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  • O atual debate da Teologia do Pluralismo Depois da Dominus Iesus

    servicioskoinonia.org/LibrosDigitales

  • 2

    Libros Digitais Koinonia Apresentao da coleo

    Inauguramos um servio novo, mais um dos Servios Koinonia: o dos Livros Digitais. Uma expresso clssica da teologia sempre foi e continuar sendo a publicao de livros.

    Os artigos so como a cavalaria ligeira da teologia, muito til, at necessria, mas no elimina o fato de que as batalhas principais ocorreram e continuaro a se dar atravs de livros. At agora, desde a poca de Gutemberg, os livros tm sido sempre contundentemente fsicos, feitos de papel, tendo a madeira como matria prima. Por isso, so de elaborao e aquisio custosas. Escrever um livro implica o esforo intelectual e a isso se acrescenta a dificuldade adicional da busca de um editor, da impresso, o financiamento necessrio e... ainda a barreira final do preo de venda ao pblico.

    Ao fazer uso das facilidades da tecnologia e trabalhando em equipe, podemos nos

    enriquecer com um tipo novo de livros, com uma metodologia altura dos tempos da comunicao fcil. Podemos criar um livro em s alguns dias, se trabalharmos em rede telemtica, como equipe teolgica dispersa geograficamente, mas em contato e interao contnua. Podemos dar formato de livro nossa reflexo em termos de horas e, em poucos minutos, podemos coloc-lo disposio do pblico na internet. Em mais outros poucos minutos, atravs de uma lista de correio, podemos avisar a dezenas de milhares de pessoas e instituies interessadas. E poucos momentos depois, elas podero baixar o livro no computador, como quem tira um livro da prateleira. E se o consideram til e acham que outras pessoas amigas estariam interessadas nele, podero presente-lo, enviando-o quase instantaneamente, sem se mover da sua casa pelo correio eletrnico, cada dia mais comum, sem fronteiras e sem entraves de alfndega... Tudo isso, sem necessidade de comprar, nem vender, nem gastar dinheiro; gratuitamente, como o Evangelho...

    Como possvel que ainda no tenhamos posto essa possibilidade a servio da teologia? Como possvel que, at aqui, a Teologia ainda no se tenha dotado de uma expresso livre e gil como essa, neste novo tempo histrico que, com sua tecnologia, torna isso possvel?

    preciso um esforo para entrar no novo mundo dos livros digitais. No despedimos o livro no formato de Gutemberg... que sempre continuar tendo seu papel e seu sabor, completamente singulares. Simplesmente, damos as boas vindas a um irmo mais novo e gil, que vem, no desbancar ningum, mas oferecer suas novas virtualidades, como livro finalmente virtual que .

    Koinonia pode fazer este servio, e vai tentar incursionar nesta linha, sempre dentro da

    humildade de suas dimenses. Esta coleo de Livros Digitais Koinonia prope-se simplesmente ser mais um dos Servios Koinonia, sempre em renovao, ao servio da Agenda teolgica Latino-americana mundial...

    Comeamos com o primeiro volume, em duas verses separadas e simultneas, em portugus e espanhol. Outros volumes podero combinar as duas lnguas num s livro, tendo em conta que as tradues custam dinheiro, e convencidos como estamos que a fronteira lingstica no verdadeira fronteira na Ptria Grande...

    Nota: Mesmo que o livro digital (o livro eletrnico, e-book) est pensado para ser lido na

    tela, qualquer leitor pode imprimir parte ou todas suas pginas na sua impressora domstica. Convm lembrar que, hoje, em muitas grficas, existe a possibilidade da chamada

    impresso digital, atravs da qual se podem obter exemplares impressos como verdadeiros livros de papel, mas com tiragens mnimas, at de 10 ou 5 cpias... Essa impresso digital poder ser muito til s comunidades, grupos teolgicos, grupos de formao e estudo, universidades, seminrios. s passar o arquivo grfica (ou lhe dar seu endereo eletrnico o deste servio de Koinonia-), e pedir que ela imprima o livro de papel em impresso digital.

    Nossos livros digitais estaro diagramados pensando em facilitar ambas as formas de impresso: em tamanho carta USA, de 216x28 cm.

    Edies comerciais esto proibidas sem permisso expressa de Servios Koinonia, que representa os autores do texto.

  • 3

    O atual debate da Teologia do Pluralismo Depois da Dominus Iesus

    Pedro CASALDLIGA Marcelo BARROS Leonardo BOFF Jos COMBLIN

    Benedito FERRARO R.E. GONZLEZ y E.H. DAS

    Paul KNITTER Roberlei PANASIEWICZ

    Pablo RICHARD Eduardo de la SERNA Alfonso M.L. SOARES

    Pablo SUESS Faustino TEIXEIRA

    Jos Mara VIGIL (coordinador)

    Livros Digitais Koinonia Volumen 1. Versin 1.01 (25-10-2005)

  • 4

    Este Livro Digital Koinonia um presente dos autores que o elaboram e

    dos Servios Koinonia e da Agenda Latino-americana ao Povo de Deus, que fica como propietrio dele.

    permitida e recomendada a livre e gratuita distribuio do documento

    digital, assim como a impresso total ou parcial do livro em impressoras pessoais ou em edies digitais no lucrativas.

    Edies comerciais normais necessitam permisso expressa escrita dos Servios Koinonia.

    Servicios Koinona: servicioskoinonia.org / [email protected] Agenda Latinoamericana: latinoamericana.org /

    [email protected] ISBN: 9962-02-895-7

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    NDICE

    Prlogo, Pedro CASALDLIGA ............................................................................................ 7

    Por que este livro, Jos Maria VIGIL ................................................................................... 9

    A unicidade e universalidade salvficas de Jesus Cristo e da Igreja, Marcelo BARROS. ........... 13

    Quem subverte o conclio?, Leonardo BOFF......................................................................... 15

    Dominus Iesus, cinco anos depois, Jos COMBLIN ............................................................... 25

    O desafio da f crist num mundo plural, Benedito FERRARO ............................................... 31

    Pedimos respeito para com nossas tradies, R.E. GONZLEZ e E.H. DAS ........................... 39

    A Dominus Iesus e a hermenutica da recepo, Paul KNITTER............................................ 43

    Eclesiologia relacional e ecumenismo, Roberlei PANASIEWICZ.............................................. 47

    La Dominus Iesus del cardenal Ratzinger, Pablo RICHARD ................................................... 55

    A miso da Igreja, Eduardo de la SERNA ............................................................................ 61

    L em casa h muitas moradas!, Alfonso Maria Ligorio SOARES ........................................... 67

    A propsito da evangelizao explcita, Paulo SUESS ........................................................... 73

    Dominus Iesus: o temor do pluralismo religioso, Faustino TEIXEIRA ..................................... 81

    O atual debate da teologia do pluralismo, Jos Maria VIGIL.................................................. 87

    Bibliografa sobre Teologia do Pluralismo Religioso. ............................................................. 91

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  • 7

    Prlogo

    Cinco anos depois da promulgao da Declarao Dominus Jesus, mas depois de sculos de uma cerrada atitude de intocvel ortodoxia, este livro digital, que inaugura mais um dos Servios Koinonia, sai luz da pequena tela querendo trazer a palavra fiel e vigilante de nossos telogos, que no querem deixar no esquecimento as questes pendentes na citada Declarao. A Dominus Jesus foi apenas mais um captulo, inoportuno, lamentvel. O dilogo teolgico aberto, crtico e auto-crtico era, ainda , uma virtude humana, religiosa, eclesial, de trnsito praticamente proibido. Este livro digital, este novo servio de Koinonia, quer ajudar a cultivar esta virtude, este dilogo aberto, crtico e auto-crtico.

    Nas altas esferas do poder hierrquico das Igrejas e das Religies, Deus j est

    enunciado oficialmente e apenas deve ser retransmitido nas frmulas aprovadas. Os dogmas religiosos, em vez de formulaes condicionadas por histria e por cultura, passaram a ser a prpria verdade em si. E o magistrio eclesistico, em nosso caso, tem suspeitado sistematicamente das novas formulaes que a teologia prope em fidelidade a essa verdade em si, e em fidelidade histria sempre nova e s culturas distintas.

    Koinonia, honrando a seu nome e a sua trajetria, nos oferece um cerrado feixe de

    textos estimulantes sobre um tema da maior profundidade e da mais acelerada atualidade. Quem Deus? Como deixamos Deus ser Deus? Que servio devem prestar as diferentes mediaes religiosas para o encontro com o Deus Vivo? Como situamos a Jesus Cristo dentro do dilogo inter-religioso? Que liberdade e que responsabilidade devem ter as diferentes teologias na Causa de Deus nico e nas Causas de sua filha, a nica Humanidade?

    Koinonia quer prestar esse servio a partir do habitat natural desta Nossa Amrica. A

    partir dos pobres da terra, que so o problema e a soluo de Deus. E nossa Teologia da Libertao quer ser, co-responsavelmente, com outras teologias, libertao da teologia, estimulando o dilogo entre as religies e as teologias. O Deus nico em si plural em suas revelaes e pluralmente deve ser encontrado e amado. Hoje, inevitavelmente. No temos outra alternativa: ou o dilogo inter-religioso ou o choque das religies; ou a convivncia plural das religies ou a guerra total.

    A ditadura do relativismo poder ser condenada, mas h que se cultivar a relativizao

    das frmulas e das tradies, para no cair na ditadura do dogmatismo. Bem-vindo seja o dilogo inter-religioso e bem-vinda a teologia das religies, pela janela

    aberta de Koinonia e na acolhida liberada de nossos coraes que crem.

    Pedro Casaldliga

  • 8

  • Por que este livro Este livro um chamado de ateno, um grito proftico, da teologia latino-americana,

    sobre a conjuntura espiritual e teolgica da igreja nesta hora, a respeito de um ponto da agenda teolgica catlica que, neste momento, est em discusso mas no vista. Sobre a mesa, na agenda teolgica pblica, tudo pareceria estar mais ou menos em paz. No tem debates, muito menos discusses, e o mundo teolgico pareceria estar calmo. Mas, em grande parte, a calma dos cemitrios, do medo, dos efeitos da censura e das medidas disciplinares, das desqualificaes, das denncias e da execuo das sentnas. Um dos pontos principais que est em jogo, que debatido mas no abertamente, a teologia do pluralismo. E, nesse mar, o problema fundamental, o iceberg contra o qual o barco bateu, a Declarao Dominus Iesus, do ano 2000.

    Com certeza, depois de mais de duas dcadas de censura contra a teologia, o panorama no muito alentador. O Brasil tem, agora, mais de dois mil professores de teologia, mas sua palavra, sua animao para as comunidades crists, sua produo teolgica... na atualidade uma nfima parte da que era h vinte anos. A censura e a represso institucional obrigou a muitos telogos e telogas a voltarem ao que foi a tarefa da teologia nos sculos anteriores: uma tarefa de simples repetio do oficialmente dito. Paira um pesado silncio sobre a teologia oficial, a que pode ser feita nas plataformas e entidades oficiais. O dilogo teolgico aberto, crtico e autocrtico, tem sido, e anda, uma virtude humana, religiosa, eclesial, de trnsito prticamente prohibido, diz Casaldliga no prlogo deste livro digital.

    Mas mesmo assim, a teologia est viva, e os telogos acreditam, oram, pensam, refletem e partilham, e continuam a, com sua palavra fiel e vigilante, como acrescenta Casaldliga l mesmo. O papel da teologia esse: a fidelidade da vigilncia, olhar, do alto, horizontes que outros ainda no percebem, mas para os quais navegamos todos inevitavelmente. Preparar o futuro, faz-lo sair superfcie quando j est no meio de ns, mesmo que oculto, essa a tarefa.

    E o objetivo desde livro digital. Um grupo de telogos latino-americanos juntam suas

    contribuies para fazer uma avaliao do momento teolgico, com especial enfoque na teologia do pluralismo religioso, tomando como referncia o documento magisterial que causou maior impacto nos ltimos anos no mundo teolgico, a Dominus Iesus do ano 2000. Os cinco anos transcorridos so tempo suficiente para fazer uma avaliao que no seja uma simples reao impensada, mas uma valorao consistente, de bom senso e madurada.

    O que est no centro do debate o que hoje denominado teologia do pluralismo religioso (TPR), novo nome da teologia das religies, rama teolgica muito jovem, com apenas quarenta anos. Mas o que esta TPR implica, no so, como alguns pensam, afirmaes concretas, ou setoriais, ou seja, localizadas na zona concreta e delimitada do edifcio teolgico, que poderia no afetar ao resto do conjunto da teologia. No. Ouso afirmar que o paradigma pluralista que traz com ela a TPR como as movimentaes globais que acompanham a chegada dos grandes ciclos de novas teologias- uma transformao do nosso olhar, que afeta transversalmente a todo o edifcio teolgico, a todo o capital simblico do cristianismo. outro foco, outra luz, que at agora estava desativada para ns, e que a partir de agora acrescenta uma dimenso nova a tudo e faz que o percebamos e interpretemos de outra maneira.

  • Jos Mara Vigil 10

    Chegados a este ponto necessrio esclarecer que por pluralismo religioso no entendemos a simples pluralidade ou multiplicidade de religies. Esse o sentido primeiro e comum da palavra. Num sentido mais preciso, entendemos o pluralismo como um paradigma, uma forma concreta de ver que contraposta a estas outras duas: o exclusivismo e o inclusivismo. O primeiro tem sido a forma de compreender a religio (cualquer que ela seja) que pensa que s ela verdadeira. Entretanto, inclusivimo a viso pela qual uma religio pensa que ela continua sendo a verdadera, a plena, a querida por Deus, mas que fora dela existem tambm elementos religiosos incompletos ou imprfeitos, com os quais as outras religies participam do que Deus deu em plenitude s a ela; religies que, no mais, esto destinadas a desembocar finalmente na nica religio verdadeira, ela mesma. Pluralismo, por sua vez, a forma de olhar a religio, que pensa que Deus tem atuado atravs de muitas vias, e que todas elas so caminhos de salvao, de alguma forma autnomos. Em sentido teolgico profundo, ser pluralista no significa conhecer a pluralidade, nem ser tolerante ou amante da variedade... Neste sentido tcnico algo mais profundo. Significa o reconhecimento da pluralidade legtima de vias de realizao religosa autnomas, sem normatividade e sem privilgios por parte de uma religio. Assim dito, em conjunto, sem entrar agora a fazer as nuanas ulteriores necessrias.

    A Dominus Iesus veio a chocar-se frontalmente com o desenvolvimento da TPR que est se desenvolvendo crescentemente no interior do cristianismo. No s choca contra os ltimos avanos desta teologia, seno contra os avanos j antigos que o prprio Conclio Vaticano II tinha realizado e que foram assumidos e acolhidos com entusiasmo no seio do Povo de Deus. O tom, a linguagem, a posio adotada pela DI de tal jeito, que o dilogo teolgico vem a ser impossvel. O ambiente geral j dito- que a reflexo teolgica est experimentando no seio da Igreja Catlica hoje, completa o cenrio. O resultado a interrupo, tanto do dilogo teolgico quanto do dilogo inter-religioso e ecumnico. So unnimes as vozes que testemunham o que esto vendo: estamos num impasse. O ecumenismo est detido. As boas palavras, to freqentemente pronunciadas como elogio de dito dilogo inter-religioso e do ecumenismo, no recebem crdito. A contradio com a doutrina teolgica oficial as torna inacreditveis. disse Marcelo Barros a respeito de alguns gestos ecumnicos- como quando algum quer recolher a gua derramada no cho, mas deixa aberta a fonte que a est derramando...: no so acreditveis os gestos e os discursos, quando as declaraes teolgicas oficiais dizem todo o contrrio, e continuam a, em p e sem serem corrigidas. O impasse s ser superado corrigindo o discurso teolgico oficial, que continua sendo por enquanto uma ferida aberta que preciso fechar. E para isso devem colaborar especialmente os telogos e telogas, por fidelidade a seu ministrio de servio.

    Os problemas que traz a no aceitao da posio pluralista no s repercute nas

    fronteiras da Igreja, no seu contato com outras religies, seno no interior da mesma. Isso, normalmente, no percebido. No se pensa que esse xodo massivo de cristos e crists da velha Europa crist, por exemplo, tenha a ver com o que est em jogo na teologia do pluralismo... Mas tem a ver, junto a muitas outras causas. Tem a ver, no s porque alguns temas concretos da TPR esto literalmente no elenco das reclamaes que os milhes de pessoas que se afastam da Igreja lhe fazem, seno porque muitas dessas reclamaes compem o quadro de uma reclamao maior: a reclamao de uma nova compreenso global da religio. E de uma nova atitude para com as demais religies e para com o prprio ateismo.

    Os problemas so levantados tambm na relao com a sociedade democrtica moderna.

    Esta aceita, cada vez mais, o pluralismo civil e social, e admira-se de que, justamente a Igreja catlica volte a posies de negao do pluralismo, cujos direitos e benefcios no deixa de desfrutar e reclamar.

    De alguma maneira, o problema mais importante que a Igreja catlica tem colocado ante ela, no campo da teologa, o do pluralismo religioso, ou seja, o da adoo de uma postura pluralista (como paradigma), a necessidade de abandonar definitivamente a posio exclusivista, inclusive daquilo que de exclusivismo tem o prprio inclusivismo. Tudo o que no seja entrar por esse novo paradigma pluralista, est chamado a perpetuar os problemas e a condenar o cristianismo catlico a uma existncia arrastada e sem futuro. Como diz Leonardo Boff neste mesmo livro digital: Ou as Igrejas sobretudo a catlica- abrem-se nova fase da humanidade, a planetria, ou condenam-se a serem subprodutos da cultura ocidental.

  • Por que este livro 11

    vista desta situao, destas urgncias, como este grupo de telogos formularam sua posio e a entregam comunidade como um chamado de urgncia, como um chamado ao dilogo aberto e franco, sem medo da verdade, mesmo que essa apresente para ns um rosto mais difcil, e mesmo que ela exija de ns sair das nossas velhas seguranas dogmticas absolutizadas, para emprendermos um novo xodo na f, como Abrao. Com certeza, nesta hora histrica somos chamados a um novo xodo abramico, somos chamados a caminhar para o terreno inexplorado do paradigma pluralista, a nova terra que Eu apresentarei para voc. No sabemos para onde nos levar a busca da verdade. Mas temos que depr o medo e as ameaas, as censuras e as autocensuras inclusive, porque s onde est a liberdade est o Esprito do Senhor.

    Quando muitos pensam que tambm dentro da Igreja tempo de silncio, de exlio e de sabedoria mas no de palavra, de xodo e de profecia, esta palavra teolgica pode dar testemunho da parresia evanglica. Ningum deveria rejeitar um chamado ao dilogo e ao discernimento. Um ministrio teolgico responsvel, se vivido como carisma e como misso, deve alar a voz e fazer seu servio, sem temor a ser incmodo num tempo de medo e ameaas. Jesus disse que s a Verdade os far livres, mas seguro que tambm queria dizer o disse sobretudo com a sua vida- que s a Liberdade os far verdadeiros. S uma teologia sincera, livre e destemida nos aproximar da Verdade. S ela significar um servio real Igreja e Humanidade. E utopia do Reino.

    Jos Maria Vigil

  • A unicidade e universalidade salvficas de Jesus Cristo e da Igreja

    A Dominus Jesus cinco anos depois e a Teologia na Amrica Latina

    Tao che tao fei chang To O Tao o caminho que se

    apresenta como sendo o nico no o Tao verdadeiro (Dao De Ting livro sagrado chins - sc. 5o a.C.).

    Reler a declarao da Congregao da Doutrina da F, Dominus Jesus, cinco anos depois de sua publicao, exige de ns no s confrontar este documento com a experincia pastoral e as intuies teolgicas destes anos, na Amrica Latina, mas rever sua receptio, a recepo que teve nos diversos ambientes de teologia e pastoral na Igreja Catlica e em outras Igrejas. Ora, fazer isso significaria considerar tal documento importante e, de alguma forma, decisivo na caminhada eclesial. De fato, a Dominus Jesus no parece ter sido nenhuma coisa nem outra. Ela surpreendeu por vir na contramo do esforo de Joo Paulo II de fazer do Jubileu do ano 2000 um acontecimento ecumnico e encerr-lo em um encontro inter-religioso. Surpreendeu pelo tom agressivo e o desnecessrio exagero do seu fechamento teolgico. O exagero foi tal que, mesmo em ambientes tradicionais, a recepo foi fria ou crtica. Conferncias episcopais tiveram de vir a pblico para dizer que continuariam a desenvolver atividades ecumnicas e inter-religiosas... Era preciso deixar isso claro... Alis, o prprio papa teve de fazer isso... De qualquer forma, h uma recepo formal e explcita, mas h tambm outra inconsciente e que condiciona as pessoas e grupos de forma mais profunda, sem discusso crtica. esta recepo mais interiorizada que gera a auto-censura e provoca a paralisia. Neste nvel, esta declarao provocou estrago maior e mais nocivo.

    1. Um modelo teolgico de Igreja e magistrio

    Pior do que o contedo das palavras e a proposta doutrinal, a compreenso teolgica e pastoral que o documento revela sobre a funo do magistrio romano e o tipo de Igreja que prope. A Cria pode ter uma concepo teolgica negativa sobre outras Igrejas e religies. Tem o direito de ser pessimista em relao ao dilogo entre a Igreja Catlica e as outras... Mas, teologicamente, deveria ter o pudor de no publicar um documento no qual, a cada momento, afirma (como se fosse um conclio da Igreja nos sculos antigos) que tal posio contrria f e se sente no direito de dizer (a expresso se repete inmeras vezes): Deve-se crer firmemente que....

    O documento comea por citar o poder que Jesus d Igreja. Evidentemente, a Congregao da Doutrina da F seria esta Igreja que recebeu o poder pleno. Baseado nisso, legisla... Esta substituio teolgica (em termos de funo magisterial) do Conclio, ou mesmo em uma eclesiologia baseada no Vaticano I, do papa, por um organismo da Cria Romana um dado teolgico grave. (Na dcada de 80, a revista Concilium tinha dedicado um nmero ao que seria o estatuto magisterial da Cria e negava que os organismos da Cria tivessem a autoridade do primado petrino).

    2. Uma eclesiologia a partir do poder e no do amor

    O prprio ttulo do documento identifica a tal ponto o Cristo e a Igreja que usa para os dois (Cristo e Igreja) atributos iguais, sem quaisquer distines: unidade e universalidade salvficas do Cristo e da Igreja. Como se a mediao salvfica do Cristo e a da Igreja fossem da mesma natureza, supondo que esta a tenha e seja aquela atravs da qual o Cristo exerce a sua. Esta identificao simplista provoca o exclusivismo teolgico e pastoral.

  • Marcelo Barros 14

    O documento distingue o plano teolgico e o doutrinal e diz se manter neste ltimo (n. 3). Os n. 4 e 5 se expressam como se seus autores fossem proprietrios de Deus. Mesmo Toms de Aquino insistia na inefabilidade de Deus. A declarao fala da revelao divina como perfeita no cristianismo e completa com a morte do ltimo apstolo1. A partir de tal viso, s podemos ter como conseqncia o absolutismo que se expressa na relao entre a Igreja Catlica e as outras Igrejas. O nmero 16 retoma a interpretao fechada do ento cardeal Ratzinger sobre o subsistit in da Lumen Gentium n. 8 para declarar, contra o esprito mais profundo do Vaticano II, que o subsiste significa A Igreja de Cristo existe plenamente s na Igreja Catlica, enquanto as outras tm elementos desta verdadeira Igreja.

    H nisso dois problemas: o primeiro que o cardeal aplica Igreja na qual subsistem os elementos da Igreja de Cristo, o mesmo sentido tcnico de hypostsis que a cristologia tradicional consagrou ao falar das naturezas de Cristo em uma s pessoa. Novamente, uma espcie de divinizao da Igreja no mesmo sentido do Cristo. O outro problema que ele acrescenta um s para interpretar o subsistit in. Leonardo Boff, nico telogo citado explicitamente em uma nota da declarao, respondeu Declarao mostrando que, de acordo com os textos preparatrios da Lmen Gentium e a mente dos padres conciliares, expressa na maioria dos comentrios e debates, o subsistit in significa concretiza-se, ganha forma concreta2. Esta afirmao do Conclio Vaticano II que, mesmo em sua concepo mais aberta, um termo de compromisso e hoje no seria tida como a mais justa ou adequada por muitos telogos e pastores catlicos, praticamente esvaziada pela declarao Dominus Jesus que interpretou o subsistit in como um simples e insistiu no somente, que tem como conseqncia concreta a afirmao de que as Igrejas evanglicas nem seriam propriamente Igrejas no sentido pleno. Poucos meses antes da Dominus Jesus, os bispos catlicos receberam uma carta da Congregao da Doutrina da F esclarecendo que estes no deveriam referir-se a Igrejas evanglicas como Igrejas irms.

    O que definiria a Igreja seria no a f expressa no amor solidrio e no seguimento de Jesus, mas a validade dos ministrios que Roma, a partir dos seus critrios jurdicos, continua negando existir nas Igrejas evanglicas.

    O n. 22 que, a respeito de outras religies, fala de grave indigncia dos textos mais pretensiosos e pouco amorosos dos documentos recentes da hierarquia. Lembra o famoso requerimento dos conquistadores lido aos ndios: Deus confiou o mundo, isto , estas terras e tudo o que elas contm, ao seu filho Jesus. Este o entregou a So Pedro e o sucessor de So Pedro, o papa, deu ao rei de Espanha (ou Portugal). Dizer que a salvao est na verdade vai contra o que diz o Evangelho quando mostra que no quem diz Senhor, Senhor que entra no reino, mas quem faz a vontade do Pai (Mt 7, 21), e que todos sero julgados, no pela verdade que professaram, mas pelo amor solidrio que manifestaram (Mt 25).

    3. Concluso: refazer a Dominus Jesus Talvez a maior colaborao desta infeliz declarao pastoral e teologia latino-

    americana seja o fato de ter falado de assuntos centrais da nossa f e da nossa espiritualidade de forma to insatisfatria que quem ama se sente constrangido a reelaborar a declarao e dizer a nossa f de modo mais amoroso e construtivo. De fato, em ambientes mais abertos, a Declarao quase obrigou as pessoas e grupos a se afirmarem por uma viso de f mais pluralista e em dilogo.

    um trabalho que temos de aprofundar e clarear cada vez mais. Chamar-se ia: A unicidade da vida e a universalidade do amor que Jesus Cristo testemunha ao reverenciar a presena divina no outro.

    Marcelo Barros

    1 Cf. ANDR NAUD, Dix remarques sur Dominus Jesus, in Culture et Foi, Dossi spcial,

    Montreal, 2000 (disponvel na internet). 2 LEONARDO BOFF, Quin subvierte el Concilio? Respuesta al Cardinal Ratzinger a propsito de

    la Dominus Jess, in Revista Latinoamericana de Teologia, 52, enero-abril 2001, p. 37. Tambm em: servicioskoinonia.org/relat/236p.htm

  • Quem subverte o Conclio? A propsito da Dominus Jesus

    Em que sentido deve ser entendida a afirmao da Lumen Gentium de que "a Igreja de

    Cristo, constituda e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste (subsistit in) na Igreja Catlica governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunho com ele, embora fora de sua estrutura visivel se encontrem vrios elementos de santificao e verdade" (n. 8)?

    1. A controvrsia acerca do "subsistit in" Em meu livro "Igreja: carisma e poder" (1981) dizia: "A Igreja catlica, apostlica,

    romana por um lado a Igreja de Cristo e por outro no o . Igreja de Cristo porque nesta mediao concreta ela aparece no mundo. Mas tambm no o , porque no se pode pretender identific-la exclusivamente com a Igreja de Cristo, porque essa pode subsistir tambm em outras Igrejas crists. O Conclio Vaticano II, superando uma ambiguidade teolgica de eclesiologias anteriores que tendiam a identificar pura e simplesmente a Igreja de Cristo com a Igreja catlica romana, ensina com acerto: Esta Igreja (de Cristo) subsiste na Igreja Catlica (subsistit in: tem sua forma concreta na Igreja Catlica). Evita dizer como est em documentos anteriores: a Igreja de Cristo" (p.134).

    Na Notificao da Sagrada Congregao para a Doutrina da F (1985) que censurava o livro (e impunha um ano de silncio obsequioso ao autor) seu Prefeito, o Card. J. Ratzinger, se mostra especialmente duro contra essa interpretao. Afirma que Boff "extrai uma tese exatamente contrria significao autntica do texto conciliar. O Conclio tinha, porm, escolhido a palavra "subsistit" exatamente para esclarecer que h uma nica "subsistncia" da verdadeira Igreja, enquanto fora de sua estrutura visvel existem somente "elementa Ecclesiae", que por serem elementos da mesma Igreja tendem e conduzem em direo Igreja catlica (Lumen Gentium 8)". E o texto da Notificao arremata: "a subverso do significado do texto conciliar sobre a subsistncia da Igreja est na base do relativismo eclesiolgico de L.Boff no qual se desenvolve e se explicita um profundo desentendimento daquilo que a f catlica professa a respeito da Igreja de Deus no mundo" (cf. AAS 77[1985]756-762).

    No Congresso Internacional sobre a atuao do Vaticano II (Roma, 25-27 de fevereiro de 2000) revelava o mesmo Card. J. Ratzinger em seu discurso doutrinrio sobre "a natureza da Igreja", onde retoma a questo do "subsistit in", que essa tomada de posio contra o livro de L. Boff " o nico pronunciamento oficial do magistrio depois do Conclio, sobre esta palavra e que no pode ser transcurado"(cf. o texto em Il Regno, 7/2000 p. 237a).

    Nesta mesma conferncia enfatiza o Card J. Ratzinger: "Na diferena entre "subsistit e est se esconde todo o problema ecumnico. A palabra subsistit deriva da antiga filosofia posteriormente desenvolvida na escolstica. A essa corresponde a palavra grega hypostasis, que na cristologia desempenha uma funo central, para descrever a unio da natureza divina e humana na pessoa de Cristo. "Subsistere" um caso especial de "esse". o ser na forma de um sujeito a se stante (que se sustenta a si mesmo). Aqui se trata exatamente disso. O Conclio quis dizer-nos que a Igreja de Jesus Cristo como sujeito concreto nesse mundo pode ser encontrada na Igreja catlica. E isso s pode acontecer uma nica vez e a concepo segundo a qual o "subsistit" seria de multiplicar-se no colhe propriamene o que se pretendia dizer. Com a palavra "subsistit" o Conclio queria exprimir a singularidade e no a multiplicidade da Igreja catlica; existe a Igreja como sujeito na realidade histrica" (cf. Il Regno, 237b).

    Essa interpretao pessoal do Card. J. Ratzinger repassada Declarao Dominus Jesus (6 de agosto de 2000) da Sagrada Congregao para a Doutrina da F, da qual Prefeito: "Com a expresso subsistit in, o Conclio Vaticano II quis harmonizar duas afirmaes doutrinais:

  • Leonardo Boff 16

    por um lado, a de que a Igreja de Cristo, no obstante as divises dos cristos, continua a existir plenamente s na Igreja Catlica e, por outro, a de que existem numerosos elementos de santificao e de verdade fora da sua composio, isto , nas Igrejas e Comunidades eclesiais que ainda no vivem em plena comunho com a Igreja Catlica" (n. 16). Em nota no rodap (n. 56) a Declarao, honrando-me, cita explicitamente a Notificao contra L. Boff e reitera que a inteno do Conclio foi a de reafirmar com a expresso "subsistit in", a nica subsistncia" da Igreja catlica.

    2. Qual a mens Patrum Concilii acerca do "subsistit in"? Eis os termos da controvrsia. Cabe agora perguntar: Essa interpretao do Card. J.

    Ratzinger,de fato, corresponde verdade histrica do Conclio ou a receptio que ele faz, por sua conta, dentro de um certo tipo de compreenso da natureza da Igreja que pessoalmente possui? Aqui urge tirar a limpo a verdade histrica, expressa por um Conclio ecumnico, cuja autoridade est acima da Sagrada Congregao da Doutrina da F e de seu eventual Prefeito. Este, na pessoa do Card. J. Ratzinger, deve ater-se mens Patrum Concilii como qualquer outro fiel e telogo. Qual , de fato, essa mens Patrum?

    Para respondermos a essa questo precisamos ter sempre em mente no apenas o termo "subsistit in" mas trs elementos fundamentais: primeiro, os textos preparatrios, prvios Lumen Gentium e considerar como eles elaboraram a relao da Igreja de Cristo com a Igreja catlica (neles ocorre a expresso "est"). Segundo, qual o sentido do n. 8 da Lumen Gentium, onde ocorre a palavra "subsistit in" (substituindo o "est"). Terceiro, importa tomar a srio o que o Papa Paulo VI enfatizou no momento mesmo em que sancionava a Lumen Gentium (sobre a Igreja) junto com a Unitatis Redintegratio (sobre o Ecumenismo), a saber, que a doutrina conciliar sobre a Igreja deve ser interpretada luz das explanaes do Decreto sobre o Ecumenismo (AAS 56[1964]1012-1013). E ns acrescentaramos, tambm luz dos pronunciamentos do Magistrio pontifcio, sinodal e episcopal do pos-Conclio quando se referem a outras Igrejas no catlicas.

    a) "Subsistit in" no sinnimo de "est" Os comentaristas da Lumen Gentium assinalaram a evoluo ocorrida nos vrios schema

    de Ecclesia, propostos aos Padres conciliares e nas discusses na aula que antecederam aprovao final da Lumen Gentium (21 de novembro de 1964 junto com o Decreto sobre o ecumenismo Unitatis Redintegratio). No esquema de 1962 se dizia, consoante o consenso da teologia e do ensino do Magistrio daquele tempo: "A Igreja catlica romana (est) o Corpo mstico de Cristoe somente aquela que catlica romana tem o direito de ser chamada de Igreja" (Acta Synodalia Concilii Vaticani II, I/4, 15). Vrios Padres conciliares fizeram crticas a essa identificao pura e simples (como os importantes Cardeais Bea e Lienard), em razo de sua ressonncia anti-ecumnica.

    O schema de Ecclesia de 1963 continuava afirmando a identificao mas introduziu uma abertura, ao reconhecer que "muitos (plura) elementos de santificao podem se encontrar fora da sua inteira estrutura (da Igreja)"; so "elementos que pertencem propriamente (in propio) Igreja de Cristo" (Acta Synodalia, op.cit., II/1,219-220). Aqui se constata, ineludivelmente, um progresso, pois, se reconhece elementos eclesiais para alm dos limites da Igreja catlica.

    O esquema definitivo de 1964 assumiu os acrscimos e procurou conciliar as duas afirmaes: por um lado, a identificao da Igreja de Cristo com a Igreja catlica e por outro, a admisso da existncia de elementos eclesiais fora dela. A frmula encontrada foi substituir o "est" pelo "subsistit in". O texto final, portanto, no afirma mais a Igreja de Cristo "" a Igreja catlica, mas diz: a Igreja de Cristo "subsiste na Igreja catilica". Qual o sentido exato dessa mudana?

    A comisso teolgica do Conclio d as razes da mudana: "para que a expresso concorde melhor com a afirmao acerca de elementos eclesiais (de elementis ecclesiastibus) que se encontram alhures"(alibi no sentido de: para alm da Igreja catlica: Acta Synodalia, op.cit., 177). Mas a comisso nunca explicou oficialmente o que entende por "subsistit in". Apontou, entretanto uma direo segura. Ao resumir o n. 8 da Lumen Gentium onde ocorre a palavra "subsistit in", faz duas afirmaes que ajudam a entender o "subsisit in": "A inteno do n. 8 mostrar que a Igreja, cuja natureza ntima e secreta se descreve, natureza essa pela qual

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    se une perpetuamente com Cristo e sua obra, encontrada concretamente (concrete inveniri) nessa terra na Igreja catlica. Esta Igreja emprica (haec autem Ecclesia empirica) revela um mistrio, mas no sem sombras, por isso, deve ser conduzida plena luz, assim como tambm Cristo, o Senhor, pela humilhao chegou glria. Desta forma se previne contra a impresso de que a descrio proposta pelo Conclio seja meramente idealstica e irreal" (Acta Synodalia, III/1,176). A expresso " encontrada concretamente" nos ajuda a entender o "subsistit in" tambm em termos concretos e no abstratos. Isso fica mais claro na segunda afirmao quando diz: "A Igreja unica e nessa terra est presente (adest in) na Igreja catlica, embora fora dela se encontrem elementos eclesiais" (Acta Synodalia, III/1,176). "Adest in", (est presente) corresponde claramente a "subsistit in (subsiste).

    Essas indicaes so fundamentais, pois fecham a porta a uma interpretao puramente substancialista e identificatria da Igreja de Cristo com a Igreja catlica e, desta forma, invalidar um avano sobre a eclesiologia pre-conciliar.

    Mas importa aprofundar a expresso "subsistit in". Quando no h uma interpretao especfica e oficial de uma palavra, no caso do "subsistit in", devemos, ento, seguir a regra geral da hermenutica: as palavras tm o sentido que lhes conferido pelo seu uso comum.

    Qual o sentido comum de "subsistere"? Sirva-nos de referncia o clssico dicionrio latino de Forcellini. Os muitos sentidos apresentados, vo, sem exceo, na linha do concreto e do histrico (como acenado pela explanao da comisso teolgica do Conclio acerca do n.8 da Lumen Gentium). Os sinnimos de "subsistere" so: "manere, permanere, sustentare, resistere, consistere, fermare, adstare" (Totius Latinitatis Lexicon, vol. V, 707-708). Nenhum na linha pretendida pelo Card. J. Ratzinger da "hypostasis" e da subsistncia como termo tcnico da cristologia. Observando-se os exemplos dados por Forcellini, verifica-se claramente que o "subsistit in" consente ser traduzido por "fazer-se presente, ser encontrado concretamente, ganhar forma e concretizar-se".

    Resumindo, o "est remete para uma viso essencialista, substancialista e de identificao e pede uma definio essencial de Igreja. O "subsistit in" aponta para uma viso concreta e emprica, no sentido concreto do n.8 da Lumen Gentium. O sentido de que a Igreja de Cristo "subsiste na" Igreja catlica, vale dizer, ganha forma concreta e se concretiza na Igreja catlica.

    base desta compreenso, se entende que os Padres conciliares tenham substituido o "est" ("", expresso da substncia e da identificao) por "subsistit in" (ganha forma concreta, se concretiza). A Igreja de Cristo se concretiza na Igreja catlica, apostlica, romana. Mas no se exaure nesta concretizao, pois ela, por causa das limitaes histricas, culturais-ocidentais e outras, especialmente em razo das sombras e dos pecadores presentes em seu interior (Lumen Gentium 8c), no pode identificar-se in toto, pure et simpliciter, sem resto, com a Igreja de Cristo. A Igreja semper reformanda e na tradio dos Padres comparece como casta meretrix, e, por isso, como uma realidade do tempus medium com as marcas limitadoras da peregrinao, rumo plenitude, possvel somente na escatologia.

    Igreja de Cristo e Igreja catlica no se cobrem totalmente. A Igreja de Cristo maior que a Igreja catlica. Por causa desse fato, a Igreja de Cristo pode subsistir, vale dizer, ganhar outras expresses histrico-culturais, ao longo da histria da mesma Igreja catlica ontem e hoje, em outras Igrejas crists e comunidades eclesiais. Juntas e em comunho entre si formam a Igreja de Cristo na histria, a Igreja de Deus atravs dos tempos.

    De toda esta argumentao fica claro: "subsistit" no sinnimo de "est". Se fosse sinnimo, por que, ento, a mudana introduzida pelos Padres conciliares? Em outras palavras, a deciso de no mais usar o "" visa evitar uma identificao pura e simples da Igreja de Cristo com a Igreja catlica. Ao fazer isso, os Padres conciliares abrem espao para que "os muitos elementos de santificao e de verdade" sejam reconhecidos como "eclesiais". Portanto, a Igreja de Cristo desborda da Igreja catlica.

    b) O retrocesso do Card. J. Ratzinger ao pre-Vaticano II A interpretao do Cardeal Ratzinger faz do subsistit in" um equivalente de "est" ("um

    caso especial de esse" como o disse explcitamente em sua conferncia sobre a natureza da Igreja: Il Regno, op.cit., 237b). Por isso podia dizer como o fez na Notificatio (1985) contra o meu Igreja: carisma e poder: "existe uma s subsistncia da verdadeira Igreja, enquanto fora de sua estrutura visvel existem somente elementa Ecclesiae que sendo elementos da mesma Igreja tendem a conduzem Igreja catlica" (AAS 71[1985]758-759). A mesma coisa repetiu na Dominus Jesus (n. 16, citando-me explicitamente na nota 56).

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    Aqui h um evidente retrocesso posio anterior ao Vaticano II, superada pela Lumen Gentium. A identificao feita pelo Card. J. Ratzinger, entre Igreja de Cristo e Igreja catlica to exclusiva que fora dela no h Igreja, somente "elementos de Igreja".

    Notemos uma modificao importante: o texto do Card. J. Ratzinger afirma que fora da Igreja catlica existem somente elementos eclesiais, enquanto o Conclio no fala assim. Fala, positivamente, que existem "muitos elementos" (plura) e no "somente" (solum) elementos de Igreja. Mais ainda. A Lumen Gentium no nmero 15, ao se referir aos muitos modos como a Igreja catlica unida com os cristos no catlicos, ensina que esses cristos recebem o batismo e "at reconhecem e aceitam outros sacramentos nas prprias Igrejas ou Comunidades eclesisticas" (in propriis Ecclesiis vel Communitatibus ecclesiasticis). A relatio da comisso teolgica esclarece que tais sacramentos so recebidos nas suas Igrejas ou comunidades crists enquanto tais (Acta Synodalia, III/7, 36: "in quanto tali ipsae Ecclesiae vel Communitates"). Portanto, no se trata apenas de "elementos de Igreja" que concernem apenas aos individuos mas tambm s suas comunidades. A relatio da comisso teolgica enfatiza com clareza: "precisamente no reconhecimento deste fato se situa o fundamento do movimento ecumnico" (Acta Synodalia, III/1, 204). Em razo disso, podia o Decreto sobre o ecumenismo dizer que essas Igrejas separadas e Comunidades eclesiais "no so efetivamente destituidas de significado e de peso no mistrio da salvao porque o Esprito no recusa servir-se delas como instrumentos de salvao" (n. 3d). Portanto, no apenas os sacramentos possuem valor salvfico mas tambm as Igrejas e Comunidades eclesiais enquanto tais, como alis torna a reafirmar a comisso teolgica (cf. Acta Synodalia, III/7, 36: "o Esprito Santo se serve daquelas Comunidades como instrumentos de salvao").

    Ademais a expresso "Comunidades eclesiais" aplicada s "igrejas" sadas da Reforma, revela que elas possuem um carter eclesial, vale dizer, um carter de Igreja, embora no se atribua a elas, oficialmente, tal ttulo. A Relatio da comisso teolgica, fazendo referncia praxe comum de falar delas em termos de Comunidades eclesiais, explica que tais Comunidades no so uma soma de indivduos mas "so constitudas por elementos sociais e eclesisticos que conferem a elas um carter verdadeiramente eclesial. Em tais Comunidades, embora imperfeitamente, est presente a nica Igreja de Cristo, de uma maneira semelhante quela, segundo a qual ela est presente nas Igrejas particulares, e por meio de seus elementos eclesiais a Igreja de Cristo , de algum modo, operante nelas" (Acta Synodalia, III/2,335).

    Aqui se diz com todas as letras que a Igreja de Cristo est presente (o sentido de "adest in" e "subsisit in"), nas Comunidades eclesiais, embora imperfeitamente. Assim como est presente nas Igrejas particulares como a ortodoxa e a dos Velhos Catlicos, est de forma semelhante presente nas Comunidades eclesiais. Portanto, no se pode negar a tais Comunidades o carter de Igreja, embora no linguajar costumeiro do Magistrio no sejam chamadas tecnicamente de Igrejas. Entretanto, o prprio Magistrio, papal, sinodal e episcopal, posterior ao Conclio Vaticano II usa o termo Igrejas s Comunidades eclesiais no catlicas. No se trata, seguramente, de mera concesso gentileza da linguagem. Trata-se, sim, de uma clarificao e expanso orgnica de um sentido teolgico vedadeiro, subjacente na frmula "elementos eclesiais". Esse sentido como uma semente lanada em terra frtil pelo Vaticano II. Essa semente se transformou posteriormente em flor e fruto. A conscincia teolgica cresceu a ponto de se poder afirmar que todas as Igrejas e Comunidades eclesiais participam da Igreja de Cristo.

    Como exemplo, aduzamos o texto comum do bispo catlico alemo D. Tenhumberg e do Praeses evanglico no livro Die Kirche auf gemeinsamen Wege: "O ser-Igreja no coincide simplesmente com a Igreja catlica. H tambm fora da Igreja catlica inmeros elementos eclesiais. Os textos conciliares, por isso, aplicam os conceitos Igrejas e Comunidades eclesiais tambm a outras comunidades crists. Elas participam da Igreja fundada por Cristo. H vrios graus de densidade na concretizao da Igreja como instituio fundada por Cristo" (p. 256).

    Como expressar teologicamente esses vrios graus de densidade na concretizao da Igreja? O prprio Conclio nos d a frmula: entender a Igreja como sacramentum. o que defendamos em nossa tese doutoral Die Kirche als Sakrament im Horizont der Weltefahrung (Paderborn 1972) e no nosso livro censurado Igreja: carisma e poder (1981). Tentamos mostrar a fecundidade da categoria sacramentum (sinal e instrumento) para sinalizar os distintos graus de densidade e de concretizao da realidade complexa da nica Igreja de Cristo. A expresso Sacramentum, une numa s palavra, o visvel e o invisvel, o humano e o divino e, ao mesmo tempo, permite uma gradao na concretizao e na manifestao de uma mesma realidade (sacramentum / res et sacramentum / res). Como sabemos, trata-se de um termo que vem da

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    mais antiga tradio comum da Igreja, usado j no sculo segundo para definir a natureza da Igreja como sacramentum Christi.

    c) As contradies do Card. J. Ratzinger Tal interpretao invalida a compreenso do Card. J. Ratzinger que d um "tour de force"

    palavra "subsistit in" e a traduz por "subsistncia" no sentido abstrato teolgico-filosfico, quando seu contexto concreto e emprico. como se algum dissesse ao outro: "casa mesmo s a minha; a sua no casa; voc possui apenas elementos de casa (elementa Ecclesiae), como tijolos, janelas, telhas, mesas e armrios, elementos de casa que foram tirados de minha casa e que, por isso reclamam o seu dono, e devem, portanto, retornar a ela".

    Tal afirmao alm de arrogante errnea, segundo a mens Patrum que acabamos de tirar a limpo. O prprio Card. J. Ratzinger se d conta dos problemas insolveis de sua interpretao. Em sua conferncia sobre a natureza da Igreja, diz a esse propsito: "esta diferena entre "subsistit" e "est" no se pode resolver plenamente, em ltimo termo, do ponto de vista lgico" (cf. en Il Regno, op. cit., 237b). O que se est afirmando? Confessa-se simplesmente um impasse. Seguramente, o Conclio com o "subsistit in" no quis introduzir impasses nem novos problemas, ao contrrio, quis resolver problemas. O problema no est no Conclio mas na cabea do Card. J. Ratzinger com sua interpretao reducionista. Esse reducionismo se revela no final de sua explanao sobre a natureza da Igreja. Ao reconhecer o desastre que significa o pecado da desunio das Igrejas afirma, paradoxalmente: "Na medida em que a diviso como realidade histrica perceptvel a cada um, a subsistncia da nica Igreja na figura concreta da Igreja catlica s pode ser percebida como tal na f" (Il Regno, op.cit., 238a).

    A posio do Card. J. Ratzinger se agrava pois faz evaporar seus prprios argumentos acerca da concreo histrica da Igreja de Cristo. Mais ainda, compromete a leitura do nmero 8 da Lumen Gentium que d nfase Igreja emprica, concreta, estruturada. Portanto, em algo que se v, se toca, se apreende pelos sentidos corporais. Agora comparece o Card. J. Ratzinger e afirma o contrrio, que a percepo de f, portanto, pelos sentidos no corporais. A unidade se invisibiliza e se desrealiza, destruindo toda a argumentao do Conclio. Tal a consequncia da interpretao do Card. J. Ratzinger, fatalmente contrria mens Patrum e ao Conclio. Simples teria sido, se o Card. J. Ratzinger, em obedincia essa mens Patrum, sustentasse humilde e verdadeiramente: a Igreja de Cristo se realiza concretamente nas Igrejas e Comunidades crists em distintos graus de visibilidade e de plenitude (por exemplo nas pequenas comunidades eclesias de base das favelas do Rio de Janeiro e no interior da floresta amaznica, e como essas comunidades se alegram ao se sentirem e saberem que so realmente Igreja de Cristo, mesmo no tendo eucaristia e presbitrio), em outras Igrejas crists e Comunidades eclesiais que se reportam a Cristo como salvador, libertador e Verbo encarnado.

    At poderamos lhe conceder a pretenso de que a Igreja catlica que ele tanto exalta e ardorosamente defende contenha a plena visibilidade e plenitude (a ser sempre comprovada pelos fatos e no apenas fundamentalisticamente afirmada). Mas isso no impede que essa mesma Igreja de Cristo esteja presente em outras Igrejas crists, em tantos pontos, at com mais visibilidade e densidade do que na Igreja Catlica, como, por exemplo, o amor s Escrituras sagradas dos nossos irmos e irms evanglicos ou o cultivo da solene liturgia dos nossos irmos e irms ortodoxos.

    d) Perigos da interpretao do Card. J. Ratzinger A concentrao da Igreja catlica no pode ser tanta que exaura e extenua em si mesma

    as virtualidades da Igreja de Cristo. Seria to ridculo e perigoso como se algum dissesse: a natureza humana est to presente na raa negra por ser profundamente espiritual, esttica e solidria que s ela humana. A raa branca ocidental, europia e bvara, pelo implerialismo, colonialismo e guerras de extermnio que produziu, no seria humana, conteria apenas "elementos de humanidade". Logicamente essa tambm humana, embora demasiadamente humana.

    Mas semelhante afirmao exclusivista, semelhante quela do Card. J. Ratzinger, extremamente perigosa. Ela foi brandida concretamente pelos cristos europeus em confronto com os indgenas "descobertos" na Amrica e no Caribe. Na famosa "Controvrsia de Valladolid" (1550-1551) entre Bartolom de las Casas, defensor dos ndios e Juan Gins de Seplveda,

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    humanista e preceptor da famlia real espanhola, chegou afirmar este ltimo: os indgenas no so filhos de Ado como ns, so animais to espertos que para nos enganar, falam e constroem at casas e cidades semelhantes s nossas.

    No sendo de nossa famlia humana podem, essa era a concluso, ser tratados como animais e ser tranquilamente escravizados. Sabemos que o Papa Paulo III j antes havia intervido libertadoramente com a bula Sublimis Deus (1537) e reafirmou que os indgenas so filhos de Ado, nossos irmos e irms, tm direito a suas terras e no devem ser maltratados. O Cardeal legado reassumiu a afirmao de Paulo III e deu razo a Bartolom de las Casas contra Seplveda.

    Lgica semelhante de Juan Gins de Seplveda fundamenta a argumentao do Card. J. Ratzinger. O que o conhecido intelectual e cientista francs Michel Serres diz da Declarao Universal dos Direitos Humanos pode ser dito da eclesiologia reducionista do Card. J. Ratzinger. Diz M. Serres: a Declarao Universal dos Direitos Humanos teve o mrito de afirmar que "todos os homens tm direitos", mas teve o defeito de entender "s os homens tm direitos". Foi preciso muita luta para estender esses direitos s mulheres, aos negros, aos indgenas e atualmente, Terra como Magna Mater, aos ecosistemas e a cada ser da criao. O Card. J. Ratzinger teve o mrito de dizer: "a Igreja de Cristo subsiste na Igreja catlica". Mas teve o defeito de entender: "s na Igreja catlica". Agora entendemos que no s um defeito mas um erro, contrrio mente dos Padres do Vaticano II.

    Como todos crescemos na compreenso dos direitos estendidos a toda a criao, assim o Card. J. Ratzinger e seus seguidores tero que aprender, seguindo as orientaes do Vaticano II, a estender a eclesialidade da Igreja de Cristo a todas as Igrejas e Comunidades eclesiais. Ento sim, o ecumenismo ser fecundo e a emulao, generosa, no sentido de ver qual das Igrejas vive melhor e anuncia mais adequadamente o evangelho de Jesus, um sonho possvel inteira humanidade e quem o expressa de forma mais visvel, mais concreta, e mais convincente dentro de nosso mundo se globalizando.

    Concluindo esta parte voltamos a sublinhar: A distino entre o "est" e o "subsistit in"

    feita pelos Padres conciliares abriu caminho novo para o ecumenismo catlico que no poder mais ser fechado. O Card. J.Ratzinger na Dominus Jesus erroneamente usa o "subsistit in" para fechar o ecumenismo catlico aberto, reafirmar a identificao exclusiva da Igreja catlica romana com a Igreja de Cristo e assim voltar aquilo que o Conclio quis superar, ao "est", identificao pura e simples, sem distino.

    Em razo destas reflexes caberia fazer a retorquio e perguntar: quem est fazendo "a subverso do texto conciliar sobre a subsistncia da Igreja"? O livro Igreja: carisma e poder ou a Notificao do Card. J. Ratzinger contra ele, reafirmada na Declarao Dominus Jesus?

    3. Caminhos para o ecumenismo catlico Deixando a polmica de lado, importa agora acenar para alguns pontos, derivados do

    prprio Vaticano II, que possam fundamentar um ecumenismo catlico menos arrogante e mais dialogal. Antes, entretanto, cabe evocar algumas consideraes de ordem teolgico-pastoral.

    Diz-se e a Dominus Jesus o sublinha fortemente, que a Igreja enviada a anunciar o evangelho ao mundo, segundo o mandato do Senhor. Entretanto, reparando-se a produo da Sagrada Congregao da Doutrina da Fe, nesta ltima Declarao e em tantas outras, nota-se uma ausncia clamorosa de conhecimento do mundo atual, com suas chances e riscos. E quando oferece alguma perspectiva, quase sempre pessimista, tpica de instituies em crise de fe e de esperana. Tudo fundamentalmente voltado para dentro, construindo a Igreja como um bastio que se preserva e que se basta a si mesmo. Com essa atitude solipcista no se evangeliza e no se vai ad gentes.

    Ou as Igrejas, especialmente a catlica, se abrem nova fase da humanidade, a planetria, ou se condenam a ser um subproduto da cultura ocidental. Aqu devemos assumir como virtude o que o Card. J. Ratzinger considera vcio a ser duramente combatido: o relativismo eclesiolgico.

    Devemos ser duplamente relativistas. Primeiramente devemos relativizar a expresso ocidental da Igreja de Cristo, mais especificamente, romana. Em sua teoria do poder e na forma como o organiza e distribui nota-se a mentalidade romana, centralizadora e autoritria, muito diversa da evanglica. Se o cristianismo se tivesse encarnado, por exemplo, na grande cultura

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    tupi-guarani, cultura comum de milhes de indgenas, outro teria sido o sentido do poder. Para esse povo, o cacique se caracteriza pela generosidade, pelo servio incondicinal aos outros e pela doao de tudo o que possui. Em algumas tribos se pode reconhecer o chefe na pessoa daquele que possui menos que os outros e que traz ornamentos mais pobres at miserveis, pois o resto tudo foi doado. Caso o cristianismo, ao invs de ter-se encarnado na cultura romana com seu legalismo e com sua centralizao, se tivesse encarnado na cultura poltica tupi-guarani, teramos ento padres pobres, bispos miserveis e o papa, um verdadeiro mendigo. Ento, sim, poderiam ser testemunhas dAquele que disse:"estou entre vs como quem serve e quem quer ser o primeiro seja o ltimo". E a misso no teria sido dominao religiosa aliada dominao poltica; os cristos no seriam cmplices e partcipes do genocdio dos povos originrios da Amrica Latina e alhures. Teramos, seguramente uma Igreja melhor, mais sensvel, mais participativa, mais servicial, mais integrada, mais ecolgica e mais espiritual que a romano-catlica.

    A catolicidade do cristianismo e de todas as Igrejas passa pela capacidade de relativizao de sua encarnao ocidental e de abertura para novas virtualidades de encarnao, possveis evangelicamente. Passa tambm pela capacidade de manter comunho com todas as encarnaes, pois, todas elas traduzem, bem ou mal, o evangelho para o mundo, hoje globalizado.

    Libertada de sua matriz ocidental, a Igreja catlica romana dar-se-ia conta do ridculo e arrogante das teses sustentadas pela Dominus Jesus. Seu lado ocidental faz com que tenha uma viso capitalstica e concentradora da herana de Jesus e, ao mesmo tempo, uma perspectiva imperialista da misso, como conquista de povos e culturas nos quadros da eclesialidade romano-ocidental.

    Em segundo lugar, importa relativizar positivamente a eclesiologia, quer dizer, manter todas as Igrejas e Comunidades eclesiais relacionadas umas com as outras pois so expresses da mesma Igreja de Cristo. Ao invs de uma desqualificar a outra ou disputar se merece ou no o atributo de Igreja, vigoraria a pericrese entre elas (inter-retro-relacionamento de todos com todos), semelhantemente quela que existe entre as divinas Pessas da SS. Trindade.

    Numa perspectiva de globalizao, importa ver o cristianismo mais como o Movimento de Jesus no mundo do que uma instituio com caractersticas pesadas em funo de velhas tradies, sobrecarga de reflexo e com marcas dos conflitos religioso-polticos que caracterizaram a histria crist no Ocidente.

    Feitas estas observaes, elenquemos, sumariamente, alguns pontos doutrinrios,

    inspirados pelo Vaticano II, capazes de fundar um outro tipo de ecumenismo catlico. Em primeiro lugar, h que ancorar a unidade da Igreja no mistrio trinitrio e no numa

    metafsica clssica e neo-escolstica como o faz o Card. J. Ratzinger. No Decreto sobre o Ecumenismo se diz claramente: "Deste mistrio (da unidade da Igreja) modelo supremo e princpio a unidade de um Deus na Trindade de pessoas, Pai, Filho e Esprito Santo" (n. 2). Na Trindade h diversidade de Pessoas, uma no a outra; no h nenhuma hierarquia entre elas, pois nenhuma Pessoa est acima ou abaixo da outra (contrariamente na Igreja catlica); e, contudo, vigora uma profunda unidade que nasce da pericrese, a saber, do entrelaamento de todas as divinas Pessoas entre si, todas se acolhendo na sua diversidade e todas se auto-doando totalmente. A essncia da pericrese o amor. Bem dizia So Bernardo: "Na Santssima Trindade, o que que conserva aquela suprema e inefvel unidade, seno o amor? O amor constitui a Trindade na unidade e, de certa forma, unifica as Pessoas no vnculo da paz. Amor gera amor. Esta a lei eterna e universal, lei que cria tudo e tudo governa" (Liber de diligendo Deo, c.12, n.35: PL 192, 996 B). Essa unidade " modelo supremo" para a unidade da Igreja e entre as Igrejas. Elas so diversas mas todas uni-ficadas na mesma relao de aceitao mtua e de mtuo amor.

    Em segundo lugar h de se entender a Igreja como communio, tema importante no Vaticano II e em toda a eclesiologia ps-conciliar (especialmente o Snodo de 1985), com razo chamada de eclesiologia de comunho. A primeira epstola de S.Joo nos oferece o sentido radicalmente teolgico da comunho: "aquilo que vimos e ouvimos ns vo-lo anunciamos para que vs tambm estejais em comunho conosco. A nossa comunho com o Pai e com o Filho seu Jesus Cristo" (1Jo 1,3). Novamente a comunho se realiza na diversidade das Pessoas que se unem pelos laos de vida e de amor. Joo Paulo II, diante de todos os bispos latino-americanos fez uma declarao das mais belas de seu Pontificado: "Nosso Deus em seu mistrio mais ntimo no solido mas uma famlia, pois leva em si mesmo a paternidade,a filiao e a

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    essncia da famlia que o amor, o Esprito Santo" (Documentos de Puebla, 28/1/1979, Ed. Vozes, Petrpolis 1979, 46). a comunho entre todas as Igrejas que faz delas a nica Igreja de Cristo. A Igreja universal no outra coisa seno a comunho das Igrejas particulares, "nas quais e a partir das quais existe (exsistit) a Igreja catlica una nica", como o diz com pertinncia a Lumen Gentium (n. 23a). Famlia expressa aqui a communio. Esta compreenso comunional evita a crtica feita pela Declarao Mysterium Ecclesiae, segundo a qual a Igreja universal seria o conjunto ou a suma (summa) das Igrejas. Pela comunho no se somam as Igrejas mas se reconhece a comunho real entre elas que pode ser maior ou menor densidade, mas todas elas com carter eclesial.

    Em terceiro lugar, cabe ressaltar a importncia de se entender a Igreja-Povo-de-Deus, considerado pelo Card. J. Ratzinger em sua conferncia sobre a natureza da Igreja como "tema imprprio", "por se prestar menos a descrever a estrutura hierrquica da comunidade eclesial" (cf. Il Regno, op.cit., 233b-234a). Ora aqui reside o valor deste conceito de Igreja. Foi em razo disso que ele, na Lumen Gentium, foi anteposto ao captulo sobre a Estrutura Hierrquica da Igreja (nas fases anteriores a ordem era inversa).

    Esse conceito revela melhor a Igreja universal como peregrinao e movimento de todos os que seguem Jesus, portanto, de todas as Igrejas, antes que haja dentro delas distines de ministrios, servios e carismas. Estes no so faces mas funes de servio e de animao de toda a comunidade. O conjunto orgnico de todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, conjunto estruturado por relaes de comuho e de servio ao mundo, constitui fundamentalmente o Povo de Deus em marcha. Isso bem expresso pelo termo bblico e profundamente teolgico "povo de Deus", logicamente incmodo s construes reducionistas do Card. J. Ratzinger.

    Em quarto lugar, decisiva a misso para se entender a natureza da Igreja de Cristo. Esta no existe para si. No ela que Deus ama em primeiro lugar, mas o mundo, pois a ele enviou o seu Filho (Jo 3,16). Face ao mundo ela possui uma estrutura sacramental: sinal e instrumento, portanto, de Cristo para o mundo. Deve apontar para Cristo e no substitui-lo. Deve, por um lado, afirmar-se porque mediante ela a herana de Jesus mantida viva na histria. Mas, por outro, deve, simultaneamente, negar-se para que Cristo aparea e ganhe centralidade. A Igreja possui somente centralidade na medida em que est em Cristo e no Esprito e no fundada em si mesma. a partir da misso que ela entende ser da ordem dos meios, como sacramento e sinal que j antecipa e torna presente a salvao mas que chamada a desaparecer para dar lugar aos Povos de Deus no Reino definitivo (cf. Apoc 21,3).

    Por fim, em funo de sua misso no mundo, hoje globalizado, a Igreja d a si as estruturas e servios que lhe parecem adquados para cumprir sua misso. Importa imitar o comportamento das comunidades eclesiais dos primrdios que souberam traduzir a mensagem de Jesus para um tempo posterior, quando j no se esperava mais a parusia, e assumiram formas de organizao tiradas do meio circundante mas que lhes eram funcionais.

    Conforme as principais investigaes catlicas junto com as ecumnicas consentido dizer

    com segurana que a Igreja, no que concerne ao seu lado institucional, no pode ser deduzida, diretamente, do Novo Testamento. Este no conhece a estrutura, apresentada como um fetiche intocvel pelos documentos oficiais, bispo-presbtero-dicono. Tal estruturao testemunha somente a partir de Santo Incio de Antioquia na terceira gerao apostlica. E ao decidir, as comunidades eclesiais originrias se inspiravam mais no Esprito presente (cf. At 15,28) e no Senhor ressuscitado do que nas referncias ao passado. Hoje, a Igreja se confronta com a ousadia de olhar para frente, pois face a uma situao absolutamente indita, a emergncia de uma nica sociedade mundial, deve, no Esprito, tomar decises, carregadas de consequncias para o futuro do Evangelho no mundo. Com dizia o velho mestre Karl Rahner, a Igreja deve ousar, na fora do Ressuscitado e de seu Esprito, at o ponto em que ir alm seria heresia ou traio. E ela pode se permitir tal ousadia porque se sente divinamente acompanhada. Somente desta forma se coloca altura dos desafios mundiais. O desafio vale no apenas para essa ou aquela Igreja mas para a totalidade do Cristianismo como movimento de Jesus que deve se compor junto com outros movimentos espirituais que tambm oferecem sua mensagem humanidade. Todos juntos so coresponsveis para que o Supremo que habita o ser humano no seja afogado nem erradicado da face da Terra: a presena de Deus no corao do universo, no mago da histria e na profundidade do ser humano.

    O ecumenismo no visa somente a paz entre as Igrejas e religies pelo mtuo reconhecimento no amor e na cordialidade, mas principalmente a paz entre as tribos da Terra e a paz perene com a prpria Terra, Magna Mater e Gaia. Sem essa paz poderemos conhecer o

  • Quem subverte o Conclio

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    destino dos dinossauros. A questo axial no mais quem Igreja de Cristo e quem no o . Sequer qual o futuro do cristianismo ou da civilizao ocidental que serviu de nicho encarnatrio para as principais Igrejas. A nova centralidade se encontra nisso: que futuro tm a Terra e os filhos e filhas da Terra, a humanidade? Esse futuro no est mais garantido. Desta vez no h uma arca de No que salve alguns e deixa perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos, com ou sem elementos eclesiais. Em que medida a herana de Jesus, a Igreja catlica com toda sua pretenso de exclusividade e as demais Igrejas e Comunidades crists ajudam a garantir um futuro de vida e de esperana para a Terra e a humanidade? A isso deve servir o ecumenismo.

    Diante da crise da Terra e da humanidade diversionismo irresponsvel falar de "subsistit in" ou "est", de "subsistncia" ou "ganhar forma concreta". Para todos o Titanic est afundando e alguns alienados gaiamente ainda teimam em se ocupar de tais questes. Bem nos advertiu o Senhor: "Quando vedes levantar-se uma nuvem no poente, logo dizeis: vai chover. E assim acontece. Quando sentis soprar o vento sul, dizeis: vai fazer calor. E assim sucede. Hipcritas, sabeis julgar os fenmenos da terra e do cu; ento como no sabeis julgar o momento presente? Por que no julgais por vs mesmos o que justo" (Lc 24,54-57)?

    Leonardo Boff

    Bibliografia essencial Apresentamos alguns ttulos que apresentam com mais detalhes a questo aventada no

    nosso trabalho: Boff, L., Die katholische Kirche als Ganzsakrament und die sakramentale Struktur der

    nicht-katholischen Kirchen, em Die Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung, Paderborn 1972, 413-426.

    Boff, L., Igreja: carisma e poder. Com todos os documentos da polmica com o Vaticano e com a minha resposta indita ao Card. J. Ratizinger, Atica, S.Paulo 1994.

    Baum, G., Die ekklesiale Wirklichkeit der anderen Kirchen, em Concilium 1(1965)291-303. Congar, Y., Le dveloppement de lvaluation ecclsiologique des Eglises non catholiques,

    em Rev. Droit. Can. 25(1975)215-216. Kasper, W., Der ekklesiologische Charakter der nichtkatholischen Kirchen, em ThQ

    145(1965)42-62. Ruidor, I., Estructura sacramental de las Iglesias y comunidades cristianas no catlicas,

    em Estudios Eclesisticos 42(1967)207-216. Dantine, W., Die kontroverstheologische Problematik der sogenannten "ekklesialen

    Elemente" im Blick auf das kumenische Gesprch, em Eneuerung der einen Kirche (Festchr.fur H. Bornkamm, hrsg. von J Lell), Gttingen 1966,140-155.

    Dietzfelbinger, W., Die Grenzen der Kirche nach der dogmatischen Konstitution "De Ecclesia" em Kerygma und Dogma 11(l965) l65-176.

    Thils, G., Oecumenisme et romanocentrisme, em Oecumenica l967, 194-207. De Halleux, A., Les principes catholiques de loecumenisme, em Rev. Th. Louv. 16(1985)

    320-322. Dulles, A., The Church, the Churches and the Catholic Church, em TS 33(1972)211ss. Scheele, P.W., Das Kirchensein der Getrennten, em Catholica 22(1968) 30 ss. Sullivan, F.A., In che senso la Chiesa di Cristo "sussiste" nella Chiesa cattolica romana?

    em Vaticano II: bilancio de prospettive a cura di Ren Latourelle, vol.2, Cittadella Editrice, Assisi 1987, 811-824.

  • DOMINUS JESUS CINCO ANOS DEPOIS A declarao Dominus Jesus no passou desapercebida. Pelo contrrio, a impresso que

    deu, foi que, com ela, o Magistrio abriu uma nova etapa na sua histria. Algumas condenaes e advertncias a diversos autores confirmavam essa impresso. Doravante o Magistrio teria os olhos fixados sobre a teologia das religies e o dilogo dos catlicos com as outras religies. Havia um novo perigo ameaando a ortodoxia catlica: o relativismo teolgico. Por isso, essa Declarao, apesar da sua relativa modstia, valia mais do que uma simples Declarao.

    Alis o texto menciona que o prprio Papa ratificou e confirmou esta Declarao. A Declarao merece ser interpretada com um dos documentos mais significativos do pontificado de Joo Paulo II, como uma aplicao concreta da doutrina enunciada em Fides et Ratio e Veritatis Splendor, provavelmente os documentos mais importantes do pontificado de Joo Paulo II. O fato de que o autor da Declarao seja o novo Papa Bento XVI, somente pode dar-lhe mais significado ainda.

    Na Declarao, o cardeal Ratzinger reafirmava com vigor a doutrina ortodoxa e tradicional

    sobre a unicidade e universalidade salvfica de Jesus Cristo e da Igreja. O tom taxativo da Declarao surpreendeu alguns leitores, porque dava a impresso de que estvamos realmente diante de um grande perigo de heresia ou de desvio doutrinal e pastoral. No entanto, era preciso reconhecer que o gnero literrio dos documentos da Sagrada Congregao para a Doutrina da F j uma justificao suficiente. Por sua parte, h analistas e observadores que no acham que o perigo seja to grande e precise de uma interveno to vigorosa. Alguns temeram que esse documento to forte prejudique as relaes com as outras religies, porque podia dar a impresso de que os catlicos que estavam implicados em certos dilogos, no eram reconhecidos pela sua Igreja como interlocutores vlidos.

    Em todo caso, a Declarao no acaba com a investigao teolgica. Ela no diz que explicou tudo e no quer dar fim ao debate. Pelo contrrio, ela diz que a teologia hoje convidada a explorar se e como tambm figuras e elementos positivos de outras religies reentram no plano divino de salvao (n. 14b).

    Se, por um lado, preciso afirmar com fora a unicidade e a universalidade salvfica de Jesus Cristo e da Igreja, por outro lado, desde o Conclio Vaticano II, a Igreja aceita que h diversos nveis de pertena a Jesus Cristo e Igreja. Por este lado, h espao para muito estudo e muita reflexo teolgica. Por isso, vou sugerir algumas orientaes.

    1. A primeira observao parte de um texto muito destacado da Unitatis Redintegratio

    (n. 11c). Os Padres conciliares dizem aos telogos catlicos o seguinte: Comparando as doutrinas lembrem-se que existe uma ordem ou hierarquia de verdades na doutrina catlica, j que o nexo delas com o fundamento da f crist diverso. O Conclio no diz qual essa ordem e hierarquia, quais seriam as verdades mais fundamentais e qual o nexo das outras verdades com essas verdades fundamentais. Tomaremos como verdades absolutamente fundamentais aquelas que permitem separar os eleitos dos condenados, aquelas que so absolutamente necessrias para a salvao. H textos muito claros.

    Comecemos por so Paulo: Ainda que eu tivesse o dom de profecia, o conhecimento de todos os mistrios e de toda a cincia, ainda que tivesse toda a f, o ponto de transportar montanhas, se no tivesse a caridade, eu nada seria (1Cor 13,2). Ser que somente na Igreja possvel praticar a caridade? O que acontece com aquelas pessoas que praticam a caridade, mas no tm nenhum conhecimento dos dogmas de f e nenhum sinal exterior de pertena Igreja? A prtica da caridade no seria justamente o mais fundamental de todo o cristianismo de tal sorte que todo o resto recebe o seu valor da sua conexo com a caridade?

  • Jos Comblin

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    A primeira epstola de Joo diz assim: Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que no ama no conhece a Deus porque Deus Amor (1Jo 4,7). Somente pode amar quem est na Igreja catlica? O que acontece se algum ama o seu irmo ainda que no pertena Igreja e no conhea os dogmas?

    O prprio Jesus na famosa parbola do juzo final, diz claramente quais so as condies para ser eleito. Estas condies se referem todas ao servio dos pobres (Mt 25,31-46). H outros textos que dizem a mesma coisa.

    Desses textos e de muitos outros que repetem a mesma coisa, no podemos inferir que o que fundamental o amor ao prximo? A verdade fundamental que somente a caridade salva. Alis, como diz so Paulo, a maior delas a caridade, maior do que a f (1Cor 13,13).

    Se esta a verdade fundamental, poderamos mais facilmente chegar a um entendimento com outros. Todo o resto secundrio e vem depois. Com certeza, o cristianismo seria mais compreensvel para eles se soubessem que a nossa verdade fundamental essa, e que todo o resto est em conexo com isso e em dependncia desta posio fundamental.

    Por sinal, no se trata de saber que o amor o fundamental. Trata-se de conhecer pela prtica. No aquele que fala amor, amor... que est na verdade, mas aquele que o pratica ainda que no saiba que o nome caridade ou amor. H um conhecimento dentro do amor. No se conhece a Deus basicamente por meio de palavras, conceitos, reflexo intelectual, mas por meio do amor, porque Deus est acima de qualquer conceito. Se Deus amor, quem pratica o amor est em Deus e o conhece como conhece a prpria vida, ainda que esse conhecimento no chegue a se enunciar em forma de palavras.

    2. Continuemos a leitura do texto citado de Unitatis Redintegratio (11c): Assim se

    abrir o caminho pelo qual, mediante esta fraterna emulao todos se sintam incitados a um conhecimento mais profundo e manifestao mais clara das insondveis riquezas de Cristo. O que chama a ateno aqui que se fala de um caminho. A revelao de Deus um caminho. Comeamos pelo mais fundamental e a partir do mais fundamental descobriremos as etapas ulteriores. Comeamos pela revelao do amor e a partir do amor iremos descobrindo a caminhada desse amor graas aos sinais que Jesus nos apresenta.

    Aqui surge a pergunta. Aqueles que esto andando no caminho do amor para descobrir a Deus, pertencem a Jesus ou no? Aqueles que ainda esto nas primeiras etapas j pertencem a Jesus? Se o amor Deus, h alguma coisa que se poderia acrescentar como condio? O caminho do amor nos permitir descobrir a Jesus Cristo se tivermos uma possibilidade histrica de que se realize esse encontro. Se o conhecimento de Jesus Cristo e da revelao um caminho, precisamos respeitar caminho e os seus ritmos, as suas etapas. No podemos precipitar. Sobretudo no podemos descarregar de repente sobre a cabea de outros todo o contedo do catecismo catlico.

    3. Aparentemente o conceito de revelao muito simples. A teologia tradicional antiga

    identificava a revelao com a doutrina ensinada pela Igreja. A revelao ficava objetivada, tratada como objeto de discusso, reflexo, como qualquer outro objeto intelectual. A Declarao reafirma essa doutrina, e no podia falar de outra maneira.

    No entanto, h algumas dificuldades que subsistem. O que revelao de Deus? Com certeza a inteno de Deus no era constituir um corpus de doutrina, mas dar-se a conhecer aos seres humanos. H revelao quando o homem ou a mulher percebe, entende

    Ora, esta assimilao no obvia. H muitas doutrinas, muitos ensinamentos que os ouvintes ou os leitores no entendem. Os telogos elaboram um texto muito bem documentado, coerente, montado graas ajuda de muitos elementos da sua cultura, ou seja, da cultura do seu meio ambiente. Mas a maioria das pessoas que no aprenderam teologia no podem entender. Os pastores procuram divulgar essas doutrinas, mas mesmo assim a maioria no entende muita coisa. Ou entendem no sentido contrrio.

    O prprio senhor vigrio quando no ensina a religio, mas trata de viver a sua religio na sua vida, se refere ao que aprendeu quando era menino. A sua av, ou uma tia inculcou nele algumas atitudes, alguns comportamentos religiosos. Ora a sua religio no aquela que ensina, mas aquela que vive.

    Quantos batizados entendem os dogmas? Quantos entendem quando nem leram os evangelhos, nem ouviram um catecismo? Quantos tm do cristianismo uma representao exatamente contrria quilo Jesus quer dizer At meados do sculo XX ensinavam na teologia e nas escolas que Deus quem d a vitria ao exrcito e por isso preciso rezar muito para que

  • Dominus Iesus cinco anos depois

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    d a vitria aos nossos exrcitos. No entanto, Jesus nunca prometeu a vitria sobre as legies romanas que conquistaram a terra de Israel e o resto do mundo conhecido naquele tempo.

    H cristos que entendem a revelao exatamente no sentido contrrio. No poderia haver pessoas que entendem no sentido correto o que dizem com palavras erradas. Na prtica haver tanta diferena entre a religio de inmeros catlicos e a religio das massas indianas ou muulmanas? O que eles dizem com as suas mitologias pode significar a verdade ainda que esteja objetivamente errado , porque assim como se pode dizer a verdade em forma errada, se pode dizer o erro em forma de verdade. O que que querem dizer, o que que pensam com as suas mitologias? Seria to diferente da revelao crist? No ser pelo fundamento que se poder saber se uma pessoa est no caminho de Jesus, no reino de Deus ou no?

    4. Que sentido pode ter o dilogo entre religies? Ser dilogo sobre o que? No faz

    sentido que cada religio mande um representante para expor o seu sistema religioso. A nvel de sistema religioso, no faz sentido. Uma das razes que somente a Igreja catlica tem um corpus de doutrina claramente definido. Nenhuma outra Igreja crist e nenhuma outra religio tem semelhante corpus de doutrina. Isto daria Igreja catlica uma posio de superioridade. Alm disso, nisto no haveria dilogo nenhum mas simplesmente uma seqncia de monlogos. No haveria nenhum resultado.

    Qual seria o nvel do dilogo? O nvel das doutrinas completas ou o nvel da busca de Deus, ou seja, dos elementos mais fundamentais? Nesse caso cada um teria o seu caminho para chegar ao essencial. Tambm teria a vantagem de no enganar o interlocutor apresentando-lhe coisas que no so essenciais, como se fossem essenciais.

    O dilogo somente tem sentido entre pessoas que andam buscando. No h dilogo possvel com pessoas que acham que j tm a verdade completa.

    5. No Novo Testamento estamos confrontados com dois tipos de conhecimento e dois tipos

    de verdades. a famosa distino entre o Jesus da histria e o Cristo da f. Ora, tratando-se do Jesus da histria, as palavras e os conceitos usados referem-se a realidades das quais temos a experincia. Sabemos o que elas so. A cruz de Jesus, sabemos o que . O mar de Tiberades tambm sabemos o que , e assim por diante. Fala-se de coisas conhecidas na vida de cada dia. Somente nos incumbe a tarefa de examinar o valor dos testemunhos, o que est ao nosso alcance. um tipo de conhecimento, aquele que praticamos diariamente.

    Tratando-se do Cristo da f, a situao diferente. A mensagem do Novo Testamento refere-se a Deus e a realidades ligadas a Deus, realidades invisveis e totalmente fora do nosso alcance. No temos nenhum conceito adequado para expressar essas realidades. Usamos comparaes. Bem sabemos que essas comparaes nos deixam longe da realidade. No temos nenhum meio de saber qual o valor ou a extenso dessas comparaes. Depois da morte de Jesus as primeiras geraes de discpulos elaboraram um corpus de doutrinas relativas a Jesus. No podemos saber de que maneira adquiriram esses conhecimentos. Estes constituem um conjunto que pouco a pouco foi definido, consagrado pelo Magistrio e que os catlicos aceitam por confiana no Magistrio sem nenhuma possibilidade de averiguao.

    A f diz: Jesus Filho de Deus. Ele mesmo nunca fez essa declarao e portanto no podia explicar o que podia significar. Esse ttulo lhe foi atribudo pelas primeiras geraes crists. Ser Filho de Deus parece uma coisa muito simples porque o conceito de filho pertence ao nosso vocabulrio habitual e a filiao no nenhum mistrio. No entanto, quando se aplica a palavra Filho a Deus, devemos confessar que no sabemos o que significa. O que pode significar ser Filho em Deus? Teramos de saber como Deus. Um conceito que a primeira vista parece claro se revela muito obscuro. No podemos fazer idia do que pode significar ser Filho num ser que no tem corpo.

    Da mesma maneira todos os conceitos que se referem a Cristo da f. Trata-se de um tipo de conhecimento especial. Consta de comparaes cujo sentido se apaga na medida em que se aprofunda a pesquisa. Claro est que todo esse sistema teolgico a base de todo um sistema de prticas religiosas, o que lhe confere muita importncia. No entanto como aceitar que o destino final de uma pessoa, que o seu valor intrnseco, dependa da adoo desse sistema de comparaes. A mesma coisa vale para todas as religies.

    Uma coisa seguir o caminho de Jesus conhecido pelos evangelhos e pela vida dos discpulos. Outra coisa afirmar o sistema de conceitos que so comparaes aplicadas a Deus e s realidades ligadas a Deus. O que mais importante? Com certeza todo o edifcio conceptual que constitui a dogmtica crist influiu e influi no nosso comportamento e constitui um impulso

  • Jos Comblin

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    forte. Mas podemos dizer que aderir a esse sistema condio absoluta de salvao? No h por acaso pessoas que aderem plenamente a toda a dogmtica catlica e vivem como verdadeiros pagos? O sistema de comparaes constitui uma ajuda, mas nem sempre funciona. Outros sistemas de comparaes podem as vezes ter mais eficcia na vida real.

    6. O Magistrio define o que deve ser crido como divinamente revelado (Dei Verbum

    10b). Como que se chega a essa operao? Tal Magistrio evidentemente no est acima da palavra de Deus, mas a seu servio, no ensinando seno o que foi transmitido, no sentido de que, por mandato divino e com a assistncia do Esprito Santo, piamente ausculta aquela palavra, santamente a guarda e fielmente a expe (ibid., 10b). A primeira frase do mesmo pargrafo acrescenta uma palavra importante: interpretar.

    Por um lado o texto diz no est acima da palavra de Deus, e, por outro lado transmite, guarda, expe, interpreta. Como conciliar estas operaes? Eis aqui algumas reflexes tiradas das cincias humanas do sculo XX.

    H uma evidente distncia entre as afirmaes do Novo Testamento e as definies dos Conclios. Esta distncia aparece na cristologia, nos ministrios, nos sacramentos, para citar somente alguns exemplos. O Magistrio afirma que os textos definidos pelos Conclios no acrescentam nenhum contedo, mas transmitem fielmente o sentido original. O que se acrescentou no mudaria em nada o sentido includo no texto original da Bblia, mas seria apenas uma explicitao. Isto supe que o Magistrio tenha recebido uma informao especial para garantir essa identidade, no uma simples assistncia. Com efeito algumas perguntas surgem.

    Primeiro, os padres conciliares leram os textos bblicos dentro da sua cultura, e de modo geral sem conhecimento, ou com pouco conhecimento da cultura semtica em que os textos foram escritos. Quem pode garantir que leram exatamente o que est escrito e que no introduziram no texto revelado sentidos que lhes pareciam bvios, e acrescentaram elementos culturais que no estavam na palavra de Deus? Por exemplo, a cultura bblica no tem preocupao pelo ser das realidades. No diz o que as coisas so, mas o que fazem. Em lugar do verbo ser, usam verbos de ao. Ora, a cultura grega inspirada pela filosofia durante sculos procura justamente as essncias, procura saber o que as coisas so. De fato os Conclios procuraram dizer o que Jesus , o que os sacramentos so, etc.

    Quem diz que Deus queria que a revelao feita pelo seu Filho Jesus referisse definies do ser das coisas e no preferiu deixar essas coisas na sombra para chamar a ateno sobre outros aspectos, por exemplo, o agir dos discpulos? Leitores gregos vo querer descobrir nos textos o ser dos objetos mencionados. Dedicar-se a definir o ser no acrescentar algo que no estava no texto primitivo? Ento o Magistrio acrescenta algo que lhe vem da sua cultura porque j leu os textos numa perspectiva especial, que a sua cultura. Se os Conclios se tivessem realizado na ndia ou na China as preocupaes poderiam ter sido diferentes. O que queremos dizer que nas definies entram elementos culturais. Ou devemos crer que os padres conciliares so insensveis sua cultura e esto acima da sua cultura, independentes dela? Seria um milagre muito grande, maior do que a assistncia do Esprito Santo.

    Naturalmente quem est numa determinada cultura no sabe que a sua cultura pensa por meio dele. Para ele tudo evidente. A leitura que faz da Bblia lhe parece evidente. So justamente essas evidncias que so suspeitas. Porque h tanta evoluo nas tradues da Bblia? Justamente porque a Bblia lida dentro de uma cultura e uma nova cultura faz uma nova leitura. Quem est fora dessa cultura em que feita determinada leitura, percebe tudo o que se deve cultura.

    Uma leitura realmente fiel seria deixar sem explicitao ou sem interpretao, o que a Bblia no quis explicitar. Porque Deus queria que se explicitasse o que ele no explicitou? A Igreja teria por misso corrigir uma negligncia divina? No seria mais fiel dizer: at aqui fala a palavra de Deus, o resto fica na sombra. Porque no deixar na sombra se Deus quis que ficasse na sombra?

    Da a suspeita: o que que se poderia atribuir cultura nas definies conciliares? Precisa levar em conta o fato de que os prprios redatores no podiam estar conscientes da interveno da sua cultura e agiram de acordo com o que era evidente para eles. Mas o leitor que se acha a 5 ou 15 sculos de distncia no pode descobrir o que o Magistrio naquele tempo achava bvio e que manifesta a influncia da cultura dele?

  • Dominus Iesus cinco anos depois

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    7. Qual o objeto do ato de f? a palavra de Deus, ou a interpretao e definio dessa palavra pelo Magistrio? Para o Magistrio a pergunta no faz sentido porque as definies do Magistrio por definio representam exatamente a revelao, coincidem com a revelao divina. O Magistrio declara-se acima da histria. Pretende que no depende em nada da cultura e consegue enunciar a palavra de Deus fielmente na sua cultura. O Magistrio no tem cultura e por isso no est submisso histria.

    No entanto, acabamos de sugerir que poderia haver uma dependncia da cultura na passagem que se faz da palavra de Deus escrita num contexto semtico para a lngua e a cultura grega. H outro aspecto. As definies conciliares foram escritas num momento determinado dentro de um contexto histrico e cultural. As definies foram entendidas a partir da cultura dos ouvintes. Quem leu ou ouviu os textos conciliares entendeu-os dentro da sua cultura.

    Hoje ns lemos os textos conciliares a partir de outra cultura, e, por conseguinte, as palavras revestem outro sentido, tm outro alcance. Por exemplo, estamos numa cultura que pratica a crtica histrica e a cultura literria. Muitos argumentos que pareciam gerar a evidncia naquele tempo, j no nos parecem to evidentes. A crtica bblica descobre tanta influncia dos diversos estados da cultura ocidental nas leituras feitas no passado... Esta crtica muda constantemente a nossa maneira de entender a Bblia. Da mesma maneira os textos conciliares passam por etapas de leitura diferentes.

    A Dominus Jesus quer situar a doutrina crist alm de qualquer relativismo. Esta ficaria totalmente independente da histria. Esta preocupao tem a vantagem de tranqilizar os crentes e se entende muito bem que essa seja a preocupao da Congregao da Doutrina da F. No entanto, sucede que, em Jesus, Deus quis entrar na histria e por conseguinte submeter-se a todas as dependncias da histria. Jesus situou Deus num ponto determinado da histria e do mundo. No podemos no entende-lo sem levar em conta todas as distncias culturais que h entre ns e ele. Isto nos quita a tranqilidade, mas ao entrar na nossa histria parece que Deus no deu prioridade nossa tranqilidade. Entrar na histria entrar na relatividade. No meio dessa relatividade, o que a revelao de Deus? Eis o problema.

    8. No que diz respeito ao dilogo com outras religies, a questo : como evitar qualquer

    atitude de superioridade ou de prepotncia na exposio da doutrina catlica? Deixemos de lado todos os preconceitos que procedem da coluso entre a misso crist e

    a expanso colonial da Europa e dos Estados Unidos. Este problema no teolgico. Trata-se aqui da doutrina.

    Em primeiro lugar, o fato de se apresentar como um imenso conjunto coerente em que tudo se deve aceitar sem restrio para que algum possa ser reconhecido como membro da Igreja, no deixa de impressionar. O Catecismo da Igreja catlica tem 641 paginas de texto e 2865 pargrafos. Nenhuma religio tem um corpus to completo, minucioso em que a vida toda est determinada e todos os casos esto previstos. Somente isto j pode ser interpretado com o sinal de prepotncia.

    Ser melhor esconder esse livro por um longo tempo. Por outro lado, no se pode tomar a atitude de quem sabe tudo sobre Deus. Tratando-se de Deus, bom lembrar o que diziam os telogos antigos: de Deus sabemos mais o que ele no do que o que ele realmente . Deus permanece alm de todos os conceitos. Para apresentar a mensagem crist melhor partir dos atos de Jesus.