pobreza e desigualdade na al

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Alberto D. CimadamoreAntonio D. Cattani

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  • 7Alberto D. Cimadamore Antonio D. Cattani

    A CONSTRUO DA POBREZAE DA DESIGUALDADE NA AMRICA

    LATINA: UMA INTRODUO

    A pobreza e a desigualdade so construes sociais que se desenvol-vem e consolidam a partir de estruturas, agentes e processos que lhes doforma histrica concreta. Os pases e regies da Amrica Latina molda-ram, desde os tempos coloniais at nossos dias, expresses desses fenme-nos sociais que, embora apresentem as peculiaridades prprias de cadacontexto histrico e geogrfico, compartilham um trao em comum:altssimos nveis de pobreza e desigualdade que condicionam a vida polti-ca, econmica, social e cultural. O conceito de construo praticamentesimilar ao de produo, sendo utilizado aqui para enfatizar que a pobreza o resultado da ao concreta de agentes e processos que atuam em con-textos estruturais histricos de longo prazo.

    Reiteradamente, esses problemas foram identificados como os maisrelevantes que enfrentam as sociedades latino-americanas ao buscar a con-solidao dos regimes democrticos, socialmente justos. Mais importanteainda, observa-se que a pobreza e a desigualdade habitualmente esto liga-das, retroalimentam-se e reproduzem-se medida que contem com condi-es polticas, econmicas e sociais favorveis para tanto. Essa interaotende, alm disso, a consolidar os nocivos efeitos sociais de sua conjuno.

    A desigualdade gera pobreza proporo que, em um determinadoponto histrico, a distribuio do estoque de recursos econmicos faaparte de um jogo de soma zero. Certamente, em tese, pode se pensar demaneira distinta a questo da distribuio de bens (econmicos e de outrotipo) nas sociedades, particularmente quando se inclui a dimenso tempo(futuro) e se pensa em incrementar o estoque de bens para facilitar sua

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  • 8PRODUO DE POBREZA E DESIGUALDADE NA AMRICA LATINA

    distribuio. Muitas das teorias que subscrevem a poltica de fazer o bolocrescer para depois distribuir partem dessa premissa. No entanto, umasimples descrio histrica do crescimento econmico registrado por v-rios dos pases da regio mostra que este no se traduziu em uma significa-tiva diminuio da pobreza, pela simples razo de que o estoque de bens to desigualmente distribudo, que seus efeitos estruturais tendem a con-centrar inercialmente os lucros em grupos reduzidos da populao. Essarealidade condiciona qualquer objetivo de se conseguir uma reduo sig-nificativa da pobreza e consolida quando no aumenta uma desigual-dade mpar no mundo inteiro.

    A esses argumentos, subjaz a hiptese de no ser possvel diminuira pobreza na Amrica Latina sem diminuir a desigualdade, o que estimplcito e explicitamente sugerido nas discusses das pesquisas que con-duziram a esta obra. Crescentemente, elas fazem parte de um consensonas pesquisas sobre pobreza que subscrevem teorias e perspectivas crti-cas dos enfoques predominantes no passado recente, tanto no discursooficial dos pases da regio, como nos informes das organizaes interna-cionais que se ocupam do tema.

    As Cincias Sociais e, mais especificamente, a tradio do pensa-mento social que o Conselho Latino-Americano de Cincias Sociais e aAssociao Latino-Americana de Sociologia historicamente subscreveram no so nem podem ser indiferentes aos efeitos do crculo vicioso quegera a interao entre pobreza e desigualdade na Amrica Latina. Comessa convico, da qual compartilhamos como cientistas sociais e comocidados comprometidos com nossas realidades, lanamos um processode cooperao entre as duas talvez maiores e mais ativas redes de cientis-tas sociais da Amrica Latina e do Caribe destinado a compreender eexpor a lgica, a dimenso e as mltiplas facetas do crculo vicioso desi-gualdade-pobreza que encerra o futuro das sociedades latino-americanas.

    Este livro o primeiro resultado da colaborao entre dois gruposde trabalho da ALAS (GT 19, Reestruturao Produtiva, Trabalho e Domi-nao Social, e GT 9, Desigualdade, Vulnerabilidade e Excluso Social) e oPrograma CLACSO-CROP, do Comparative Research Programme onPoverty (CROP), vinculado ao Conselho Internacional de Cincias Soci-ais (ISSC). A cooperao entre essas instituies surgiu a partir da identi-ficao da conjuno entre pobreza e desigualdade como o principal pro-blema que a sociedade latino-americana enfrenta na atual conjuntura his-trica. Nas primeiras trocas de idias entre ambas as comunidades acad-

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    micas, tambm ficou claro, em seguida, que a compreenso dos dois fen-menos individualmente e em suas mltiplas interaes recprocas cons-titua um passo fundamental para se dar mais visibilidade questo, con-tribuindo assim para promover os debates e consensos necessrios paraimplementar as polticas econmicas e sociais que possibilitassem superaro crculo vicioso da reproduo conjunta de pobreza e desigualdade.

    Partimos desse propsito inicial e do diagnstico de que grandeparte dos estudos sobre esses tpicos esteve concentrada em questes re-lacionadas medio da pobreza e da desigualdade, assim como na discus-so sobre polticas (planos, programas, experincias, etc.) destinadas a re-duzir seu impacto nas sociedades latino-americanas. Na seqncia, consi-deramos oportuno voltar a enfatizar as questes conceituais afeitas ori-gem e perpetuao desses fenmenos. Em outras palavras, decidimospr em primeiro plano da discusso as questes relativas construo,produo e reproduo da pobreza e da desigualdade.

    A iniciativa comeou a evoluir com a organizao de uma mesa-redonda sobre Trabalho, produo de pobreza e desigualdade na AmricaLatina e no Caribe, no contexto do XXV Congresso da ALAS, ocorridona Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no anode 2005. A continuao deu-se com uma oficina e uma apresentao p-blica organizada no Instituto de Investigaes Gino Germani, da Facul-dade de Cincias Sociais, Universidade de Buenos Aires.

    Os autores participantes da srie de encontros que desembocou nestelivro concordam, alm disso, que, durante as ltimas dcadas, conceitoscomo pobreza e desigualdade foram adquirindo novos significados na rea-lidade latino-americana. Em frente a essa circunstncia, podem os cientis-tas sociais utilizar acriticamente esses conceitos? Tanto os eventos menci-onados acima, como os textos resultantes, pretendem revitalizar um de-bate que d respostas a essas e outras interrogaes relacionadas com oimpacto conjunto da pobreza e da desigualdade latino-americanas e dospossveis caminhos para sua eliminao. Pretendem tambm questionaralguns dos termos em que ambos so tratados em muitos crculos de co-nhecimento e poder, tentando apresentar uma perspectiva que supere apretensa neutralidade cientfica implcita nas descries e explicaes cau-sais das correntes do pensamento que habitualmente chegam s primeiraspginas das publicaes e do processo de tomada de decises.

    Dessa perspectiva, situa-se em primeiro plano a noo de constru-o ou produo/reproduo de pobreza e desigualdade. Essa noo

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    alude ao fato de que a produo da pobreza um fenmeno complexo emque interagem diferentes processos (econmicos, sociais, polticos, cultu-rais e tnicos), que podem ser analisados em longa, mdia e curta dura-es. Esse fenmeno visualizado como fruto da interao entre estrutu-ras e agentes concretos que produzem e reproduzem, em diferentes n-veis, as condies que geram e multiplicam a pobreza e a desigualdade. Oconceito de construo social da pobreza e da desigualdade requer entouma anlise em termos de complexidade terica, ao mesmo tempo emque exige identificar, com a maior clareza possvel, os processos e polti-cas concretas, assim como os criadores, executores e responsveis pelassituaes sociais de extrema desigualdade e pobreza que afetam a regio.

    Nesse contexto, os conceitos de trabalho e de produo situam-secomo temas centrais que permitem pr em primeiro plano suas estreitasvinculaes com as persistentes condies de desigualdade e pobreza naregio. O trabalho normalmente considerado como uma fonte regularde renda cuja magnitude essencial para determinar os nveis de pobrezae desigualdade. , tambm, um eixo fundamental das integraes social epoltica e se constitui em um dos fatores essenciais quando se examinamas condies de produo e reproduo da pobreza e da desigualdade nosdiferentes perodos da evoluo do capitalismo na Amrica Latina.

    Em segmentos desta obra, enfatiza-se a fragilidade social a que estoexpostos os pases da regio, onde quase a metade da populao est napobreza ou no limite de cair nessa situao. Mais ainda, a experinciahistrica mostra que esse limite ou fronteira facilmente ultrapassvel,tal como o demonstrou, em princpios deste sculo, uma das sociedadesrelativamente mais desenvolvidas da regio, quando vrios milhes deargentinos considerados de classe mdia passaram em pouco tempo paraa pobreza. Uma crise econmica, fruto da ao concreta de agentes eco-nmicos e polticos facilmente identificveis, transformou, rapidamente,um pas que alcanara dcadas atrs uma qualidade de vida mpar no con-tinente sul-americano. Em um espao social alterado, mais da metade dapopulao caiu na pobreza, com nveis de desigualdade que no podemser tolerados sem se alterar a prpria noo de democracia.

    Nas ltimas dcadas, mesmo os mais otimistas foram obrigados areconhecer que, no mundo todo, a pobreza no s perdurou, como sereproduziu em termos alarmantes. A necessidade de reduzi-la consensual,mas as aes concretas nesse sentido esbarram em grandes dificuldades, acomear pela ausncia de uma teoria explicativa sobre as mltiplas causas

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    A CONSTRUO DA POBREZA E DA DESIGUALDADE NA AMRICA LATINA: UMA INTRODUO

    do fenmeno. O dficit explicativo afeta as formas de mobilizao dosagentes, a implementao de polticas pblicas e a elaborao de projetosalternativos.

    O texto que abre este livro destaca a importncia desse dficit te-rico-metodolgico e a necessidade de se construrem outras perspecti-vas que integrem mltiplos nveis de anlise. Alberto D. Cimadamoreprope um modelo terico bsico que articula estruturas e agentes sobo enfoque interdisciplinar das Cincias Sociais para tentar explicar cau-sas e conseqncias da produo e reproduo da pobreza e da desigual-dade. O modelo testado a partir de trs estudos especficos (produode castanha na Bolvia, de soja no Paraguai e de abacate no Mxico). Oexerccio comprova as responsabilidades do Estado e dos seus agentes:por um lado, destacando sua inoperncia, e, por outro, seu potencial nasoluo dos problemas. Os resultados evidenciam as possibilidades degeneralizao do modelo e de realizao de estudos comparativos quepermitiro aperfeioar ainda mais a capacidade explicativa do enfoqueintegrado proposto.

    Os temas eruditos da Filosofia Poltica sobre justia, igualdade, pac-to social, razo e direitos universais so retomados por Susana Murillo,para analisar as estratgias discursivas que buscam legitimar as prticas docapitalismo contemporneo. Conceitos e definies no so inocentes emenos ainda correspondem a categorias auto-evidentes. No que concerne pobreza e desigualdade, a ofensiva liberal vale-se de duas estratgiasdiscursivas: a primeira, naturalizando as diferenas, ao apresent-las comoontolgicas, e a segunda, substituindo o paradigma clssico, ao destituir ocoletivo, as estruturas e o Estado de sua importncia, os quais passam aser subordinados pelo individual e pelas aes pseudo-autnomas. Aomercado, atribudo o papel de grande ordenador, e a razo e os direitossociais e universais cedem lugar fora e ao pragmatismo utilitarista.Murillo localiza essa estratgia discursiva nos documentos do Banco Mun-dial que orientam as aes concretas em curso na Amrica Latina e noCaribe, aes essas que perpetuam e reproduzem a injustia e a desigual-dade. Entretanto, dialeticamente, as tentativas de se criar uma subjetivida-de subserviente e de se empoderarem os pobres em moldes capitalistasencontram resistncias coletivas, e a rebeldia social continua criando no-vos espaos de confrontao.

    Como analisa Sonia Alvarez Leguizamn em seu artigo, as explica-es sobre as causas e a persistncia da pobreza na Amrica Latina esto

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    PRODUO DE POBREZA E DESIGUALDADE NA AMRICA LATINA

    associadas aos embates polticos que definem a identidade do continente.De um lado, h as produes intelectuais identificadas com o poder: ex-plicaes biologistas, neomalthusianas, culturalistas, keynesianas e, maisrecentemente, neoliberais. De outro, est o pensamento social crtico for-mulado por autores que so identificados com as causas nacionais e popu-lares e que reconhecem na dependncia, no imperialismo, na corrupo eno entreguismo dos setores dominantes locais os elementos estruturantese reprodutores da pobreza. Alvarez Leguizamn realiza uma sntese dahistria desse permanente embate terico que tem desdobramentos con-cretos em termos de polticas pblicas e de aes empresariais, mas, tam-bm, relativamente a buscas de alternativas e a resistncias populares.

    Identificada com a corrente terica neo-institucionalista, Laura MotaDiaz centra sua anlise do processo de produo e reproduo da pobrezana Amrica Latina na figura do Estado. Instituio decisiva, o Estado ,desde os primrdios da colonizao, capturado por interesses minoritrios.Ao longo dos sculos XIX e XX, os processos mudaram formalmente,mas, na sua essncia, o Estado continua como elemento central, assegu-rando condies especficas de apropriao e distribuio dos ativos, aponto de, em determinadas situaes nacionais, no lugar de captura, po-der-se falar de seqestro do Estado por segmentos econmicos. Mesmoquando se observa um importante esvaziamento de suas funes em be-nefcio da regulao por agncias e empresas multinacionais, como nesteincio do sculo XXI, o Estado continua sendo o elemento-chave na ma-nuteno clientelista de privilgios e, conseqentemente, na distribuioinjusta da riqueza social.

    Tambm centrados nas prticas governamentais, AlbertoBialakowsky e sua equipe analisam dimenses terrveis do processo con-temporneo de extino das populaes vulnerveis. Durante certo tem-po, o sistema capitalista pretendeu normalizar a sociedade sob um mode-lo pretensamente racional: subordinao e controle da fora de trabalho,manuteno de um exrcito industrial de reserva, para exercer pressosobre os integrados ao sistema, e uma franja de excludos, os inteis parao mundo, mantidos nos limites da sobrevivncia. A partir do exemploargentino, esses pesquisadores sustentam a existncia de prticas governa-mentais que produzem um continuum de subordinao-excluso-extino.Nesses termos, no existem mais contornos ntidos entre os incorpora-dos ao sistema (normalizados) e os demais (exrcito industrial de reserva epopulao excedente, os subnormalizados). Guetificao, criminalizao

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    A CONSTRUO DA POBREZA E DA DESIGUALDADE NA AMRICA LATINA: UMA INTRODUO

    e gesto punitiva e fragilizao dos corpos fazem parte da normalidade dosculo XXI. Pobreza, excluso e extino de determinadas populaesno so fenmenos localizados, mas compem um processo social de tr-gicas conseqncias.

    O artigo de Mrcio Pochmann e Ricardo Antunes analisa o proces-so recente de desconstruo do trabalho. Em menos de trs dcadas, amundializao, a reestruturao produtiva e a aplicao dos princpiosneoliberais a polticas pblicas e desregulao do mercado alteraramprofundamente as caractersticas e a dinmica do mercado de trabalho.Mesmo quando atingia volumes expressivos, o desemprego era conside-rado uma varivel de ajuste do sistema. Agora, ele estrutural e aparececomo horizonte inelutvel para um nmero importante de trabalhado-res. Ainda que autores tomem como exemplo apenas o caso brasileiro, osignificado do processo praticamente o mesmo em toda a Amrica Lati-na. A flexibilizao (dos salrios, dos horrios, dos contratos e das fun-es) traduz-se em perdas de direitos que haviam sido duramente con-quistados nos perodos anteriores e resulta no empobrecimento. O traba-lho aparece, assim, como um componente fundamental do processo deproduo da pobreza e da desigualdade.

    O ltimo artigo apresenta uma anlise distinta das anteriores. Re-conhecendo a importncia dos estudos sobre a pobreza, Antonio D.Cattani sustenta a tese de que necessrio recuperar-se a dimensorelacional entre o plo pobreza e o plo riqueza. A brecha social vemaumentando como resultado de processos convencionais de extrao demais-valia, mas, tambm, como conseqncia de estratgias empresariais tor-nadas possveis pela desmedida na concentrao de renda. Dada a correlaode foras desfavorvel aos trabalhadores e aos setores populares, as classesabastadas valem-se de mltiplos expedientes para ampliar seu poder e suariqueza. A riqueza substantiva garante privilgios e impunidade, bem comoassegura transferncias permanentes de recursos da massa trabalhadorapara segmentos cada vez mais restritos que permanecem estrategicamenteescondidos do olhar crtico das Cincias Sociais.

    A busca de solues para o problema da pobreza e da desigualdadeque atinge todo o continente latino-americano um imenso desafio. Oobjetivo desta obra colocar em lugar de alta visibilidade processos eagentes responsveis, afirmando a necessidade de se romper com o crcu-lo vicioso que retroalimenta a pobreza com a desigualdade, consolidan-do-as no tempo. Identificando-se a natureza dos processos em curso, os

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    PRODUO DE POBREZA E DESIGUALDADE NA AMRICA LATINA

    perpetradores e suas vtimas, descartam-se solues messinicas, as afron-tas democracia, os remendos filantrpicos e as aes empresariais e go-vernamentais que, sob a lgica do mercado concorrencial, produzem ereproduzem mais pobreza e desigualdades.

    Buenos Aires e Porto Alegre, junho de 2007

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