia Piovesan. Cf. Direitos humanos e direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max

Limonad, 1996, pp. 317-318.

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23

5. DIREITOS FUNDAMENTAIS ABSOLUTOS E RELATIVOS

Na Constituição Federal encontramos duas categorias de direitos: os

direitos fundamentais e os direitos não fundamentais. A técnica legislativa ainda

não conseguiu separá-los com precisão, o que tem criado alguns embaraços

hermenêuticos.

Os direitos fundamentais formam a coluna vertebral da Constituição. Por

isso são cercados de instrumentos de proteção como aplicabilidade imediata,

inclusão no cerne irrestringível, força vinculante e garantias processuais capazes

de torná-los efetivos. Sua inclusão no texto constitucional decorre da obrigação

estatal de declarar e executar as normas supra-estais ou internacionais, bem como

de positivar princípios superiores vigentes no direito interno.

Ao estudar a Constituição de Weimar, Kurt Häntzschel identificou duas

classes de direitos: os direitos fundamentais absolutos e os direitos fundamentais

relativos. Os primeiros eram anteriores e superiores ao Estado, cabendo à lei

excepcionalmente impor-lhes limitações. Os segundos tinham o seu conteúdo e

limites fixados pela norma estatal.

Carl Schmitt sustentava que os autênticos direitos fundamentais eram os

absolutos – os direitos do homem individual. Para o constitucionalista alemão,

tais direitos justificavam-se pelo princípio da distribuição do estado burguês de

direito: de um lado uma esfera de liberdade ilimitada (em princípio); do outro, a

possibilidade de ingerência do Estado, sujeita a limites, controle e medições. Em

outras palavras, a liberdade era a regra e a ingerência, a exceção37

.

Os direitos relativos não teriam a mesma intensidade por serem produto

do direito estatal, portanto passíveis de revogação. Essa posição encontra-se

totalmente superada em razão do crescente processo de internacionalização dos

direitos humanos, sobretudo os sociais, econômicos, culturais, difusos e

coletivos. O fato de serem organizados pelo direito estatal não lhes tira a

fundamentalidade nem os torna menos importantes que as liberdades públicas.

Entretanto, a dualidade direitos fundamentais absolutos (§1) e relativos

(§2) ainda é importante como formulação teórica. É o que veremos a seguir.

5.1. Direitos fundamentais absolutos

Os direitos fundamentais absolutos são aqueles que se erguem sobre o

Estado por força de tratados, cabendo a lei estabelecer os limites de sua

incidência. O Estado atua como “definidor de exceções”. Para que não percam

sua essência, o Estado só tem legitimidade para restringi-los dentro das fronteiras

permitidas pelo direito internacional. Nesse grupo estão os direitos supra-

estatais, provenientes de ordem jurídica superior e preexistente ao direito interno.

A liberdade de expressão, a liberdade de locomoção, a liberdade reunião, o

37

SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Universidad Textos, 1992, pp. 170-172.

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24

direito à intimidade, à imagem e à vida privada são alguns exemplos dessa

categoria.

Podemos expressar os direitos fundamentais absolutos pela seguinte

fórmula:

DFAb = supra-estatalidade + incorporação ao ordenamento38

.

Na Constituição Federal, a presunção de inocência está expressa com a

seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado

de sentença penal condenatória”. Trata-se de direito fundamental supra-estatal

previsto no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art. 8.2 da

Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa

Rica, entre outros tratados internacionais. Como seu fundamento de existência

encontra-se em ordem jurídica anterior e superior à ordem estatal, a norma

constitucional não o criou. Ou seja, apenas executou o compromisso de positivá-

lo no ordenamento jurídico nacional. Mesmo que isso não acontecesse, a

presunção de inocência continuaria a existir como direito fundamental, podendo

ser aplicada pelos juízes brasileiros.

Em síntese, os direitos fundamentais absolutos não são produto da norma

constitucional. Sua origem transcende a ordem jurídica nacional e se impõe

inexoravelmente a ela. A positivação nas Constituições constitui suporte fático

nuclear da própria criação do Estado Democrático de Direito. São direitos que

vinculam o poder constituinte a declará-los, executá-los e protegê-los na Lei

Fundamental. Entretanto o Estado pode impor limitações legais ao seu exercício

desde que não afete o seu conteúdo essencial.

5.2. Direitos fundamentais relativos

Vimos que os direitos absolutos nascem na ordem jurídica supra-estatal e

vinculam os países à obrigação de reconhecê-los e protegê-los em suas

Constituições. Já os direitos relativos tem como principal característica a

organizabilidade pelo direito interno, não importando se eles são estatais ou

supra-estatais.

Pontes de Miranda demonstrou que o que caracteriza os direitos relativos

não é sua origem, mas o dever estatal de organizá-los na legislação ordinária. Em

suas palavras, são direitos que existem conforme a lei os organizar. Muitas vezes

a ordem jurídica supra-estatal (mundial ou regional) impõe aos países signatários

de tratados a obrigação de produzir leis destinadas a organizar o exercício de

determinados direitos fundamentais. O mesmo pode acontecer com a

Constituição ao eleger como fundamentais determinados direitos estatais.

Vários direitos fundamentais relativos podem ser encontrados na

Constituição de 1988. Todos são organizáveis pela lei brasileira e não impostos

pela ordem supra-estatal. A Constituição, por exemplo, assegurou os direitos

autorais e a transmissão hereditária pelo tempo que a lei fixar (art. 5o, XXXVII).

38

Incorporação no ordenamento = constitucionalização, ratificação ou recepção constitucional.

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25

O mesmo acontece com a desapropriação por necessidade ou utilidade pública

(CF, art. 5o, XXIV), a impenhorabilidade da pequena propriedade rural (CF, art.

5o, XXVI), a defesa do consumidor (CF, art. 5º XXXII), a proteção aos idosos

(CF, art. 229) e portadores de deficiência ( CF, arts. 7º, XXI, 23, II, 24, XIV) –

todos organizáveis por leis ordinárias.

6. DIREITOS FUNDAMENTAIS ASSEGURADOS

Os direitos fundamentais são assegurados quando a norma constitucional

atribui sanções cíveis, penais ou administrativas para os atos ilícitos que os

violarem. Podemos defini-los pela seguinte fórmula:

DFA = constitucionalização + sanção.

Explicamos. Assegurados são direitos fundamentais estatais ou supra-

estatais que foram constitucionalizados na ordem jurídica interna com atribuição

de penas para atos de violação. As normas constitucionais assecuratórias

estabelecem sanções determinadas ou indeterminadas aos autores de atos

jurídicos contrários a direito (= infração às normas de direitos fundamentais).

De forma geral, as normas constitucionais assecuratórias de direitos

fundamentais são cogentes, isto é, proíbem ou impõem determinada conduta.

Para Pontes de Miranda, “proibir, em direito, é atribuir a alguém direito,

pretensão, ação, exceção para que se proíba; impor, em direito, é atribuir a

alguém direito, pretensão, ação, exceção para que se imponha39

”. Dessa forma, a

cogência dos direitos fundamentais está na obrigatoriedade da conduta e também

na incondicionalidade da incidência da norma constitucional para atribuir ao

autor do ato ilícito efeitos jurídicos contrários aos seus interesses.

Alguns exemplos de normas cogentes de direitos fundamentais: (a) “não

será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (CF,

art. 5º, LII)”; (b) “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o

devido processo legal (CF, art. 5º, LIV)”; (c) “são inadmissíveis, no processo, as

provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, LVI)”. Significa dizer que as

normas constitucionais incidem para proibir conduta do Estado, impondo-lhe

obrigação de não fazer. São, portanto, normas cogentes proibitivas.

Por outro lado, existem normas assecuratórias que vinculam o Estado a

prestações positivas, verdadeira obrigações de fazer. Daí serem chamadas

normas cogentes impositivas: “é assegurada, na forma da lei, a prestação de

assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (CF,

art. 5º, VII)”; (e) “às presidiárias são asseguradas condições para que possam

permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (CF, art. 5º, L)”;

(f) “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que

comprovarem insuficiência de recursos (CF, art. 5º, LXXIV)”;

Portanto, a violação de normas cogentes tem como conseqüência a

imposição de medidas desvantajosas para o responsável pelo ato ilícito. As

39

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo I. Campinas: Bookseller, 1999, p. 117.

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26

sanções cíveis, penais ou administrativas surgem como uma resposta do sistema

jurídico aos atos contrários ao direito. São punições impostas pelo sistema

jurídico aos responsáveis por infração à lei.

6.1. Classificação dos atos ilícitos na teoria de Marcos Bernardes de Mello

Em importante estudo sobre o tema, Marcos Bernardes de Mello

demonstra que, no tocante à eficácia jurídica, os atos ilícitos podem ser

indenizativos (a), caducificantes (b) e invalidantes (C). Indenizativos são os atos

ilícitos que têm como efeito o dever de indenizar os danos causados pelo agente.

Os caducificantes implicam a perda ou suspensão de direitos na sua forma mais

ampla. Os invalidantes, por fim, são os que têm como conseqüência a invalidade

– nulidade ou anulabilidade40

.

a) Sanções indenizativas

Os atentados contra a vida privada, a imagem ou a intimidade que

acarretem danos morais a pessoas físicas ou jurídicas são indenizáveis por força

do art. 5º, X, da CF. O inciso LXXV do mesmo artigo impõe ao Estado o dever

de indenizar ao condenado por erro judiciário assim como o que ficar preso além

do tempo fixado na sentença. Tomando como base a formulação teórica acima

exposta, podemos dizer que ambas as normas constitucionais impõem ao autor

das violações aos mencionados direitos fundamentais o dever de indenizar as

vítimas pelos danos causados. Nessas situações, a norma constitucional atribui

sanções pecuniárias (indenizativas) a serem pagas pelo Estado ou por particulares

em razão da prática de ato ilícito.

b) Sanções caducificantes

O agente público que pratica improbidade administrativa no exercício da

função, importando enriquecimento ilícito, prejuízos ao erário ou violação aos

princípios da administração pública está sujeito às seguintes penas: perda de bens

e valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano,

perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa

civil, proibição de contratar com o poder público e proibição de receber

incentivos fiscais e creditícios. Com exceção do ressarcimento do dano, todas as

sanções previstas na Lei 8.429/92 têm natureza caducificante, pois implicam a

perda de direitos políticos, civis e patrimoniais do agente público ímprobo. Tais

sanções decorrem da regulamentação do parágrafo 4º do art. 37 da Constituição

Federal, que assegurou o direito fundamental supra-estatal à probidade

administrativa e à proteção do patrimônio público, executando assim as

exigências contidas na Convenção da OCDE para o combate ao suborno dos

40

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 249.

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27

funcionários públicos estrangeiros nas transações comerciais internacionais

(1993) e na Convenção Interamericana contra a corrupção (1996).

Podemos incluir os crimes como atos ilícitos caducificantes na medida

em que as sanções previstas nas leis penais implicam a perda de direitos como a

liberdade (reclusão, detenção), a suspensão de direitos políticos, perda de cargos

públicos e, até mesmo, efeitos patrimoniais como o pagamento de multas ou

expropriação de bens.

c) Sanções invalidantes

Por fim, a violação de direitos fundamentais assegurados pode ter como

conseqüência a inconstitucionalidade (invalidade) do ato jurídico. Por exemplo, o

art. 5º, LXXIII, estabelece a sanção de nulidade de todo ato jurídico lesivo ao

patrimônio público ou entidade de que o Estado participe, à moralidade

administrativa, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural. Dessa

forma, qualquer cidadão está legitimado para propor ação popular objetivando a

decretação da nulidade por infração à Constituição de todo ato administrativo

lesivo a esses bens da vida , impedindo que o responsável atinja os objetivos

almejados.

A sanção de invalidade surge como efeito do ato contrário a direito,

inclusive a violação a direitos fundamentais. Tal raciocínio se aplica também às

leis e atos normativos. Se a edição das espécies normativas implica infração à

norma constitucional assecuratória, o ordenamento jurídico impõe a sanção de

inconstitucionalidade.

É de se observar, contudo, que a sanção de nulidade por violação a

direitos fundamentais só tem cabimento se a norma jurídica não estabelecer outra

forma de sanção, seja indenizativa ou caducificante. Pontes de Miranda observa

que “a infração de regra jurídica cogente proibitiva tem sempre, por sanção, a

nulidade, salvo se outra é a sanção adotada na lei41

”. O mesmo posicionamento

doutrinário é defendido por Marcos Bernardes de Mello, para quem “sempre que

há violação de norma cogente há invalidade, desde que a norma não preveja,

especificamente, outra sanção para sua infringência42

”.

Há muitas sanções por contrariedade a direitos fundamentais que não

estão previstas na Constituição, mas na legislação ordinária. Isto ocorre quando a

norma constitucional não é bastante em si, dependendo de edição de lei para

incidir. A sanção existe, mas só se exterioriza com a vigência da lei

regulamentadora. A Constituição Federal reservou à lei a punição para qualquer

discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º,

XLI). Também considerou o racismo crime inafiançável e imprescritível,

cabendo a lei estabelecer as penas (CF, art. 5º, XLII). Também é crime

inafiançável e imprescritível ação de grupos armados, civis ou militares, contra a

41

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo IV. Campinas: Bookseller, 1999, p. 247. 42

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. São Paulo: Saraiva, 2000,

p. 250.

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28

ordem constitucional e o Estado de Democrático (CF, art. 5º, XIV). O mesmo

acontece com o crime de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e os

definidos pela lei como crimes hediondos (CF, art. 5º, XLIII). Em todos esses

exemplos, as sanções impostas aos atos ilícitos violadores de direitos

fundamentais dependem de lei ordinária.

Ressalte-se, ainda, que as limitações a direitos fundamentais só podem

ser impostas pela norma constitucional ou pela lei ordinária. A limitação

decorrente de ato normativo é inconstitucional, pois tal espécie de regra jurídica é

inidônea para restringir o exercício das liberdades fundamentais. Se isso

acontece, há clara violação constitucional punida com a sanção de nulidade. Com

essa providência, evita-se que os fins ilícitos perseguidos pela Administração

Pública se concretizem. Essa é a resposta que o ordenamento dá às tentativas dos

governantes despóticos que pretendem subjugar a dignidade da pessoa humana

através da edição de atos normativos restritivos a direitos fundamentais estatais e

supra-estatais.

7. GARANTIAS INSTITUCIONAIS

Na Alemanha, Carl Schimitt desenvolveu a teoria das garantias

institucionais com o objetivo de proteger estruturas consideradas realidades

sociais objetivas. A doutrina alemã nos legou a seguinte classificação: (1)

garantias jurídico-públicas (Institutionelle Garantien) e (2) garantias jurídico-

privadas (Institutsgarantie). As primeiras preservam institutos ou instituições de

direito público; as segundas, de direito privado.

As garantias institucionais não podem ser confundidas com direitos

subjetivos fundamentais. Elas não asseguram aos indivíduos poder de exigir. A

norma constitucional garante especial proteção a determinadas instituições para

inibir o arbítrio do legislador sem, no entanto, legitimar cidadãos para a

propositura de remédios jurídicos processuais. Elas são organizadas pelo direito

interno mediante reserva de lei. Carl Schimitt acentua a distinção entre ambos

sustentando que as garantias têm estrutura lógica e jurídica distinta de um direito

fundamental. Para ele, a previsão constitucional também tem a finalidade de

impossibilitar sua supressão por via legislativa ordinária43

.

A principal característica das garantias institucionais é o compromisso

jurídico-constitucional de perenidade das instituições que refletem valores

indissociáveis da organização social. A garantia será organizada exclusivamente

pela lei nacional. O Brasil é livre para criar o seu próprio modelo de proteção ou

transplantar modelos adotados por sistemas jurídicos estrangeiros.

As garantias institucionais manifestam-se como imposições legiferantes

e implicam prestações positivas do Estado. Mas não são direitos subjetivos, dada

a inexistência de pretensões jurídicas individuais passíveis de justiciabilidade. A

norma constitucional obriga o legislador ordinário a preservar determinadas

estruturas jurídicas, mas não assegura aos beneficiários diretos ou indiretos o

43

SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Universidad Textos, 1992, p. 175.

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29

direito de exigir o seu cumprimento. De fato, tais garantias são direitos

insubjetivados, na medida em que comina obrigações estatais sem atribuir

legitimidade individual para exigir o seu cumprimento. Daí Canotilho afirmar

que “as garantias institucionais não garantem aos particulares posições subjetivas

autônomas44

Para Vieira de Andrade, “por vezes, a Constituição estabelece regras ou

impõem deveres, designadamente às entidades públicas, com a função principal e

a intenção de garantir, realizar e promover a dignidade da pessoa humana

centrada em posições subjetivas, mas não investe os indivíduos em situação de

poder ou de disponibilidade com esse objeto específico”. E continua:

“Esses « deveres sem direitos» constituem uma zona de proteção das posições

subjetivas no âmbito da qual os efeitos jurídicos se reportam directamente às

normas, em termos que não são, em geral, susceptíveis de referenciação

individual (não são subjetiváveis) – constituem, por isso, figuras que apresentam

um caráter simultaneamente objetivo e fundamental”45

. As garantias

institucionais criam estruturas sociais, políticas ou administrativas capazes de

concretizar os direitos fundamentais.

Tradicionalmente, os institutos e as instituições estão cristalizados na

vida social do país. Fazem parte da cultura, dos costumes, da tradição. Além de

realidades objetivas, as garantias institucionais são essenciais à dignidade

humana, à qualidade de vida e à justiça social. Relacionam-se com os direitos

fundamentais porque sua atuação se desenvolve nas dimensões da liberdade,

igualdade, solidariedade e democracia. A norma constitucional impõe ao

legislador o dever protegê-las no ordenamento jurídico. Ao mesmo tempo o

proíbe de desfigurá-las, adulterá-las, deturpá-las ou suprimi-las. Dessa forma, é

inconstitucional toda norma jurídica que, de uma forma ou de outra, afete a

essência da garantia institucional.

Uma vez garantidos, os institutos e instituições devem ser protegidos no

ordenamento jurídico. O legislador ordinário pode estabelecer limites ao seu

conteúdo desde que não deforme sua essência. Ou seja, a atuação legislativa deve

respeitar o mínimo essencial das referidas estruturas, sob pena de sofrer a sanção

de inconstitucionalidade.

Alguns direitos fundamentais só podem ser exercitados no âmbito de

determinadas estruturas jurídicas, pois seus efeitos são essencialmente

institucionais. Se elas desaparecem ou se degradam, tais direitos deixam de ser

desfrutados por seus titulares. Assim, haverá inconstitucionalidade sempre que

ocorrer modificação de norma jurídica que implique descaracterização da

instituição ou do instituto protegido pela Constituição46

.

A norma constitucional obriga o Estado a promover todos os meios

legislativos e administrativos necessários para que a instituição seja protegida em

44

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,

2003, p. 397. 45

ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.

Coimbra: Almedina, 2004, p. 143. 46

FAVOREU, Louis et alli. Droit des libertés fondamentales. Paris : Dalloz, 2003, p. 82.

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território nacional. A constitucionalização em forma de direito fundamental é o

reconhecimento de que a instituição é essencial ao funcionamento do Estado

Democrático de Direito e a garantia de que ela será organizada pelas leis

brasileiras. Caso o Estado não promova as medidas necessárias para

regulamentá-la incorre em inconstitucionalidade, justificando a propositura da

ação de inconstitucionalidade por omissão.

Na Constituição brasileira, as garantias institucionais são largamente

utilizadas para assegurar o funcionamento das principais instituições

democráticas, a exemplo do Poder Legislativo (CF, art. 53), Poder Judiciário

(CF, art. 95), Ministério Público (art. 128. § 5º, I) e Defensoria Pública (CF, art.

133, § 2º). Através delas, os membros dessas instituições poderão exercer

plenamente as funções que lhes foram confiadas pelo Constituinte, sem o temor

de represálias por parte dos detentores do poder político ou das forças armadas.

8. DIREITOS FUNDAMENTAIS NEGATIVOS E POSITIVOS

8.1. Direitos fundamentais negativos

Os constitucionalistas clássicos só consideravam fundamentais os

direitos negativos. Carl Schimitt só reconhecia como tais os direitos de liberdade

individual. Os direitos a prestações positivas do Estado não se subjetivavam. Para

Esmein, “les droits individuels présentent tous un caractère commun ; ils limitent

les droits de l’État, mais ne lui imposent aucun service positif, aucune prestation

au profit des citoyens. L’État doit s’abstenir des certaines immixtions, pour

laisser libre l’activité individuelle ; mais l’individu, sur ce terrain, n’a rien de

plus à réclamer47

”.

As normas assecuratórias de direitos fundamentais negativos impõem

limites ao poder do Estado sobre a esfera individual da pessoa humana e

estabelecem o dever estatal de não-ingerência. O caráter supra-estatal da maior

parte dos direitos fundamentais também impede que o legislador constituinte ou

ordinário imponha-lhes restrições arbitrárias ou ilegítimas.

Os direitos fundamentais negativos são dirigidos ao Estado em defesa da

esfera individual da pessoa humana. São direitos que já se cristalizaram nas

Constituições democráticas, atingindo um alto grau de supra-estalidade. Apenas a

lei – inclusive a Constituição – pode limitá-los. Agem como poderosos

instrumentos de luta contra o arbítrio, a violência e o despotismo do poder

político na medida em que impõem ao Estado deveres negativos e positivos.

As liberdades fundamentais presumem que o Estado reconhece aos

indivíduos a faculdade de exercer determinadas atividades sem ser molestado por

quem quer que seja. Assim, os direitos fundamentais negativos asseguram um

47

ESMEIN, A. Éléments de droit constitutionnel français e comparé. Paris: Editions Panthéon Assas,

2001, p. 548.

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atuar sem coação, cabendo ao poder público o dever de realizar as condições

necessárias ao seu exercício48

.

Também são chamados direitos de defesa, pois protegem a esfera de

liberdade individual contra interferências externas ilegais, inclusive dos órgãos

estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário).

8.2. Direitos fundamentais positivos

Os direitos fundamentais positivos são aqueles que impõem ao Estado

prestações administrativas ou legislativas destinadas a satisfazer os direitos

sociais, econômicos, culturais, difusos e coletivos. Caracterizam-se por serem

verdadeiros pouvoirs d’exiger que conferem aos seus titulares a possibilidade de

exigir do Estado prestações relativas ao bem-estar do indivíduo e da sociedade.

Para Pontes de Miranda, são direitos que obrigam o Estado “a alguma prestação,

ou em simples regra programática, ou em regra de direito objetivo com sanção ou

sem ela, ou em regra de que decorram direito objetivo, pretensão e

acionabilidade49

”. Em outras palavras, as regras de direitos fundamentais

positivos:

a) impõem ao Estado prestações civilizatórias a serem executadas

mediante intervenção legislativa ou adoção de políticas públicas destinadas a

concretizar os direitos sociais;

b) apontam diretrizes, metas e objetivos a serem alcançados pelo

Estado, seguindo a orientação contida nas regras programáticas;

c) estabelecem – em situações específicas – verdadeiros direitos

subjetivos e sanções a serem aplicadas pela autoridade judiciária.

O constitucionalista português José Carlos Vieira de Andrade também

defende a concepção de que os direitos fundamentais positivos “são direitos que

impõem tarefas, que pressupõem e necessitam de uma definição ulterior, são

direitos sob condição; são, ao mesmo tempo, da perspectiva do Estado, deveres

de concretização, de ação que permita sua existência completa50

”. Para ele, os

direitos sociais não se voltam contra o Estado (lógica Estatal), mas sua realização

ocorre através do Estado, pela ação concreta nos mais diversos campos do setor

público51

.

Os direitos fundamentais positivos têm origem socialística, ou seja,

nascem dos princípios da igualdade e da solidariedade. Dotados de supra-

estatalidade, exteriorizam-se nas Constituições contemporâneas como direitos

sociais, econômicos, culturais, difusos e coletivos. São direitos que obrigam o

Estado a prestações concretas como a edição de leis ou a promoção de políticas 48

MORANGE, Jean. Las Libertades Públicas. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p.8. 49

MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade, Igualdade (os três caminhos). São Paulo: Bookseller,

2002, p. 376. 50

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.

Coimbra: Almedina, 1987, p. 67. 51

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.

Coimbra: Almedina, 1987, p. 50.

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sociais voltadas para a tutela da educação, saúde, trabalho, moradia, lazer,

segurança pública, etc.

Algumas vezes, as prestações têm natureza erga omnes, sendo

igualmente impostas ao Estado e à sociedade. Ao assegurar o direito ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado, o art. 225 da Constituição Federal impõe

ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as

presentes e futuras gerações. Da mesma forma o princípio da prioridade absoluta

da criança e do adolescente obriga a família, a sociedade e ao Estado assegurar-

lhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à

profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência

familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,

discriminação, exploração, violência crueldade e opressão (CF, art. 227).

Os exemplos acima mostram que a existência prestação imposta ao

Estado e à sociedade civil – conjunta ou separadamente – é a característica

preponderante dos direitos fundamentais positivos. Por outro lado, a proibição de

o Estado limitar ou restringir as liberdades fundamentais fora do vazio deixado

pelo direito internacional é a principal marca dos direitos fundamentais

negativos.

Contudo, é preciso ressaltar que a dicotomia direitos fundamentais

positivos e negativos como categorias eficaciais estanques não tem razão de ser.

Nas Constituições modernas, as liberdades fundamentais e os direitos sociais

estão em permanente conexão. É por isso que Jorge de Miranda observa que os

direitos de liberdade são, ao mesmo tempo, direitos de libertação do poder e

direitos à proteção do poder contra outros poderes, enquanto que os direitos

sociais apresentam-se como direitos de libertação da necessidade e direitos de

promoção52

.

A conexão entre direitos fundamentais negativos e positivos já era

percebida por Léon Duguit nas primeiras décadas do século XX. Para ele a ação

do Estado sofria, ao mesmo tempo, limitações positivas e negativas. De um lado

o Estado tinha o dever de não criar entraves ao livre desenvolvimento da

atividade física, intelectual e moral do indivíduo; de outro, estava obrigado a

limitar a atividade individual para que houvesse o livre desenvolvimento da

atividade de todos53

.

Desde a Declaração de 1789 até meados do século XX, os direitos

humanos restringiram-se às liberdades fundamentais. O dever do Estado era

predominantemente negativo, o que exigia uma postura de não-ingerência e de

proteção à esfera individual contra atentados externos. Com o advento do

Welfare State, o Estado assumiu novas obrigações e tornou-se devedor de

prestações positivas destinadas a garantir a fruição dos direitos de liberdade,

democracia, igualdade e solidariedade.

52

MIRANDA, Jorge. Os Direitos fundamentais – sua dimensão individual e social. Revista dos Tribunais,

out/dez, Recife, 1992, p. 201. 53

DUGUIT, Leon. Traité de Droit Constitutionnel, v. 5. Paris : Éditions Cujas, s/d., p. 2.

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No constitucionalismo contemporâneo, as dimensões negativa e positiva

dos direitos fundamentais são duas faces da mesma moeda. A inviolabilidade de

domicílio é direito que impõe simultaneamente ao Estado o dever de não penetrar

na residência sem o expresso consentimento do proprietário e de dar todas as

garantias – legais e administrativas – de que o titular do direito fundamental

possa fruí-lo livremente. A liberdade de locomoção implica não só o dever estatal

de não criar obstáculos à livre circulação do indivíduo em território nacional, mas

também prestações positivas para que ela possa ser exercida em sua plenitude.

Além de adotar uma atitude de não-intervenção, o Estado está obrigado a editar

leis e desenvolver políticas de segurança pública destinadas a proteger a esfera da

intimidade do cidadão.

A teoria geral do direito acolhe como dado científico a correlatividade

entre direitos e deveres. Para cada direito fundamental subjetivo o Estado tem o

dever de satisfação, que se desenvolve em três direções: (a) dever de abstenção

na esfera de liberdade do titular; (b) dever de proteção dos direitos fundamentais

contra agressões externas; (c) dever de promoção54

de prestações fácticas

(políticas e serviços públicos) ou normativas (imposições legiferantes) destinadas

à satisfação dos direitos fundamentais.

Quase sempre existe uma relação de complementaridade entre as

dimensões negativa e positiva dos direitos fundamentais. Como vimos, o Estado

fica vinculado ao cumprimento de deveres em diversos níveis. O mesmo direito

fundamental pode subjetivar-se para assegurar ao seu titular o poder de inibir a

ação estatal na esfera de sua liberdade individual ou para exigir do Estado

prestações positivas como políticas sociais, serviços públicos de boa qualidade,

produção jurislativa concretizadora, etc. Essa complementaridade não impede,

contudo, a autonomia de cada dimensão. A pretensão pode relacionar-se,

separada ou conjuntamente, com a obrigação de não-fazer ou com a prestação

positiva.

9. ESPECIALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A técnica da especialização dos direitos fundamentais remonta ao século

XVIII. A Declaração de 1789 já fazia distinção entre direitos do homem e

direitos dos cidadãos. Os primeiros irradiavam indistintamente para todos os

seres humanos, sem qualquer distinção de nacionalidade, raça, religião, idade,

condição social ou financeira. Os segundos restringiam-se aos detentores do

status de cidadão, isto é, os que podiam fruir da liberdade política, da

participação na vida institucional do país.

Os direitos do homem tinham natureza pré-social enquanto os direitos

dos cidadãos estavam ligados à existência do Estado. Embora ambos fossem

fundamentais, os primeiros eram mais genéricos e consistiam em direitos

subjetivos cuja titularidade se espraiava para toda a espécie humana. Tratavam-se 54

O dever de promoção é mais comum nos direitos sociais. Mas não é exclusivo dessa categoria de

direitos. É possível que o exercício de determinado direito individual esteja condicionado a prestações

positivas do Estado, a exemplo de políticas sociais, serviços públicos, campanhas educativas, etc.

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de direitos anteriores e superiores à sociedade civil que se incorporavam a cada

ser humano, sem levar em conta sua condição de cidadão. Entre eles estavam a

liberdade, igualdade, segurança jurídica e resistência à opressão. Os direitos do

cidadão só poderiam ser exercitados em determinada organização social.

Manifestavam-se pelo direito ao sufrágio e pelo direito de ocupar cargos públicos

e eletivos.

A Declaração Universal de 1948 abriu os caminhos para a consagração

de novos direitos fundamentais. Os tratados internacionais tornaram-se mais

específicos na proteção de grupos minoritários, como crianças, adolescentes,

idosos, portadores de deficiência, entre outros. A especialização não distorceu a

universalidade que caracteriza os direitos fundamentais. Ao contrário. A tutela

jurídico-internacional de grupos sociais vulneráveis mostrou-se um forte

mecanismo de combate à violação dos direitos humanos. Foi a matriz da

arquitetura constitucional e legislativa de proteção dos direitos difusos e

coletivos nos países democráticos.

Além da especialização criada por tratados internacionais, existem

direitos que derivam de outros direitos fundamentais. Assim, existem normas

jurídicas, geralmente não-escritas, que retiram seu substrato do conteúdo de

direitos fundamentais positivados em constituições ou tratados internacionais.

Em resumo, a especialização dos direitos fundamentais desenvolve-se

em duas direções: (a) derivação do conteúdo de determinados direitos

fundamentais; (b) necessidade de proteção específica a grupos sociais

vulneráveis.

A principal distinção entre elas é o sujeito de direito. As normas de

direitos fundamentais derivados configuram direitos subjetivos universais,

criando faculdades e poderes para todos os seres humanos, vistos em sua

abstração e generalidade. Já as normas de direitos fundamentais específicos só

delineiam situações de vantagem para determinados sujeitos de direito.

10. CONCLUSÃO

A disposição dos direitos fundamentais no sistema constitucional

brasileiro é o reflexo de diversas correntes doutrinárias desenvolvidas na

Alemanha, Estados Unidos e França após a 2ª Guerra Mundial. Pontes de

Miranda soube captar essas tendências e construiu as bases teóricas do sistema de

proteção aos direitos fundamentais hoje adotado no país.

A Constituição de 1988 tem-se mostrado um grande instrumento de

fortalecimento do Estado Democrático de Direito na medida em que atribui aos

direitos fundamentais aplicabilidade direta e força vinculante em relação a todos

os poderes da república. O país também tem primado pelas técnicas de

blindagem dos direitos humanos contra ingerências circunstanciais de grupos

políticos interessados em proteger interesses espúrios e inconfessáveis. Exemplos

dessa couraça de proteção são as cláusulas pétreas, o controle de

constitucionalidade e as garantias processuais.

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O grande desafio do constitucionalismo brasileiro é a criação de

mecanismos jurídicos e administrativos que promovam a crescente efetividade

das liberdades públicas e dos direitos sociais. E isso só é possível com a adoção

de políticas públicas eficientes que melhorem a qualidade de vida da população,

promovam a igualdade de oportunidades, combatam a corrupção e fortaleçam as

instituições democráticas.