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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Andréia de Fátima Monteiro Gil
Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de Manoel de Barros
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Andréia de Fátima Monteiro Gil
Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de Manoel de Barros
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob orientação da Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira.
SÃO PAULO
2011
Banca examinadora
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AGRADECIMENTOS
À Deus, pela bênção e pela sabedoria luminosa.
À professora doutora Maria Aparecida Junqueira, pela orientação dedicada e
iluminadora.
Aos professores doutores Edilene Dias Matos e Fernando Segolin, pelas
palavras elogiosas e pelas valiosas sugestões apontadas no exame de
Qualificação.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica
Literária da PUC-SP, pelas aulas instigantes e reveladoras.
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária
da PUC-SP, pelo compartilhamento de ideias, receios e conquistas.
À minha avó, Maria Rosa, pela força e ternura eternas.
Aos meus pais, Francisco e Elizabete, pelo apoio e afeto incondicionais e
constantes.
Ao meu futuro esposo, Eduardo, pela presença, pelo incentivo e pelo amor
inspirador.
À Lourdes e Irene, pelo precioso encorajamento.
Ao meu Paquinho, pelo companheirismo brincalhão.
“No garfo da árvore seca uma casa de amassa-barro!
Ele edifica com lama.
A gula do podre
influi em seus traços. Porém. No que edifica o
sol tem raios túrgidos”.
Manoel de Barros
GIL, Andréia de Fátima Monteiro. Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de
Manoel de Barros. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-
Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, SP, Brasil, 2011.
RESUMO
O objetivo central desta pesquisa é investigar como a obra poética de
Manoel de Barros redimensiona o Pantanal. Especialmente interroga o
“espaço”, isto é, pergunta como a poesia deste poeta reconfigura a geografia
pantaneira e como reordena pessoas, animais e coisas ao inscrever o Pantanal
em sua poética. Para conduzir nossa reflexão acerca da criação poética de
Manoel de Barros, tecemos considerações sobre poesia e poética,
examinamos as especificidades do Pantanal e tomamos de empréstimos, de
outras áreas do conhecimento, diversas noções de espaço. Adotamos como
foco iluminador da análise a obra Livro de pré-coisas, colocando-a em relação
com outras obras do autor. Como hipótese, propusemos que a linguagem
poética de Manoel de Barros é revelada de modo plural e sem limites tal como
o Pantanal apresenta-se diverso e ambíguo. Os resultados da pesquisa
ressaltam que Manoel de Barros transfaz o espaço pantaneiro, desarticulando-
o para instaurar uma nova realidade. A sua linguagem poética assume o
caráter de mosaico e põe em cena palavras com alta força imagética e
densidade sensorial.
Palavras-chave: Manoel de Barros, Livro de pré-coisas, poesia, espaço,
mosaico.
GIL, Andréia de Fátima Monteiro. Poetry and Pantanal: the mosaic view of
Manoel de Barros. Master’s degree dissertation. Program of Pos-Graduate
Studies on Literature and Literary criticism. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, SP, Brazil, 2011.
ABSTRACT
The main objective of this research is to investigate how Manoel de
Barros’ poetry redesigns Pantanal. Especially, it interrogates the “space”, that
is, it questions how the poet’s poetry reconfigures Pantanal’s geography and
how it reorganizes human beings, animals and things, inscribing Pantanal on
his poetry. To guide our reflection upon Barros’ poetic creation, we take studies
about poetry into consideration, we examine Pantanal’s specifications, we grasp
concepts of space from other knowledge areas. We focus our analysis on Livro
de pré-coisas, relating it with other works of the poet. As hypothesis, we
propose that the poetic language of Manoel de Barros is revealed plural without
limits as Pantanal is shown diverse and ambiguous. The research results
reinforce that Manoel de Barros (trans) creates Pantanal’s space, rearranging it
in order to establish a new reality. His poetic language retains mosaic features
and stages poetic imagery and sensory words.
Keywords: Manoel de Barros, Livro de pré-coisas, poetry, space, mosaic.
LISTA DE ABREVIATURAS
PCP Poemas Concebidos sem pecado – 1937/ 2010
CUP Compêndio para uso dos pássaros – 1960/ 2010
GEC Gramática expositiva do chão– 1966/ 2010
MP Matéria de poesia – 1970/ 2010
APA Arranjos para assobio – 1980/ 2010
LPC Livro de pré-coisas – 1985/ 2010
GA O guardador de águas – 1989/ 2010
CCA Concerto a céu aberto para solos de ave – 1991/ 2010
LI O livro das ignorãças – 1993/ 2010
RAC Retrato do artista quando coisa – 1998/ 2010
EF Ensaios fotográficos – 2000/ 2010
TGG Tratado geral das grandezas do ínfimo – 2001/ 2010
PR Poemas rupestres – 2004/ 2010
MII Memórias inventadas: a infância – 2007
MM Menino do Mato – 2010
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10
CAPÍTULO 1 – A corporificação poética do espaço ................................... 16
1.1 Espaço e literatura ................................................................................... 16
1.2 Espaço e corpo ........................................................................................ 29
1.3 Espaço e poesia ...................................................................................... 33
CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-coisa ....... 38
2.1 À luz da crítica, a poesia ......................................................................... 38
2.2 Em sintonia, poesia e vida ...................................................................... 45
2.3 “Antesmente”, poesia e pré-coisa ........................................................ 53
CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e transfigurações ............ 56
3.1 Reespacialização pelo olhar ................................................................... 56
3.2 Criação pelo sentir ................................................................................... 70
3.3 Mosaico espacial ..................................................................................... 75
3.4 Personagens-trastes: poéticos e pantaneiros ...................................... 86
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 94
REFERÊNCIAS ............................................................................................... 97
10
INTRODUÇÃO
Pensar o espaço na literatura obriga-nos a reportar-nos ao problema da
representação. Segundo Aristóteles (2004, p. 30), a mímese serve como ponto
de partida para toda construção artística. O filósofo grego reconhece a
tendência para a imitação como instintiva no homem: “Pela imitação adquire
seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer”.
Esse impulso mimetizante não deve ser entendido, no entanto, no
sentido de reprodução, mas no de criação. Aristóteles concebe o gesto criador
do poeta como instaurador de realidades possíveis. O poeta quer representar,
pela palavra, o real. Representar não no sentido de substituir, mas no sentido
de presentificar, tornar presente. Por meio da palavra poética, o espaço do
objeto artístico procura instituir novas realidades.
A busca por uma palavra capaz de ser e não de dizer o objeto exprime a
necessidade do poeta de pertencer à “coisa cantada”. O poeta não se
conforma em nomear e descrever o objeto de seu interesse, mas aspira a que
o poema seja o próprio objeto sem poder sê-lo. Cortázar confirma tal ideia ao
dizer:
Cantar a coisa (...) é unir-se, no ato poético, a qualidades ontológicas que não são as do homem, qualidades essas que o homem, descobridor maravilhado, anseia atingir e ser na fusão do poema, que o amalgama ao objeto cantado, cedendo-lhe entidade deste e enriquecendo-o (CORTÁZAR, 1974, p. 98).
A poesia de Manoel de Barros “canta a coisa” ao explorar não só o
espaço das palavras em seu percurso de rastreamento das coisas ínfimas do
chão, mas também a posição do poeta-criador e seu papel diante da estrutura
da obra. A natureza do Pantanal é transposta em palavras e o poema almeja
ser a própria natureza pantaneira nessa tradução. Tal fato indica que o pensar
sobre o fazer poético é evidenciado e a busca por palavras-ícones que tragam
o objeto mais próximo é constantemente empreendida.
Manoel de Barros expõe em sua obra poética seu desejo de tornar-se
parte da natureza e do Pantanal. O poeta, nascido e criado nas proximidades
11
do Pantanal mato-grossense, expressa o desejo de inscrever esse Pantanal
vivido nos seus poemas autobiográficos, como em “Autorretrato falado”:
Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
(...) Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças.
(...) No meu morrer tem uma dor de árvore (LI, p. 324)1.
Conhecer, então, o Pantanal, “adentrar o improvável universo de terra e
água (...) reouvir vaqueiros, boiadeiros, campeiros, rememorando o episódio
épico de cada trajetória pantaneira” (Nogueira, 1990, p. 60), estudar sua
constituição física e geográfica, sua diversidade de flora e fauna, sua fluidez e
ambigüidade, sua cultura, bem como seus fortes contrastes e aspectos míticos
(Leite, 2003), possibilitará o estabelecimento de correlações mais amplas entre
o universo pantaneiro e o universo poético de Manoel de Barros.
Planície inundável que apresenta pequenas elevações, o Pantanal é
reconhecidamente plural: “O Pantanal são vários pantanais” (Nogueira, 1990,
p. 60). Manoel de Barros encena a heterogeneidade do espaço pantaneiro,
procurando colocar em realce a extrema diversidade do ecossistema que
interrelaciona elementos e conjuntos para a manutenção do equilíbrio. O
criador mato-grossense faz com que seres e coisas saiam de suas existências
ordinárias em direção a algo indefinível, metamorfoseando, assim, o conhecido.
O anseio de Manoel de Barros por refazer o real, o mundo, a linguagem,
para edificar, pela palavra, um real transfigurado, um mundo novo e, desse
modo, apresentar uma linguagem renovada, é possivelmente despertado pelo
próprio Pantanal, que deixa visível um mundo em permanente mutação.
1 BARROS, Manoel de. Poesia completa/ Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010. Deste ponto em diante, adotaremos abreviaturas para os títulos das obras reunidas nesse volume, conforme Lista de Abreviaturas. Os excertos citados, após a abreviatura, serão seguidos apenas do número de página.
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O interesse da Literatura em estudar o espaço não é novo. Todavia, tais
estudos se concentraram no campo narrativo. Celina Leal dos Santos (2006),
por exemplo, procurou observar como os múltiplos espaços influenciam nos
elementos composicionais de Os Sertões, de Euclides da Cunha e Grande
Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. No campo poético, os trabalhos
mostram-se escassos; no entanto, podemos citar Marinei Almeida Lima que
questionou, comparativamente nas obras de Manoel de Barros e Eduardo
White, a função do espaço-tempo mítico como um dos fatores determinantes
da revisão dos limites e fronteiras dos gêneros literários.
A preocupação em examinar como o espaço se constrói nas obras
literárias foi revelada, também, em diversos debates promovidos pelo Itaú
Cultural. O evento “Encontros de Interrogação” (2009)2 reuniu escritores e
especialistas para discutir os espaços da e na Literatura. Nesse contexto,
Ronaldo Cagiano (2009), poeta, ensaísta e crítico cataguasense, buscou definir
território como lugar onde a alma do escritor habita e que carrega relações
ancestrais, vivências da infância, experiências afetivas, sensoriais e
escalonamento de valores. Para Cagiano, a “geografia” é constituída de um
componente onírico e anímico. Assim, a “geografia do escritor” revela-se
múltipla, física e perceptiva. Cagiano explicou, ainda, que a Literatura promove
uma transposição do real e uma incorporação de cenários.
Compreendendo o Pantanal como um lugar edênico, adâmico, Manoel
de Barros integra sua poética com o meio em que cresceu e vive. Explica que a
gênese de sua sensibilidade provém da criação primitiva que lhe foi
dispensada:
Fui criado em chão de acampamento, no meio de lagartixas, lagartos, sapos, mosquitos. Vivi nos brejos, lugares úmidos que custam muito a secar. Eu convivi muito com essas palavras que aparecem em mim. Na hora de escrever um verso, essas
2 Os debates, intitulados Encontros de Interrogação, foram promovidos no mês de Maio de 2009 pelo Itaú Cultural com o intuito de problematizar o espaço da/ na literatura, seja ele físico ou virtual, real ou imaginário, do escritor ou do leitor. O evento abordou o tema, O espaço geográfico: como falar do enraizamento para além do regionalismo?, que serviu de reflexão para nossa investigação.
13
palavras brotam em mim naturalmente. É o lastro ‘brejal’ que não perdi (BARROS, apud CASTELLO, 1996b).
Ao reverenciar o natural, ressaltar a beleza original da flora e da fauna,
compartilhar seus versos com árvores, anhumas, garças, araras, beija-flores-
de-rodas vermelhas, pacus, formigas, lesmas, caramujos, seres ínfimos, ciscos
e inutilezas, Manoel de Barros redimensiona o espaço pantaneiro, criando e
recriando o real, incitando a palavra a provocar estranheza, libertando-se dos
condicionamentos sociais que bloqueiam a espontaneidade das vivências,
inspirando-se em personalidades reais, autodidatas, para afirmar que o
verdadeiro conhecimento está na leitura sensível do mundo, da natureza. O
poeta promove esse redimensionamento, valendo-se da potencialidade da
linguagem e da dinamização dos sentidos.
Manoel de Barros compreende e constrói o espaço pantaneiro por meio
das coisas ainda não configuradas. No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), o
poeta faz a anunciação do Pantanal, com recursos lingüísticos, formais e
simbólicos em formação.
O poeta anuncia o Pantanal por meio de manchas, “nódoas de imagens
e festejos de linguagem” (LPC, p. 197). Nesse sentido, tanto o espaço do
Pantanal quanto o do próprio livro vão se revelar singulares dentro do conjunto
da obra do poeta. A natureza que o rodeia, por exemplo, é recriada pela
linguagem, e o poeta oferece ao leitor a oportunidade de enxergar
diferentemente e a crer nesse novo mundo. O criador mato-grossense nos
ensina que “beleza e glória das coisas o olho é que põe. (...) É pelo olho que o
homem floresce” (LPC, p. 224).
Com o Livro de pré-coisas, Roteiro para uma excursão poética no
Pantanal (1985/ 2010), Manoel de Barros quer dar a conhecer, por meio de
uma linguagem poética singular, as “pré-coisas”, as essências, as
insignificâncias, as paisagens e os seres do Pantanal de modo inaugural e
transfigurador.
O livro é dividido em quatro partes: “Ponto de partida”, “Cenários”, “O
personagem” e “Pequena história natural”. Na primeira parte, indica por qual
caminho o leitor/ viajante deve percorrer para descobrir o Pantanal: rumo à
liberdade inventiva. Na segunda, transforma a paisagem pantaneira e a
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representa de acordo com sua percepção única. Na terceira, seleciona uma
figura desimportante do Pantanal, Bernardo, e expõe sua trajetória de vida: “no
presente”, “no serviço”, “no tempo de andarilho”, “na mocidade”. O poeta
transcreve, ainda, a “voz interior” da personagem, desvendando os mistérios de
sua essência. Na última parte, ao tratar do “socó-boca-d’água”, do “urubu”, do
“quero-quero” e da “garça”, Manoel de Barros “transvê” a realidade e conjuga
reflexão crítica com prática poética.
À luz dessas considerações, esta pesquisa interroga especialmente o
“espaço”, isto é, pergunta-se como a obra de Manoel de Barros reconfigura a
geografia pantaneira ao espacializar poeticamente a região e sua cultura e
como o poeta reordena imaginariamente pessoas, animais e coisas ao
inscrever o Pantanal em sua poética.
Para testar esta questão-problema, selecionamos as hipóteses:
1. A plasticidade da palavra, o rompimento com a linguagem convencional,
o imbricamento prosa/ poesia, as metáforas, as justaposições, as
ambigüidades revelam correlações plurais entre Pantanal e poesia, entre
Pantanal e homem. O Pantanal apresenta-se múltiplo, em
transformação, em movimento e a linguagem poética assume tal
aspecto, mostrando-se sem limites.
2. O Pantanal de Manoel de Barros privilegia, assim, o espaço sobre o
tempo ao fundar sua poesia numa lógica espacial.
3. Criando micro-espaços poéticos que desdobram o macro-espaço
pantaneiro, o poeta sugere a noção de “Pantanal-em-processo”.
4. Manoel de Barros reconstrói o espaço do Pantanal pelo confronto tenso
entre pares opositivos – grandeza/ pequenez; interior/ exterior;
continente/ conteúdo; palavra/ “despalavra” – que suscitam sentidos
espaciais.
Para compreendermos a obra poética de Manoel de Barros, norteamos
nossa reflexão em três eixos teóricos fundamentais: estudos envolvendo
poesia e poética; investigações sobre o Pantanal e suas especificidades; e a
exploração sobre conceituações de espaço.
Refletir sobre o conceito de mímese (Aristóteles, 2004), sobre o método
analógico que atrai o poeta para a direção contrária ao modo de pensar
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comum, levando-o a construir sentidos improváveis (Cortázar, 1974), e sobre a
contribuição da imaginação para a produção da sensação do novo (Baudelaire,
1993), permite o entendimento da voz renovadora da poesia de Manoel de
Barros. Adentrar o espaço polêmico pantaneiro possibilita o estabelecimento de
relações entre o Pantanal e a poética de Manoel de Barros. Tomar contato com
diferentes concepções de espaço auxilia na descoberta de como Manoel de
Barros materializa poeticamente a reconfiguração do Pantanal.
Este trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro capítulo, intitulado
“A corporificação poética do espaço”, investiga as concepções de espaço
adotadas em diferentes áreas do conhecimento e examina as relações entre
espaço e literatura, espaço e corpo, espaço e poesia. Concomitantemente,
verifica em que medida os poemas de Manoel de Barros manifestam tais
conceituações. Em seguida, ao identificar os recursos que o poema de Manoel
de Barros utiliza para traduzir a própria natureza do Pantanal e os
procedimentos que permitem, ao poeta, o redimensionamento e a recriação
desse espaço pantaneiro, colocando as pré-coisas em destaque, procura
construir o conceito de espaço em sua poesia. O segundo capítulo,
denominado “Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-coisa”, levanta
alguns posicionamentos da crítica em relação à poesia de Barros e tenta
elaborar um método para análise de seus inusitados poemas. Aborda, também,
a trajetória poética de Manoel de Barros e sua intrigante busca pelo
“antesmente verbal”, pelo “restolho”, pela “pré-coisa” e pela inauguração de um
novo espaço. O terceiro capítulo, nomeado “Pantanal e Poesia: homologias e
transfigurações”, analisa o corpus, tomando por base os vários modos de
espacialização poética eleitos por Manoel de Barros: por estruturas
fragmentárias, pelo olhar, pelo sentir, por personagens que se metamorfoseiam
no ambiente natural, pelo imbricamento de componentes físicos, culturais e
simbólico-espirituais.
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CAPÍTULO 1 – A corporificação poética do espaço
1.1 Espaço e Literatura
O que é espaço? Pode o espaço natural servir de força motriz para a
criação de um estilo de escrita? Como a linguagem poética de Manoel de
Barros “traduz” o espaço pantaneiro? Para tentar elucidar estas indagações
instigantes, buscamos auxílio de teóricos que fornecem subsídios para uma
reflexão ante o conceito de espaço, suas particularidades e relações com o
fazer poético.
A inexistência de um significado unívoco de espaço faz com que o
conceito assuma aspectos diversos em contextos teóricos específicos. Na
Teoria da Literatura, essa problemática também se faz presente. Há quatro
modos de abordagem do espaço na literatura: representação do espaço;
espaço como forma de estruturação textual; espaço como focalização;
espacialidade da linguagem.
De acordo com o primeiro modo de abordagem, representação do
espaço, não há o questionamento sobre o que é espaço, pois este é “dado
como categoria existente no universo extratextual” (BRANDÃO, 2007, p. 208),
mas interroga-se em que medida, “na operação interpretativa, os espaços
podem ser transfigurados, reordenados, transgredidos” (BRANDÃO, 2007, p.
214).
Já no segundo modo de ocorrência, espaço como forma de estruturação
textual, considera-se de “feição espacial todos os recursos que produzem o
efeito de simultaneidade” (BRANDÃO, 2007, p. 209), efeito este obtido a partir
de recursos como a fragmentação, a combinação de elementos textuais
dispersos, a fluidez dos sentidos e a variabilidade de leituras.
Na terceira maneira de especulação, espaço como focalização, por sua
vez, compreende-se que “é de natureza espacial o recurso que, no texto
literário, é responsável pelo ponto de vista, focalização ou perspectiva”
(BRANDÃO, 2007, p. 211). Vê-se o espaço como resultado relacional das
várias visões apreensíveis no texto.
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Por último, na quarta vertente de compreensão, espacialidade da
linguagem, afirma-se que “a palavra é também espaço” (BRANDÃO, 2007, p.
211) e considera-se a linguagem literária como espacial uma vez que é
composta de signos que possuem materialidade “cuja função intelectiva jamais
oblitera totalmente a exigência de uma percepção sensível no ato de sua
recepção” (BRANDÃO, 2007, p. 213).
O conceito de espaço na poesia de Manoel de Barros leva em
consideração os modos de abordagem acima. Sistematizado simbolicamente, o
poeta promove a experimentação sensorial do Pantanal. O entorno é
percebido, incorporado ao ser que contempla para então ser recomposto e
transposto em palavras.
Como o espaço, em Manoel de Barros, é pensado em sua
multiplicidade, faz-se necessário criar um modo de apresentação que
acompanhe suas transformações contínuas. Uma escrita poética fluida, com
significados móveis, fragmentados e novas formas de (des) dizer o real,
manifesta uma ambição declarada de Manoel de Barros de reordenar o espaço
complexo circundante para transpô-lo em poesia. O espaço e os seres que
nele habitam são identificados globalmente para, em seguida, serem
desidentificados em suas particularidades. A anunciação do Pantanal se faz de
modo metafórico e imagético. O silêncio, os ventos, o rio, o tempo e as águas
são instituídos como sujeitos da ação, como nos versos:
Ia o silêncio pelas ruas carregando um bêbedo.
Os ventos se escoravam nas andorinhas.
Estamos por cima de uma pedra branca enorme que o rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe. (LPC, p. 197)
O tempo e as águas esculpem escombros nos sobrados anciãos. (LPC, p.198)
Se é tempo de chover desce um barrado escuro por toda a extensão dos Andes e tampa a gema. - Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem – o menino falou (LPC, p. 199).
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Manoel de Barros, assim como o menino do poema, ao descrever
poeticamente os cenários, “entorta a bunda da paisagem” (LPC, p. 199). O que
importa ao poeta é revelar sensações, visões sem máculas do ver acostumado,
“festejos de linguagem” (LPC, p. 197):
Vem um cheiro de currais por perto. Posso ver uma casa nascendo.
Insetos compostos de paisagem se esfarinham na luz. Suspensas sobre o sabão das lavadeiras, miúdas borboletas amarelas:
- Buquê de rosas trêfegas... (LPC, p. 200)
O poeta expõe uma forma poética narrativa multiperspectivada,
movente, que tenta adotar todos os pontos de vista possíveis para apreender a
totalidade: primeiro, reconfigura o espaço panoramicamente para, depois, se
aproximar, observar os detalhes e metamorfoseá-los. Convida o leitor a
acompanhá-lo nessa “excursão poética”: “Estamos no zamboada”; “Deixamos
Corumbá tardeando” (LPC, 1985/ 2010: 198- 199).
Nos poemas de Manoel de Barros, o Pantanal torna-se espacialidade,
na qual as interações simbólicas e imaginárias, situadas fisicamente,
temporalmente, existencialmente ou como formas de expressão, emolduram e
são emolduradas pela paisagem. No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), o
poeta propõe o conhecimento do Pantanal a partir de uma viagem por
caminhos irrealizados e insuspeitados. Ao poetar, procura sair de si e trazer o
espaço pantaneiro para dentro de si. O poeta encontra no universo visível um
depósito de imagens e sinais no qual a imaginação deve interferir,
transformando, representando/ recriando os objetos segundo a apreensão
subjetiva feita pelos seus sentidos. Sobre esse aspecto da imaginação,
Bachelard (apud PESSANHA, 1999, p. 153) esclarece que “ela é a faculdade
de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade”.
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Manoel de Barros perscruta a linguagem da natureza para reconstruí-la
simbólica e esteticamente. Cria suas próprias formas e normas, deixa-se guiar
pelos deslimites, produz enunciados “constativos”, fundamentando-se no fato
de que “no Pantanal ninguém pode passar régua” (LPC, p. 206).
As pré-coisas de poesia são dadas, mostram-se observáveis e como
possibilidades. O prefixo indicativo de anterioridade deixa claro que o poeta
quer recuperar um mundo anteriormente “encantado”. A partir de imagens que
povoam seu imaginário, Manoel de Barros não descansa seu olhar sobre a
paisagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos
interstícios de extensões descontínuas para transcriar o espaço pela
linguagem:
Por aqui é tudo plaino e bem arejado pra céu. Não há lombo de morro pro sol se esconder detrás. Ocaso encosta no chão. Disparate de grande este cortado. Nem quase não tem lado por onde a gente chegar de frente nele. Mole campanha sem gumes. Lugares despertencidos. Gente ficava isolado. O brejo era bruto de tudo. Notícias duravam meses. Mosquito de servo era nuvem. Entrava pela boca do vivente. Se bagualeava com lua. Gado comia na larga. (LPC, p. 224).
A noção de espaço enquanto “conjunto de indicações – concretas ou
abstratas – que constitui um sistema variável de relações” (SANTOS e
OLIVEIRA, apud CORNELSEN, 2007) de ordem geográfica, histórica, social,
discursiva, leva-nos a refletir sobre outras categorias, tais como: topografia,
memória, sociedade, mimese.
O espaço na literatura implica, ainda, a maneira como o autor pretende
criar sua obra em relação à realidade. Segundo Santos e Oliveira (apud
CORNELSEN, 2007, p. 83), a relação do ficcional com a realidade pode se
estabelecer de duas formas: “a literatura se apresentaria ou como ‘um espelho
plano, alimentando a ilusão de que é capaz de mostrar a realidade como ela é’
ou como ‘espelho deformante, com a intenção de deslocar a imagem que a
sociedade tem de si mesma’”.
Manoel de Barros liga-se à segunda maneira de apresentar sua obra em
relação à realidade. Cria, recria, inventa o real. Inventa não no sentido de
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“propor uma ordem falsa, incompatível com a ordem do real”, mas de “afetar o
real, explorar o que o real tem de maleável, ampliando as margens de sua
mutabilidade” (SANTOS e OLIVEIRA, apud CORNELSEN, 2007, p. 84).
Especialmente na segunda parte do Livro de pré-coisas (1985/ 2010),
o poeta imagina “cenários” que não servirão apenas de pano de fundo para a
encenação inaugural da linguagem poética, mas também explicitarão
mananciais imagéticos e ideológicos. O espaço (re) construído por Manoel de
Barros, “em estado de poesia”, revela imagens, cores, sensações em
formação. Por meio deste espaço, o poeta elabora conceitos e desenvolve
reflexões sobre seu fazer poético:
Hoje estou comparado com árvore. Sofrimento alcandorou-me. Meu olho ganhou dejetos. Vou nascendo de meu vazio. Só narro meus nascimentos. Sou trinado por lírio como os brejos. Eu tenho pretensões pra tordo. É nos loucos que grassam luarais. Sei de muitas coisas das cousas. Hai muitas importâncias sem ciência. Sei que os rios influem na plumagem das aves. Que as vespas de conas frondosas produzem mel azulado. E as casas com rio nos fundos adquirem gosto de infância. (LPC, p. 225)
Manoel de Barros inscreve-se na natureza e compara-se à árvore, aos
brejos, ao tordo para deles adquirir saberes sensíveis. Narra o nascimento de
um eu insuspeitado, descobridor de um mundo nunca antes observado, e de
um espaço que influi na caracterização dos seres e no posicionamento do
poeta diante de sua obra. Redimensiona, assim, o sentido de espaço.
O estudo do espaço também gerou produções relativamente amplas que
incluem tanto esforços de interpretação quanto de avaliações críticas. Bakhtin
(2003) fornece material a respeito do imbricamento do tempo e do espaço na
arte, fazendo especulações e análises das obras de Goethe. Milton Santos
(2007), por seu turno, embora apresente similitudes com a visão apresentada
por Bakhtin, firma seu discurso em três pontos fundamentais para a
compreensão do espaço. Douglas Santos (2002) corrobora com tal
pensamento e enfatiza a relação entre espacialidade e sociedade. No campo
filosófico, Bachelard (1974/ 1993) também delineia o entrecruzamento do ser
21
com o entorno a fim de conciliar interior e exterior. Já Tassinari (2001)
diferencia e aproxima o espaço artístico ao espaço do mundo em comum.
Em Bakhtin (2003), observamos que, na Literatura, a visão sobre o
espaço constituiu-se de modo singular. Bakhtin (2003) atestou que o espaço
precisava ser percebido como um todo em formação e não como um dado
acabado e imóvel. Atentou para o fato de que Goethe, para reconstruir
imagética e verbalmente um local que lhe marcara a memória, procurava
mesclar, na folha de papel, o esboço do desenho figurativo da região com
palavras essenciais e sintéticas que trouxessem, com precisão, a descrição do
local. Nesse sentido, “os híbridos artísticos” produzidos traziam-lhe a
visibilidade necessária para alcançar o sentimento do tempo, seu caráter cíclico
na natureza e nos momentos diversos da vida humana, e percebê-lo no todo
espacial do mundo. Bakhtin (2003) investigou, pois, pontos relevantes:
visibilidade do tempo no espaço; inseparabilidade entre o tempo do
acontecimento e o lugar concreto de sua realização; relação essencial entre os
tempos (presente e passado).
A título de exemplificação, tomemos alguns excertos de poemas de
Manoel de Barros para constatarmos a abordagem proposta por Bakhtin. Nos
versos “empeixado e cor de chumbo, o rio Paraguai flui/ entre árvores com
sono...” (LPC, p. 199), obtemos, a partir de contemplações sensíveis do
espaço, informações sobre o tempo – “Corumbá está tardeando” (LPC, 1985/
2010: 199) –, o que nos leva a apreender o segundo aspecto, traçado por
Bakhtin (2003), que sugere a estreita conexão entre o tempo do evento e o
local de sua efetivação. No interior do Livro de pré-coisas (1985/ 2010),
reconhece-se essa relação entre tempo e ambiente natural a partir, por
exemplo, da ação de um pássaro típico da região, em que se evidencia, no
entanto, o predomínio de componentes espaciais frente aos temporais:
Natureza será que preparou o quero-quero para o mister de avisar? No meio-dia, se você estiver fazendo
sesta completa, ele interrompe. (LPC, 1985/ 2010: 233)
22
Temos, ainda, que observar a relação entre tempos, pois
acontecimentos anteriores influem nos posteriores, provocando um efeito de
devir no texto poético. Enxergar, na atualidade, a manifestação da diversidade
de tempos permite-nos relacionar formações do passado a embriões do futuro.
Compreender o “lugar necessário desse passado na série contínua do
desenvolvimento histórico” faz-se imprescindível para a determinação do
presente, para a antecipação do futuro, bem como para se obter a “plenitude
do tempo” (Bakhtin, 1998: 235). Os versos exemplificam: “Alegria é de manhã
ter chovido de noite!” (LPC, p. 206).
Goethe (apud BAKHTIN, 2003), sensível aos sinais da natureza,
desenvolveu a hipótese de que, objetos naturais que nos parecem inertes,
atuam “velada e secretamente” em mudanças espaço-temporais. Montanhas,
contempladas inocentemente como imutáveis, trazem em seu interior
pulsações permanentes que causam alterações climáticas substanciais. Para
um observador comum, tal constatação parece inconsistente, no entanto, a
visão peculiar de Goethe retrata a mobilidade criadora presente em toda parte.
O que era aparentemente imutável aparece, agora, como agente iniciador e
organizador do movimento do enredo.
Em Manoel de Barros, podemos ilustrar esse “imobilismo movente” com
o poema “Carreta pantaneira”:
As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem.
Dez anos de seca tivemos. Só trator navegando, de estadão, pelos campos.
Encostou-se a carreta de bois debaixo de um pé de pau. Cordas, brochas, tiradeiras – com as chuvas, melaram (...)
À sombra do pé de pau a carreta se entupia de cupim. A mesa, coberta de folha e limos, se desmanchava, apodrecente. (...) Enchia-se o rodado de pequenas larvas, que ali se reproduziam, quentes. (...) E a carreta ia se enterrando no chão, se desmanchando, desaparecendo.
Isso fez que o rapaz, vindo de fora pescar, relembrasse a teoria do Pantanal estático. Falava que no Pantanal as coisas não acontecem através de movimentos, mas sim do não movimento.
23
A carreta pois para ele desaconteceu apenas. Como haver uma cobra troncha. (LPC, p. 207-208)
O poeta nos indica que, diante de uma aparente estaticidade, há uma
mobilidade pungente tanto no Pantanal quanto no poema. O advérbio “aqui”
abre-se semanticamente não só para o espaço pantaneiro, mas também para o
espaço do poema, onde as coisas “desacontecem”. A secura, local e poética,
sugere uma pausa, que, no entanto, não provoca interrupções, mas permite um
movimento intervalar de reflexão. Na carreta, encostada “debaixo de um pé de
pau”, vê-se um pulsar vital de movimentos: o bulir dos cupins, o menear quente
das larvas, o entregar-se inteiramente ao chão. O pretenso “não movimento”,
portanto, possibilita o “desacontecimento”, exprime a negação a
acontecimentos comuns, estagnados pela convenção, e desenreda os
discursos usuais.
Segundo demonstrou Bakhtin (2003), as abordagens espaciais na obra
de arte tendem a ser revalorizadas. A necessidade, a busca da totalidade, a
sensação do novo aferem-se pelo movimento contínuo e pelo questionamento
do espaço que deixa de ser tomado como algo acabado.
Milton Santos (2007), que propôs uma renovação crítica da Geografia,
apresenta similaridades ao pensamento de Bakhtin ao conceituar paisagem
como resultado da acumulação de tempos que nada tem de fixo, de imóvel: “os
lugares – combinações localizadas de variáveis sociais – mudam de papel e de
valor à medida que a história se vai fazendo” (SANTOS, 2007, p. 57).
Incorporando um pensamento filosófico, o geógrafo indicou a
importância de se investigar o espaço com base em três pilares fundamentais –
forma, estrutura e função – que interrelacionam objetos naturais a objetos
sociais:
A diferenciação entre lugares serve de base à diferenciação de conteúdos, isto é, do Eu, do Você e do Outro, de uma parte, e dos objetos físicos, de outra parte. A crítica geral do conhecimento nos ensina que o ato da posição e da diferenciação espacial é a condição indispensável para o ato de objetivação em geral, desde que se estabeleça uma relação entre o objeto e sua representação (CASSIRER, apud SANTOS, 2007).
24
Santos (2007) concluiu, portanto, que modificações nas relações entre
componentes da sociedade acarretam alterações de processos e de funções e,
por conseguinte, causam mudanças de valores das formas geográficas.
Reafirmando o pensamento do geógrafo, Douglas Santos admitiu que
o que pensamos de espaço jamais poderá ser compreendido sem que se reflita sobre o próprio movimento que cria, recria, nega e, pela superação, redefine a espacialidade dos próprios homens. Espaço e tempo, considerados aqui como categorias básicas da ciência moderna, são, na verdade, redimensionados na medida em que as sociedades se redimensionam (SANTOS, 2002, p. 23).
Concluímos que a construção do espaço liga-se à construção cultural da
humanidade que, por conseguinte, se empenha na construção de sua
geografia. Barros considera o Pantanal não como um lugar pronto e acabado,
mas como lugar de possibilidade de relacionar e transfigurar o natural e o
humano. Acredita que a ele não se pode impor limites. Vale-se, portanto, da
forma do fragmento para compor seus poemas, estruturando-os de modo
aparentemente aleatório a fim de materializar a complexidade pantaneira e
demonstrar que aquele espaço pode-nos ensinar a enxergar o mundo sob
novos aspectos para promover redimensionamentos.
O poeta, então, integra sua poética com o espaço que contempla. Em
Barros, há uma sedução edênica do/ e pelo mundo da palavra, em que se
vislumbra uma paisagem iniciática do gênesis, ao mesmo tempo em que há o
entendimento do Pantanal como um lugar adâmico, primário, sem feições
definitivas, que está na origem do mundo. Dessa maneira, o poeta supera a
dualidade entre sujeito e objeto, entre o mundo dos símbolos e das coisas, do
imaginário e do real, aproximando sua criação ao conceito, postulado por
Baudelaire (1993, p. 149), de “arte pura”: “magia sugestiva que contenha ao
mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo externo ao artista e o próprio
artista”. O “ser abrigado”, como diz Bachelard (1993, p. 25), que “sensibiliza os
limites do seu abrigo”.
A propósito disso, Bachelard (1974), ao refletir sobre os lugares, o
cenário, os móveis como representações figurativas que transmitem, nas obras
25
de arte filosóficas, significados outros em adição ao literal, ensaiou uma
abordagem mais ampla a respeito da dialética do exterior e do interior,
descortinando a tentativa de reunir ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o
mundo externo ao artista e o próprio artista.
Em um estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima,
topoanálise, o fenomenólogo perscruta a “concha inicial” em toda moradia. A
imagem da casa reaviva o conflito integrador entre realidade e virtualidade,
memória e imaginação, pois aumenta os valores da topografia de nosso ser
íntimo.
Dado esse pressuposto, Bachelard (1974/ 1993, p. 494) volta-se ao
domínio da linguagem e explica que o exterior da palavra funda-se no seu
interior e que, por vezes, as palavras internamente se desligam. Dessa forma,
a linguagem pelo sentido se fecharia e pela expressão poética se abriria:
“fechado no ser, será necessário sempre sair dele. Mal saído do ser será
preciso sempre voltar a ele”.
Para compreendermos melhor essas formulações, atentemos para este
poema de Manoel de Barros:
Se no tranco do vento a lesma treme, no que sou de parede a mesma prega; se no fundo da concha a lesma freme, aos refolhos da carne ela se agrega; se nas abas da noite a lesma treva, no que em mim jaz de escuro ela se trava; se no meio da náusea a lesma gosma, no que sofro de musgo a cuja lasma; se no vinco da folha a lesma escuma, nas calçadas do poema a vaca empluma! (LPC, p. 219)
Barros trabalha a palavra não só explorando suas potencialidades
sonoras (ritmo, rima, musicalidade), mas também ressaltando sua dimensão
plástica. A partir da escolha dos elementos “lesma” / “gosma”, “musgo” /
“lasma”, o poeta revela a viscosidade e flexibilidade da palavra poética. Com os
termos “fundo”, “refolhos”, “jaz”, “vinco”, Manoel de Barros dá ideia de
profundidade e concretiza seu anseio de chegar à essência das coisas. Por
acreditar que as palavras são “conchas de clamores antigos”, Barros (MII,
26
2007, p. I) investiga “oralidades remontadas e muitas significâncias
remontadas” para escutar os “primeiros sons” e descobrir o “primeiro esgar de
cada palavra”.
A fim de incitar sentimentos e deixar marcas, o poeta vale-se dos termos
“treme” / “freme”, “prega” / “agrega”. Ao afirmar “sou de parede” e “sofro de
musgo” “nas calçadas do poema”, o poeta enfatiza o poder da palavra poética
de criar novas realidades e de conciliar o ser do homem ao ser do mundo.
Nesse sentido, podemos relacionar tal proposta aos pensamentos
kantianos acerca da categoria de espaço:
O espaço não é um conceito empírico, extraído de experiências externas. Efetivamente, para que determinadas sensações sejam relacionadas com algo exterior a mim (isto é, com algo situado num outro lugar do espaço, diferente daquele em que me encontro) e igualmente para que as possa representar como exteriores [e a par] umas das outras, por conseguinte não só distintas, mas em distintos lugares, requere-se já o fundamento da noção de espaço. Logo, a representação de espaço não pode ser extraída pela experiência das relações dos fenômenos externos; pelo contrário, esta experiência externa só é possível, antes de mais nada, mediante essa representação (KANT, apud SANTOS, 2002, p. 180-181).
Tassinari (2001) assinalou, nas artes plásticas, esse confronto
conciliador entre ser e espaço. Segundo nos informa o artista e crítico, o
mundo da obra atrai e repele o mundo concreto. Isto porque o mundo da obra
requer o mundo concreto para se justificar enquanto obra e reiterar sua
especificidade, porém não deseja conformar-se a uma dimensão meramente
imitativa. Esse aspecto duplo da arte contemporânea permite ao observador
perceber que a obra está ligada ao espaço habitual em que vive, mas não o
imita, na medida em que provoca alterações nesse espaço pelo seu fazer.
Emergindo do espaço cotidiano, a obra dá novas configurações ao já
conhecido e acrescenta-lhe outros sentidos.
Tassinari complementa ao dizer que, na arte contemporânea, o espaço
em obra comunica-se com o espaço do mundo em comum, modificando-o e ao
mesmo tempo deixando-o inalterado:
27
Uma obra contemporânea não transforma o mundo em arte, mas, ao contrário, solicita o espaço do mundo em comum para nele se instaurar como arte (TASSINARI, 2001, p. 76).
No tocante a esse aspecto, Manoel de Barros, ao longo de sua trajetória
poética, procura relacionar seus poemas ao ambiente natural em que vive de
modo paradoxal: o poeta ora torna o espaço comum parte do espaço da obra,
ora adota uma postura crítica com relação à realidade, à linguagem poética, à
exploração e interpretação do estar no mundo.
Em “Postais da cidade” (PCP, p. 19), Manoel de Barros procura
“fotografar” pontos e personagens depreciados da cidade. O poema “O
escrínio” constrói um detalhado conjunto imagético da cidade, representando-a
como um cofre de bugigangas: “rio com piranhas camalotes, pescadores e
lanchas carregadas de couros vacuns”; “sobrados remontados na ladeira,
flamboyants, armazéns de secos e molhados”; “turcos babaruches”; “estátua de
Antônio Maria Coelho, herói da Guerra do Paraguai, cheia de besouros na
orelha”; “cinema Excelsior”.
Já em “Dona Maria” (PCP, p. 22), o poeta, apontando para uma lírica
social, discute de modo crítico e contundente a questão da indigência:
- Entendo. A senhora vai ficar sentada na calçada, de vestido sujo, cabelos despenteados, esquálida, a soprar uma gaitinha rouca, não é?
Depois as pessoas ficarão com pena da sua figura esfarrapada, tocando uma gaitinha rouca, e jogarão moedas encardidas em seu colo encardido, não é?
Para Manoel de Barros, o que importa, pois, não é o mero registro
descritivo de lugares, bichos, coisas da natureza de um determinado espaço,
mas, sim, a maneira de se “mexer com as palavras” para promover, com elas,
a renovação do mundo em comum e desvelar realidades deixadas à margem.
No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), Manoel de Barros (p. 197) realiza
uma “anunciação do Pantanal”, uma visitação por meio de “nódoas de
imagens”. O poeta não se ocupa em delinear, com traços nítidos e precisos, a
exuberância do local, nem se interessa pela tematização pitoresca do que há
no Pantanal, mas, sim, em inventar e revelar o ambiente natural por meio de
28
manchas. Essas manchas, que poderiam ser consideradas como defeitos,
deixam vislumbrar um mundo às avessas em que seres ínfimos e coisas
desimportantes têm real importância e assumem posição central em sua
criação poética. Barros reitera:
A partir dos defeitos de uma pedra é que o escultor começa seu trabalho. A partir de um visgo de borboleta na tela, Miró podia começar algum deslumbramento plástico. A partir de uma palavra torpe, pode chegar-se ao balbucio dela, ao seu murmúrio nupcial. (...) É preciso que as palavras nelas mesmas se inaugurem (BARROS, apud MULLER, 2010, p.84).
Nesse sentido, Barros quer criar, com palavras, “uma naturezinha/ particular,
até onde o seu pequeno lápis poderia alcançar” (PR, p. 439).
A cidade de Corumbá é, portanto, recriada: “ia o silêncio pela rua
carregando um bêbado; os ventos se escoravam nas andorinhas”; “arbustos de
espinhos com florimentos vermelhos/ desabrem nas pedras”; “as ruínas dão
árvores; nossos sobrados enfrutam” (LPC, p. 197-198). O espaço da obra, no
entanto, guarda resquícios do espaço em comum: o poeta deixa com que o
Pantanal possa ser reconhecido, mas também provoca estranheza com relação
ao local. Os aspectos cotidianos tornam-se experiências estéticas que
compõem um espaço artístico inusitado.
Retomando nossas questões iniciais, concluímos que, para Manoel de
Barros, o espaço natural define-se como lugar de possibilidades para
transfigurações da linguagem e da visão perante a poesia e o mundo. Seu
estilo de escrita embebe-se de uma retórica de pantanal: repleta de
descontinuidades, instabilidades metamorfoseantes, fragmentações. A cerca
disso, diz o poeta:
Do meu estilo não posso fugir. Ele não é só uma elaboração verbal. É uma força que deságua. A gente aceita um vocábulo no texto não porque o procuramos, mas porque ele deságua das nossas ancestralidades. O trabalho do poeta é dar ressonância artística a esse material (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 28-29).
29
Sua linguagem, pois, embrenha-se no espaço pantaneiro para “traduzi-
lo”: faz-se complexa ao construir uma rede de relações inovadoras entre seres
e termos; configura-se ora rica de adjetivações ora plena unicamente de
substantivos para materializar os períodos de cheia e de estio da região;
liberta-se das convenções para criar.
1.2 Espaço e corpo
Ao tratarmos da compreensão e incorporação de certo espaço, temos
que nos referir obrigatoriamente ao corpo. Isto porque, desde a infância,
procuramos desbravar o mundo e possuí-lo pelos sentidos. As cores, os sons,
os cheiros, as texturas são pouco a pouco reconhecidos pelo corpo. Até
mesmo a poesia – que, segundo Manoel de Barros (AA, p. 178) “não é para
compreender, mas para incorporar” –, passa a ser absorvida por meio de
“percepções da sensibilidade” (MÜLLER, 2010, p. 162).
Zumthor (2005, p. 90) reflete sobre o comprometimento do corpo na
percepção do poético: “o texto poético significa o mundo. É pelo corpo que o
sentido é aí percebido”. Para autor, “o mundo que me significa o texto poético é
necessariamente da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível”. A
pluralidade de sensações, despertadas pela leitura poética, é, pois, a
manifestação da “presença do corpo inteiro no funcionamento de cada sentido”
(ZUMTHOR, 2005, p. 90-94).
Manoel de Barros desvela a presença do corpo ao ver, ouvir, tocar o
Pantanal com/ pelas palavras. O poeta vê o amanhecer, as andorinhas e as
garças, pois encontra no amanhecer, o despertar para um outro mundo; nas
andorinhas, a possibilidade de migração constante, de viagens lingüísticas
imprevisíveis; e nas garças, a elaboração de iluminuras que colorem
originalmente o poema.
Observa com atenção o rio, os brejos, as rãs, os sapos, os canoeiros, os
bêbedos carregados pelo silêncio e as pessoas cheias de prenúncios que
“chegam de ver pregos nadar e bugio pedir a bênção” (LPC, p. 198). Olha,
pois, o rio por reconhecer seu caráter fecundante e renovador; os brejos, por
30
neles perceber ambiente propício para instauração de um novo cosmo; os
sapos vegetais, por querer promover a fusão dos reinos naturais; os canoeiros
e bêbedos, por serem tipos desprestigiados que tem o dom de enxergar o lado
intocado das coisas.
Contempla, também, os arbustos espinhentos que furam as convenções
e geram a novidade no poema com seus florimentos cor de sangue, os
sobrados com paredes podres, as ruínas que compõem um novo mundo, uma
nova poesia. O poeta escuta o silêncio, o galo que ainda não se arriscara, o
gorjeio dos pássaros, o apito da lancha. A não palavra, “o som que ainda não
deu liga”, a “palavra sem pronúncia, ágrafa” (RAC, p. 368), o ruído
desarticulado interessam, portanto, ao poeta e ao poema.
O poeta toca o Pantanal ao compor, por exemplo, uma analogia entre o
“Rio desbocado” e o poema. Assim como seu poema, o rio “inventa novas
margens”, “erra pelos cerrados”, “prefere os deslimites do vago” (LPC, p. 201).
Como o rio que abraça e cheira a terra, Manoel de Barros quer friccionar, com
sua mão criadora, as palavras para devolvê-las, ao poema, revigoradas. Seu
toque, primeiramente firme e ríspido, amaina-se:
Esfrega o rosto na escória. E invade, em estendal imprevisível, as terras do Pantanal.
Depois se espraia amoroso, libidinoso animal de água, abraçando e cheirando a terra fêmea. (LPC, p. 201)
Na poesia de Manoel de Barros, os sentidos são tomados como órgãos
coletores de conhecimento. Por meio do ver, ouvir, tatear, instala-se uma
“acumulação memorial do corpo”:
Barulhinho vermelho de cajus e o riacho passando nos fundos do quintal... Dali se escutavam os ventos com a boca como um dia ser árvore. Eu era lutador de jacaré. As árvores falavam. Bugre Teotônio bebia marandovás.
31
Víamos por toda parte cabelos misgalhadinhos de borboletas... Abriu-se uma pedra certa vez: os musgos eram frescos... As plantas Me ensinavam de chão. Fui aprendendo com o corpo. Hoje sofro de gorjeios Nos lugares puídos de mim. Sofro de árvores. (CUP, p. 114-115)
Com “barulhinho vermelho”, “se escutavam os ventos com a boca” e “as
plantas me ensinavam de chão”, Manoel de Barros desenvolve criações
sinestésicas reveladoras: relaciona ouvir/ ver, ouvir/ saborear, ouvir/ tatear de
modo integrador para reconfigurar o espaço.
Conforme nos mostra Zumthor (2000, p. 95), então, “toda poesia
atravessa, e integra mais ou menos imperfeitamente, a cadeia epistemológica
sensação-percepção-conhecimento-domínio do mundo: a sensorialidade se
conquista no sensível para permitir, ultimamente, a busca do objeto”.
Manoel de Barros promove o conhecimento do mundo pelo corpo e
coloca em prática a ideia de Zumthor (2000, p. 90) que estabelece relações
entre corporeidade e apreensão do espaço – “os eixos espaciais direita/
esquerda, alto/ baixo e outros são apenas projeção do corpo sobre o cosmo”–
e reitera o fato de que “o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto
de origem e o referente do discurso”.
O riacho que corre aos fundos da casa traz, ao poema, ares da infância,
momento inaugural em que tudo era explorado por via sinestésica e corporal. A
fantasia dá vazão à renovação sem limites e deixa ecoar sons e vozes
reveladores de um novo mundo.
Zumthor retoma a retórica difundida na Antiguidade que ensina que
para ir ao sentido de um discurso (...) era preciso atravessar as palavras; mas que as palavras resistem, elas têm uma
32
espessura, sua existência densa exige, para que elas sejam compreendidas, uma intervenção corporal, sob a forma de uma operação vocal: seja aquela da voz percebida, pronunciada e ouvida ou de uma voz inaudível, de uma articulação interiorizada (ZUMTHOR, 2000, p. 89).
Assim, a leitura poética é a escuta de uma voz e “o leitor, nessa e por
essa escuta, refaz em corpo e em espírito o percurso traçado pela voz do
poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado, aqui, sobre a página”
(ZUMTHOR, 2000, p. 102).
O efeito poético é tanto mais forte quanto melhor soa a voz: nos interstícios da linguagem imiscui-se, pela operação vocal, o desejo de se desvencilhar dos laços da língua natural, de se evadir diante de uma plenitude que não será mais do que pura presença (ZUMTHOR, 2000, p. 145).
Presença. Manoel de Barros quer presentificar sua voz. Para tanto,
investe de simbologia seres como a lesma. Em nota de rodapé poética, Barros
afirma que
a fim de percorrer uma lesma desde o seu nascer até sua extinção, terei que aprender como é que ela recebe as manhãs, como é que ela anoitece. Terei de saber como é que ela reage ao sol, às chuvas, aos escuros, ao abismo, ao alarme dos papagaios. Vou ter que encostar meu ventre no chão para o devido rastejo. Terei que produzir em mim a gosma dela a fim de lubrificar os caminhos da terra (...). Terei de aprender a marcar com a minha saliva o chão dos poemas (RAC, p. 371).
Manoel de Barros, “convê” a lesma sendo-a, expondo, assim, de modo
enfático, a necessidade de deixar-se guiar pelo corpo para conhecer o “ser das
coisas” e para levar seus leitores a sentir corporalmente seus poemas.
A poesia, pois, transcende a linguagem, “transforma-a e é transformada
por ela” (ZUMTHOR, 2000, p. 139). Em vias performáticas, o texto se
transforma em voz e provoca “uma mutação global [que] afeta suas
capacidades significantes”, modificando o seu “estatuto semiótico” e gerando
“novas regras de semanticidade” (ZUMTHOR, 2000, p. 148).
Zumthor (2000) entende, então, que a “voz emana do corpo” (p. 95) e
depois retorna a ele. Ela “desaloja o homem de seu corpo” (p. 98) para fazê-lo
33
habitar sua linguagem, revelando-o um limite e dele liberando-o. Manoel de
Barros, por sua vez, tem desejo de “alcançar a voz das árvores”, o “canto
apenas”, a “despalavra” (MÜLLER, 2010, p. 145).
1.3 Espaço e poesia
Transgredir a linguagem do poder, investigar os interstícios para
descortinar saberes insuspeitados, libertar o homem para a possibilidade de
assumir seus múltiplos desejos e para (re) criar o real, conjugar de modo
irrealizado as palavras: eis alguns alvos da poesia.
Contracanto, agudo grito de revolta, antidiscurso que “enxameia o brilho
efêmero e equiprovável de múltiplas estrelas cadentes, em oposição ao brilho
fixo e estável das constelações lógicas e harmonicamente constituídas”, a
poesia quer “desnudar a falsa ordem dos discursos vigentes” e operar a
“desaprendizagem da fala” (SEGOLIN, 1983, p. 10).
Em um trabalho contra as forças coercitivas do significado, o poeta
procura instaurar uma linguagem contra os códigos consagrados. Entendida
como um ser de linguagem, que não tem compromisso com verdades
estabelecidas, que se dedica às “inutilezas” e se coloca na contramão do modo
de pensar dominante, a poesia tem, pois, como condição prévia o não-saber.
Quer libertar-se dos limites do real para superar o conhecimento estagnado e
despertar um eu insuspeitado.
Manoel de Barros, por seu gesto subversivo, dinamiza a linguagem de
modo singular. A recorrência de termos que sugerem a ideia de destruição
construtora – “escombros”; “ruínas” – é notória: o poeta desconstrói para fazer
renascer/ germinar, pela linguagem, uma nova natureza pantaneira: “as ruínas
dão árvores” (LPC, p. 198).
Procurando encenar os princípios, o poeta tenta recuperar o momento
em que “as coisas só davam aspecto/ Não davam ideias./ A língua era
incorporante” (LI, p. 318). Manoel de Barros faz com que a palavra volte à sua
função primeira, incitando-a a refazer-se. Para tanto, põe a linguagem “em
estado de emergência” (BACHELARD, 1974/ 1993, p. 11), em crise,
34
mergulhando em uma viagem de retorno às fontes não contaminadas, em que
a reaparição do esquecido e a subversão do estabelecido inspiram uma
regeneração do espaço, elevando o “ser” à categoria superior em importância.
Ao refazer a ligação com as pré-coisas, Manoel de Barros revela a
essencialidade do ser. A natureza torna-se expressiva e o sentimento passa a
ser corporificado na imagem. Por ser cultor da originalidade, Manoel de Barros
assume que a imagem poética “transporta-nos a origem do ser falante”
(BACHELARD, 1974/ 1993, p. 7). O poeta fala, pois, “no limiar do ser”
(BACHELARD, 1974/ 1993, p. 2).
As imagens, inquietantes e incomuns, revestem a linguagem de
conteúdos formalizados alógicos e primam por (re) descobrir a essência das
coisas. Apelando para a sensação e dando nova existência à realidade, Barros
desidentifica os objetos para criar novos seres e novas possibilidades de
conhecimento. Para compreendermos melhor tal procedimento, tomemos uma
reflexão do pintor Lapicque:
Se, por exemplo, pinto a passagem do rio em Auteuil, espero que a minha pintura me traga tanto imprevisto, embora de outro gênero, quanto o que me trouxe o curso d’água verdadeiro que vi. Nem por um instante, se trata de refazer exatamente um espetáculo que já pertence ao passado. Mas necessito revivê-lo inteiramente, de uma maneira nova e pictórica desta vez, e assim fazendo, dar a mim mesmo a possibilidade de um novo choque (LAPICQUE, apud BACHELARD, 1974/ 1993, p. 17).
Choque, estranhamento. Manoel de Barros igualmente apropria-se de
uma imagem da realidade para transpô-la em imagem poética. O Pantanal
captado pela visão revela-se inesperado em sua complexidade e exige do
poeta a criação de um efeito de espanto para que se sinta, por meio do
rearranjo inusitado das palavras, um “novo choque”. O poeta deseja que os
leitores possam refazer a imagem que o tocou e sentir efetivamente, pela
poesia, as sensações que o maravilharam.
O objeto, portanto, dá-se, entrega-se enquanto aparência, aparece à
visão. Cabe ao poeta, pela linguagem, criar algo que pareça com aquilo que lhe
35
apareceu. Formada, a imagem busca aprisionar a alteridade estranhas das
coisas e dos homens. Segundo Bosi,
a imagem não decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma para o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade receber as sensações de luz e cor que o mundo provoca. Mas construído: a imagem resulta de um complicado processo de organização perceptiva que se desenvolve desde a primeira infância (BOSI, 2008, p. 22).
As imagens poéticas constroem-se por similitudes, analogias sensoriais
e suas características são estabelecidas pela qualidade dos afetos, podendo
configurar-se nítidas/ esfumaçadas, fiéis/ distorcidas. Bosi acrescenta que
a imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo (BOSI, 2008, p. 19).
Ainda refletindo sobre a percepção visual, Bosi (1999) nos informa que
“o olhar não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto
sensibilidade e enquanto motricidade” (p. 66). Tal modo de olhar está vinculado
a um procedimento de busca do “saber verdadeiro” em que o ser “conhece
sentindo e sente conhecendo” (BOSI, 1999, p. 74).
Manoel de Barros não apenas identifica, mas também ilumina, desnuda
a coisa contemplada. O poeta (1991/ 2010) exibe imageticamente constatações
particulares advindas de uma observação sinestésica e de uma aprazível
experimentação da natureza:
Sapo de noite arregala o olho pra desmedir a/ saudade. No inverno as anhumas verdejam a voz.
36
Na beira do entardecer o canto das cigarras/ enferruja. Dentro da mata no entardecer o canto dos/ pássaros é sinfônico. (CCA, p. 289, 290, 291).
O poeta apregoa, portanto, o estudo do “território” não por meio de um
método científico, rigoroso e racional, mas, sim, por meio de uma prática
poética de rigor, flexível e sensível, em que a análise se efetiva sensorialmente:
“Sabiás de outubro não delimpam seus cantos;/ os de março delimpam.
Estamos estudando a/ razão disso por lâminas de cantos” (CCA, p. 293). O
singular poeta mato-grossense ressalta que essa análise não necessita de
instrumentos precisos, pois os olhos, nus e propensos a enxergar as coisas
sob ângulos diferentes, são muito mais eficazes para a captação e a
transformação de suas essências: “As 4000 estrias de um olho de mosca no
verão/ irisam. Isso só pode ser visto sem microscópio” (CCA, p. 289).
Olhar poeticamente, então, dispensa o uso de lentes ou aparelhos de
manipulação da realidade. Requer, pois, um revisitar das imagens,
fundamentado no impacto “puro” que tal visualidade causa no poeta. A
condensação do olhar com o objeto olhado cria uma nova espacialização. Não
apenas se relata o presenciado, mas também se possibilita uma participação
efetiva no acontecimento e no espaço experimentado.
Nesse sentido, “fazer poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone
(figura)” (PIGNATARI, 1981, p. 14), ou seja, transfigurar o signo-para, que
conduz a algo extra-verbal e é predominantemente constituído por contigüidade
(proximidade), em signo-de, que quer ser a coisa representada, sem poder sê-
lo e é estruturado por similaridade (semelhança).
Na obra poética de Manoel de Barros (LPC, p. 198-199) é promovida a
metamorfose não só do espaço, mas também do eu-lírico: da 1ª pessoa do
plural – “Há vestígios de nossos cantos nas conchas destes/ banhados” – para
1ª pessoa do singular – “há um rumor de útero nos brejos que muito me/
repercute”. Tem-se, portanto, um voltar-se sobre si mesmo.
Isso reforça o pensamento de Bosi (2008, p. 21) quando propõe que
“quem quer apanhar para sempre o que transcende o seu corpo acaba criando
um novo corpo”. A escolha do modo verbal, a composição cíclica do poema e o
desbaste da fixidez/ rigidez da palavra deixam à mostra o exercício de
37
construção de um novo Pantanal promovido pelo poeta. É, portanto, “uma alma
inaugurando uma forma” (JOUVE, P-J., apud BACHELARD, 1974/ 1993, p. 6),
um poema instaurando um outro espaço. Manoel de Barros (LPC, p. 197) faz
uso do gerúndio (“Corumbá estava amanhecendo (...). Ia o silêncio pela rua
carregando um bêbado”) para indicar um Pantanal em processo, que não está
formado. “Da penumbra/ semi-escuridão, passando pela claridade/ sol até o
lusco-fusco / pôr-do-sol”, verifica-se a busca de um conhecimento totalizante da
natureza pantaneira, da vida, da poesia. O trabalho da palavra torna-a
maleável, moldável, plástica.
A poesia de Barros percebe, então, o outro lado da realidade e convoca
a fraternidade por meio de uma outra voz. “Sua voz é outra porque é a voz das
paixões e das visões” (PAZ, 2001, p. 140) que modula a preocupação de se
conjugar a humanidade para um bem comum. Paz (2001) compreende que a
poesia “se ouve com os ouvidos, mas se vê com o entendimento” (p. 143).
Concebe, ainda, o poema enquanto “conjuro verbal que provoca no leitor, ou
no ouvinte, um fornecedor de imagens mentais” e acrescenta que “suas
imagens são criaturas anfíbias: são ideias e são formas, são sons e são
silêncio” (p. 143).
Promovendo a “loucura das palavras”, “voando fora da asa”, Barros (LI,
p.26 e p. 21) liberta-se para atingir resultados transcendentes, transfiguradores
e incomparáveis. A poética de Barros transporta-nos “para onde não se é
esperado, ou ainda e mais radicalmente, [abjura] o que se escreveu (mas não,
forçosamente, o que se pensou), quando o poder gregário o utiliza e serviliza”
(BARTHES, 1994, p. 27).
Vista enquanto potência inicial da alma, a poesia dá abertura a
ressonâncias e repercussões. No primeiro plano, ouvimos o poema e seus
efeitos dispersam-se nos diferentes níveis da vida; já no segundo, falamos o
poema, apropriamo-nos do ser do poeta que nos convida a um
aprofundamento de nossa existência. O espaço da poesia é, pois, “a figuração,
a profundidade, o lugar onde o poeta fala, no limiar da linguagem” (MUCCI,
2009, p. 46).
38
CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-
coisa
2.1 À luz da crítica, a poesia
O estudo da obra de Manoel de Barros requer sensibilidade. Isto porque,
ao desestruturar a linguagem, ao reinterpretar o mundo, ao associar
intimamente palavra-imagem, o poeta volta-se aos momentos iniciais da
literatura – que procurava criar e instaurar uma linguagem que fosse além da
mera veiculação de mensagens, tentava religar o homem ao cosmos e
acentuava a plasticidade e o caráter performático da palavra – e exige do leitor
uma participação efetiva e diferenciada.
Müller (2003, p. 279), por exemplo, refuta a maneira como alguns
críticos vêem a poesia de Manoel de Barros, já que “esquadrinham, analisam,
decompõem matematicamente, e nada encontram”. Propõe um novo modo de
olhar:
Será preciso talvez começar a olhar para a obra de Manoel de Barros como um todo articulado em torno de um projeto tenaz e insistente, mas cujas fronteiras (semânticas, discursivas) se movem e se deslocam constantemente, obrigando o leitor a um processo também constante de rememoração e ressignificação (MÜLLER, 2003, p. 279).
Ao analisar o conjunto da obra poética de Manoel Barros a partir do livro
Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo (2001/ 2010), Müller (2003, p. 276-
277) acredita que “todos os livros são amostras de um só livro”. Preocupado
com o modo de construção da escritura de Barros, desvela como o poeta-bugre
traça os desvios poéticos. Observa que Barros é “o poeta da natureza da
palavra (...) palavra, que não pretende descrever o real, mas fantasiar”, eis a
natureza da poesia, dos seres desimportantes, dos desheróis, da infância e do
próprio poeta.
39
Descrevendo sua “caligrafia emendada e tímida”, Carpinejar (2006)
insinua qual o melhor modo de compreender/ incorporar seus poemas: “cheirar
o papel para entender o que ele escreve”. A partir de dados biográficos de
Manoel de Barros, Carpinejar (2006) reflete sobre a trajetória literária do poeta
que “adota a autenticidade dos defeitos, em vez de aceitar o polimento do
senso comum”.
Bosi (2003, p. 488) ressalta a “coerência vigorosa e serena da palavra
de Manoel de Barros, nascida em contato com a paisagem e o homem do
Pantanal e trabalhada em uma linguagem que lembra, a espaços, a aventura
mitopoética de Guimarães Rosa”.
No artigo “Manoel de Barros: o poeta universal de Mato Grosso do Sul”,
Menezes (2001a) faz um levantamento da posição da crítica diante da obra do
poeta e tece comentários sobre sua poesia. Põe em destaque comentários de
críticos como Millôr Fernandes e Geraldo Carneiro sobre sua original escrita
poética. Millôr Fernandes (apud MENEZES, 2001a) considera a obra de
Manoel de Barros como “única, inaugural, apogeu do chão”. Geraldo Carneiro
(apud MENEZES, 2001a) exalta sua poesia ao exclamar: “Viva Manoel violer
d’amores violador da última flor do Lácio inculta e bela. Desde Guimarães Rosa
a nossa língua não se submete a tamanha instabilidade semântica”. Menezes
(2001a) conclui, então, que “conhecer a obra de Manoel de Barros é deixar-se
levar pela magia de um mundo novo, um mundo no qual as coisas possuem
sentido e deixam emanar a essência vital do universo”.
Em outro artigo intitulado “A auto-reflexão em ‘estado de palavra’ na
poética de Manoel de Barros”, Menezes (2001b) reflete sobre a metalinguagem
em sua poesia. Tomando como exemplo o livro Retrato do artista quando
coisa (1998/ 2010), concebe que “a palavra é um ser ativo e dinâmico capaz
de elaborar uma nova visão do mundo” e propõe uma leitura da poesia como
“libertação da realidade” (Menezes, 2001b).
Manoel de Barros reconhece que seu livro de poemas Retrato do
artista quando coisa (1998/ 2010) é uma alusão visível ao Retrato do artista
quando jovem (1998), de Joyce, porém, admite: “só não serei jovem nos
poemas – serei coisa” (BARROS, 1998, p. 7).
40
Barros (1998/ 2010) permite abertamente que os insetos, as plantas, as
aves integrem e usufruam preponderantemente seu corpo: “Insetos me
desempenham”; “tenho predomínio por lírios”; “plantas desejam a minha boca
para crescer/ por de cima”; “sou livre para o desfrute das aves” (RAC, p. 357).
O poeta torna possível subtrair-se de suas limitações humanas para elevar-se
à coisa, bem como à transmutação da realidade e de si próprio:
Uma rã me pedra (A rã me corrompeu para/ pedra. Retirou meus limites de ser humano/ e me ampliou para coisa) Um passarinho me árvore (O passarinho me/ transgrediu para árvore) Os jardins borboletam (Significa que os jardins/ se abrem agora só para o buliço das/ borboletas?) Folhas secas me outonam (Eu sou meu outono). (RAC, p. 358)
Manoel de Barros redimensiona as palavras, operando combinações
inéditas ao ponto de declarar “Já enxergo o cheiro do sol” (RAC, p. 357).
Impregnadas do poeta, as palavras chegam “enferma de suas dores, de seus/
limites, de suas derrotas” (RAC, p. 359). Assim, Manoel de Barros assevera:
“as palavras têm que adoecer de mim para que se/ tornem mais saudáveis”
(RAC, p. 360).
Com o intuito de buscar a palavra primeira, Manoel de Barros altera o
estado de calmaria, imposto pelos usos convencionais, a que estão sujeitas as
palavras, induzindo-as a dizer o que normalmente não dizem, e promove
viagens impensadas: “Bom é corromper o silêncio das palavras”; “gosto de
viajar por palavras do que de trem” (RAC, p. 358).
Compreendendo o poeta como um ser extraído das palavras, Barros
confirma que as palavras retiram com força o poeta de dentro de si mesmo:
“Será arrancado de dentro dele pelas palavras/ a torquês” (RAC, p. 359). As
palavras dominam o poeta e o conduzem à apreensão da essência das coisas.
O poeta entra em “estado de palavra” e passa a enxergar as coisas ainda sem
forma, sem existência visível ou sensível:
41
O que resta de grandezas para nós são os/ desconheceres; para enxergar as coisas sem feitio é preciso/ não saber nada. (...) É preciso entrar em estado de palavra (RAC, p. 363).
Desse modo, a palavra une o ser humano às coisas, conectando-o
integralmente ao universo. A reflexão sobre a palavra permite, portanto, o
levantamento e a descoberta de aspectos basilares que atravessam a obra
poética de Barros.
Ao discutir sobre o termo metalinguagem, Menezes põe em destaque a
literatura como objeto “olhante e olhado”:
Com o dom da palavra, o poeta pode, a partir da manipulação destas palavras, fazer parte da natureza. E, como parte da natureza, transmutar-se em seus diferentes reinos (MENEZES, 2001b).
Ainda guiando-se por conceitos filosóficos, Menezes explica:
Ser é igual à essência, o mais puro e límpido estágio almejado, e o homem é igual à existência, tempo de se exercer a evolução. Portanto, é no praticar a existência que se alcança o Ser, ou essência. (MENEZES, 2001b)
Utilizando um verso de Fernando Pessoa como epígrafe – “Não ser é
outro ser” (RAC, p. 357) –, Manoel de Barros observa que aquilo que não tem
existência para os olhos comuns se torna um novo ser. O poeta enxerga a
essência e o avesso do ser, transfigura-o e provoca uma sensação de
desconhecimento – não ser – para entregar ao leitor outro ser.
Moncinhatto (2009, p. 16), em seu estudo intitulado “A palavra como
processo reflexivo: a poesia da invencionice de Manoel de Barros”, investigou,
por sua vez, como a reflexão metalingüística e chistosa fundamenta o processo
criativo de Manoel de Barros na trilogia Memórias Inventadas. A autora optou
por analisar três poemas de cada obra por acreditar que tais textos poéticos
oferecem a oportunidade de reencontrar um poeta de demonstrada consciência
crítico-literária que, ao refletir sobre o ser criança e as imagens das coisas do
chão, formula sua própria leitura de mundo e concepção de poesia.
42
Na poesia de Barros, as informações sobre o código são utilizadas com o intuito de ocasionar distúrbios propositais no momento de criação e da leitura. Substituir termos e dar a eles novos significados é mexer com os entremeios da metalinguagem (MONCINHATTO, 2009, p. 16).
Sávio (2004), em seu artigo “A poética de Manoel de Barros: uma
sabedoria da terra”, faz sua análise por outro viés. Observa como o poeta, por
meio de “imagens de extrema sensorialidade, volta-se para a terra e para a
natureza”, incorporando-a ao próprio texto. Para a autora, o poema torna-se o
espaço onde o homem redescobre o sentido de tudo e encontra um novo lugar
para si mesmo:
A vida surge na fermentação dos pântanos onde novas espécies estão sempre sendo gestadas. É a vida que vem da decomposição, da podridão, a ‘química do brejo’, num verdadeiro processo alquímico que ali acontece (SÁVIO, 2004).
Castro (1991, p. 12), em seu livro A poética de Manoel de Barros: a
linguagem e a volta à infância, por seu turno, percorre a obra poética de Barros
para verificar como o mundo e o Pantanal, “em todo o complexo
transformacional que, ele, o poeta, desde criança, contempla e admira” são
expressos em palavras e ganham o espaço do todo.
Tomando por base as reflexões de tais críticos, podemos captar indícios
de como a obra de Manoel de Barros necessita ser estudada. O poeta recolhe
miudezas, “inutilezas”, coisas e seres desimportantes a fim de realizar uma
reviravolta no pensar comum. O delírio do verbo pode ser experimentado
quando Manoel de Barros consubstancia criações alógicas, transfigurações
imaginativas, aproximações de realidades tensas e combinações de palavras
contraditórias para desdizer o dizível, chegar ao inefável e se apossar da
essência das coisas. Faz ele empenhadas explorações para alcançar o
“antesmente verbal”, “a despalavra” e, desse modo, encontrar as pré-coisas, as
origens.
Por ter um plano poético insistentemente perseguido – promover a
loucura das palavras para criar novos espaços poéticos –, a leitura da poesia
43
de Manoel de Barros exige a percepção de que os conceitos são semoventes.
Manoel de Barros retira a palavra de seu uso acostumado, causando
estranheza e criando novas relações de sentido. O poeta quer desestruturar a
linguagem, inventar novos comportamentos para as coisas e explorar o mundo
a partir de perspectivas incomuns.
O uso recorrente do prefixo des- mostra que o poeta quer desfazer o
real, o mundo, a linguagem, para construir, pela palavra, um real transfigurado,
um mundo novo e, assim, instaurar uma linguagem renovada. Procurando
“desaprender”, “desentender”, “desexplicar”, o poeta desfigura aquilo que já
existe com o intuito de promover os “deslimites” das palavras, romper com
regras e normas e inventar “descomportamentos” para tudo que o rodeia.
Como afirmam Heloisa Godoy e Ricardo Câmara:
“Criar começa no desconhecer”. É assim que o escritor Manoel de Barros explica uma poética (...) que apreende a essência dos objetos e dos homens desautomatizando a linguagem, “desexplicando” o mundo para melhor captar – e recriar – seu mistério (GODOY e CÂMARA, 1998, p. 5).
Manoel de Barros reconhece o Pantanal como lugar em que
desenvolveu seus primeiros conhecimentos, espaço da infância, onde recebeu
as primeiras percepções do mundo, onde seu olhar “viu primeiro as coisas”,
onde suas “ouças ouviram primeiro os ruídos do mato”, onde seu olfato “sentiu
primeiro as emanações do campo”. Esse universo infantil propiciou a
apreensão de conhecimentos por meio do corpo: “O que sei e o que uso para a
poesia vêm de minhas percepções infantis” (BARROS, 2006, p.30).
As lembranças reconstruídas da infância confundidas com o presente da
escritura revelam um jogo constante entre vida/ arte, arte/ vida. Há uma
mistura, reelaboração e modificação de fatos e memórias em que o eu habita e
é habitado pela vida da escritura. Dados e vivências pessoais são projetados/
transfigurados em arte. As imagens trazidas e reconfiguradas pela memória
mostram-se polivalentes, incompletas e apelam para uma experimentação
sensorial.
44
Valendo-se da tríade memória/ invenção/ recriação, o poeta promove
uma auto-representação oblíqua, em que a própria construção composicional
das obras é ambígua: a poesia é, por vezes, convertida/ transfigurada em uma
estética da prosa.
Manoel de Barros manipula, pois, espaços e pessoas que conheceu
para construir artisticamente ambientes e seres. Pela combinação de
componentes da vida real e de invenções estéticas, o poeta cria novas
realidades.
Para compreendermos a escritura de Manoel de Barros sob o ponto de
vista da presença da autobiografia, faz-se necessário definir tal produção
literária. Bakhtin (2003, p. 139) tece importantes considerações sobre a
autobiografia, concebendo-a como “forma transgrediente imediata em que
posso objetivar artisticamente a mim mesmo e minha vida”. Ao identificar o
autor da autobiografia como “aquele outro possível”, Bakhtin conclui que o
discurso autobiográfico assume sentido quando constrói unidade artístico-
biográfica.
Manoel de Barros cria textos poéticos em que procura perceber “o outro
em relação a si mesmo” (Bakhtin, 2003, p. 13). A transcriação de dados
biográficos em fatos ficcionais promove o experimentar (de) novo e reaviva
duplicidades, ambigüidades, polissemias:
Somos diferentes. Eu mexo com palavras. O outro é fazendeiro de gado. Enquanto o cidadão mantém a casa em ordem, o poeta cultiva irresponsabilidades. Eu sou rascunho de um sonho. Ele é pessoa da terra. Eu tenho um entardecer de angústias. E o outro vai pro bar se esquecer. Recebo no meu olho beijamento de águas. Me sinto um ralo de sabedoria. E o outro zomba de mim. Gosto de me multiplicar todos os dias lendo frases do Gênesis. Ele se compadece de mim. A inércia é meu ato principal. Ele mexe com bois (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 25).
O poeta deixa-se reconhecer por resíduos sígnicos, breves imagens,
soluços de uma vida. Os fragmentos metonímicos selecionados de um corpo
constroem redes interpretativas de sua vida. Esses “biografemas”, conforme
revelou Barthes (1990, p.12), remetem a um todo maior que não é Manoel de
45
Barros, cidadão-fazendeiro que escreve o texto, mas um outro que se incorpora
pela e na escrita à medida que esses fragmentos dão volume ao texto.
Barthes (2003, p. 108) atenta para esse aspecto de modo analógico: “os
fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda;
todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?”. Podemos
responder a esse questionamento sugerindo que no centro encontra-se o poeta
“arrancado de dentro dele pelas palavras/ a torquês” (R.A.C., p. 359), ente
“entorpecido de haver-se”, “escuro”, múltiplo, corpo constituído de linguagem,
“ser letral” que “envesga seu idioma” e deixa pedaços de si no cisco para
instaurar um novo espaço. Barthes confirma:
O autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto de descontínuo de amabilidades (...); não é uma pessoa civil ou moral, é um corpo (BARTHES, 1990, p. 11).
2.2 Em sintonia, poesia e vida
A poesia de Manoel de Barros teve, fundamentalmente, seu início com o
livro Poemas concebidos sem pecado (1937). Passou, até os anos 60, por
Face Imóvel (1942), Poesias (1947) e Compêndio para uso dos pássaros
(1960). Entre os anos de 1960 e 1980, seguiu com Gramática expositiva do
chão (1966), Matéria de poesia (1970) e Arranjos para assobio (1980). A
partir dos anos 80, sua capacidade imaginativa e criadora deslanchou com as
publicações de Livro de pré-coisas (1985), O guardador de águas (1989),
Poesia quase toda (1990), Concerto a céu aberto para solos de aves
(1991), O livro das ignorãças (1993), Livro sobre nada (1996) e Retrato do
artista quando coisa (1998). Ensaios fotográficos (2000), Tratado geral das
grandezas do ínfimo (2001), Cantigas por um passarinho à toa (2003),
Poemas rupestres (2004), Poeminha em língua de brincar (2007) e a trilogia
Memórias inventadas: a infância (2007), Memórias inventadas: a segunda
46
infância (2007) e Memórias inventadas: a terceira infância (2008) são seus
trabalhos literários subseqüentes.
Desde o livro de 1937, a experimentação do material verbal, em uma
busca de retorno às origens da linguagem, pode ser evidenciada. De fato, o
título do livro – Poemas concebidos sem pecado – já expõe a vontade do
poeta de explorar o momento primeiro, onde tudo é paradisíaco e sem
máculas, para criar poemas “puros”.
Manoel de Barros sente uma sedução edênica do/ e pelo mundo da
palavra, em que se vislumbra a paisagem iniciática do gênesis. Em Caros
Amigos, afirma:
Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras (BARROS, 2006, p. 31).
Indagado acerca de Poemas Concebidos sem pecado, Manoel de
Barros (apud CASTELLO, 1996 b) declara que o considera como o melhor de
seus livros, pois ele já “tinha a noção do valor lingüístico da poesia”. Para o
poeta, “poesia não é para contar história, poesia é um fenômeno de
linguagem”.
Podemos perceber que Manoel de Barros adota, ao longo de sua
trajetória poética, uma postura de questionamento em relação à realidade, à
linguagem, à exploração e interpretação do estar no mundo, desejando
valorizar a língua falada pelo povo de sua terra, mostrar os tipos humanos
marginalizados e despertar para uma nova estética: rastrear o espaço
experimentado, pela via da memória e das sensações, para recriá-lo.
Manoel de Barros (1960/ 2010, p. 93) indicia seu objetivo criador por
meio de um verso de Guimarães Rosa, em Compêndio para uso dos
pássaros, que afirma: “não entender, não entender até se virar menino”. A
apreensão do espaço, por meio dos olhos e da imaginação infantis, leva o
poeta e os leitores a efetuar associações por semelhanças, equivalências e
paralelismos. Há a suspensão da “correção gramatical” para dar lugar à criação
e à reelaboração do código lingüístico.
47
Remetendo-se ao manual de ensino difundido entre as décadas de 60 e
70 – Gramática Expositiva da Língua Portuguesa –, Manoel de Barros (1966/
2010) constrói sua Gramática Expositiva do Chão. Nesta obra, manifesta a
real possibilidade de conhecer as coisas e suas leis para, então, poder mudá-
las e inventá-las.
Manoel de Barros afirma que seus poemas precisam ser sentidos e não
somente entendidos. Ao discorrer sucintamente sobre a lua, o pássaro, o
córrego, o mar, o sol, a estrela, o caramujo, a árvore, a rã, a formiga e a
pássara, Barros cria novos comportamentos para as coisas, e nos chama a
perceber que seu poema está “contaminado de pássaros, de árvores, de rãs” e
que sua gramática se apóia nessas “contaminações sintáticas” (GEC, p. 137).
O poeta sistematiza e estuda os elementos constituintes do chão a seu modo,
promovendo a crise da linguagem. A falta de pontuação assinala a casualidade
do recolhimento das coisas pobres e recusadas pela sociedade de consumo.
Nesse sentido, segundo Berta Waldman (2009), na poética de Manoel
de Barros,
a eleição da pobreza, dos objetos que não têm valor de troca, dos homens desligados da produção (loucos, andarilhos, vagabundos, idiotas de estrada), formam um conjunto residual que é a sobra da sociedade capitalista; o que ela põe de lado, o poeta incorpora, trocando os sinais.
O poeta recolhe resíduos, lixos sociais, e os transforma em ouro poético.
Enfaticamente o poeta afirma:
Sou mais de monturo para a poesia. Monturo guarda no ventre a semente das árvores e das plantas. Guarda nossos resíduos, nossos mijos e ciscos de passarinhos (...) Monturo é lugar (...) em que os pobres-diabos fazem continências para moscas (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 53).
Também a partir da leitura de entrevistas de Manoel de Barros, podemos
constatar seu olhar para baixo, seu gosto pela pequenez, por tudo aquilo que a
sociedade em geral rejeita:
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Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio (BARROS, 2006, p. 31).
Coisas sem préstimo, ciscos, inutensílios, monturos, palavras a ponto de
entulho e de traste, perpassam toda a sua poética. Além de “catar inutilezas” –
metaforicamente expressas por pregos que “não exercem mais a função de
pregar” (TGG, p. 410) –, fazendo reaparecer aspectos relegados ao
esquecimento e à depreciação, Manoel de Barros critica o mundo globalizado,
que tem experiência com preços, mas não com valores, cujo discurso
dominante determina a valorização do “ter” em detrimento do “ser”. O poeta,
metaligüisticamente, aproxima a tarefa do “catador” ao seu próprio fazer
poético: resgate de realidades desprezadas para desembocar em uma
regeneração da sociedade, elevando o “ser” à categoria superior: “Catar coisas
inúteis garante a soberania do Ser./ Garante a soberania de Ser mais do que
Ter” (TGG, p. 410).
Em Matéria de poesia, Manoel de Barros (1970/ 2010) reitera que as
coisas esquecidas e renegadas são extremamente proveitosas para a poesia.
O poeta realiza inumeráveis descobertas ao longo do livro:
Rios e mariposas/ Emprenhadas de sol/ Eis um dia de pássaro ganho (p. 162)
O bicho esquecido que era de palha/ Prendeu-se nas cores de maio (p. 162-163)
Anos de estudos/ e pesquisas:/ Era no amanhecer/ Que as formigas escolhiam seus vestidos (p. 163)
Eu me atrapalhava de mato como se ele/ invadisse as ruínas de minha boca e a enchesse/ de frases com morcegos (p. 164).
Dessa maneira, Manoel de Barros elabora experiências com a
linguagem, tornando visível um mundo às avessas, um espaço inaugural, em
que os seres desimportantes funcionam espontaneamente “em pleno uso da
poesia, sem apertar o botão” (MP, p. 155).
49
Manoel de Barros nos ensina (2001/ 2010), em Tratado geral das
grandezas do ínfimo, que, para criar poesia, é necessário compreender que
ela “está guardada nas palavras” e que se eterniza por meio de “graças
verbais”. O poeta afirma: “Não tenho pensa./ Tenho só árvores ventos/
Passarinhos – issos” (TGG, p. 412). Em meio a miudezas, Barros descobre
motivos para poetar.
Nascido em 1916, no Beco da Marinha, às margens do rio Cuiabá,
Manoel de Barros “cresceu brincando no terreiro em frente à casa, pé no chão,
entre os currais e as coisas desimportantes que marcariam sua obra para
sempre” (NOGUEIRA JR., 2011)3. Segundo Barros (apud NOGUEIRA JR.,
2011), “ali o que eu tinha era ver os movimentos, a atrapalhação das formigas,
caramujos, lagartixas. Era o apogeu do chão e do pequeno” (NOGUEIRA JR.,
2011). Com oito anos, passou a estudar em um colégio interno em Campo
Grande e, depois, no Rio de Janeiro. Lá começou a apreciar o grande
virtuosismo no domínio da língua do padre Antonio Vieira. Para o poeta, Vieira
despertou o gosto pela frase, pela sintaxe, pela construção sofisticada. Barros
acredita que com Vieira aprendeu a construção da poesia, pois seus textos
causavam espanto pelas revelações e efeitos de seu jogo de raciocínios que,
por vezes, se aproximavam do maravilhoso. Sua juventude foi permeada por
pessoas engajadas politicamente, leu Marx e formou-se bacharel em Direito
nos anos 40. A partir de então, começou a produzir e publicar trabalhos
literários de qualidade incontestável. Viajou pela Bolívia, Peru e Nova York,
onde fez curso sobre cinema e pintura moderna. Ao regressar ao Brasil, casou-
se com Stella e tornou-se fazendeiro a fim de “adquirir independência
econômica para comprar o ócio” e assumir de vez o Pantanal. Atualmente,
mora em uma casa cheia de encantos e de esconderijos, de pequenos jardins
internos, nos quais passarinhos vêm cumprimentá-lo. O escuro e misterioso
escritório, no qual Barros tranca-se de sete horas ao meio-dia para escrever,
ler e imaginar, situa-se em um pequeno cômodo do segundo andar. Em sua
3 As informações biográficas sobre Manoel de Barros foram extraídas de NOGUEIRA JR. (2011). Projeto releituras: Manoel de Barros. Disponível em http://www.releituras.com/manoeldebarros_bio.asp. Acesso em 08/ 03/ 2011.
50
“toca”, Manoel de Barros faz escavações, percorre séculos para descobrir o
esgar inaugural e primeiro de uma palavra, além de arrumar versos, frases e
desenhar bonecos.
Manoel de Barros, por vezes, procura fazer um recorte do momento
criador do artista. Interesses, reflexões, reinvenções, delírios, saberes
primeiros, desejos, emergem e clarificam seu fazer poético. Enxerga, desse
modo, tudo que o rodeia com olhos transformadores e sente a necessidade de
mostrar as curvas dos versos e seus enleios. Nestes versos, afirma:
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.
(LI, p. 303)
Manoel de Barros nos mostra que as metáforas são fundamentais e
enriquecedoras na construção da imagem, pois são alheias às compreensões
previamente determinadas de mundo: o rio é apresentado como “um vidro mole
e uma cobra de vidro”. Além disso, o poeta alude ao fato de que a visão
imagética do momento tende a perder um pouco de seu encantamento quando
recebe um nome ou um conceito, pois torna universal, imutável, inquestionável,
uma percepção particular, transitória, única e sensível. Barros manifesta, por
exemplo, que a palavra ‘enseada’ não consegue representar, em totalidade, a
sensação que a imagem nele suscita. O leitor deve visualizar mentalmente a
curva do rio para conseguir acompanhar as curvas que seus versos fazem.
O poeta faz até mesmo uso da ideia da fotografia para promover
explorações lingüísticas inusitadas em Ensaios fotográficos (2000/2010).
Procura fixar, pelas palavras, elementos que não podem ser normalmente
fixados – o silêncio, o perfume, a existência, o perdão, até mesmo uma
metáfora –, deixando-se invadir pelo reino das imagens, examinando o
processo de criação poética e apresentando novos comportamentos para as
51
coisas. As imagens, desse modo, configuram-se como excessos,
derramamentos sem contensão, da visualidade e da espacialidade.
Com Poemas Rupestres (2004/ 2010), o modo singular de olhar, de
mexer com as palavras, de produzir renovações e inaugurações lingüísticas
“desabre”. A partir de um caranguejo “muito se achante”, que “se achava
idôneo para flor, parecia que estava montado num coche/ de princesa e voltou
a ser idôneo para/ mangue” (p. 433), Manoel de Barros exprime que pode
atingir a “palavra no áspero dela”. Com o olhar “cheio de sol/ de águas/ de
árvores/ de aves”, o poeta brinca com as palavras, revestindo-as de qualidades
inesperadas e investe seres e espaço de novas funcionalidades.
Quando questionado sobre o aspecto regionalista em sua obra, Manoel
de Barros revela que, em sua poesia, há sempre um “lastro de ancestralidade”,
porém, para ele, o que importa não é o mero registro descritivo de lugares,
bichos, coisas da natureza de um determinado espaço, mas, sim, a maneira de
se “mexer com as palavras”. Barros (apud CASTELLO, 1996a) acrescenta que
é bom, ao final, restar um “cheiro de coisa do chão”, no entanto, mais
interessante que o regionalismo é o reinventar das coisas, o “transfigurismo
pela palavra”.
Com o Livro de pré-coisas, Roteiro para uma excursão poética no
Pantanal, Manoel de Barros (1985/ 2010) quer anunciar, por meio de uma
linguagem poética transformadora, as “pré-coisas”, as paisagens e os seres do
Pantanal. Como declara Silva (2003):
A poesia de Manoel de Barros recria o Pantanal sul-mato-grossense, retratando-o em suas minudências: os seres ínfimos, as águas, os bichos, as árvores, as pedras – mundo de musgos, de lagartos e de palavras bafejando halo de vida. Traz a memória das coisas esquecidas, desnuda o chão e mapeia seus componentes (SILVA, 2003).
A paisagem retrata não a realidade física da região, mas uma outra
criada pela palavra. Manoel de Barros, em entrevista concedida a Thaís Costa,
publicada na revista Executivo Plus, revela:
52
Sou apenas um inventador do Pantanal. Nunca estudei essa região (...) eu apenas invento, embora a invenção das coisas possa, muitas vezes, ser mais real do que a realidade (COSTA, 2010).
O poeta parece acrescentar porções inventivas a cada dado do real
concreto. Nesse sentido, podemos sugerir que o poeta recolhe reminiscências
do passado e as recria, reerguendo-se do que ele próprio denomina “torpor
poético”.
Barros (2007/ 2010) usa como epígrafe de Memórias inventadas: a
infância, uma frase instigante que permeia seu fazer poético: “Tudo o que não
invento é falso”. As imagens poéticas, obtidas por meio da matéria verbal,
apresentam fortes e marcantes referências ao espaço que o circunda, porém
são transformadas e recriadas por ele. Em estado de “pré-tudo”, busca um
contato direto com a realidade e um entendimento por aderências e
incrustações. O mundo vegetal e coisal, pertencentes ao mundo poético sem
limites, encontram-se em estado de espera para fulguração criadora: não são
mais, estão em estado de para ser.
No documentário “Só dez por cento é mentira”, o cineasta Pedro Cezar
(2010), apropriou-se dessa fala instigante do poeta para mostrar mais a poesia
do que a vida do próprio poeta. Quis dar a ideia de sua linguagem e transpor,
em imagens, sua inusitada escrita poética. Colocou em primeiro plano as
coisas miúdas e desimportantes da natureza – insetos, caramujos – e aquelas
descartadas pelo homem – aparelhos quebrados, objetos enferrujados, pneus
usados, carroças sem uso, sucatas. Os tons de ocre das imagens projetadas e
os acordes da viola criam uma atmosfera que nos leva a experenciar os tons
da poesia de Manoel de Barros.
Ao integrar-se à natureza, transformando-a e transformando-se, Manoel
de Barros imprime importância aos sons e aos olhares, demonstrando o quão
sensível deve ser o leitor para captar múltiplas sensações, percepções e
estímulos sensoriais.
Barros convive com as palavras, é descoberto e descobre-lhes o
funcionamento, a relação com o mundo que instaura poeticamente: “Aflora uma
linguagem de defloramentos, um/ inauguramento de falas” (GA, p. 265). Há,
53
pois, o esplendor de uma reconfiguração do espaço que quer “desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver” (MM, p. 449).
2.3 “Antesmente”, poesia e pré-coisa
A invenção poética de Manoel de Barros quer andar na “contravia” das
coisas, desaprender para, enfim, “fazer nascimentos”. Ao encenar a linguagem
em vez de simplesmente utilizá-la, o poeta trabalha e toca as palavras não
como simples instrumentos, mas as lança no poema como “projeções,
explosões, vibrações, maquinarias, sabores” (BARTHES, 1994, p. 21).
O poeta combina vocábulos de maneira imprevista, promove o delírio da
palavra, trapaceia a língua, enche de glórias seres pequeninos e ínfimos, preza
o desprezível a fim de realizar uma resistência aos sistemas de ideias
convencionais. Anuncia veementemente que as verdadeiras e valiosas
descobertas resultam da “ignorãça”:
Como é que eles [os adivinhos, os videntes, os bruxos, os urgos] podem dizer: ‘Vi a tarde se encolher no olho de um pássaro.’ (...) ‘Os carrapichos não pregam no vento’ (...) Essas descobertas vêm da ignorância (BARROS, apud CASTELLO, 1996a).
E complementa:
A mais pura ignorância é saber explicar o caminho dos pássaros, das águas, das pedras, dos sapos. É estar no início onde tudo ainda não foi explicado, é estar no reino de poesia. Aqui a gente só sabe pelos ventos, pelo sol, pelas chuvas, pelos sons, pelas formas, pelos cheiros. Quando a gente ainda está em estado de árvore é que pode sentir os enleios dos cantos. E enxergar os perfumes do sol. (BARROS, 1998, p. 8).
Manoel de Barros ainda afirma que “para enxergar as coisas sem feitio é
preciso/ não saber nada. É preciso entrar em estado de árvore. É preciso entrar
em estado de palavra” (RAC, p. 363). Reitera quando diz:
54
Buscar esse estado de inocência há de ser uma fuga. É também procura de essência. Busca de minadouros. Aventura humana atrás de natências (...). Penso que arte, em todos os tempos, é busca do adâmico em nós, do olhar que viu pela primeira vez o mundo e o melhor ser em nós é o que ainda não passou perto das vilanias, das traições etc. Parece que há no artista um profundo desejo de recuperar o tatibitate, a forma ainda embrionária da palavra (BARROS, apud MÜlLLER, 2010, p. 145).
Nessas falas, “inocência” ganha sentido de ignorância, não como falta
de saber, mas como necessidade de buscar o não-sabido, o saber puro. O
poeta considera a procura por esse “estado de inocência” como fuga –
promotora de uma escritura na contramão do pensar habitual –, como
propulsora do interesse pela essência e como ponto privilegiado de observação
de largo horizonte das coisas sem nome e sem glória, do nada que encerra
tudo.
O que Manoel de Barros contempla como poesia resume-se, pois, no
retorno às pré-coisas, às “despalavras”. Para renovação do mundo e do
poema, torna-se fundamental revisitar as palavras ainda em gestação, as
coisas inominadas, o recanto que “era só água e sol de primeiro” (LPC, p. 209),
os seres descobridores de um mundo por infusão: “Vou sendo incorporado
pelas formas pelos/ cheiros pelo som pelas cores” (RAC, p.360).
Rascunhos de vida, teias ainda sem aranhas, olhos ainda sem luz,
penas sem movimento, remendos de vermes, bulbos de cobras, arquétipos de
carunchos, rudimentos, indícios, germes das primeiras ideias, embriões dos
atos revelam a busca pela primeiridade para “corromper, irromper, irrigar,
recompor” a “inauguração de um outro universo” (LPC, p. 204).
Coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser ideia ou pensamento,
pré-coisas. No “reino da despalavra”, o poeta arboriza os pássaros, humaniza
as águas, aumenta o mundo com suas metáforas. Desbasta a palavra “até os
seus murmúrios” para produzir uma coisa original “como um dia ser árvore”
(BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 88). Compreende o mundo sem conceitos,
torna-se pré-coisa. Nesse ponto, desenha o cheiro das árvores, escuta a cor
dos passarinhos, desaprende, transvê.
55
Verifica-se, assim, as vantagens de ser bugre, que pega por desvios e
vê o miúdo primeiro. O poeta recebeu do bugre uma “carga primal”, um “gosto
casto”, um “gosto de inocência”: “bugre não sabe a floresta; ele sabe a folha.
Enxerga o movimento das formigas e tem devaneios” (BARROS, apud
MULLER, 2010, p. 84).
Manoel de Barros nos indica que, para se alcançar as pré-coisas, é
necessário observar as coisas:
Tenho de ficar prenhe primeiro. Depois vêm períodos de desânimo, vômitos – igual gestação para ter criança. Durante o período de gestação a gente lê dicionário, espanta mosca, toma nota de sintaxes alheias, ouve música, escuta as formas e as cores das coisas (...) Tudo isso vou anotando em caderninhos. É uma forma desnatural de conseguir algum poema (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 146).
Barros, em caminho circular, vem do “oco do mundo” e vai para o “oco
do mundo” (LPC, p. 214). É nesse percurso que se torna poeta: “Não apenas
um poeta que escreve, mas um poeta que, antes de tudo, percebe os
nascimentos do mundo, para com essa prática vencer o clichê” (SOUZA, 2010,
p. 51).
56
CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e
transfigurações
3.1 Reespacialização pelo olhar
No poema “Anúncio”, que serve de prefácio ao Livro de pré-coisas
(1985/ 2010), Manoel de Barros trabalha com os termos anúncio (aviso, notícia,
prenúncio)/ anunciação (ação de anunciar), enunciado (que se enunciou)/
enunciação (ação de enunciar) de modo integrador. As “pré-coisas” de poesia
mostram-se duplas – dadas e construídas – e os enunciados articulam-se para
produzir um efeito analógico. O prefixo indicativo de anterioridade deixa claro
que o poeta quer modificar o comportamento das coisas, humanizá-las, vê-las
de um modo diferente para, enfim, transcriar a realidade pela linguagem. A
palavra poética de Barros procura captar as coisas em gestação para
surpreendê-las em seus momentos inaugurais.
A natureza é tomada pela doença, pelo desvio de sensibilidade do poeta
– “Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza” (LPC, p. 197):
De repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz de arauto. Algumas ruínas enfrutam. Passam louros crepúsculos por dentro dos caramujos. E há pregos primaveris... (Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para que eles brotem nas primaveras... Isso é fazer natureza. Transfazer (LPC, p. 197).
Manoel de Barros quer desvelar uma natureza viva e trazer à tona as
insignificâncias naturais. Ao engrandecer o pequeno, o poeta cria uma nova
espacialização pelo olhar. Acredita que “o olho vê, a lembrança revê as coisas
e é a imaginação que transvê, que transfigura o mundo, que faz outro mundo
para o poeta e para o artista de modo geral” (BARROS, 2002). O poeta
sustenta que o artista não apenas vê, mas tem visões. Visões estas que
contém imagens e transfigurações. A esse respeito Barros reitera que
o poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mal (BARROS, apud CASTELLO, 2006).
57
Primando por descortinar novas perspectivas, suscitar estranheza e
despertar diversas reações no leitor, Barros procura enxergar, no visível, sinais
invisíveis. Ensina-nos que “beleza e glória das coisas o olho é que põe. (...) É
pelo olho que o homem floresce” (LPC, p. 224). Cria, pois, uma poética
pictórica, plástica, que absorve modos de composição de outras artes. Da
pintura, por exemplo, tenta absorver a expressão apresentada em um espaço
bidimensional, que realça, na tela, elementos estéticos, como a figura, a forma,
a textura, a cor. Faz o poeta, no entanto, uso das potencialidades da palavra,
levando-a a conquistar um espaço tridimensional. A esse respeito Pessanha
revela:
O texto, feito de seqüências, cesuras, ritmos, passagens, possui liquidez, escorrendo como água itinerante de significações. Por isso, o espaço – a folha de papel – não consegue aprisionar inteiramente a escrita, nem coagular a leitura. (...) O texto mal pousa sobre o espaço: ele voa, adeja por ali ele apenas passa (PESSANHA, 1999, p. 159-160).
Assim, o texto poético de Manoel de Barros é fluido, ambíguo, móvel.
Alcança, pois, a pluridimensionalidade ao permitir que as palavras não
signifiquem, mas entoem, transcendendo-as dos limites do papel.
Aquele dia eu vi a tarde desaberta nas margens do rio. Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra na beira do rio. Depois eu quisera também que a minha palavra fosse desaberta na margem do rio. Eu queria mesmo que as minhas palavras fizessem parte do chão como os lagartos fazem. Eu queria que minhas palavras de joelhos no chão pudessem ouvir as origens da terra (MM, p. 461).
Manoel de Barros faz uso de modos imagético-pictóricos para ter acesso
ao real e presentificar o espaço. O gênero da pintura mais assimilado por
Manoel de Barros é o retrato, não apenas de pessoas, mas de cenas que
visam à representação da essência e não apenas da aparência externa. Como
afirmou Aristóteles, “o objetivo da arte não é apresentar a aparência externa
58
das coisas, senão o seu significado interno; pois isto, e não a aparência e o
detalhe externos, constitui a autêntica realidade” (AYMAR, 1967).
Em “Retratos a carvão” (PCP, 1937/ 2010), Manoel de Barros representa
as personagens como bichos ou como seres postos à margem. “Polina” é
descrita como “um bicho muito pretinho com pouca experiência de sofrimento/
mas pra sua idade o suficiente” (p. 25). “Cláudio” (p. 26), o arameiro, de tão só
e sujo se irmanava ao magro jacaré, compartilhando, com ele, a pouca água da
região. “Sabastião” era “diz-que louco daí pra fora” (p. 27). “Raphael” era um
“pouquinho miserável”, “um menino do mato sem importância” (p. 28-29). O
material usado para retratar é o carvão, rocha sedimentar mineral formada a
partir de plantas acumuladas em pântanos que se decompõem, o que reitera o
aproveitamento dos restos para composição do poema. Manoel de Barros
demonstra, ao retratar tais personagens desse modo, que virar coisa
“decomposta” significa recuperar o poético e a própria liberdade inventiva.
Embora o retrato tenda a fixidez e a estaticidade, Manoel de Barros
recupera em seus poemas o movimento pelo dinamismo e pela fluidez da
linguagem mosaicada.
O poeta elenca uma série de pertences de uso pessoal de um homem
“que entrara na prática do limo” (GEC, p. 121), dispostos de forma aleatória,
encerrando sua exposição com uma tela, que é descrita por Dr. Francisco
Rodrigues de Miranda, amigo do homem que fora preso. Revela tudo aquilo
que a sociedade em geral rejeita e recolhe em sua temática:
o artista recolhe neste quadro seus companheiros pobres do chão: a lata a corda a borra vestígios de árvores etc. realiza uma colagem de estopa arame tampinha de cerveja pedaços de jornal pedras e acrescenta inscrições produzidas em muros (...) tudo muito manchado de pobreza e miséria que se não engana é da cor encardida entre amarelo e gosma. (GEC, p. 122-123)
59
Colagem, justaposição de objetos jogados fora, são procedimentos
empregados pelo poeta. Quando trata da confecção do retrato de outro
homem, Barros reúne, mais uma vez, materiais desprezados: “um homem
pegava, para fazer seu retrato, pedaços de tábua, conchas, sementes de
cobra” (MP, p. 164).
Em “Autorretrato” (EF, p. 389), tomamos conhecimento tanto do
nascimento do poeta na beira do rio, quanto da produção de desobjetos e de
suas “mortes”, motivadas pela escritura de 14 livros.
Já no poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente
nada”, Barros compõe cenas contemplativas do Pantanal e da arte de poetar,
promovendo a “ocupação da palavra pela Imagem” (GA, p. 263). O poeta
defende que o homem precisa sair dos “veios comuns do entendimento” (GA,
p. 265) em direção a algo estranhador. No momento em que o homem se torna
“coisal”, instala-se nele uma “agramaticalidade quase insana que empoema o
sentido das palavras” (GA, p. 265). À obra de Ovídio, Manoel de Barros propõe
um “novo estágio”: a criação de uma língua própria para os “entes já
transformados”; um dialeto “coisal, larval, pedral”, que seria composto por uma
linguagem “madruguenta, adâmica, edênica, inaugural” (GA, p. 266). Para
tanto, tornar-se-ia imprescindível retornar aos momentos primeiros da infância
e “reaprender a errar a língua” (GA, p. 266). O erro, pois, é considerado
transmutante e renovador em sua peregrinação poética.
Em seus “emaranhos” lingüístico-pictóricos, Manoel de Barros examina,
com atenção, o processo de criação artística de pintores em uma tentativa de
aplicar tais procedimentos em sua poética. Toma de empréstimo o título
“Máquina de Chilrear” de um quadro de Paul Klee (1922), unindo, em poesia,
tudo o que é julgado imprestável, transformando-o em uso doméstico. Reflete,
também, sobre seu próprio fazer poético, valendo-se de Miró: expressão
fontana, presença de ritualismo, entendimento dos restos como engenharia de
cores. Revela, ainda, que “um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh”
(LI, p. 301), ao enfatizar que o trabalho do pintor, assim como o do poeta,
resume-se em dar ressonância artística à essência das coisas. Cria, ademais,
um pintor imaginário, Quiroga, para sugerir que a arte pode estar ligada aos
elementos essenciais da natureza.
60
A escolha do pintor suíço Paul Klee (1879-1940), considerado um artista
da essência, não é ocasional, uma vez que, atento às energias e vibrações,
Klee buscava o mundo interior e pintava o que os olhos não enxergavam. É o
que se observa na tela:
“A máquina de chilrear” Paul Klee, 1922
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/ECAP-7QRH3M/1/iluminuras_wan_sssa_cruz.pdf
É interessante notar que Paul Klee, ao nomear sua obra, coloca lado a
lado elementos díspares: máquina – aparelho construído pelo homem para
produzir ou transformar energia, termo que nos remete a algo não produzido
61
pela natureza, mas por uma técnica específica; e chilrear – gorjear, emitir sons
repetidos a pequenos intervalos; que nos indica algo espontâneo, pertencente
à natureza.
O pintor, por meio não só da cor azul, que simboliza o céu, habitat
natural das aves que chilreiam, mas também das leves e finas pinceladas que
se assemelham a gravuras rupestres, cria um espaço experimental na tela para
materializar pictoricamente o som. Das aves de longas patas, sobressaem-se
os bicos que pipilam. Do lado direito da tela, destaca-se uma espécie de
manivela, que pretensamente serviria para impulsionar os sons dessas aves.
Paul Klee pinta, então, o que ele entende por arte: fragmentação/ diluição do
objeto para se alcançar e manipular plasticamente sua essência.
Manoel de Barros, com seu poema a “Máquina de chilrear e seu uso
doméstico” (GEC, 1966/ 2010), cria textos poéticos interseccionados, com
imagens cambiantes, flexíveis e significados móveis e fragmentados. Os sons
que se escutam em sua poesia são vozes emaranhadas de seres da natureza
que parecem “vir de um poço escuro” e que traduzem sentimentos profundos:
O SOL (sobre caules de passarinhos e pedras com rumores de rios antigos) – Iam caindo umas folhas de mar sobre as casas dos homens. O CÓRREGO (no alto de seus passarinhos) – Ervas e grilos crescem-lhe por cima
(GEC, p. 136)
O poeta fala, por metáfora, o que entende por poesia: artesania que
prima por descortinar a natureza do ser. Volta-se, portanto, para a primeiridade.
Tal aspecto também pode ser verificado a partir do poema “Miró”:
Para atingir sua expressão fontana Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros. Desejava atingir a pureza de não saber mais nada. Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo do quintal à busca de uma árvore. E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo que havia aprendido nos livros. Depois depositava sobre o enterro uma nobre mijada florestal.
62
Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de insetos, cascas de cigarra etc. A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores. Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um dejeto de mosca deixado na tela. Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha escura. O escuro o iluminava.
(EF, p. 385)
Com este poema, Manoel de Barros deixa claro como compreende a
obra do pintor catalão. O desconhecer guiava sua criação artística. De fato, em
entrevista a Georges Raillard, Miró declara:
Durante o trabalho, nada. Nada, em absoluto. Não olho a paisagem, que é magnífica. Há poucas janelas, e ainda fecho as cortinas. Nada, nada, nada. O que me excita quando trabalho é isto aqui: esta manchinha branca no chão (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 41).
A busca pela “expressão fontana” é perseguida pelos dois criadores.
Miró (apud RAILLARD, 1992, p. 73) sustenta que “é preciso esgaravatar a terra
para encontrar a fonte; é preciso escavar”. Manoel de Barros, observando
metaforicamente o trabalho de arqueólogos – “dois homens sentados na terra o
dia inteiro escovando osso; queriam encontrar vestígios de antigas civilizações
que estariam enterrados por séculos naquele chão” (MII, 2003, p. I)–, pensa
igualmente em “escovar”, não ossos, mas palavras. Por acreditar que as
palavras são “conchas de clamores antigos”, Barros escava “oralidades
remontadas e muitas significâncias remontadas” para escutar “os primeiros
sons” e descobrir “o primeiro esgar” de cada palavra.
Miró (1893-1983) preferia pintar com os dedos. Manoel de Barros faz
nascimentos na ponta de seu lápis. O interesse pelo ínfimo é notório em
ambos. Miró revela que, no plano espacial de sua tela, “um talinho de capim
tem mais importância do que uma grande árvore; uma pedrinha, mais do que
uma montanha; uma libelulazinha, tanta quanto uma águia” (MIRÓ, apud
RAILLARD, 1992, p. 54). Manoel de Barros (TGG, p. 407-408), no espaço do
poema “Sobre importâncias”, procura reavaliar aquilo que apreende por meio
de seu olhar distorcido: "o pingo de sol é mais importante do que o esplendor
63
do sol nos oceanos”; “as pombas são mais importantes do que o prédio de
estilo bizantino do século IX”; “o sabiá é mais importante do que a Cordilheira
dos Andes”. Ao término do poema, o poeta assume: “Eu, por certo, não saberei
medir a importância das/ coisas: alguém sabe?/ Eu só queria construir nadeiras
para botar nas/ minhas palavras”.
Em “A fazenda” (tela pintada em 1921-1922), Miró explica: “Dei
dimensão ao espinho porque ele me interessava do ponto de vista plástico.
Precisava chegar a uma nova plástica. Um único espinho é o resumo de todas
as outras plantas” (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 54).
Seres pequenos e o próprio solo são retratados em suas minúcias. A
árvore ocupa posição central na tela, porém o que ganha destaque é o
detalhamento de seu tronco, repleto de espinhos. A interioridade, a essência,
são postas, também, em realce. A questão da profundidade é trabalhada para
se alcançar o equilíbrio.
http://www.quadrosepinturas.com.br/pintura-reproduc-o-replica-de-joan-miro-a-
fazenda-em-oleo-sobre-tela.html
64
Já em “Campo arado” (tela de 1923-1924), Miró busca construir a
imagem artística de modo diferente: “A escolha dos planos não seria feita
segundo a perspectiva e, sim, segundo uma escolha afetiva. Escolho os
animais, as plantinhas tudo o que tem ritmo. Os caracóis, as lagartixas” (MIRÓ,
apud RAILLARD, 1992, p. 56).
A respeito dessa deshierarquização dos elementos do quadro de Miró,
João Cabral de Melo Neto (1952) esclarece:
À ideia de subordinação de elementos a um ponto de interesse, ele substituiu um tipo de composição em que todos os elementos merecem um igual destaque. Nesse tipo de composição não há uma ordenação em função de um elemento dominante, mas uma série de dominantes, que se propõem simultaneamente, pedindo do espectador uma série de fixações sucessivas, em cada uma das quais lhe é dado um setor do quadro. (...) o que Miro obteve foi uma desintegração da unidade do quadro (MELO NETO, p. 12-13).
http://artistoria.wordpress.com/2010/02/15/surrealismo/
O aparato compositivo criado no quadro produz no espectador “uma
sensação de que [a figura] se vai precipitar, mudar de lugar” (MELO NETO,
1952, p. 15). Há uma exploração das possibilidades dinâmicas da superfície,
um desejo de “obter, com sua linha, melodias absolutamente livres das
65
limitadas melodias admitidas pela pintura fundada no Renascimento” (MELO
NETO, 1952, p. 19).
Barros, do mesmo modo, mas com suportes diferentes, propõe a
desintegração/ diluição em sua obra poética ao multiplicar poemas dentro de
um poema, livros dentro de um livro, obrigando o leitor a recompor essas
criações descontínuas. No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), por exemplo, o
poeta apresenta-nos a “Parte XIX”, intitulada novamente “livro de pré-coisas”,
de um Tratado de Metamorfoses, deixado por um “ente irresolvido entre
vergôntea e lagarto” (LPC, p. 218). O suposto autor desse livro é indefinido
assim como os poemas dele coletados. Versos curtos e entrecortados, ou mais
longos e ritmados, lançam-se dinâmica e instantaneamente ao leitor como
experiências estéticas e críticas com a linguagem:
Sorna lagarta curta recorta a roupa de um osso (p. 219). Essa abulia vegetal sapal pedral – não será de/ ele ter sido ontem árvore? (p. 220). Flores engordadas nos detritos até falam (p. 221)
Ao se desvencilhar da hierarquização das figuras que compunham seu
quadro, Miró dá aos seres naturais constituições e poderes humanos: “Para
mim, uma árvore não é uma árvore, algo que pertença à categoria do vegetal,
mas uma coisa humana, alguém vivo (...) às vezes ponho um olho ou uma
orelha nas árvores. É a árvore que vê e que ouve (MIRÓ, apud RAILLARD,
1992, p. 56).
Manoel de Barros igualmente conjuga qualidades dos diferentes reinos –
animal, vegetal e mineral – para promover trocas imanentes, em que um ser se
identifica a outro e o espaço se compõe harmonicamente. Em sua poética, os
seres revelam uma essência divina: “Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh” (LI, p. 301). De fato, Van Gogh (1853-1890) justifica sua dedicação
à pintura como uma missão: ser útil ao mundo e desvelar suas crenças – “Trate
de compreender a última palavra do que dizem as obras de arte, os grandes
artistas, os mestres mais sérios, e verá Deus ali dentro. Alguém o escreveu ou
66
disse num livro e alguém o fez num quadro” (VAN GOGH, apud Russo, 2007,
p. 17).
A incidência da luz e o movimento obtido por meio de pinceladas soltas
tornam-se fundamentais na pintura de Van Gogh. A escolha de cores primárias
ilustra o desejo de obter composições puras. Os girassóis, pintados com
apenas uma gama de cor, o amarelo, com sutis matizes e linhas vermelhas e
azuis finas, fazem parte de um conjunto de obras sobre o mesmo tema.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Van_Gogh_Twelve_Sunflowers.jpg
Van Gogh reconhece a importância simbólica dos girassóis ao imbuir em
tais flores aspectos representativos de sentimentos como a amizade, a
esperança e a gratidão. Isso o leva a admitir: “Eu tenho um pouco de girassol”
(Van Gogh apud Russo, 2007, p. 56). Manoel de Barros igualmente vê-se
indissoluvelmente ligado a sua poesia ao ponto de afirmar: sofro de árvores
(CUP, p. 115).
67
Inventa poeticamente, por fim, um pintor, Rômulo Quiroga – criação
poética de Manoel de Barros, embora exista como pintor de paredes que presta
serviços à família do poeta (apud Menegasso, 2001) – e descreve-o como
“artista iluminado; ser obscuro” (LSN, p. 349-350) para assimilar uma pintura
primitiva em que as tintas eram obtidas a partir de elementos colhidos da
natureza:
Ele mesmo inventava as suas tintas. Trazia dos matos caldos de lagarta (era seu verde), seiva de casca de angico (era seu vermelho), polpa de jatobá (era seu amarelo). Não sei como ele dava liga nos seus pigmentos. Talvez usasse pocas de piranhas, derretidas. Pintava sobre sacos de aniagem. Um dia me mostrou um ancião de cara verde, que acabara de pintar. Eu lhe disse: “Mas, Rômulo, o verde não é a cor da esperança, da juventude?” Respondeu que para ele era a cor da melancolia. Que os anciãos têm saudades dos verdes anos. E acrescentou: a minha cor é psíquica e as minhas formas são incorporantes: eu sempre estou nelas com os meus antepassados (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 96-97).
É interessante verificarmos como Manoel de Barros parece descrever
seu próprio fazer poético por meio da observação da pintura de Quiroga:
exploração de materiais primitivos/ primários; percepção sensível e alógica; uso
de cores psíquicas/ palavras imagéticas e formas incorporantes. Podemos,
ainda, refletir sobre esse comentário de Manoel de Barros quando transposto
poeticamente:
Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano) A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo; Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por
68
aí a desformar. (LN, p. 349- 350)
De Quiroga, Barros acolhe outra noção importante para sua criação
poética: perseguir a expressão torta, repleta de enleios, que “só pega por
desvios” (LI, p. 319), passo imprescindível para a transfiguração. Nesse
sentido, podemos recorrer à ideia desenvolvida por Bosi quando revela que:
por metáfora redutora se dirá que é “círculo” um poema onde há ressonância e retorno. Frases não são linhas. São complexos de signos verbais que vão se expandindo e desdobrando, opondo e relacionando, cada vez mais lastreados de som-significado (BOSI, 2008, p. 36).
Torna-se fundamental buscar o novo, o insuspeitado, para transcriar/
transfazer/ “desformar” a realidade.
Podemos perceber que Manoel de Barros começa o Livro de pré-
coisas (1985/ 2010) com manhas, nódoas de imagens, e termina com
iluminuras. O quadro pantaneiro, elaborado com palavras, mostra-se pronto,
mas não acabado. Assim, as próprias garças que criam iluminuras no livro
podem ser consideradas pintoras, uma vez que decoram e apresentam
representações imagéticas importantes.
O termo “iluminura” refere-se ao tipo de pintura decorativa,
frequentemente aplicado às letras capitulares no início dos capítulos
dos códices de pergaminho medievais. O termo se aplica igualmente ao
conjunto de elementos decorativos e representações imagéticas executadas
nos manuscritos, produzidos principalmente nos conventos e abadias da Idade
Média. Tais decorações podiam enquadrar todo o espaço do texto ou ocupar
apenas uma pequena parte da margem da página. De acordo com o Osborne,
organizador do Dicionário Oxford de Arte (1987, p. 267), a palavra “iluminura”
provém do “uso do verbo latino illuminare em conexão com o estilo oratório ou
narrativo, onde tem o significado de adornar”.
Podemos exemplificar esse ponto com um poema extremamente
simbólico do livro O guardador de águas (1989/ 2010). Na segunda parte
69
intitulada “Passos para a transfiguração”, o espaço da página é composto por
poemas sintéticos e desenhos intrigantes do próprio poeta:
Um desígnio a coisas O eremisa. Jias dormem gerânios Com o seu rosto
(GA, p. 256)
Este poema VI, juntamente com a figura de um homem-pássaro que alça
vôo em direção ao chão, nos indica o estreito relacionamento entre homem-
coisa, homem-chão. Propõe a metamorfose, pela poesia, do homem em
pássaro para libertá-lo e conduzi-lo a novos modos de compreensão da
realidade.
Manoel de Barros recolhe e recorta um procedimento da tradição e o
atualiza poeticamente. Desenha/ escreve/ adorna seus poemas com palavras e
70
figuras imageticamente luminosas. O poeta-pintor esboça, à mão livre, na
ponta de seu lápis, ora criações esfumaçadas e manchadas, ora nítidas e
reluzentes.
Primando por regressar a momentos primais em que imagem e palavra
detinham estreitos vínculos, rascunha imagens poéticas que iluminam e
estimulam nossos sentidos e nos permitem experimentar sensações ímpares.
3.2 Criação pelo sentir
O poeta, ao retratar com inventividade a chegada do narrador ao Porto
de Manga, no rio Paraguai, envolve o leitor a partir evocação dos sentidos:
visão – “empeixado e cor de chumbo; um homem apareceu no barranco;
jogaram uma prancha na praia. Por ela desceram passageiros e cargas; na
outra margem do rio uma casa acendeu; cardeais cruzam os barrancos; já
diviso um solapão de lontras” –, audição – “deu boa noite; dois galos
ensaiaram; a lancha apitou despedida” –, olfato – “vem um cheiro de currais
por perto” – e paladar – “provo as delícias de uma cobra assada que me
oferece Nhá Velina. Depois comeremos siputá” (LPC, p. 199-200).
Voltando-se para as insignificâncias, Manoel de Barros cria um
microcosmo, um “microbrejo” para insinuar metalinguisticamente que a poesia
é a “pura inauguração de um outro universo. Que vai corromper, irromper,
irrigar e recompor a natureza” (LPC, p. 204).
No poema “Agroval”, observamos as pré-coisas, os embriões dos atos
(poéticos), os “germes das primeiras ideias”, quando as “penas” ainda se
encontram sem movimento. Seres minúsculos – “vermes, cascudos, girinos e
tantas espécies de insetos e parasitas” –, que compõem ínfimas sociedades,
se instauram por debaixo da arraia e instituem “trocas de linfas, de reina, de
rúmen, tornando o sítio um útero vegetal, insetal, natural” (LPC, p. 203).
Pela ausência de hierarquia entre os seres, o poeta mostra que a
interação, ainda inacabada e embrionária, é proveitosa. Assim, o homem,
enquanto parte integrante da natureza, deve participar dessas trocas, vendo-se
interdependente e aprendiz “da festa de insetos e aves no brejo” (LPC, p. 204).
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Nesse sentido, conforme afirma Perna Filho (2007): “Manoel de Barros
embrenha-se e emerge na densidade do Pantanal Mato-grossense para sentir-
lhe o entusiástico pulsar de cada coisa”.
Camargo (2004) reforça esse argumento ao informar que
Barros tem no Pantanal a força arquetípica e telúrica da sua criação poética. Suas forças motrizes de inspiração são retiradas desse macrocosmo prenhe de elementos míticos, coisas genesicamente pré-existentes, de harmoniosa compleição auto-suficiente. Suas imagens figuram um gênese cosmogônico, onde todas as coisas e seres se correspondem numa relação verdadeiramente simbiótica e porosa (CAMARGO, 2004, p. 106).
Em “Um rio desbocado” (LPC, p. 201-202), Manoel de Barros avigora
essa ideia de Pantanal em estado de latência. O rio Taquari é qualificado de
modo plural: ora como torneira que “derrama e destramela” devido a seus
diversos afluentes; ora como tromba d’água, pois “destampa adoidado” na
época das violentas cheias. O rio é, ainda, visto como cavalo desembestado
que “escoicea árdego” e, também, como fruto, uma vez que ambiguamente
seus estragos compõem e geram vida: o rio engravida, empacha, estoura,
arromba, cava e recava. Ao “alargar”, “aprofundar”, “enxertar”, o Taquari “faz
brotar, alegra e emprenha”, não só o solo do Pantanal, mas também o poema.
Em “Vespral de chuva” (LPC, p. 204-205), a construção da imagem da
pré-chuva reflete a maneira como o poeta olha o real, isto é, como procura ver
e captar sensorialmente não as coisas, mas as pré-coisas. Manoel de Barros
quer refazer a ligação com o pré-categorial, anterior ao logos, e, para isso, usa
o princípio da analogia, retratando os objetos em potencial, na sua essência.
Nosso entendimento desse conceito passa pela concepção de Cortázar
(1974, p. 86) que compreende a elaboração de analogias como “sentir
próximos e conexos [os] elementos que a ciência considera isolados e
heterogêneos”, possibilitando, então, a captação e a exploração de um mundo
antes despercebido. Por meio da direção analógica, as construções imagéticas
do poema se libertam “de toda referência significativa para não nomear e não
assumir senão a essência dos seus objetos” (CORTÁZAR, 1974, p. 98).
A preparação para o cair da chuva é sentida por todos:
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Chuva que anda por vir está se arrumando no bojo das nuvens. Passarinho já compreendeu, está quieto no galho. Os bichos de luz assanharam (...) Suor escorre no rosto O homem nos seus refolhos pressente o desabrochar. (LPC, p. 205).
Observamos, portanto, a instauração de conexões analógicas, pois os
seres, em harmonia com a natureza, assemelham-se no sentir.
Todos sentem um pouco na pele os prelúdios da chuva. (...) Aranhas-caranguejeiras desde ontem aparecem de todo lado. Dão ares que saem do fundo da terra. Formigas de roseiras dormem nuas. Lua e árvore se estudam de noite. (...) Todo vivente se assanha. (...) O homem foi reparar se as janelas estão fechadas. Mulheres cobrem espelhos. Se sente por baixo do pomar o assanhamento das porcas. (LPC, p. 205)
A recorrência do termo “assanhar” demonstra que Manoel de Barros
penetra na interioridade dos seres para provocar, aguçar, incitar, despertar os
sentidos dos leitores. Os prelúdios da chuva são, assim, experimentados por
meio de imagens poéticas que procuram levar ao leitor a experiência sensorial
desse momento de expectativa e espera. Diz o poema:
Nem folha se move de árvore. Nenhum vento. Nessa hora até anta quer sombrear. Peru derrubou a crista. Ruminam algumas reses, deitadas na aba do mato. Cachorro produziu chão fresco na beira do rancho e deitou-se. Frango-d’água vai sestear no sarã. O zinco do galpão estala de sol. Jaracambeva encurta o veneno (...) Faz muito calor durante o dia. Sobre a tarde cigarras destarraxam. De noite ninguém consegue parar. (...) Mariposas cobrem as lâmpadas. Entram na roupa. Batem tontas nos móveis. (LPC, p. 204)
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A partir da construção de orações curtas e incisivas, graças ao ritmo e à
musicalidade, a espera da chuva é reforçada e a eminência do desabrochar, do
novo é evidenciada: “No oco do acurizeiro o grosso canto do sapo é contínuo”
(LPC, p. 205). O poeta constrói a descrição da pré-chuva, valendo-se de
locuções verbais que, além de revelarem atributos dos seres “nessa hora”,
revelam certo movimento.
Chuva que anda por vir está se arrumando no bojo das nuvens. (...) Por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se preparando para nascer. (...) Até o inseto de estrume está se virando. Cupins estão levantando andaimes. (...) O jardim está pensando... Em florescer. (LPC, p. 204-205)
O poema também prepara o ser para sentir. Há uma progressão do
estado “vespral”, uma vez que o movimento cresce até motivar “uma festa
secreta na alma dos seres” (LPC, p. 205) por meio de uma razoabilidade
sensível. Tudo concorre, pois, para a apreensão do real de modo original: “–
Do lado da Bolívia tem um barrado preto. Hoje ele chove!” (LPC, p. 205).
Assistimos, agora, à criação de novas relações decorrentes, desta vez,
de como o mundo é traduzido poeticamente. Manoel de Barros, em um retorno
às origens, estabelece conexões livres entre a “fala” do homem, que “foi
recolher a carne estendida no tempo”, o “grosso canto do sapo” e o “assobio
dos bugios na orla do cerrado” (LPC, p. 205). A fala desarticulada do homem
cede lugar ao “canto do sapo” e ao “assobio dos bugios”. Tais sons, canto e
assobio, são vistos como “despalavras” que expõem, de maneira mais “pura”,
as impressões causadas nos órgãos dos sentidos pelo “vespral de chuva” e
suas formas próprias de externá-las. O poeta “canta” as pré-coisas e a própria
natureza pantaneira, em uma busca pelas relações primeiras dos seres com a
realidade, relações estas fundamentalmente sensoriais.
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A composição cíclica do poema indica a passagem do tempo – dia/
tarde/ noite expressam a sensação, o sentimento da pré-chuva: “Faz muito
calor durante o dia. Sobre a tarde cigarras destarraxam. De noite ninguém
consegue parar” (LPC, p. 204) – e a busca de um conhecimento totalizante da
natureza pantaneira, da vida e da poesia.
Após caírem os primeiros pingos de chuva, o “perfume de terra molhada”
pode ser sentido e o mundo se apresenta renovado/ recriado: “choveu tanto
que há ruas de água; há um referver de insetos por baixo da casca úmida das
mangueiras; alegria é de manhã ter chovido de noite” (LPC, p. 206).
Por meio desse jogo verbal, imagético e sensório, o poeta quer que as
palavras, enquanto corpos tocáveis, afetem os órgãos dos sentidos, para que
os leitores possam vivenciar a experiência do calor sufocante da véspera
(vespral) da chuva e do ar refrescante posterior a ela.
No poema “Mundo renovado”, revela-se um Pantanal sem limites, onde
as coisas, ainda inominadas, deixam de existir como eram: “choveu tanto que
há ruas de água. Sem placas sem nome sem esquina” (LPC, p. 206). Tudo é
mútuo – “a pelagem do gado está limpa. A alma do fazendeiro está limpa”
(LPC, p. 207) – e o novo surge de relance. A chuva, símbolo de renovação,
fertiliza material, espiritual e poeticamente o poeta, o poema e todos os seres.
Por meio dela, o poeta traduz a alegria e o equilíbrio homem/ natureza. Pelo
trabalho com a linguagem, o poema deita “rebentos” e também produz a
sensação de (re) descoberta.
A predominância da cor verde ao longo do poema – ranchos, canteiros
das hortas, árvores, capim, periquitos, mangueiras, cerrados – anuncia a
ressurreição da natureza, graças às águas regeneradoras, e ressalta o
despertar da vida: “E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeças
com sua voz rachada de verde” (LPC, p. 207).
Posteriormente aos preparativos para o sentir, vêm as descobertas:
“lagartos espaceiam com olhos de paina. Borboletas desovadas melam. Biguás
engolem bagres perplexos” (LPC, p. 206). O poeta revela sua perplexidade
diante do “mundo renovado” e faz com que os leitores também percebam o
mundo de outro modo.
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3.3 Mosaico espacial
O estímulo ao leitor, no sentido de refazer o mundo criado pelo poeta e
de levar adiante seu ato de reflexão, só é adequadamente alcançado pelo
fragmento. Concebido como projeto inacabado ou obra de arte em aberto,
destinado a estender-se, o fragmento ganha força nos poemas de Manoel de
Barros.
Novalis (1988, p.20), poeta da primeira geração romântica alemã, que se
destacou por suas reflexões poetológicas, chamará os fragmentos de
“pensamentos soltos”, “começos de interessantes seqüências de pensamento –
textos para o pensar (...) pedaços do contínuo autodiálogo em mim –
mergulhias”. Como “sementes do pensamento”, os fragmentos condensam
ideias, métodos, reflexões em uma sinfonia de vozes para tratar da
problemática da poesia propriamente dita.
Manoel de Barros faz pequenos recortes metonímicos da realidade e os
cose metaforicamente, construindo, assim, um espaço mosaicado. Marinho
(2004, p. 85), autor do artigo Cinema e literatura: O Pantanal como metáfora
da Arte em Joel Pizzini e Manoel de Barros, reconhece que “os fragmentos de
Pantanal corresponderão, assim, a representações metonímicas do conjunto
do cosmos”. E acrescenta que “o Pantanal torna-se o espelho do mundo que o
engloba, torna-se nenhum-lugar capaz de desvelar o conhecimento sobre o
todo-lugar” (MARINHO, 2004, p. 85). Devemos entender, no entanto, espelho
não no sentido de cópia do real, mas no sentido de recurso reflexivo para
elaboração de uma cosmovisão construtora de um novo universo. Assim, esse
universo pantaneiro recém inaugurado deve ser entrevisto como uma
representação além do tempo e do espaço, pois, na poesia de Barros, abolem-
se a linearidade temporal e a continuidade espacial.
Nesse sentido, ao encapsular conceitos importantes em estruturas
mosaicadas e fragmentárias, Manoel de Barros exibe sua concepção de arte e
de espaço. Ao defender que os poetas dão novos ares à linguagem –
“minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem” (LPC, p. 219) –, Manoel de
Barros reforça a necessidade do “criançamento do idioma” que permite a
76
“desarrumação sintática” – “eu briguei naquele menino com uma pedra...
Crianças desescrevem a língua. Arrombam as gramáticas. (Como um cálice
lilás de beco!)” (LPC, p. 221). O poeta trabalha, desse modo, a palavra ao
ponto de tornar possível o inimaginável: “a voz de certos peixes fica azul” (LPC,
p. 204). Nas e pelas próprias palavras, mostra sua “anormalidade”, seu “desvio
de sensibilidade”: “por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se
preparando para nascer” (LPC, p. 205). Procura retirar as palavras de seus
usos habituais para promover o delírio do verbo: “os ventos se vão apodrecer!”
(LPC, p. 206). Pelo estranhamento, o poeta desidentifica o espaço para dar
abertura a novas formas de conhecimento.
A própria forma utilizada pelo poeta materializa o aspecto do
fragmentário. Como assinala Sávio:
há poemas em forma de entrevista, com perguntas e respostas, poemas em forma de moda de violão, há definições, há textos em forma dramática com as falas das personagens indicadas e marcações teatrais, textos desentranhados de textos, poemas com notas explicativas que se constituem em outros poemas (SÁVIO, 2004).
Manoel de Barros possivelmente faz uso desse tipo de composição
inspirado nos fortes contrastes encontrados no espaço pantaneiro. As
enchentes violentas e os estios prolongados, o erudito e o primitivo, o espírito
preservacionista do pantaneiro típico e o espírito exploratório, os aglomerados
humanos e os vazios retratam realidades ambíguas e paradoxais da região. O
poeta apropria-se dessas divergências que acabam por se confluir e realiza,
com rupturas, poemas.
A formação e trajetória geológicas do espaço pantaneiro têm referências
à região como Mar de Xaraés. Essa configuração ou “transfiguração” do
espaço em mar efetivamente deu-se pela impressão comparativa da paisagem,
impressa nos textos dos cronistas, e suas posteriores interpretações.
A origem desta construção está congenitamente imbricada na própria geografia do espaço interior da bacia do Alto Paraguai e suas primeiras descrições: um espaço fluvial lacustre, entrecortado por rios e lagoas, que surge nos textos
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quinhentistas com sua sazonalidade de paisagem móvel. (LEITE, 2010).
No Pantanal, o cruzamento entre tempo–espaço geológico, histórico e
imaginativo, bem como a alternância do ciclo das águas e do estio presidem as
condições de vida local. O sistema ecológico pantaneiro promove, portanto,
uma interação entre o natural e o humano. A produção de objetos literários
pode, então, absorver/ materializar características de um determinado espaço.
Fernandes (2002), em seu estudo Entre histórias e tererés: o ouvir da
literatura pantaneira, declara que as histórias populares coletadas revelam o
que é ser pantaneiro e o que é o Pantanal. A partir dessas constatações
podemos apreender relações e levantar questionamentos sobre o espaço:
Foi recolhida aqui uma literatura tão encharcada quanto à região, pois antes de tudo ela está mergulhada no homem, na sua cultura, sociabilidade e criatividade. Dela saem inúmeros mitos, registros de lugares assombrados (...). Destacam-se no repertório o sobrenatural e o natural, o místico e o factual (FERNANDES, 2002, p. 15).
Seres lendários que povoam o folclore brasileiro aparecem no Livro de
pré-coisas reconfigurados. O lobisomem é descrito como uma “espécie de
assombração”, “manso de coçar”, que “bebe leite e tem os olhos desúteis”
(LPC, p.217). Velha Honória, irmã de lobisomens, depois de sumir e tardar
comprido, se animaliza, aparece “de escamas e de língua muito fininha”,
“passeia de cola erguida” e “com ar de serepente aberta” (LPC, p. 218). A nova
criatura, “ave estrupício ou peixe-cahorro”, não pretendia “desvirar”, nem
mesmo se a chamassem de “darling”, como os heróis gregos que viravam de
“rochas de anêmonas de água” e, ao primeiro gesto de amor, desviravam. Isso
demonstra que o enriquecimento e o aprendizado adquiridos com a natureza
foram satisfatórios e deram a Velha Honória a sensação de completude.
O pantaneiro, por “cantos e recontos”, “sonha por cima das cercas”,
“inventa, transcende, desorbita pela imaginação” (LPC, p. 208). O poeta
incorpora tal particularidade para construir sua poesia “livre e andeja”.
Trabalhando a linguagem do homem pantaneiro – “não dá banho em
minhoca”; “bota azeitona na empada dos outros”; “não mora no assunto e no
morro” (GEC, p. 140) –, Barros recria conceitos ou expressões idiomáticas
78
presentes nas raízes históricas do povo: “coisinhas sem veia nem laia” (coisas
reles); “tudo sem pé nem cunhado” (sem pé nem cabeça); “sou macaco pra lá
de cipriano” (macaco velho) (LPC, p. 213). Manoel de Barros constrói
oposições ao saber social a partir da criação de aforismos que ressignificam os
valores do senso comum: “pessoas sem eira nem vaca” (sem eira nem beira)
(LPC, p. 206); “o homem tinha mais o que não fazer” (não ter mais o que fazer)
(LPC, p. 210). Ainda, dialogando com a cultura popular, notadamente no que
tange às crendices populares, faz uso da linguagem informal: “Nhanhá mijava
na rede porque brincou com fogo de dia/ - Mijo de veia não disaparta nosso
amor, né benzinho?” (PCP, p.20).
Barros persiste em seu trabalho com as raízes da linguagem, fazendo
um levantamento do modo de falar dos habitantes da região e criando novos
termos: “supimpando”; “antechupando”; “gumita”; “duvidá”; “alimpar”; “oive de
mi”; “güenta”; “desinquilibra” (LPC, p.229-235).
Ao criar um poema nos moldes das adivinhas populares – “O que é o
que é?”; “Faz parte de árvore”; “Escuta fazerem a lama como um canto”; “Se
obtém para o vôo nos detritos”; “cobre vasta extensão de si mesmo com nada”
(APA, p. 173-174) –, Manoel de Barros quer que o leitor encontre uma
resposta. As pistas dadas nos fazem inferir que aquele que está ligado aos
saberes da natureza, que tem sensibilidade para ouvir os sons inaugurais, que
alça vôos a partir dos restos desprezados e que se vê invadido por nada, é o
próprio poeta.
Manoel de Barros, portanto, emprega em seus poemas a linguagem oral
pantaneira que brota do envolvimento do homem com a natureza. Segundo
Fernandes,
a natureza apresenta-se nas vozes dos pantaneiros como uma representação de mundo, isto é, se a natureza os guia, pois os pantaneiros são parte dela, a representação é, em sua essência, uma poesia do mundo natural. Logo, essas representações poéticas traduzem o como-ser e o como-fazer no mundo em que vivem. Em outras palavras, elas são os mecanismos de o homem se compreender em face ao seu próprio mundo, extraindo dele as sutilezas da vida e do viver (FERNANDES, 2004, p. 92).
79
Dessa forma, as narrativas orais, que circulam no Pantanal e são
incorporadas aos poemas de Manoel de Barros, são manifestações poéticas,
ressonâncias do mundo natural que traduzem o próprio homem. “Traduções”
estas que se fazem no momento em que o homem se integra à paisagem
natural se deixa dominar corporalmente por ela.
Podemos observar também a preocupação de Manoel de Barros em
transformar sua poesia em um espaço de experimentação e de propostas
performáticas, bem como em recuperar a dimensão sensorial das palavras.
Desse modo, Manoel de Barros (GEC, p. 131) procura estabelecer, nos
e pelos poemas, conexões livres entre chão e mar, chão e natureza, chão e
homem. Opera com verbos que deixam à mostra os significantes para conduzir
a significados:
O chão reproduz do mar o chão reproduz para o mar o chão reproduz com o mar
O verbo reproduzir, por exemplo, combinado com diferentes preposições
– “do mar”, “para o mar”, “com o mar” –, expõe a fusão e confusão de terras e
águas no espaço sólido/ líquido da planície pantaneira. Nesse sentido, logo nos
versos iniciais do poema, é encenada a ambigüidade do Pantanal: lugar de
águas móveis.
O poeta trabalha, também, o verbo parir, novamente articulado com
distintas preposições, com o intuito de revelar que no chão encontram-se as
origens: pare – “a árvore”, “o passarinho”, “a rã”:
O chão pare a árvore pare o passarinho pare a rã – o chão pare com a rã o chão pare de rãs e de passarinhos o chão pare do mar (GEC, p. 131).
80
O poeta seleciona os verbos “reproduzir” e “parir” para desenvolver a
ideia de que o chão, na sua rudeza masculina, ao encontrar-se com a liquidez
feminina do mar, torna-se propulsor da produção, da multiplicação de novos
seres.
Por conta desse caráter “originário”, o poeta encontra, no chão, motivos
para poetar, produzindo “objetos estranhos”4 e construindo imagens inusitadas.
Manoel de Barros acredita, pois, que o chão viça “do homem/ no olho/ do
pássaro, nas pernas/ do lagarto/ e na pedra” e ressalta, desse modo, o
imprescindível papel do chão para a perpetuação, para o crescimento opulento
e para a irmanação das espécies. Procura correlacionar, então, o chão e o
homem, na medida em que sugere que o chão brota do homem, ganha viço e
vida no “olho” atento “do pássaro”, nas “pernas” assustadas “do lagarto”, na
estaticidade escultural das “pedras”:
O chão viça do homem no olho do pássaro, viça nas pernas do lagarto e na pedra
(GEC, p. 131)
No Livro das Ignorãças (1993/ 2010), Manoel de Barros retoma tal
aspecto em poemas de “Mundo Pequeno”, não hesitando em afirmar: “o chão
tem gula de meu olho”. O poeta intenta alçar vôos desafiadores, porém ele não
o faz no alto, mas, sim, no chão de modo inquietador: “Seu caminho consiste
para um esvôo rente/ rente até o chão ervar-se/ de seu corpo” (CUP, p. 106).
Para materializar sua mensagem, o poeta faz uso de representações
simbólicas. Para tanto, vale-se do “coleante” lagarto e do “escorregadio”
caracol. Manoel de Barros explica, em nota poética de rodapé, que o lagarto
exercita seu instinto explorador; explora, no entanto, “conchas mortas”:
4 Definida por Bosi (1996, p. 30), a noção de estranhamento
longe de ser um artifício forjado para complicar a frio a relação do leitor com o texto (...), provém da agudeza de intuição e da intensidade de sentimento do eu lírico em face de um mundo que ainda é novo e imprevisto apesar de gasto por séculos e séculos de uso e convenção.
81
O lagarto/ pode ser encontrado em lugares alagadiços/ nas chapadas ressecas/ nas sociedades por comandita/ nos sambaquis: ao lado das praias sem dono explorando/ conchas mortas (GEC, p. 131-132).
Igualmente, o poeta exibe sua necessidade de explorar tudo aquilo que
é considerado sem préstimo, pois, por meio da “inutileza”, pode despertar
novas formas de pensamento, prezar e valorar o desprezível, recusando o
conceito de descartável imposto pela sociedade.
O lagarto é ainda descrito pelo modo particular de se mover:
O lagarto é muito encontradiço também/ nas regiões decadentes/ arrastando-se por sobre paredes do mar como a ostra (GEC, p. 132).
Manoel de Barros deixa-se arrastar pelas palavras. Estas, arrancadas de
seus usos contratuais, tornam-se matéria de poesia, produzindo efeitos
impensados. O verbo “colear” é usado para caracterizar o deslizar em
ziguezague do lagarto, ação que pode ser propícia ao homem e que também
pode ser favorável ao poema, pois dá mobilidade aos sentidos.
Conforme define o poeta, poesia é “voar fora da asa” (LI, p. 302), é
“delírio do verbo” (LI, p. 301), livre para criar transfigurações incomparáveis e
inesperadas. Manoel de Barros procura, desse modo, “desentender” para
desenvolver inovações constantes diante do espaço já existente.
Continuamente jogando com os pares opositivos e complementares
masculino/ feminino, Manoel de Barros passa a ressaltar a qualidade
fecundante da lagarta:
Parece que a lagarta grávida se investe nas funções de uma pedra seca/ passando setembro/ e/ sentindo precisão de escuros para seu desmusgo/ se encosta em uma lapa úmida/ e ali desova/ - ninguém sabe (GEC, p. 132).
Quando “prenhe” de poesia, as palavras investem-se de funções outras
e “desovam” concepções de mundo renovadoras. Os resultados alcançados
após o período de contemplação, recolhimento, “secura”, absorção e reflexão
guardam sempre o caráter de mistério da poesia.
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O lagarto representa, portanto, a própria linguagem poética que objetiva
sinuosamente reavivar o corpo, provocando sensações para que se possa sair
deste espaço para outro.
O caracol é, também, observado por diversas perspectivas:
um caracol é a gente ser: por intermédio de amar o escorregadio/ e dormir nas pedras. É:/ a gente conhecer o chão por intermédio de ter visto uma lesma/ na parede/ e acompanhá-la um dia inteiro arrastando/ seu rabinho úmido (...). É, dentro de casa, consumir livros e cadernos e ficar parado diante de uma coisa/ até sê-la (...) (GEC, p. 132).
A partir do caracol, Manoel de Barros desvela o caminho para a
construção do (auto) conhecimento: faz-se necessário esmar, amar, ser, para
então, conhecer.
Ao destacar a necessidade e vontade do poeta de se apossar da
essência das coisas, de fundir-se, no/pelo ato poético, com o objeto cantado,
Manoel de Barros aproxima-se do pensamento de Cortázar que afirma, que
“poesia é vontade de posse, é posse” (CORTÁZAR, 1974, p. 100 e 101). O
poeta, assim, não se contenta em comunicar emoção pura, quer expressar
aquilo que o toca e sensibiliza. Por não se conformar em simplesmente nomear
e descrever o objeto de seu interesse, o poema almeja sê-lo.
O homem, embora inicialmente sinta dificuldade em se relacionar com o
chão, introduz-se sorrateiramente nesse universo e identifica-se, aos poucos,
com o movimento “coleante” de certos seres da natureza:
Na pedra o homem empeça de colear Colear advém de lagarto e não incorre em pássaro
Colear induz para rã e caracol
Colear sofre de borboleta e prospera
83
para árvore Colear prospera para o homem
(GEC, p. 132-133)
O homem do poema, tal qual o poeta, constrói uma lógica da
similaridade, da analogia, em que a racionalidade se vê comprometida com a
sensação. Segundo explica Cortázar (1974), o homem adota a lógica como um
instrumento do pensar pela qual chega, por meio da apresentação de
evidências, a determinadas conclusões. O mesmo homem, porém, revela-se
seduzido pela possibilidade de elaborar analogias (“sentir próximos e conexos
elementos que a ciência considera isolados e heterogêneos” p. 86) muito mais
transcendentes do que pode admitir qualquer racionalismo:
O poeta se apresenta como o homem que reconhece na direção analógica uma faculdade essencial, um meio instrumental eficaz; não um surplus, mas um sentido espiritual – alguma coisa como olhos e ouvidos e tato projetados fora do sensível, apreensores de relações e constantes, exploradores de um mundo irredutível em sua essência à razão (CORTÁZAR, 1974, p. 87-88).
No poema, o poeta transforma-se em homem coleante e sinuoso, a
espalhar-se pelo chão e a incorporar o dinamismo vital da natureza. Os
“vergéis do poema” permitem o florescimento de um novo ser.
O homem se arrasta de árvore escorre de caracol nos vergéis do poema O homem se arrasta de ostra nas paredes do mar (GEC, p.133)
Explora, assim, novos modos de conhecer o mundo e move seus leitores
a perceber a realidade diferentemente. Sob o lema “eu escrevo com o corpo”, o
poeta nos faz perceber que “a poesia não é para compreender, mas para
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incorporar” (AA, p. 178). Somente quando o homem “se incrusta de árvore/ na
pedra/ do mar”, é que está pronto para o poema. Deste modo, a apreensão do
mundo por uma via sinestésica e sensorial, fala da poesia como conhecimento
que nos chega pela via do corpo, corpo vibrátil, em sintonia sensível com uma
natureza absolutamente sensual e sedutora, a oferecer-se ao leitor
sinuosamente nos desvãos do texto:
compreender o andar liso das minhocas debaixo da terra; escutar como os grilos/ pelas pernas; pessoas que conhecem o chão com a boca como processo de se procurarem/ essas movem-se de caracóis! (GEC, p. 132)
Para Zumthor, a poesia é uma linguagem sensível que nos afeta
intelectiva e sensorialmente, pois traz marcas corporais, marcas da voz. Ainda
que a leitura seja solitária, podemos recuperar a voz subterrânea e restaurar a
dimensão performática do poema: “A obra poética é, desta forma, o fruto da
conjunção de um dado textual e de uma ação sociocorporal, um e outro
formalizados de acordo com uma estética” (ZUMTHOR, 2005, p. 144).
Em um jogo de “estímulos e percepções sensoriais múltiplas”
(ZUMTHOR, 2005, p. 142), Manoel de Barros põe em cena a linguagem e
realça seu caráter performático. Nos versos finais deste poema, Manoel de
Barros corporifica a plena fusão entre o humano e o natural. O poeta cria um
mosaico imagético com ostras, pássaros, águas, no qual o homem integra-se
perfeitamente:
O homem é recolhido como destroços de ostras, traços de pássaros surdos, comidos de mar O homem se incrusta de árvore na pedra do mar
(GEC, p. 133).
Aqui, a palavra “destroços” revela que o poeta desconstrói para construir, para
fazer renascer/ germinar, pela linguagem, um novo homem.
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Esse poema contém forte densidade estética e humana. Estética, obtida
por meio de aspectos formais, de escolhas de verbos (reproduzir, parir, viçar,
colear, arrastar, incrustar) e seres representativos (lagarto, caracol). Os verbos
repetidos inúmeras vezes deixam evidente o trabalho do poeta que quer afetar
o corpo sonoro, melódico do signo, para aproximá-lo das qualidades que o real
suscita, e alterar o significado. Isso exige do leitor outra forma de participação e
o convoca a experimentar/ sentir o poema. Humana, pois intenta recuperar, no
leitor, a relação primeira, sensorial, perdida com o real. O poema busca, deste
modo, uma integração e um despertar de um eu insuspeitado. Procura, ainda,
propor uma relação inédita homem/ linguagem, poema/ espaço.
Mesmo em leituras “puramentes visuais”, os poemas de Manoel de
Barros evocam uma vocalidade “produtora de emoções que envolvem a plena
corporeidade dos participantes” (ZUMTHOR, 2005, p. 141). Assim, perscrutar
seus poemas com o corpo, deixando os sentidos em alerta, é primordial.
A voz deformante e “em cio vegetal” (RAC, p. 359) e o gesto coleante do
poeta projetam “o corpo no espaço da performance visando a conquistá-lo, a
saturá-lo” (ZUMTHOR, 2005, p. 147) com seu tom e seu movimento.
Compreendendo o Pantanal como um lugar edênico, adâmico, Manoel
de Barros alia sua poética ao meio em que cresceu e vive. Sua sensibilidade,
proveniente da criação primitiva que lhe foi dispensada, deixa à mostra uma
estreita ligação às raízes, uma necessidade de fusão com o objeto cantado, um
desejo latente de retorno às fontes não contaminadas.
Segundo Castro (1991), o poeta “passa a assumir todas as propriedades
e faculdades de cada ser que habita o Pantanal, estabelecendo uma
possibilidade de comunicação direta entre todos os componentes deste
universo” (p. 12). A árvore, elemento tão caro ao poeta, por exemplo, tem seu
valor assegurado, já que “ensina de chão” (AA, p.184):
Eu queria aprender o idioma das árvores. Saber as canções do vento nas folhas da tarde. Eu queria apalpar os perfumes do sol. (CPT, p. 482)
86
Dentro do contexto de coparticipação dos seres em transformação,
Barros expressa seu relacionamento com a palavra “semelhante ao movimento
do devir da natureza: ora as relações são de intensa vibração, ora de longa
contemplação da ausência” (CASTRO, 1991, p. 40):
Todos os poetas podem ter qualidades de árvore. Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros (...) todos os poetas podem humanizar as águas (...) os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas (...) podem ser pré-coisas, (...) podem compreender o mundo sem conceitos, (...) podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto. (EF, p. 383)
Acredita, pois, que “o Pantanal está nas palavras. Palavras têm sedimentos.
Têm boa cópia de lodo, usos do povo, cheiros da infância, permanências por
antros, ancestralidades” (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 71).
Funda, então, uma nova escrita: Barros escreve nas águas e focaliza o
que sobrou delas – “o aparelho de ser inútil”; “os nascidos de trapo”; “as
palavras esgarçadas de lodo”; “as macerações de sílabas, inflexões, elipses,
refegos”; “o dialeto coisal, larval, pedral”; “as coisas desimportantes” (GA, p.
239-266). Enquanto agente propulsor e simbólico da metamorfose, a água
exerce papel primordial, já que, no Pantanal, “flui, fertiliza, vivifica, destrói e
ressuscita para uma contínua novidade da vida” (CASTRO, 1991, P. 47) e, em
sua poética, “envesga o idioma” com seus murmúrios, levando o poeta a
afirmar: “os homens deste lugar são uma continuação das águas” (LPC, p.
199).
3.4 Personagens-trastes: poéticos e pantaneiros
Manoel de Barros vale-se de sua “disfunção lírica” ao desenvolver
criações inigualáveis. Seus personagens misturam realidade e invenção. O
princípio selecionador das personagens, que se impuseram significativas, é
87
regido pelo desprendimento, pela gratuidade, pela convivência harmônica com
a natureza, pelo deslocamento contínuo.
Deixo aos meus alteregos a tarefa de realizar os sonhos meus frustrados. Coisas que não fui capaz de fazer realizo através deles. Por exemplo: eu quis muito ser andarilho no Pantanal. Mas nunca agi no sentido de ser um andarilho. Então inventei alguns que fizeram isso por mim. Que dormiam debaixo de árvores, que usavam ornamento de trapos e eram aceitos pelos pássaros nas estradas (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 155).
Um desses andarilhos que o poeta tem especial apreço é Bernardo da
Mata. Com aparições recorrentes em diversas obras de Barros, Bernardo é um
“bandarra velho, andejo, fazedor de amanhecer e benzedor de águas”
(BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 76).
Homem “apoderado pelo chão” – chapéu, que é “repositório de chuva e
bosta de ave”; cabelos, onde nascem pregos primaveris; unhas, em que se
abrem “sementes de capim”; voz, “quase inaudível”, que entoa “língua de folha
e de escama” –, tem seus sentidos aguçados: “ouve de longe a botação de um
ovo de jacaroa”; “sonda com olho gordo de hulha quando o sáurio amolece a
oveira”; “escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do ventre” (LPC, p.
211). Irmanado à natureza, Bernardo se ilumina ao ver o nascimento do sáurio,
se compraz com vermes e lesmas e não se incomoda com os passarinhos do
mato que sentam em seu ombro para “catar imundícia orvalho insetos”. Com
“adesão pura à natureza e à inocência”, Bernardo se ocupa de “tudo quanto é
mais desnecessário” na fazenda: “descoisas, niilidades” (LPC, p. 213). Tal
personagem marcante ensina ao poeta a (re) descobrir o mundo poeticamente:
“Bernardo é a palavra encostada à natureza. (...) Talvez tudo que dentro de
mim quer ser natência, quer ser pré-coisa” (BARROS, 1998, p. 7).
Do “guieiro” Bernardo, Manoel de Barros ressalta a “vontade em mim do
primitivo”; “vontade de conhecer o mundo só pelo rumor das palavras”
(BARROS, 1998, p. 7). Por meio dele, o poeta empreende um conhecimento
pelo sensível e dá um mergulho experencial de comunhão com o mundo.
Desejando integrar-se ao modo de vida de Bernardo, Barros afirma:
“Bernardo é Outro eu. Quando o Bernardo fala, por exemplo, que uma ave
88
sonha de ser ele, ele está olhando o mundo com um olhar de pássaro”
(BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 167). Manoel de Barros faz uma “catação
de eus perdidos e ofendidos” e de pássaros emblemáticos (BARROS, apud
MÜLLER, 2010, p. 42) para refazê-los no interior de Bernardo.
Para Castro (1991), autor de A poética de Manoel de Barros: a
linguagem e a volta à infância, Bernardo é uma espécie de “homem adamítico-
pantaneiro, pois vive em estado de graça, em comunhão com a vida
efervescente e transmutante, que pulsa em qualquer região do Pantanal” (p.
45).
A imprevisibilidade, a simplicidade, a indefinição e a irregularidade fazem
parte das descrições de Bernardo. Tais aspectos apresentam semelhanças
com o próprio espaço pantaneiro, o que nos leva a verificar que a identidade do
indivíduo realiza-se na construção da identidade dos lugares.
O canto do que é convencionalmente excluído é motivo de revelação
poética. A auto-expressão do natural indica, pois, um estado de envolvimento
com a primordialidade das coisas.
Nesse sentido, vemos que Bernardo ensina ao poeta redimensionar o
espaço e ver as coisas sem rótulos e sem nomes. “Ser que não conhece ter”,
Bernardo configura-se como ente mosaicado, trazendo em seu interior
fragmentos de outras personagens “pertencidas de natureza”, materializando a
complexidade do espaço pantaneiro e refletindo preferências poéticas de
Manoel de Barros.
O gosto poético de Barros pode ser representado por “um João tido por
concha que desenhava no esconso, via estrelas subindo em lombo de
borboletas e gostava de espolegar paredes” (MP, p. 151). Ao entrar em um
ambiente “extremamente poético” – um terreno baldio sujo de mato onde
encontrou “ramos de lua que reverdeciam de latas” – e observar crianças, “em
pleno uso da poesia”, João sentiu regozijo e sorriu. Seu aprendizado, resultante
de um conhecimento prático perante as fontes da terra, também deixa claro o
ideal poético de Barros: “Eu conheço, eu sei” (MP, p. 152).
O zelo com a linguagem pode ser evidenciado por meio de Pote Cru
(RAC, p. 360-361) e Passo Triste (RAC, p. 365-366). Considerados pelo poeta
como “pastores”, zeladores da palavra, essas personagens o guiam na criação
89
de uma poesia do chão, do ínfimo, do transfigurismo do verbo. Pote Cru, que
“de tarde deambula no azedal entre torsos de/ cachorro, trampas, trapos” e
detinha “voz de oratórios perdidos”, é representante do poder que a palavra,
esquecida em locais desprestigiados, tem para o poeta; Passo Triste, que
“andava favorável para coisas, dava aos andrajos grandeza, vivia
desgualepado, gostava de encantações do que de informações”, é não só
representante da necessidade do poeta de retirar as palavras de seus usos
acostumados, aplicando novo valor às coisas e provocando estranheza, mas
também portador da almejada apropriação das essências: “pedra ser, inseto
ser era seu galardão”. Barros afirma:
A palavra poética não será nunca um instrumento de informações senão que sempre um instrumento de encantações de celebrações (BARROS, 1998, p. 6).
Manoel de Barros faz dos versos de Jorge de Lima epígrafe para revelar
seu objetivo criador: “Porquanto/ como conhecer as coisas senão sendo-as?”
(CUP, p. 115). Nesse sentido, ressalta a necessidade e vontade de possuir
para conhecer a essência das coisas.
Ao apresentar “Um Novo Jó” que “habitava/ sobre um montão de pedras,
desfrutado entre bichos/ raízes, barro e água”, Barros avalia quais as
vantagens obtidas por esse homem:
Bom era ser bicho/ que rasteja nas pedras;/ ser raiz de vegetal/ ser água; Bom era caminhar sem dono/ na tarde; Ir andando pequeno sob a chuva/ torto como um pé de maçãs; Bom era (...) pousar depois... como um garfo esquecido na areia; Bom era (...) ser como fruta na terra, entregue/ aos objetos (CUP, p. 116-117).
Manoel de Barros revisita a Bíblia, fazendo surgir um novo modelo de
homem justo, fiel até na miséria, personificando todos os “pobres do mundo”
que, mesmo nada possuindo, não se revoltam, mas, sim, bendizem seu estado,
porque encontram proveito no ínfimo. Ressalta, assim, a importância de ser
traste, pois “só empós de virar traste que o homem é poesia...” (MP, p. 153).
Fundamenta seu pensamento no poema “Teologia do traste”:
90
As coisas jogadas fora por motivo de traste são alvo de minha estima. (...) latas são pessoas léxicas pobres porém concretas Por isso eu acho as latas mais suficientes, por exemplo, do que as ideias. Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo espírito, elas são abstratas. E, se você jogar um objeto abstrato na terra por motivo de traste, ninguém quer pegar. (...) queria que os vermes iluminassem. Que os trastes iluminassem (PR, p. 438).
O homem perdido, sem referências, em seu eterno vagar pelo mundo,
busca dar sentido a sua existência. Barros tenta alcançar a completude pela
iluminação do traste, pela compreensão e (re) valoração do mundo a partir das
coisas simples, que se encontram na contramão do pensamento
contemporâneo dominante:
Das coisas humildes do chão, do homem destituído de valor social e da convivência amorosa e exuberante que sua poesia promove entre objetos que se evitam e se afastam em suas imagens, é que o poeta constrói uma teoria poética dentro da própria poesia. Em seus liames, uma força viva, pulsante, esvazia a palavra da sua carga cultural e instaura a infidelidade do sentido, escrevendo por imagens que corrompem o entendimento da realidade tal qual se conhece, abrindo caminho para o desconhecido, o invisível, o inaudível, a um mundo sinestésico (CAMARGO, 2004, p. 109).
Homens desprestigiados, os desheróis, chamam, portanto,
freqüentemente a atenção do poeta: Malafincado – “feito de restos” – “falava
em via de hinos; gostava de desnomear”; era “escorço de poeta”; Sombra-Boa
– “ente abençoado a garças” – ouvia “conversamentos de gaivotas”; entrava
“em pura decomposição lírica”; “conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro”; “nascera engrandecido de nadezas” (LI, p. 317 e 361).
Outra personagem, reconhecidamente representante simbólica do
próprio pensar e fazer poéticos de Manoel de Barros, é o velho do gramofone.
As palavras do “caderno de apontamentos” se confundem com as palavras do
poeta. Recapitulando experiências passadas, o narrador relata que o avô, por
conta da Guerra do Paraguai, escondeu-se no porão da casa e levou consigo o
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Gramofone. Com o passar dos anos, uma árvore, favorecida, segundo o
narrador, pelo ambiente escuro, começou a crescer no porão entrelaçada “aos
pedaços de ferro do Gramofone”. A árvore irrompeu no assoalho da sala no
período de Pentecostes e frondou no salão. O avô, “preso nas folhas e nas
ferragens do Gramofone”, subiu também, flutuando “no espaço da sala, com o
rosto alegre de quem estava encetando uma viagem” (CCA, p. 271, 272 e 273).
A partir dessa narrativa, podemos constatar similitudes entre as ações
do velho do gramofone e as práticas poéticas de Manoel de Barros. O avô
escondeu-se no porão, local escuro e solitário; Barros, por sua vez, tranca-se
em sua “toca” por acreditar que o imaginário solta-se melhor no fechado e que,
no escuro, enxerga melhor. Em seu “lugar de ser inútil”, Manoel de Barros
(apud CASTELLO, 1996a) explora “mistérios irracionais”, descobre “memórias
fósseis”, escava, anota. Lê não só a Bíblia e o livro da antropóloga Betty
Mindlin, Vozes da Origem, mas também dicionários com o intuito de descobrir o
primeiro “esgar de uma palavra”.
A escolha pela reclusão trouxe ao avô alegria e o fez livre; Barros
encontra no ermo existente em seu íntimo liberdade criadora. O avô tomou a
árvore como extensão de seu próprio corpo; Barros liga-se intrinsecamente a
sua obra ao ponto de afirmar que os poemas sofrem do poeta. Mesmo
demonstrando sentir-se bem morando no topo da árvore, o avô jamais
abandonou o objeto que o mantinha ligado à terra; Barros intenta alçar vôos
desafiadores, porém ele não o faz no alto, mas, sim, no chão de modo
inquietador. O avô passa a enxergar a realidade por um novo ângulo; Barros,
com seu olhar “torto”, transcende o real, não o ignorando, mas, sim,
transfigurando-o. Ao se entrelaçar com a árvore e o Gramofone, o avô concilia
o novo e o velho, mistura o “verdor primal com as vozes civilizadas”. Carpinejar
(2006) confirma que “a singularidade da poética [de Manoel de Barros] reside
em combinar a aguda percepção urbana com um repertório primitivo e rural”.
Barros, enquanto criador, recupera comportamentos lingüísticos antigos, cria
novas relações de sentido e produz a sensação do novo.
Até mesmo as aves constituem personagens fundamentais para
compreensão e reelaboração do espaço. Os urubus “andam de a pé,
caminham de banda, finórios, saltando de uma para outra carniça, lampeiros e
92
apeiam depois na terra, supimpando” (LPC, p. 229). O socó-boca-d’`água
“espicha seu corpo pra trás, como se quisesse conversar de costas” (LPC, p.
230). O quero-quero ensina o amor ao chão e apregoa uma “filosofia nua, de
vida muito desabotoada e livre” (LPC, p. 234). As garças são observadas pelo
poeta como aves que “enchem de entardecer os campos e os homens e
produzem no céu iluminuras” (LPC, p. 235).
Do urubu, o poeta assimila seu agir instintivo e o aproxima da sua
atividade poética: “Nenhuma voz adquire pureza se não comer na espurcícia.
Quem come pois do podre se alimpa” (LPC, p. 230). Coisas antes desprezadas
ou consideradas apoéticas servem, portanto, de motivos para poetar: “Como
eles, sobre as pedras, eu cato restumes de estrelas. É muito casto o restume”
(LPC, p. 230).
Já com o socó-boca-d’água – pássaro que, apesar de apresentar fortes
relações com as origens lendárias do Pantanal (“sabe onde mora o peixe
desde quando por aqui era mar de Xaraés” (LPC, p. 231), não se deixa
conhecer por completo –, Manoel de Barros demonstra que sua poesia guarda
em sua essência um mistério e se integra ao Pantanal, tomando-o como um
lugar adâmico, primário, sem feições definitivas, que está na origem do mundo.
O local onde possivelmente esse pássaro mora é pura invenção poética:
ouço que mora na gravanha – ou no gravanha. Sabendo ninguém o que seja gravanha. A palavra é bonita e selvagem. Não está registrada nos léxicos. Ouço nela um rumor de espinheiro com água. Tem tudo para ser ninho e altar de um socó-boca-d’água. (LPC, p. 231)
Assim, a poesia é entendida como um ser de linguagem, em que a dedicação
às inutilezas, a adoção do sentido contrário ao modo de pensar dominante e o
não compromisso com verdades cristalizadas são evidenciados.
Esse pássaro, ainda, conduz a reflexões importantes: “vê dos treze
lados” (LPC, p. 230), assim como o poeta tem um olhar sensível para perceber
múltiplos aspectos de um objeto; “tem fino ouvido de barata; sempre alarmado”
(LPC, p. 230), do mesmo modo o poeta necessita ter sentidos acurados para
ouvir sons originários, subterrâneos e transpô-los em poesia; “sonda a hora das
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cobras e dos grilos subjacentes” (LPC, p. 231), revelando o poeta enquanto ser
buscador, questionador, investigativo que tem um desejo especulativo frente às
coisas; “pára atencioso, esgalgado” (LPC, p. 231); “parece que sopra no mundo
uma avena entupida de areia” (LPC, p. 231), poeta, contemplador ávido do
real, sopra no mundo objetos estranhos, revisitando a tradição para propor o
novo.
Das garças, Manoel de Barros não encontra no canto a beleza, mas,
sim, em suas cores e movimentos. Personificando as qualidades das garças, o
poeta as coloca em elevado grau de importância, demonstrando-se enlevado:
“a Elegância e o Branco devem muito às garças” (LPC, p. 235). Levantando a
possibilidade de tais aves serem “viúvas de Xaraés” (LPC, p. 235), o poeta
parece localizar “nostalgia de mar” e “sombra de dor em seus vôos” (LPC, p.
235). O poeta afirma, então, que no Pantanal o vôo da garça “adquire raízes de
brejo” (LPC, p. 236).
O poeta ainda justapõe a brancura da garça ao escuro da lama e
completa:
Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças. Insinuando contrastes – ou conciliações? – entre o puro e o impuro etc. etc. Não estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre! (LPC, p. 236)
Compreendemos que, para ter lugar na poesia de Manoel de Barros, o
homem deve atingir a mesma condição das coisas inúteis. Seres que vivem a
indigência social, que escorrem de um reino para outro, que colecionam o que
não tem valor de uso, que constroem objetos lúdicos com aquilo que a
sociedade jogou fora, servem para poesia. “Puros trastes em flor”, situados na
origem dos tempos, se confundem com o chão, com os bichos, com as aves,
assumindo características deles.
O Pantanal, igualmente, mostra-se múltiplo, indeterminado, indefinido,
repleto de coincidências de contrários. A linguagem poética de Barros assume
esse caráter de mosaico e põe em cena palavras com alta força imagética e
densidade sensorial.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Representar poeticamente espaços, redimensioná-los, transgredi-los.
Eis algumas inquietações que moveram nossa pesquisa. A reconfiguração de
uma região complexa, de sua cultura, dos seres que nela habitam, procura não
somente cantar o real, mas transcendê-lo.
Para compreendermos como se dá essa reordenação espacial do
Pantanal na poesia de Manoel de Barros, a partir da análise do Livro de pré-
coisas, foi necessário empreendermos um levantamento não só de outras
obras do poeta, mas também de comentários críticos acerca de seus trabalhos,
bem como de conceituações de espaço em diversas áreas do conhecimento.
Pudemos então tecer relações e verificar que Manoel de Barros se inscreve no
Pantanal e faz com que os deslimites pantaneiros se insiram em seus poemas.
A estrutura compositiva do Livro de pré-coisas nos indica um
interrelacionamento entre as partes. O poeta, em um primeiro momento,
anuncia o Pantanal, prepara o leitor para uma nova forma de conhecimento da
região: por intensidades, sensações e não por representações. Em seguida, dá
início às imprevisíveis transfigurações dos cenários e constrói micro-cosmos
poéticos reespacializadores. Depois, volta sua atenção ao (des) personagem,
Bernardo, ser sinestésico que conjuga sensações e se integra totalmente ao
ambiente natural. Ainda nesta parte, o poeta propõe a confluência entre prosa
e poesia ao inserir excertos de uma espécie de caderno de apontamentos que
trazem experiências mosaicadas com a linguagem. Por fim, passa a
reconfigurar pequenos seres presentes no universo pantaneiro, reveladores de
práticas poéticas amplamente exploradas: valorização do “restume”;
exploração das potencialidades da palavra; liberdade criadora; captação de
métodos de outras artes.
A criação junto ao chão pantaneiro estimulou, no poeta, um apego muito
grande à terra, à natureza, o que o levou, poeticamente, a valorizar as coisas
mínimas, as “inutilezas”, a conservar o lastro “brejal”. Das “raízes crianceiras”,
o poeta extrai uma visão “comungante e oblíqua” das coisas.
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Manoel de Barros, inquieto e inquiridor, com olhos de descobrir, quer
tornar aparente a descontinuidade do Pantanal. O pensar sobre a linguagem se
dá pelo fragmento, por representações simbólicas, por nódoas de imagens, por
sensações ímpares. O mosaico espacial, elaborado pelo poeta, reorganiza
fragmentos de diferentes tipos: ruínas que enfrutam; águas que esculpem
escombros; arbustos que desabrem nas pedras; insetos compostos de
paisagem; rios que esfregam o rosto na escória e invadem as terras do
Pantanal; cupins que levantam andaimes; ruas sem placas, sem nome, sem
esquina; pessoas sem eira nem vaca; niilidades; descoisas.
O poeta transfaz o Pantanal, que passa a ser o território do corpo, da
despalavra, da pré-coisa, da poesia. Barros intenta incorporar o espaço
circundante com o corpo: seu olhar “torto e mosaicado” transvê as coisas, sua
mão criadora rascunha transfigurações constantes, sua voz deformante (en)
canta as fontes.
A matéria de sua poesia apresenta a ideia do devir: materializa a noção
de Pantanal em processo e a relaciona aos deslimites da poesia. Há, na obra
de Barros, diversos pontos em processo: processo de conhecimento com o
corpo; processo de sensorialização das palavras; processo de “inauguramento
de falas” (GA, p. 265); processo de confluência prosa-poesia; processo de
engrandecimento das insignificâncias; processo de perda de fronteiras entre os
reinos da natureza; processo de perda dos limites da linguagem.
Manoel de Barros desinventa as palavras para que elas retornem às
funções primeiras. Quer recriar, na ponta de seu lápis, o saber original para
encontrar as coisas em estado larvar: apalpar as primeiras formas; escutar os
primeiros pios; ver as primeiras cores. Quer ascender “lá onde a gente pode
ver o próprio feto do verbo – / ainda sem movimento. / Aonde a gente pode
enxergar o feto dos nomes – / ainda sem penugens” (TGG, p. 410). Quer,
portanto, inaugurar um novo espaço.
O poeta transcria o espaço pantaneiro por meio de uma escrita poética
fluida, ambígua e complexa. Estabelece relações móveis entre os sentidos, dá
abertura à plurissignificação, conjuga semanticamente termos díspares.
Renova incessantemente a linguagem, inspirando-se na permanente mutação
do ecossistema pantaneiro.
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Barros pinta, com (des) palavras, um quadro sensível do Pantanal.
Dialoga com as pinturas de Klee, Miró, Van Gogh, para delas extrair
procedimentos de composição de imagens.
O poeta constrói personagens metamorfoseantes, por vezes indefiníveis,
para consagrá-los a objetos poéticos sem limites. Criadores de desobjetos
artísticos, seus personagens rompem com concepções convencionalmente
instituídas e, por experimentarem os elementos da natureza de modo
alquímico, adquirem o entendimento do poder da poesia: transmutação de
coisas tidas como inferiores – inutilezas, monturos – em ouro poético “da boca
do chão” (GA, p. 264).
O Pantanal, em Manoel de Barros, torna-se metáfora da poesia:
“ocupação da palavra pela Imagem e ocupação da Imagem pelo Ser” (GA, p.
263); “raiz entrando em orvalhos”; “livre como um rumo nem desconfiado”
(CUP, 109-110).
Manoel de Barros desfigura o espaço existente, desarticula-o para
instaurar uma nova realidade, desvê o mundo para reencantá-lo. Permite-nos
um novo entendimento de poesia, promove a sensibilização, a humanização, o
senso crítico de seus leitores.
Além disso, o poeta tem interesse em ir ao encontro de uma linguagem
ainda de todos inexplorada, transgride as leis da língua em vigor, levando a
palavra a delirar e a tomar sobre si significados não habituais.
Manoel de Barros abre novos caminhos de percepções pela lógica da
(re) descoberta. As imagens reconfiguradas mostram-se polivalentes,
incompletas e apelam para uma experimentação sensorial do espaço.
A leitura que fizemos de Manoel de Barros nos sugere que há múltiplos
modos de apreensão poética. Nesse sentido, esperamos que este estudo
possa incitar novas inquietações, pois, assim como o Pantanal, a poesia
descomparada de Manoel de Barros não possui margens.
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