poesia e modernidade em Álvaro de campos

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Poesia e modernidade em Álvaro de Campos 1 Kleyton Ricardo Wanderley PEREIR 2 RESUMO No presente artigo, analisamos a representação do homem moderno na poesia de do poeta port#g#$s %ernando Pessoa& Para tanto, a partir da diisão escolhemos a (ase sensacionista para a composição do corpus de an)lise deste tra*alho& Esta (ase + a princ-pio, pela apologia da ida #r*ana, cosmopolita, tecnicista e, por isso sendo contaminada pelo sentimento de derrota e/istencial do e#0l-rico ao se de reali ação de se#s dese os de ser a mesma coisa de todos os modos poss-eis an)lise sociol5gica da literat#ra proposta por Antonio !andido como instr#ment o*serar a relação entre te/to e conte/to de maneira dialeticamente -ntegra& P heter"nimo pessoano lança #m olhar po+tico so*re a imagem do homem moderno, in grandes metr5poles, reelando, dessa maneira, #ma poesia pro(#ndamente enga a sociais e e/istenciais de s#a +poca& PA7A8RA90!:A8E; Poesia Port#g#esa& %ernando Pessoa& Álaro de !ampos& <odernid ABSTRACT In this article =e analy e the representation o( the modern man in the poetry the Port#g#ese poet %ernando Pessoa& %rom the diision proposed *y !leonice 'e >sensacionist? phase as the corpus o( analysis o( this =or@& his phase is characteri ed *y cosmopolitan, technicist, and modern li(e, *#t also slo=ly contaminated *y the (eeling =hen (acing the impossi*ility o( carrying o#t his =ishes o( *eing th same time3& We #sed the sociological analysis o( the literat#re proposed *y An instr#ment *eca#se it allo=s #s to o*sere the relation *et=een te/t and conte manner& We reali e that Pessoa?s heteronym disco#rse casts o#t a poetic loo@ o inserted in the conte/t o( great metropolises, reealing a poetry deeply engag iss#es o( his period KEBWCRD9; Port#g#ese Poetry& %ernando Pessoa& Álaro de !ampos& <odernity& Introdução A <odernidade (oi #m momento de pro(#ndas trans(ormaç6es na so !onse.#$ncias da <odernidade, Anthony iddens F1GG1, p&11H, di . estilo, cost#me de ida o# organi ação social .#e emergiram na E#r 8II e .#e #lteriormente se tornaram mais o# menos m#ndiais em s# disso, seg#ndo o a#tor, + o momento .#e marca o desencai/e das est c#lt#rais, a .#e*ra dos antigos paradigmas, o .#e desperta #ma re( pr5pria (orma de reali ação, o# se a, a prod#ção de conheciment social torna0se integrante da reprod#ção do sistema, deslocando a tradição3 F1GG1, p&J 0GH& 1 e/to p#*licado no e0*oo@ Versão beta - literatura: crítica, teoria e tradução, em 2L1M, e disp http;OOiss##&comOpipacom#nicaOdocsOersao*eta modeQ=indo= & 2 Do#tor em 7etrasO eoria da 7iterat#ra pela Programa de P5s0 rad#ação em 7etras da 4%PE& Pro(ess Pernam*#co S 4nidade Acad$mica de 9erra alhada F4%RPEO4A9 H, na )rea de 7-ng#a Inglesa e 7iterat

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Artigo sobre Poesia e Modernidade no heterônimo Álvaro de Campos

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Poesia e modernidade em lvaro de Campos

Kleyton Ricardo Wanderley PEREIRA

RESUMO

No presente artigo, analisamos a representao do homem moderno na poesia de lvaro de Campos, heternimo do poeta portugus Fernando Pessoa. Para tanto, a partir da diviso proposta por Cleonice Berardinelli, escolhemos a fase sensacionista para a composio do corpus de anlise deste trabalho. Esta fase caracterizada, a princpio, pela apologia da vida urbana, cosmopolita, tecnicista e, por isso, moderna, mas que vai aos poucos sendo contaminada pelo sentimento de derrota existencial do eu-lrico ao se deparar com a impossibilidade de realizao de seus desejos de ser a mesma coisa de todos os modos possveis ao mesmo tempo. Utilizamos a anlise sociolgica da literatura proposta por Antonio Candido como instrumento crtico porque ela nos permite observar a relao entre texto e contexto de maneira dialeticamente ntegra. Percebemos que o discurso do heternimo pessoano lana um olhar potico sobre a imagem do homem moderno, inserido no contexto das grandes metrpoles, revelando, dessa maneira, uma poesia profundamente engajada nas questes polticas, sociais e existenciais de sua poca.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia Portuguesa. Fernando Pessoa. lvaro de Campos. Modernidade.

ABSTRACT

In this article we analyze the representation of the modern man in the poetry of lvaro de Campos, heteronym of the Portuguese poet Fernando Pessoa. From the division proposed by Cleonice Berardinelli, we choose the sensacionist phase as the corpus of analysis of this work. This phase is characterized by an apology of urban, cosmopolitan, technicist, and modern life, but also slowly contaminated by the poetic personas existential defeat feeling when facing the impossibility of carrying out his wishes of being the same thing all possible ways at the same time. We used the sociological analysis of the literature proposed by Antonio Candido as a critical instrument because it allows us to observe the relation between text and context in a dialectically integrity manner. We realize that Pessoas heteronym discourse casts out a poetic look over the image of the modern man, inserted in the context of great metropolises, revealing a poetry deeply engaged in political, social and existential issues of his periodKEYWORDS: Portuguese Poetry. Fernando Pessoa. lvaro de Campos. Modernity.IntroduoA Modernidade foi um momento de profundas transformaes na sociedade. Em As Consequncias da Modernidade, Anthony Giddens (1991, p.11), diz que o termo refere-se a estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia. Alm disso, segundo o autor, o momento que marca o desencaixe das estruturas sociopoltico-culturais, a quebra dos antigos paradigmas, o que desperta uma reflexividade constante na prpria forma de realizao, ou seja, a produo de conhecimento sistemtico sobre a vida social torna-se integrante da reproduo do sistema, deslocando a vida social da fixidez da tradio (1991, p.58-9).

O conceito de modernidade na lrica, ou seja, do Modernismo, parte da exploso dos movimentos de Vanguarda nas artes, em especial na literria. A Literatura do incio do sculo passado legou-nos, como caractersticas prprias do esprito de sua poca, o desvencilhamento dos antigos moldes literrios; o estranhamento diante das (im/pluri)possibilidades de compreenso e interpretao da poesia e a complexidade que se exprime atravs de uma tenso dissonante, a saber, da relao entre o poeta, o poema e o leitor, isso porque as definies taxonmicas da linguagem no se sustentam por muito tempo, visto que a Literatura, como o prprio homem, escapa s imposies de seu tempo. Essa tenso dissonante nos conduz ao perodo da Histria conhecido como Modernidade, onde a prpria Literatura oferece-nos caminhos para a compreenso dos aspectos de uma sociedade em determinada poca, atravs da labirntica, ldica e, muitas vezes, desconstrucional linguagem potica.

Bero das manifestaes artstico-culturais modernas, a Europa foi o lugar da gnese dos novos paradigmas que, junto aos movimentos sociais, revolucionariam as artes a partir do final do sculo XIX. De acordo com Arnold Hauser (2003, p.961), a arte moderna transformou-se em algo feio e anti-impressionista, onde a grande inteno era escrever, pintar e compor com base no intelecto e no nas emoes atravs de um desejo de escapar a todo custo do complacente esteticismo sensual a poca impressionista. Isso quer dizer que, para alm do sentimentalismo exacerbado do Romantismo, as artes buscavam, antes de qualquer elemento, um rigor intelectual profundo. Para realizar algo inovador, seria necessrio, a priori, pensar e refletir sobre esse o-que-fazer. Alm disso, a partir desse momento, a prpria prxis passa a ser a pedra de toque da teorizao artstica.

No demorou muito para tal concepo sair do epicentro cultural europeu Frana, Alemanha e Inglaterra e espalhar-se por toda a Europa como uma verdadeira febre. neste mesmo contexto que surgem os grandes pensadores da modernidade: polticos, cientistas, filsofos e, principalmente, poetericos.

Fernando Pessoa e a experincia Modernista em Portugal

Os primeiros anos de experincia literria moderna em Portugal so considerados artisticamente como os mais ricos. Isso porque a produo lusitana no somente mudou o perfil de sua literatura no ltimo sculo, como tambm de todo o conjunto, pois durante essa poca que se erige um poeta que, segundo o autor, ombreia com Cames. Apesar de encontrar-se no continente europeu, Portugal foi um dos pases que entrou mais tardiamente no modernismo de maneira geral. Seu incio simblico foi 1909, ano do aparecimento do Futurismo, que chegaria, por conseguinte a Portugal e, por intermdio desse, ao Brasil. A partir de ento, os movimentos de vanguarda vo fascinando uma quantidade expressiva dos jovens escritores portugueses que, influenciados pelas novas tendncias artsticas, iniciam um novo movimento de ruptura com as tendncias passadistas. Alm disso, se faz mister lembrar, pairava um esprito de renovao literria em Portugal semelhante ao que ocorrera algumas dcadas antes, em 1870, com a Questo Coimbr, onde jovens literatos provocam uma profunda revoluo cultural ao propor repensar no s a literatura como toda a cultura portuguesa desde suas origens, bem como a transformao na ideologia poltica e na estrutura social portuguesas (MACHADO, 1986, p.14). Dessa maneira, a partir das primeiras dcadas do sculo XX, a nova gerao revolucionria portuguesa foi um abalo ssmico de uma tal intensidade e fulgor (LISBOA, 1984, p.15) provocado por uma juventude que, em reao ao tdio cultural, cultivou os germens de uma nova razo literria com seu laboratrio de fazeres estticos.

O incio da aventura modernista em Portugal se d em torno da revista Orpheu, lanada em maro de 1915. Fernando Pessoa, Mrio de S-Carneiro e Almada-Negreiros, dentre outras personagens do modernismo portugus, j haviam publicado alguns textos-manifestos propagando o iderio de uma completa revoluo artstico-social. Apesar do curto perodo de vida, a revista foi o lugar de convergncia da jovem intelectualidade portuguesa das primeiras dcadas do sculo XX. Impulsionada pelo futurismo de Marinetti e pelos demais movimentos de vanguarda, a gerao de Orpheu, como ficou conhecida, apresenta as novas tendncias estticas da nova poesia portuguesa. Os dois primeiros nmeros da revista, de pretensa periodicidade trimestral, contam com a contribuio de escritores luso-brasileiros, alm dos supracitados. No entanto, mesmo contando com vrios contribuintes e incentivadores, o grupo no consegue alcanar a terceira publicao, ficando esta no prelo por falta de financiamento. Mrio de S-Carneiro, mantenedor e um dos principais participantes da revista, comete suicdio, em 1916, agravando a situao do grupo que acaba por se desagregar com a morte de mais dois de seus componentes, em 1918, e o afastamento de vrios outros.

A partir de ento, a histria do modernismo portugus acaba por confundir-se com a histria do prprio Fernando Pessoa, grande nome de sua gerao, mas que escolheu viver no anonimato. Isso porque o poeta decidiu, ao trabalhar como redator de cartas comerciais, reduzindo-se ao trnsito da penumbra entre a irrealidade de sua vida cotidiana e a realidade de suas fices (PAZ, 2006, p.201), viver intensamente sua produo literria de forma que nenhum evento exterior interrompesse o grande projeto literrio ao qual ele estava predestinado. Atravs das palavras de Octavio Paz (2006, p.201), podemos pensar da seguinte forma: Os poetas no tm biografia. Sua obra sua biografia.

A intensa produo potica era permeada pela criao heteronmica do poeta, j desde a poca da revista Orpheu s lembrarmos que nela o heternimo lvaro de Campos faz diversas publicaes. A criao de mscaras ficcionais, outros que o habitam, d a Pessoa a possibilidade de multiplicar-se vrio, de ser e sentir tudo de todas as formas. A origem e chave da compreenso heteronmica est en la fragmentacin del yo y en la incapacidad de la consciencia para reintegrarlo. Los heternimos no seran otra cosa que el conjunto de representaciones [] de esa personalidad escindida y neurtica del poeta y que como tal se expresa parcelarmente (MARTN LAGO, 2000, p.62). Assim, vemos a criao de personagens como um mosaico de seu eu buscando a impossvel reconstruo no(s) diverso(s) do(s) outro(s).

O Homem Moderno em lvaro de Campos

Fernando Antnio Nogueira Pessoa, ou apenas Fernando Pessoa, nasceu num pequeno quarto no Largo de So Carlos, em Lisboa, s trs e vinte da tarde de treze de junho de 1888, dia de Santo Antnio, padroeiro da cidade. Filho de uma famlia da pequena aristocracia portuguesa, desde cedo aprende a dura lio da partida: em 1893 perde o pai, Joaquim de Seabra Pessoa, vtima da tuberculose e, menos de um ano depois, o irmo mais novo. Depois uma temporada vivendo em Durban, frica do Sul a me de Pessoa, dona Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, v-se obrigada a casar, por procurao, com Joo Miguel Rosa, comandante e cnsul de Portugal em Durban , Pessoa volta Portugal, onde passa a ter uma vida modesta e comea a trabalhar como correspondente estrangeiro em casas comerciais. Esta atividade permitiu-lhe no s garantir o sustento e a independncia econmica dos parentes, como tambm suficiente para no o atrapalhar na sua intensa produo intelectual e literria.

Apesar de sua produo crtica ter comeo em A guia (1910), com o grupo de jovens artistas que Fernando Pessoa vai consolidar uma gerao digna das grandes naes. O grupo formado em torna da revista luso-brasileira Orpheu (1915), dirigida em seu primeiro nmero pelo brasileiro Roland de Carvalho e o cabo-verdiano Lus de Montalvor, pseudnimo de Lus da Silva Ramos, cujos nomes figuram apenas no frontispcio do primeiro nmero da publicao, e que depois ficou sob a direo e organizao de Mrio de S-Carneiro e Fernando Pessoa, diretores oficiais e o primeiro mantenedor da revista, Almada Negreiros e alguns outros escritores. Infelizmente a revista s resistiu at seu terceiro nmero que, apesar de preparado, no chegou a ser publicado por falta de capital. Alm disso, com o suicdio de S-Carneiro, em 1916, e a morte de Santa-Rita Pintor, 1918, o grupo se dissolve por completo.

Em verdade, podemos dizer que o primeiro momento do modernismo portugus foi caracterizado pelo erigir de um dos maiores poetas da lngua portuguesa e pensador da cultura lusitana, um verdadeiro supra Cames. Fernando Pessoa foi, sem sombra de dvidas, o grande nome da gerao rphica. Escritor, Filsofo, Poltico, Tradutor, Ocultista, so algumas das ocupaes de seu incansvel intelecto. Alm disso, como nos diz o crtico moambicano e estudioso da obra de Fernando Pessoa, Jos Gil (2000, p.14), do que o modernismo realizou em arte e na literatura, Pessoa foi, de certo modo, e ao lado de tantos outros (), o representante mais radical, mais sistemtico e rigoroso, que no s escreveu, mas que teorizou constantemente a sua experincia. Sua obra demonstra uma verdadeira paixo pela literatura, em especial pela poesia. To profunda sua dedicao que, por no caber em si, ele mesmo se esfacelou em vrios-eus, entidades ficcionais, os chamados heternimos. Sobre o processo de composio heteronmica de Fernando Pessoa, h inmeras explicaes, dentre eles: uma compensao pela carncia afetiva e ausncia da figura paterna; a instvel constituio psquica do poeta teria gerado a multiplicao das personalidades; a necessidade em esfacelar-se em vrios para fugir da mesma loucura que levou o amigo S-Carneiro ao suicdio; a qualidade de poeta que o levou despersonalizao onde a heteronomia seria o seu ltimo processo inerente criao potica e onde, nas palavras do prprio Pessoa, O poeta um fingidor.

O fato que Fernando Pessoa criou outras personalidades distintas de si, cada qual com caractersticas prprias, dentre as quais se destacam: Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa e autor do Livro do Desassossego, considerado pelos crticos um pseudo-heternimo; Alberto Caeiro, poeta que despreza o pensamento filosfico ao instaurar seu objetivismo visual da realidade, buclico pastor de ovelhas sem o ser e mestre dos mestres; Ricardo Reis, poeta de carter epicurista e neoclssico; e lvaro de Campos, poeta iconoclasta, moderno, existencial e sempre inconformado com as migalhas da vida. Este ltimo melhor traduz a historicidade potica do ser-homem-moderno. Isto por ser filho da modernidade, construtor naval, viver em grandes metrpoles e, principalmente, compartilhar dos mesmos sentimentos e angstias do homem de seu tempo, por querer sentir tudo de todas as formas sem, pretensamente, querer ser coisa alguma.

O heternimo lvaro de Campos d sequncia a uma viso de vanguarda filiada ao futurismo de Marinetti, introduzindo, dessa maneira, Portugal no modernismo europeu. Junto com o grupo de Orpheu, sua voz potica inscreve uma linguagem recheada de polifonia das capitais modernas com a maquinificina das suas vibraes eltricas e multides formigantes. O certo que breve foi a vida de Orpheu, mas longa a sua presena que at hoje se faz sentir (BERARDINELLI, 2004, p.60). Campos, diz o bigrafo Robert Brchon (1982, p.253), o duplo extrovertido de Pessoa. Os gritos, as injrias, os palavres, ou as grandes palavras que o autor ortnimo no poder nunca fazer sair de sua caneta ou da sua boca, profere-os o engenheiro a todo o momento, sem se coibir.

O que verdadeiramente sabemos sobre lvaro de Campos foi descrito pelo prprio Pessoa numa cuidadosa biografia, trabalho complexo onde para cada heternimo desenhou distintas caractersticas intelectuais, ideolgicas e estticas. Sabe-se que nasceu em 15 de outubro de 1890, 1h30 da tarde, em Tavira, estudou engenharia naval em Glasgow, na Esccia, e voltou para Portugal onde, numa visita ao Ribatejo, conheceu Alberto Caeiro e tornou-se discpulo de seu objetivismo. No entanto, logo se distancia do mestre ao deixar-se envolver pelos movimentos de vanguarda. Percebe as sensaes, centrando-se no sujeito e acaba enveredando no absurdo do absurdo no homem, na iluso subjetivista e grande desiluso com tudo pela impossibilidade de ser tudo de todas as maneiras, nsia de sentir a exploso da prpria vida na energia do movimento frentico e complexo da moderna modernidade.

A exemplo de Whitman [], Pessoa incorpora a seu canto o tumulto da civilizao moderna, seus delrios de energia e progresso. Seu esprito tcnico. Seu ritmo eltrico. [] a esttica do Absurdo da Condio Humana, que reconhece seus limites e no acredita no sentido profundo das coisas, lcido quanto muralha do beco sem sada entre o seu chamado e o grande silncio do mundo. (NOGUEIRA, 2003, p.77-8)Assim, nas palavras de Lucila Nogueira, observamos que, a partir da incorporao de novos elementos da modernidade literria na Paidia pessoana, a esttica de lvaro de Campos, ao contrrio dos outros heternimos, traz a complexidade de seu tempo, alm de um desespero explosivo de fora e energia verbal. Influencivel, como se considerava o prprio Fernando Pessoa, o legado que o heternimo carrega do autor de Leaves of Grass indesmentvel e tem sido amplamente reconhecido no s pela crtica especializada (Cf. MARTINHO, 1991, p.17), como tambm consta em valorosos trabalhos acadmicos.Alm da experincia dos poetas do atlntico, para usar uma expresso de Irene Ramalho Santos quanto influncia de autores das literaturas anglfonas em Pessoa, vale destacarmos tambm que, diante das aporias da modernidade, Campos mergulha no absurdo da existncia humana flertando, dessa maneira, com a corrente filosfica do Existencialismo, a qual influenciou, direta e indiretamente, diversos escritores durante o perodo do entre-guerras, por pactuar com um engajamento poltico contra as ditaduras e a ocupao nazista, alm de se preocupar com a questo da liberdade e o mistrio/absurdo da condio humana.

Assim, vemos que a poesia de lvaro de Campos , antes de tudo, urbana, subjetiva e como tal est envolvida com os acontecimentos do seu tempo e com o esprito de inquietude vivido durante o incio do sculo XX, como nos revela o semi-heternimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego:

Quando nasceu a gerao a que perteno encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse crebro, e ao mesmo tempo corao. O trabalho destrutivo das geraes anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, no tivesse segurana que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem poltica. Nascemos j em plena Angstia metafsica, em plena angstia moral, em pleno desassossego poltico. [] Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais no podia, evidentemente, ser seno vtima, na poltica, dessa indisciplina; e assim foi que acordmos para um mundo vido de novidades sociais, e com alegria ia conquista de uma liberdade que no sabia o que era, de um progresso que nunca definira. (PESSOA, 1999, p.187-8).Na potica da urbes de lvaro de Campos encontramos elementos tais como a fina ironia e o sarcasmo mordaz, a palavra pesada e por vezes obscena, a angstia existencial e, com certa frequncia, a reflexo sobre o fazer potico. Dentro dessa extensa produo potica, distinguimos distintas fases que representam o estado de nimo do eu-lrico com relao ao mundo que o circunda e com as frustraes da vida. Segundo Cleonice Berardinelli (2004, p.285-6), h trs fases bem distintas entre si na poesia de Campos: a primeira influenciada por S-Carneiro e com acentos do simbolismo e decadentismo europeu; a segunda, a das odes sensacionistas, onde

[] sobressaem os elementos da vida moderna coisas e homens o desejo de ser tudo e todos, de sentir tudo de todas as maneiras. Seu discurso febril, excessivo, agressivo, torrencial, por vezes espasmdico, no desdenha o palavro []. Repeties, enumeraes [], anforas, interjeies vrias e repetidas exprimem [] o apelo aos homens do mar e, associadas a recursos grficos como a utilizao de caixa-baixa e alta, e de tipos de corpos diferentes, a representao de rudos obtidos com letras repetidas [] que conseguem reproduzir a vibrao das mquinas, o estrpito do mundo moderno, o rudo do vento.Na terceira fase, os elementos da febril vida moderna do lugar melanclica desiluso com o mundo, a reiterao de uma auto-anlise do sujeito potico, no esforo de definir-se e desvelar-se. O entusiasmo simulado desaparece e resta No dia triste o meu corao mais triste que o dia / No dia triste todos os dias / No dia to triste (BERARDINELLI, 2004, p.290). A partir desta clara diviso didtica das fases da poesia de lvaro de Campos proposta por Cleonice Berardinelli escolhemos a segunda fase do engenheiro, caracterizada pelo futurismo e sensacionismo, infuso pela ordem frentica da vida moderna e o triunfo das mquinas, para a composio de parte do corpus de anlise deste nosso trabalho. Tambm utilizamos a nomenclatura proposta por Tereza Rita Lopes, na edio da obra de lvaro de Campos organizada por ela, para designar, nesta fase da poesia do heternimo, uma subdiviso, a saber, o Engenheiro Sensacionista e O Engenheiro Metafsico.

O Engenheiro Sensacionista

Ao escolher a cidade para ser o locus de e sobre o qual se fala, Campos procura espelhar em sua poesia o impacto no s do que prosaico, mas tambm do que reles e provocante. Dessa maneira vemos a Lisboa do engenheiro sensacionista repleta das influncias vanguardistas, o Futurismo em especial, com o amor febril pela velocidade frentica da modernidade que se mistura num sensual bal de luzes, mquinas e multitudes solitrias, em promscua fraternidade com todas as dinmicas dos grandes trpicos humanos de ferro e fogo. As odes futuristas do heternimo formam uma verdadeira apologia aos tempos modernos, onde, atravs de contraditrios paroxismos sensoriais (SEABRA, 1991, p.123), o eu-poemtico exalta a expresso da vida cosmopolita.

No poema Ode Triunfal, de 1914, publicado pela primeira vez no primeiro nmero da revista Orpheu, percebemos a explcita influncia do futurismo marinettiano, bem como o anseio da expresso universalista do cosmopolitismo atravs de versos salmdicos bem ao estilo da mais pura poesia whitmaniana, no s em sua extenso e energia, como tambm em versos livres. o melhor exemplo na poesia de lvaro de Campos da energia bruta da velocidade vertiginal e agressiva do progresso e da civilizao industrial com seus rudos, sua visceral e mecnica anatomia.

dolorosa luz das grandes lmpadas elctricas da fbrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

rodas, engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fria!

Em fria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lbios secos, grandes rudos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabea de vos querer cantar com um excesso

De expresso de todas as minhas sensaes,

Com um excesso contemporneo de vs, mquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical

Grandes trpicos humanos de ferro e fogo e fora

Canto, e canto o presente, e tambm o passado e o futuro,

Porque o presente todo o passado e todo o futuro

E h Plato e Virglio dentro das mquinas e das luzes elctricas

S porque houve outrora e foram humanos Virglio e Plato,

E pedaos do Alexandre Magno do sculo talvez cinquenta,

tomos que ho-de ir ter febre para o crebro do squilo do sculo cem,

Andam por estas correias de transmisso e por estes mbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um acesso de carcias ao corpo numa s carcia alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma mquina!

Poder ir na vida triunfante como um automvel ltimo-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de leos e calores e carves

Desta flora estupenda, negra, artificial e insacivel! (PESSOA, 2002, p.83-4)Os primeiros versos do poema so um eco da esttica da fora oposta da beleza clssica (SEABRA, 1991, p.129). As sensaes que se desenrolam na imensido do prprio poema se apresentam para anunciar, em forma de manifesto dionisaco, a chegada do novo, do moderno na poesia. Aqui o eu-lrico celebra com entusiasmo os elementos da maquinaria moderna que invadem o poema num movimento evolutivo do ranger das mquinas, tal qual o ranger dos dentes alguns versos acima, em profuso extsica na enumerao catica e barulhenta da voz do poeta, agora tornada em ranger maqunico, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando. A fora das onomatopias, das aliteraes e anforas no texto fazem um s corpo com o sentido (1991, p.130).

Nesse delrio de excessos em fria, a cidade no apenas se torna o motivo e o topos da prpria poesia como tambm o espao onde se encontram as coisas e os homens, seus espaos de encontros de desencontros onde a natureza tropical, estupenda, negra, artificial e insacivel, evidenciada pela civilizao moderna, industrial, mas contraditria.

H-l as ruas, h-l as praas, h-l-h la foule!

Tudo o que passa, tudo o que pra s montras!

Comerciantes; vrios; escrocs exageradamente bem-vestidos;

Membros evidentes de clubes aristocrticos;

Esqulidas figuras dbias; chefes de famlia vagamente felizes

E paternais at na corrente de oiro que atravessa o colete

De algibeira a algibeira!

Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!

Presena demasiadamente acentuada das cocotes

Banalidade interessante (e quem sabe o qu por dentro?)

Das burguesinhas, me e filha geralmente,

Que andam na rua com um fim qualquer;

A graa feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;

E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra

E afinal tem alma l dentro! (PESSOA, 2002, p.85)Em sua viagem atravs das ruas, o eu-poemtico continua a saudar a chegada do novo, do diferente em relao ao passado, enfim, da vida moderna que impregna a cidade. O que vemos, a partir disso, uma devoo modernidade sfrega, nova Revelao metlica e dinmica de Deus, e aos seus elementos de concreto e cimento armado, expresso viva do glorioso progresso, como podemos ver nos versos a seguir:

Ol tudo com que hoje se constri, com que hoje se diferente de ontem!

Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!

Progressos dos armamentos gloriosamente mortferos!

Couraas, canhes, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnivoramente.

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vs, coisas grandes, banais, teis, inteis,

coisas todas modernas,

minhas contemporneas, forma actual e prxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelao metlica e dinmica de Deus!

[]

Eh-l o interesse por tudo na vida,

Porque tudo a vida, desde os brilhantes nas montras

At noite ponte misteriosa entre os astros

E o mar antigo e solene, lavando as costas

E sendo misericordiosamente o mesmo

Que era quando Plato era realmente Plato

Na sua presena real e na sua carne com a alma dentro,

E falava com Aristteles, que havia de no ser discpulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor

Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuda.

[] (2002, p.86-7)Alm da exaltao vida moderna, as multides que impregnam as ruas causam no eu do poema uma necessidade de interesse por tudo na vida, imagem paradoxal que se erige entre o desenvolvimento urbano e descaso com o humano, luta entre o Golias do mundo armado de concreto e a pequena desarmada humanidade do homem-Davi, cujo final contraria a esperana do intertexto bblico. Misto de paixo pela modernidade e crtica social, o excerto abaixo nos revela a paisagem suja das cidades atravs do aspecto subumano e vil daqueles que, por serem inatingveis por todos os progressos, so marginalizados, mas feitos necessrios para a constituio sub-rptil da fauna do mar da vida.

Ah, e a gente ordinria e suja, que parece sempre a mesma,

Que emprega palavres como palavras usuais,

Cujos filhos roubam s portas das mercearias

E cujas filhas aos oito anos e eu acho isto belo e amo-o!

Masturbam homens de aspecto decente nos vos de escada.

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podrido.

Maravilhosamente gente humana que vive como os ces

Que est abaixo de todos os sistemas morais,

Para quem nenhuma religio foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma poltica destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de to baixos que sois, nem bons nem maus,

Inatingveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida! (2002, p.88)Em contraste com a paisagem metlica da cidade, essa gente ordinria e suja causa no eu-lrico uma obsessiva e movimentada vontade de senti-la toda e de todas as maneiras, vontade que se angustia latejada nas veias da voz enunciativa do poema quando do ltimo verso lamenta no ser eu toda gente e toda parte. Ao apresentar o contraste entrevisto nas minorias marginalizadas das grandes cidades, diz DAlge (1989, p.82), o eu-lrico ope a memria evocativa das lembranas do passado e da realidade do presente glorificao da sociedade moderna e da ruptura com todas as cadeias que prendem o poeta tradio.

Ode Martima, com 862 versos, o mais longo poema narrativo de lvaro de Campos que discorre a partir da observao de um pequeno paquete, o qual desperta na conscincia lcida do poeta a tenso delirante da intil tentativa de fuga da angstia metafsica e da vida sentada, esttica, regrada e revista (BERARDINELLI, 2004, p.72). O motivo desencadeador da angstia no eu-poemtico, o paquete que chega, faz a conscincia girar sobre o desejo de voltar ao passado, o incio do delrio, a evocao pirata, a nsia de partir, a raiva da vida terrestre, o cio da vida martima; em contraposio, a tentativa lcida de negar tudo isso e, por fim, o retorno situao inicial, com o paquete que parte. (2004, p.72)

Sozinho, no cais deserto, a esta manh de Vero,

Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,

Olho e contenta-me ver,

Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.

Vem muito longe, ntido, clssico sua maneira.

[] a minhalma est com o que vejo menos.

Com o paquete que entra,

Porque ele est com a Distncia, com a Manh,

Com o sentido martimo desta Hora,

Com a doura dolorosa que sobe em mim como uma nusea,

Como um comear a enjoar, mas no esprito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independncia de alma,

E dentro de mim um volante comea a girar, lentamente. (PESSOA, 2002, p.106)Ao contrrio do entusiasmo com a energia progressiva da maquinal vida urbana, o poema se volta mais para o ntimo do eu-lrico. Ao sentir girar lentamente um volante em si, este retorcido para dentro do inconsciente simblico, terrivelmente ameaador de significaes metafsicas num longo grito interior de raiva e desespero silenciosos. O pequeno cais se torna grande para representar metaforicamente o Cais da vida no mistrio de cada ida e de cada chegada. O poema ganha mais dramaticidade e velocidade quando seu narrador adentra o mar da vida maruja, desenvolvendo-se, dessa maneira, para dentro de si numa viagem metafsica ao passado de sonhos da infncia.

Toda a vida martima! tudo na vida martima!

Insinua-se no meu sangue toda essa seduo fina

E eu cismo indeterminadamente as viagens.

[]

A extenso mais humana, mais salpicada, do Atlntico!

O ndico, o mais misterioso dos oceanos todos!

O Mediterrneo, doce, sem mistrio nenhum, clssico, um mar para bater

De encontro a esplanadas olhadas de jardins prximos por esttuas brancas!

Todos os mares, todos os estreitos, todas as baas, todos os golfos,

Queria apert-los ao peito, senti-los bem e morrer!

[]

Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim. (2002, p.110-1)

Essa evoluo viva do volante dentro do narrador desencadeia na voz lcida do poeta a busca voluntria pelo delrio dos velhos brinquedos de sonho da vida martima. Este movimento, em Campos, ganha ares de rpida coisa colorida e humana que passa e fica (2002, p.103) integrando ao discurso potico o real e o onrico.

Toma-me pouco a pouco o delrio das coisas martimas,

Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,

O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,

E comeo a sonhar, comeo a envolver-me do sonho das guas,

Comeam a pegar bem as correias-de-transmisso na minhalma

E a acelerao do volante sacode-me nitidamente. (2002, p.112)

Mais veloz a cada estrofe, o movimento ganha ares futuristas ao introduzir as enumeraes exageradas, as diversas onomatopias para expressar o som do mar batendo no casco do barco, as saudaes de marinheiros, estrangeirismo em trechos de dilogos e canes de piratas. Essa viagem conduzida pelo volante consciencial do pequeno paquete causa uma sintonia de sensaes e uma vontade inexprimvel de ser e sentir tudo de uma s vez, vontade de congraamento com o perigo de ser humano:

E h uma sinfonia de sensaes incompatveis e anlogas,

H uma orquestrao no meu sangue de balbrdias de crimes,

De estrpitos espasmados de orgias de sangue nos mares,

Furibundamente, como um vendaval de calor pelo esprito,

Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez

E fazendo-me ver e sonhar isto tudo s com a pele e as veias!

[]

Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes

Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violaes!

Ser quanto foi no lugar dos saques!

Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragdias de sangue!

Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,

E a vtima-sntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!

Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres

Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!

Ser no meu ser subjugado a fmea que tem de ser deles

E sentir tudo isso todas estas coisas duma s vez pela espinha! (2002, p.120-1)

Esse desejo megalomanaco de sentir tudo de todas as formas, de congregar em si mesmo todas as sensaes, de estar em todos os tempos e lugares, se faz presente nesta primeira fase de lvaro de Campos. Esta dinmica do ser/no ser abre um fecho de angstia muito prpria no s em lvaro de Campos, como tambm no ortnimo Pessoa. No entanto, o jogo oximrico estabelecido pela impossibilidade de sentir tudo de todas as maneiras o germe central do contraditrio na poesia pessoana, tanto orto quanto heteronmica, mas de maneiras distintas. Em Campos, ela aparece como a angstia das sensaes levadas ao excesso. Assim, a multiplicidade infinda das sensaes cosmopolitas se estabelece na sua impossibilidade e, por isso, o eu-lrico acaba por se encontrar no sentido inverso do excesso: o esgotamento.

Senti-me demais para poder continuar a sentir.

Esgotou-se-me a alma, ficou s um eco dentro de mim. (2002, p.125)

Nessa grande aventura que se torna a Ode Martima, vemos a tentativa do homem, peregrino dos mares, em reencontrar o porto mtico que o seu destino e verdade, o Cais absoluto da cidade arquetpica fora do tempo e do espao (DALGE, 1989, p.84), numa tentativa plural de conciliar o desejo de simultaneidade entre o presente e o passado, entre o sonho e a realidade. Este poema como se a histria trgico-martima de Portugal tivesse encontrado um palco na verso pessoal do poeta moderno, uma verso apaixonada e deliberadamente trivializada (SANTOS, 2007, p.226). Ao final do poema, vemos que, subitamente, num estalo onomatopaico de estremecimento, o movimento dramtico do eu-lrico retoma seu lugar original, isto , sua conscincia lcida no cais observando o paquete, e o volante para. No entanto, o silncio interior do eu-lrico no permanece o mesmo. Num grito interior de desespero e raiva melanclica, volta-se para si numa sntese de sua prpria existncia.

A Passagem das horas, poema dedicado a Jos de Almada-Negreiros, apresenta a mesma estrutura das odes sensacionistas de Campos, com enumeraes caticas e insistentes reiteraes vocabulares que buscam dar a expresso maqunica do canto da civilizao moderna, bem ao gosto dos seus poemas futuristas. Nele, o prprio eu do poema se considera o poeta sensacionalista, enviado do Acaso / s leis irrepreensveis da Vida (PESSOA, 2002, p.175).

Aqui podemos ver a euforia da vida moderna transbordando em seus versos. A exaltao da velocidade, o cosmopolitismo poliglota e onomatopaico de cavalgada explosiva, explodida como uma bomba que rebenta (2002, p.183) so representados a partir da sensao multiplicativa do eu-lrico, uma vontade fsica de comer o universo:

Multipliquei-me para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, no fiz seno extravasar-me,

Despi-me e entreguei-me,

E h em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. (2002, p.180)

A fora da imagem veloz do caos moderno saudada e exaltada pelos olhos do eu-lrico e se ope ao esttico que fica nos olhos que param. O desejo de comunho com a mecnica da vida maquinal se revela na relao que ultrapassa o prprio eu para se estabelecer, na raiva de todos os mpetos, no crculo-mim (2002, p.185). Esse elo incansavelmente busca uma outra forma de ser mais com o universo, porque tudo no o bastante: E tudo isto, que tanto, pouco para o que eu quero (2002, p.186).

Essa mesma necessidade podemos ver nos poemas Afinal, a melhor maneira de viajar sentir:

Quanto mais eu sinto, quanto mais eu sinta como vrias pessoas

Quanto mais personalidades eu tiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,

Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,

Estiver, sentir, viver, for,

Mais possuirei a existncia total do universo. (2002, p.225)

E no Uma vontade fsica de comer o universo:

Ah, por uma nova sensao fsica

Pela qual eu possusse o universo inteiro

Um uno tacto que fizesse pertencer-me,

A meu ser possuidor fisicamente,

O universo com todos os seus sis e as suas estrelas

E as vidas mltiplas das suas almas (2002, p.230).

Alm de um esprito faminto pelo sensacionismo que prega, Campos tambm se mostra descontente com a hipocrisia social. Nesse sentido, o Poema em linha reta sugere, desde o ttulo, um dizer sem enganos ou direto um dizer em linha reta. Na fora martelar do advrbio de negao Nunca, o poema ironiza, desde a primeira estrofe, o fingimento da sociedade burguesa atravs da denncia de que todas as pessoas sempre tomam para si os melhores papis no grande teatro da vida: Todos os meus conhecidos tm sido campees em tudo (2002, p.235).

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes no tenho tido pacincia para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridculo, absurdo,

Que tenho enrolado os ps publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando no tenho calado, tenho sido mais ridculo ainda;

Eu, que tenho sido cmico s criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moos de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angstia das pequenas coisas ridculas,

Eu verifico que no tenho par nisto tudo neste mundo. (2002, p.235)

A segunda estrofe do poema, com repetida marcao, o eu do poema encara a difcil arte de ser sincero perante um mundo de mentiras, enganos e fantasias, em que todos so prncipes na vida. Nesta estrofe, o eu lrico utiliza, por vrias vezes, palavras que denotam toda a sua vileza, insignificncia, reduzindo-se ao erro fatal. A utilizao de anforas Eu e Que tenho traz consigo a ironia do acaso e a insatisfao com o julgamento. Em cada situao cotidiana, o eu-lrico busca colocar-se a fim de criticar todos aqueles que se julgam campees em tudo. A metfora de enrolar os ps publicamente na metonmia dos tapetes das etiquetas caracteriza a falha perante a sociedade e que, por isso, o eu-lrico tem sido enxotado do convvio social, escorraado e ridicularizado, calado ou no, tornado-se cmico perante todos, sofrendo a angstia das pequenas coisas ridculas. Tais caractersticas apresentadas servem para coloc-lo a par de tudo e todos no mundo, um judeu errante marginal.

A terceira estrofe retoma a ironia inicial de que no h, alm de si mesmo, no mundo algum que tenha falhado, pois todos so, muito ironicamente, prncipes em tudo o que fazem. A estrofe seguinte, suplica por ouvir de algum a confisso de que fora falho, covarde, tal como ele, pelo menos uma nica vez. Porm, o desfecho da estrofe responde ao eu-lrico a irnica impossibilidade de tal fato acontecer, uma vez que todos os outros so, perante suas prprias aes, o Ideal, perfeitos. Com muita ironia, faz uma pergunta retrica aos prncipes, seus irmos, na busca de algum que confesse que uma vez foi vil incognoscvel pergunta que se despedaa no ar. Farto de semi-deuses, indaga mais uma vez por algum que, como ele, tambm seja vil e errneo nesta terra.

Na ltima estrofe, busca caracterizar melhor os prncipes que nunca estiveram errados ou ridculos. Apenas ele, o eu-lrico, que tem sido ridculo sem ter sido trado, no se considera digno de falar com os superiores por ser vil. A palavra vil, demasiadamente empregada no texto, vem do latim vilis e diz respeito a tudo aquilo que de baixo preo, abjeto, insignificante. a forma como o prprio eu-lrico caracteriza-se ao longo de todo o poema. Por fim, ele retoma o termo vil para potencializ-lo atravs dos adjetivos mesquinho e infame e, assim, nulificar a sua prpria significncia perante os semi-deuses do mundo.

O poema Episdios tambm nos confere a ideia do cenrio moderno. No entanto, diferentemente da febre futurista onde a exaltao do progresso se fazia constante, aqui sobressai o tdio causado por uma repetida vida contempornea de mscaras e fingimento social, fruto de uma necessidade de valorao da aparncia, esvaziamento da verdade original do Ser.

O tdio dos radidiotas e dos aerochatos,

De todo o conseguimento quantitativo desta vida sem qualidade,

[]

A pedra no anel errado no teu dedo

Como fulgura na minha memria,

pobre esfinge da aristocracia burguesa conversada em viagem!

Que vagos amores escondias na tua elegncia verdadeira

To falsos, pobre iludida lcida,

Encontrada a bordo desse navio, como de todos os navios! (2002, p.222)

Essa fase marca o incio da passagem para os questionamentos metafsicos sobre a essncia do que se fez de si enquanto ser-no-mundo, atravs de questionamentos retricos que, por no ter resposta para suas perguntas, provocam no eu-lrico uma dor que se revela naquilo que poderia ter sido e no foi, como podemos ver no excerto a seguir

Que fiz eu da vida?

Que fiz eu do que queria fazer da vida?

Que fiz do que podia ter feito da vida? (2002, p.223)

No excerto anterior, percebemos que os questionamentos do eu-lrico diante da vida se intensificam em dramaticidade existencial na medida em que mergulha nas suas lembranas atravs da insero gradativa do passado nas formas dos tempos pretrito perfeito, pretrito imperfeito e futuro do pretrito, indicando a derrota, o fracasso por no ter conseguido atingir seus sonhos de juventude na vida adulta.

O Engenheiro Metafsico

A fase assim denominada por Teresa Rita Lopes na edio da poesia completa de lvaro de Campos caracterizada pela dor do mundo, sentimento imposto ao seu corao de poeta pela impossibilidade de realizao de seus desejos megalomanacos de ser tudo e todos de todas as maneiras e em todos os lugares. a fase onde tambm a angstia do ser-no-mundo e a insnia, traduzindo o pavor da loucura, figuram atravs de uma lucidez que cega e cansa e nauseia; de se perceber Nada e, mesmo assim, ter em si todos os sonhos do mundo. Os poemas que compem essa parte da obra de Campos ganham um tom mais intimista, beirando a dramaticidade do monlogo interior caracterstico dos solilquios. A partir de ento, sua temtica acaba por adentrar por completo no questionamento existencial.

Dessa maneira podemos entender que o desencanto do poeta com o frenesi da vida moderna provocado pela aguda e dolorosa conscincia de sua aporia: a impossibilidade de experienciar todas as coisas do universo. O poema prtico da referida fase, Lisbon Revisited, data de 1923 e, ao contrrio do desejo de tudo, agora se revela numa completa negao do desejo de ser, como podemos ver nos dois primeiros versos: No: no quero ser nada. / J disse que no quero nada. (2002, p.245)

Assim, dispensando tudo e a todos, resta como nico desejo que se revela no texto a solido, vontade de ser s:

Queriam-me casado, ftil, quotidiano e tributvel?

Queriam-me o contrrio disto, o contrrio de qualquer coisa?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.

Assim, como sou, tenham pacincia!

Vo para o diabo sem mim,

Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!

Pra que havemos de ir juntos?

No me peguem no brao!

No gosto que me peguem no brao. Quero ser sozinho,

J disse que sou s sozinho! (2002, p.245-6)

Essa solido escolhida pela voz potica se afasta da companhia das pessoas ao seu redor que buscam traar-lhe as aes cotidianas, o destino, enfim, a vida por completo. No entanto, repudiando as escolhas alheias, ele traa seu caminho na solido de seu s sozinho enquanto o Abismo e o Silncio tardam.

A conscincia dessa aporia, a saber, da nsia de tudo, tambm se faz presente em outro poema mais tardio, de 1926, tambm intitulado Lisbon Revisited, onde nasce uma angstia sem leme, uma inquietude de quem dorme irrequieto, metade a sonhar (2002, p.271). Aqui a lucidez existencial do eu-lrico se pe em contraponto com a cidade de Lisboa, agora revisitada como nos revela a traduo do ttulo em ingls para o portugus, Lisboa Revisitada, desencontro do Ser de volta a sua cidade. Sobre o poema em destaque, Linhares Filho (1998, p.58) diz que tendo conscincia de sua disperso e cultivando o Sonho () o eu-lrico se coloca no limite entre a perda e o tenaz movimento de busca para o encontro do Ser (), sede do Sonho ou do Potico. Numa anlise sobre os temas desenvolvidos pelo heternimo, Jos Clcio Baslio Quesado diz que Campos acaba por mergulhar numa crescente onda de desiluso a anulao do significado da existncia humana e, por isso, o poeta se apresenta cada vez mais pausado e reticente, aceitando cada vez mais sua despersonalizao e irrealizao, at chegar a um comportamento ablico diante da vida e mesmo da poesia, de que os motivos geradores passam a ser a aceitao do cansao e a retomada do passado, principalmente da infncia (1976, p.102).

Aniversrio, poema de 1930, faz uma viagem ao passado familiar do eu-lrico. A infncia, marcada pela felicidade clandestina da inocncia e da despreocupao, contrape os sonhos do passado roubada realidade da presente vida adulta e suas preocupaes. Para ele o tempo em que festejavam o dia dos meus anos era marcado:

Eu era feliz e ningum estava morto.

[]

Eu tinha a grande sade de no perceber coisa alguma,

De ser inteligente para entre a famlia,

E de no ter as esperanas que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanas, j no sabia ter esperanas.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. (PESSOA, 2002, p.362)

A oposio entre passado e presente demarcada por uma cadeia de anforas e metforas que exprimem o saudosismo, no caso do primeiro, e o pessimismo, do segundo. Assim, O que fui e O que sou hoje se expressam no paradoxo impossvel do poeta reviver a inocncia de sua infncia. A sexta estrofe se inicia com os dizeres Vejo tudo outra vez e mostra a tentativa do eu poemtico de presentificar materialmente o passado substituindo, assim, o presente e o atual desencanto. Na estrofe seguinte o corao se torna protagonista na contraposio entre o sentir e o pensar: Pra, meu corao! / No penses! Deixa o pensar na cabea! (2002, p.363)

Essa dualidade, nas ambguas acepes de razo e emoo, se manifestam constantemente no s na poesia de Campos, como tambm nos outros heternimos e no ortnimo. Em Campos essas sensaes, levadas ao seu excesso, desembocam tambm no pensamento, como se este no fosse mais do que um limite para o qual elas tendem (SEABRA, 1991, p.71). O que vemos no poema a intromisso do pensar no sentir, ou para usar uma expresso do prprio Pessoa O que em mim sente, st pensando, resultando no corte brusco e violento nas lembranas do passado pelo vocbulo Pra que inicia a stima e penltima estrofe. O poema encerra de maneira cclica ao retomar, com uma pequena mudana, o primeiro verso, numa tentativa memorial de, quem sabe, reviver mais uma vez o passado.

A nostalgia da infncia tambm tema do poema Vendi-me de graa aos casuais do encontro quando o eu-lrico reclama ter vivido a vida saltando de intervalo em intervalo e lamenta no ter nada em comum com aquilo que ele mesmo poderia ter sido.

No tendo nada de comum com o que fui,

No tendo nada de igual com o que penso,

No tendo nada de comum com o que poderia ter sido.

Eu (PESSOA, 2002, p.379)

O espectro de um passado j morto na algibeira e a sensao de que tudo seria diferente se outro fosse o caminho tomado motivo de reflexo existencial nos poemas Se te queres matar e Na noite terrvel. Nos poemas o eu-lrico vive a angstia da impossibilidade de no poder ser mais o que tinha sonhado. O que move nele este sentimento que se verte ainda mais para dentro de si a lembrana do irreparvel do passado, de um passado angustiantemente memorvel cadver temporal e que no pode voltar ; um sentimento de que tudo poderia ser diferente se outro caminho fosse tomado, outra deciso fosse feita.

Na noite terrvel, substncia natural de todas as noites,

Na noite de insnia, substncia natural de todas as minhas noites,

Relembro, velando em modorra incmoda,

Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angstia

Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.

O irreparvel do meu passado esse que o cadver!

Todos os outros cadveres pode ser que sejam iluso.

Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.

Todos os meus prprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na iluso do espao e do tempo,

Na falsidade do decorrer. (2002, p.310)

O eu-lrico vive, ento, esta angstia que no se reconhecer diante da infinita possibilidade de realizao do ser. A angstia coloca o homem s voltas com o pattico violento da liberdade, isso porque Ser homem () sentir-me repentina e tragicamente preso de uma angustiante possibilidade de poder; e de tal modo que ningum pode substituir-se a mim na responsabilidade absoluta que assumirei (BEAUFRET, 1976, p.13). Assim, a impossibilidade de realizao de um passado morto na algibeira que revela essa sensao de que tudo poderia ser diferente, de que no homem tudo caminho e cada um leva a um destino diferente, onde at o universo inteiro seria insensivelmente levado a ser outro. Isso enfatizado pelo uso contnuo da conjuno subordinativa se, expressando vrias questes hipotticas, outras possibilidades de realizao.

Mas o que eu no fui, o que eu no fiz, o que nem sequer sonhei;

O que s agora vejo que deveria ter feito,

O que s agora claramente vejo que deveria ter sido

Isso que morto para alm de todos os Deuses,

Isso e foi afinal o melhor de mim que nem os Deuses fazem viver

Se em certa altura

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;

Se em certo momento

Tivesse dito sim em vez de no, ou no em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse tido as frases que s agora, no meio-sono, elaboro

Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensivelmente levado a ser outro tambm. (PESSOA, 2002, p.310-1)

A repetio da conjuno condicional Se no incio dos versos indica a hiptese complementada por aes que poderiam ter sido tomadas no passado. A euforia do possvel transpassada, na estrofe seguinte, pela conjuno adversativa mas, indicando a realidade opositora daquilo que ele nunca foi e que s agora di.

Se te queres matar revela, em forma de dilogo interior, a insatisfao e inadequao com a vida aliada a um irresoluto desejo da morte, grande Mistrio onde se encontra adormecida a Verdade. Assim, o jogo dispersivo do sujeito busca a profunda conscincia da nulidade existencial e se encontra com a profunda solido do indivduo moderno nas melanclicas palavras do eu-lrico diante do mundo e do prprio homem:

De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas

A que chamamos mundo?

A cinematografia das horas representadas

Por actores de convenes e poses determinadas,

O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?

De que te serve o mundo interior que desconheces?

[]

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,

No vs que no tens importncia absolutamente nenhuma? (2002, p.275-7)

Para os existencialistas, o homem arremessado na vida. Heidegger faz uma belssima aluso vida utilizando-se da seguinte metfora: a vida um barco no qual, sem sermos perguntados, somos jogados; nele esto outros que comungam da mesma condio; assim como somos inseridos neste barco, somos expulsos. O importante para o existencialista no nossa entrada ou nossa sada na vida, mas sim as realizaes feitas nesse entremeio. Por isso que o homem um ser-para-a-morte, ser-no-mundo. A respeito de sua existncia, o heternimo Alberto Caeiro escreve:

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,

No h nada mais simples

Tem s duas datas a da minha nascena e a da minha morte.

Entre uma e outra cousa todos os dias so meus. (PESSOA, 2005, p.97)

Ou atravs das palavras do prprio lvaro de Campos ao nos revelar o desconhecido de si mesmo, diante do absurdo de sua prpria existncia.

Comeo a conhecer-me. No existo.

Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,

ou metade desse intervalo, porque tambm h vida

Sou isso, enfim

Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.

Fique eu no quarto s com o grande sossego de mim mesmo.

um universo barato. (PESSOA, 2002, p.390)

Para a dico lrica do poema Se te queres matar, a liberdade e, principalmente, a angstia da liberdade trs tona um sentimento de que seria melhor no ter nascido. Dessa maneira, em busca de uma resposta para suas angstias, talvez a nica opo seja viver em meio a um sentimento suicida: no apenas morte do corpo fsico, mas tambm de uma alma cansada de tanto almejar a realizao de seus desejos, impossveis de realizarem-se externamente e, por isso, pedra de toque de um sentimento opressor da alma.

A angustiante existncia da vida e da morte torna-se ftil, desnecessria. Perante a maquinal vida moderna, os acontecimentos fatdicos, a velocidade e fugacidade das coisas, a vida resume-se apenas a parte constituinte de um sistema cclico. Nesse contexto a morte apenas um rito de passagem, rito este que, devido velocidade com que as antigas certezas cartesianas de uma msera positi-vida escoem em meio clepsidra da existencialidade, completa o projeto de ser-no-mundo, a saber, o homem: projeto de um ser-para-a-morte.

Tabacaria, de 1928, um dos mais conhecidos poemas de lvaro de Campos, tambm oscila entre o mundo interior do eu-lrico e a realidade circundante que desengatilha nele a angstia do passado que poderia ter sido em contraste com a viso negativa do presente. Os primeiros versos do poema de versificao e estrofao livre, caractersticas no s do poeta como de toda uma gerao, apresentam o oxmoro que h entre o niilismo que o eu-lrico tem de si mesmo e os sonhos que nele habitam, elementos axiais na composio e compreenso do poema, como podemos ver a seguir:

No sou nada.

Nunca serei nada.

No posso querer ser nada.

parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (2002, p.289)

Essa sensao, segundo Quesado (1976, p.113), tem sua justificativa no princpio sensacionista de indeterminao do objeto do tratamento potico () como tambm se fundamenta na variabilidade do prprio sujeito da sensao, desenvolvendo, assim, na poesia de Campos, uma disperso do sujeito em busca da sensao do objeto. Nas palavras do prprio poeta das sensaes: Multipliquei-me para me sentir, /Para me sentir precisei sentir tudo. (PESSOA, 2002, p.180). janela da existncia, fechado em seu quarto, o eu-lrico se v vencido pela partida apitada de dentro da cabea que provoca nele uma sacudidela dos nervos e um ranger de ossos na ida quando, ao contemplar a realidade da porta da Tabacaria do outro lado da rua, se encontra dividido entre os planos do real por fora e do sonho, como coisa real por dentro. Assim, as imagens revelam a dicotomia entre o sonho realizvel daqueles que sonham, dentre eles o eu poemtico e seu passado cheio de esperanas, e o irreparvel destino que ceifa tais possibilidades. No excerto a seguir vemos a apresentao dos sonhos e, em seguida, na interposio da conjuno adversativa, o enfrentamento do pessimismo diante de si:

O mundo para quem nasce para o conquistar

E no para quem sonha que pode conquist-lo, ainda que tenha razo.

Tenho sonhado mais que o que Napoleo fez.

Tenho apertado ao peito hipottico mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que no more nela;

Serei sempre o que no nasceu para isso;

Serei sempre s o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao p de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poo tapado.

Crer em mim? No, nem em nada. (2002, p.290-1)

A imagem pueril de uma criana diante da tabacaria surge e o simples fato dela estar comendo chocolates abre-se para a suspenso do pensamento e perspicaz anlise do eu-lrico da realidade das pessoas que, assim como uma criana a comer um simples pedao de chocolate, alimentam seus sonhos, consolo dos que nutrem em si aspiraes altas e nobre e lcidas, sem inquietaes metafsicas ou conscincia do que os cercam. No entanto, o eu do poema reserva para si apenas as mais negativas imagens, por pensar como ningum sobre o que foi, o que e o que poderia ter sido, por no encontrar consolo.

Vivi, estudei, amei e at cri,

E hoje no h mendigo que eu no inveje s por no ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses

(Porque possvel fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

E que rabo para aqum do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que no soube

E o que podia fazer de mim no o fiz.

O domin que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem no era e no desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a mscara,

Estava pegada cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

J tinha envelhecido.

Estava bbado, j no sabia vestir o domin que no tinha tirado.

Deitei fora a mscara e dormi no vestirio

Como um co tolerado pela gerncia

Por ser inofensivo

E vou escrever esta histria para provar que sou sublime. (2002, p.292)

Ao seguirmos a leitura do poema, veremos que a simples intruso do Dono da Tabacaria, em maisculo como est grafado no texto, desperta no eu-lrico uma sensao de desconforto que o faz comparar a sequencialidade de sua prpria existncia com a do homem do outro lado da rua, porta da Tabacaria. O mistrio do Destino conceder a cada um deles a sequncia inexorvel do tempo sempre intil e estpido diante do que sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. (2002, p.293). As ltimas estrofes do poema so reservadas intromisso de um homem que entra na Tabacaria, fato que faz emergir a realidade plausvel e humana do eu poemtico que, numa referenciao metalingustica, tenciona escrever versos em que possa dizer o contrrio do que sente.

[]

Semiergo-me enrgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrrio.

Acendo um cigarro ao pensar em escrev-los

E saboreio no cigarro a libertao de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota prpria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertao de todas as especulaes

E a conscincia de que a metafsica uma consequncia de estar mal disposto.

Depois deito-me para trs na cadeira

E continuo fumando.

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

Talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calas?).

Ah, conheo-o; o Esteves sem metafsica.

(O Dono da Tabacaria chegou porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperana, e o Dono da Tabacaria sorriu. (2002, p.293-4)Efuso de uma inquietao metafsica, fruto de uma objetividade descarnada do pensamento mas cheia do sentir, cheia do sensacionalismo, o eu-lrico volta-se para a absoluta solido da sua alcova, consciente de que nada vale a pena, de que tudo intil, e que a irrevogvel dor sab-lo.

Consideraes Finais

A primeira metade do sculo XXI representou para a humanidade um tempo de profundas transformaes devido aos diversos acontecimentos histricos que marcaram a passagem para os chamados tempos modernos. A Europa viveu um perodo de grande avano cientfico e produo esttica durante este perodo e influenciou todo o mundo ocidental, bem como parte do oriental, com o seu estilo de vida avant-guarde. Nesse sentido, diante das possibilidades expressas pelo sistema mundo moderno, da complexidade da vida nas cidades grandes com sua agitao efervescente de multides desencontradas, e a crena no progresso cientfico, a voz potica do heternimo lvaro de Campos se faz presente num contexto representacional em que o homem moderno, visceralmente inserido no contexto das grandes metrpoles, com o progresso emergente e em meio s grandes guerras, colocado em evidncia. Em seu discurso lrico prevalece a imagem do homem urbano em seu meio social e os velhos topos da literatura, quando no so revisitados de maneira crtica e reinventiva, do lugar para uma escrita marcada pela subjetividade e individualidade caractersticas da modernidade.

Apesar de, no primeiro momento, anunciar e exaltar a chegada da modernidade, com sua vida frentica de mquinas e homens em profuso aglutinadora, lvaro de Campos faz da solido uma morada e, desiludido com o mundo dos homens, mergulha na anulao da sua prpria existncia. Assim, o mundo retratado de maneira crtica, na obra de Campos, e se transforma no espao teatral onde cada um desempenha o montono papel de no ser si mesma, de usar mscaras sociais para aparentar ser alguma outra coisa. Esse falseamento de si irrompe no eu-lrico do heternimo pessoano um angstia memorial de tudo aquilo que ele no pode ter sido no passado, num movimento de dor e nitidez que cega os olhos de quem percebe que teve os sonhos roubados, de quem se v atravs de um pessimismo que nulifica sua existncia e o reduz ao oxmoro temporal entre os sonhos do passado e a irreparvel realidade do presente. Por isso, a morte se revela na nica possibilidade de conhecer-se, de conhecer a Verdade do Ser.

Nesse trabalho, procuramos no s encontrar e analisar uma imagem que representasse, a partir da voz lrica do poeta em discusso, uma potica do homem moderno, mas tambm lanar um olhar sobre a poesia filosfico-existencial do esprito de inquietude vivido durante a primeira metade do sculo XX, sentimento comum humanidade da poca. Nesse sentido, atravs de sua poesia, lvaro de Campos nos revela a angustiante experincia do (com)viver atravs de imagens do homem moderno na sua relao com os paradoxos impostos pelo anunciado progresso da modernidade com a esperana de novos tempos, e na descoberta de si no encontro com o mistrio da existncia da vida (que poderia ter sido) e da morte.

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Doutor em Letras/Teoria da Literatura pela Programa de Ps-Graduao em Letras da UFPE. Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco Unidade Acadmica de Serra Talhada (UFRPE/UAST), na rea de Lngua Inglesa e Literaturas de Lngua Inglesa.

Utilizamos os termos poeta e terico de forma aglutinada para designar um tipo de intelectual que surgiu no fim do sculo XIX, aproximadamente, e que une a captabilidade lrica (ou antilrica) da vida moderna e o rigor reflexivo dos grandes pensadores da poesia clssica e, em especial, da moderna.

na fragmentao do eu e na incapacidade da conscincia para reintegr-lo. Os heternimos no seriam outra coisa que o conjunto de representaes [...] dessa personalidade cindida e neurtica do poeta e que, como tal, se expressa parcelarmente.

Sobre as convergncias e divergncias entre as literaturas de Portugal e Brasil ver o captulo As revistas luso-brasileiras em Modernismo brasileiro e modernismo portugus, de Arnaldo Saraiva (cf. Referncias).

O termo procura designar o violento processo de insero do maquinrio industrial nas grandes capitais do incio do sculo XX, isto , da prpria modernizao.

Sobre as relaes entre Existencialismo e Literatura ver o captulo Existencialismo, do livro Ultrasmo, existencialismo y objetivismo en literatura, de Guillermo de Torre (cf. Referncias).

Sobre as fases do lvaro de Campos, Tereza Rita Lopes, na edio organizada e comentada por ela (PESSOA, Fernando. Poesia lvaro de Campos. Edio Tereza Rita Lopes. So Paulo: Companhia das Letras, 2002), considera apenas duas fases, de acordo com duas pocas na vida do heternimo: antes de conhecer o mestre Caeiro e depois de conhec-lo. Na primeira, intitulada pela crtica O Poeta Decadente (1913-1914), Campos ainda estava impregnado do simbolismo e dacadentismo francs e o verso de seus poemas ainda obedecia a displicentes metro e rima. A segunda fase est, na verdade, dividida em trs: a das grandes odes, dO Engenheiro Sensacionista (1914-1922), inflamado pelo amplo flego do futurismo e pelos versos salmdicos whitmanianos herdados de Caeiro; a seguinte, O Engenheiro Metafsico (1923-1930), perde o flego e o mpeto com a morte de Mrio de S Carneiro, em 1916, e inicia uma viagem nusea, angustiante irrequietao do estado de viglia e acaba por perder o corao no caminho (2002, p.37); a ltima, O Engenheiro Aposentado (1931-1935), a fase do Campos envelhecendo, de mpeto cada vez mais curto, mais desencantado com o mundo, com a vida. Essa ltima fase do poeta ser marcada pela comunho de seu corao com tudo aquilo que di, com a vasta dor do mundo (2002: 37). Para o nosso trabalho, escolhemos as duas primeiras fases do segundo Campos, isto , aquela compreendida entre os anos de 1914 a 1930 O Engenheiro Sensacionista e o Metafsico por entendermos que nela esto configurados os diversos aspectos da modernidade e do homem moderno.

O processo de industrializao dos grandes centros urbanos evidenciado no poema de forma que a cidade descrita por lvaro de Campos se torna um lugar comum a todos os lugares, beirando o universal.

Para Fernando Pessoa, o Sensacionismo uma formulao do discurso potico onde todo objeto uma sensao humana que, por sua vez, quando traduzido em arte, converte-se na sensao de um determinado objeto, ou seja, a sensao de uma sensao. Eis os princpios bsicos da teoria sensacionista.

Cf. SEABRA, 1991, p.43-51.

Essa imagem utilizada pelo prprio heternimo num poema sem ttulo que se inicia com os referidos versos (PESSOA, 2002, p.230). Dessa maneira, a alma aparece como um elemento que se limita por estar presa matria fsica do corpo, o que explica a aporia de seus desejos.

No entanto, o poema est datado de forma ficcional: 15/10/1929, data do aniversrio de lvaro de Campos.