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107 RESUMO Rev. Sociol. Polít. , Curitiba, 16, p. 107-122, jun. 2001 PLANEJAMENTO URBANO EM CURITIBA: SABER TÉCNICO, CLASSIFICAÇÃO DOS CITADINOS E PARTILHA DA CIDADE 1 O presente trabalho investiga o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU) instituído em 1965, matriz do Plano Diretor que transformou o espaço urbano de Curitiba na década de 70. A análise focaliza o discurso técnico e seu procedimento de classificação do espaço e da população da cidade. O saber técnico articulou-se fortemente às estratégias de divisão desigual do espaço e orientação diferenciada das políticas urbanas. Essa articulação pode ser constatada ao analisarmos a argumentação técnica mobilizada no PPU para definir a localização dos eixos estruturais, cujo efeito foi atribuir um valor suplementar a espaços já valorizados e formar um estoque para expansão seletiva do centro da cidade. PALAVRAS-CHAVE: Curitiba; urbanismo; política urbana; planejamento urbano; saber e poder; discurso. Nelson Rosário de Souza Universidade Federal do Paraná I. INTRODUÇÃO Curitiba é a capital do estado do Paraná e conta com aproximadamente 1 500 000 habitantes. É uma cidade acostumada aos movimentos de expansão populacional. Depois de um fluxo migratório de europeus no final do século XIX e início do século XX, a cidade vem recebendo, desde a década de 1950, um grande número de migrantes vindos do interior do Paraná e de outras regiões do Brasil, resultado da industrialização urbana e da modernização agrícola. Ainda hoje Curitiba segue um ritmo de crescimento populacio- nal alto. O crescimento da capital paranaense combina-se, agora, com um vertiginoso avanço demográfico dos municípios que lhe fazem fronteira (ULTRAMARI & MOURA, 1994; KLEINLE et al., 2000). Ao que tudo indica, trata- se de um crescimento paralelo e articulado entre núcleo urbano e região metropolitana. A capital parece selecionar seus migrantes, reservando a Região Metropolitana de Curitiba (RMC) como espaço para as classes populares, enquanto privile- gia o recebimento das camadas médias e altas dos novos migrantes. Essa seleção não natural de fluxos migratórios tem, conforme será explicitado neste artigo, seu ponto de partida nas transforma- ções urbanas planejadas e experimentadas pela cidade na década de 70, quando foram executadas as principais diretrizes do Plano Preliminar de Urbanismo (PPU) 2 . A modernização urbana de Curitiba se fez num contexto nacional de ascensão das forças burocrático-militares e de fortalecimento da ideolo- gia do planejamento racional e, especialmente, da crença no poder da Arquitetura e do Urbanismo no ordenamento do espaço e na (trans)formação do comportamento das camadas mais pobres da população. O presente estudo propõe analisar os pro- cedimentos e instrumentos do urbanismo curiti- 1 Artigo originalmente apresentado na sessão “Investimento público e produção do espaço” durante o Simpósio Cidade e poder, realizado entre 23 e 24 de abril de 2001 na Universidade Federal do Paraná, promovido pela Revista de Sociologia e Política e pelo Grupo de Estudos Cidade, Poder e Sociedade. A realização deste trabalho contou com o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPR. 2 Plano elaborado em 1965 pela empresa Serete associada ao escritório do urbanista Jorge Wilheim, ambos de São Paulo. Este plano, com poucas modificações, virou Plano Diretor (PD) e foi executado pelo IPPUC.

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RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 16, p. 107-122, jun. 2001

PLANEJAMENTO URBANO EM CURITIBA:SABER TÉCNICO, CLASSIFICAÇÃO DOS

CITADINOS E PARTILHA DA CIDADE1

O presente trabalho investiga o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU) instituído em 1965, matriz do PlanoDiretor que transformou o espaço urbano de Curitiba na década de 70. A análise focaliza o discurso técnicoe seu procedimento de classificação do espaço e da população da cidade. O saber técnico articulou-sefortemente às estratégias de divisão desigual do espaço e orientação diferenciada das políticas urbanas.Essa articulação pode ser constatada ao analisarmos a argumentação técnica mobilizada no PPU paradefinir a localização dos eixos estruturais, cujo efeito foi atribuir um valor suplementar a espaços jávalorizados e formar um estoque para expansão seletiva do centro da cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Curitiba; urbanismo; política urbana; planejamento urbano; saber e poder; discurso.

Nelson Rosário de SouzaUniversidade Federal do Paraná

I. INTRODUÇÃO

Curitiba é a capital do estado do Paraná e contacom aproximadamente 1 500 000 habitantes. Éuma cidade acostumada aos movimentos deexpansão populacional. Depois de um fluxomigratório de europeus no final do século XIX einício do século XX, a cidade vem recebendo,desde a década de 1950, um grande número demigrantes vindos do interior do Paraná e de outrasregiões do Brasil, resultado da industrializaçãourbana e da modernização agrícola. Ainda hojeCuritiba segue um ritmo de crescimento populacio-nal alto. O crescimento da capital paranaensecombina-se, agora, com um vertiginoso avançodemográfico dos municípios que lhe fazemfronteira (ULTRAMARI & MOURA, 1994;KLEINLE et al., 2000). Ao que tudo indica, trata-se de um crescimento paralelo e articulado entrenúcleo urbano e região metropolitana. A capital

parece selecionar seus migrantes, reservando aRegião Metropolitana de Curitiba (RMC) comoespaço para as classes populares, enquanto privile-gia o recebimento das camadas médias e altas dosnovos migrantes. Essa seleção não natural defluxos migratórios tem, conforme será explicitadoneste artigo, seu ponto de partida nas transforma-ções urbanas planejadas e experimentadas pelacidade na década de 70, quando foram executadasas principais diretrizes do Plano Preliminar deUrbanismo (PPU)2 .

A modernização urbana de Curitiba se fez numcontexto nacional de ascensão das forçasburocrático-militares e de fortalecimento da ideolo-gia do planejamento racional e, especialmente, dacrença no poder da Arquitetura e do Urbanismono ordenamento do espaço e na (trans)formaçãodo comportamento das camadas mais pobres dapopulação.

O presente estudo propõe analisar os pro-cedimentos e instrumentos do urbanismo curiti-

1 Artigo originalmente apresentado na sessão “Investimentopúblico e produção do espaço” durante o Simpósio Cidade epoder, realizado entre 23 e 24 de abril de 2001 na UniversidadeFederal do Paraná, promovido pela Revista de Sociologia ePolítica e pelo Grupo de Estudos Cidade, Poder e Sociedade. Arealização deste trabalho contou com o apoio da Pró-Reitoriade Pesquisa e Pós-Graduação da UFPR.

2 Plano elaborado em 1965 pela empresa Serete associadaao escritório do urbanista Jorge Wilheim, ambos de SãoPaulo. Este plano, com poucas modificações, virou PlanoDiretor (PD) e foi executado pelo IPPUC.

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bano3 e como ele foi construído como empreendi-mento discursivo estratégico para a divisão doespaço da cidade e para a codificação dos novosfluxos populacionais, suas experiências e relações.A pergunta que orienta este artigo é: quais catego-rias de análise e intervenção o urbanismo curitiba-no mobilizou e como elas operaram estrategica-mente no desenho do perfil da população e nadistribuição e valorização dos espaços da cidade?Ou seja, qual o significado político da açãodiscursiva e das intervenções a ela articuladas?Enfim, por que certas “verdades” urbanas foramconstruídas?

Para responder às questões acima elaboradas,o foco recairá sobre o PPU, especialmente na suaargumentação “técnica” a respeito da localizaçãodos eixos estruturais e a propósito da sua importân-cia para a cidade e seus habitantes. O PPU é ricoem detalhes quanto à decisão sobre onde desenharos eixos. Argumentos sobre a organicidade do todourbano são agrupados lado a lado a diagnósticossobre a população curitibana e a vocação da cidade.Nas fendas do discurso técnico emerge com vigoro conteúdo político das decisões tomadas.

II. A REFERÊNCIA MODERNISTA

Não é difícil perceber a forte influência dealguns princípios do urbanismo modernista no pla-nejamento urbano de Curitiba. A divisão da cidadeem zonas funcionais excludentes, a transformaçãode ruas em avenidas, a hierarquização do sistemaviário, a construção da cidade como todo orgânicoa ser equilibrado e a conseqüente classificação dapopulação segundo “necessidades” identificadaspela razão técnica inspirada num conceito de ho-mem universal, são procedimentos típicos do urba-nismo modernista adotados pelos planejadores dacapital paranaense. Também é característico dotraço modernista a aposta no planejamento globalcomo empreendimento capaz de superar as contra-dições sociais a partir tão-somente da redefiniçãodo espaço.

É duplamente interessante analisar o urbanismomodernista praticado em Curitiba nos anos 60 e

70 do século passado. Primeiro porque hoje o po-der público municipal, ainda sob o comando dosprotagonistas das reformas urbanas idealizadasnaquele período, fez aprovar uma nova lei dezoneamento que redefine as prioridades dadas ini-cialmente aos eixos estruturais e de quebra ressigni-fica a rodovia BR-1164 em seu trecho que atraves-sa a cidade. O interesse se completa quando perce-bemos que no campo do urbanismo estamosvivendo, depois de um declínio do urbanismo deplano, uma revalorização do “planejamentoestratégico” com vistas a produção de uma “ima-gem da cidade” vendável no mercado globalizado(ARANTES, 2000; SÁNCHEZ, 2001). Investigaro discurso técnico articulado às grandes interven-ções urbanas da Curitiba dos anos 1970 podecontribuir para as análises sobre as rupturas, conti-nuidades e reviravoltas das recentes políticas urba-nas implementadas na cidade.

Ainda que o urbanismo modernista tenha secaracterizado inicialmente como um movimentode vanguarda na luta pela retomada do espaçourbano pelo poder público contra o caos geradopelo mercado nas grandes cidades, é sabido queos fundamentos desse tipo de planejamento e aspráticas a ele associadas são contraditórios. Énotório que as vanguardas urbanistas foram facil-mente assimiladas pelo capitalismo e instituciona-lizadas. O debate atual apenas questiona se estefoi um mal de origem ou um desvio de percurso(ARANTES, 1998). O urbanismo de plano foi,para dizer pouco, absorvido pelas forças produti-vas vigentes. O impulso inicial de denúncia do caosprovocado pela máquina, presente, por exemplo,em Le Corbusier, resultou no seu avesso: umadefesa da configuração funcional maquinista doespaço urbano. Os problemas típicos da cidadeindustrial foram deslocados e não ultrapassadospelas intervenções urbanas modernistas.

Ao eleger a racionalidade técnica urbanísticacomo único instrumento capaz de superar ascontradições capitalistas, inclusive a divisão dasociedade em classes, o urbanismo modernistarevelou-se utópico. A utopia de gerar uma igualda-de social a partir do planejamento urbano, sem a

3 O uso desta designação não objetiva sugerir a existência deuma escola de urbanismo ou de um modelo de ação urbanatípicos de Curitiba. “Urbanismo curitibano”, neste caso,designa apenas o conjunto de intervenções planejadas queCuritiba vem experimentando há trinta anos, elaboradas eexecutadas pelo mesmo grupo de urbanistas.

4 À época do PPU a BR-116 era denominada BR-2. Paramaior clareza faremos referência à rodovia apenas comoBR-116. Nos mapas do PPU (reproduzidos neste artigo) aBR-116 está representada por uma linha escura e transversalà cidade no sentido nordeste-sul.

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necessidade de transformar o modo de produção,ou sequer mexer no regime da propriedade privada,dinamizou, em muitos casos, uma engrenagem au-toritária. No contexto de valorização da raciona-lidade técnica o agente urbanista apareceu comoautoridade acima dos conflitos e da sociedadepolítica, uma vez que se apresentou como portadorda verdade única sobre a cidade e seus habitantes.

A perspectiva adotada neste artigo visualiza acidade como espaço de conflito, onde, a busca da“verdade” urbana, ainda que se revista de umaaparente neutralidade técnica, é procedimento depoder. A história do Urbanismo aponta a estreitarelação entre a delimitação do objeto dessadisciplina, a construção científica dos problemasurbanos e a preocupação dos reformadores sociaisem ordenar o caos, normalizar os comportamen-tos das classes populares, enfim, constituir traba-lhadores sedentários, disciplinados, comprometi-dos com o processo produtivo e com o mercado.A articulação entre reforma urbana e questão socialsignificou, antes de mais nada, uma nova páginanas relações de força, pois disseminou no espaçoda cidade o poder normativo (TOPALOV, 1996).

A crítica ao urbanismo modernista exige ainversão do seu percurso. Tal procedimentopermite perceber que o indivíduo e suasnecessidades não são pré-existentes ao olhartécnico. Os urbanistas, influenciados peloliberalismo, é que incorporam esta leitura. O sujeitode necessidades é uma construção da economiapolítica, fundamental para a sociedade de consumo(FOURQUET, 1973). Baudrillard, numa análisecrítica, procura dissolver os vínculos arbitráriose naturalizados do tipo: “o lazer é uma função danecessidade de lazer”. Em resumo ele diz: “[...] ohomem não está postado num ponto de partida,com suas necessidades e condenado pela Naturezaa se completar enquanto Homem” (BAU-DRILLARD, 1969, p. 67). Para ele essa proposiçãodefine uma “função indivíduo” e cria o mito funcio-nal que anima o consumo e, porque não dizer, ourbanismo modernista. Dreyfus, abordando omesmo tema, vai além e afirma que o urbanismo,a partir das idéias de necessidade e função, tendea construir um espaço para uma “civilização deconsumidores” (DREYFUS, 1976, p. 40). Não éingênuo o procedimento de classificar a populaçãosegundo suas necessidades e em relação àsnecessidades naturais da cidade, ambas tomadascomo objetos pré-dados. Trata-se de uma práticacujo fim é determinar o tipo de equipamento, sua

função e localização no espaço urbano segundoas “necessidades” dos diferentes habitantesconstruídas a partir do olhar “tecnocêntrico” dourbanista.

Equipamentos urbanos planejados devem serentendidos como equipamentos de poder, poisatuam dividindo certos espaços, integrando,combinando ou bloqueando outros, reforçando ashierarquias sociais e normalizando comportamen-tos. Os equipamentos distribuídos na cidade, apartir de estudos técnicos rigorosos, codificamos fluxos, regulam as exclusões, ou inclusõesparciais, dos diferentes habitantes urbanos diantedos múltiplos espaços. Os lugares urbanosadquirem significados renovados pela determinaçãoprévia das suas formas e usos gerada na e pelaintervenção técnica. Da perspectiva do urbanismomodernista, dar sentido aos espaços é tarefafortemente articulada à classificação dos usuáriossegundo o perfil e a necessidade de cada grupo.O desenho em relevo das “carências” coletivas sefaz sobre o fundo idealizado de um urbano tota-lizado e em movimento evolutivo. Os equipamentosurbanos cuidadosamente planejados e distribuídosna cidade expressam, e ao mesmo tempo atuamsobre, o jogo de forças pela apropriação dos bensurbanos de ordem material e simbólica, ainda queapresentem uma aparência de simplesinstrumentos funcionais da vida na cidade.

No momento da irrupção dos equipamentosurbanos, não se encontra uma função e sim umembate de forças. É preciso ter clara essaafirmação, pois o discurso do planejamento urbanocostuma inverter os elementos e acaba tomando afunção (efeito) pela origem e, como conseqüência,pela explicação. Partindo-se das funções que ourbanismo modernista associa à cidade: habitar,trabalhar, circular, recrear, educar, praticaresportes, usufruir a natureza, é comum tomar osequipamentos coletivos (sistemas viários e detransporte, escolas, parques, hospitais, praças) pormáquinas que concretizariam as “necessidades”associadas àquelas funções. O urbanismo daria“forma” a uma cidade orgânica, ou a uma totalidademecânica, maquinal. Ou seja, o funcionamentoequilibrado do todo urbano daria vazão àsdemandas inscritas na ordem social e em cadauma das suas partes. No centro das funções estariao sujeito humano que daria fundamento a essaracionalização (FOURQUET, 1973). O vetor dourbanismo é esse sujeito de necessidades naturaisque precisariam ser preenchidas pelo consumo:

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de linhas de circulação, de espaço verde, de tempolivre etc.5

Da ótica do urbanismo modernista, a satisfaçãofuncional das necessidades pelo bom ordenamentourbano é que geraria a igualdade, não comoresultado do conflito político ou bélico, mas comoefeito da racionalidade planejadora.

Ocorre que o urbanismo modernista, ao elegera razão técnica como único critério válido para oordenamento do espaço urbano, critério externo eacima da luta política, bloqueia a possibilidade deuma sociabilidade marcada pela autonomia e pelolivre jogo de forças no espaço público. Ao construira cidade como todo orgânico ou maquinal e asnecessidades como dados naturais o urbanismomodernista nega autonomia ao diferente na justamedida em que o coloca numa posição hierarqui-camente inferior e dependente da integração aomodelo de igualdade, qual seja: o urbano funcional.A grade funcionalista, típica do urbanismomodernista, impede o conflito a partir do diferente,caçando-lhe a palavra ao constitui-lo como resí-duo. O urbanismo inscreve-se na vontade de racio-nalidade e poder autoinstituindo-se como a “ordemem si” elevada à classe de necessidade. O sucessodesta operação coloca o saber técnico como fontelegítima e exclusiva da solução dos conflitos e ourbanista como juiz incontestável da nova ordem.Nesse jogo a técnica aparece apenas como meioque viabilizaria a realização das necessidades e dafelicidade numa sociedade perfeita porque deespaço racionalmente planejado. Concretamente,a construção da cidade como todo orgânicocoloca em marcha a engrenagem que combinasaberes e práticas promovendo a legitimidade deuma partilha urbana desigual e a normalização docomportamento de sujeitos sujeitados6 . Os proce-dimentos do urbanismo modernista bloqueiam a

possibilidade do cidadão tomar parte na construçãoda sociedade. O máximo de participação da socie-dade, que o saber técnico modernista costumaadmitir, está em referendar as decisões tomadas apartir de critérios “racionais” indiscutíveis.

Dizer que o planejamento urbano em Curitibasofreu influência do urbanismo modernista nãosignifica apostar numa incorporação perfeita dosegundo pelo primeiro. Parece mais prudente ecoerente pensar em termos de uma inspiração queconduz a adaptações de categorias e procedimen-tos, cujos efeitos precisam ser cuidadosamenteavaliados, pois estão estreitamente associados àsconfigurações próprias do momento, do lugar, dasforças e dos agentes envolvidos. Sendo assim, aanálise da concepção dos eixos estruturais esperaexplicitar a construção de uma partilha desigualdo espaço urbano em Curitiba e os mecanismosda sua reprodução. O estudo contribui tambémpara percepção das adaptações e transferênciasempreendidas pelos urbanistas brasileiros a partirda matriz modernista e diante das experiências econfigurações de poder locais.

Vejamos então como o urbanismo de plano,no caso de Curitiba, articulou estrategicamente aconstrução dos problemas e necessidades da“população” (classificada, caso a caso, a partirdo que tinha de “igual” ou “diferente” em relaçãoao modelo de cidade orgânica) com a partilhadesigual do espaço e a idéia de “bom” funcio-namento e desenvolvimento urbano.

III. A CLASSIFICAÇÃO ESTRATÉGICA DOESPAÇO E DA POPULAÇÃO

O PPU foi um plano global cujo objetivo erauma total reordenação da cidade capaz demodernizá-la e prepará-la para o desenvolvimentoeconômico. Do conjunto dos seus procedimentosdestacaremos a construção discursiva a propósitodos chamados “eixos estruturais lineares” e sualocalização. Os eixos estruturais foram concebidose posteriormente implantados como linhas quecombinariam o tripé integrado: sistema viário,transporte de massa e uso do solo, de modo aviabilizar, segundo os urbanistas, o desenvolvi-mento ordenado da cidade (ver foto abaixo). Esseseixos são dois: o nordeste-sudoeste foi implantadoprimeiro, é o mais longo; o leste-oeste era, na suaorigem, mais curto, sofria uma interrupção quandoencontrava a BR-116 (ambos estão destacados emcinza claro no Mapa 1, “Proposta de esquemaviário” do PPU, reproduzido a seguir).

5 Foucault fez uma interessante análise do desbloqueio da“arte de governar”, ou, da articulação entre soberania,disciplina e gestão governamental a partir da emergência dos“problemas de população” e da própria população como“sujeito de necessidades” (FOUCAULT, 1979, cap. XVII).

6 Dado os limites deste artigo a análise aqui apresentadaenfatizará a relação do discurso técnico urbanista com apartilha desigual do espaço. Para um estudo sobre urbanismoe normalização do comportamento em Curitiba, ver Souza(1999). Análises históricas e teóricas do tema urbanismo enormalização podem ser encontradas em Topalov (1996),Dreyfus (1976) e Fourquet (1973).

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O PPU é um documento representativo daracionalidade urbanística e da relação entreplanejamento do espaço e governo da populaçãoem Curitiba. Planejar, aos olhos dos técnicos doPPU, significava diagnosticar as necessidades edisfunções da cidade e de sua população a partirde uma razão orientada para construção de umaespaço universal para um homem abstrato. Talempreendimento solicitou pensar a cidade comotodo orgânico e sua população como sujeito capaz,ou não, de operar o bom funcionamento do corpourbano.

Na suas primeiras páginas o PPU busca traçarum perfil positivo do seu objeto: a população urbana

de Curitiba. O estudo afirma que a origem damaioria dos seus migrantes é o sul do Brasil(europeu e rico). A base de dados é o cadastro doTRE (segundo o PPU as informações do IBGEnão seriam confiáveis), o que significa que analfa-betos, não-eleitores e re-imigrados, ou seja, ospobres, estavam excluídos desta representação.O próprio texto do PPU reconhece os limites daamostra, mas ameniza o problema, com argumen-tos interessantes: “[...] o eleitor tende a ser dascamadas sociais mais altas, e assim deixando deser representada a população de camadas maisbaixas. Isto em parte é contrabalançado pelo altoíndice de alfabetização dos habitantes da RegiãoSul do país, e que constituem a maior parte dosimigrantes” (PMC,1965, p. 12).

A argumentação desencadeia um ciclo vicioso:os pobres (na maioria analfabetos) podem não estarrepresentados nos dados, mas os mesmos dados“revelariam” que a maioria vem do sul onde oanalfabetismo seria baixo, o que validaria os dados.Bem, se os dados do IBGE não são confiáveis ese os números do TRE não incluem pobres,analfabetos e re-emigrados, como afirmar que osimigrantes do sul são a maioria? E, principalmente,por quê? A idéia de maioria aqui é fundamental,pois permite classificar pobres, analfabetos,negros, nordesti-nos – enfim, “outros” – comominoria não relevante para o planejamento dosinvestimentos urbanos.

O principal objetivo do PPU era dotar racional-mente a cidade dos atributos técnicos e espaciaisnecessários ao progresso econômico. Para tanto,o olhar urbanista construiu as dificuldades como“residuais”, momentâneas e recentes, em oposiçãoao duradouro, essencial e natural, capaz de indicaras potencialidades de Curitiba. A população pobre,habitante de uma região insalubre, foi representadacomo insignificante em termos estatísticos e tor-nou-se invisível para o planejamento.

No jogo de classificação do espaço e da popu-lação para determinar o potencial da cidade ostécnicos construíram uma história da cidade naqual aparece em primeiro plano a população deorigem européia e o processo da sua integraçãosocial, econômica e espacial. Essa históriaapontaria a direção “saudável” do crescimentourbano (o sentido longitudinal sudoeste-nordeste)e confirmaria os espaços passíveis de inves-timento. Os imigrantes pobres e recém-chegadossão apresentados como minoria que precisa

Fotografia 1: Vista do sistema de transporte trinário - sentidonordeste.

Mapa 1 - Proposta de esquema viário - PPU

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adaptar-se ao meio urbano civilizado e cujo espaçoé problemático.

A ocupação urbana empreendida pelosmigrantes europeus teria sido saudável, pois teriapropiciado, segundo o PPU, “um desenvolvimentorelativamente contínuo, centrífugo e homogêneo”(PMC, 1965, p. 81); e teria, ainda, limitado a“especulação terrenista”, o “parcelamento emlotes” e os loteamentos clandestinos, resultado deuma recente “migração de nacionais”. Umaocupação urbana racional por uma populaçãosaudável teria feito de Curitiba, até pouco tempo,uma cidade orgânica. O planejamento deveriapautar-se pela recuperação dessa condição deequilíbrio propiciada pelos colonizadoresportugueses e imigrantes estrangeiros.

É interessante perceber, aqui, o procedimentode construção do perfil da população em relaçãoao espaço a ser valorizado. Após relacionar o tipode população à forma de ocupar o solo e ao caráterorgânico da cidade, o texto do PPU informa que odesequilíbrio de Curitiba começou após a SegundaGuerra, com as transformações econômicas dopaís e “[...] uma certa imigração, especialmentede nacionais [...]. Comparece então, com muitomaior vigor o mecanismo do loteamento [...], semcontrole do poder público. Tal fenômeno ocorreuespecialmente no setor sul, mais plano de menorvalor comercial, em virtude das freqüentesinundações da baixada [...]. Em decorrência destaatividade comercial indisciplinada, a ocupação dosolo deu-se parcialmente em terrenos de difícildrenagem e de serviços públicos onerosos” (PMC,1965, p. 81; grifos do autor).

Uma determinada conjuntura teria levado,então, ao aparecimento do “outro”. Segundo osurbanistas do PPU, a “migração de nacionais”, suasdemandas combinadas com descontrole – leia-se,falta de planejamento racional por parte daadministração municipal – teria sido responsávelpela ocupação indisciplinada do sul da cidade (paraalém da BR-116, especialmente do bairro doBoqueirão)7. Ainda que alguns vazios urbanos

tivessem sido preenchidos colaborando com odesenvolvimento orgânico da cidade (pois propi-ciaram a ligação do centro com os espaçosocupados pelos imigrantes europeus), a ocupaçãodescontrolada e exagerada em outros espaços,nitidamente pelos imigrantes nacionais, teria geradodesvios inorgânicos. É nítida a inversão hierár-quica promovida pelo PPU, a especulação imo-biliária na periferia aparece como mais importantena conformação do espaço urbano do que aquelapresente nos terrenos mais valorizados e centrais.As ocupações urbanas “desordenadas” em regiõesde baixo custo imobiliário emergem no discursotécnico como causa e não como efeito dos dese-quilíbrios da cidade. De todo modo, o texto doPPU é contraditório ao apontar a gravidade dosproblemas gerados pela ocupação da região ao sulda BR-116 e, ao mesmo tempo, classificar essefenômeno como insignificante em relação ao todourbano. O discurso técnico funciona estrategica-mente como instrumento no jogo de forças urbanoao anunciar tensões como essas sem as enfrentar.

Os técnicos que analisaram a situação do bairrodo Boqueirão pouco estavam interessados nasolução dos problemas que a população aliinstalada vivenciava8. Se para os “migrantesnacionais” a ocupação do bairro foi a soluçãoencontrada no enfrentamento da competiçãodesigual no meio urbano, para o olhar técnico talocupação era o problema. Aos urbanistas couberecomendar um não investimento naquele local eindicar quais áreas deveriam ser valorizadas porsuas qualidades “naturais”, “históricas” e,principalmente, por motivos técnicos. Ou seja, foifundamental para o projeto de reforma urbana aconstrução discursiva de um lugar como o avesso,ou o negativo, do espaço planejado e capaz delegitimá-lo por meio de contraste. Em meados dadécada de 60, quando da elaboração do PPU, oBoqueirão foi constituído como oposto da ordemracional planejada e, ao mesmo tempo, natural.

7 O Boqueirão é um bairro de Curitiba localizado ao sul darodovia BR-116, ver Mapa 1, “Proposta de esquema viário– PPU”, acima. Quando da confecção do PPU ele ainda nãoestava subdividido. Trata-se de um bairro ocupadoprincipalmente nos anos 50 e 60, sendo uma região alagadiça,os preços baixos dos lotes atraíram os imigrantes de baixarenda.

8 Esse procedimento perpetuou-se na administração domunicípio pelos urbanistas. Não por acaso as associações demoradores, ao oporem-se ao projeto de desfavelamentoapresentado pelo Prefeito Jaime Lerner em 1980,questionaram a recusa da administração municipal em utilizarrecursos técnicos para tornar salubres espaços considerados“insalubres” pelos urbanistas e ocupados por favelas (OSBAIRROS DEVERIAM, 1980).

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Os técnicos esforçaram-se, então, para distin-guir o que era saudável do que era prejudicial aofuturo da cidade, e os critérios de avaliação foramexpostos no PPU: “Se compararmos qualquerprancha gráfica de serviço público com alocalização de edificações e de loteamentos,perceber-se-á terem as redes permanecido agrosso modo na direção sudoeste-nordeste,enquanto os loteamentos levaram os limites da zonaurbana abranger vastas glebas ao sul, a sudeste ea leste do setor urbano contínuo. Desejaríamosinsistir no caráter inorgânico desta ampliação deCuritiba” (PMC, 1965, p. 81-82; grifos do autor).

A restrição dos serviços públicos a certosespaços não é apresentada, é claro, como sinal dediscriminação, mas como evidência de que onatural, o saudável, é o investimento em direçãoàs regiões sudoeste e nordeste e em suas popula-ções. O contínuo é sinônimo de orgânico. A dis-persão aparece como dado inorgânico e residual,ainda que em “expansão exagerada”, pois teria sidogerada pela indisciplina administrativa e pelo perfilnegativo da população.

A lógica do plano leva a mútua determinaçãoentre espaço e população, pois a valorização do“lugar” pelos investimentos públicos está associa-da à classificação dos seus usuários concretos oupotenciais. A realização do valor nas áreasinvestidas pelo planejamento depende também docontrole daqueles que podem atuar para suadesvalorização.

IV. A DENSIDADE COMO CATEGORIA-CHAVE

Segundo o PPU Curitiba teve sua ocupaçãourbana marcada pela “dispersão” e pela “tendêncialongitudinal” em relação à BR-116 (linha sudoeste-nordeste). Esses dois aspectos adquirem umagrande importância ao longo do PPU e formam abase das proposições e da execução do plano. Adinâmica do plano, a sua lógica, dá-se pelapolarização dos dois elementos acima citados. A“tendência longitudinal” aparece como pólopositivo, elemento a ser valorizado, é celebradapelos técnicos da administração municipal como“vocação”, como evolução “natural” e ao mesmotempo racional. A “tendência longitudinal” surgecomo o lado de dentro. Por outro lado, a “ocupa-ção extensiva” (a dispersão da população) seráapreendida como pólo negativo, algo a ser corri-gido e ordenado, o lado de fora.

Associada à polarização acima indicada aparece

a concepção de densidade. No PPU a densidade éentendida como meio capaz de viabilizar oplanejamento urbano quando alta e inviabilizá-loquando baixa. A adequação da densidade é o fim aser alcançado pelo próprio planejamento. A açãoracional corrigiria a densidade baixa e geraria odesenvolvimento orgânico da cidade. Só a altadensidade viabilizaria economicamente os investi-mentos públicos em infra-estrutura e serviços.Caracterizar as áreas de dispersão será uma dastarefas dos urbanistas. Bairros como o Boqueirão,pela intensidade da sua dispersão, pelo perfil dosseus habitantes, pela ocupação recente e pelascaracterísticas “naturais” do seu terreno, nãoaparecem como áreas prioritárias para os investi-mentos da administração, sendo construídos comoo lado de fora.

Para auferir o grau de dispersão o PPU lançamão, estrategicamente, do critério da densidade.A área de maior densidade em Curitiba no anos1960 era a central e suas adjacências, onde seconcentravam as habitações da elite. As classespopulares estavam dispersas nos bairros. Ao elegera densidade como critério de escolha para os inves-timentos públicos, seguindo a tradição modernistade urbanismo, o PPU reafirma a divisão do espaçoem duas cidades, ou melhor, entre o que estádentro e fora da fronteira urbana. A segmentaçãodo espaço, nesse caso, é correlata à diferenciaçãodos seus habitantes e à polarização entre tendêncialongitudinal e ocupação extensiva. Os técnicos doPPU fizeram um esforço extra de racionalidade,conforme veremos adiante, para tentar comprovar,a partir do critério de densidade, a vocação naturalda cidade para o crescimento linear nordeste-sudoeste.

O pólo positivo (tendência longitudinal), éimportante que se diga, precisava do negativo(ocupação extensiva) para viabilizá-lo9. Ao ladodo pólo positivo outros elementos de mesma cargaforam sendo aglutinados. A tendência longitudinalestaria de acordo com a vocação da cidade, a ren-tabilidade, as necessidades, o progresso, a quali-

9 Por isto não é de todo correto afirmar que o Boqueirão foidesprezado pelo PPU, como sugere por exemplo o estudo daFundação Cultural de Curitiba (FCC, 1995). Em rigor, elefoi desprezado enquanto possível alvo de investimentos evalorização e foi lembrado, como vimos, enquanto contra-exemplo, sem o qual seria mais difícil convencer sobre aplausibilidade do planejamento.

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desorganizariam o espaço. O esforço do PPUestava em associar uma imagem de vocaçãonatural de crescimento da cidade, construída nopassado, à racionalidade planejada empreendida nopresente e com vistas ao futuro. É interessanteperceber que a construção da cidade como todoorgânico abre caminho para a representação quecombina o “desenvolvimento” natural e racionaldo espaço e de sua população.

Ocorre que a articulação entre razão e natureza,ou a leitura racional da vocação natural da cidadetem como fundamento a luta pela apropriação evalorização do espaço urbano. A própria divisãodas UV não é arbitrária, segue a lógica da naturali-zação da tendência longitudinal, numa inversão na-da ingênua (ver mapa 2 “Densidade demográficapor unidade de vizinhança, 1964 – PPU”, abaixo).

Primeiro a BR-116 é tomada pelos técnicoscomo limite das unidades de vizinhança do nordesteao sudoeste. Ainda que seja usual tomar rodovias,linhas de trem ou rios como limites de unidadesespaciais, é preciso sublinhar o caráter político

0 a 5 hab/ha 6 a 10 hab/ha 11 a 30 hab/ha 31 a 50 hab/ha 51 a 75 hab/ha 76 a 150 hab/ha

dade de vida, o caráter orgânico, a preservaçãoda história, da natureza. Enfim, ela jogaria a favorda racionalidade técnica. Do outro lado fez-se oprocedimento inverso: junto à ocupação extensivaforam agregados traços negativos: o alto custo, oatraso, o caráter inorgânico, não-natural e irra-cional.

Tomar a tendência longitudinal como um dadonatural significou justamente abstrair a história doBoqueirão e a resistência dos seus moradores queconstruíram uma infra-estrutura urbana pratica-mente à revelia da administração municipal.Significou também ignorar a função de barreiraque o equipamento estrada tem lado a lado com afunção de ligação, ou melhor, o plano incorporoua função de barreira como algo positivo e elaboroua argumentação para que esse obstáculo não fossetransposto pela linearidade do planejamento10 . Aracionalidade técnica construiu, a partir desseprocedimento, certos espaços e indivíduos como“apêndices” do corpo saudável da cidade, e oBoqueirão é o exemplo mais acabado dessa obrada razão técnica.

No percurso de construção da tendência longi-tudinal como vocação da cidade fundada nadensidade, o PPU lançou mão da divisão do espaçourbano em unidades de vizinhança (UV). O recursopretendia medir a densidade nas diferentes áreasde Curitiba. A divisão, que foi enunciada comoarbitrária, na verdade teve um vetor, qual seja, aarticulação com a classificação dos espaços e seushabitantes. A mensuração da densidade objetivavarevelar o desenho inquestionável do progresso dacidade em poucos eixos lineares contra a supostadistorção das múltiplas expansões radiais que

10 A idéia de um eixo saindo do centro da cidade e seguindopela avenida Mal. Floriano Peixoto até o Boqueirão não éoriginal do PPU, foi introduzida no PD depois de muitascríticas de técnicos dissidentes e resistência dos habitantesdo bairro que, finalmente, viram sua existência reconhecida.Ainda assim o eixo implantado posteriormente, e que sequeraparece nos mapas do PPU, não é um eixo estrutural e simuma via coletora, basicamente de transporte coletivo. Nestecaso a legislação de uso do solo e a infra-estrutura não são asmesmas que acompanham os eixos estruturais. Ou seja, osinvestimentos em infra-estrutura, com capacidade devalorizar o solo, foram pequenos, no caso do Boqueirão, aopasso que os investimentos na normalização (leia-se:integração parcial-funcional) dos habitantes foi significativo,entre os quais o próprio eixo de transporte é um exemplo.Sobre esse tema ver Souza (1999).

Mapa 2 - Densidade demográfica por unidade de vizinhança,1964 - PPU

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das abordagens que buscam amparo nesses instru-mentos para não exprimir a continuidade de pro-cessos que ultrapassam as fronteiras tecnicamenteconcebidas.

No caso em foco, reafirma-se o princípio deque a estrada deve ser entendida como barreira.O bairro do Boqueirão, por sua vez, foi divididoem poucas e grandes UV. Duas delas sãosignificativas, pois margeiam a rodovia no pontomais próximo ao centro da cidade. Uma é a UV36, que se localiza entre a margem direita do RioBelém11 até a Avenida Mal. Floriano Peixoto; outra(a 35) abriga um quartel do exército cuja área nãofoi subtraída no cálculo da densidade. Ainda naregião sul outra UV (a 37) foi demarcada. A sepa-ração dessas UV daquelas estabelecidas do outrolado da BR-116 ilude porque minimiza a transpo-sição da estrada pelos habitantes em busca deterrenos mais baratos. A dimensão do recorteimpede a avaliação da densidade num desenhoperimetral ao centro no sentido sudeste. Comoagravante, os dados sobre densidade foram retira-dos do censo escolar. Significa que na faixa dasfamílias mais pobres, onde provavelmente muitascrianças estavam fora da escola, a densidade foisubavaliada.

No Mapa 2, “Densidade Demográfica por UVem 1964 – PPU” (acima) é apresentado somenteo núcleo central (UVs 0, 8 e 9) com densidadesuperior a 50 hab/ha. A seguir os urbanistasvisualizam uma faixa, a nordeste e a sudoeste, comdensidade entre 30 e 50 hab/ha12 . Ocorre que,seja pela assimilação da rodovia como barreira,seja pela critério utilizado para recortar cada UV,o que poderia ser tomado como faixa perimétricade crescimento a partir do centro é avaliado comotendência longitudinal sudoeste/nordeste. As UVs10, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 30 e 34, que pratica-mente contornavam o centro partindo do oeste e

indo até a BR-116, são aglutinadas sob o guarda-chuva de tendência longitudinal sudoeste. E as UVs1, 2, 3, 4 e 14 são assumidas como tendência lon-gitudinal nordeste. Acontece que a manchaformada por essas UVs poderia ser lida comoradial, caso o recorte das mesmas se combinassecom uma subdivisão das UVs 5, 6 e 7 (num novodesenho menos alongado e de menor tamanho),fechando um anel de densidade alta ao redor docentro13 . A nova mancha radial, não mais“longitudinal”, completar-se-ia com a UV 11, que,mesmo marcada por grandes equipamentos, tinhauma densidade entre 11 e 30 hab/ha. Nesse caso,o que aparece no PPU como tendência longitudinalda densidade e do crescimento viraria expansãoradial circular, seu reconhecimento implicariaagregar e não discriminar os espaços à sudeste daBR-116, onde estavam as classes populares. Aotornar a tendência radial do crescimento urbanoem Curitiba invisível, o PPU lança mão de novasferramentas estratégicas para reafirmar as velhasopções seletivas das políticas urbanas.

Uma segunda mancha de densidade entre 11 e30 hab/ha é estabelecida (UVs 5, 6, 7, 11, 12, 13,15 e 26) e, apesar de nitidamente circular, para ostécnicos do PPU ratifica a tendência longitudinalnordeste. Objetivando confirmar a tendêncialongitudinal sudoeste são agrupadas, nessasegunda mancha, as UVs 29, 31, 33 e 41. Comesse desenho os urbanistas tentam convencer quea vocação da cidade é o sentido longitudinalnordeste/sudoeste e que a ocupação do Boqueirãoé inorgânica. Sobre esse bairro o texto do PPUchega à seguinte conclusão: “Um apêndice queaté certo ponto contraria a tendência longitudinal,mas cuja densidade é inferior a 30 hab/ha, situa-se ao Sul e a Leste da BR-116” (PMC, 1965, p.23; grifos do autor).

Num desenho alternativo seria plausívelprolongar em forma circular (com o vértice nocentro da cidade) as linhas divisórias ao sul entreas UVs 34 e 33, 33 e 41 fazendo que atravessasseme dividissem em dois pontos as UVs 35, 36 e 37até se unirem ao limite entre as UV 22 e 38, 37 e46, respectivamente. Com novas UVs assim

11 No Mapa 2 “Densidade demográfica por UV em 1964”(acima) o Rio Belém é representado pela linha que, depoisde cruzar o centro da cidade, serve de limite entre as UVs 36e 37, 45 e 46 a partir da BR-116. A avenida Mal. FlorianoPeixoto está representada pela linha fronteiriça entre as UVs35 e 36, 44 e 45.

12 A própria divisão das faixas entre “11 a 30 hab/ha” e “31a 50 hab/ha” deixa muitas dúvidas e apresenta-se comoestratégica. As áreas próximas à rodovia, de um lado e deoutro, estariam quanto próximas ao limite de 30 hab/ha?Não formariam, neste caso, um todo homogêneo que aparecedividido?

13 O tamanho grande e o recorte afunilado em direção aocentro faz que essas UVs tenham suas densidades reduzidas.Suas pequenas áreas próximas ao centro são prejudicadaspelos vastos espaços distantes do centro e que pesamnegativamente no cálculo da densidade.

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recortadas o desenho gráfico, ao invés de segregaro Boqueirão e tomá-lo como um apêndice, estariaintegrando-o à região central da cidade. O novorecorte manteria para a segunda faixa uma homo-geneidade da densidade que tornaria evidente umatransposição do “obstáculo” BR-116 por umaparcela significativa da população – assim como abarreira da ferrovia e a forte presença de indústriase áreas públicas nas UVs 10, 11, 20, 21 não evitoua forte ocupação dessa área da primeira faixa, tam-bém subavaliada pelo PPU.

É interessante observar, ainda, como o recorteretangular das UV 36 e 37 ao sul da rodovia pro-duziu no olhar técnico uma leitura de disfunção,ao passo que o recorte idêntico das UV 14 e 26 anordeste valorizou as suas densidades e foi tomadocomo uma tendência saudável para o desenvol-vimento da cidade14 .

Enfim, a valoração técnica do recorte gráficodeveria corresponder, e efetivamente corres-pondeu, a uma valorização espacial em termos deinvestimentos públicos planejados e a uma leiturado perfil da população em relação ao seu espaço.Realizar a leitura alternativa das densidades a partirdas UV, o que fazia parte do horizonte naquelemomento na proposta do engenheiro e arquitetoOnaldo Pinto de Oliveira, significaria integrar aárea do Boqueirão e seus habitantes por meio datransposição da rodovia BR-116 de forma a superaro seu caráter de obstáculo.

Não se trata aqui, apenas, de revelar o quantoestava equivocada a leitura dos urbanistas apropósito de uma vocação de crescimentolongitudinal nordeste-sudoeste para a cidade deCuritiba. Isso pode ser facilmente confirmado peloMapa 3, “Evolução da ocupação urbana” (repro-duzido abaixo), que apresenta manchas radiais paracada período de ocupação, inclusive para 1966,momento em que foi elaborado o diagnóstico doPPU. O fundamental é explicar a mobilizaçãoestratégica, por parte dos urbanistas, de certosinstrumentos teóricos e de intervenção, que têmefeitos precisos no jogo de forças estabelecido ena partilha desigual do espaço urbano.

É necessário sublinhar como o conceito dedensidade, como substituição abstrata de experiên-cias concretas, está ligado a práticas de classifica-ção do espaço e da população. Ao mesmo tempo,a densidade, associada a outras “verdades”, servede critério para valorizar certos espaços e seushabitantes, o que significa desvalorizar outros, eaparece como elemento determinante do tipo deintervenção a ser empreendida pelos administra-dores.

O conceito de densidade adotado pelos urba-nistas do PPU contrapõe-se ao de aglomeração.Densidade é entendida como ocupação ordenadado espaço, possibilitando a circulação de ar, deje-tos, pessoas, e, instituindo um padrão urbano decomportamento desejável. É o oposto da aglomera-ção, vista como ajuntamento estagnado, que seproliferou no espaço pantanoso, de difícil drena-gem, às margens das águas lentas e poluídas doRio Belém que atravessam a morosidade da planícieao sul da BR-116. Espaço inorgânico que estariacontaminando os corpos com a preguiça e prejudi-cando a cidade pelo alto custo da sua reprodução.Ou, numa leitura inversa, mas com efeitos seme-lhantes, os corpos preguiçosos dos “migrantes na-cionais carentes” identificaram-se com este espaço

14 É importante registrar que o PPU apresentava dados so-bre o crescimento demográfico que revelavam a forte ocu-pação recente do Boqueirão, mas, neste caso, os técnicosreagruparam as UVs por Zonas e com isto minimizaram ocrescimento populacional ao sul da BR-116, especialmenteàs margens do Rio Belém. A esse respeito ver Souza (1999).

Mapa 3 - Evolução da ocupação urbana

EVO LU˙ ˆ O DAOCUPA˙ ˆ O URBANA

Legenda

1927 1938 1966 1985 1997

Fonte: IPPUC

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e ocuparam-no, o que representa uma influêncianegativa, por ter “violentado o desenvolvimentoorgânico (no sentido nordeste-sudoeste), levandoa cidade a estender-se aos saltos, em trechosdescontínuos” (PMC, 1965, p. 183).

O mesmo olhar tecnicamente modulado, queorganizou os dados de maneira a enunciar ainviabilidade dos investimentos públicos no Boquei-rão, foi usado para rebater as críticas daquelesque viam na principal avenida do bairro, a Mal.Floriano Peixoto, uma ligação natural de Curitibacom São José dos Pinhais e com o aeroporto.Wilheim conta com orgulho como encontrou aalternativa que sepultaria de vez a idéia de um eixoestrutural através do Boqueirão: “[...] as observa-ções locais me permitiram identificar certas coisasque as pessoas locais não enxergavam. Durantemuito tempo, nas reuniões com o grupo local deacompanhamento, eu falei da Avenida das Torres.Primeiro nada diziam, eu achava que não sabiamonde era e que, de repente, descobririam. De re-pente alguém ‘ousou’ perguntar: ‘mas Jorge, estaAvenida das Torres de que você tanto fala, ondeé?’ Disse: ‘é a avenida que está na frente do narizde vocês e que vocês não enxergam! Vocês têmuma ligação direto do aeroporto, em São José dosPinhais, até o centro de Curitiba. É área toda desa-propriada, existem só as torres [torres de trans-missão de eletricidade]: basta limpar e pavi-mentar’” (IPPUC, 1989-92, v. 5, p. 29).

Efetivamente a Avenida das Torres foi cons-truída e com isso se evitaram maiores investi-mentos no Boqueirão. A via estrutural implantadanesse bairro restringiu-se à função, hierarquica-mente inferior, de via coletora, como já assi-nalamos.

V. FALAS ELUCIDATIVAS

Uma comparação entre dois momentos discur-sivos parece ser bastante elucidativa da articulaçãoentre o saber técnico sobre o espaço e a populaçãocom vistas à definição das prioridades da políticaurbana. O primeiro aparece no próprio PPU, sobuma foto aérea a legenda aponta as característicasdo bairro do Boqueirão: trata-se de uma região“baixa, inundável e de solo inadequado paraconstruções. A oferta de terrenos loteados levouparte da população a ocupá-la, tornando inorgânicoo desenvolvimento da cidade. Recomenda-se nãoestimular novos loteamentos nesta região” (PMC,1965, p. 80; grifo do autor).

O segundo momento é mais recente. Numafala retrospectiva Wilheim explica melhor odiagnóstico sobre o Boqueirão elaborado pelo PPU:“Entre nós entendíamos que tudo deveria ser feitopara avançar a cidade, desenvolvê-la, a sudoeste:isto é, para não atravessar a rodovia e para nãoocupar o Boqueirão. As razões para tal erambastante sólidas. Ocupado, o Boqueirão seriadestinado a uma população carente – porque opreço da terra seria sempre baixo e não haveriainfra-estrutura, a não ser a um preço bastante alto[...]. Era isto, ou aquilo que propúnhamos: odesenvolvimento da cidade para Oeste e Sudoeste.Como, de fato, se fez” (IPPUC, 1989-92, v. 5, p.32; grifo do autor).

Primeiro é preciso registrar a mudança na formado discurso. O primeiro texto, extraído do PPU,apresenta um discurso técnico, impessoal, dirigidoaos técnicos. Nele está exposta a “racionalidade”da escolha que se justifica por si só. As “necessi-dades” ligadas à opção em pauta não precisamfundamentos que ultrapassem o terreno técnico.Já o depoimento de Wilheim, na forma de entre-vista, demonstra uma preocupação com o interlo-cutor e com o seu convencimento. Daí o uso daprimeira pessoa do plural e o recurso à organizaçãológica que só oferece uma saída (racional) paraquem defende o desenvolvimento. O texto técnicopôde abstrair os habitantes, não precisou adjetivarseus corpos, limitou-se à fórmula “parte dapopulação” que por forças externas teria sido leva-da ao erro de ocupar um espaço inadequado. Nodepoimento foi preciso qualificar os corpos como“carentes”, ainda que estrategicamente eles tenhamsido colocados numa posição fictícia pela fala queutiliza o verbo no condicional. De todo modo, olocutor estabelece um vínculo rígido entre o meioe o tipo da população, uma afinidade mútua entreas (im)possibilidades de ambos. “Carentes”, aocontrário do que possa parecer, significa nessecaso estar fora do campo das necessidades (legíti-mas/orgânicas) da comunidade. A forma mudado primeiro para o segundo discurso, mas o tompermaneceu o mesmo, sendo a segunda fala, pelassuas características, mais reveladora do que a pri-meira: aponta uma relação entre a “real” neces-sidade de desenvolvimento da cidade e a demanda“legítima” por investimento no espaço destinadoa uma população não carente.

O depoimento de Wilheim mostra uma condi-cionante que atua com força no urbanismo moder-nista: ordenar o espaço da cidade significa também

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determinar as áreas que devem ser valorizadasmonetariamente a partir de investimentos em infra-estrutura e que tenham a garantia de manutençãoe até de ampliação do seu valor. E o valor do espaçonão está associado apenas à sua topografia, mas,fundamentalmente, aos investimentos em equipa-mentos urbanos. Ocorre que a intensidade e a qua-lidade desses investimentos pela administraçãopública está diretamente ligada ao tipo de popula-ção que ocupa ou ocupará um determinado espaço.

Em resumo, o valor do solo, ao longo damodernidade capitalista, tem estado associado aoseu uso, não apenas à sua finalidade, mas,principalmente, a quem se destina. Daí ser impera-tivo para o urbanista determinar o perfil da popu-lação que faz ou fará uso do solo e os meios paragarantir a preservação do valor do espaço. Semquerer marcar uma evolução, é possível afirmarque a estratégia varia da aplicação de uma disciplinarepressiva, excludente, para táticas de formaçãoe “integração” parcial/funcional da população “ca-rente”. E para cada caso é possível investigar se aelite ocupou as melhores regiões como estratégiapara captar os investimentos públicos, ou se osinvestimentos públicos garantiram a valorizaçãode áreas reservadas à elite. Mas no final das contaso resultado da equação é o mesmo.

Um dos mecanismos para garantir a relaçãoentre valor do solo e perfil população é justamenteconstruir a tipologia dos habitantes da cidade demaneira a diferenciar aqueles que estão “aptos” aocupar regiões valorizadas ou valorizáveis e manteresse valor, daqueles que, em razão das suas“carências”, deverão passar por “processos deadaptação”, os quais se concretizam comocodificação de fluxos, como adequação dos cor-pos e/ou difusão do conformismo quanto ao lugar“natural” dos “carentes”.

Da perspectiva adotada pelo PPU o valor dosolo vincula-se, também, ao valor do habitante eeste defini-se em relação aos seus atributos préviose ao seu papel no processo evolutivo dodesenvolvimento da cidade (que pode aparecercom o nome de realização da “vocação” da cidadepara o progresso). Trata-se da prática de constituir,para cada caso, o que está dentro ou fora, oessencial e o residual, o igual e o diferente. A partirdo modelo abstrato de igualdade é feita aclassificação dos espaços e de seus habitantes esão planejados os procedimentos diferenciados earticulados de intervenção.

Não estando o diferente dentro da “comunidadeurbana” ordenada, não tem legitimidade para opinarou participar do processo de decisão sobre o cami-nho do desenvolvimento e da realização dessa mes-ma comunidade. A construção dos indivíduos co-mo recipientes de necessidades a serem preenchi-das limita seu potencial de sujeito do processopolítico. Ao ser constituído como “carente” pelosplanejadores urbanos o indivíduo sofre a restriçãona sua cidadania e é atingido por uma dose suple-mentar de discriminação e controle. O carente seráobjeto de políticas especiais adequadas à sua con-dição. As demandas dos “carentes” estão no extre-mo oposto daquelas dos proprietários na escalade “necessidades” elaboradas pelo urbanismo. Arazão técnica que objetiva alcançar o desenvolvi-mento só pode se pautar pelas necessidades dosproprietários, que são as necessidades da cidadeenquanto corpo saudável15 .

Enfim, é a lógica do urbanismo modernista queestá subjacente ao discurso de Wilheim na suaafirmação de que “razões” técnicas sólidas reco-mendavam que se fizesse “tudo” para não se inves-tir numa área a ser ocupada pela população “caren-te”. Diga-se, aliás, que a população já estava lá(ver Mapa 3, “Evolução da ocupação urbana”, aci-ma). O próprio diagnóstico do PPU apresentavaesse fato, que na entrevista de Wilheim é subvalo-rizado com a escolha do tempo verbal de sua fala.

É preciso acrescentar que, apesar de todo odiscurso valorizando uma “tendência” linear elongitudinal que discriminou o Boqueirão, ocrescimento da cidade permaneceu, em grandemedida, radial. Os eixos estruturais16 formaramum corredor de expansão do centro e ao mesmotempo geraram uma valorização e preservação doscírculos concêntricos historicamente reservadosà elite. Em resumo, foi gerado um suplemento devalor sobre o que já era valorizado, e esse é, semdúvida, o elemento central na elucidação dodiscurso contido no PPU e das intervençõesurbanas articuladas a ele. A sobrevalorização de

15 No caso de Curitiba é nítido o esforço dos urbanistas emestabelecer um padrão de “participação” dos citadinos noplanejamento da cidade restrito ao reconhecimento eaprovação do “saber técnico” acima de qualquer discussão einterferência.

16 O desenho original dos eixos estruturais pode serobservado no Mapa 1, “Proposta de esquema viário – PPU”(reproduzido no início deste artigo).

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espaços já valorizados, a partir da construção deuma tendência linear nordeste-sudoeste comovocacional e racional, pode ser percebido com asobreposição do Mapa 4, “Valores imobiliários deterrenos – PPU” (1965, reproduzido abaixo) como Mapa 1, “Proposta de esquema viário – PPU”(reproduzido no início) que apresenta o traçadodos eixos estruturais.

A observação dos mapas confirma que osmiolos espaciais localizados entre os eixos e asdemais avenidas perpendiculares e circulares foramvalorizados assim como suas adjacências. Signifi-ca que a ordem urbana precedente foi não apenasrespeitada, mas também expandida e sobrevalori-zada com o PPU. O desenho da nova expansão, éimportante frisar, continuou radial, tanto no quese refere aos valores imobiliários quanto no quediz respeito ao avanço da ocupação urbana, como detalhe de que o caráter radial do crescimentodos valores imobiliários permaneceu, por muitotempo, restrito às proximidades dos eixos estru-turais. Esse detalhe confirma o sucesso estratégicodo PPU e pode ser conferido pelo Mapa 5, “Custo

da terra. Valores imobiliários, 1985”, reproduzidoabaixo.

Para o PPU a estrutura viária teria facilitado aocupação indesejável de bairros como o Boqueirão.O Plano propõe corrigir essa situação justamenteassociando o novo sistema viário à regulação douso do solo e ao sistema de transporte, impedindoassim as “ocupações inorgânicas” nas proximida-des dos eixos que passaram a valorizar os espaçosurbanos centrais e longitudinais à rodovia BR-116.Tal procedimento formou um estoque de investi-mentos e de expansão “saudável” para a cidadeao limitar o desenvolvimento das áreas ocupadaspor habitantes de baixa renda relativamente próxi-mas ao centro (ver foto, reproduzida acima). Nessesentido, o êxito do sistema de transporte, celebradocom vigor pela administração e pela mídia, traduz-se pela eficiência em viabilizar um distanciamentocada vez maior das classes populares, porém semas isolar completamente.

Ao contrário de barreira, a BR-116, vista dolado de dentro, formaria uma proteção lateral paraa expansão longitudinal “saudável” do corpo urba-no. Construir ou expandir uma densidade ordenadaseria colocar uma população num espaço saudávelporque planejado. O problema das grandes cida-des, diagnosticado pelos urbanistas curitibanos, é

CUSTO DA TERRAVALORES IMOBILIÁRIOSEM 1985

Legenda

0.00 - 0.49 ORTN POR M2 0.50 - 0.99 ORTN POR M2 1.00 - 1.49 ORTN POR M2 1.50 - 1.99 ORTN POR M2 2.00 - 2.99 ORTN POR M2 3.00 - 4.99 ORTN POR M2 5.00 - 9.99 ORTN POR M2 10.00 ORTN POR M2

Mapa 4 - Valores imobiliários de terrenos - PPU

Mapa 5 - Custo da terra. Valores imobiliários, 1985

Fonte: IPPUC

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que primeiro as pessoas se estabelecem nos espa-ços de maneira desordenada e somente depois osgovernos tentam levar até elas a racionalidade doplanejamento. Como o crescimento das cidades,sem o devido monitoramento técnico, segue umatendência radial-perimetral, ou seja, dá-se umaexpansão desordenada para todos os lados, asadministrações têm dificuldade de reordenar asocupações espontâneas e irregulares. Dito de outromodo, formado o cinturão de pobreza e desordemem volta do centro organizado da cidade, segundoos urbanistas do PPU, esta tem grandes dificulda-des para expandir-se porque a barreira à circulaçãoe aos investimentos está instalada. A concentraçãodas atividades no centro das cidades, especialmen-te a função trabalho, contribuiria para uma ocupa-ção indevida deste espaço e de suas proximidades.A multiplicidade de atividades e grupos sociais nomesmo espaço geraria o caos. O que o planejamen-to fez, no caso de Curitiba, foi ao mesmo tempopreservar o centro e garantir a expansão da suaordem. O plano possibilitou ao centro um cresci-mento regulado na justa medida que abriu com oseixos estruturais o caminho para que sua lógicase estendesse com segurança. Não que o cresci-mento da cidade tenha seguido o traçado linear. ACuritiba pós-PPU cresceu a partir do centro demaneira radial, mas sem o risco de bloqueio pelaocupação do espaço por grupos populares. Daí oreal sentido da segurança e a insistência na lineari-dade. A hierarquia entre funções e agrupamentosfoi garantida pela nova configuração urbana. Oseixos estruturais, combinados com as grandesavenidas e com a própria BR-116, cumpriram, en-tão, um papel estratégico: proteção, expansão evalorização dos espaços nobres, na justa medidada contenção dos pobres nos seus lugares dis-tantes.

IV. CONCLUSÃO

Os urbanistas que elaboraram o PPU, e quedepois comandaram a reforma urbana da cidade,mobilizaram as categorias de densidade, dispersão,vocação urbana e empreenderam a classificaçãodo espaço e da população a partir da concepçãode necessidade como atributo natural tanto do cor-po urbano como do corpo humano, ambos defini-dos abstratamente em relação ao equilíbrio e aodesenvolvimento.

O PPU, a partir da perspectiva do urbanismomodernista, construiu o habitante urbano de Curiti-ba como objeto das intervenções planejadas. Diante

do seu objeto os agentes do planejamento urbanoforam fortalecidos na mesma proporção em que apopulação encontrou bloqueios à sua participaçãopolítica num espaço público plural. Esse limite foiexperimentado principalmente pelas classes popu-lares representadas como “carentes” e habitantesde um “apêndice inorgânico” da cidade saudável.

O efeito mais visível da insistência “técnica”em escolher o sentido nordeste-sudoeste comoprioritário para instalação dos eixos estruturais,foi garantir um valor suplementar aos espaçoscentrais já valorizados e gerar um estoque parasua expansão. Aliás, essa é a lógica capaz deelucidar os investimentos teóricos e práticos nadefinição do lugar do eixo estrutural. O eixo, opçãoprioritária para os investimentos públicos e priva-dos, foi instalado sobre os espaços economica-mente mais valorizados da cidade, onde habitavaa população considerada organicamente integradaao desenvolvimento urbano. O quadro representa-tivo da cidade e sua “vocação” só pôde ser comple-tado com a representação da região ao sul da BR-116, especialmente o bairro do Boqueirão, comocontraponto negativo do espaço positivo, ou seja,como “apêndice” inorgânico da cidade orgânica.Porque não dizer, um apêndice inflamado que, aosolhos dos técnicos, precisava ser separado docorpo urbano saudável.

O recente plano estratégico dos urbanistascuritibanos prevê a transformação da BR-116, deantiga fronteira da cidade orgânica, em novo eixoestrutural. Trata-se de uma realidade que aindaprecisa ser investigada. As primeiras impressõespermitem afastar a hipótese de uma integração deespaços e populações excluídas no passado peloPPU. Primeiro, porque os habitantes do Boqueirãotêm hoje outro perfil. As fronteiras da cidadedeslocaram-se e hoje coincidem, em grande parte,com as linhas divisórias do município. Uma pistainteressante para investigação dessa realidade estáem associar a nova proposta à necessidade deincessantes empreendimentos para manter acidade como núcleo atrativo de investimentos emodelo de adequação à rede mundial globalizada.Não se trata portanto da integração das classespopulares, hoje habitantes dos municípios vizinhos,como faz crer o discurso do planejamento. A elasrestará, como no caso do primeiro eixo estruturalprojetado no PPU, admirar os edifícios pós-modernos da janela do transporte coletivo. Comono passado, o futuro eixo da BR-116, com uma

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 107-122 JUN. 2001

nova escala de transporte de massa, será a garantiado distanciamento “seguro” dos “carentes” e deum novo estoque de espaços a serem ocupados

pela população organicamente integrada.

Recebido para publicação em 30 de junho de 2001.

Nelson Rosário de Souza ([email protected]) é Doutor em Sociologia pela Universidade de SãoPaulo (USP) e Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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