planalto central: marco da mÚsica contemporÂnea

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA FRANCISCO LOPES DOS SANTOS FILHO PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA EM MATO GROSSO Cuiabá 2011

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Page 1: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA

CONTEMPORÂNEA

FRANCISCO LOPES DOS SANTOS FILHO

PLANALTO CENTRAL:

MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA EM MATO GROSSO

Cuiabá

2011

Page 2: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

FRANCISCO LOPES DOS SANTOS FILHO

PLANALTO CENTRAL:

MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA EM MATO GROSSO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos de Cultura

Contemporânea, da Universidade Federal de

Mato Grosso, como requisito para obtenção do

título de Mestre em Estudos de Cultura

Contemporânea na Área de Concentração

Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de

Pesquisa Poéticas Contemporâneas.

Orientadora: Profª. Drª. Teresinha Rodrigues

Prada Soares

Cuiabá

2011

Page 3: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

S237p Santos Filho, Francisco Lopes dos.

Planalto Central : marco da música contemporânea em Mato Grosso

/ Francisco Lopes dos Santos Filho. -- 2011.

270 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientadora: Teresinha Rodrigues Prada Soares.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,

Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de

Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2011.

Inclui bibliografia.

1. Planalto Central - Música. 2. Música contemporânea de concerto.

3. Música de concerto – Mato Grosso – Percurso. 4. Roberto Victorio.

5. Planalto Central - Partitura. I. Título.

CDU 785.11.082.4(817.2)

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099

Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte

Page 4: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA
Page 5: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

Só se encontra Deus onde existe o amor. Dedico este trabalho aos meus 4 amores:

Keli Mendes Del Corso Lopes

Júlia Del Corso Lopes

Natan Del Corso Lopes

Luiza Del Corso Lopes

Page 6: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

AGRADECIMENTOS

Ao Criador Incriado que subsiste por si mesmo, todos os seres lhe devem a existência e “todas

as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se Fez”.

A minha esposa Keli Lopes, pelo constante incentivo e contribuição.

Teresinha Prada, pela orientação zelosa, competente e compromissada.

Roberto Victorio, pelo seu importante papel para os rumos da música em Mato Grosso, e a

pronta disponibilidade em prestar esclarecimentos para esta pesquisa.

Ludmila Brandão, pelo empenho em tornar o ECCO uma realidade.

Pauxy Gentil Nunes Filho, pelas valiosas sugestões para o aprimoramento deste trabalho.

Benedito Fausto P. Borges Filho, pelo valioso auxílio nos primeiros passos rumos ao

mestrado.

Aos amigos que contribuíram para realização do mestrado: Fabrício Carvalho, Iracema

Irigaray, Giselle Gamba Rubira, Marcia Furtado, Edson Vieira de Assunção, Jordan A. Souza,

Silbene Perassolo, José Wilson Paulino da Silva, João Quinzani.

As instituições que apoiaram meu ingresso neste programa:

Universidade Federal de Mato Grosso.

Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso- SEDUC.

Orquestra Sinfônica da UFMT.

Escola de Artes da UFMT.

Escola Malik Didier Namer Zahafi.

Page 7: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

“A arte é uma realidade eterna, fora do tempo ou do capricho dos deuses [...]. O criador luta

contra as formas estabelecidas e quer elaborar produtos que apresentem um aspecto novo e

que possam abrir caminhos e apetências inéditas à fantasia e à imaginação." (THARRATS,

1995, pp. 12-14).

Page 8: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

RESUMO

A produção de Música de Concerto em Cuiabá, até a década de 80, apresentava um perfil

ligado ao tonalismo. A partir de 1994, houve uma mudança significativa desta estética

musical. Um novo padrão de produção começou a ser executado, estabelecendo práticas

musicais observadas na contemporaneidade, isto é, na pós-modernidade. Neste momento, a

obra Planalto Central, do compositor carioca Roberto Victorio, pela sua construção,

elementos estéticos e poéticos, constitui um marco do processo de mudança estética da

música na capital mato-grossense.

Palavras-chave: Música Contemporânea de Concerto. Música de concerto em Mato Grosso -

Percurso. Pós-modernismo. Mestiçagem. Planalto Central. Roberto Victorio.

Page 9: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

ABSTRACT

The production of Concert Music in Cuiabá, till the decade of 80, had a profile linked to

Tonalism. After 1994, there was a meaningful change of the music style. A new standard of

production began to be done by establishing music practices based on contemporaneity, that

is, the post-modernity. At this moment Planalto Central (Central Plateau), piece by Roberto

Victorio (composer from Rio de Janeiro) become a land mark in the process of esthetic

changes of music in Cuiabá, because of its construction, esthetics and poetic elements.

Key-word: Contemporany Concert Music. Concert Music in Mato Grosso - Path. Post-

modernism. Miscegenation. Central Plateau. Roberto Victorio.

Page 10: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Violas de Cocho ................................................................................................................... 27

Figura 2 - Dito Verde e sua viola de cocho ........................................................................................... 29

Figura 3 - Lula recebendo viola de cocho do prefeito de Cuiabá Wilson Santos ................................. 33

Figura 4 – Vaqueiro tocando berrante ao manejar o gado .................................................................... 76

Figura 5 – Palacio Paiaguás (Cuiabá) ................................................................................................... 80

Figura 6 - Primeiro Poema, Compasso 1. Intervenção do Berrante. ..................................................... 96

Figura 7 - Seção F, Primeiro Poema ..................................................................................................... 97

Figura 8 - Compassos 144-146, Terceiro Poema .................................................................................. 97

Figura 9 - Bloco Intervalar Gerador, compasso 1, Primeiro Poema ..................................................... 98

Figura 10 - Compasso 4, Primeiro Poema ............................................................................................. 99

Figura 11 – Compassos 6-7, Primeiro Poema ..................................................................................... 101

Figura 12 – Compasso 8, Primeiro Poema .......................................................................................... 102

Figura 13 – Compasso 11, Primeiro Poema ........................................................................................ 103

Figura 14 – Compasso 16, Primeiro Poema ........................................................................................ 104

Figura 15 – Compasso 19, Primeiro Poema ........................................................................................ 105

Figura 16 – Compasso 20, Primeiro Poema ........................................................................................ 106

Figura 17 - Compasso 1, Segundo Poema ........................................................................................... 106

Figura 18 – Compasso 3, Segundo Poema .......................................................................................... 107

Figura 19 - Compasso 4, Segundo Poema ........................................................................................... 107

Figura 20 - Compassos 16-17, Segundo Poema .................................................................................. 108

Figura 21 - Compassos 19-20, Segundo Poema .................................................................................. 108

Figura 22 - Compasso 26, Segundo Poema ......................................................................................... 109

Figura 23 - Compasso 29, Segundo Poema ......................................................................................... 110

Figura 24 - Compassos 60-61, Segundo Poema .................................................................................. 111

Figura 25 - Compasso 61, Segundo Poema ......................................................................................... 111

Figura 26 - Compasso 62, Segundo Poema ......................................................................................... 112

Figura 27 - Compasso 65, Segundo Poema ......................................................................................... 113

Figura 28 - Compasso 67, Segundo Poema ......................................................................................... 113

Figura 29 - Compasso 69, Segundo Poema ......................................................................................... 114

Figura 30 - Compasso 72, Segundo Poema ......................................................................................... 115

Figura 31 - Compasso 78, Segundo Poema ......................................................................................... 115

Figura 32 - Compasso 80, Segundo Poema ......................................................................................... 116

Figura 33 - Compasso 80, Segundo Poema ......................................................................................... 116

Figura 34 - Compasso 88, Terceiro Poema ......................................................................................... 117

Page 11: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

Figura 35 - Compasso 88, Terceiro Poema ......................................................................................... 118

Figura 36 - Compasso 89, Terceiro Poema ......................................................................................... 119

Figura 37 – Quadro de ocorrências do setenário ................................................................................. 120

Figura 38 - Compasso 92, Terceiro Poema ......................................................................................... 120

Figura 39 - Compassos 97-98, Terceiro Poema .................................................................................. 121

Figura 40 - Compassos 102-103, Terceiro Poema .............................................................................. 121

Figura 41 - Compassos 104-105, Terceiro Poema .............................................................................. 122

Figura 42 - Compassos 102-103, Terceiro Poema .............................................................................. 122

Figura 43 - Compasso 109, Terceiro Poema ....................................................................................... 123

Figura 44 - Compasso 115, Terceiro Poema ....................................................................................... 123

Figura 45 - Compasso 117, Terceiro Poema ....................................................................................... 124

Figura 46 - Compasso 122, Terceiro Poema ....................................................................................... 124

Figura 47 - Compasso 126, Terceiro Poema ....................................................................................... 125

Figura 48 - Compassos 134-135, Terceiro Poema .............................................................................. 126

Figura 49 - Compassos 136-139, Terceiro Poema .............................................................................. 127

Figura 50 - Compasso 139, Terceiro Poema ....................................................................................... 128

Figura 51 - Compassos 143-146, Terceiro Poema .............................................................................. 128

Page 12: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO PÓS-MODERNO ................................................ 16

1.1 Divergências Comuns entre o Pensamento Moderno e o Pós-moderno ............................. 18

2 PLANALTO CENTRAL E MESTIÇAGEM ...................................................................... 24

2.1 Planalto Central: Processo de Hibridações ........................................................................ 29

3 A MÚSICA DE CONCERTO DO SÉCULO XX E AS SUAS VERTENTES ............... 34

3.1 O Século XX e a Sua Música ............................................................................................. 35

3.2 Vertentes e Tendências da Música Contemporânea ........................................................... 38

4 O PERCURSO DA MÚSICA DE CONCERTO EM MATO GROSSO ........................ 44

4.1 A Primeira Fase .................................................................................................................. 45

4.2 A Segunda Fase .................................................................................................................. 48

4.3 A Terceira Fase ................................................................................................................... 53

4.4 A Quarta Fase ..................................................................................................................... 68

5 PLANALTO CENTRAL EM TRÊS POEMAS PARA VOZ E PEQUENA

ORQUESTRA ......................................................................................................................... 75

5.1 Primeiro Poema .................................................................................................................. 81

5.2 Segundo Poema .................................................................................................................. 84

5.3 Terceiro Poema ................................................................................................................... 86

5.4 Planalto Central - Marco da Música Contemporânea em Mato Grosso ............................ 88

5.5 A Partitura de Planalto Central .......................................................................................... 92

5.6 Exame da Partitura.............................................................................................................. 94

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 130

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 133

APÊNDICE A – Transcrição da entrevista com Roberto Victório ........................................ 138

ANEXO A – Partitura de Planalto Central ............................................................................ 145

ANEXO B – Programa do concerto sinfônico de 28/01/1982 ............................................... 214

ANEXO C – Programa do concerto da Orquestra Wimmer, concerto dia das mães 1982 .... 216

ANEXO D – Concerto de estréia de Bussiki 10/12/1986 ...................................................... 218

ANEXO E – Concerto de abertura de temporada 1987 de Bussiki ........................................ 221

ANEXO F – Concerto da temporada 1987 de Bussiki - 05/07/1987 ..................................... 226

ANEXO G – Programa do 1º concerto de Ricardo Wilson, 29/03/1992................................ 232

Page 13: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

ANEXO H – Programa do 2º concerto de Ricardo Wilson, 06/05/1992................................ 236

ANEXO I – Programa do 1º concerto de Victorio, 08/-4/1994 .............................................. 240

ANEXO J – Programa de concerto, Grutas Permitidas 17/08/1994....................................... 244

ANEXO K – Cartas convite para execussão de concerto ....................................................... 257

ANEXO L – Matérias jornalísticas ........................................................................................ 259

ANEXO M – Gravação de Planalto Central em Áudio/CD ................................................... 270

Page 14: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

12

INTRODUÇÃO

A produção de Música de Concerto1 em Cuiabá até a década de 1980 estava restrita

aos recitais promovidos pelos conservatórios locais, e os saraus lítero-musicais, que eram

eventos realizados normalmente em residências, por iniciativa de pequenos grupos de músicos

e admiradores que produziam a música de câmara.

Além disso, os grupos maiores eram as bandas de música, que realizavam retretas nos

coretos das praças da capital, bem como nas festividades populares e eventos sociais solenes2.

A partir do início dos anos 80, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) cria a

primeira Orquestra Sinfônica do Estado de Mato Grosso. Todavia, por se tratar de uma

instituição de ensino superior e extensão, a Orquestra da UFMT foi concebida como

laboratório, capacitando os próprios músicos, que futuramente iriam compor as suas estantes.

Para tanto, foram contratados profissionais com a função precípua de ensinar música à

comunidade interessada.

A prioridade de vagas para aulas de música era para os alunos da UFMT; entretanto, a

atividade foi estendida para toda comunidade cuiabana interessada no aprendizado musical,

promovendo desse modo uma maior integração entre a Instituição de Ensino e a comunidade

local.

Iniciadas as atividades, a sinfônica da UFMT foi o corpo musical de referência para a

produção da música de concerto na capital, de modo que a música sinfônica ao vivo, passou a

fazer parte do cotidiano da cuiabanidade, e o Teatro Universitário se torna ponto de encontro

para as audições3.

O repertório praticado era composto de música nos estilos Barroco, Clássico,

Romântico e Brasileiro de Concerto. Enfim, música tradicional tonal4. Vez ou outra, a

Sinfônica dividia o palco com o Coral Universitário, com o qual era comum a execução de

música sacra. Havia também a prática de convidar músicos solistas, advindos de outros

1 O termo Música de Concerto será utilizado em substituição ao Erudito (Erudito como genérico que engloba

vários estilos musicais), por causar menos controvérsia (terminação vista com desconfiança por suscitar entre

outras coisas, elitismo e hierarquização). Empregaremos a terminação Música de Concerto para a música que

não pertence ao universo que abarca a produção da música popular, e qualquer menção ao erudito deve ser

entendida neste sentido. No meio musical é senso comum, tanto que o compositor e musicólogo Paulo de Tarso

Salles, autor do livro Aberturas e Impasses: O pós-modernismo na música e seus reflexos no Brasil, 1970-1980,

utiliza o termo Música Erudita Brasileira (MEB) para se referir às obras dos compositores brasileiros. 2 Ver capítulo 4.2.

3 Ver capítulo 4.3.

4 Ver Anexos B a J.

Page 15: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

13

Estados, que exibiam habilidades virtuosísticas em seus instrumentos5. Este foi o perfil da

estética musical praticada até o início da década de 90.

A partir de 1994, com a troca do maestro da sinfônica, houve em Cuiabá uma

mudança significativa da estética musical. Um novo padrão de produção musical começou a

ser executado nesse momento, tendo como uma das obras mais importante Planalto Central,

do compositor Roberto Victorio (1959)6. A referida obra apresenta em sua construção

elementos estéticos e poéticos que merecem um exame aprofundado que poderá apontar

subsídios (necessários) para ser considerada como um marco do processo de mudança da

estética musical.

Os eventos que marcaram a passagem de uma estética musical para outra, em Cuiabá

ensejam a pesquisa sobre o processo em si, as motivações que geravam tal produção musical,

os agentes envolvidos nesta nova empreitada, e a situação do marco que inaugura este

processo.

Contudo, para alcançar tal fim, é mister fazer a ligação com uma linha de pesquisa

voltada para a reflexão sobre o ator social contemporâneo e suas práticas sociais, bem como

os modos de pensar e de criar.

A investigação ora proposta encontra-se no diálogo, cruzamento de conceitos e

informações com os variados autores que teorizam a contemporaneidade.

A música sempre encarnou os valores, modos de percepção, significação,

comportamentos, crenças, imaginários e história das civilizações.

[...] as canções poderiam constituir-se em um acervo importante para se

conhecer melhor ou revelar zonas obscuras das histórias do cotidiano dos

seguimentos subalternos. Ou seja, a canção e a música popular poderia ser

encarada como uma rica fonte para compreender certas realidades da cultura

popular e desvendar a história de setores da sociedade pouco lembrados pela

historiografia (MORAES, 2000, p. 204-205).

Igualmente a música contemporânea traduz as mudanças observadas em “nosso

tempo”7, as transformações, a multiplicidade de conceitos e fazeres; revela ainda a história e

acena para o devir. “A música da pós-modernidade não é uma, mas várias” (JAMESON apud

SEKEFF; ZAMPRONHA, 2009, p. 13).

5 Jornal Diário de Cuiabá, DC Ilustrado, 19/09/1991, p. 31.

6 Ver capítulo 5.5.

7 A forma instrumental, os tipos de instrumentos e seus timbres, a interpretação e também os arranjos de um

dado documento sonoro contêm indicações fundamentais para compreender [...] suas relações com as

experiências sociais e culturais de seu tempo (MORAES, 2000, p. 215).

Page 16: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

14

Assim, por meio da música podemos compreender um certo momento histórico e,

observando o mundo, podemos melhor compreender esta música.

A música, [...] pode ser compreendida como parte constitutiva de uma trama

repleta de contradições e tensões em que os sujeitos sociais, com suas

relações e práticas coletivas e individuais e por meio dos sons, vão

(re)construir partes da realidade social e cultural (MORAES, 2000, p. 212).

Para a compreensão do tempo presente faz-se necessário trilhar pelos meandros dos

conceitos que estabelecem os saberes, as práticas, os valores e as crenças que envolvem o

mundo contemporâneo.

Entre as teorias que têm sido utilizadas para explicar o mundo contemporâneo figura o

Pós-Moderno, pois “o que se chama hoje de teoria contemporânea […] é na verdade um

fenômeno estritamente pós–moderno” (JAMESON, 2004, p. 40).

A nova estética musical observada nos idos de 1994 em Mato Grosso marca uma

ruptura com as práticas musicais dos períodos que a antecederam. Em Cuiabá, músicos

pesquisadores e apreciadores da música puderam, daquele momento em diante, conhecer,

desenvolver e apreciar esta música que, para eles, era nova.

Inicia-se, assim a produção de uma linguagem musical até então não praticada pela

classe artística local, evidenciada pela falta de fontes.

“O pós-moderno, entretanto, busca rupturas, busca eventos em vez de novos mundos

[…] busca os deslocamentos e mudanças irrevogáveis na representação dos objetos e do modo

como eles mudam” (JAMESON, 2004, p. 13).

O repertório desta novel era musical, marcado por uma justaposição de elementos que

determinam as posturas contemporâneas do fazer instrumentos musicais,8 como a viola de

cocho ou o berrante, denunciam um processo de misturas, que são concebidas como

hibridação e mestiçagem – termos muito comuns na teoria pós-moderna, caracterizada pelas

misturas, pela hibridação.

“Práticas híbridas podem ser identificadas na religião, na música, na linguagem, no

esporte, nas festividades e alhures [...] devemos ver as formas híbridas como resultados de

encontros múltiplos e não como o resultado de um único encontro” (BURKE, 2003, p. 28).

Também é característica da nova música a ruptura com os modos tradicionais de

composição e toda forma de conceitos, valores e crenças dos períodos que a antecederam.

8 Roberto Victorio utilizou na orquestração de Planalto Central instrumentos típicos da região mato-grossense.

Ver capítulo 2.1.

Page 17: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

15

Enquanto a arte moderna surgiu de manifestos com idéias definidas, a pós-

moderna veio para desfazer princípios, regras valores, práticas, realidades,

misturar várias tendências e estilos, ser hierarquia de valores; ser aberto e

plural; derrubar as fronteiras entre as diversas manifestações artísticas

(HERR; KIEFER, 2009, p. 90).

Dentre as práticas realizadas no campus da UFMT, neste novo horizonte musical

podemos citar:

1 Produção local de obras compostas exclusivamente para a Orquestra Sinfônica da

UFMT e por ela executadas.

2 A UFMT como centro de referência da produção da música contemporânea no Brasil e

exterior9.

3 Movimentos resultantes, como a Bienal de Música Brasileira Contemporânea de Mato

Grosso e o Grupo Sextante Mato Grosso.

Uma nova ordem musical passa a ser desenvolvida, onde os instrumentistas têm a

possibilidade de compor, criar e difundir a própria música. A plateia experimenta uma

diversidade de timbres e formas musicais, além de ouvir músicas inéditas – músicos,

compositores e plateia são cúmplices.

9 A Orquestra Sinfônica da UFMT, em 1994, foi a única orquestra brasileira executante de um repertório

exclusivamente voltado para a música contemporânea. Assim sendo, tornou-se conhecida de vários compositores

brasileiros que compuseram especialmente para ela. Em conseqüência, a orquestra realizou várias estréias

mundiais. A gravação do CD Grutas Permitidas foi distribuída para vários países e a música Planalto Central,

primeira faixa do CD, representou o Brasil na Tribuna da UNESCO na França.

Page 18: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

16

1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO PÓS-MODERNO

Dos termos utilizados para descrever o tempo presente, isto é, a contemporaneidade e

os paradigmas observados no âmbito do social, cultural, filosófico, artístico, um dos que tem

tido grande utilização é o Pós-Moderno.

Jameson (2004, p. 40) diz que: “O que se chama hoje de teoria contemporânea [...] é

na verdade um fenômeno estritamente pós–moderno”, e é desta perspectiva que será abordado

o tempo presente. Este termo tem sua origem, segundo Grenz (1997, p. 34, grifo do autor),

por volta da década de 1930, e o referido autor informa que:

A gênese do conceito acha-se na obra do escritor espanhol Federico de Onis.

Em sua Antologia de la poesia española e hispanoamericano (1934), de

Onis parece ter introduzido o termo para se referir a uma reação dentro do

modernismo.

Muito embora não haja unanimidade entre os pesquisadores de quem tenha utilizado o

termo pela primeira vez, há também quem atribua ao escritor britânico Arnold Toynbee, que

teria se referido ao pós-moderno em sua obra Estudo de História, escrito entre os anos de

1934 a 1961, trabalho este, composto em doze volumes.

Nesta enciclopédia ele investiga as civilizações abordando suas origens,

desenvolvimentos e os declínios. “Segundo Toynbee, a era pós-moderna caracteriza-se pelo

fim do domínio ocidental e pelo declínio do individualismo, do capitalismo e do cristianismo”

(GRENZ, 1997, p. 35).

Entretanto, é nos idos dos anos 1960, década marcada por uma intensa movimentação

em prol de mudanças sociais e culturais, como por exemplo, as manifestações em torno de

maio de 68, que definitivamente o termo pós-moderno será abordado como fenômeno.

O nascimento da era pós-moderna chegou a ser atribuído com dia, local e hora

marcada, que foi exatamente 15 de julho de 1972, na cidade de St. Louis no Estado de

Missouri nos Estados Unidos da América. Ali foi registrada a implosão do complexo

habitacional Pruitt-Igoe, projetado e concebido conforme ideologia proposta pelo CIAM –

(Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) – que traduziu a essência do pensamento

moderno na arquitetura.

O conjunto habitacional Pruitt-Igoe “representava o epítome da arquitetura, moderna

cujo objetivo era o emprego da tecnologia para a criação de uma sociedade utópica que

beneficiasse a todos” (GRENZ, 1997, p. 29). Entretanto o aumento da violência no local se

Page 19: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

17

tornou um grande problema para as autoridades, além das edificações sofrerem ataques de

depredadores.

O conjunto habitacional teve duração de 20 anos e investimento avaliados em milhares

de dólares. Contudo, todas tentativas em renovar o projeto fracassaram e a construção,

mediante ordens judiciais, foi implodida. Para muitos, este evento foi considerado como o

marco definitivo da consolidação do pós-modernismo no mundo.

“Segundo Charles Jencks, que tem sido aclamado como „um dos proponentes de maior

influencia da arquitetura pós-moderna‟, esse evento simboliza a morte da modernidade e o

nascimento da pós- modernidade” (GRENZ, 1997, p. 29).

Em sua gênese, o pós-modernismo realmente se dá na arquitetura, porém ele ocorrerá

em todas as artes, e o que caracteriza a teoria pós-moderna é a ruptura com o ideal moderno.

Do mesmo modo que todo o conjunto de edifícios que fazia parte do complexo Pruitt-

Igoe foi desmoronado naquele fatídico 15 de julho, deixando somente lembranças daquilo que

era para ser o símbolo do bem estar social, assim também o conjunto das crenças, das

verdades que abarcaram o pensamento moderno, ruiu diante da perspectiva pós-moderna.

Assim sendo, o prefixo “pós” não intenciona significar continuidade, sequência ou

algo que vem logo depois, mas uma negação, interrupção de uma abordagem que influenciou

o pensamento ocidental, “em sua base, portanto, a perspectiva pós-moderna é antimoderna”

(GRENZ, 1997, p. 30).

Nesta ocasião, um crítico do jornal alemão Frank-furter Allgemeine Zeitung

colocou uma tese cuja significação ultrapassa o próprio acontecimento; trata-

se de diagnóstico dos nossos tempos: „A Pós-Modernidade apresenta-se

claramente como Anti-Modernidade.‟ Tal afirmação evidencia uma

tendência emocional de nossos tempos que impregnou todas as esferas da

vida intelectual (HABERMAS, 1983, p. 86).

Apontaremos algumas distinções entre moderno e pós-moderno, quanto às suas linhas

de pensamentos, na tentativa de traduzir alguns pontos relevantes que possam contribuir para

a compreensão do pensamento do tempo presente e consequentemente os seus efeitos na arte.

Em nosso caso, na música.

Page 20: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

18

1.1 Divergências Comuns entre o Pensamento Moderno e o Pós-moderno

Iniciemos estas especulações mencionando Lyotard (2006, p. xvi), que em seu livro A

Condição Pós-moderna afirma que “considera-se „pós-moderna‟ a incredulidade em relação

aos metarrelatos”, ou seja, teorias que explicam a sociedade de modo abrangente. Enfim,

rompimento com as utopias.

De fato o marxismo que deu origem ao socialismo (e por décadas foi empregado

principalmente no leste europeu e alguns países asiáticos, que por oposições de ideológicas

promoveram a divisão política do mundo em blocos) entra em um processo de decadência e o

apogeu da crise se dá com a dissolução da União Socialista Soviética e, posteriormente, a

reintegração da Alemanha. Neste último caso o mundo presenciou a queda do muro de

Berlim, evento que é considerado um marco do desenrolar daquele momento histórico, assim

como o fim da era moderna e o início da era pós-moderna.

Coincidentemente, os grandes marcos dados como o fim do período moderno e o

início do pós-moderno se deram com demolições, tendo inclusive sido utilizados como

metáforas, cujas expressões são apresentadas como desconstrução, desabamento,

desmoronamento das grandes utopias, dos metarrelatos.

Os eventos acima mencionados provocaram mudanças significativas em todos os

campos de ordem social no mundo e inauguram uma nova era no pensamento ocidental: a

passagem da teoria moderna para a pós-moderna.

Em uma sintética retrospectiva histórica, Salles (2005, p. 17) informa que

modernidade é o termo que encerra um conceito de época que designa um período que

começou no século XVI e os marcos desta era foram a descoberta das Américas (ou do Novo

Mundo), a Reforma protestante e o Renascimento. Modernismo será um conceito estético e

artístico, que terá abordagens diferenciadas na Europa e em sua síntese, caracteriza-se pela

negação ao antigo, ao velho e ao compromissado com as utopias.

Novamente no final do século XIX e início do século XX artistas se apropriam do

termo moderno para designar suas artes, caracterizado pela mudança de paradigmas e rupturas

com conceitos estabelecidos.

Neste período artistas contemporâneos se utilizarão do termo moderno para “justificar

e legitimar a arte de vanguarda até a década de 70” (SALLES, 2005, p. 19). No Brasil o

movimento modernista foi estabelecido a partir do evento conhecido como Semana de Arte

Moderna de 1922.

Page 21: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

19

À ultima onda de renovação convenciona-se chamar de „movimento

moderno‟, ou „modernismo‟. Essa cria um tipo de unicidade entre os vários

„modernismos‟, congregados sob o signo de „modernidade‟ essa sucessão de

rupturas cria um tipo de unicidade entre os vários modernismos,

congregados sob o signo de „modernidade‟ (SALLES, 2005, p. 19).

Após a crise do socialismo ficou mais evidente a expansão do mercado mundial assim

como a abertura ao capital especulativo, favorecendo o estabelecimento de um dos mais

importantes fenômenos observados no mundo pós-moderno, qual seja, a globalização, onde o

capital assim como bens de qualquer natureza, inclusive cultural, circulam livremente entre as

nações ignorando fronteiras; realidade apresentada nos acordos entre as nações tais como:

Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), Tratado Norte-Americano de Livre Comércio

(NAFTA10

) e a Comunidade Econômica Europeia (CEE).

Tal fenômeno tem sido estudados por sociólogos, antropólogos, historiadores,

filósofos e cientistas de áreas afins, que formulam teses na tentativa de compreender e

explicar as implicações de ordem social, cultural e política que a globalização tem provocado.

A mundialização tem gerando novas crises, entre elas a crise de identidade. Inclusive tem

provocado dúvidas relacionadas às atribuições do Estado Nação e a abrangência do papel que

atualmente ele deve desempenhar.

A reabertura do mercado mundial, a retomada de uma competição

econômica ativa, o desaparecimento da hegemonia exclusiva do capitalismo

americano, o declínio da alternativa socialista, a abertura provável do

mercado Chinês às trocas, e muitos outros fatores, vêm preparar os Estados,

neste final dos anos 70, para uma revisão séria do papel que habituaram a

desempenhar desde os anos 30, que era de proteção e guia, e até de

planificação de investimento (LYOTARD, 2006, p. 6).

O pensamento moderno de progresso inevitável que tem origem no Iluminismo, não é

mais comungado na era pós-moderna porque as pessoas não acreditam que a ciência e a

tecnologia serão capazes de resolver todos os problemas sociais e as mazelas que o homem

provocou na natureza. Qualquer criança em idade escolar é sabedora do buraco na camada de

ozônio; os telejornais informam a todo o momento as causas do aquecimento global que

normalmente são provocados por emissão de gases poluentes principalmente pelas grandes

indústrias.

O fenômeno El Niño é conversa comum em botequins e toda coletividade de alguma

maneira, já foi afetada pelo desequilíbrio da Natureza, seja por invernos rigorosos ou períodos

10

North American Free Trade.

Page 22: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

20

de estiagem; bem como inundações causadas por tempestades, frios fora do inverno, calor nas

regiões onde normalmente possuem um clima ameno, e o mais grave em todas estas

sequências de fatos são os registros de considerável número de óbitos na população atingida.

Uma das mais recentes preocupações dos cientistas está relacionada ao

descongelamento da calota polar.

A geração pós-moderna também está convencida de que a vida na terra é

frágil. Ela acredita que o modelo iluminista da conquista humana da

natureza, que data de Francis Bacon, deve ceder lugar rapidamente a uma

nova atitude de cooperação com a terra, pois, em seu entender, a

sobrevivência da humanidade está ameaçada (GRENZ, 1997, p. 32).

Outra distinção entre moderno e pós-moderno é a crença moderna na Verdade

Universal que está intrinsecamente relacionada à Razão, que somente por seu meio o

conhecimento terá validade. Esta teoria não será mais acolhida na pós-modernidade pois os

meios não-racionais de conhecimento são reconhecidos agora; porque o ser humano é

percebido holisticamente, isto é, como um todo – incluindo também as emoções.

De acordo com o holismo, o homem não é somente matéria física, mas um ser dotado

de espiritualidade e munido da capacidade de produção de subjetividade, além de possuidor

de sentimentos. Para ser completo deve estar integrado à Natureza. Por isso terapeutas

contemporâneos têm difundido que a ocorrência de muitos males e doenças são de origem

emocional. Esta ideia tem transitado entre os profissionais das áreas ditas alopáticas. “O

holismo pós-moderno implica a rejeição do ideal iluminista do indivíduo fleumático,

autônomo e racional” (GRENZ, 1997, p. 32).

“Habermas e Boaventura Santos defendem a superação do uso da razão moderna

iluminista, centrada no indivíduo, por um novo uso da razão, voltada para a ação

comunicativa e solidária” (SALLES, 2005, p. 57).

No pós-moderno a Verdade está relacionada à uma coletividade específica, em

oposição à tese de Verdade Universal, pois sendo concebida culturalmente, passa a ser

patrimônio da comunidade que a constrói. Portanto como apropriação coletiva, atenderá a

demanda dos grupos que a criou. Entretanto por existirem diversidades de comunidades

humanas da qual participam os indivíduos, muitas serão também as verdades.

O sujeito da era pós-moderna convive com a diversidade cultural e múltiplas

expressões artísticas. Para ele estão ampliados o acesso à informação, que são oferecidos

pelos mais variados meios e este conjunto de opções, tem-se favorecido a idéia de ecletismo.

Page 23: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

21

Salles (2005, p. 59), ao referir-se especificamente sobre a música, assevera que “o pós-

modernismo abre, isso sim, a possibilidade de convivência entre estilos considerados

excludentes entre si”, e na mesma assertiva o autor diz que não acredita que exista “uma

postura hierárquica entre os estilos” e a expressão utilizada para caracterizá-la é ecletismo.

Não são raros os indivíduos que se autodenominam ecléticos. A sua cultura é marcada

por intercâmbios e cruzamentos de outras culturas entre os quais alguns aspectos são

assimilados e apropriados ao seu modo de vivencia, influenciando os seus costumes e a sua

concepção de mundo.

Com isto, o que se quer dizer é que não existe um confronto bipolar e rígido

entre as diferentes culturas. Na prática, o que acontece é um sutil jogo de

intercâmbios entre elas. Elas não são vistas como exteriores entre si, mas

comportando cruzamentos, transações, intersecções. Em determinados

momentos, a cultura popular resiste e impugna a cultura hegemônica; em

outros, reproduz a concepção de mundo e de vida das classes hegemônicas

(ESCOSTEGUY, 2004, p. 147).

Entre os filósofos que inspiraram o pensamento pós-moderno podemos mencionar

Heidegger que rejeitou uma das linhas mestras do pensamento moderno, a teoria de

Descartes sobre a existência, além de se opor ao conceito de Verdade Universal que

norteava todo pensamento ocidental até então sobre ele. Grenz (1997, p. 157-158) relata

que:

Ele rejeita a suposição comum de que a verdade consiste numa

correspondência entre nossas afirmações e uma realidade totalmente

formada que existe fora de nós [...]. A verdade não é absoluta e autônoma,

argumenta ele; ela é relacional, A visão dominante é inadmissível

simplesmente porque o conceito de um mundo externo é, em si mesmo,

ilógico. Temos somente o mundo da experiência pelo qual somos envolvidos

como participantes.

No pós-moderno o conceito de Verdade é substituído por verdades; o original, isto é,

originalidade, pela reprodução. Não existe mais interesse pelo “puro”. A atenção, o interesse

está voltado para os cruzamentos, para as misturas, surgindo deste modo várias teorias para

explicá-las, dentre elas podemos mencionar mestiçagens, hibridações e creolização entre

outras.

Não se concebe a divisão da cultura como alta ou baixa entre a dita “Alta” cultura e a

cultura de massas, porque não existe uma hierarquia de importância entre o erudito e o

popular.

Page 24: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

22

Não cabe, pois estabelecer juízos de valor hierarquizantes em termos de

Cultura „Alta‟ e „baixa‟, tampouco lamentar uma suposta „queda de nível‟ da

arte; se a música que vai a mídia talvez não seja a mais avançada, é preciso

reconhecer que a importância cultural dada à música atual não se guia pelos

conceitos de avanço e retrocesso (SALLES, 2005, p. 54).

Assim o interesse do pesquisador contemporâneo está voltado para as massas, para as

pessoas comuns, o estilo de vida da juventude, para as culturas populares, suas músicas,

literaturas (revistas, manuais), as expressões artísticas tais como o grafite, dança de rua, os

meios de comunicação de massa, programas de TV, publicidade. “É um projeto de pensar

através das implicações da extensão do termo „cultura‟, para que inclua atividades e

significados da gente comum” (BARKER; BEEZER apud ESCOSTEGUY, 2004, p. 150).

O homogêneo pelo heterogêneo: a arte pós-moderna se interessa pela fragmentação,

pois “um mundo moderno, homogêneo e coerente teria repentinamente dado lugar a um

universo pós-moderno, fragmentado, heterogêneo e imprevisível?” (GRUZINSKI, 2001, p.

44).

A antropologia substitui o interesse do distante para próximo; o saber não é domínio

somente da classe científica, das academias universitárias e dos laboratórios. O conhecimento

empírico tem valor reconhecido.

O pensamento moderno de progresso inevitável e contínuo está descartado; a

liberdade, que era um dos cânones da era moderna, não é mais a bandeira do pós-moderno,

pois o cidadão abre mão da liberdade em função da sua segurança. Ele é informado que está

sendo filmado por câmeras de segurança em locais de sua rotina diária tais como

supermercados, postos de gasolina, elevadores, corredores de edifícios públicos e privados e

até na rua onde mora.

A Razão cede espaço para a intuição. O sujeito pós-moderno não é cético; acredita na

subjetividade e reconhece a importância dos saberes empíricos.

As noções de espaço, tempo e território têm agora outras configurações. Enfim em

uma época caracterizada pela globalização e, consequentemente pela informação instantânea

tem possibilitado que determinados eventos sejam acessados ao mesmo tempo por pessoas

nas mais diferentes posições geográficas ou nacionalidades; contribui para que os indivíduos

adquiram uma outra percepção de mundo.

Ademais em um período marcado pela heterogeneidade, não poderá prevalecer a

existência do termo „unanimidade‟, e assim como houve por parte do pensamento pós-

moderno uma rejeição à teoria moderna, também existem resistência e oposição ao pós-

Page 25: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

23

moderno, tanto por artistas como por pensadores. Se Pierre Latour, por exemplo, chega ao

ponto de negar a era moderna, como poderia legitimar a pós-moderna?

Não estamos entrando em uma nova era; não continuamos a fuga tresloucada

dos pós-pós-pós-modernistas; não nos agarramos mais à vanguarda da

vanguarda; não tentamos ser ainda mais espertos, ainda mais críticos,

aprofundar mais um pouco a era da desconfiança. Não, percebemos que

nunca entramos na era moderna. (LATOUR, 1994, p. 51).

Entretanto as acusações deferidas ao pensamento pós-moderno é tema apropriado para

uma abordagem mais acurada em pesquisa direcionada e que não será realizada nesta

oportunidade.

Page 26: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

24

2 PLANALTO CENTRAL E MESTIÇAGEM

O objetivo deste capítulo é fazer uma abordagem da origem da viola de cocho, com

foco principal em sua característica mestiça, com base no pensamento de Serge Gruzinski e

Michel Serres que trabalham na linha das misturas das culturas, tais como mestiçagem e

hibridação.

No primeiro momento, será feito uma retrospectiva histórica, amparada

principalmente nos Cadernos de Folclore Mato-Grossense Nº 1 e Nº 2 (1990), organizados

pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, Departamento de Cultura, de Cuiabá. Estas

publicações reúnem pesquisas sobre a viola de cocho, o Cururu e o Siriri11

. Em seguida,

situaremos o uso da viola de cocho na contemporaneidade, fazendo menção da sua primeira

inserção em uma orquestra sinfônica, num processo de hibridação (conforme o conceito

formulado por Gruzinski), quando é utilizada na obra Planalto Central do compositor

Roberto Victorio.

Para esta abordagem foi inicialmente emprestado o caráter metafórico de Serres, com

a intenção de traduzir o nascimento da viola de cocho, que surgiu por meio de encontros e

trocas culturais, produzindo assim seu verdadeiro caráter, qual seja, mestiço.

Tudo começou pelo rio nestas regiões do centro. Neste planalto, que para o Atlântico

ou Pacífico, se percorre a mesma distância, o rio foi o condutor, a integração, a ligação com o

resto do país. Pelo rio se vinha e se ia - ele trazia, mas também levava. Primeiro, vieram os

bandeirantes, depois mercadorias de todos os tipos. Pelo rio tudo era trazido, como também

saiam, mas principalmente saiam. Daqui era levado o ouro, o “oiro” sonhado pelos

portugueses. Segundo Lott (1986, p. 37),

Os perigos da navegação pelo rio Madeira, Negro, Guaporé, Arinos, e

Tapajós eram superados pelo ouro estimulante, farto, disponível – e um

mercado consumidor com alto poder aquisitivo. A navegação pelo Rio

Cuiabá, além de completar o circuito, também abastecia a cidade de Cuiabá.

11

O Cururu e o Siriri são manifestações folclóricas comuns em Mato grosso e Mato Grosso do sul, envolvem

música e dança com a utilização de instrumentos musicais de fabricação regional, que são o mocho, que é uma

espécie de tamborete com couro de boi percutido por dois bastões de madeira, o ganzá, que é confeccionado de

taquara e friccionado por um pedaço de osso da costela bovina, e a viola de cocho que também é de origem local.

Ver Caderno de Folclore Mato-grossense nº 1 e nº 2, 1990.

Page 27: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

25

Mas o rio não trazia somente bens de consumo. Ele trazia pessoas, e pessoas trazem

sonhos. Por ele vieram as primeiras peças teatrais, os dramas, as comédias e as primeiras

óperas, “A Grécia quem diria, foi parar em Cuiabá” (LOTT, 1986, p. 21).

O rio alimenta o povo e o seu imaginário. Não é por acaso que Michel Serres, em sua

Filosofia Mestiça, empresta o rio para as suas narrativas: ele conhece e reconhece a força do

rio; percebe suas correntes, seu fluxo e suas margens. O seu rio é metafórico; navegar, verter,

nadar, atravessar, tudo é metáfora. Por meio dele (o rio) nasce o mestiço. E é por ele que

nasce o sentido.

Sobre o eixo móvel do rio e do corpo, estremece, comovida, a nascente do

sentido [...]. Ao atravessar o rio e entregar-se completamente nu ao domínio

da margem à frente, ele acaba de aprender uma coisa mestiça. O outro lado,

os novos costumes, uma língua estrangeira, é claro. Mas acima disso, acaba

de aprender a aprendizagem nesse meio branco que não tem sentido para

encontrar todos os sentidos (SERRES, 1993, p. 14).

Foi por intermédio do rio, o mesmo do Minhocão do Pari e do Negrinho D‟água que,

segundo a lenda, veio a mestiça viola de cocho.

Os mitos e as lendas sempre foram utilizados para explicar fenômenos, estórias,

crendices e todo tipo de coisas que permeiam o imaginário das pessoas.

Atualmente a viola de cocho é figurada como um produto de origem pantaneira, mato-

grossense, símbolo da terra; inclusive, estampada em outdoors, shopping centers, aeroporto,

folders, cartazes, brasões e até mesmo, como um dos ícones representativos da região. Tem

sido utilizada pelas agências especializadas em propaganda e marketing no apoio à Copa do

Mundo em Cuiabá12

.

Apesar de hoje em dia, a viola de cocho estar veiculada nos meios de comunicação em

massa, assim como presente em debates promovidos por institutos e associações culturais,

existem poucos registros que esclareçam a sua origem, dentre eles o que se segue nos permite

analisar seu verdadeiro caráter:

O cururueiro Luiz Marques da Silva, fundador e presidente da AFOMT –

Associação Folclórica de Mato Grosso, através de pesquisas conseguiu o

depoimento de pessoas de várias localidades do Estado, resgatando a

seguinte lenda: Há mais de 200 anos [...] à beira do rio Cuiabá, morava um

artesão, „fazedor‟ de canoas, colheres de pau e cochos (recipiente usado para

alimentar animais) [...] certo dia atracou um barco em que viajava um

senhor, presumidamente um paraguaio, trazendo um instrumento de cordas,

12

Fonte: sites oficiais da Secretaria Estadual de Cultura, da Agência da Copa, www.copanopantanal.com.br/

?=destaques (Na África).

Page 28: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

26

provavelmente um violão. Aproveitando a estadia do visitante, o artesão foi

logo aprendendo algumas posições musicais. Mas o cidadão paraguaio,

músico de profissão, depois de algum tempo resolveu partir, levando consigo

o instrumento. [...] o artesão[...] não se contendo, usou da memória e,

pegando a madeira que empregava na confecção de seus utensílios talhou o

mais parecido que sua mente guardara da forma do violão. Adaptou com

criatividade as cordas, confeccionando-as com imbira de tucum (planta da

região ribeirinha). Depois de pronta o artesão dirigiu-se à vila, levando

consigo a viola que fabricara. As pessoas, curiosas, perguntaram o nome do

instrumento. Como o mesmo, sem o tampo, tivesse a forma de um cocho,

respondeu: VIOLA DE COCHO! (CADERNO DE FOLCLORE MATO-

GROSSENSE Nº 1, 1990, p. 5)

A estória acima ilustra como pode ocorrer a mestiçagem. Ela poderia muito bem ser

utilizada por Gruzinski na formulação de sua teoria e fazer parte de seu livro Pensamento

Mestiço. Se reportarmos o uso da viola de cocho em Planalto Central, talvez possamos

perceber o mesmo efeito que Algodoal13

produziu em Gruzinski como proposta para

compreender a realidade mesclada.

Assim a “lenda” da origem da viola de cocho pode dar outra perspectiva ao discurso

de entusiasmados pesquisadores, folcloristas, agentes culturais e outros que ainda hoje ao

falarem deste instrumento, buscam encontrar algo genuíno e puro.

Tentam apontar uma única identidade: a regional; não compreendendo ou até mesmo

ignorando a realidade polimorfa e as múltiplas identidades que ela possui; como sendo o

resultado de uma sequência de fatos, um ajuntamento de informações, conhecimentos,

técnicas, materiais, trocas, enfim, misturas:

Mas outra cilada espreita o pesquisador: a noção de identidade que atribui a

cada criatura ou a cada grupo humano características fundadas num substrato

cultural estável ou invariante. Essa definição pode tanto vir dos interessados

como um reflexo condicionado do observador e reduzir-se na linguagem

corrente a uma etiquetagem sumária que logo vira caricatura (GRUZINSKI,

2001, p. 48).

Tylor (2005, p. 73) relata que certa vez, um chefe Banto disse ao missionário Eugene

Casalis que, “um evento é sempre filho de outro e não devemos esquecer o parentesco”; desse

modo podemos considerar nesta frase uma síntese da mestiçagem que se fez viola.

Em seu trabalho, Burke (2003, p. 28), descreve que: “Práticas híbridas podem ser

identificadas na religião, na música, na linguagem, no esporte, nas festividades e alhures [...]

13

Referência à ilha de Algodoal ao sul do delta do Amazonas, observada por Gruzinski que se atentou para a sua

realidade mesclada, isto é, pelas múltiplas realidades evidenciadas por contrastes tais como bucólico e urbano,

local e universal, remoto e contemporâneo, isolado e conexo (GRUZINSKI, 2001, p. 23-25).

Page 29: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

27

devemos ver as formas híbridas como resultados de encontros múltiplos e não como o

resultado de um único encontro”.

De acordo com a lenda narrada pelo cururueiro14

Luiz Marques da Silva, percebemos

um encontro do ribeirinho com o paraguaio, o qual o primeiro, por meio de adaptações, se

apropria do molde do instrumento estrangeiro e, com técnica local, utiliza-se dos materiais

que tinha disponível tais como: madeira (sarã ou figueira), cola de póca de peixe e a corda de

tucum (utilizada pelos índios e pescadores).

Figura 1 - Violas de Cocho

Fonte: Foto coletada no Site da TV Centro América

Este suposto encontro culminará no nascimento da viola de cocho (figura 1)

evidentemente mestiça, um instrumento que tem origem ainda questionada, (talvez oriental,

ou européia, ou tudo junto) mas cujo resultado é um mosaico de conhecimentos e técnicas que

se ajustam para a consecução de um determinado fim, o surgimento do distinto, do novo.

Se quisermos ir mais além de libertar a análise cultural de seus tropismos15

fundamentalistas identitários, devemos situar a hibridação em outra rede de

14

Relativo ao tocador e cantador de Cururu. 15Tropismo: termo emprestado da biologia, que segundo o dicionário Aurélio é uma “reação de aproximação ou

afastamento de um organismo em relação à fonte de estímulo” (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2004, p. 795.).

Page 30: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

28

conceitos: por exemplo, contradição, mestiçagem, sincretismo,

transculturação e creoulização (CANCLINI, 2001, p. 18, tradução nossa).16

Este é o sentido das coisas mestiças, híbridas, miscigenados, creoula ou qualquer outro

termo encontrado no universo de conceitos que hoje constituem o vocabulário dos cientistas

sociais, antropólogos, filósofos e linguistas.

Muitos termos são metafóricos [...]. Cinco metáforas em particular dominam

as discussões, extraídas respectivamente da economia, zoologia, metalurgia,

culinária e lingüística. Estarei portanto discutindo as idéias de empréstimo,

hibridismo, caldeirão cultural, ensopadinho cultural e finalmente tradução

cultural e „crioulização‟ (BURKE, 2003, p. 39).

Assim a existência do mestiço só é possível pelos fluxos migratórios e

consequentemente os encontros. “No encontro de culturas, um cocho que se fez viola”

(ANJOS FILHO, 2002, p. 67).

Das aproximações entre as culturas foi viabilizado o nascimento da viola de cocho. É

daí provavelmente a sua origem. Em suma, “a história de todas as culturas é a história do

empréstimo cultural” (SAID apud BURKE, 2003, p. 44), foram, portanto, estes empréstimos

que concretizaram o fazer da viola.

A viola de cocho então veio originalmente para incorporar-se a uma das expressões

culturais da população local proliferando-se por toda região, encaixou-se muito bem no cururu

e siriri, que são os gêneros musicais mais populares e que se espalharam tanto rio abaixo

como rio acima.

A viola de cocho é encontrada de Rosário a Corumbá, ou seja, toda extensão territorial

pantaneira. Seu uso se dá como instrumento de acompanhamento e marcação de ritmos das

músicas que são tocadas em rodas de homens17

(Cururu), mulheres e crianças (Siriri), que

dançam e cantam suas crenças, amores, peripécias e as paisagens locais.

Atualmente tem lugar cativo em grupos de expressão folclórica, nos meios onde as

manifestações culturais locais são o assunto, como nos centros culturais e institutos.

16

Si queremos ir más allá de libertar al análisis cultural de sus tropismos fundamentalistas identitários,

debemos situar a La hibridacion en otra red de conceptos: por ejemplo, contradicción, mestizaje, sincretismo,

transculturación y creolización (CANCLINI, 2001, p. 18). 17

“O Cururu consiste em no mínimo, dois cantadores, sempre do sexo masculino: um tocando a viola de cocho e

o outro o ganzá ou os dois tocando viola. Mesmo quando o grupo de cururueiros é grande, cantam sempre em

duplas, acompanhados pelo toque dos instrumentos de todos os participantes, cujo número de violas é sempre

maior, pois o som do ganzá é muito alto.

“Nem sempre o cururu é somente cantoria e dança. Há que pratique o cururu até hoje, em forma de „porfia‟

(desafio), quando um cantador faz uma pergunta a um dos companheiros, desafiando seus conhecimentos em

algum tema, principalmente bíblico” (CADERNO DE FOLCLORE MATO-GROSSENSE Nº 2, 1990, p. 10).

Page 31: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

29

Aludindo a Mário de Andrade (apud GRUZINSKI, 2001, p. 23), com o verso “Sou um

tupi tangendo um alaúde”, porém desta feita, o tupi não somente se apropria do instrumento

estrangeiro, mas contribui com a construção de um novo; mesclando seus conhecimentos

técnicos e inserindo materiais de sua vivência; materializando um objeto para atender aos

anseios pessoais e de sua coletividade, transportando-o para o seu cotidiano (ver figura 2).

Figura 2 - Dito Verde e sua viola de cocho

Fonte: Foto coletada no site Olhares fotografia on line

2.1 Planalto Central: Processo de Hibridações

O advento da música contemporânea em Cuiabá tem ligações com o Rio, mas do Rio

com “R” maiúsculo, o Rio que não é metáfora, ou seja, a cidade do Rio de Janeiro, de onde

procede o compositor Roberto Victorio.

Este compositor inicialmente vem para Cuiabá para ser o maestro da Orquestra

Sinfônica da UFMT e, em posse de seu cargo, propõe outra maneira de realizar a música bem

distinta das práticas musicais que por aqui se faziam, como observado em análise dos

programas de concerto da orquestra em que o repertório se restringia ao tonalismo, ou seja,

músicas compostas entre os séculos XVIII e XIX. Victorio insere nas programações a música

Page 32: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

30

de vanguarda, “uma apologia ao presente [...] em sua busca obsessiva do novo” (ARRUDA,

1994, p. 29).

Este tipo de proposta musical ainda não tinha sido vivenciado por esta orquestra e

Victorio se estabeleceu como o mais importante incentivador e difusor da música

contemporânea em Cuiabá.

A música contemporânea, que o citado compositor propõe, é uma música que não está

presa às regras formais da música tonal, nem tão pouco compromissada com a regularidade do

pulso e da linha melódica. Com isso Roberto Victorio trouxe para Cuiabá a controvérsia há

muito tempo existente no meio musical: a dicotomia tonal/atonal, inserindo uma prática

musical até então inédita.

Com isso, a formação instrumental da orquestra não fica mais amarrada aos moldes

das orquestras clássicas ou românticas, de modo que a sua formatação pode variar conforme a

intenção do compositor em explorar determinadas sonoridades.

O timbre é um dos elementos mais importantes desta abordagem, “o timbre, assim

como a notação, passam a ser pensados como unidades formadoras do corpo musical e como

elementos primordiais dentro de poéticas, onde todo um motivo gerador de uma obra pode

partir de um dado tímbrico ou de notação” (VICTORIO, 2003, p. 6) posto que o compositor

contemporâneo explora as sonoridades dos instrumentos musicais das maneiras mais

diversificadas e muitas vezes de um jeito bem diferente do usual.

A opção pela busca tímbrica como parâmetro primordial no processo de

criação, sem abrir mão do ritmo como ferramenta guia e formadora do

arcabouço deste trilhar, abriu uma janela sui generis para o contato com o

signo e o símbolo absolutamente transformador e delineador do perfil

musical deste século (VICTORIO, 2003, p. 5).

O compositor tem a liberdade de inserir instrumentos musicais que não fazem parte da

formação tradicional de uma orquestra sinfônica ou outras formações musicais quaisquer,

principalmente quando seu interesse está direcionado para o timbre.

A música contemporânea que se estabeleceu em Mato Grosso admite ampla liberdade

compositiva na procura por uma vasta expressividade, pois permite misturas, provocando um

emaranhado de sonoridades em favor do resultado musical.

Para Gruzinski (2001, p. 43), “O fato é que o fenômeno da mistura se tornou uma

realidade cotidiana, visível nas ruas [...]. Multiforme e onipresente, ela associa criaturas e

formas que a priori, nada deveria aproximar”.

Page 33: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

31

A obra Planalto Central, composta em 1994 pelo compositor Roberto Victorio, é um

exemplo da hibridização musical que comumente ocorre no âmbito da música contemporânea.

A formação instrumental desta peça consiste em: soprano – (voz feminina), três violas

de cocho, berrante, três trompetes, piano, clarineta, clarone, 7 percussões, quinteto de cordas.

Esta música possibilitou o encontro de instrumentos que em seu local de vivência não

dividiam o mesmo espaço musical, neste caso, viola de cocho e o berrante. Não se tem

registro da presença do berrante no cururu e siriri, bem como do uso da viola de cocho em

formações orquestrais, dividindo o espaço com violinos, violas, violoncelos e contrabaixos,

instrumentos de tradição européia.

De acordo com Serres (1993, p. 27), “As duas bandas ou caminhos se encontram no

lugar de intersecção, mestiço, simples, duplo e cruzado: ausente, excluído, poderosamente

presente”.

Por intermédio de Planalto Central, a viola de cocho é transportada dos quintais dos

ribeirinhos para um palco de teatro (Teatro Universitário) e é tocada não da forma usual do

cururueiro, ou seja, por acordes que dão a base harmônica da melodia e movimentos de

pulsação rítmica, mas aos modos do compositor contemporâneo em suas buscas pelas

possibilidades timbrísticas.

A sua linguagem tradicional não é reproduzida. Ocorre a troca por uma linguagem até

então estranha a ela; suas cordas são tangidas em sequência de notas sucessivas e alternadas,

ou seja, dedilhadas em vez de batidas simultâneas em todas as cordas.

Em certos momentos seu corpo (caixa de ressonância) é percutido com a mão do

músico para explorar as possibilidades sonoras do instrumento. O pizzicato Bartok18

também

é utilizado e as cordas são bruscamente puxadas e soltas batendo no corpo do instrumento

produzindo um efeito percussivo.

A música Planalto Central alude a Cuiabá antiga e às paisagens do pantanal por meio

dos versos do poeta Manoel de Barros. A viola de cocho é inserida nesta obra repetindo de

outra maneira o papel que ela exerce em sua origem.

De origem estrangeira (européia), a viola de cocho se torna pantaneira para atender aos

fazeres culturais do pantaneiro e agora pantaneira, vem para atender às práticas musicais de

origem estrangeira (européia). Como cita Burke (2003, p. 32), “A África imita a África por

intermédio da América”. Seria o mesmo que dizer, a Europa imita a Europa por intermédio do

Pantanal? Essa questão reflete o que se entende como circularidade cultural.

18

Neste tipo de Pizzicato a corda é puxada verticalmente e solta em direção ao espelho do instrumento, causando

um efeito percusivo.

Page 34: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

32

Sobre esta circularidade cultural acreditamos que um notável fenômeno encontrado na

humanidade é o êxodo, a migração, qual seja, a capacidade de transportar-se de um local para

o outro. E nesta mudança é levada toda sua carga cultural e o mais importante, ela é adaptada

aos novos locais. É portanto, neste encontro que ocorre a citada circularidade.

O homem refaz suas práticas e incorpora novos modos. É neste processo que ocorrem

mestiçagens e todas as misturas que se possa classificar. Reside aí um importante testemunho

da grande força criadora humana.

Em Mato Grosso a viola de cocho foi empregada nas rodas de cururu e siriri, como

coadjuvante dessas que são consideradas uma das maiores expressões culturais da

comunidade que circunda as regiões do pantanal.

O Cururu e o Siriri, com a participação da viola de cocho, cantam e dançam o

ambiente, o homem e o seu cotidiano. Na contemporaneidade, associados a todo este conjunto

de coisas, é acrescido outra prerrogativa, qual seja: o simbólico.

Desta forma ela, além de cantar o povo e atender os seus anseios expressivos, passa

agora a simbolizá-lo e representá-lo; figurando onde a noção de identidade cultural precisa de

uma representação.

O deslocamento da razão primeira do existir da viola de cocho foi direcionada para a

música contemporânea quando empregada em Planalto Central que reforça as sonoridades

que o compositor queria explorar e experimentar em sua obra e investiga as suas

possibilidades timbrísticas. Deste modo a viola de cocho incorpora também outra

característica que é próprio das obras de arte, a de objeto de apreciação.

Roberto Victorio, ao conceber Planalto Central, comenta em entrevista que pensou

em inserir na sua música o que havia de mais representativo para a cultura desta região. Deste

modo não ignorou a viola de cocho, mas a incluiu em sua música pela força de sua

representação. Pois como vimos anteriormente, ela não é somente representativa, mas tem

sido louvada ora como discurso político de folcloristas ou entidades governamentais, ora

como discurso publicitário ou estratégias de marketing.

Estes últimos se apropriam de sua imagem para obtenção das mais variadas vantagens,

sempre utilizando a temática viola de cocho e a cultura do povo mato-grossense, conforme

podemos perceber na figura 3, em que o prefeito da cidade de Cuiabá, Wilson Pereira dos

Santos, presenteia o então Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, por ocasião de

sua visita a cidade.

Page 35: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

33

Figura 3 - Lula recebendo viola de cocho do prefeito de Cuiabá Wilson Santos

Fonte: Foto coletada no Site RDNEWS

Nesta ocasião acordava-se a liberação de verbas do Programa de Aceleração do

Crescimento (PAC) para Cuiabá. Segundo informações da RDNEWS, no valor estimado de

200 milhões de reais, para obras de saneamento básico.

Page 36: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

34

3 A MÚSICA DE CONCERTO DO SÉCULO XX E AS SUAS VERTENTES

O termo Música do Século XX será mais apropriado se pronunciado no plural

(Músicas do Século XX) devido à diversidade de tendências que tem sido observada no

âmbito da produção deste século, pois não há um único modelo ou escola, mas várias.

Na Música do Século XX o termo estilo que foi utilizado para classificar as produções

musicais dos séculos anteriores se torna redutivo e é assim que Salles (2005, p. 58-59),

conclui em suas pesquisas, após uma profunda análise dos principais aspectos que levaram a

música do modernismo ao pós-modernismo. Para ele é impossível “encontrar uma fórmula

reducionista de estilo musical para o pós-modernismo”. Assim sendo, “classificá-lo dessa

forma seria não reconhecer as forças conflitantes que compõe a pós-modernidade” (SALLES,

2005, p. 58-59). Deste modo alguns compositores têm substituído o termo estilo musicais por

tendências, para se referir à música do século XX.

Marlos Nobre aponta 21 tendências musicais e Roberto Victorio 14, na tentativa de

explicar o quadro em que a Música Contemporânea se encontra e que serão apresentadas

adiante.

Neste capítulo faremos uma abordagem dos elementos que distinguem a música do

século XX da produção musical antecedente. Para tanto apontaremos algumas modificações

no campo social e cultural do referido século para se ter um panorama que justifique as

mudanças verificadas.

Alguns conceitos de Lyotard foram aplicados, visto que se trata de um dos mais

conceituados teóricos do pensamento contemporâneo; além de dois compositores brasileiros

não menos importantes, de gerações distintas e que possuem visões do cenário musical que

devem ser levadas em consideração. Pois enquanto Marlos Nobre demonstra as tendências da

música do século XX, com foco nos compositores europeus e norte-americanos, Roberto

Victorio direciona sua abordagem para a música brasileira, demonstrando os compositores

que mais se identificam com cada tendência mencionada.

Existem outros trabalhos de pesquisas que foram desenvolvidos por compositores

brasileiros com a mesma temática. Segundo Salles (2005, p. 156), Ricardo Tacuchian

observou “cinco grandes tendências” para a música contemporânea19

. Ele é um compositor

19

Ricardo Tacuchian classificou a música contemporânea por “Cinco Grandes tendências”, a saber: 1.

Vanguarda, 2. Neonacionalismo, 3. Neo-romantismo, 4. Pós-modernismo, 5. Música eletroacústica (SALLES,

2005, p. 156).

Page 37: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

35

brasileiro que se auto-classifica como pós-modernista.20

O curioso da abordagem de

Tacuchian é o fato de ter incluído o pós-modernismo como uma delas e não como um

processo guarda-chuva, isto é, um projeto maior que envolve várias tendências. Seu

pensamento aproxima o pós-modernismo do que classificaríamos como estilo, mas o

posicionamento de Tacuchian encontra oposição e Paulo de Tarso Salles (2005, p. 159),

sustenta que,

A definição de pós-modernismo proposta por Tacuchian como „um

comportamento estético que tenta superar as velhas polaridades que

definiram a música do século XX‟ é, portanto, segundo procuramos

demonstrar, um conceito que pode abranger todas as noções anteriores, que

chamamos „pós-modernismo‟, e não „uma entre cinco tendências‟ visto

como um estilo [...] o pós-modernismo então é „inevitável‟, não se pode

entrar ou sair dele como uma opção estilística.

Nobre e Victorio apresentam mais tendências e focam as suas abordagens por

perspectivas diferentes, que se colocarmos lado a lado, teremos uma visão mais ampla do

complexo panorama musical da música do século XX, contemplando a música brasileira,

como veremos.

Roberto Victorio que é um compositor de geração mais recente que Marlos Nobre e ao

tratar da música do século XX - XXI inclui compositores da novíssima geração, inclusive uma

mato-grossense. Também demonstra vertentes que não foram mencionadas por seu colega de

ofício.

Victorio fez suas considerações por ocasião das aulas que foram ministradas no

módulo “Estética e Processos Composicionais”, em 2010, oferecidas no Mestrado de Estudo

da Cultura Contemporânea, ECCO, na UFMT.

3.1 O Século XX e a Sua Música

Quando se fala em música contemporânea, isto é, a música do século XX, devemos ter

em mente um divisor para esta produção – a primeira e a segunda metade do século. Os anos

50, segundo Lyotard, foram marcados pela remodelação de consciências e consequentemente

20

Salles (2005, p. 160) inclui entre os compositores que se “autodenominam pós-moderno”, Tacuchian e

Almeida Prado.

Page 38: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

36

mudanças no âmbito cultural. Portanto estes aspectos afetam diretamente a produção artística

que a eles estão intrinsecamente ligados.

Nossa hipótese de trabalho é a de que o saber muda de estatuto ao mesmo

tempo que as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na

idade dita pós-moderna. Esta passagem começou desde pelo menos o final

dos anos 50, marcando para a Europa o fim de sua reconstrução

(LYOTARD, 2006, p. 5).

As tentativas em classificar a música do século XX por estilos, como ocorria nos

séculos anteriores, se mostraram ineficientes, principalmente a partir da segunda metade do

século – período em que se verifica praticamente uma revolução nos meios de comunicação.

O acesso à informação, entre outros fatores, favoreceu a diversidade de produção que

se torna uma das características da música deste período, pois o compositor tem à sua

disposição, com extrema facilidade, acesso à produção musical de sua época ou de qualquer

outra.

As práticas composicionais tradicionais parecem esgotar-se diante dos anseios de

busca por novas alternativas musicais por parte do compositor contemporâneo. Portanto

houve a necessidade de se encontrar uma alternativa para a classificação desta música.

Existe atualmente ampla literatura que discorre sobre este tema. Entretanto

utilizaremos o ensaio “Tendências da Criação Musical Contemporânea” apresentado pelo

compositor brasileiro Marlos Nobre em um Congresso Internacional realizado na Espanha no

ano de 1994 que tinha como temática – “Música e Sociedade nos anos 90”.

Diante da dificuldade em se conferir um estilo musical ao século XX Marlos Nobre

chega a ser imperativo sobre este aspecto e diz “ser impossível falarmos da existência de um

estilo genérico de época ou de dois estilos contrapostos que tenham um efeito polarizador tal

como sucedeu na primeira metade do século XX” (NOBRE, 1994, p. 73). Portanto o termo

“tendência musical” passa a ser utilizado para substituir estilo e classificar este complexo

quadro em que se encontra a música do século XX.

A produção da música de concerto do início do século XX ainda estava sobre o efeito

das maneiras musicais dos últimos anos do XIX e naquele período figuravam como

importantes compositores Stravinsky e Schoenberg, entre outros; que deram grandes

contribuições para o estabelecimento de mudanças que são claramente verificáveis no âmbito

da música erudita em geral.

Entretanto não se pode conferir a somente dois compositores a responsabilidade de

todas as mudanças verificadas na produção da música do século XX, mesmo que eles tenham

Page 39: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

37

tido vital importância para esse processo, como Schoenberg, a quem é atribuída a autoria do

sistema composicional dodecafônico.

Assim Marlos Nobre faz menção a compositores que ele considera representantes

fundamentais da música da primeira metade do século, que são: Bartok, Prokofiev,

Hindemith, Shostakovitch, Villa-Lobos, Ravel, De Falla, Berg, Webern e Krenek.

Os compositores acima mencionados, além de contribuírem para a produção da música

do século XX, influenciaram sobremaneira a geração dos compositores da segunda metade do

século. O mesmo se pode observar com a música do século XXI, que nesta primeira década

tem raízes profundas na produção de seu antecedente.

Como a música pode traduzir o comportamento e as mudanças de ordem social de uma

época. Podemos observar isso especialmente na segunda metade do século XX, período

considerado como a era da comunicação; quando a informação passa a ser transmitida em

grandes proporções, simultânea e instantaneamente em escala mundial. Passamos da época da

produção para a era da informação, neste sentido:

“A multiplicação das máquinas informacionais afeta e afetará a circulação dos

conhecimentos, do mesmo modo que o desenvolvimento dos meios de circulação de homens

(transporte), dos sons e, em seguida, das imagens (media) o fez” (LYOTARD, 2006, p. 4).

O evento de 11 de setembro nos Estados Unidos da América pode servir de exemplo

da dimensão em que a informação está veiculada em escala global e instantânea. Eis que foi

transmitido ao mesmo tempo, para todo o mundo, como se tivesse sido ensaiado e informado

previamente à população o acontecimento.

As filmagens do evento foram mostradas por vários ângulos e distâncias; oportunidade

em que o impacto dos aviões sobre as Torres Gêmeas foi visto ao vivo por expectadores

estarrecidos em seus televisores ou computadores via internet por todo o globo terrestre.

A transmissão via satélite dos eventos de 11 de setembro foi similar ao de uma Copa

do Mundo, em que as câmeras filmadoras ficam estrategicamente colocadas para a maior

diversidade de imagens possível, fornecendo ao espectador minúcias impossíveis de se

perceber a olho nu no local.

Deste modo antes mesmo que as torres ruíssem, todo o planeta já estava informado do

evento. Inclusive suscitando entre os espectadores comentários pré-concebidos sobre os

possíveis responsáveis pelo atentado. Este evento, não fosse trágico, poderia ser considerado

um espetáculo.

Pelo exemplo acima pode se perceber o quadro atual em que se encontra a transmissão

de informação e do conhecimento no século XX. Confirmando a previsão de Lyotard sobre os

Page 40: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

38

efeitos dessa dinâmica sobre as pessoas que culminará com efeitos decisivos na diversidade e

heterogeneidade dos aspectos culturais da humanidade. O mesmo se pode observar na

produção musical, principalmente na da segunda metade do século.

“A partir dos anos 50 e até nossos dias, entretanto, o panorama é de extrema

diversidade de tendências, até chegarmos a um verdadeiro emaranhado, no qual cada

compositor busca um estilo individual de expressão, ainda que poucas vezes o encontre”

(NOBRE, 1994, p. 74).

O compositor atual tem muita facilidade em adquirir informações sobre a produção

musical atual, que também pode ser acessada via internet.

A percepção de tempo e espaço tem outras configurações: o passado e o presente

podem ser reproduzidos simultaneamente. Ouve-se de Bach a Victorio digitando-se poucas

teclas em um terminal de computador. São situações como estas que podem suscitar

relevantes questões.

Ludmila Brandão (2010), por exemplo, em uma de suas aulas no módulo de

Designações do Tempo Presente, no programa de mestrado ECCO, inquiriu à sala, “o que é o

contemporâneo? Quem é nosso contemporâneo?” E conclui em seguida dizendo; “o

carroceiro é meu contemporâneo”.

Ora, em uma época cujas pesquisas espaciais apontam para a existência de água no

subsolo de Marte; nas ruas movimentadas de Cuiabá se vislumbra entre o trânsito,

charreteiros guiando seus cavalos, transportando suas mercadorias. Desse modo o passado é

tão acessível e atual quanto o presente.

Assim sendo, tanto a Cuiabá contemporânea quanto Algodoal do Amazonas ou

Planalto Central de Roberto Victorio podem expressar a realidade mesclada com as suas

implicações multitemporais, pesquisadas e demonstradas por Gruzinski na formulação de sua

teoria.

Atestam também como estas múltiplas realidades tem afetado a produção de artistas e

pesquisadores.

3.2 Vertentes e Tendências da Música Contemporânea

Pelo exposto acima, falar em estilo musical para classificar a música produzida no

século XX é considerado uma atitude reducionista, considerando-se a perceptível

Page 41: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

39

heterogeneidade de fazeres e saberes musicais. Para explicar este contexto Marlos Nobre

aponta para “duas grandes vertentes estéticas” que ele nomeia respectivamente de “linha

germânica” e “linha latina”. Para ele estas duas linhas influenciaram tendências da música

contemporânea do início do século XX até os dias atuais.

A linha germânica evoluída do cromatismo total como um dos últimos recursos para

novas sonoridades do sistema tonal e que tem como ponto culminante Wagner e Mahler cede

lugar ao sistema dodecafônico serial desenvolvido por Schoenberg, a partir do qual ficou

estabelecida a era do atonalismo; sendo sua principal característica a liberação da dissonância.

A música não fica mais presa às regras tonais; entretanto, conforme observa Nobre,

esta vertente musical ainda estava presa às formas de composição tradicional. As principais

mudanças observadas neste primeiro momento ocorreram em relação ao parâmetro altura,

mantendo-se intactos os usos dos outros parâmetros conforme estabelecidos anteriormente.

Vemos assim claramente, que a concepção de forma em Schoenberg e seus

seguidores, estava ainda totalmente atrelada às formas tradicionais,

sobretudo com a mesma mecânica do „allegro sonata‟, mais ou menos

camuflada de acordo com cada compositor, mas sempre presente (NOBRE,

1994, p. 75).

Marlos Nobre chega a comentar que a manutenção da forma observada no sistema

dodecafônico serial pode nos dar a impressão de estar ouvindo um Brahms desafinado.

Entretanto todos nós sabemos que as mudanças, quaisquer que sejam, nunca ocorrem

abruptamente. Parecem obedecer a uma série de acontecimentos que as favoreçam.

A Linha Latina, por sua vez, originada em Mussorgsky, passando a Debussy e

Stravinsky, tem como principal característica exatamente o rompimento com a forma musical,

que ainda estava solidamente internalizada na produção da música serial.

A linha latina caracteriza-se pela liberação da forma musical do conceito de

„desenvolvimento‟ temático e também do conceito da obra como uma

organização formal que começa em um princípio temático até suas

conseqüências finais (NOBRE, 1994, p. 76).

Nesta outra vertente musical os compositores não abandonam totalmente as regras da

tonalidade. Entretanto irão utilizá-las sem a imposição dos encadeamentos harmônicos. Eles

serão tratados como “entidades independentes em função exclusivas de suas propriedades

acústicas” (NOBRE, 1994, p. 76).

Nesta linha, como já foi dito, é abolida a forma na qual o compositor apresenta o tema,

desenvolve e depois reapresenta em direção ao clímax da obra. No entanto ele estabelece um

sistema de seções no qual o compositor desenvolve a idéia musical.

Page 42: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

40

Outro elemento primordial para a nova concepção musical é o uso da repetição, que

será estabelecido como o fator mais importante da música. Como exemplos deste

estabelecimento de organização compositiva, Nobre cita, Vexations de Satie, que é uma

página repetida 840 vezes; a primeira das três peças para Quarteto de Cordas de Stravinsky,

rico em ostinatos; a obra Integrales de Varèse, em que segundo Nobre “o compositor utiliza

um procedimento de registração fixa em complexos sonoros que se mantém invariáveis

durante extenso período de tempo” (NOBRE, 1994, p. 79), e por fim o famoso Bolero de

Ravel que talvez seja o mais popular exemplo de música repetitiva que se possa relacionar. A

partir da idéia da repetição, o minimalismo se estabelece como um dos mais emblemáticos

procedimentos da música do século XX.

Ao dar sua contribuição para o entendimento da música do século XX, por meio de

duas linhas nomeadas de latina e a germânica, Marlos Nobre propõe uma simplificação que

marca, respectivamente, o estabelecimento da atonalidade e o desmantelamento da forma

musical, os quais podemos considerar como os germens embrionários por onde foram

estabelecidos os alicerces da música contemporânea.

A música do século XX, conforme dissemos anteriormente, será mais apropriada se

pronunciada na forma plural devido ao emaranhado de tendências existentes, Marlos Nobre

chega a classificá-la como Torre de Babel e menciona 21 tendências que englobam o cenário

contemporâneo conforme seqüência exposta abaixo:

1. Pós-serialista: música com rigor de escrita, de construção, obedecendo a

um sistema pré-estabelecido pelo compositor.

2. Compositores que utilizam o timbre até as últimas conseqüências, o

timbre como recurso primordial para a composição.

3. Música Espectral: essencialmente instrumental. Sons resultantes de uma

nova utilização de ressonâncias e micro-intervalos.

4. Estética do Som Puro, prolongado, estirado, vibração individual

extrema.

5. Micro-Tonalidade, caracterizada pelo uso de intervalos menores que

meio-tom.

6. Música Eletroacústica: produzida por meios eletrônicos como

computadores e sintetizadores.

7. Música Acusmática: som auditivo puro sem a presença do músico no

palco, espetáculo realizado por meio de auto-falantes.

8. Música Instantânea, junção da música contemporânea com o jazz.

9. Música Minimalista: variações ínfimas do tema repetidas muitas vezes,

tendo como principais representantes, Steve Reich, Terry Riley, John

Cage, John Adams, Michael Nyman e Philip Glass.

10. Conceito de Massa Sonora.

11. Música Estocástica (Xenakis), baseada sobre cálculos matemáticos da

probabilidade.

12. Música Multi-serial, fusão da multitonalidade e do serialismo.

13. Retorno ao Neoclássico.

Page 43: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

41

14. Influência do Rock e Músicas Alternativas.

15. Teatro Musical, Happening musical.

16. Poli-estilo: linguagem musical autônoma por meio de adaptações,

combinações de diferentes estilos.

17. Maximalismo, Nova Complexidade.

18. Clusters ou Blocos sonoros.

19. Cromatismo-modal, utilização de diferentes modos simultaneamente.

20. Politonalismo: utilização de diferentes tonalidades simultaneamente

criando dissonância.

21. Aleatoriedade (NOBRE, 1994, p. 80)

A música contemporânea comporta todas as tendências acima citadas que são

praticadas simultaneamente. Por isso não é possível a sua classificação por estilos e esta

condição se constitui como uma das mais importantes características que essa música possa

apresentar, qual seja, a multiplicidade de tendências.

Tome-se como exemplo os Anais do XIII Encontro Nacional as ANPPOM,

do qual participamos, e cujo tema principal, exposto na palestra inaugural de

Jean-Jacques Nattiez, era justamente a pluralidade como tendência para a

música do século XXI (SALLES, 2005, p. 161).

Mas se não é possível encontrar um estilo no pós-moderno, é possível verificar os

procedimentos que são mais comuns na música pós-moderna. E é desta perspectiva que Salles

(2005, p. 128) menciona os resultados da pesquisa de Beatrice Ramaut-Chevassus (1998).

Segundo Salles, essa pesquisadora faz um “inventário das técnicas, funções e conceitos em

jogo na música pós-moderna”.

Ramaut-Chevassus observa a freqüência de três manifestações no domínio estético.

Segundo afirma, ocorre “uma nova atitude em relação ao passado, o gosto pelo ecletismo e a

busca pela comunicabilidade” (RAMAUT-CHEVASSUS apud SALLES, 2005, p. 128).

Partindo disso ela classifica seis procedimentos: 1. Melodia, 2. Repetição, 3. Simplicidade, 4.

Citação, 5. Colagem e 6. Retorno às diferenciações nacionais/étnicas. Por eles estabelece os

critérios do “gesto composicional” da música pós-moderna.

Os procedimentos apontados por Ramaut-Chevassus são observáveis nos

apontamentos de Marlos Nobre e Roberto Victorio e por sutil análise, podemos verificar que

estão internalizados em determinadas tendências por eles classificadas.

Apesar de Nobre e Victorio enumerarem várias tendências, existem também os

compositores que não se enquadram ou não admitem se enquadrar em nenhuma delas.

Preferem classificar suas obras por estilo individual. Também existem os compositores que

ainda querem compor suas músicas obedecendo às regras tradicionais do tonalismo e às regras

Page 44: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

42

composicionais estabelecidas no século XIX, por assim ser, “o pós-modernismo está longe de

ser um estágio de consenso” (SALLES, 2005, p. 161).

A música contemporânea brasileira apresenta o mesmo quadro de complexidade e os

compositores não comungam de tendência única. O compositor Roberto Victorio durante aula

realizada no dia 24 de junho de 2010, no módulo de Estética e Processos Composicionais

classificou 14 Vertentes da música contemporânea brasileira da seguinte maneira:

1. Nacionalismo, representado principalmente por Villa-Lobos/Neo-

nacionalismo, por João Guilherme Ripper e Ernani Aguiar.

2. Modalismo/Neo-modalismo, Pauxy Gentil-Nunes, Marcelo Moreira.

3. Cunho Indígena, pesquisa não nacionalista, Kilza Setti, Maria Helena

Rosa Fernandes.

4. Música Ritual, que utiliza no processo composicional a numerologia,

Kabala e referencial Alquímico, e a transcendência. Como representante

desta tendência, o compositor Roberto Victorio, desde 1980, inspirado

em Bela Bartók.

5. Música experimental, Marcelo Palhares e outros.

6. Música Eletrônica, processada por meios tecnológicos, computador e

sintetizador, Rodolfo Caezar, Flo Meneses, Denise Garcia, Paulo Chagas

e Cristina Dignart21

.

7. Influência popular, não nacionalista, Marcos Ferrer, Pauxy Gentil-

Nunes.

8. Atonalismo/Atonalismo Livre.

9. Minimalismo/Neo-minimalismo.

10. Aleatório/Aleatório controlado, Ana Cecília Santos22

.

11. Happening/Multimídia.

12. Poliestilo, plano simultâneo, conexão de planos.

13. Música e Repetição (processo de repetição que não é necessariamente

minimal).

14. Maximalismo, nova complexidade (VICTORIO, 2010).

O século XX então se apresenta como um grande mosaico de possibilidades musicais

em que as expressões do presente e do passado convivem simultaneamente, pois a produção

da música contemporânea não interrompe a produção musical anterior, assim como também

não foi impedida por ela.

Mesmo que por parte dos simpatizantes da música erudita tonal tradicional tenha

havido certa rejeição para com a música contemporânea de concerto (e esta reação não é

surpresa nem novidade). Ela tem sobrevivido e a sua produção garantida, pois em torno da

21

A compositora Cristina Dignart é cuiabana, foi aluna de composição de Roberto Victorio. Seu trabalho em

música eletroacústica tem sido bem recebido, com obras premiadas e apresentadas no Brasil e exterior. É

professora da graduação em Música da UFMT e membro do Núcleo de Estudos de Composição e Interpretação

da Música Contemporânea da UFMT. 22

Ana Cecília é paranaense radicada em Cuiabá desde a infância, foi aluna de Roberto Victorio na graduação em

música da UFMT e no Mestrado em Estudos de Linguagens, oferecido pelo Instituto de Linguagens da mesma

instituição. É detentora de prêmios pelo seu trabalho como compositora e possui obras registradas em CDs e

DVDs.

Page 45: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

43

música contemporânea existem músicos, pesquisadores e um público consumidor interessado.

Essa legião de adeptos tem assegurado e ampliado o consumo da música contemporânea.

Em Mato Grosso tal assertiva pode ser comprovada ao considerar-se o público

presente em concertos exclusivos para execução da música do século XX e que tem apogeu

nas Bienais de Música Contemporânea de Mato Grosso. Vale ressaltar que esses eventos

foram idealizados pelo compositor Roberto Victorio, como forma de difundir a música

contemporânea de concerto em Mato Grosso.

Na 3ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea de Mato Grosso, realizada no ano

de 2008 na UFMT em Cuiabá, todos os concertos obtiveram significativa participação de

público, inclusive com audiência acima da capacidade de lotação do ambiente. Neste evento

foram observadas pessoas em pé no auditório.

Os recursos financeiros têm sido garantidos por meio de instituições públicas e

privadas, entre elas universidades e ONGs. Estas últimas são patrocinadas pelas iniciativas

privadas e por projetos culturais. Entretanto, não haveria o patrocínio nem a participação

destas instituições se não houvesse um público a quem esta produção fosse destinada; é

evidente que os investimentos para a música contemporânea são tímidos, se comparados aos

investimentos de outras vertentes musicais, mas têm dado sustentação necessária para a sua

sobrevivência.

Page 46: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

44

4 O PERCURSO DA MÚSICA DE CONCERTO EM MATO GROSSO

Mencionaremos o percurso da música de concerto em Mato Grosso por quatro fases

distintas. Estas etapas foram percebidas no curso de nossa pesquisa, após verificações em

material bibliográfico.

As duas primeiras etapas foram baseadas na investigação de dois pesquisadores: a

pianista Maria Benedita Deschamps Rodrigues, mais conhecida por Dunga Rodrigues e o

teatrólogo Alceu de Moura Lott. Ambos descreveram as atividades artísticas ocorridas em

Cuiabá-MT, amparados em relatos documentais que datam do século XVIII à primeira metade

do XX e forneceram importantes informações sobre a música daqueles períodos.

Situamos a primeira fase da música de concerto em Mato Grosso como aquela que foi

praticada no período colonial e que se estendeu até o século XIX com as primeiras

representações de óperas.

A segunda fase ocorreu na primeira metade do século XX e é marcada pelas

realizações dos saraus lítero-musicais, que foram as práticas musicais que se estabeleceram na

capital mato-grossense; viabilizados pelas facilidades propiciadas pelo agrupamento

camerístico.

A terceira fase da música de concerto aconteceu a partir da década de 1980, com a

criação da primeira orquestra sinfônica do estado de Mato Grosso.

A quarta fase se deu com o início da produção de vanguarda23

da música

contemporânea de concerto, ocorrida nos idos de 1994. Utilizamos vanguarda como sinônimo

de inovação, “uma característica secundária de arte de vanguarda é que, quando ela entra num

terreno novo, viola as regras, entrincheirando-as”24

(KOSTELANETZ, 1992, p. 4, tradução

nossa), e também porque foi o termo escolhido pelo compositor Roberto Victorio para se

referir as obras que propunha oferecer ao público cuiabano, logo que iniciou os seus trabalhos

no ano de 1994.

23Richard Kostelanetz (1992, p.1, tradução nossa) utiliza três critérios para classificar vanguarda. Para ele, “ela

transcende as atuais convenções artísticas em seus aspectos mais cruciais, criando uma diferenciação entre si e as

práticas atuais das massas, em segundo lugar o trabalho da vanguarda levará um tempo considerável para atingir

sua máxima audiência; e em terceiro, ela irá provavelmente inspirar futuros esforços de avanço.”

“It transcends current artistic conventions in crucial respects, establishing a discernible distance between itself

and the mass of current practices; second, avant-garde work will necessarily take considerable time to find its

maximum audience; and, third, it will probably inspire future, comparably advanced endeavors”

(KOSTELANETZ, 1992, p.1). 24

One secondary characteristic of avant-garde art is that, in the course of entering new terrain, it violates

entrenched rules (KOSTELANETZ, 1992, p. 4).

Page 47: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

45

Esta etapa foi amparada por relatos (entrevista), programas de concertos, notícias

fornecidas pela imprensa local da época e uma monografia de conclusão de curso.

Desta feita podemos concluir que a prática da música de concerto em Cuiabá não é

recente e em cada período ela apresenta um caráter diferente. Os registros destas atividades

musicais remontam ao período colonial, quando aconteceram encenações de óperas em praça

pública.

“A produção de músicas de caráter genuinamente erudito, também se fazia presente,

sendo que existem registros muito antigos a respeito desses tipos de produção musical, desde

o período áureo do colonialismo português em Cuiabá” (SANTOS FILHO, 1996, p. 13).

4.1 A Primeira Fase

A descoberta do ouro nas lavras mato-grossenses motivou o interesse do império

português por estas regiões e a sua extração que atualmente é conhecida como garimpo exigia

abundância de mão-de-obra. Além do mais os mineradores deveriam fixar-se no local por um

longo tempo, tendo em vista que o acesso a esta região era muito difícil e o único meio de

transporte era o rio.

“Entre 1735 e 1740, as minas mato-grossenses contavam com aproximadamente 40

mil habitantes, tendo sido já restabelecida a via de imigração, outra vez estimulada pela

descoberta de novas minas” (LOTT, 1986, p. 32).

Outro grande empecilho para ir e vir era a grande distância geográfica existente entre a

Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá e os outros centros do império para onde eram destinados

o ouro retirado das lavras mato-grossenses; além dos perigos oferecidos pelos índios locais

que atacavam os mineiros em imigração e os comerciantes que abasteciam as minas.

As dificuldades da recém-criada vila (1727), elevada de categoria pela

excelente arrecadação dos quintos reais eram grandes: os rios eram de difícil

acesso, os índios atacavam as monções vindas de São Paulo para abastecer o

circuito das minas mato-grossenses, o ouro precisava ser escoado e as minas

abastecidas (LOTT, 1986, p. 30).

Deste modo, manter homens nesta remota região não era tarefa fácil. Foi necessária

uma mínima organização logística, que se dava com circulação de bens e mercadorias de

consumo. Dentre elas, atividades culturais como o teatro e a música. Assim sendo, as óperas

Page 48: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

46

que eram representadas na Europa foram adaptadas e encenadas aos moradores, em locais

públicos, com as devidas adequações necessárias.

As „óperas‟ são vertentes de ópera italiana, grande sucesso em Portugal,

apresentadas em Mato Grosso, com as devidas cautelas no item qualidade.

Vale lembrar que eram copiadas das comédias de Metástasio, musicadas, e

interpretadas por amadores, em tablado público (LOTT apud SANTOS

FILHO, 1996, p. 13).

Segundo Lott (1986, p. 38), por trás das atividades culturais e das festas populares

havia um projeto de dominação por parte do império português. Para ele “elas contribuíam

para facilitar a dominação econômica, auxiliavam o controle do poder cultural e reafirmavam

o poder colonial”.

Deste modo a ópera foi utilizada como um dos instrumentos de dominação cultural e

político e até mesmo um dos mecanismos para fixar o homem na terra, pois manter uma

população local era também a garantia de posse e alargamento das fronteiras que estavam

sendo disputadas pelo império espanhol. Portanto as representações das óperas faziam parte

dos planos do império português para garantir o sucesso da colonização do Planalto Central

do Brasil, inclusive com abundância de registros.

As primeiras óperas representadas em solo mato-grossense eram encenadas ao ar livre

em praça pública; diferentemente da Europa onde as récitas aconteciam em locais fechados e

nos grandes teatros (que podem ser considerados verdadeiros monumentos arquitetônicos).

Neles a plateia européia se dirigia exclusivamente para assistir ao espetáculo.

Em Mato Grosso as óperas não eram espetáculos isolados oferecidos à comunidade.

Elas faziam parte das programações de festejos organizados para comemorar alguma data

especial ou também para recepção de autoridades, militares ou da corte, como também parte

das comemorações de aniversários de pessoas ligadas à realeza. Era muito comum também a

sua representação nas festas religiosas promovidas pelo clero local.

Os festejos tinham como uma das características as longas durações com que

aconteciam. Eles chegavam a ser realizadas por vários dias sucessivamente.

À noite, houve vários festejos, bem como nas duas noites que seguiram.

Representaram-se Óperas e comédias em tablado público, além de danças,

bailes e outros festejos que duraram por muitos dias, sendo em todos o geral

contentamento (RODRIGUES, 2000, p. 38).

As representações das óperas muitas vezes eram patrocinadas pela burguesia local

para abrilhantar comemorações de datas especiais. Rodrigues (2000, p. 38) em sua

investigação sobre o movimento musical em Cuiabá, transcreve as crônicas de autoria de

Page 49: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

47

Joaquim da Costa Siqueira, extraído dos anais do Senado da Câmara de 1777, estes

documentos relatam algumas festividades ocorridas entre os séculos XVIII e XIX.

15 de novembro de 1794 - Houve teatro e representaram-se óperas, comédias

e danças. Festejaram o nascimento da sereníssima princesa da beira. [...] 03

de novembro de 1794 - Deveriam os comerciantes mandar construir dois

navios de madeira pintados e bem armados, dentro dos quais se fariam

representar algumas danças e duas óperas. Os juízes de ofício de alfaiates e

sapateiros ofereceram, cada qual, uma comédia. [...] Em todas as noites

houve música nos paços dos conselho e depois pelas ruas, pelo professor de

línguas e mestre de música Joaquim Mariano da Costa e pelo mestre Antonio

Francisco das Neves. [...] 17 de setembro de 1796 - Chegada do general

Caetano Pinto de Miranda Montenegro. Nesta noite e nas duas sucessivas,

houve orquestras com dois mestres de música e bandos de máscaras,

contradanças e tambores que tocavam caixa de guerra. Após três dias, houve

baile e contradança no palácio e seis comédias, sendo três representadas por

homens brancos e as outras por três, por preto. [...] Ano de 1809 - Notícia de

restauração de Portugal, contra o domínio napoleônico. Foi festejada em

coro de música instrumental e vocal, drama cantado, drama recitado e árias

sobre a glória de armas portuguesas. Nos intervalos de música havia danças

e farsas de homens brancos. [...] Ano de 1810 - Núpcias dos espanhóis D.

Maria Tereza Michaela com o Senhor Infante D. Pedro. No dia 29 houve

música do regimento com toques de caixa, orquestras e música vocal e

instrumental. [...] 24 de julho de 1817 - Aniversário de El-Rei D. João VI.

Na praça, em frente ao palácio foi arranjado um teatro e nas balaustradas se

alojavam coros de música instrumental e vocal. [...] (RODRIGUES, 2000, p.

38-41).

Não temos a pretensão de dar o registro de todas as óperas apresentadas em solo mato-

grossense. No entanto, pelo conteúdo dos apontamentos mencionados acima, podemos

verificar que a ópera foi o mais representativo processo de realização da música de concerto

nos dois primeiros séculos de Mato Grosso.

A ópera não era um somente um dos meios de entretenimento da população local mas,

como já dissemos, fazia parte de um projeto político de dominação bem como uma das

estratégias para fixação do homem na terra e proteger a fronteira. A grande quantidade de

apresentações de óperas em Mato Grosso chegou a ser notada nos mais importantes centros da

época que reivindicavam a mesma atenção e protestavam por uma rotina cultural, se não

igual, pelo menos parecida com a que por aqui se realizava.

Se, em Cuiabá, no coração de Mato Grosso, houve atividade musical séria,

desde 1729 e, se em agosto de 1780, ali se representou Ézio em Roma, de

Pórpora, temos o direito de acreditar numa vida musical, pelo menos

igualmente importante, num centro mais perto da capital (RJ) e de maiores

recursos econômicos (LANGE apud RODRIGUES, 2000, p. 45).

Page 50: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

48

Tendo passado o período áureo da extração do ouro os historiadores locais registram

um período de marasmo econômico por toda região, pois o esgotamento do ouro, o

distanciamento geográfico, além das dificuldades de acesso de Cuiabá com o restante dos

centros econômicos, determinaram um período de estagnação do crescimento desta região que

perdurou até a primeira metade do século XX.

“É preciso saber que nós mato-grossenses vivemos isolados do mundo por mais de

200 anos e Cuiabá só não acabou pela fibra de seus filhos. A verdade é que o cuiabano

sobreviveu de teimoso que é” (MENDONÇA apud DORILEO, 2005, p. 366).

Contudo esta fase apática da economia mato-grossense não comprometeu a realização

das atividades artísticas que faziam parte dos vários festejos promovidos nestas paragens.

Aliás, foi em tempo de crise que mais ocorreram estas festas: aproximadamente 30 anos, entre

1760 e 1790. Lott (1986, p. 45) informa que no ano de 1790 houve apresentações de 13 peças

teatrais e uma ópera em somente dois meses, agosto e setembro. São muitas atividades

culturais, se considerarmos que foram realizadas por uma pequena e remota comunidade dos

mais importantes centros do país, formada por uma parca população que era, na maioria,

composta por mineradores.

A ópera foi o mais importante gênero musical ocorrido nos dois primeiros séculos da

história de Mato Grosso.

4.2 A Segunda Fase

As dificuldades vividas pelos cuiabanos no início do século XX para se integrarem ao

país e obterem as facilidades oferecidas pelos grandes centros chegaram a ser consideradas

pelo historiador Rubens de Mendonça como um sacrifício, algo que consumia grandes

esforços. Nada parecido com as facilidades da vida cotidiana do cuiabano da Cuiabá

contemporânea. Este escritor relata que:

O sacrifício do cuiabano não era apenas pelo rio Cuiabá, o sacrifício maior

era quando antes do advento da estrada de ferro Itapurá-Corumbá, hoje

Noroeste do Brasil, para chegar a São Paulo ou ao Rio de Janeiro o mato-

grossense tinha que atravessar três países estrangeiros: Paraguai, Argentina e

Uruguai (MENDONÇA apud DORILEO, 2005, p. 366).

Page 51: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

49

Por outro lado existia na cidade uma vida musical ativa, onde eram produzidas várias

vertentes, tais como a música regional dos ribeirinhos, que serviam aos festejos tradicionais

bem como as retretas realizadas nos coretos das praças pelas bandas locais. Além da

existência de uma movimentação musical camerística com forte ligação com a literatura. Esta

última foi a forma de música de concerto que mais se adequou à Cuiabá do início do século

XX.

Mas, a arte musical é que se tornou motivo de maior gosto e interesse dos

mato-grossenses, em particular dos cuiabanos. Vivendo isolada por muito

tempo, os seus habitantes encontraram na música uma forma de

entretenimento e o meio mais representativo de desenvolvimento da cultura

regional (VICTORINO apud SANTOS FILHO, 1996, p. 14).

Deste modo a música de concerto era realizada pela elite local, principalmente pelas

pianistas da cidade que também se dedicavam ao ensino da música. As apresentações eram

organizadas em locais fechados e muitas vezes fazendo parte de programações de atos

solenes.

O isolamento25

da Cuiabá do início do século XX, denunciado por Rubens de

Mendonça, não desfavoreceu a vida musical da cidade que aliás, dela se valia como uma das

opções de entretenimento.

O historiador Virgilio Corrêa Filho informou em seus escritos de 1920 a existência de

uma expressiva quantidade de músicos na capital. Deste modo, relatando “estar generalizado

o estudo de piano, e de outros instrumentos e ser elevado o número de musicistas” (CORREA

FILHO, 1920, p. 91). Ele deixa registrado também a existência de bandas de músicas no

início do século e devemos levar em consideração que bandas de música são corpos musicais

que exigem uma quantidade maior de músicos.

“A preferência por aquelas expressões musicais tanto se revela nas cidades e vilas, em

que geralmente não falta a banda de música, mais ou menos servida de artistas espontâneos”

(CORRÊA FILHO, 1920, p. 91).

Mas o principal veículo da música de concerto da primeira metade do século XX foi o

sarau, que era comumente denominado de sarau lítero-musical, por exatamente dividirem as

programações com recitações de poemas.

25

O termo isolamento usado para qualificar Mato Grosso entre o século XIX e a primeira metade do século XX,

é um postulado comungado por vários historiadores mato-grossenses, entre eles Rubens de Mendonça. O

isolamento denunciado era também um ponto de vista a partir dos grandes eixos do país, o que de fato existia

eram dificuldades de acesso, estagnação econômica e de crescimento.

Page 52: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

50

Os saraus eram realizados por ocasião de festividades ou solenidades da cidade e

aconteciam nos casarões das famílias cuiabanas, nos clubes, agremiações, institutos, na

Academia Mato-Grossense de Letras e no Salão Nobre do Palácio da Instrução.

A produção musical de caráter erudito ficou por conta de grupos de pessoas

que se reuniam para audições de piano nos saraus [...] O sarau foi uma

maneira de produção musical que se adaptou muito bem em Cuiabá, tanto ao

gosto dos cuiabanos, como pelo fato de favorecer uma maior liberdade na

formação dos grupos, pois, um sarau é basicamente camerístico (SANTOS

FILHO, 1996, p. 14).

Dorileo deixou registrado em seu livro Egéria Cuiabana o programa de um sarau

lítero-musical que se realizou no dia 21 de maio de 1927 no Centro de Letras, para

homenagear a eleição do arcebispo cuiabano Francisco de Aquino Correa, em sua posse em

uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Constam no programa as seguintes músicas e

poemas:

I - Fantasia F. Schubert, op 15 - pela senhorinha Elza de Figueiredo

II- Offerecimento da festa - pelo Presidente do Centro,

III- Le Carnaval de Pesth, 9ª Rhapsodie de Lizt - pela Senhorinha

Anathalinha Beltrão,

IV - Mocidade, poesia do homenageado - pela Senhorinha Dinah Ponce de

Arruda,

V - El canto del prisionero, melodia argentina - pela Senhorinha Alba Novis

VI - Ave Maria, poesia do homenageado pela Senhorinha Graziela Maciel,

VII – Rhapisodie n. 6 de Franz Lizt – pela Senhorinha Guilhermina de

Figueiredo

VIII – A Capital Verde, poesia do homenageado – pela Senhorinha Maria

José Pereira Leite,

IX – L‟Orange, . Wroblewski – pela Senhorinha Maria de Lourdes de

Oliveira,

X – A Bandeira do Brasil, poesia do homenageado – pela Senhorinha

Guilhermina de Figueiredo

XI – A Sertaneja, de B. Itiberê – pela Senhorinha Elza Duarte Monteito

XII – A Cuiabá, poesia do homenageado – pela Senhorinha Carolina de

Souza

XIII – Minha Mãe, poesia do homenageado – pela Senhorinha Alayde de

Figueiredo,

XIV – Fantasia „in re minore‟ de Mario Vitali – pela Senhorinha Irene

Arruda,

XV – A Flor de Aguapé, poesia do homenageado – pela Senhorinha Lilia

Póvoas,

XVI – Ninho de Flor, poesia do homenageado – pela Senhorinha Alayde de

oliveira,

XVII – Tristesse Mezzacapo, violino e piano – pelas Senhorinhas Cesarina e

Célia de Mattos

XVIII – Palavras do homenageado (DORILEO, 1976, p. 98-99).

Page 53: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

51

Por uma sucinta análise do programa acima transcrito podemos deduzir que aponta

para a maciça presença feminina na organização dos saraus lítero-musicais, além de

demonstrar o envolvimento de parte da elite cuiabana, como pode ser observado pelos

sobrenomes das participantes que são facilmente reconhecidos pela população local.

Outro aspecto observável no programa acima é a escolha do repertório musical

apresentado. Ele consistia basicamente da música tonal européia do século XVIII.

Dentre as pessoas que se mobilizavam na organização dos saraus lítero-musical da

primeira metade do século XX podemos mencionar a compositora e pianista cuiabana

Zulmira Canavarros que foi uma das mais importantes motivadoras desta modalidade musical,

além dos músicos Honório Simaringo e Nilson Constantino, as pianistas Dunga Rodrigues e

Maria Ambrosio Pommot, assim como membros da Academia Mato-grossense de Letras.

Os idealizadores dos saraus foram responsáveis pela criação, no ano de 1947, de um

movimento cultural denominado “Centro Artístico e Musical de Cuiabá” (DORILEO, 1976,

p. 83). O movimento, em sua essência, tinha a intenção de fomentar as várias manifestações

artísticas da cidade e promover o ensino de música. Constituía-se como uma das primeiras

tentativas de se instituir a instrução musical e garantir para a sociedade os recursos humanos

que ela demandava.

Contudo, pela ata de fundação do Centro, podemos perceber que não foi mencionado

absolutamente nada que se relacionasse com a música de concerto do século XX.

Diferentemente do que aconteceu com a literatura, pois na primeira metade do século os

poetas Silva Freire, Dias Pino e Manoel de Barros já possuíam em seus currículos uma vasta

produção literária de vanguarda.

A ata de fundação do Centro Artístico Musical de Cuiabá foi assinada por uma

diretoria composta por 11 pessoas além de 49 membros fundadores. Consta como objetivos:

Incentivar o Culto das artes em suas diversas modalidades, especialmente a

música, organizando o seu ensino à mocidade e coordenando a sua atividade

entre os estudiosos e diletantes dos seus múltiplos ramos. Destinado, ainda, a

organizar conjuntos musicais, clássicos e regionais, a revivescência da

música tipicamente cuiabana e entre suas finalidades futuras, a fundação de

uma escola de música e o canto, passo inicial para o futuro Conservatório e o

amparo aos músicos pobres‟ (DORILEO, 1976, p. 84).

Percebemos também que o conteúdo da ata de fundação demonstra claramente a

intenção de garantir a realização da música de concerto, pois o termo clássico é comumente

utilizado como uma designação genérica estilística para se referir à música de concerto. Por

outro lado os saraus lítero-musicais e os movimentos em torno da música em Cuiabá atestam

Page 54: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

52

para a defasagem da música com seu tempo, se comparada com a produção literária mato-

grossense.

No ano de 2007 a Coordenação de Cultura da UFMT recebeu da família da pianista

Maria Ambrósio Pommot (Cáceres, 1908 – Cuiabá, 1991), esposa do violinista francês

Georges Pommot (Ville D‟Autun, 1887 – Cuiabá, 1983), todo o acervo particular de

partituras.

O casal Pommot, principalmente Maria Ambrósio, além do ensino da música, tinha

íntima ligação com os saraus lítero-musicais e, conseqüentemente, com a música de concerto

na capital mato-grossense. Em análise das obras contidas no acervo, verifica-se a tendência da

prática da música européia tonal.

Dona Marly Pommot acaba de doar um precioso tesouro a Universidade

Federal de Mato Grosso. Trata-se do acervo total de partituras didáticas e de

concerto para violino e piano que pertenceu ao casal. Ela explicou que o

material, já devidamente catalogado, se encontra na operosa Coordenação de

Cultura e deverá ser disponibilizado para consulta pública na Biblioteca

Central da UFMT, dentro em breve [...] A julgar por minha análise

preliminar do catálogo, são obras de compositores tradicionais europeus e

brasileiros com relevante grau de dificuldade técnica, o que denota o nível

artístico do duo Pommot de piano e violino (ARRUDA, 2007).

O formato camerístico do sarau favoreceu a sua ampla disseminação pela capital mato-

grossense, pois a sua organização era facilitada por envolver poucos executantes, (como

observado no programa acima). O sarau também se adequava a qualquer ambiente, por não

necessitar de amplo espaço para sua realização; que na maioria das vezes acontecia nas

residências dos simpatizantes da música de concerto.

Deste modo o sarau musical pode ser considerado o mais expressivo representante da

música de concerto da primeira metade do século XX em Cuiabá e sinaliza ligação com os

futuros eventos da música de concerto em Mato Grosso. O professor Benedito Pedro Dorileo

(1934), idealizador da primeira orquestra sinfônica do Estado, possuía envolvimento pessoal e

profundo conhecimento dos saraus realizados em Cuiabá. Inclusive quando Dorileo ocupou o

cargo de vice-reitor da UFMT, viabilizou a contratação de Benedita Dechamps Rodrigues,

com a intenção que contribuísse com o processo musical da Universidade.

Antes, o vice-reitor propôs ao reitor a admissão de Benedita Dechamps

Rodrigues (Dunga Rodrigues), como agente didático, reconhecida pianista

que, no passado, conviveu com a musicista Zulmira D‟Andrade Canavarros,

a egéria cuiabana. Em 1980, pela portaria nº VR 08/80 [...] Esta pianista

passa a contribuir com a arte musical na Universidade, marcando sua

presença nos saraus freqüentes, como, por exemplo, no ano X da

Universidade [...] (DORILEO, 2005, p. 204).

Page 55: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

53

4.3 A Terceira Fase

A população cuiabana da década de 70 testemunhou mudanças dos destinos do ensino

superior em Mato Grosso e, consequentemente, dos rumos da música de concerto, pois foi

exatamente no ano de 1970 que foi criada a Fundação Universidade Federal de Mato Grosso

(FUFMT).

Esta universidade deu início a suas atividades a partir do já existente Instituto de

Ciências e Letras de Cuiabá, que foi criado em 1952, mas que efetivamente principiou o

ensino no ano de 1966, em instalações provisórias nas dependências da escola Liceu

Cuiabano, que se situa na Rua Getúlio Vargas no centro da capital.

Antes, Cuiabá já possuía a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mato

Grosso, instituída no primeiro governo do médico cuiabano, Fernando

Corrêa da Costa, através da lei nº. 235, de dois de outubro de 1952, porém o

funcionamento insipiente deu-se em 1966, 14 anos depois, em instalações

cedidas pelo Colégio Estadual de Mato Grosso (Liceu Cuiabano). Foi seu

primeiro diretor, Nilo Póvoas (DORILEO, 2005, p. 39).

O então presidente do Instituto - Benedito Pedro Dorileo foi fundamental para o

processo de criação da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso; inclusive,

participando não somente da concepção da Universidade como também tomou parte da sua

administração.

“Todos nós sabemos que o professor Dorileo foi o braço e o cérebro da Universidade

Federal de Mato Grosso, desde a sua instalação. Homem de rara capacidade de trabalho, dá

tudo de si para a Universidade” (MENDONÇA apud DORILEO, 2005, p. 363).

Assim sendo, o anúncio da criação da Universidade Federal de Mato Grosso se deu em

uma cerimônia realizada com o propósito de despedida do Instituto de Ciências e Letras de

Cuiabá, que definitivamente encerrava as suas atividades do ensino superior na capital mato-

grossense, e foi o próprio professor Benedito Pedro Dorileo quem se encarregou de transmitir

a notícia.

Em 30 de dezembro de 1971, como presidente do ICLC, dei por encerrada as

suas atividades e, por conseqüência, as do conselho administrativo, então

absorvido pela lei que criou a Universidade Federal. [...] Nessa sessão de

encerramento e despedida, dei conhecimento haver redigido o documento de

Escritura de Constituição da Fundação Universidade Federal de Mato

Grosso, com base na lei de sua criação, nº 5.647 de 10 de dezembro de 1970,

lavrada no dia 27 de dezembro de 1971, no Cartório do 1º Ofício de Cuiabá,

Page 56: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

54

assumindo a pessoa jurídica, com fundamento, ainda no Código Civil.

Nascia, existia de direito e de fato a FUFMT (DORILEO, 2005, p. 49-59).

As instalações da Universidade Federal foram edificadas em uma área na região do

bairro do Coxipó com endereço na avenida que atualmente leva o nome do criador do antigo

Instituto de Ciências e Letras de Cuiabá, o governador Fernando Corrêa da Costa.

Inicialmente composta de três blocos (A, B, C), Instituto de Ciências e Letras de

Cuiabá (mesmo nome do antigo instituto mantido pelo governo estadual) e um parque

aquático. No ano seguinte iniciam-se a construção do bloco de Tecnologia. O campus

universitário foi inaugurado em 12 de março de 1971.

Começam as atividades acadêmicas da Fundação Universidade Federal de Mato

Grosso tendo o médico Gabriel Novis Neves como seu primeiro reitor e Benedito Pedro

Dorileo no cargo de vice-reitor.

No quarto ano de existência por iniciativa da vice-reitoria principiam estudos para a

criação da Banda Sinfônica da FUFMT, nos idos do ano de 1974. Três anos após a

inauguração do recém criado campus universitário. Para tal foi criada uma comissão que se

encarregou de planejar e instituir a Banda Sinfônica e, dentre as pessoas escolhidas para

compor a comissão se encontrava o primeiro maestro Konrad Wimmer, e o primeiro

administrador da orquestra, Domingos Vieira de Assunção.

Em 24 de abril de 1974, na recém-criada Unisselva26

, afluíram as primeiras

idéias benfazejas no que se refere à música propriamente dita, quando por

força da portaria nº VRAc 014/74, assinada pelo então vice-reitor acadêmico

Benedito Pedro Dorileo, foram designados os professores Luiz Carlos Lopes

Manhães, Konrad Wimmer, Donato Fortunato Ojeda e Domingos Vieira de

Assunção para, em comissão, oferecerem subsídios para a organização da

Banda Sinfônica Universitária (ASSUNÇÃO apud DORILEO, 2005, p.

357).

No mesmo ano, em 1974 a banda inicia suas atividades. Foram adquiridos pela

Universidade os primeiros instrumentos. Inicialmente 17, e com a aquisição começaram os

primeiros ensaios.

A proposta era que a banda fosse agregada por alunos, professores e servidores da

UFMT, bem como pessoas da comunidade local e músicos profissionais. Estes últimos teriam

também a atribuição de ensinar música.

26

Unisselva, Universidade da Selva, nome fantasia utilizado para designar a Fundação Universidade Federal de

Mato Grosso (FUFMT) até a década de 80, mas que está em desuso. Atualmente até a abreviatura oficial tem

suprimido Fundação de seu nome, de modo que não é mais figurado a abreviatura FUFMT em documentos e

logomarca da instituição, sendo substituída pela abreviatura UFMT, que persiste mesmo a universidade sendo

ainda uma fundação.

Page 57: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

55

Sendo a universidade uma instituição de ensino superior e extensão universitária foi

oferecida via extensão, cursos de música para a comunidade cuiabana onde a banda

funcionaria como um laboratório de prática em conjunto. Deste modo a banda foi composta

em sua maioria por pessoas leigas em música. Entretanto, com o propósito de capacitar os

futuros músicos que comporiam suas estantes.

Finalmente, em 1º de julho de 1975, foi oficializada a existência da Banda Sinfônica

Universitária por meio da portaria GR-523/75, inclusive com regulamento próprio. As

apresentações da banda se realizaram dentro e fora do campus universitário e o repertório era

formado por músicas especificas para bandas, tais como músicas marciais e dobrados.

A música de concerto propriamente dita começou a ser apresentada em público dois

anos mais tarde; mais precisamente em 1977, ano em que as atividades da banda foram

intensas, se considerado o pouco tempo de sua existência.

Em 1977, deu-se ênfase a músicas de Orquestra, arranjadas para Banda

Sinfônica. Foram apresentadas, a exemplo, a Abertura da Ópera Carmem, a

Cavalaria Ligeira, o Hino e Marcha Triunfal da Ópera Aída e outras mais.

Executou-se, ainda, neste ano, o primeiro Concerto de Câmara. Foi profícuo

o trabalho, tendo a Banda Sinfônica se apresentado 63 vezes até esse ano

(ASSUNÇÃO apud DORILEO, 2005, p. 358).

A partir de 1978 a Banda possuía um repertório com maior diversidade e composto

por “músicas de Bandas, de Câmara e Sinfônicas” (ASSUNÇÃO apud DORILEO, 2005, p.

359). Daí por diante o repertório do grupo foi direcionado exclusivamente para a música de

concerto que era mais compatível com a proposta inicial da universidade e também com os

objetivos do maestro que teve a sua formação musical na Europa. Konrad Wimmer (1933-

2004) era um cidadão alemão casado com uma brasileira e com ela constituindo família

composta por três filhos e uma filha.

A música de concerto fica deste modo aos cuidados da Fundação Universidade Federal

de Mato Grosso, que por ser uma instituição pública, pôde arcar com os custos financeiros

para a manutenção da Banda Sinfônica, que possuía um corpo de músicos estáveis e

assalariados para este fim.

Nesta condição a Universidade fez a diferença, porque nos períodos anteriores a

música de concerto era realizada por músicos voluntários que a apresentavam por seus

próprios meios, sem com isso receber o pro labore. Portanto não possuindo uma agenda

obrigatória de compromissos.

O concerto sinfônico, fator importantíssimo no desenvolvimento cultural da

capital e região, teve ótima aceitação por parte do público [...] executando

Page 58: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

56

música erudita, ela apresentava do mesmo modo importantes obras dos

grandes mestres da música universal, de todas as épocas e nacionalidades.

[...] Entre as obras de destaque, citam-se: o 1º Movimento da Sinfonia nº 40,

de Mozart, a Dança Húngara de Brahms, Poeta e Camponês, de Suppé,

Vozes da Primavera, de Strauss, Hino e Marcha Triunfal da Ópera Aída, de

Verdi, Marcha Turca, de Mozart, Fogos de Artifício, de Haendel, Hino a

Diana, de Gluck e o Barbeiro de Sevilha, de Rossini (ASSUNÇÃO apud

DORILEO, 2005, p. 359).

Mas os dias da Banda Sinfônica Universitária estavam contados e a sua existência

descartada após um pronunciamento do MEC, orientando que “banda de música no interior é

com a Prefeitura” (DORILEO, 2005, p. 187). Por isso a partir da banda sinfônica iniciam

estudos para sua transformação em orquestra sinfônica. Esse processo culmina dia 21 de

setembro de 1979, com a publicação pela reitoria da UFMT da resolução CD 57/79, que cria a

Orquestra Sinfônica Universitária.

Nesse afã, celebrávamos o Dia da Árvore, sendo propício o dia 21 de

setembro de 1979 para criar a Orquestra Sinfônica Universitária, com

organização progressiva. Consegui consubstanciar, com assessoria, a

redação da resolução nº CD 57/79, que promoveu a Banda Sinfônica. Como

reitor substituto, admiti Konrad Wimmer para o cargo de maestro, e

Domingos Vieira de Assunção para o de Intendente Administrativo

(DORILEO, 2005, p. 191).

O estabelecimento da orquestra não foi imediato. Além da aquisição de novos

instrumentos, o princípio educativo também foi aplicado. Pois a orquestra deveria ser

praticamente uma orquestra escola, oferecendo à comunidade universitária e cuiabana o

ensino gratuito de música.

Primeiramente os músicos da banda foram remanejados para outros instrumentos,

além da ampliação do quadro funcional com contratação de músicos para compor novos

naipes, tais como o das cordas.

Os trabalhos para a reestruturação do novo corpo artístico começaram pela

compra de instrumentos próprios para orquestra. Os instrumentos adquiridos

foram fagotes, oboés, flauta, trompas e os instrumentos da família das

cordas, violinos, violas violoncelos e contrabaixos. Os músicos da banda

foram remanejados para tocarem outros instrumentos, de acordo com o

interesse de cada um, e a necessidade da orquestra (SANTOS FILHO, 1996,

p. 28).

Os músicos de cordas contratados acumularam a função de professores de seus

instrumentos. Então para compor o naipe das cordas foi inicialmente feito contato com um

quarteto de cordas de Campo Grande (MS). O grupo era integrado pelos violinistas Cezar

Cruz Wulhyneck e Frederico Jansen, o violista José Lourenço Parreira e o violoncelista

Page 59: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

57

Conrado Corrêa Ribeiro. Além do quarteto a pianista Cássia Virgínia Coelho de Souza,

também de Campo Grande.

Desse grupo somente o 2º violinista Frederico Jansen recusou-se a estabelecer

residência em Cuiabá. Então o ensino dos instrumentos de cordas ficou ao encargo dos

componentes que aceitaram a proposta da universidade. Coube a pianista o ensino de teoria

musical.

No ano de 1982 foi contratada pela orquestra a violinista Hella Gilda Wall Epp, que

passou a integrar o quarteto como segundo violinista e também ofereceu aulas de violino.

Deste modo a orquestra pôde aumentar a oferta do ensino deste instrumento.

Os músicos do novo quarteto de cordas acumulavam à função de docência e ensaios

para realização de concertos camerísticos, além dos ensaios e concertos da orquestra.

“Finalmente, o Quarteto de Cordas da Universidade é uma realidade. Foi quase um

ano de ensaios. Trabalho sério e belo. Cézar, Gilda, Parreira e Conrado ensaiavam todos os

dias na casa de Gilda” (DORILEO, 2005, p. 339).

As aulas eram ministradas nas instalações da orquestra que funcionava no Parque

Aquático da UFMT, antigo Restaurante Universitário. Para realização das aulas foi criada a

Escola de Cordas que passou a funcionar como um laboratório para o futuro curso de música

da universidade.

Surge a escola de cordas, com 22 instrumentos de cordas distribuídos entre

violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, contando com o magistério do

violinista Cézar Cruz Wulhyneck e do violoncelista Conrado Corrêa Ribeiro

e prática instrumental de conjunto com Konrad Wimmer (DORILEO, 2005,

p. 193).

A ideia inicial da criação da Orquestra não era somente de propiciar para a cidade uma

agenda cultural, mas também de oferecer subsídios para formação de novos músicos,

abastecendo deste modo a comunidade com o profissional habilitado para exercer a sua

atividade musical, tanto para a própria orquestra como para qualquer outra formação musical

da cidade. Além de proporcionar uma maior proximidade entre a instituição e a comunidade

em geral. A orquestra seria uma ponte entre a comunidade local e a instituição universitária.

Para desenvolver este trabalho o maestro Konrad Wimmer tinha o perfil ideal, pois

possuía muita experiência no ensino da música.

Wimmer acumulou sua prática do ensino musical durante os anos que atuou como

sacerdote salesiano e ministrava aulas aos alunos do Patronato Salesiano Padre Calletti (entre

outras instituições de ensino). Com a sua transferência para a UFMT, trouxe consigo a

Page 60: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

58

experiência na docência musical. Na orquestra, exerceu a função de maestro, arranjador,

professor de teoria e harmonia musical e até mesmo o ensino de violino antes da chegada dos

músicos do quarteto27

.

Em torno da orquestra orbitavam ideias da criação definitiva de uma escola de música

do nível médio ao superior por um trabalho em conjunto com o governo do estado. Este

proporcionaria o ensino médio e a UFMT o ensino superior.

Os profissionais que atuariam desde a etapa da organização, coordenação e execução

do curso eram provenientes da UFMT e consequentemente, da orquestra.

A orquestra ofertaria seus músicos para o ensino dos instrumentos, os servidores para

a administração, inclusive o maestro. As aulas seriam oferecidas na rede pública de ensino,

nas dependências das escolas estaduais.

Célere, o vice reitor Dorileo, em 1981, ativou os contatos e foi elegida(SIC),

junto a Secretaria de Estado de Educação a Escola Estadual Presidente

Médici O projeto estabeleceu 40 vagas, com duração de 2.988 horas, a serem

integralizadas no mínimo em quatro anos. [...] O corpo docente já estava

previsto com: José Lourenço Parreira, profissional de alto nível do Exército

Brasileiro, do Forte Coimbra, vindo à disposição para compor a Orquestra

Sinfônica; Domingos Vieira de Assunção, Intendente Administrativo da

OSU, apontado para coordenador; Konrad Wimmer, maestro [...] Cezar Cruz

Wulhynek, violinista da OSU. E ainda: Hella Gilda Wall Epp, Cássia

Virgínia Coelho de Souza, [...] Décio Gioielli, Luiz Roberto Peres, Lisboa

Batista, Patrícia Vitória Penha e Deizia Santos Barros (DORILEO, 2005, p.

197-198).

Naquela ocasião foi publicada a “portaria do vice-reitor nº GR 233/81, de 18 de

setembro de 1981” (DORILEO, 2005, p. 199), que designava a professora Laura Maria

Furtado que deveria coordenar a organização curricular do curso. Entretanto o projeto foi

interrompido por força do decreto nº 84.817 de 18 de junho de 1980 (DORILEO, 2005, p.

199) que em seu teor proibia contratação de pessoal, somente admitindo por uma

excepcionalidade. Esta Lei tinha efeito até 31 de Dezembro de 1981, mas antes mesmo de

expirar o prazo foi lançado o decreto nº 86.795, de 28 de dezembro de 1981 (DORILEO,

2005, p. 199), que proibiu novas contratações sem prazo definido. O decreto previa

27

Sobre a experiência de Wimmer com a docência musical, Peter Büttner (ex-sacertote e ex-diretor pedagógico

de Wimmer) nos informou que o maestro era um “excelente professor de matemática e do ensino da música, e no

Seminário Arquidiocesano Cristo Rei, em 1967, foi Diretor de Estudos e maestro da banda. Também criou uma

banda no Colégio Salesiano de Araçatuba em1968, mas o trabalho que lhe deu maior visibilidade foi o que

realizou no Patronato Salesiano Padre Calletti, em Alto Araguaia. Nesta escola foi responsável pela criação de

uma banda sinfônica entre os anos de 1969-1972, e na UFMT foi coordenador do departamento de artes, o

primeiro regente do Coral Universitário, e também criou a banda que se transformou em orquestra” (Depoimento

coletado com Peter Büttner em sua residência no dia 09 de fevereiro de 2011).

Page 61: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

59

contratação somente para excepcionalidades e para o governo federal da época, música não

era considerada uma excepcionalidade.

Os dois decretos põem um ponto final na pretensão de se estabelecer na capital mato-

grossense a oferta do ensino público e gratuito de música, fracassando novamente um ideal

que tinha dado seus primeiros sinais na década de 40.

Deste modo a orquestra continuou internamente a oferecer o ensino gratuito de música

para abastecer suas próprias estantes. Eram ministradas aulas de todos os instrumentos que

compõem a orquestra.

Neste período, a música de concerto foi oferecida para a comunidade cuiabana por

meio dos grupos de câmara compostos pelos músicos, professores, alunos da orquestra e

também pela orquestra completa, com apresentações no Teatro Universitário.

A música não ficou restrita ao Teatro. Havia ainda solicitações de apresentações tanto

por outros departamentos da instituição como externos, oportunidade em que eram levados

grupos pequenos, formados por naipes da própria orquestra.

Era muito comum a realização de concerto didático e, por seu intermédio, ministradas

informações sobre os compositores das músicas executadas, bem como a formação do grupo e

algumas curiosidades sobre os instrumentos musicais – muitos deles desconhecidos da

população local; os menos conhecidos eram oboés e fagotes.

O programa musical apresentado pela orquestra era basicamente composto por

músicas dos compositores dos séculos XVIII e XIX.

Sucederam-se os Concertos, com obras: Abertura da Ópera de Carmen, de

Bizet; a Suíte Quebra-Nozes, de Tchaikovsky; Conto dos Bosques de Viena,

de Strauss; Abertura da Ópera Don Giovanni, de Mozart; Abertura, do Padre

Maurício; Música Aquática, de Haendel; Minueto, de Mozart; Abertura

Prometheus, de Beethoven; Prelúdio do III Ato de Lohengrin, de Wagner;

Ifigênia em Áulis, de Glück; Final da 5ª Sinfonia de Beethoven e Ária e

Allegro, de Scarlatti (DORILEO, 2005, p. 191-192).

A gestão de Konrad Wimmer como maestro da Orquestra Sinfônica da UFMT

encerrou-se no dia 19 de agosto de 1986 e foi marcada principalmente pela criação e

estruturação da orquestra, assim como pelo ensino musical.

Para assumir temporariamente o seu cargo foi colocado o trompetista Francisco José

Penha até que se contratasse o maestro definitivo. Chico Penha, como era conhecido, era

também orquestrador e na ocasião fez várias adaptações para a Orquestra Sinfônica

Universitária, incluindo em seus arquivos o repertório da música popular brasileira e música

pop internacional.

Page 62: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

60

Sua gestão teve duração de cinco meses, e trabalhou neste curto espaço de tempo a

música que tinha mais intimidade – Música Popular Brasileira (MPB). Chico Penha era um

conhecido músico da noite cuiabana e trouxe para a orquestra a sua experiência com a MPB.

Nestes meses não se realizaram concertos no Teatro Universitário. Os trabalhos da orquestra

foram direcionados ao atendimento interno, assim como as solicitações externas.

As apresentações eram na maioria das vezes realizadas por grupos de câmara que

tocavam em aberturas de solenidades, simpósios, congressos, inaugurações e posses.

A formação camerística facilitava o atendimento das solicitações por não exigir no

local do evento um amplo espaço, como é necessário para a orquestra; assim como o baixo

custo financeiro da atividade (resultado pela pequena circulação de servidores).

Além disso, um concerto realizado pela orquestra envolve complexa rede logística,

como transporte de materiais e instrumento, utilização de servidores braçais para carga e

descarga, serviços gráficos, pessoal do cerimonial, além de toda equipe do Teatro

Universitário que é composta por vários técnicos (som, iluminação, bilheteria, entre outros).

Se a apresentação acontecer fora do teatro, envolve uma logística mais cara, com contratação

de estrutura de palco, som e iluminação; além de prestação dos serviços habituais.

Na curta gestão de Francisco José Penha as atividades da escola de cordas

continuaram normalmente, com aulas regulares oferecidas pelos professores.

Em janeiro de 1987 Marcelo Bussiki assume a direção da orquestra - um jovem

maestro cuiabano de apenas 27 anos de idade; que tinha se ausentado de Cuiabá para obter

formação superior em regência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O novo regente imprimiu na orquestra um caráter mais performático, com programa

composto por músicas de maior complexidade técnica para os instrumentistas. Deste modo foi

necessária a qualificação dos músicos.

Foram viabilizados para os músicos, com recursos da UFMT, cursos nos festivais de

músicas que acontecem no verão e inverno, em cidades como Brasília (DF), Curitiba (PR),

Poços de Caldas (MG), Juiz de Fora (MG). Além destes cursos a orquestra passou a receber

músicos de outros Estados para ministrar aulas nas dependências da orquestra. E além do

ensino, deveriam também completar as estantes da orquestra nos concertos.

Para atender as necessidades técnicas da orquestra ficou muito comum a vinda para

Cuiabá do Quarteto de Brasília, grupo formado por músicos professores da Universidade de

Brasília (UNB), com experiência no ensino de seus instrumentos28

.

28

Ver Anexo L, p. 259, matéria jornalística com os nomes e um breve currículo dos integrantes do Quarteto de

Cordas de Brasília.

Page 63: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

61

Marcelo Bussiki inicia na Orquestra Sinfônica Universitária a rotina de contar nos

concertos com a participação de solistas provenientes dos grandes centros do país,

principalmente do Rio de Janeiro. Ele inaugura este tipo de parceria: orquestra dividindo o

palco com os solistas que exibiam técnica e virtuosismo musical29

.

O primeiro solista foi o pianista Nelson Freire, em um concerto realizado no dia 10 de

dezembro de 1986 no Teatro Universitário, juntamente com o Coral Universitário30

. Neste

concerto, Marcelo Bussiki era maestro convidado, com tudo acertado para assumir a direção

da orquestra para o ano de 1987.

A partir de sua administração ficou estabelecida a organização da agenda de

compromissos da orquestra por Temporadas de Concertos, realizando em Cuiabá concertos

com datas pré-definidas para todo o ano, independente de datas comemorativas, repetindo em

Cuiabá prática muito comum das grandes orquestras brasileiras.

O concerto de encerramento de Temporada era sempre no dia 10 de dezembro, em

comemoração ao aniversário da Universidade. E deveria portanto, ser o mais suntuoso, com a

participação do Coral Universitário.

Na temporada do ano de 1987 (em maio) foi convidado o pianista Luiz Medalha. No

programa da noite constava o Concerto para Violão e Orquestra em Ré Maior de Antônio

Vivaldi, com solo de Euclides Ferreira da Silva Filho que também era um componente da

orquestra como violoncelista; e na sequência, Concerto para Piano e Orquestra em Fá

Menor, BWV 1056, de Johann Sebastian Bach, executado pelo pianista convidado.

Na segunda parte, Elegia, de autoria de Genaro Marsiglia (1924-), compositor mato-

grossense da cidade de Miranda (MS); a Suíte Vila Rica, do compositor paulista, Camargo

Guarnieri (1907-1993), nascido em Tietê (SP). O concerto foi encerrado com a música

Batuque do compositor carioca Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948).

No dia 05 de Julho de 1987, no Teatro Universitário, concerto com o Coral

Universitário e Turíbio Santos, como solista convidado. No programa31

da noite as seguintes

obras: A.Vivaldi – Glória – Solistas – Nair Gama Ferreira Lopes (I Soprano), Noeme Busto

Gama (II Soprano), Elizabeth Gama Simões (Contralto), Contínuo - Cássia Virgínia C. de

Souza. II Parte – R. Klatovsky – Dança Nº 1 da Ópera „A Viúva de Valência‟, H. Villa-Lobos

– Concerto para Violão e Pequena Orquestra, Solista, Turíbio Santos, G. Peixoto – Maracatú,

Solista – Dalva Lúcia Duarte (Piano).

29

Ver Anexos: D-L, p. 218-259, matéria jornalística e programas de Concerto. 30

Ver Anexo D, p. 218, o programa do dia 10/12/1986 em comemoração ao aniversário da UFMT e tendo como

atração principal o pianista Nelson Freire. 31

Ver Anexo F, p. 226, o programa do concerto.

Page 64: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

62

No dia 04 de setembro de 1987 o solista convidado foi o violoncelista Claudio Jaffé.

No programa da noite executou o Concerto para Violoncelo e Orquestra em Lá Menor, Opus

33, de Camile Saint-Saëns.

Todos os solistas convidados pela orquestra eram conhecidos no meio musical. A

gestão do maestro Marcelo Bussiki também foi marcada pela interação da Orquestra

Sinfônica Universitária com o restante do país, pelo fato de ele ter trazido para as suas

estantes músicos provenientes de outros Estados. Era uma prática necessária porque a

orquestra não tinha em seu quadro a quantidade de músicos que o repertório exigia. Além

disso os músicos convidados davam reforço técnico. Há que se considerar que a Orquestra

Sinfônica Universitária era em sua base formada por instrumentistas aprendizes. Deste modo

completaram as estantes da orquestra durantes os próximos programas da orquestra músicos

provenientes de Brasília, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

A orquestra passa a ser conhecida nacionalmente e causa interesses de músicos solistas

e maestros em participar de suas temporadas, para a qual enviavam propostas e currículos.

Normalmente eram profissionais com carreira e premiações internacionais. Dentre estes

músicos podemos citar a violinista Elisa Y. Fukuda, o clarinetista José Botelho, o maestro

Fabio Neri, entre outros32

.

Em relação à música vocal, além dos rotineiros concertos com o coral universitário, a

orquestra também realizou apresentações com cantores líricos conhecidos. Dentre eles

podemos mencionar Inácio de Nonno, Fernando Portari, Ruth Staerk, Siléa Stopatto e

Francisco Nery.

Em 10 de dezembro de 1991 foi organizado o espetáculo Mozart 3133

com texto e

direção de Orlando Codá. Este concerto basicamente representava as árias mais conhecidas da

ópera Don Giovanni de Mozart. Orquestra no fosso, cantores no palco e cenário preparado

especialmente para o espetáculo. Foi a primeira representação em Cuiabá de uma ópera em

um teatro com todas as instalações apropriadas para esta modalidade de espetáculo.

O Jornal Diário de Cuiabá trazia em sua página cultural a notícia com o seguinte

subtítulo: “Depois de mais de um século sem espetáculos de ópera, Cuiabá revive o gênero

clássico com uma peça em homenagem ao bicentenário de Mozart”34

.

32

Ver Anexo K, p.257-258, cartas dos músicos solistas que solicitam participação nos concertos da Orquestra

Sinfônica da UFMT. 33

O titulo do espetáculo Mozart 31 é uma alusão à ópera Don Giovanni composta por Mozart aos 31 anos de

idade. 34

Ver Anexo L, p. 259, matéria jornalística.

Page 65: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

63

Neste mesmo ano (1991) Marcelo Bussiki encerra suas atividades, deixando a direção

da orquestra para realizar um mestrado em Houston, nos Estados Unidos da América.

Para assumir o seu lugar foi contratado o maestro Ricardo Wilson Rocha (1959), que

tinha acabado de concluir doutorado em regência de orquestra, na Escola Superior de Música

de Karlsruhe na Alemanha, onde estudou de 1988 a 1991.

Rocha estreou na Orquestra Sinfônica Universitária na Temporada de 1992, com um

concerto realizado no dia 29 de março e com um programa composto por obras de Rossini,

Mozart e Beethoven. Destacamos as seguintes palavras proferidas pelo maestro como

saudações ao público e músicos da orquestra:

Logo ao saber que vinha para Cuiabá passei a ler tudo o que me era possível

sobre a cidade e seu estado: estatísticas, reportagens, verbetes

enciclopédicos, etc. [...]

Já informado do fato de que a Orquestra da Universidade é a única não só da

cidade mas também de todo o imenso estado mato-grossense, choquei-me

realmente ao saber que Cuiabá, capital, não tinha sequer uma escola de

música, uma instituição musical capaz de orientar e formar os talentos locais,

à exceção dos que têm no piano ou no violão a sua afinidade.

Pensei comigo: heróis mesmo, esses músicos da Orquestra!

Com a força de sua vocação conseguiram aprender e desenvolver-se

autodidaticamente nos instrumentos precários que tiveram acesso! [...]

A orquestra, por exemplo, ainda precisa ficar importando de vinte a vinte

cinco por cento de músicos para seus concertos, colocando „gatilhos‟ em

instrumentos que não tem mais reparo, assim como inventando outras saídas

para problemas práticos quando simples doação de um instrumento por

algum dos que cultivam gado ou a contratação de músicos-professores para a

fundação de uma escola de música pela instituição governamental

competente solucionariam, por si só, tais problemas. [...]

A Orquestra Sinfônica da UFMT, que ora assumo como regente titular,

espelha este Brasil macunaímico e contraditório, virtuoso, e pecador, rico e

revoltantemente pobre, mas ainda digno de amor e da confiança dos

brasileiros [...] (ROCHA, 1992).

O discurso de estreia de Ricardo Rocha é marcado por preocupações com o

encaminhamento que se dava para a música de concerto em Cuiabá, escancarando logo de

início a fragilidade do trabalho que vinha sendo empenhado; assim como dando possíveis

soluções para os problemas, tais como a criação de uma escola de música na cidade. Tal idéia

pareceu fazer parte de um coro unânime, que desde 1947 era idealizada uma escola pública

para o ensino da música em Cuiabá. Entretanto o tom de seu discurso foi a principal causa de

desentendimento entre ele e a administração superior da UFMT, o que acarretou seu

Page 66: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

64

desligamento da instituição universitária em 01/10/1993, conforme informações da imprensa

local35

.

Dentre outras declarações, pronunciar que o público cuiabano não estava acostumado

a ouvir música erudita, pode levar ao entendimento de que o maestro Ricardo Wilson Rocha

ignorou a existência de uma plateia que frequentava assiduamente os concertos realizados

pelos maestros que o antecederam e que era o mesmo público que assistiria aos seus

concertos.

Pode ser entendida também como uma interpretação cultural equivocada, e isto

consequentemente gera conflitos, e foi o que ocorreu. Asseverar que o cuiabano não tinha o

hábito de consumir música erudita, pode ser entendido como falta de percepção de que na

década de 90 o processo de globalização estava em franco processo de expansão, e trazia em

seu bojo, facilidades ao acesso de informações. Além disso, apesar de Cuiabá possuir somente

uma orquestra sinfônica, haviam lojas especializadas em artigos musicais. Estas ofertavam

grande variedade de gravações em CDs e DVDs de músicas erudita executadas por orquestras

de diversos países - as mesmas gravações que circulavam na Europa e Estados Unidos.

Além da Orquestra Sinfônica da UFMT, e do comércio especializado em artigos

musicais, o acesso da música de concerto em Cuiabá era ofertado gratuitamente por meio das

emissoras de rádio e televisão da capital, assim como por intermédio da internet.

Existe em Cuiabá uma história devidamente registrada das atividades realizadas por

pianistas na cidade, bem como os saraus lítero-musicais que executavam a música erudita;

além dos trabalhos realizados pelo Coral Universitário e dos grupos de Câmara da cidade.

Posto isto, as declarações do maestro geraram confrontos, troca de acusações e o seu

desligamento da instituição universitária.

Contudo, se na área da política cultural o maestro não obteve grandes êxitos; no

campo musical ofereceu propostas que devem ser levadas em consideração. E em sua gestão

realizou uma programação musical que primava pela execução da Música Brasileira de

Concerto, assim como dando continuidade ao trabalho de qualificação dos músicos da

orquestra.

Deste modo, Ricardo Wilson Rocha traz para o seu concerto de estréia a fagotista

alemã Ariane Petri, para executar o Concerto para Fagote e Orquestra em Si bemol maior, do

compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, que oferece aulas aos fagotistas da

35

Ver Anexo L, p. 259.

Page 67: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

65

orquestra, auxiliando-os com apoio técnico, apontando soluções para as dificuldades

existentes no repertório dos concertos de temporada.

Com relação aos instrumentistas de cordas, Ricardo continuou a trazer os do Quarteto

de Cordas de Brasília, que além de completar a orquestra, ministravam aulas de seus

instrumentos. As aulas eram ofertadas nos ensaios de naipes.

Os ensaios de naipes, ou seja, ensaios por grupos de instrumentos da mesma família,

como as cordas, compostas pelos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, passaram a ser

rotineiros. Neles eram dirimidas as dificuldades de passagens específicas do grupo, além das

marcações de arcadas.

A proposta de trabalho do maestro Ricardo Wilson Rocha incluía a realização de

concertos didáticos para o público em geral, preparando-os para os concertos do dia seguinte.

Nestes concertos didáticos o maestro realizava uma análise musical de uma das obras do

concerto, bem como comentários sobre o compositor e sobre a orquestra sinfônica.

Uma das propostas de Ricardo Wilson Rocha é realizar, um dia antes de

cada apresentação da orquestra, um concerto didático com entrada franca. O

maestro pondera que o público cuiabano ainda não tem o hábito de ouvir

música erudita. O concerto didático antes das apresentações será justamente

para tornar esta música conhecida (DIÁRIO DE CUIABÁ, 1992, p. 25).

Outra proposta do Maestro Ricardo Wilson Rocha era a de incluir, em todas as suas

programações, músicas de compositores brasileiros, ou seja, Música Brasileira de Concerto

(MBC). Ele alegava que os trabalhos dos compositores brasileiros não tinham a divulgação

que poderia ser dada. Informou que, mesmo existindo uma extensa produção musical, o

compositor da Música Brasileira de Concerto ainda era desconhecido da maioria da população

do Brasil, contrastando com a ampla atenção que é dada para a Música Popular Brasileira

(MPB).

A Orquestra Sinfônica da UFMT, conhecendo tal problemática de difusão e

acesso, assume, a partir deste concerto, o compromisso de destinar no

mínimo um terço de sua programação geral para obras da MBC,

programação que prevê inclusive a realização de dois concertos dedicados a

esta literatura, como os do dia sete de setembro, em homenagem à

brasilidade, e do dia primeiro de novembro, chamado de „Prata da Casa‟

porque dedicado aos músicos da Orquestra e da cidade de Cuiabá (ROCHA,

1992, p. 1).

Deste modo em seu segundo concerto de temporada, fez parte do programa a Sinfonia

Nº 5 de Franz Schubert, Rio São Francisco de João Guilherme Ripper e encerrando a

programação com a Abertura da ópera Os Mestres Cantores de Nuremberg de Wagner.

Page 68: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

66

No concerto do dia 07 de setembro de 1992, com o título: “Grande Concerto em

Homenagem à Brasilidade”, continha na programação: a Abertura da Ópera O Guarani de

Antonio Carlos Gomes (1870), Roda de Amigos (1979), para quarteto de madeiras e orquestra

de câmara, do Compositor Cézar Guerra Peixe (1914-1993) – para esta música foi convidado

o Quarteto de Madeiras da Bahia formado pelo flautista Lucas Robatto, a oboísta Adriana

Diaz, o clarinetista Klaus Haefele e a fagotista Claudia Sales, todos os integrantes deste

quarteto eram chefes de naipes da Orquestra Sinfônica da Bahia – e, para encerrar o concerto,

foi tocada a música Bachianas Brasileiras nº 7 (1942), de Heitor Villa-Lobos (1887-1959).

O maestro Ricardo Rocha continuou o trabalho na orquestra conforme proposta

firmada com os músicos e o público, contemplando a Música Brasileira de Concerto e no dia

01 de novembro de 1992 apresentou o concerto “Prata da Casa”.

O concerto „Prata da Casa‟ é dedicado às nossas estrelas da dança e da

música de concerto, estrelas desta Universidade, da Cidade de Cuiabá – aqui

representada pelo Ballet Caroline – e do grande Mato Grosso – caso de

Genaro Marsiglia, único compositor sinfônico mato-grossense de que se tem

notícia [...] A reunião de tais artistas, que aqui vivem e trabalham, tem, entre

outras, a função de mostrar ao público que neste imenso oeste brasileiro

existe um pequenino reduto, um „posto avançado‟, uma espécie de „Missão‟

onde se pratica e, acreditem, se realiza música erudita (ROCHA, 1992).

Este concerto foi dividido em três partes intercalados com a realização de Música de

Câmara, Música Sinfônica, Coral e Ballet. Neste espetáculo a programação prestigiava

músicos de Cuiabá e compositores brasileiros. Também neste concerto o maestro protesta pela

existência de uma escola de música em Cuiabá e inicia o espetáculo com a composição

intitulada - Fantasia por uma Escola de Música, sendo ele mesmo quem executou ao piano.

Tratava-se de variações e improvisos sobre o Hino de Mato Grosso.

No programa foram apresentadas peças dos compositores brasileiros Ronaldo

Miranda, Prelúdio e Fuga (para quarteto de madeiras), Villa-Lobos, Choros nº 2 para flauta e

clarineta; Sérgio Vasconcelos Corrêa - Homenagem à Villa-Lobos, para piano e orquestra de

cordas; Guedes Peixoto, Maracatu, para orquestra e piano; Genaro Marsiglia, Suíte para

Orquestra; Antonio Vaz, O Veraniquatiá, para coro e de Ernest Mahle, A Arca de Noé,

também para coro.

Deste modo, a gestão de Ricardo Wilson Rocha frente à Orquestra Sinfônica

Universitária teve como foco principal a realização da Música Brasileira de Concerto, e como

pode ser verificado acima, oferecendo o repertório de compositores do século XX, entretanto,

sempre da vertente nacionalista. Prada nos informa que “nos anos 50, ligam-se também ao

Nacionalismo nomes como Edino Krieger, Ernest Mahle, Oswaldo Lacerda, Sérgio

Page 69: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

67

Vasconcelos Corrêa, Marlos Nobre e Almeida Prado”. (PRADA, 2010, p. 28), entende-se por

nacionalistas, neste caso, os compositores brasileiros que fizeram parte do repertório da

Sinfônica da UFMT que optaram por compor música tonal, obedecendo praticamente às

regras da música do século XIX, com forte influência em Villa-Lobos e Camargo Guarnieri.

Para José Maria Neves, o Nacionalismo no Brasil se situou nos 30 primeiros

anos do século XX, dominado pela forte personalidade de Heitor Villa-

Lobos(1887 – 1959) e foi marcado pelos princípios estéticos das técnicas

composicionais herdadas do século XIX. Neves afirma: „o fenômeno

nacionalista é essencialmente populista, o que condiciona uma postura

criativa de aceitação e de Cultivo de uma Linguagem musical facilmente

compreensível pelo povo, em anacrônico prolongamento da tradição

romântica‟ (PRADA, 2010, p. 20).

Após verificação nos programas da orquestra da época não foi constatado nada que se

relacionasse com a música de vanguarda.

Na gestão de Ricardo Rocha ocorreu a mudança do nome da orquestra que

inicialmente era apresentada para o público como Orquestra Sinfônica Universitária.

Entretanto por entender que a orquestra não era composta por acadêmicos do curso de música

da UFMT, substituiu o nome para Orquestra Sinfônica da UFMT, nome que persiste até os

dias atuais.

Ricardo Wilson Rocha deixa a direção da orquestra no dia 01 de outubro de 1993. Sua

saída foi conturbada, motivada por desentendimentos com a sua chefia imediata, denúncias e

acusações. Temperos perfeitos para um romance da teledramaturgia com direito a manchetes

de jornais, envolvendo Orquestra Sinfônica da UFMT, Centro Acadêmico de Direito, Vice-

Reitoria, Coral Universitário e a Coordenação de Cultura da UFMT36

.

Fora da Orquestra Sinfônica da UFMT, Ricardo Wilson Rocha Cria a Orquestra

Filarmônica de Mato Grosso e o Madrigal Guia, para dar continuidade com o seu projeto de

Música Brasileira de Concerto, assim como da música sacra barroca. Por fim funda a

Sociedade Musical Bachiana Brasileira e por meio desta, captação de recursos pela Lei de

Incentivo à Cultura e a iniciativa privada, para realização dos concertos na capital. Cria a

partir de então o Coral da Sociedade Musical Bachiana Brasileira (Coral da SMBB).

A base da Orquestra Filarmônica de Mato Grosso foi formada com os músicos da

Orquestra Sinfônica da UFMT. Os músicos provenientes de outros Estados eram para

36

Ver Anexo L, p. 262-265, matéria jornalística com o título “O Estranho no Ninho”, que foi como o maestro

Ricardo Wilson Rocha se autodenominou ao se defender das acusações de preconceituoso.

Page 70: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

68

completar os naipes. O caráter do repertório utilizado nos concertos destes grupos era o

mesmo do utilizado na Orquestra da UFMT.

O programa do Concerto de Encerramento da Temporada 1996 da Filarmônica

sintetiza bem o perfil do trabalho de Ricardo Wilson Rocha até então. A programação foi

executada pelo Coral SMBB, Coral da TELEMAT, Ensemble Vocal Bachiana Brasileira,

Orquestra Filarmônica de Mato Grosso. A programação foi dividida em duas partes: na

primeira, Glória, ré maior, RV 589 de Antônio Vivaldi (1678 – 1741) e na segunda,

Magnificat, ré maior (2ª versão 1730 BWV 243), de Johann Sebastian Bach (1685 – 1750).

Esta programação confirma a tendência dos maestros da Orquestra Sinfônica da UFMT em

realizar músicas do século XVIII e XIX, repertório este que teve vigência até o início da

década de 90 em Cuiabá.

4.4 A Quarta Fase

Esta fase da música de concerto é marcada pela produção da Música Contemporânea

Brasileira de Concerto, com raízes na música de vanguarda, com total rompimento com a

estética musical dos séculos XVIII, XIX e o seu sistema tonal.

E foi naquele clima tenso existente entre o maestro Ricardo Wilson Rocha e a direção

da UFMT que Roberto Victorio assumiu a da Orquestra da UFMT.

Vim em 1994 a convite da Coordenação de Cultura porque o regente que

estava aqui tinha saído, ele teve uma grande desavença, aí eles foram ao Rio

de Janeiro me convidar. Eu aceitei o convite [...]. Foram Marina Miller Porto

Carrero, que era coordenadora de Cultura na época e o ex-regente que estava

fora do Brasil, Marcelo Bussik (VICTORIO, 2010.).

A direção superior da Universidade Federal de Mato Grosso necessitava de um

maestro para ocupar o cargo da orquestra que se encontrava vago, e dar continuidade à agenda

cultural que se estabelecera entre a instituição e a comunidade cuiabana, produzindo a música

orquestral que a plateia estava acostumada a ouvir.

A procura por um maestro resultou na contratação de um compositor maestro. Aliás,

foi algo que aconteceu sem um plano previamente estabelecido, pois para a direção da UFMT,

um regente era suficiente para os trabalhos que estavam sendo desenvolvidos na orquestra.

Page 71: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

69

Não se cogitou para Roberto Victorio, qualquer organização de núcleo de pesquisa

para a música contemporânea e suas vertentes, ou um trabalho exclusivo com a música de

vanguarda. Entretanto foi dada toda liberdade para o maestro desenvolver o trabalho que

melhor lhe conviesse e sobre isto Victorio (2010) relata em entrevista que:

[...] eles nunca imaginariam o que eu iria fazer (risos). Era para ter mais um

regente aqui. Na verdade, para ser curto e grosso, eles queriam mais um

regente que continuasse o trabalho que eles vinham fazendo, só que eu fiz

pela metade; vim para cá e fiz o que eu queria fazer [...] eles não sabiam nem

o que era música contemporânea, na verdade. Quando eu assisti ao concerto

em 1993, antes de vir para cá, percebi que estavam estagnados.

Deste modo, a produção da música contemporânea de concerto com raiz na vanguarda

em solo mato-grossense, aconteceu por acaso, pois ela só existia nos planos do compositor

Roberto Victorio; ele entendeu que era um trabalho factível em Cuiabá que oferecia campo

propício. Desta forma, em seu concerto de estreia ele principia o programa37

proferindo as

seguintes palavras:

Apesar de já estarmos no limiar do próximo século, as manifestações

culturais em todos os sentidos nos são ainda estranhas, herméticas;

aparentam ser de qualquer outro lugar e não do momento em que vivemos e

respiramos. No tocante à música, não podia ser diferente. A música

composta neste século pelos grandes mestres permanece na quase total

obscuridade, engavetada para os „futuros ouvidos‟ apreciarem. Nossa

obrigação enquanto músicos é desvelar ao público esta imensidão do

universo musical de nosso século; uma diversidade de tendências que

afloram desde a primeira década até os dias de hoje, numa rapidez maior do

que a capacidade de assimilação do público e mesmo dos próprios músicos (VICTORIO, 1994).

As pretensões do compositor desde o início foram para uma produção exclusivamente

de música contemporânea, mudando a trajetória da programação habitual da orquestra,

distinguindo-a das orquestras do restante do país.

Ele propunha um trabalho com obras inéditas, além da aproximação da orquestra e

consequentemente da plateia com os principais núcleos de produção da música

contemporânea do país.

Na atualidade, apenas duas orquestras em todo o mundo dão vazão a esta

produção riquíssima e pouco ou nada conhecida: uma em Nova York e outra

em Londres. E a Orquestra Sinfônica da UFMT, em sua nova trajetória, se

propõe a desempenhar esta tarefa, trazendo em Cuiabá músicos e grupos

37

Ver Anexo I, p.240, o primeiro programa de concerto com a direção do maestro Roberto Victorio.

Page 72: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

70

especializados em música do século XX para montagem de obras primas,

especialmente de compositores brasileiros vivos (VICTORIO, 1994).

Era o início do rompimento com a música tradicional tonal, amparado por um trabalho

inédito. Um repertório inédito não somente para a plateia local, mas global, pela realização de

estreias mundiais de várias obras musicais, trazendo ao conhecimento do público a produção

dos compositores de seu tempo; em especial dos compositores brasileiros. Deste modo,

despertando no público local o interesse e o gosto por uma música que até então não fazia

parte do seu cotidiano.

Em suma, diríamos que este concerto se constitui no ponto de partida de uma

nova fase da Orquestra Sinfônica Universitária, em que se pretende romper

com um hiato – o desconhecimento quase absoluto por parte das platéias

brasileiras da produção musical de hoje. Entendemos que tal lacuna existe

em decorrência da falta de seriedade e constância na montagem de obras

contemporâneas que despertem o gosto do público por esta diversidade

sonora, familiarizando-o com a mesma (VICTORIO, 1994).

O concerto de abertura da temporada de 1994 com estreia de Victorio na direção da

Orquestra Sinfônica da UFMT foi dividido em duas partes. Na primeira, Sinfonia n.º 5, de

Franz Schubert (1797 – 1828) e na segunda parte, Impressione de la Puna de Alberto

Ginastera (1916 – 1983), Ori Otvi, de Marcus Ferrer (1965), e encerrando com The Magic

Labyrinth, do compositor Aurélio de La Vega (1935).

Ao iniciar o concerto com uma sinfonia de Schubert; que é um compositor do período

Romântico do século XIX, nota-se a preocupação do maestro em preparar o público para a

proposta que estaria por vir, uma vez que para a grande maioria do público local, seria o

primeiro acesso à Música de Concerto Contemporânea desvinculada do sistema tonal

tradicional.

O maestro sempre teve o cuidado de esclarecer o público sobre o repertório que a

orquestra iria executar e fazia por meio de entrevistas e também nos concertos.

Começa a partir de então um trabalho de preparação e formação de platéia, uma vez

que é muito comum a rejeição deste tipo de repertório para o espectador que não está

habituado com esta categoria musical. Também é fato que a reação negativa do público não é

novidade para o compositor de música contemporânea e Victorio deixa isto muito claro em

entrevista concedida. Quando perguntado se houve dificuldades de aceitação da sua música

ele informa que:

Normal, claro que tive. Tive dos músicos também, claro, mas com eles foi

contornável porque se sentiram estimulados. Eu percebi, um ou outro.

Sempre tem um ou outro que realmente são mais radicais, como tinha no

Page 73: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

71

Rio, como tem em qualquer lugar, mas eu sentia que eles estavam

estimulados para tocar um outro tipo de música diferente, uma música que

para eles a princípio parecia como não música, porque eles nunca tinham

tocado nada daquele jeito (VICTORIO, 2010).

Roberto Victorio tinha ainda pela frente a tarefa de persuadir os próprios músicos da

orquestra que ora assumia, uma vez que para os mesmos este trabalho também era novidade.

Portanto as reações que foram percebidas pelo maestro proviam tanto dos componentes da

orquestra como da plateia que tinha sido formada pelos maestros que o antecederam.

Contudo, assim como houve reações negativas, também sucedeu o contrário. Em torno

de suas propostas, musicistas, pessoas interessadas e o público, contribuíram para a

continuidade do projeto de realização de música contemporânea em solo mato-grossense

(como veremos adiante) e a partir do segundo concerto da temporada de 1994 ficou bem

definida a trajetória da Orquestra Sinfônica da UFMT com relação ao conteúdo de seu

repertório.

Esse é um trabalho que a Orquestra está realizando desde o início do ano,

dedicando-se à preparação de um repertório de Vanguarda que também

estará apresentando em vários concertos já marcados em São Paulo e Rio de

Janeiro. [...] A mudança no repertório da Orquestra Sinfônica da

Universidade Federal de Mato Grosso já traz bons resultados e uma agenda

cheia para os próximos meses (BARBANT, 1994, p. 1E).

O projeto do maestro compositor incluía a gravação do primeiro CD da Orquestra

Sinfônica da UFMT, produção de um vídeo, excursão pelas capitais brasileiras que possuíam

núcleo de produção de música contemporânea, a participação em festivais de música

moderna, assim como também, realizar concertos no exterior. Houve convites da Malásia,

França, Alemanha, Bélgica e Argentina, mas não chegaram a ser realizados.

Esta movimentação em torno da Música de Concerto Contemporânea foi amplamente

divulgada, inclusive pela imprensa local que atraiu a atenção para a sinfônica da UFMT,

contribuindo para a formação de músicos e uma plateia interessada na produção da Música de

Concerto Contemporânea.

Plateia? Claro, a plateia mudou totalmente, eram aquelas senhoras que

vinham assistir a trechos de óperas de Aída, de Verdi, de Bellini. Quando

nós começamos a fazer os concertos com outro repertório, com outra

sonoridade, a plateia mudou, mas mudou para melhor, as pessoas que

realmente precisavam ouvir aquilo (VICTORIO, 2010).

Foi, portanto, também o início da reconfiguração do público da Orquestra Sinfônica da

UFMT, que tinha à sua disposição um repertório de vanguarda da Música de Concerto do

século XX.

Page 74: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

72

Victorio permaneceu na sinfônica da UFMT até o final de 1994; seu último concerto

como maestro titular aconteceu nos dias 06 e 07 de outubro de 1994, no Teatro Universitário,

com o espetáculo intitulado “Cruzar e Bifurcações”, demonstrando a influência que a música

Planalto Central exerceu sobre a produção artística de Roberto Victorio no decorrer do ano

de 1994.

Neste último espetáculo, a arte dos encartes dos programas de concerto, das filipetas e

dos cartazes foi realizada por Wlademir Dias Pino, que também emprestava o título de seu

poema “Cruzar e Bifurcações” ao concerto.

Foi uma reunião de artes, isto é, um cruzamento de poéticas, como foi sugerido pelo

próprio título do espetáculo, pois nele se encontraram Música, Literatura, Artes Plásticas,

Artes Cênicas e Lutheria.

Foram musicados os poemas: Cruzar e Bifurcações, de Dias Pino, Oferenda de

Rabindranath Tagore, Insônia de Fernando Pessoa e Transeuntes Transitamos de Ricardo do

Carmo.

No saguão de entrada do Teatro Universitário houve a organização de duas

exposições, uma da artista plástica e soprano Rose Vic; com trabalhos de escultura em pedra

sabão e material acrílico e outra do luthier João Quinzani; com a exposição de instrumentos

musicais elaborados a partir das madeiras de Mato Grosso. A programação musical constava

de seis peças – destas, duas foram primeira audição mundial e as outras quatro foram primeira

audição em Mato Grosso, conforme programa descrito abaixo:

** 1 - Cinco Peças Livres (Roberto Victorio)

Poema: Wlademir Dias Pino

Solista: Marcelo Palhares

** 2- The Hollow Men (Vincent Persichetti)

Solista: Benedito Borges

** 3– Insônia (Carlos Belém)

Poema: Fernando Pessoa

Solista: Marcelo Coutinho

Direção Cênica: Luis Carlos Ribeiro

** 4-Concerto Op. 24 - Anton Webern

* 5-Oferenda ( Alexandre Schubert)

Poema: R. Tagore

Solista Ronaldo Victorio

* 6-Transeuntes Transitamos (Roberto Victorio)

Poema: Ricardo do Carmo

Solista: Marcelo Coutinho e Ronaldo Victorio

* primeira audição mundial

** primeira audição em Mato Grosso (UNIVERSIDADE FEDERAL DE

MATO GROSSO, 1994)

Page 75: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

73

No ano de 1995, Roberto Victorio ingressa no Departamento de Artes da UFMT por

meio de concurso público, ocupando a cadeira de Laboratório de Música Dodecafônica e

Experimental, desvinculando-se definitivamente da direção artística da Orquestra Sinfônica

da UFMT, sem, no entanto, perder contato com os músicos, sendo que, com eles, organizou o

Grupo Sextante Mato Grosso para dar continuidade ao processo de produção da Música

Contemporânea em Mato Grosso.

Empossado no Departamento de Artes da UFMT, dedica-se à docência e à formação

de novos compositores, cujas composições são estreadas com o Grupo Sextante Mato Grosso

já no ano de 1995 (com menos de doze meses de trabalho).

O primeiro concerto que apresentou as composições dos alunos do Departamento fez

parte da programação de aniversário de 25 anos da UFMT, no Teatro Universitári, em

09/12/1995, com o seguinte programa:

Eugênia Gomes – Distúrbios, para flauta e piano

Bia Corrêa – Clareando, para violino e oboé

Carlos Roberto Pereira – Duo, para flauta e oboé

Telma Goulart – Rompante, para violino e piano

Ester Goulart – Quelal, para violino e piano

Érica da Matta - Duas Cordas, para violino e violoncelo

Teresa Albuquerque – Rimeda, para violino e violoncelo

Suzi Simões – Lacisumadalas, para violino e violoncelo

Adriana Janeth – Ticvá, para violoncelo e piano

Carlos Roberto Pereira – Suíte Nº 1, para piano

Roberto Victorio – Contraste, para flauta, violoncelo, soprano e piano

Poema: Estevam Ferreira

Débora Jesuíno – Ousadia, para flauta, 2 violoncelos e contralto

Jair Jerônimo – Babel, para voz, violino e percussão

-Intervalo-

Jurandir Lara – Ousadia, para voz, piano e percussão

Ester Goulart, Suzi Simões e Carlos Roberto Pereira – Metanóia, para vozes,

piano e percussão

Adriana Balsanelli – Distorcendo, para dois sintetizadores

Pio Toledo – A Árvore, para violino, violão e serrote

Linda Cavalhian, Bia Corrêa e Rosy Arruda – Digerindo, para narrador,

percussão e liquidificador

Ana Golveia e Barbara Foster – Onopatopeizando, para coro e percussão

Nadia Boabaid - Despertar, para voz, violino, percussão e fita Magnética

Beth Alamino – O Retorno, para contrabaixo, pedras e fita magnética

Maristela Beber, Larissa de S. Pinto e Rosimary Silveira – Unânime, para

piano, tam-tam e fita magnética (GRUPO SEXTANTE, 1995).

Esta programação que foi nos moldes camerísticos, apresentou 21 peças inéditas de

compositores mato-grossenses, alguns dos quais figurariam mais tarde nas Bienais de Música

Contemporânea de Mato Grosso (que passaram a fazer parte da agenda cultural de Cuiabá),

dentre os compositores, Beth Alamino e Pio Toledo.

Page 76: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

74

A Orquestra Sinfônica da UFMT, no ano de 1995, estava sem um maestro titular

motivado pelo impedimento do Governo Federal em realizar concursos públicos para provisão

de cargos vagos, portanto ficou fora desta programação. A sua participação restringiu-se a

concessão dos músicos para integrar o Grupo Sextante Mato Grosso.

Sem um regente titular, a Sinfônica da UFMT prioriza as atividades para atendimento

interno da universidade por meio de grupos de câmara extraídos de seus naipes. Para tal,

foram mais comuns a participação do Quinteto de Metais e do Quarteto de Cordas.

Diante do problema legal que persistia e prejudicava os trabalhos, a solução

encontrada para Sinfônica da UFMT foi nomear para seu maestro, um músico de suas

próprias estantes, e para tal fim foi escolhido o flautista Fabrício Carvalho. O anúncio deste

músico como novo maestro da Orquestra Sinfônica da UFMT foi feito pela coordenadora de

cultura da época, Marina Müeller, em um concerto de câmara realizado dia 18 de dezembro

de 1996, no Teatro Universitário.

Com um maestro definitivo, a Sinfônica da UFMT torna a priorizar a execução de um

repertório tonal tradicional, ficando a produção da música contemporânea de vanguarda

representada pelo Departamento de Artes da UFMT, sob a coordenação do compositor

Roberto Victorio.

Um ganho para a plateia cuiabana que pode optar pela vertente musical que mais

atenda ao seu gosto; um repertório composto por músicas do século XVIII ao XX, inclusive

da novíssima geração de compositores mato-grossenses, realidade esta que teve como

embrião Planalto Central inaugurada no dia 04 de agosto de 1994, testemunhando a

heterogeneidade dos fazeres musicais da era pós-moderna.

Page 77: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

75

5 PLANALTO CENTRAL EM TRÊS POEMAS PARA VOZ E PEQUENA

ORQUESTRA

A característica de Planalto Central que mais salta aos olhos é o instrumental

escolhido pelo compositor. A escolha dos instrumentos é extremamente estratégica para a

concepção da obra musical, pois cada instrumento possui sua peculiaridade e possibilidades

sonoras.

Deste modo, a partir da escolha dos instrumentos que resultará uma das características

mais importantes para a escuta musical: o timbre.

Com a opção pela utilização do berrante, e da viola de cocho – a mais impressionante

personagem mestiça de Planalto Central, a grande mestiça da obra – bem como dos três

poemas – cada qual com poética e abordagem distinta uns dos outros – todos presentes na

mesma obra, interpretados por um narrador e um soprano e amparados por toda formação

orquestral. Aqui ocorreu hibridação musical.

A hibridação musical está presente em todos os âmbitos da obra, assim como da

própria orquestra sinfônica que, em consequência, passa a ter uma formação instrumental

mesclada, misturada, intercambiada. Formação evidenciada por instrumentos musicais que em

princípio nada tinham em comum. Distancia observada inclusive entre a viola de cocho e o

berrante, que, em outras circunstâncias, não dividem o mesmo espaço de realização musical.

Os tempos cronológicos se cruzam e são vivenciadas múltiplas realidades nesta obra

que se manifestam na rusticidade dos instrumentos (viola de cocho e berrante) utilizados nas

poéticas de vanguarda dos três poetas mato-grossenses e do compositor carioca Roberto

Victorio. Sem, no entanto, causar estranheza para os padrões musicais do pós-modernismo.

Local e universal se amalgamam de modo que já não são nem um nem outro, mas

híbridos; mesclados.

Para ocorrerem os encontros é necessário um local. A convergência e intercambio se

dão em Planalto Central. Sua estreia aconteceu no palco do Teatro Universitário, lugar

escolhido pela Orquestra Sinfônica da UFMT, que até então realizava a música de concerto

tradicional tonal38

.

38

Referência à reprodução da música tonal que a orquestra realizou desde a sua fundação até o final do ano de

1993, ou mais especificamente ao último concerto da temporada. Houve uma interrupção deste processo a partir

do primeiro concerto da Temporada 1994 que foi estreado por Roberto Victorio.

Page 78: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

76

A configuração instrumental observada em Planalto Central antecipa que se trata de

uma composição com uma forte ligação com aspectos da cultura de Mato Grosso e adianta o

que o compositor quer propor com a sua obra.

Não se trata de uma música regional mato-grossense. Muito pelo contrário, é uma obra

composta conforme as possibilidades da música de concerto contemporânea e que traz em sua

essência a inconfundível poética do compositor Roberto Victorio, que declara39: “Na verdade

eu ia juntando essas sonoridades todas que eu via aqui, dos ribeirinhos; sonoridades da viola

de cocho; eu queria usar isso numa poética minha”.

Assim o compositor utiliza elementos da cultura regional (instrumentos musicais) e

trabalhos literários que, aliás, segundo o próprio compositor, podem ser considerados o cerne

da obra40

; e extrai tanto as potencialidades timbrísticas dos instrumentos bem como o

potencial literário dos escritores locais para arquitetar a sua obra.

Planalto Central é uma música com uma variedade instrumental considerável, cujas

inovações estão relacionadas à combinação dos instrumentos tradicionais de orquestra

sinfônica com os da cultura regional mato-grossense e um de uso rural nacional, a saber:

1. Viola de Cocho – em sua essência, ribeirinha e pantaneira, bem como altamente

significativa para o fazer cultural dos atores sociais locais.

2. Berrante – conhecido nacionalmente, principalmente nas regiões sertanejas do país

e que tem intrínseca ligação com a pecuária e seu manejo.

Figura 4 – Vaqueiro tocando berrante ao manejar o gado

Fonte: Foto coletada no Site Terra Stock

39

Ver Apêndice A, p. 138, a entrevista concedida em 19/08/2010. 40

Ver entrevista em Apêndice A, p. 138.

Page 79: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

77

Ambos os instrumentos são muito populares em Mato Grosso, sendo cada um ao seu

modo executado por toda região.

Victorio oportunamente faz uso e aproveitamento do que cada instrumento destes pode

proporcionar, conferindo a Planalto Central muita personalidade e distinguindo-a das suas

produções anteriores, bem como das composições que fizeram parte dos programas

apresentados no início desta nova era musical para os mato-grossenses41

.

Outra característica importante a ser observada em Planalto Central é a quantidade de

instrumentos empregados, que além de numerosa, é diversificada e estabelece a prerrogativa

de ser classificada como música orquestral. Por isso intitulamos este capítulo de “Planalto

Central em Três Poemas para Voz e Pequena Orquestra”, mencionando a obra distintamente

do compositor Roberto Victorio, no programa de concerto42

que registrou a primeira audição

mundial, datada de 04 de agosto de 1994, em Cuiabá, no Teatro Universitário, da

Universidade Federal de Mato Grosso. Contudo ressaltamos que intitulamos o capítulo desta

pesquisa e não a obra. Pequena Orquestra é sugerido porque Planalto Central foi escrita para

todos os naipes que compõem a orquestra sinfônica tradicional: as cordas, as madeiras, os

metais e a percussão. Entretanto com instrumental dos naipes em número reduzido.

O termo Pequena Orquestra não é inédito, mas também não é o mais comumente

utilizado. O compositor Heitor Villa-Lobos chegou fazer uso dele em 1951 para intitular seu

concerto para violão que originalmente tinha o nome de Fantasia Concertante e que mais

tarde foi mudado para Concerto para Violão e Pequena Orquestra, atendendo assim ao

pedido do violonista Andrés Segóvia que intencionava interpretar um concerto para Violão de

sua autoria. Por outro lado, os catálogos especializados em música erudita normalmente

utilizam a terminação “orquestra de câmara” para referir-se a uma orquestra reduzida.

ORQUESTRA DE CÂMARA Pequena orquestra capaz de tocar em um

pequeno salão. O termo é aplicado de forma imprecisa, mas se refere

geralmente a um grupo em que há mais de um executante por parte

orquestral. (DICIONÁRIO..., 1985, p. 275).

O Dicionário Grove de Música (1994, p. 686) conceitua orquestra de câmara como

“uma orquestra com reduzido número de componentes” e que este tipo de formação musical

surgiu como “uma reação ao gigantismo da orquestra pós-romântica”.

Na instrumentação de Planalto Central os naipes estão dispostos da seguinte forma:

1. Naipe das cordas em formação reduzida, sendo: 01 violino, 01 viola, 01 violoncelo e

01 contrabaixo.

41

Ver Anexos B-H, p. 214-236, programas de concerto. 42

Ver Anexo I, p.240, programa de concerto.

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78

2. Naipe das madeiras: 01 clarinete em si bemol, 01 clarone ou clarinete baixo.

3. Naipe dos metais: 03 trompetes em si bemol.

4. Naipe da percussão: tímpanos, bombo sinfônico, pandeiro, pau de chuva, tumbadoras,

caixa clara, ton-tons, surdo, tantam, pratos, queixada, ganzá, reco-reco, chocalho,

triangulo, clave.

5. 01 piano.

6. 03 violas de cocho.

7. 01 berrante43

(não está escrito na partitura manuscrita original, mas é parte integrante

da música deste a estreia).

O naipe da percussão está completo e é o que tem maior número de integrantes. Não

poderia ser diferente em uma música que prima pela exploração timbrística. O próprio

compositor esclarece: “eu quis uma formação inusitada pensando na percussão. Ela é o grande

eixo de Planalto Central. Os outros naipes circundam em torno deste setenário percussivo”

(VICTORIO, 2010)44

.

A instrumentação de Planalto Central também inaugura a utilização da viola de cocho

em uma orquestra, pois ela ainda não havia sido incluída neste grupo apesar de sua

antiguidade e popularidade até porque a viola de cocho foi originalmente construída para

atender exclusivamente à demanda cultural da comunidade local que era executada pelos

cururueiros nas rodas de Cururu e Siriri, trazendo em sua rusticidade a expressão musical do

homem da terra45

.

Quanto ao berrante, não encontramos nos arquivos da Orquestra Sinfônica da UFMT

qualquer menção de seu uso, porém é notório que ele é utilizado como um recurso de

comando pelos boiadeiros durante as comitivas de boiadas, para facilitar a comunicação entre

os peões no transporte do gado de um lugar ao outro. Seu som é comumente ouvido no

Pantanal, bem como nas zonas rurais.

Até então, a Orquestra Sinfônica da UFMT ainda não tinha registrado em seus

programas de concertos46

a inclusão desses dois instrumentos, seja em arranjos ou adaptações

de músicas, ou composições que originalmente propiciassem seu uso. A Orquestra Sinfônica

da UFMT era a única orquestra existente no estado de Mato Grosso.

43

Ver Apêndice A, p.138. 44

Em Apêndice A, p. 138. 45

Ver Capítulo 2. 46

Ver Anexos B-H, p. 214-236, programas de concerto.

Page 81: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

79

Deste modo, Planalto Central congrega em seu arcabouço importante representantes

da expressão cultural local, pois foi inspirada tanto nos fazeres do homem rústico pantaneiro

como do intelectual e contemporâneo, como veremos a partir do capitulo 5.1. Trata-se de uma

obra monumental que foi composta congregando valores de homens do rio, com a

expressividade do poeta Manoel de Barros – pantaneiro por opção, mundial na concepção – e

Silva Freire, ambos ativistas ligados aos importantes movimentos literários. E também por

“homens do Rio” que se fizeram cuiabanos por pura abstração e absorção: os cariocas

Wlademir Dias Pino e Roberto Victorio.

Em entrevista com o compositor47

ele informa que teve o cuidado de reunir em uma

única obra o que ele acreditava ser representativo para a produção literária contemporânea

bem como bastante significativo para esta região e achou nos três poetas citados essa

representatividade.

Então, juntei os três gigantes da literatura mato-grossense, Wlademir Dias

Pino, Silva Freire, que já era falecido, e o Manoel de Barros que na verdade

é de Cuiabá, mas está em Mato Grosso do Sul. Peguei três poemas deles e fiz

uma vestimenta sonora para aqueles belíssimos poemas (VICTORIO, 2010).

Os critérios foram rigorosos, tendo em vista que a escolha não foi por falta de opção.

Esses poetas não são os únicos em Cuiabá, pois a literatura mato-grossense, diferentemente da

música, esteve mais próxima dos movimentos de vanguarda nacional e conta uma extensa

produção.

Para se ter uma ideia, Magalhães (2001, p. 124) informa que no final da década de

1930 já se falava em literatura moderna em Cuiabá, e os escritores se movimentavam em

torno das revistas Pindorama, Canga e Sarã. Entre os nomes da literatura local, Victorio

poderia contar com Lobivar de Matos, João Antonio Neto, Rubens de Mendonça Tertuliano

Amarilha, Padre Raimundo Pombo, Ricardo Guilherme Dicke, Marilza Ribeiro, Tereza

Albues, Hilda Gomes Dutra Magalhães, Padre Antônio Pimentel, Dom Pedro Casaldáliga e

Aclyse de Matos, entre outros. A escolha dos três poetas de Planalto Central se deu pela forte

identificação do compositor com a produção literária dos autores de que ele tinha

conhecimento ainda na cidade do Rio de Janeiro, muito antes de sua mudança para Cuiabá.

Com relação à representatividade da cultura mato-grossense, a escolha dos

instrumentos de Planalto Central foi mais direta. Até porque o compositor não teria à sua

disposição um leque de opções como teve com a literatura de Mato Grosso, pois o

47

Ver Apêndice A, p. 138, entrevista concedida.

Page 82: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

80

instrumento musical que dá mais visibilidade à cultura local é a viola de cocho, que é

difundida por todas as classes sociais. Portanto conhecida de todos, assim como tendo

presença obrigatória nas festas populares (diferentemente dos poetas, que são conhecidos por

uma classe mais específica da região, neste caso pessoas ligadas à literatura).

Já a utilização do berrante se dá pela ligação com o aspecto rural do estado. Ora, Mato

Grosso na década de 90 se configurava como o estado que detinha o status de ter o maior

rebanho bovino do país, sendo então a pecuária uma importante fonte de riqueza. Fato que

pode ser comprovado ao observar o Palácio Paiaguás (Figura 5), sede do governo do Estado

de Mato Grosso, que tem estampadas em sua fachada as figuras bovinas de Humberto

Espíndola, consagrando a força da pecuária. Assim, viola de cocho e berrante se tornam em

Planalto Central um elo com a intimidade da terra.

Figura 5 – Palácio Paiaguás (Cuiabá)

Fonte: Foto coletada no site do Wikipédia, a enciclopédia livre

Planalto Central foi composta para 24 instrumentos e executada por 25 músicos,

incluindo a regência. Não existe hierarquia entre os instrumentos, bem como predominância

de solo, como ocorre na música tradicional tonal, onde os instrumentos de afinação

determinada, principalmente os violinos, tem a preponderância dos solos. Mas em Planalto

Central, os instrumentos de afinação indeterminada, isto é, a percussão, possuem o mesmo

grau de participação no grupo, pois todas as inserções funcionam para explorar o timbre e

Page 83: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

81

efeitos dos instrumentos de cada naipe, proporcionando uma atmosfera e um colorido

apropriado entre as intervenções das linhas poéticas que integram a obra.

Com cerca de 14‟38‟‟ minutos de duração, conforme informação constante no CD

Grutas Permitidas, Planalto Central está dividida em três poemas que formam os grandes

blocos ou seções que compõem a obra.

Cada poema instrumentado de Planalto Central possui movimento próprio, expresso

com independência uns dos outros, formando um tríplice arcabouço da obra. De modo que

cada poema poderia muito bem ser extraído para ser executado, sem prejuízo qualitativo ou

quantitativo e encerra em si mesmo cada parte.

A escolha dos três poemas que compõem Planalto Central não se deu somente pela

temática ou estilos e a seleção dos poetas não aconteceu aleatoriamente; pois os escritores,

como já foi dito, são artistas que conquistaram o status de serem considerados importantes

representantes da literatura contemporânea mato-grossense.

Para tanto faremos uma exposição dos aspectos biográficos dos autores bem como da

sua produção artística, partindo pela ordem escolhida por Victorio, na tentativa de uma

melhor compreensão do papel que cada um deles tem para a literatura mato-grossense, assim

como da importância de seus poemas para a obra musical.

5.1 Primeiro Poema

O Poema Auto Retrato Falado de autoria de Manoel de Barros (1916 apud

VICTORIO, 1994), que inicia a música, foi extraído do livro Ignorãnça (1993). Ele teve sua

publicação um ano antes da composição de Planalto Central, fato que demonstra a

familiaridade de Victorio com a produção artística de seu tempo. Deste poema o compositor

utiliza os seguintes versos.

Venho de uma Cuiabá garimpo de ruelas entortadas

Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.

Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes,

aves árvores e rios

Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e

lagartos.

Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz

Já publiquei 10 livros de poesia, ao publicá-los em sinto como desonrado e

fujo para o Pantanal onde sou abençoado à garças.

Page 84: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

82

Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.

Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.

Não fui para a sarjeta por de que herdei uma fazenda de gado. Os bois me

recriam.

Agora eu sou tão ocaso!

Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.

No meu morrer tem uma dor de árvore.

O nome completo do escritor é Manoel Wenceslau Leite de Barros e como bom poeta

que é, possui uma percepção bastante peculiar dos fatos e prefere dizer que nasceu no Beco da

Marinha na beira do Rio Cuiabá, no dia 19 de dezembro de 1916 - poderia simplesmente dizer

que nasceu em Cuiabá (MT).

Passou parte de sua infância no pantanal de Corumbá (MS) onde seu pai era um

fazendeiro e isto foi extremamente marcante para a sua obra, pois nela ele registra as

paisagens, personagens e os viventes, num verdadeiro mosaico de imagens do local por ele

vivenciado e que mais tarde são traduzidas em versos como marca indelével de sua obra - “me

criei no pantanal de Corumbá entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios”.

Dos três poemas escolhidos para a música Planalto Central, Auto Retrato Falado de

Manoel de Barros é o que traduz mais explicitamente imagens do regional mato-grossense.

Ele transporta para sua obra a vivência pantaneira e retrata com a sua poética o cotidiano

rural.

Como vários jovens intelectuais de sua época, aproxima-se do ideal comunista.

Entretanto após uma grande desilusão, rompe com os ideais do partido político e retorna para

o Pantanal. Mais tarde sua obra irá traduzir este rompimento, quando optará por reverenciar as

inutilidades.

Na verdade, toda linha poética de Manoel de Barros nega o Capital, na

medida em que privilegia as „inutilidades‟, aquilo que, no mundo

materialista e tecnológico, não serve para nada porque não pode ser

contabilizado em lucros (MAGALHÃES, 2001, p.147).

A boa situação financeira do poeta favoreceu que vagasse mundo afora. Deste modo

morou na Bolívia, Peru e nos Estados Unidos. Em Nova York estudou cinema e pintura no

Museu de Arte Moderna, fato que pode ter contribuído para o verdadeiro caráter de sua

produção literária.

O poeta demonstra extensa criatividade pois vem publicando obras desde 1937 e até o

ano 2006. Já havia lançado 27 livros tanto no Brasil como no exterior, com obras publicadas

em Portugal, França, Espanha e Alemanha.

Page 85: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

83

Sua primeira publicação foi Poemas Concebidos sem Pecado (1937) e nos idos de

1980, Millôr Fernandes tornou-o conhecido do grande público por meio das colunas das

revistas Veja, Isto É, e no Jornal do Brasil. A Editora Civilização Brasileira publicou sua obra

em quase a totalidade, sob o título de Gramática expositiva do chão.

O reconhecimento da importância da obra de Manoel de Barros parte de pessoas

intimamente ligadas à literatura nacional, como Guimarães Rosa e Antonio Houaiss. O

escritor coleciona em seu currículo várias premiações ofertadas por instituições privadas e

governamentais.

Manoel de Barros tem sido estudado por pesquisadores e literatos e alguns chegam

arriscar classificar sua arte. Hilda Magalhães, por exemplo chega a rotular sua obra como

Surrealista.

A consciência dos dramas sociais e a inadequação do autor na metrópole

apontam uma segunda vertente poética em suas obras de estréia: o

compromisso com a realidade. Entretanto já se podem constatar algumas das

características da fase madura do autor, como a visão surrealista do mundo e

o fascínio pela terra e pelas „inutilidades‟ (MAGALHÃES, 2001, p. 147).

Os escritos de Manoel de Barros falam do Pantanal, dos animais e das pessoas que

povoam esta região. Seus poemas falam das árvores, dos pássaros, lagartos, insetos. É um

artista, ou melhor, um poeta do qual emana a arte inspirada no Pantanal que vai para o mundo.

Suas publicações extrapolam as fronteiras da territorialidade local.

“A natureza estetizada por Manoel de Barros é, ao mesmo tempo, regional e universal,

já que diz respeito a todas as coisas em seu estado pré-consciente, mágico e misterioso entre o

consciente e inconsciente” (MAGALHÃES, 2001, p. 153).

Victorio declara que escolheu este poeta para compor Planalto Central porque além da

afinidade que tinha com a sua obra, alimentava o desejo em musicar um poema de Manuel de

Barros. O compositor chega a esboçar certa indignação por ninguém ter feito isso antes.

O poema Auto Retrato Falado com o qual o compositor inicia a música Planalto

Central, é uma descrição do homem regional, porém ao mesmo tempo universal. Era o que

Victorio precisava para iniciar uma obra em que faz apologia à região que escolheu para fixar

residência e desenvolver sua produção artística, mesmo que em princípio não tivesse planos

de transferir-se para Cuiabá, como foi declarado em entrevista. O compositor intencionava

morar por aqui por somente um ano e retornar para o Rio de Janeiro. Entretanto deixa

transparecer o interesse em deixar o registro de sua passagem pelo local e mostrar o que veio

fazer.

Page 86: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

84

O poema Auto Retrato Falado apresenta um regionalismo distinto da prática de outros

poetas mato-grossenses, como Dom Aquino Correa (parnasiana). Não proclama heróis ou

aventureiros, santidades, majestades ou tesouros, mas uma poética contemporânea que é

aproveitada por Victorio que com sua musicalidade, vai instrumentá-la em Planalto Central.

5.2 Segundo Poema

Intitulado por Silva Freire (1928- 1991) simplesmente de Poema. Victorio vai utilizar

os seguintes versos:

As raízes das grutas permitidas

Estão roídas por letras

Expulsando nossa infância usual

Os poemas se definem ao sol

E afeiçoam-se no vapor do último lago

Que bebeu a morte da amada

Nem o infinito do teu ser surgirá da taça

Escondida entre as colunas de tua cabeça,

- amada de todos nós!

A alegria só

De não ter sido indivisível

Absolverá a poesia inascida, para sempre.

Procederá de algas, matas e membros

De personagens diluíveis:

- folhagens pintadas de braços

- lastros de embarcações lubrificando faróis

- cerrados morrendo em fuligens.

Morrendo assim nos olhos estatualizados de pescadores...

Benedito Santana Silva Freire nasceu em Mimoso, distrito de Santo Antônio do

Leverger, no dia 20 de setembro de 1928. Obteve formação superior em Direito que o

qualificou para ocupar uma cadeira de professor da Faculdade de Direito da UFMT.

Jornalista, contista e poeta, foi imortalizado pela Academia Mato-Grossense de Letras. Foi

também membro da União Brasileira de Escritores-MT.

Em Cuiabá, juntamente com Dias Pino, criou as revistas O arauto da juvenília e O

Saci (1949), que foram muito importantes para a produção e divulgação da literatura de

vanguarda, uma vez que os meios de comunicação e divulgação estavam sob a égide dos

conservadores. “Autor experimental, sua arte desafia o bom tom e o conservadorismo da

Page 87: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

85

literatura clássica o que o torna, em determinados casos, algo hermética” (MAGALHÃES,

2001, p. 162).

Na cidade do Rio de Janeiro criou a revista Japa (1953) juntamente com o poeta e

amigo Wlademir Dias Pino e dirigiu o periódico Movimento que era promovido pela AME

(Associação Metropolitana dos Estudantes). Esta associação possuía filiados em todo o

território nacional e o periódico obteve premiação internacional pelo seu conteúdo

vanguardista. Suas principais publicações foram os livros Águas de Visitação (1979), Barroco

Branco (1989) e Trilogia Cuiabana (1991).

Escritor de vanguarda, chamava a atenção dos intelectuais de sua época, agradando ou

causando impacto nos meios literários. Hábil no manuseio das palavras para compor seus

escritos em que a “palavra é a Razão maior de existência do poema, é o espaço experimental

que sustenta seu projeto estético” (MAGALHÃES, 2001, p. 164). Seus escritos possuem uma

personalidade inconfundível, misturando com maestria elementos do regional com o

universal, do local, por meio de seus costumes populares, com o erudito conservador e

filosófico.

Como pode se constatar, a obra de Silva Freire reserva-nos muitas surpresas

estéticas, que emergem no texto sob o signo da contemporaneidade. Uma

contemporaneidade que confabula o falar regional e o erudito, o poético e o

racional, nas sendas da experimentação, na busca do texto sempre novo.

Neste sentido Silva Freire é, sem dúvida alguma, um dos mais bem

sucedidos poetas de Mato Grosso (MAGALHÃES, 2001, p. 182.).

A obra de Silva Freire é inspirada em Cuiabá, que é o seu tema favorito na qual ele

fala do povo, seus costumes e o cotidiano; versa sobre pessoas comuns, suas coisas, seus

fazeres, o falar e seus trejeitos. Utiliza a sua poética contemporânea, vanguardista,

experimental e concreta para retratar o regional, pois é por esta região que ele busca sua

inspiração e assim como a razão da sua criação.

O espírito pós-moderno resiste às explicações unificadas, abrangentes

e universalmente válidas. Ele as substitui por um respeito pela

diferença e pela celebração do local e do particular à custa do

universal (JENCKS apud GRENZ, 1997, p. 30).

Pelo exposto, podemos entender o que moveu Victorio a escolher este poeta para

compor sua obra, trabalho que visava traduzir em sua poética as imagens e a personalidade do

Planalto Central do Brasil.

Page 88: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

86

5.3 Terceiro Poema

O terceiro e último poema que compõe Planalto Central é Cruzar e Bifurcações, de

Wlademir Dias Pino e Victorio utilizará somente fragmentos dele, com os seguintes versos:

Peixes gravados

Em folha verde-mar

Cabelos da amada

Dentro das flautas abandonadas

Conchas flutuando

Aos pares – mudos olhos

Caminhos de luas

Rastros feito mastros

(calor de trilhos)

(olhos flutuando)

Como música esconde segredos

Sede colorida

Desgarrada em dentes

Rugas alheias

Em mistérios nossos

Olhos desenhados em mãos

Semente esculpida

Em barco escuro

... A velhice das coisas que voam.

Wlademir Dias Pino, poeta, professor, programador visual e gráfico nasceu no Rio de

Janeiro no ano de 1927, mas veio para Cuiabá quando ainda era criança, aos nove anos de

idade. Mesmo sendo carioca a sua ligação com Cuiabá faz com que a sua literatura seja

considerada mato-grossense.

Fixando residência em Cuiabá, se torna não somente um escritor talentoso, mas um

importante ativista ligado a movimentação literária, agrupando-se a vários escritores que

formavam a nova geração em Mato Grosso. Promoveu a difusão da literatura de vanguarda,

fundando revistas, jornais e periódicos com a colaboração de seu amigo Silva Freire, com o

qual tinha estreita relação.

Wlademir Dias Pino, Rubens de Mendonça e Otoniel Silva criaram o Manifesto

Intensivista - “nova ordem literária ditada contra os dogmas do academicismo antes

totalmente reinante” (SILVER, 1969), que foi difundido por meio dos jornais Sarã (1951) e

Arauto da Juvenília (1949). Na cidade do Rio de Janeiro funda o jornal Japa (1953)

juntamente com Silva Freire.

Page 89: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

87

A obra de Dias Pino é memorada nos livros que narram a história da literatura em

Mato Grosso, assim como em inúmeros artigos e trabalhos acadêmicos, pois de fato passou

grande parte de sua vida dedicando a este estado o melhor de si, que é a literatura. Um grande

diferencial para a sua obra é a estreita ligação com trabalhos visuais. Magalhães (2001, p.

193) em seu livro História da Literatura de Mato Grosso Século XX, chega intitular um

capítulo como “Wlademir Dias Pino: O Poema Visual”

A arte de Dias Pino extrapola as fronteiras do estado de Mato Grosso e, no Rio de

Janeiro, juntamente com os poetas Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos,

Ronaldo Azeredo e Ferreira Gullar, fundam o Movimento da Poesia Concreta, que ultrapassa

os limites da abrangência nacional, tornando-se conhecido e divulgado internacionalmente.

Jovem, inquieto e talentoso, participava ativamente de importantes movimentos

literários, exposições e debates, como a Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de

Arte de São Paulo - MASP (1956) e Noite de Arte Concreta, no MEC (1957). Em 1967, lidera

o Movimento Poema-Processo; participa também da IX Bienal de São Paulo (1967) e, no ano

seguinte, da I Bienal de Arte Construtiva na cidade de Nuremberg na Alemanha; além de

participar de inúmeros eventos desta natureza por todo o Brasil.

Foi professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde lecionou no

curso de Comunicação Visual e, na Universidade Federal de Mato Grosso, atuou como

pesquisador e programador visual.

Dos três poetas de Planalto Central, Wlademir Dias Pino (1927) foi o que Roberto

Victorio teve maior contato e intimidade. Por meio desta música, eles selaram uma forte

amizade que resultou, na época, e posteriormente, em vários trabalhos em conjunto; de modo

que enquanto Victorio organizava a programação dos concertos de temporada (pois nem todas

as obras que faziam parte dos concertos eram composições de sua autoria), Dias Pino

planejava a arte visual que compunha os encartes dos programas.

O presente autor é violinista da Orquestra Sinfônica da UFMT desde 1984, tendo

participado ativamente de todo o processo ao qual ela passou naquele período. Foi notado que

era muito comum a presença de Dias Pino nos ensaios para os preparativos de Planalto

Central e, após o mesmo dedicava tempo a longas conversas com o maestro, que muitas vezes

se prolongavam até altas horas da noite. O próprio Victorio relatava que falavam de suas artes

e compartilhavam experiências. Não raramente, eram os dois que fechavam as instalações da

sede da orquestra que na época ficava no Parque Aquático da UFMT, onde atualmente é o

Museu Rondon.

Page 90: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

88

A admiração entre ambos era recíproca, mas principalmente por parte de Victorio, que

conhecia o trabalho de Wlademir desde quando ainda morava no Rio de Janeiro e confessa

nutrir muita admiração por sua obra, reconhecendo nela genialidade.

A primeira coisa que fiz foi travar contato com Wlademir Dias Pino, que é

um gênio da literatura, um gênio, uma pessoa inteligentíssima, um gênio das

artes visuais, da visualidade, na verdade – não das artes visuais, da

visualidade – um dos maiores pensadores que eu conheço no Brasil, e ele

morava aqui nessa época, era funcionário da UFMT, foi um dos fundadores

da universidade na década de 70. Ficamos amigos e Wlademir tinha poemas

maravilhosos que nunca haviam sido musicados por ninguém [...]

(VICTORIO, 2010)48

.

O encontro dos dois resultou em Planalto Central, que é uma música composta a oito

mãos (três poetas e um compositor); uma obra sui generis - resultado da reunião de poéticas

variadas que agrega em seu arcabouço duas artes, qual seja, a música e a literatura, que enfim

se completam num único discurso.

Victorio reserva a Wlademir Dias Pino o gran finale de Planalto Central - a

conclusão da música, ou melhor, o final da obra utilizando para isto o poema Cruzar e

Bifurcações que já no título apresenta o verbo cruzar, que sugere entrelaçamento. Em

Planalto Central, há vários cruzamentos – podemos mencionar as duas vertentes artísticas,

que são a música e a literatura. As poéticas dos autores, neste caso quatro, também se cruzam:

Victorio, Dias Pino, Silva Freire e Manuel de Barros. Há ainda o cruzar de elementos do

regional com o erudito contemporâneo, evidenciados pelo uso das violas de cocho em

poéticas de vanguarda (da música e literatura), assim como a sua inserção em uma orquestra

composta pelos naipes tradicionais: cordas, madeiras, metais e percussão.

Se bifurcação é um caminho que se divide em dois, em Planalto Central o sentido

desta estrada é inverso. Pois são dois caminhos, isto é, duas vertentes artísticas que se

coadunam e o resultado final do trajeto é Planalto Central.

5.4 Planalto Central - Marco da Música Contemporânea em Mato Grosso

Planalto Central foi composta em Cuiabá e foi concluída no dia 10 de junho de 1994

(conforme informação constante na partitura manuscrita pelo compositor). A primeira audição

48

Ver Apêndice A, p. 138, entrevista concedida.

Page 91: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

89

mundial aconteceu em um concerto da Orquestra Sinfônica da UFMT com o nome de “Grutas

Permitidas, Músicas do Século XX”, no Teatro Universitário em 04 de agosto de 1994. Este

concerto foi o segundo realizado por Victorio em Cuiabá na direção artística da Sinfônica da

UFMT, mas foi o primeiro com um programa totalmente dedicado à música contemporânea.

Por isso um dia antes, no dia 03 de agosto, foi realizado um ensaio aberto na forma de

concerto didático ocasião em que o maestro interagiu com o público, falando da formação da

orquestra, das obras literárias que compõem o concerto, dos compositores, além da produção

contemporânea que era inédita para a maioria do público local.

As informações eram importantes e necessárias para a plateia. A Sinfônica da UFMT

tinha um público fiel às suas programações e estava habituado a ouvir músicas do repertório

tradicional tonal, como foi verificado pela análise de toda a programação da orquestra49

,

anterior à direção de Roberto Victorio.

Entretanto o concerto de 04 de agosto foi o primeiro realizado em Cuiabá com

repertório exclusivo de música contemporânea e a principal atração deste concerto era a

música Planalto Central. A obra atiçou a curiosidade do público local pelo seu conteúdo,

recheado de aspectos do regionalismo local.

O concerto foi amplamente divulgado pela imprensa, pois a UFMT tem uma

assessoria de comunicação dedicada a repassar informações das suas atividades para os meios

de comunicação local. De modo que no dia da apresentação, entre o público costumeiro,

encontravam-se presentes os cururueiros da cidade, que não passaram despercebidos, pois

estavam paramentados com seus chapéus brancos, silenciosos e atentos, aguardando para ver

a viola de cocho ser tocada pela primeira vez com a orquestra.

A partir de Planalto Central a Orquestra da UFMT passa para a condição de ser a

única orquestra do país com um repertório totalmente dedicado à música contemporânea e isto

pode ser considerado como uma das mais importantes contribuições que Victorio prestou à

música deste Estado. A orquestra sai do anonimato e é divulgada nos grandes centros como

São Paulo e Rio. Ela se torna conhecida dos compositores brasileiros que estavam

empenhados na produção da música do século XX, inclusive compondo especialmente para

ela, utilizando a instrumentação que a orquestra dispunha.

Planalto Central foi a primeira música contemporânea concebida em solo mato-

grossense com importante diferença: os elementos da cultura regional. Portanto se não

houvesse razões suficientes para que ela fosse considerada um marco, a sua condição de

49

Ver Anexo L, p. 266-267. Matérias jornalísticas.

Page 92: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

90

primogenitura por si só basta como argumento para considerá-la como tal. Planalto Central

não é somente uma música nascida em Cuiabá. Ela é mato-grossense. Os três poetas que a

compõem lhe conferem esta cidadania.

Planalto Central reúne em seu conteúdo as prerrogativas de uma música que foi

composta para a posteridade; inabalável pelo tempo. Foi concebida por Victorio na fase em

que sua carreira musical já apresentava uma trajetória artística definida - o compositor sabia

muito bem o que queria com a sua arte e não tinha dúvida de seus objetivos. Ao desembarcar

em Cuiabá trouxe na bagagem o seu currículo com um vasto catálogo de obras suas, inclusive

algumas músicas com premiações internacionais - por essas razões demonstrando que se

tratava de um compositor que apesar de jovem, possuía larga experiência.

Victorio tinha em mente desenvolver e difundir a música contemporânea em Mato

Grosso. Compor é o que ele faz de melhor e este é o tipo de trabalho que ele tem obtido

reconhecimento nacionalmente e internacionalmente.

Idealista, conhecia de antemão o campo em que iria atuar e demonstrou bastante

vontade de trabalhar e produzir; assim como estimular os músicos e influenciar as pessoas

com a música de seu tempo50

. Enfim, ele também pôde experimentar elementos novos na sua

carreira: estava em uma terra muito distinta da sua, mas encontrou por aqui pessoas dispostas

a experimentar e realizar um trabalho em conjunto e gerar a música contemporânea que por

aqui até então não se tinha registro.

A gestação da música contemporânea em Mato Grosso foi demorada, mas aconteceu.

Antes tarde que nunca, pois a Música do Século XX é estreada com um considerável atraso,

uma vez que foi somente no ano de 1994, já no limiar do século XXI, ano que veio

testemunhar a atemporalidade musical em que Mato Grosso se encontrava e por pouco este

Estado passa pelo século XX sem experimentar a música de sua época.

Deste modo, o advento de Planalto Central coloca um ponto final na lacuna que

existia na produção da música de concerto local e preenche o abismo que havia entre música

erudita e a sua temporalidade.

Se por um lado Cuiabá estava bem servida com a sua produção literária, considerando

que para os padrões nacionais de difusão artística, a literatura estava praticamente atualizada,

pois desde a década de 40 estava ligada aos mais importantes movimentos literários do Brasil;

por outro a música produzida por aqui não ultrapassava os limites estéticos impostos no

50

Ver Apêndice A, p. 138-144.

Page 93: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

91

século XIX. Mas Planalto Central, com a poética de Victorio, torna-se a conexão da música

com seu tempo e qualifica a produção musical como atualizada.

Planalto Central não marca somente a fronteira que dividiu a produção musical em

Cuiabá, mas registra a inversão da trajetória habitual da música erudita, pois anteriormente ela

era produzida em outros centros e trazida para cá.

Cuiabá estava em uma relação passiva com a música. Estava na condição de somente

reproduzir a música de compositores de fora do Estado, principalmente das celebridades dos

grandes centros do país ou de compositores estrangeiros dados como mestres da música

erudita. Entretanto a categoria de passividade em que se enquadrava a música erudita em

Mato Grosso foi superada com Planalto Central, que foi a primeira música de concerto

contemporânea produzida aqui e levada para os grandes centros.

Portanto como demonstrado anteriormente o programa do concerto de 04 de agosto de

1994, que tinha Planalto Central como atração principal foi reapresentado na primeira turnê

da Sinfônica da UFMT no eixo Rio - São Paulo, sendo que a primeira apresentação ocorreu

em 15 de agosto na Sala Cecília Meirelles no Rio de Janeiro; a segunda em São Paulo no dia

17 no MASP e a terceira e última foi realizada no dia 18 de agosto em Campinas no campus

da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.

O jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, no seu caderno Tribuna Bis (1994, p.

4) de 15 de agosto de 1994 anunciou na seção Roteiro Carioca o concerto da Orquestra

Sinfônica da UFMT com o seguinte título: “Sinfonias que vem do Planalto Central”,

informando em seu conteúdo que o destaque para o concerto é a música Planalto Central.

Entretanto Planalto Central extrapola as fronteiras da nação brasileira quando segundo

informações do próprio compositor, foi selecionada para representar o Brasil na Tribuna

Internacional de Compositores da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência

e a Cultura51

, (UNESCO) que acontece na França.

Naquela oportunidade a música era para ser executada ao vivo pela Orquestra

Sinfônica da UFMT, todavia o convite ficou prejudicado em face da ausência de patrocínio.

Porém foi enviada uma gravação de Planalto Central concluindo deste modo o processo de

honraria concedido pela UNESCO.

A projeção internacional de Planalto Central sela a inversão da trajetória da música

contemporânea mato-grossense, pois segundo informações do próprio compositor a UNESCO

distribui a gravação para várias emissoras de rádios educativas em todo o mundo.

51

The United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.

Page 94: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

92

Ante todo o exposto acreditamos que Planalto Central é um marco para o processo da

música contemporânea em Mato Grosso pois estão reunidos em seu torno vários elementos

que a classificam como tal. Ratificamos a assertiva com as palavras da então reitora da

Universidade Federal de Mato Grosso, Luzia Guimarães que após assistir a um dos ensaios de

Planalto Central disse: “Faltava-nos construir a Contemporaneidade pela música e agora vejo

que atingimos essa idade”52

; frase esta que não foi proferida por uma musicóloga ou

musicista, mas que traduz a mudança significativa que ocorreu com o percurso da Música de

Concerto em Mato Grosso.

5.5 A Partitura de Planalto Central

Planalto Central se constitui como marco histórico para o início da produção da

Música Contemporânea de Concerto em Mato Grosso, com uma importante carga de

significado para o processo que se iniciara na primeira metade da década de 90, pois traz em

seu arcabouço fortes vínculos com elementos da terra da qual foi inspirada.

Adentraremos nos meandros da partitura de Planalto Central na busca por demonstrar

os elementos musicais que asseverem se tratar de uma Música de Concerto Contemporânea,

desvinculada do processo tradicional tonal, e conhecer a rede de inteligência que a constitui.

Não se trata de uma análise profunda informando toda a complexa rede dos elementos

musicais que ela apresenta, pois Planalto Central é uma obra muito extensa e extremamente

rica em aspectos sonoros, timbrísticos e rítmicos. É uma música que possui muita densidade e

sutilezas, além de agregar significados que extrapolam as fronteiras do musical.

Portanto, alguns elementos serão destacados para demonstrar a sua condição de

contemporaneidade, até porque outra pretensão que não esta será mais apropriada se

desenvolvida como tema central de outra pesquisa.

Antes de iniciarmos o exame da partitura, faremos uma sucinta introdução aos

princípios da Numerologia, ciência em que Roberto Victorio se interessa, a ponto de aplicar

alguns conceitos na música Planalto Central.53

52

Frase registrada no programa da primeira audição mundial de Planalto Central, em Anexo J, p. 255. 53

As nossas suspeitas sobre a ressonância da Numerologia em Planalto Central, bem como a utilização dos

correspondentes da cadeia setenária (o sete em Numerologia está relacionado à criação), foram confirmadas em

depoimento (04/03/2011) pelo compositor que inclusive fez alusão à sua música Heptaparaparshinokh (1991),

que foi composta três anos antes de Planalto Central. Segundo ele, “o sete ainda estava muito recente na minha

Page 95: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

93

Os números estão presentes em toda historia da humanidade. Por eles, foi possível a

demarcação dos territórios, a contagem dos bens (tais como rebanhos de animais) e a noção

de distância pela utilização das medidas de comprimento. Eles regem todas as transações

comerciais e financeiras desde a Antiguidade. Por eles é possível a noção da quantificação de

pesos, volumes, além da orientação de posição geográfica, edificações e calendários.

É atribuído ao povo hebreu a autoria de uma das mais conhecidas doutrinas místicas

baseadas em números, e esta se deu ao atribuírem números para cada letra de seu alfabeto,

combinação que deu origem à Cabala54

. Tanto ela quanto a Numerologia associam os

números à Metafísica, aos aspectos religiosos e filosóficos.

Para estas duas correntes, os números não são meras ferramentas matemáticas

utilizadas para quantificações diárias, eles expressam significados e respostas para temas

ligados à religião e à filosofia. A Bíblia, que é o livro sagrado mais conhecido do Ocidente, é

um exemplo da aplicação do sentido esotérico dos números, o que pode ser verificado do

primeiro ao último livro55

, desde os temas que abordam a criação do universo (Gênesis) até os

que falam da destruição do mundo (Apocalipse).

O fato é que tanto a Numerologia quanto a Cabala e temas ligados à Metafísica,

Esoterismo e Ritual exercem forte influência na criação artística de Roberto Victorio, e ele

demonstra isto com muita clareza em sua classificação da Música do Século XX, ao incluir a

“Quarta Vertente” como “Música Ritual”, além de ter em seu catálogo diversas obras que

expressam esta temática. Entre elas podemos mencionar: A Colônia do Pêssego (1987),

Mandala (1987), Heptaparaparshinokh (1991)56

, Quatro Visões (1991), Tetragrammaton I

(1994), entre outras músicas57

. O compositor comentou em uma de suas aulas, que chegou a

estudar o idioma hebraico para entender melhor a Cabala.

Foi comentado no capítulo 1.2, que o holismo presente no homem pós-moderno se

contrapõe ao ceticismo racional do pensamento moderno. Ocorre que Roberto Victorio

expressa bem a concepção holística em sua obra ao tratar dos temas ligados à Metafísica, à

Cabala e Numerologia, chegando a considerar o som musical como “Entidade Sonora” e a

música como “Entidade”. A sua opção criativa se encaixa muito bem na pós-modernidade,

mesmo que ele não se considere um compositor pós-modernista, mas este posicionamento

cabeça”, naquela época ele também realizou sua Dissertação de Mestrado que foi desenvolvida com esta

temática. 54

Ver Guimarães em, Números as Pegadas da Divindade, 2009, Ed. Madras. 55

A Biblia é composta por vários livros que são divididos por Velho e Novo Testamento. 56

Segundo Roberto Victorio a tradução de Heptaparaparshinokh é; o sete que caminha para Deus. 57

O catálogo completo das obras de Roberto Victorio pode ser encontrado no site: www.robertovictorio.com.br

Page 96: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

94

como artista também é previsto na pós-modernidade, que não é de forma alguma um tema

fechado, nem mesmo uma unanimidade.

Os compositores Béla Bartók (1881-1945) e George Crumb (1929- ), exerceram forte

influência artística em Roberto Victorio e desenvolveram composições que abordam esta

mesma temática. Dentre as obras de Crumb podemos mencionar Makrokosmo I (1972),

Makrokosmo II (1973) e Mecânica Celeste (Makrokosmo IV, 1979). Bartók foi o maior

divulgador da seção áurea58, a “sua obra de maior destaque quanto à seção áurea é a Música

para Cordas, Tímpano e Celesta (1936)” (PRADA, 2008, p. 152).

Não é possível falar em números sem mencionar Pitágoras, que além de matemático

foi responsável pela criação de uma escola iniciática, que ficou conhecida como Pitagórica.

As suas doutrinas herméticas influenciaram sobremaneira os alquimistas, esotéricos,

teosóficos, ocultistas e as bases da Numerologia. “Ele já dizia que tudo o que existe é regido

pelos números” (GUIMARÃES, 2009, p. 7).

Em Numerologia, cada número tem um significado e envolve associações e

encadeamentos, e estas relações são denominadas de Cadeias Numéricas. “Cada Cadeia

Numérica é um universo próprio e tem características especiais” (GUIMARÃES, 2009, p.

12), e elas estão incorporadas em Planalto Central com suas redes de significações.

5.6 Exame da Partitura

O exame da partitura de Planalto Central evidencia a relação entre a composição de

Victorio e a cadeia numérica setenária. O sete aparece em várias combinações que serão

demonstradas adiante, “ele está sempre ligado à criação e pode-se vê-lo presente na natureza,

de forma contundente” (GUIMARÃES, 2009, p. 51).

Segundo a Bíblia, o mundo foi criado em sete dias, que deram origem aos

sete dias da semana, palavra esta que deriva do latim sepmana = sete dias.

Em muitas línguas, os dias são dedicados aos planetas sagrados. Assim no

inglês os dias da semana são: Sunday (Sol), Monday (Lua), Tuesday

(Marte), Wednesday (relacionado com Mercúrio), Thursday (relacionado

com Júpiter), Friday (relacionado com Vênus) e Saturday (Saturno); no

58

Seção áurea, segundo Prada (2008, p. 152) é um “procedimento matemático pelo qual se acha o ponto de

partida de uma espiral até sua abertura cada vez maior, ad infinitum”, este cálculo matemático mede proporção e

as formas existentes na natureza e tem tido aplicação em várias vertentes artísticas.

Page 97: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

95

espanhol Lunes (Lua) Martes (Marte), Miércoles (Mercúrio), etc.

(GUIMARÃES, 2009, p. 51).

Faz sentido pensar na utilização do setenário em Planalto Central, considerando-se

que Victorio tinha a intenção de criar uma nova mentalidade musical, um novo

relacionamento e percepção que atingisse tanto os músicos como a plateia em Cuiabá.

O sete aparece explícita e implicitamente nesta música, por várias formas de

representação, tal como acontece na Numerologia.

O sete é composto por conjuntos de números 1+6=7, que representam a

unidade e a perfeição dela. Quando somamos 3+4=7, dizemos que a tríade

superior se une ao quaternário inferior e, finalmente, com 2+5=7 temos o

recipiente da dualidade (GUIMARÃES, 2009, p. 52).

As combinações que compõem o sete são representadas em toda a música,

principalmente o 3 (ternário), 4 (quaternário), e o 5 (quintenário). O 3 ou ternário está

fortemente representado, pois a música foi composta em três movimentos, sendo cada um

deles desenvolvido sobre um poema. A sua arquitetura obedece a uma ordem ternária que

pode ser percebida por toda a peça e sobre essa relação Roberto Victorio nos informou que:

Tem uma ordem ternária em Planalto Central, os três poemas, eu uso três

violas de cocho, conexão com os três trompetes, tem uma coisa de três, os

três movimentos e tal, então alguns arcos dentro de Planalto Central são

ternários também, ela tem uma ordem interna, uma rede de inteligência que

estará organizando esta peça inteira (VICTORIO, 2010, p. 3).

Mas se o Ternário ficou em evidência, pode-se perceber a presença do Binário nas

vozes (narrador e soprano), na relação intervalar geradora de segundas maiores e menores.

Quanto ao Quintenário, ele pode ser aludido pela formação escolhida para o naipe das

cordas (quinteto de cordas), representações das quiálteras de cinco, que tem sua primeira

aparição no quarto compasso do 1º movimento, executadas pelo tom-tom.

O Setenário, nos sete percussionistas, intervalos de sétimas, aliás, o naipe da percussão

é o que possui o maior número de integrantes, ocupando posição de destaque e foi

considerado pelo compositor como um dos mais importantes da orquestra.

A percussão é também um naipe solista e divide o discurso musical com toda

formação orquestral, em uma evidente troca de posições. Nas músicas tonais tradicionais a

ideia musical é priorizada para instrumentos melódicos. Já em Planalto Central, a percussão

intercala a ideia musical com as cordas, como pode ser verificado principalmente a partir do

compasso 127 do Terceiro Poema (Tempo movido).

Page 98: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

96

Para a percussão, Victorio utilizou treze instrumentos e sete instrumentistas para

executá-los. A partitura foi escrita para: bombo sinfônico, pandeiro, pau de chuva,

tumbadoras, caixa clara, tom-tons, surdo, tantam, pratos, queixada, ganzá, reco-reco,

chocalho, triângulo e clave.

O berrante não aparece escrito na partitura original, mas foi inserido na música e faz

sete intervenções. Para demonstrar as suas entradas serão utilizados setas nos devidos

compassos que foram identificados por meio de escuta musical, facilitando assim a

identificação e compreensão do leitor. A opção por utilizar fragmentos da partitura original

manuscrita pelo próprio compositor, para ilustrar as considerações, se deu pelo valor histórico

do material. O compositor informou em entrevista que o berrante foi incluído no decorrer do

processo criativo, para ele, foi fundamental a sua utilização a partir do momento em que teve

de trabalhar com os versos de Manoel de Barros e as imagens do pantanal. As entradas do

berrante apontam para os números compostos do setenário obedecendo a sequência 3+1+3; a

primeira ocorre no início logo após o primeiro ataque da orquestra com todos os instrumentos

(com exceção da viola de cocho), a entrada se dá após um fortissíssimo (fff) súbito, com três

toques, ainda no primeiro compasso, que apresenta um 4/4 quase sem medida (ver figura 6).

Figura 6 - Primeiro Poema, Compasso 1. Intervenção do Berrante.

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A segunda intervenção é por um toque na seção F do primeiro poema, compasso 14,

entre as violas de cocho que executam acordes com predominância de intervalos de quarta e o

Clarinete sib, ambos instrumentos com prolongamento e adensamento rítmico (ver figura 7).

Berrante

Page 99: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

97

Figura 7 - Seção F, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A terceira intervenção ocorre nos três últimos compassos do terceiro poema, do 144 ao

146 acompanhado ao fundo pelas cordas, o piano e percussão em pianissíssimo (ppp) (ver

figura 8).

Figura 8 - Compassos 144-146, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Se a música que fazia parte dos programas da sinfônica da UFMT estava fortemente

ligada ao tonalismo, Planalto Central rompe abruptamente com esta tradição logo na sessão

A.

Berrante

Berrante

prolongamento

piano

percussão

Page 100: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

98

O primeiro poema foi divido pelo compositor em nove seções por letras. Será

denominado Bloco Gerador o bloco de notas com predominância de intervalos de 2ªs e

Intervalo Gerador o intervalo de 2ª, e fica convencionada a nota fá como Nota Geradora. No

primeiro compasso, com a apresentação em fortissíssimo (fff) do bloco gerador, onde os

intervalos de segundas maiores e menores predominam provocando gritante dissonância, e

consequentemente um cluster. Provocado pela utilização das notas fá, fá#, sol, lá, sib, si, réb,

mib, mi (ver figura 9).

Figura 9 - Bloco Intervalar Gerador, compasso 1, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

bloco gerador

Page 101: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

99

Este primeiro poema é todo narrado, e a inserção da narração sempre ocorre após

intervenção do bloco intervalar gerador, ou da síntese intervalar geradora, ou a nota geradora

fá, como pode ser percebido na seção A, compasso 1, seção B, após o Bloco gerador, seção C,

após a síntese intervalar realizada pela flauta, contrabaixo e 1º violino, em intervalos de

segundas.

O bloco intervalar gerador reaparece um compasso antes da seção D, a partir da

síntese intervalar pelo contrabaixo e clarone (fá e sol). A última entrada da narração é no

segundo compasso da seção I, após, o bloco intervalar gerador tocado pelas cordas, e a nota

geradora pelo clarone com a nota fá, e o tímpano com o fá#. Nota-se que o bloco intervalar

gerador ou a síntese intervalar geradora foram utilizados para marcar inícios e finais das

seções, sendo que o início é marcado por grande intensidade sonora, normalmente

demarcados por fortissíssimos (fff), e os finais pelas sutilezas dos pianissíssimos (ppp).

Na seção A, o movimento Lentíssimo quase sem medida em compasso 4/4, ainda que

concebido com a escrita métrica, mantém os músicos em total dependência da regência pelo

fraseado predominado pela instabilidade do pulso, aproximando a realização da performance

instrumental aos padrões da escrita relativa.

Mostrando agora claramente a dimensão que o sete toma em Planalto Central, vemos

que o terceiro compasso, em 3/8, lança a primeira ideia dos números que compõem o sete,

pela apresentação do ternário (semínima pontuada, naipe das cordas), quaternário (quartetina

do bombo sinfônico), setenário (4 semicolcheias e 3 fusas, da tumbadora), (ver figura 10).

Figura 10 - Compasso 4, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

cordas

b. sinfônico

tumbadora

Page 102: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

100

A seção B (compasso 5) será a primeira apresentação de uma seção concebida pela

escrita relativa59

. O maestro é quem vai coordenar as entradas provocando várias e distintas

ambiências sonoras, como se o compositor apresentasse uma a uma as possibilidades

timbrísticas da música. Os instrumentos entram praticamente como solistas, acompanhados

por sutil prolongamento sonoro do piano e contrabaixo, e dos versos recitados pelo narrador

com imagens que remetem ao Planalto Central do Brasil: “Me criei no Pantanal do Corumbá,

entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios”. As entradas dos instrumentos

obedecerão a seguinte sequência:

1ª - flauta em mezzo forte (mf).

2ª - 1º trompete com surdina em mf.

3ª - piano com as notas sib 1 e si 4, extremos grave e agudo do instrumento.

4ª - tom-tons.

5ª - clarone por técnica expandida60

, provocando multisom. O recurso gráfico para transcrever

esta execução é inexistente na grafia musical tradicional, deste modo, a seção B traz a

primeira inserção da escrita contemporânea em Planalto Central.

6ª - tom-tons e surdo.

7ª - bombo sinfônico em mezzo piano (mp).

8ª - violas de cocho, com prolongamento rítmico, por aproximadamente com duração de cerca

de cinco segundos.

9ª - tímpanos.

A seção C (compassos 6 a 9) é predominada pela escrita métrica. As cordas, com

exceção do 1º violino, executam uma sequência descendente em acordes quartais, sucedido

por uma ascensão até uma fermata com a mesma relação intervalar anterior (ver figura 11).

59

Na escrita relativa as relações de tempo musical e pulsação não estão presas à métrica estabelecida pela

fórmula de compasso, diluindo as limitações da grafia proporcional tradicional. 60

Pela técnica expandida, o instrumentista tem que explorar sonoridades (timbres) que extrapolam o uso

tradicional do instrumento; as possibilidades são diversificadas e variam de um instrumento para o outro.

Page 103: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

101

Figura 11 – Compassos 6-7, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A relação com a cadeia setenária desta seção aparece nas unidades de compassos do

4/4 e 3/8 (4+3). Entretanto no compasso 8, ( 3/8), percebemos os compostos do sete por 3, 5,

4, sendo o 3 pelas três semicolcheias dos Tímpanos, cinco pelas quatro fusas e uma

semicolcheia da tumbadora e o 4 pelas duas fusas e duas semicolcheias do tom-tom. Neste

mesmo compasso ocorre a segunda inserção da técnica expandida, com o frulato na nota fá

(5) executada pela flauta (ver figura 12).

cordas

Page 104: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

102

Figura 12 – Compasso 8, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Da seção D à seção G, percebemos a predominância da escrita relativa, e o

prolongamento das notas tanto por ligaduras como pela grafia de som pedal (ver figura 13).

Flauta

frulato

timpano

tumbadora

tom-tom

Page 105: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

103

Figura 13 – Compasso 11, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A regência coordena as entradas do narrador (e este também deve ter domínio da

leitura de partitura). O poema está em primeiro plano, e a narração, intercalada pelos

instrumentos; a maioria das suas intervenções é realizada nos momentos de pausa da

orquestra.

A seção G apresenta várias ambiências sonoras e todos os instrumentos têm a

indicação de prolongamento rítmico ou sonoro accellerando sem crescer: os violinos com

extremos agudos em harmônicos, o piano com Si 4 e Sib1 (região grave e aguda

simultaneamente) a viola e o violoncelo col legno battuto61

, contrabaixo em pizzicato62

executando uma sequência em intervalos de sétima, na sequência a percussão com as

tumbadoras, tom-tons, e o reco-reco. No piano, foi utilizada a técnica expandida: o pianista

tem que deslizar as unhas nas cordas do piano, provocando um glissando ascendente, o pau de

chuva em piano (p) e o encerramento desta seção ocorre com dois golpes do tímpano em

intervalos de segunda menor com dinâmica decrescente Fá# e Fá (mf) e (p) e é uma seção

musical que ocorre entre a narração. Estas múltiplas ambiências sonoras citadas na seção G,

podem ser percebidas pelo ouvinte na minutagem 2‟26‟‟ ao 2‟48‟‟ (ver figura 14).

61

Golpe de arco utilizado nos instrumentos do naipe das cordas, que consiste em bater com o arco sobre o

instrumento, na corda ou no próprio corpo, a tradução do termo de origem italiana é “bater com a madeira”. 62

Técnica de se tocar os instrumentos do naipe das cordas sem a utilização do arco, dedilhando as cordas.

Prolongamentos som pedal / ligadura

Page 106: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

104

Figura 14 – Compasso 16, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

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105

Na sessão H, onde ocorre o encerramento do primeiro poema, ao todo formada por

quatro compassos, o compositor opta pelo retorno à escrita métrica ou tradicional nos dois

primeiros compassos, 5/4 e 3/8, e reapresenta a sequência das relações ternárias nos trompetes

com quiálteras de três e clarinete pelas semínimas pontuadas. No 3/8, toda a composição do

setenário é reapresentado pela percussão, o quaternário pelo bombo sinfônico, o setenário

pelas tumbadoras, o quintenário pelos tom-tons e surdo, e o ternário pelo reco-reco (ver figura

15).

Figura 15 – Compasso 19, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Os dois últimos compassos são reservados para o encerramento do primeiro poema

com a escrita relativa. O piano apresenta a síntese intervalar, Si e Sib (ver figura 16), e o

encerramento da sessão com a dinâmica decrescente esvaindo a densidade sonora até quase o

silêncio total, pelo pianissíssimo (ppp) do bombo sinfônico.

b. sinfônico

tumbadora

tom-tom e surdo

réco-réco

clarinetes

Page 108: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

106

Figura 16 – Compasso 20, Primeiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

O primeiro movimento mostra, desde o início, elementos que caracterizam a Música

de Concerto Contemporânea, tais com a predominância do atonalismo, que é inserido no

primeiro compasso pelo bloco intervalar gerador, além do uso de técnicas expandidas, que

proporcionam múltiplas ambiências sonoras; a utilização da escrita relativa, a inserção de uma

nova grafia musical que possa corresponder às experimentações timbrísticas que ocorrem

neste primeiro poema, nova grafia esta que nas mãos de Wlademir Dias Pino é transformada

em arte plástica, como pode ser percebida no programa de concerto concebido por ele, no

Anexo J, p. 244.

O segundo poema é iniciado com um fortíssimo súbito (ff) por meio do bloco

intervalar gerador, este bloco tem a participação de quase todos os instrumentos da orquestra,

inclusive a viola de cocho (o compositor não incluiu o piano). Não há interrupção sonora

entre eles - a ligação ocorre por meio do bloco intervalar gerador.

Voltando a apontar os termos da Numerologia na obra, percebe-se que no primeiro

compasso o clarone apresenta os compostos da relação setenária com a quintina, tercina e

sextina (5, 3 e 6), (ver figura 17).

Figura 17 - Compasso 1, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

No terceiro compasso o 4 aparece pela quartina pelo 1º trompete, estas quatro figuras

rítmicas geradoras e suas variações estão presentes em todo o segundo poema (ver figura 18).

piano

clarone

Page 109: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

107

Figura 18 – Compasso 3, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A cadeia setenária também é representada pelas fórmulas dos compassos 3/4 (3+4),

2/16 (1+6), 7/8 (7), 5/16 (1+6), 3/16 (1+6) Elas estão presentes no decorrer de todo o segundo

poema, que é o mais longo - ele possui 58 compassos intercalados entre a escrita métrica e a

relativa, sem repetir a mesma fórmula por mais de dois compassos seguidos.

Este tipo de escrita torna o instrumentista totalmente dependente da marcação da

regência, praticamente a mesma que ocorre com a escrita relativa, como verificamos dos

compassos 10 ao 1863

, (que compreende exatamente 9 compassos), e do 31 ao 44, totalizando

14 compassos sem nenhuma fórmula de compasso repetida.

Neste segundo poema, ocorre a primeira participação do soprano (quarto compasso),

entre o primeiro trompete e a percussão (ver figura 19). A fórmula de compasso 3/4,

demonstra relações com o setenário assim como a célula rítmica da cantora. (3+4), (3+3+1).

Figura 19 - Compasso 4, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

No compasso 16, a polirritmia da percussão (sete ao todo), alterna com a

homorritmia64

das cordas (ver figura 20).

63

Numeração da partitura original. 64

O mesmo ritmo.

trompete

soprano

Page 110: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

108

Figura 20 - Compassos 16-17, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

As violas de cocho entram no compasso 19 com acoplamentos intervalares de

segundas e sétimas, provocando clusters tocados em movimentos batidos, ritmados, e no

compasso seguinte uma sequência dedilhada com preponderância de quartas (ver figura 21).

Figura 21 - Compassos 19-20, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

cordas

percussão

Page 111: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

109

Nos compassos 24 e 25, os discursos sonoros da percussão são sucedidos pelas cordas,

trompetes e viola de cocho, realizando a ponte para o poco meno, que tem início com o bloco

intervalar gerador (ver figura 22).

Figura 22 - Compasso 26, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A entrada da soprano é acompanhada sempre por poucos instrumentos. No compasso

29, somente as violas de cocho tocam simultaneamente com a soprano (ver figura 23).

Bloco gerador

Page 112: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

110

Figura 23 - Compasso 29, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A narração terá início somente no compasso 43, após o toque do piano realizado pela

síntese intervalar sib e si. A soprano entrará no próximo compasso como eco da narração, por

um sutil acompanhamento realizado por instrumentação reduzida, mas provocando múltiplas

ambiências timbrísticas, realizadas pelos tímpanos, piano, violinos e o clarone.

soprano

violas de cocho

Page 113: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

111

Os compassos 49 ao 59, desenvolvidos com a escrita métrica, são realizados somente

pelo instrumental da orquestra, sem a participação das vozes, sendo iniciado pelas violas de

cocho, sucedido pelo frulato do clarone. Na sequência uma polirritmia da percussão antecede

a homorritmia das cordas, propiciam ao ouvinte ampla experiência timbrística, as inserções

dos naipes são intercaladas, propiciando multiplicidade de ambiências sonoras pelos variados

timbres e dinâmicas exigidos na execução instrumental.

A partir do compasso 60, desenvolvido em escrita relativa, inicia-se a seção com a

maior variedade de técnicas expandidas e diversidade timbrística da música, e tem início com

as violas de cocho, com a solicitação de percussão na caixa de ressonância do instrumento, no

tampo com dois dedos, e percussão no cavalete. A improvisação é coordenada com

prolongamento. Para descrever a execução foi apresentada uma grafia nova, pois a escrita

musical tradicional não contempla as múltiplas sonoridades que o compositor contemporâneo

deseja explorar. compasso 60 e 61(Ver figura 24).

Figura 24 - Compassos 60-61, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

O piano é tocado por dentro com golpes diretamente nas cordas pelo pianista, e é

registrado também por uma grafia contemporânea (ver figura 25).

Figura 25 - Compasso 61, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Técnica expandida

prolongamentos

piano

Page 114: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

112

Na sequência, o 1º violino toca um mi em harmônico na quarta oitava do instrumento

(extremo agudo), e uma sequência de improvisações realizadas pela percussão é indicada com

grafia contemporânea.

No compasso 62, a soprano com a sílaba “só” soa como eco da narração, ela executa o

fraseado em técnica expandida, onde é solicitado variação das alturas em micro-tons (ver

figura 26).

Figura 26 - Compasso 62, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Do compasso 64 ao 68 (para o ouvinte que não domina a leitura musical, compreende

a minutagem 6‟49‟‟ a 8‟02‟‟ da música), ocorre uma impressionante exploração de ambiência

sonora da música, que é provocada pelos múltiplos timbres dos instrumentos utilizados nesta

seção, com uso da técnica expandida, além de improvisações coordenadas, que possibilitam

ao músico instrumentista a coautoria da criação musical.

A seção é iniciada por golpes das baquetas da percussão em fortíssimo (ff),

contrastando com os pianíssimos (pp) dos trompetes e do reco-reco, que allargando

crescendo para um mezzo forte (mf), direcionando o fraseado para as cordas que executam em

sul ponticello (muito próximo ao cavalete do instrumento), nas cordas agudas em microtons.

Após cada ataque da percussão, as cordas realizam a mesma sequência (ver figura 27).

soprano

Page 115: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

113

Figura 27 - Compasso 65, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A seção é encerrada pela soprano, com indicação de som agudíssimo e crescendo para

um fortissíssimo (fff) com a frase: “sem-pre” (ver figura 28).

Figura 28 - Compasso 67, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

trompetes

cordas

percussão

réco-réco

soprano

Page 116: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

114

Com a execução pelas cordas do bloco intervalar gerador é iniciada a próxima seção.

Neste segundo poema, todas as seções são iniciadas pelo bloco intervalar gerador, ou pela

síntese intervalar.

No próximo compasso, a entrada sequencial das cordas, da mais grave para a mais

aguda, conduz a entrada para as 3 violas de cocho, que desenvolvem improvisações com

efeitos percutidos e dedilhados (ver figura 29).

Figura 29 - Compasso 69, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

O narrador retoma os últimos versos do poema, que será intercalado (não como eco)

com a soprano até o final do segundo poema, para tanto, é utilizado a escrita relativa. No

compasso 72, a 2ª e a 3ª violas de cocho tocam acordes de segundas e a 1ª com pizzicato

Bartok (ver figura 30).

violas de

cocho

cordas

Page 117: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

115

Figura 30 - Compasso 72, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

No compasso 78, o setenário reaparece com sete colcheias pelo naipe das cordas com

a fórmula de compasso 7/8 (ver figura 31).

Figura 31 - Compasso 78, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Na penúltima seção (Sem Pressa) o piano atua com a utilização de técnica expandida

(o pianista toca por dentro com golpe nas cordas), entre as intervenções do narrador e da

soprano (ver figura 32).

pizzicato Bartok.

Violas

De

cocho

cordas

Page 118: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

116

Figura 32 - Compasso 80, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

As cordas encerram a seção propiciando múltiplas ambiências sonoras, utilizando

golpes de arco col legno battuto, fazendo a ponte para a última seção do poema (ver figura

33).

Figura 33 - Compasso 80, Segundo Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A seção é encerrada com as violas de cocho, que realizam lentamente arpejos dos

acordes formados pelo bloco intervalar gerador. O fraseado da viola de cocho é encaminhado

por uma dinâmica de decrescendo para um piano (p), fazendo ao mesmo tempo

acompanhamento para o narrador que encerra com o verso: “morrendo assim nos olhos

estatualizados de pescadores”.

Este segundo poema, como visto, é mais longo que o primeiro e mais denso, pode-se

perceber pela maior incidência dos naipes que estão em blocos e normalmente com a

participação maior de instrumentos. No segundo poema, tem início a participação da soprano,

que realiza várias intervenções como eco da narração do poema.

As experimentações timbrísticas também aparecem com maior frequência, além deste

poema possuir a maior seção desenvolvida com escrita relativa, as solicitações de

performance com a utilização de técnica expandida será ampliada inclusive com a viola de

cocho. Várias intervenções acontecem por adensamento rítmico pelos instrumentos em

piano

cordas

Page 119: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

117

blocos. Com mais nuances de dinâmica que o primeiro poema, é percebido também um

grande arco que tem início com um fortíssimo (ff) que se caminha para o (pp) e a ligação com

o próximo poema ocorre com a soprano por células rítmicas que tem ligações com os

compostos do setenário. A ideia em torno do setenário por meio das células rítmicas será

concluída no terceiro poema.

O terceiro e último poema é iniciado pelo bloco gerador por um fortíssimo (ff) súbito,

sem interrupção sonora com o poema anterior, tocado pela percussão, trompetes e violas de

cocho. Narrador e soprano completam a fusão entre os poemas pela combinação de palavras;

enquanto a narração do poema anterior termina em “pescadores”, a soprano inicia o terceiro

poema com “peixes”, o fraseado é cantado com prolongamento sonoro na “Região média” da

voz (ver figura 34).

Figura 34 - Compasso 88, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Na sequência (figura 35, compasso 88) improvisações coordenadas. A regência

ministra as entradas dos instrumentos que entram por blocos. O primeiro grupo são as cordas

com golpes de arco sul ponticello ( ff ), em seguida o adensamento dos trompetes que culmina

em frulato (ff).

O encerramento da seção fica com a percussão, que realiza improvisações por

adensamentos rítmicos e prolongamentos, obedecendo a dinâmicas de crescendo em direção a

um ( ff ) (ver figura 35).

soprano

Page 120: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

118

Figura 35 - Compasso 88, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Percebemos que alguns eventos se destacam, como na próxima seção (figura 36,

compasso 89) Movido, o clarinete é inserido entre as pausas dos outros instrumentos

contrastando com a densidade sonora da seção anterior (ver figura 36).

trompetes

cordas

percussão

Page 121: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

119

Figura 36 - Compasso 89, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Clarineta Sib

Page 122: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

120

A relação setenária vai aparecer com mais frequência e clareza neste último poema,

que além das combinações rítmicas podem ser percebidas nas fórmulas de compasso, pela

unidade de tempo (UT), unidade de compasso (UC), ou em ambas. Como mostra a tabela:

nº de ocorrências Fórmula Relação Setenária c/ UT e UC

4 15/16 UT 16 = 1+6

3 3/4 UT+UC = 4+3

3 7/16 Ambas UT 16 = 1+6, UC 7

3 5/2 UT+UC= 2+5

1 7/8 UC=7 Figura 37 – Quadro de ocorrências do setenário

Fonte: Dados do exame do pesquisador

São muitas ocorrências, considerando que o poema está intercalado por seções de

compassos com escrita relativa e proporcional.

No compasso 92, o naipe das cordas inicia a apresentação da célula rítmica geradora

do terceiro poema, que está relacionada ao setenário. Ela é apresentada pelos compostos do 7,

que se dão pela soma (4+3), e o contrário (3+4), que são obtidos pelas figuras rítmicas das

semicolcheias (ver figura 38).

Figura 38 - Compasso 92, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Esta idéia vai permear um diálogo entre os naipes da orquestra e a soprano, por

perguntas e respostas, pela ocorrência ou variação da célula geradora.

A partir do compasso 94, a percussão inicia uma sequência polirrítmica por variações

da célula geradora, que será respondida pelas cordas e os trompetes. A seção é encerrada no

compasso 96, com a participação dos 3 naipes em bloco (percussão, cordas e metais).

A ideia continua nos compassos 97 e 98 (sem interrupção), em nova seção (Meno); o

piano realiza variações da célula geradora pela utilização das quiálteras de três, junto com a

Célula Geradora 4 Célula Geradora 3

Page 123: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

121

soprano que também canta sobre quiálteras por um alargamento da célula geradora 3 (ver

figura 39), e no compasso seguinte, como uma variação rítmica da célula geradora do (3+4) e

(4+3).

Figura 39 - Compassos 97-98, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

No compasso 102, uma sequência de frulatos dos trompetes anuncia a nova seção

(Movido). Neste mesmo compasso, percebemos uma nova grafia para o clarinete. Nela

contém a informação, “multisons, livre, na região indicada (pedal)”, no caso, região grave.

Esta bula65

confere ao instrumentista a participação na criação da música.

No compasso 103, a soprano canta por alargamento rítmico a célula geradora 3.

Figura 40 - Compassos 102-103, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Na seção iniciada no compasso 104 (Movido – Energético), a cadeia setenária vai

aparecer na fórmula do compasso 15/16, e também nas células rítmicas tocadas pelo naipe da

percussão. Ela pode ser percebida pelas semicolcheias na repeticão do 4 por três vezes, pode

ser verificada na combinação da terceira e quarta últimas células rítmicas do compasso.

65

Bula são as informações que o compositor oferece na partitura com instruções para realização de passagens

com grafias que não pertencem à escrita musical tradicional.

Nova grafia Alargamento

soprano

Page 124: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

122

Figura 41 - Compassos 104-105, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A idéia lançada pela percussão vai ser desenvolvida por variações rítmicas com o

piano, soprano e clarinete no compasso 107 (ver figura 42).

Figura 42 - Compassos 102-103, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

E no 109, com as Violas de cocho, que além das combinações 4 e 3, e as

improvisações por percussão no corpo do instrumento, realizam um glissando com um

percussão

clarinete soprano

piano

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123

crescendo que faz uma ponte para a reexposição da célula rítmica geradora que é tocada pelas

cordas no compasso 110, conferindo uma rica seção em ambiências sonoras que pode também

ser conferida pela minutagem, 11‟25‟‟ a 11‟48‟‟.

Figura 43 - Compasso 109, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

No compasso 115, com a fórmula de compasso 5/2, as cordas executam um bloco

intervalar de terças (mi, sol, sib, ré#, fá#), entre duas e novas grafias contemporâneas, uma

para o piano, com “golpes nas cordas” e a outra para as tumbadoras, caixa clara, tom-tons e

surdo, indicando “improvisos rápidos” (ver figura 44).

Figura 44 - Compasso 115, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

violas

de

cocho

novas

grafias

Page 126: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

124

Na próxima seção, o compasso 117, escrito com a fórmula de compasso 5/2, o naipe

das cordas executam uma sequência de variações da célula geradora 4 e 3, com golpes de

arcos col legno battuto, e um prolongamento sonoro com dinâmica crescente (ver figura 45).

Figura 45 - Compasso 117, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

No compasso 122, as cordas, em bloco, tocam a célula geradora sob a pausa do

restante da orquestra, prenunciando o clímax do terceiro poema (que ocorrerá a partir do

compasso 127), (ver figura 46).

Figura 46 - Compasso 122, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

A ponte para a reexposição (Meno) das células geradoras é realizada pela soprano por

um alargamento da célula rítmica geradora 3, pronunciando o verso “semente esculpida em

barco escuro”, acompanhada pelas Violas de cocho, que executam acordes e a solicitação de

desafinar pelas cravelhas (desaf. – lento) e o tímpano com o pedido de bater na borda com

adensamento rítmico e prolongamento (ver figura 47).

cordas

células geradoras

col legno battuto

Page 127: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

125

Figura 47 - Compasso 126, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Com a fórmula de compasso 15/16, tem início a seção (Tempo – Movido) que é uma

das mais densas de Planalto Central (ver compasso 127 terceiro poema). As inserções dos

instrumentos ocorrem em blocos, provocando uma poderosa massa sonora.

Esta seção é longa para os parâmetros da peça, e foi composta por 9 compassos com

escrita metrica. A sua escuta encontra-se na minutagem 12‟56‟‟ a 13‟19.

Ela tem início pelo naipe da percussão com a informação de um (f), por uma sequência

isorrítmica por 2 compassos. O próximo compasso rompe com a sequência anterior,

caracterizado pela polirritmia da percussão e a homorritmia dos trompetes, que tocam por

golpes em Staccato (f).

O naipe da percussão produz grande densidade sonora que é obtita pela quantidade de

instrumentos e a informação da dinâmica em (f).

Esta seção é encerrada pela soprano, que realiza quatro ataques crescendo do (f) para o

(fff) fechando deste modo a relação com o setenário (3+4) considerando a relação de 3 que a

soprano canta no início, com a de 4 que ela canta no final da seção.

Os rufos dos pratos suspensos e o tam-tam encarregam-se de completar o poderoso

(fff) que marca o encerramento da seção.

soprano

Violas de cocho

timpano

Page 128: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

126

Figura 48 - Compassos 134-135, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

O início da próxima seção (Lento) acontece por um contraste de dinâmica obtido com

a vibração do tam-tam produzido na última batida que ocorreu na seção anterior, a sonoridade

do instrumento se encaminha por um prolongamento sonoro obtido por ligaduras, à vibração

solitária do tam-tam é somada as notas raspadas nas cordas do piano.

Page 129: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

127

Flashes dos elementos do terceiro poema aparecem com ataques curtos em (ff), pelas

cordas que tocam golpes de arco sul ponticello, o clarone com improvisações na região grave,

e a soprano na região aguda com a pronúncia silábica “a”. Essa passagem é acompanhada ao

fundo por uma nota mi “sonoro” em (p) do contrabaixo, e finalmente o ataque dos trompetes e

percussão encerram a sequência (ver figura 49).

Figura 49 - Compassos 136-139, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

O piano, em técnica expandida, por “golpes nas cordas”, faz a ponte para a última

seção (Lentíssimo) do terceiro poema (ver figura 50), com predominância de prolongamentos

sonoros realizados por ligaduras. Estes prolongamentos percorrem em sequência decrescente

iniciada por um (p) que se caminha para um (ppp), quase um silêncio.

clarone

cordas

trompetes

percussão

Page 130: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

128

Figura 50 - Compasso 139, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Entre os prologamentos, aparecem curtos ataques da percussão em diminuendo,

partindo do (mf) do compasso 141, para (ppp) do último compasso.

O narrador pronuncia: “A velhice das coisas que voam”. Em seguida, uma batida curta

da percussão em (pp) marca o início dos 3 toques do berrante que ocorrem nos compassos

144, 145 e 146 (localizado também pela minutagem 14‟02‟‟, 14‟09‟‟, 14‟18). Após o último

toque do berrante, a sonoridade vai se diluindo caminhando para o silêncio(ver figura 51).

Figura 51 - Compassos 143-146, Terceiro Poema

Fonte: Partitura original de Planalto Central

Berrante

piano

Page 131: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

129

O maestro ainda de costas para o público com os braços caindo lentamente sobre o

corpo coordena os últimos instantes do silêncio, devagar se volta para a plateia, e o silêncio é

interrompido pelos aplausos do público66

.

Registra-se deste modo o marco histórico do início da produção da Música de

Concerto Contemporânea em Mato Grosso.

66

Não consta na partitura.

Page 132: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

130

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema do presente trabalho é o resultado de convivência do presente autor com os

fatos recolhidos. Contudo, o conhecimento dos bastidores e os meandros dos acontecimentos

foram revelados durante o percurso do próprio trabalho.

Apesar da vivência com parte dos eventos, como músico integrante da Orquestra

Sinfônica da UFMT, tivemos o cuidado de manter a imparcialidade e observar os processos

que envolvem esta pesquisa com comprometimento, e isentos de paixões, na busca por

corresponder aos rigores científicos da academia.

Também não acreditamos que este trabalho tenha esgotado os conteúdos propostos,

nossa intenção foi a de abrir possibilidades para novas leituras e interpretações em outras

pesquisas.

Para tanto, mencionamos fatos históricos, teorias e linhas de pensamento, além de

documentação anexa que podem auxiliar em outras abordagens mais aprofundadas em

temáticas próximas à nossa.

Optamos por entender o tempo presente pelo viés do pensamento pós-moderno, por

ser heterogêneo, aceito, questionado, ou até mesmo negado, porém é uma das linhas do

pensamento mais estudadas e debatidas entre os pesquisadores e encontramos traços do pós-

modernismo em Planalto Central.

A pós-modernidade tem apresentado realidades que também podem ser percebidas na

música, como a sua heterogeneidade, que foram visualizadas em Planalto Central. Nesta

música encontramos misturas, cruzamentos e múltiplos fazeres musicais, entre eles, a

utilização da escrita tradicional intercalada pela contemporânea, assim como a execução

instrumental regida por estes dois paradigmas.

Ainda fazendo referência à heterogeneidade da pós-modernidade, esta foi demonstrada

pelas várias tendências musicais classificadas tanto por Marlos Nobre como por Victorio.

Percebemos por elas as múltiplas concepções e realidades musicais realizadas pelos

compositores contemporâneos, sendo que Planalto Central se encaixará na tendência “Música

Ritual”, que utiliza no processo composicional a Numerologia.

Ao mencionar as 14 tendências, Victorio relacionou compositores brasileiros da nova

geração, inclusive duas mato-grossenses Cristina Dignart e Ana Cecília Santos, isto deixa

evidente a continuidade de um processo musical que teve início com Planalto Central.

Page 133: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

131

Em nossas investigações sobre a vivência musical em Cuiabá, percebida por quatro

fases distintas, comprovou-se que nas três primeiras fases houve exclusividade para a música

tonal tradicional, o que é muito natural para a primeira fase. Na segunda, que contempla

grande parcela do século XX e que foi marcada pela proximidade da música com a literatura,

(saraus lítero-musicais) isso poderia ter gerado uma ligação com a produção contemporânea,

pois como visto, já existia uma considerável atuação de vanguarda literária, mas isto não

ocorreu; a música não foi afetada pelos avanços que percebemos na literatura.

Do mesmo modo, na terceira fase – com as mudanças de maestros da orquestra, em

que ambos vieram de grandes centros; o primeiro do Rio de Janeiro, que é um dos mais

avançados centros brasileiros para a produção da Música Contemporânea de Concerto; e o

segundo, que veio da Alemanha, berço das inovações musicais que influenciaram a produção

mundial – não foi encontrado, contudo, nenhum traço de vanguarda ou inovação, como

comprovam os programas de concerto em anexo.

As inovações musicais e o rompimento com padrões estabelecidos pelo sistema tonal

tradicional que existiam em Mato Grosso, foram verificados somente a partir da quarta fase,

com a substituição na orquestra da UFMT de um maestro por um maestro compositor; é nela

que ocorre uma mudança radical da vivência musical em Cuiabá, e que culmina em Planalto

Central.

Nesta última fase, houve também uma inversão da trajetória comum da música, pois

ela vinha dos grandes centros para Cuiabá. Mas com Planalto Central, a música começou a

ser produzida em Cuiabá com elementos do local e reproduzida nos grandes centros,

posicionando Mato Grosso na categoria de produtor de Música de Concerto. Assim sendo, a

UFMT na segunda metade da década de 90 passa a ser considerada um centro de referência

para a produção da Música de Concerto Contemporânea, e vários compositores compõem

para a sua Orquestra Sinfônica, que, em consequência, vai realizar várias estréias mundiais.

A orquestra, que executava músicas dos compositores do século XVIII e XIX, passa

neste momento a tocar obras de compositores locais e contemporâneos, que concebem obras

por poéticas do século XX, colocando a música em Mato Grosso em igualdade temporal com

outras vertentes artísticas, como a literatura.

Planalto Central, com a poética de Victorio, torna-se a conexão da música com seu

tempo e qualifica a produção musical como atualizada, fatos estes que não passaram

despercebidos pelo público, crítica ou autoridades. Os discursos existentes nos programas de

concertos e nas matérias noticiadas pela imprensa comprovam este entendimento.

Page 134: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

132

Também é de se destacar que os procedimentos da Música de Concerto

Contemporânea encontrados na partitura de Planalto Central corroboram nessa visão. São

eles:

1) Rompimento total com os procedimentos tonais

2) Utilização da escrita métrica com a relativa.

3) Nova grafia musical para atender às solicitações de explorações de novas

ambiências sonoras.

4) Técnica expandida.

5) Participação do músico na criação da obra.

6) Misturas e cruzamentos de elementos musicais e extramusicais, Literatura e

Numerologia.

7) Poemas de Vanguarda, que são recitados e cantados sem ligação com o tonalismo.

Reiteramos que Planalto Central se constitui como um marco histórico do percurso da

Música de Concerto em Mato Grosso, visto que foi a primeira obra mato-grossense a romper

com a estética musical tradicional praticada anteriormente; a principal atração nos concertos

que inauguraram a quarta fase da Música de Concerto em Mato Grosso, como também da

primeira turnê da Orquestra Sinfônica da UFMT fora do estado; carrega em seu arcabouço

elementos significativos de Mato Grosso, inclusive o próprio nome, além de agregar valores

artísticos mato-grossenses inestimáveis; além disso, foi a música de maior projeção daquele

momento histórico marcado pelas rupturas de paradigmas, inclusive com honraria concedida

pela UNESCO.

Os elementos compositivos que ela possui foram utilizados posteriormente em outras

composições de Victorio, tais como a música Sentinelas de Pedra (1996), inspirada na

caverna Aroe Jari localizada em Chapada dos Guimarães e Cerrados (1997), pois seu título

remete à vegetação que predomina em Mato Grosso.

Todo o conjunto de dados que foi visualizado confirma a assertiva de que a música

Planalto Central é um marco histórico do percurso da Música de Concerto em Mato Grosso;

ela foi parte de um processo histórico que passou por várias etapas, se encaixando nas

engrenagens deste processo – não a situamos como um ato heróico nem enaltecemos seu

criador como o “salvador da pátria”.

Pelo exposto, sabemos que muito pode ser dito, muito nos escapou e que outros olhares,

leituras e perspectivas podem apontar novas abordagens e se somar a esta leitura. O que

desejamos é que este trabalho possa contribuir como o primeiro passo para novas

investigações.

Page 135: PLANALTO CENTRAL: MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

133

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Mestrado sobre Planalto Central: marco da música contemporânea em mato-grosso.

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138

APÊNDICE A – Transcrição da entrevista com Roberto Victório

Transcrição da entrevista concedida pelo compositor Roberto Victorio, por ocasião das

investigações para o desenvolvimento da Dissertação de Mestrado “Planalto Central: marco

da música contemporânea em Mato Grosso”, em 19 de agosto de 2010, nas dependências do

Instituto de Linguagens, da UFMT.

Francisco - Roberto, em que data você veio para Cuiabá?

Roberto - Vim em 94 a convite da coordenação de cultura porque o regente que estava aqui

tinha saído; ele teve uma grande desavença. Aí eles foram ao Rio de Janeiro me convidar; eu

aceitei o convite, vim aqui, vim assistir a um concerto da orquestra e resolvi ficar porque

achei que tinha um trabalho importante de música contemporânea para ser feito aqui. Eu vi

que o trabalho da orquestra era muito tênue, muito, muito simples e tinha material para

desenvolver um trabalho mais interessante e foi o que a gente fez mesmo, fizemos um

trabalho de música contemporânea bem interessante durante quase um ano.

Francisco - Você lembra em que ano você veio para ver a orquestra?

Roberto - No final de 1993.

Francisco - Quem foram as pessoas que te convidaram para vir para cá?

Roberto - Foram Marina Miller Porto Carrero, que era coordenadora de Cultura na época e o

ex-regente que estava fora do Brasil, Marcelo Bussiki. Eles foram ao Rio de Janeiro me

convidar.

Francisco - Quando você veio assistir à orquestra pela primeira vez o regente foi Marcelo

Bussiki?

Roberto - Foi, foi Marcelo Bussiki.

Francisco - Ao aceitar a proposta, inicialmente você tinha a intenção de estabelecer

residência em Cuiabá?

Roberto – Não! Ia ficar só dez meses e voltar.

Francisco - Você sabe qual era a intenção da direção da UFMT em trazer você a Cuiabá?

Roberto - Ah! Com certeza não era para fazer o que eu fiz, eles nunca iam imaginar que eu ia

fazer aquilo (risos); era pra ter mais um regente aqui, na verdade, pra ser curto e grosso,

porque eles queriam mais uma pessoa, mais um regente que continuasse o trabalho que eles

vinham fazendo, só que eu fiz pela metade, só vim para cá, e fiz o que eu queria fazer (risos).

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139

Francisco – Então não houve a intenção que você promovesse um núcleo de pesquisa e

produção da música contemporânea?

Roberto - Não! Foi isso que eu falei, eles não sabiam nem o que era música contemporânea,

na verdade. Quando eu assisti ao concerto em 1993, antes de vir para cá, percebi que estavam

estagnados.

Francisco - Qual era seu objetivo, quando aceitou o convite?

Roberto - Era o de estender um trabalho que eu já vinha fazendo no Rio de Janeiro, não só

como compositor durante muitos anos, mas também como regente. Nos últimos dois anos

estava regendo a Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Francisco - Quando você fez o primeiro ensaio com a Orquestra da UFMT, você conversou

muito com os músicos, falou de sua produção, propostas, assim como a produção da música

contemporânea mundial. O que fez você acreditar que um projeto de produção local de

música contemporânea pudesse dar certo?

Roberto - Por vários motivos. Primeiro, eu percebi que eles estavam estagnados, já não

tinham mais estímulo nenhum para tocar; segundo, eu tinha certeza que se eu os estimulasse,

eles iam acabar estudando de verdade, e foi o que aconteceu mesmo – eu dei encargos para

cada um deles, organizava os ensaios, não sei se você se lembra, Chiquinho? Os ensaios eram

muito direcionados, ensaio de naipes, ninguém precisava vir todos os dias para os ensaios, fiz

com que cada um fizesse os solos; transformei a orquestra, que também não era uma orquestra

sinfônica, mas num grupo de câmara também, fazíamos peças com grupos pequenos, dentro

dos concertos de orquestra, fazíamos sempre uma peça com grupo pequeno de câmara e isto

estimulava os músicos a estudarem música, coisa que estavam esquecendo já naquela época.

Francisco - Quanto tempo você ficou na direção da Sinfônica da UFMT?

Roberto - Um ano, 94 inteiro.

Francisco - Algum compositor, que não você, compôs especialmente para a sinfônica,

aproveitando a formação musical que você dispunha, assim como faziam para o Sextante?

Roberto - Vários compositores, posso citar que eu me lembro, faz tanto tempo, Carlos

Almada, Marcos Ferrer, Carlos Cezar Belém, Alexandre Schubert, Maria Helena Rosa

Fernandes.

Francisco - Você teve alguma dificuldade de aceitação da música contemporânea, por parte

do público, bem como dos músicos ou da direção administrativa da UFMT?

Roberto - Normal, claro que tive, tive dos músicos também, claro, mas com os músicos foi

contornável porque se sentiram estimulados. Eu percebi, um ou outro, sempre tem um ou

outro que realmente são mais radicais, como tinha no Rio, como tem em qualquer lugar, mas

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eu sentia que eles estavam estimulados para tocar um outro tipo de música – diferente, uma

música que para eles a princípio parecia como não-música, porque eles nunca tinham tocado

nada daquele jeito. Platéia? Claro, a platéia mudou totalmente, eram aquelas senhoras que

vinham assistir a trechos de óperas de Aída, de Bellini e Verdi... Quando nós começamos a

fazer os concertos com outro repertório, com outra sonoridade, a platéia mudou, mas mudou

para melhor, as pessoas que realmente precisavam ouvir aquilo. A verdade é que, na minha

cabeça, isto era um absurdo como é um absurdo até hoje: você ter um organismo dentro de

uma universidade, que é um núcleo de pesquisa de arte de vanguarda, e você não trabalhar

com vanguarda dentro de uma universidade – teria sentido se fosse a orquestra ou o coral ou

qualquer outra coisa da Sadia ou do Modelo, que pode fazer o que quiser para entretenimento,

agora dentro de uma universidade é um total absurdo um organismo ficar trabalhando com um

material que não seja vanguarda. Se você verificar na Química, na Física ou na Biologia,

ninguém está trabalhando com a teoria do século XVIII, por que com a música tem que ser

assim? Isto é um absurdo!

Francisco - A música Planalto Central é o tema gerador desta pesquisa, você poderia

comentar sobre a escolha do título da música?

Roberto - Foi porque quando eu cheguei à região a primeira coisa que fiz foi travar contato

com Wlademir Dias Pino, que é um gênio da literatura, um gênio, uma pessoa

inteligentíssima, um gênio das artes visuais, da visualidade, na verdade, um dos maiores

pensadores que eu conheço no Brasil, e ele morava aqui nessa época; era funcionário da

UFMT, foi um dos fundadores da universidade na década de 70. Ficamos amigos e Wlademir

tinha poemas maravilhosos que nunca foram musicados por ninguém, isso é um absurdo

também, eu fui o primeiro a musicar, talvez o único, ninguém mais musicou. Ele é muito

hermético também, então na verdade eu ia juntando essas sonoridades todas que eu via aqui,

dos ribeirinhos, sonoridades da viola de cocho... E eu queria usar isso numa poética minha,

usando e sabendo que era uma coisa necessária para os músicos também, esse contato com

outro tipo de música, uma música mais sofisticada que ia fazê-los crescer como músicos

também e aí juntei assim. Tem uma ordem ternária em Planalto Central, os três poemas que

eu uso, as três violas de cocho, em conexão com os três trompetes; tem uma coisa de três, os

três movimentos e tal, então alguns arcos dentro de Planalto Central são ternários também,

ela tem uma ordem interna, uma rede de inteligência que organizará esta peça inteira. Então

juntei os três gigantes da literatura mato-grossense, Wlademir Dias Pino, Silva Freire, que já

era falecido, e o Manoel de Barros que na verdade ele é de Cuiabá mas está em Mato Grosso

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do Sul, peguei três poemas deles e fiz uma vestimenta sonora, para aqueles belíssimos poemas

e daí saiu essa coisa (risos).

Francisco - Na música Planalto Central você utiliza poemas de três poetas, sabemos que

Cuiabá possui vários escritores com vasta produção literária. Poderia comentar mais sobre a

escolha, porque você tinha outros nomes que poderia utilizar, como Dicke entre outras

pessoas, mas você preferiu estes três poetas?

Roberto - Por uma razão bem simples até. A primeira e mais o importante é que eu gosto

mais dos três, eu tinha lido muita coisa dos três, o Dicke é mais contista, é diferente – ele

possuía poucos poemas mesmo –, e a ligação que existe entre eles, na verdade, é que eu já

conhecia o Manoel de Barros e sempre quis trabalhar algum poema dele, eu o conheci aqui

em Mato Grosso, e o Silva Freire e Wlademir Dias Pino não tem como desconectar os dois,

porque além de terem sido muito amigos, eles têm uma poética muito parecida, a escrita deles

é muito parecida, e eu queria juntar estes três que pra mim são os três maiores, não tem como

– eu sei que tem pessoas maravilhosas, gente boa da novíssima geração, inclusive na época eu

conheci também um discípulo de Silva Freire chamado Rogério Andrade, excelente escritor

que as pessoas pouquíssimo conhecem, o Eduardo Ferreira que é maravilhoso, tem o Ivens

Scaff que é um escritor que eu gosto muito –, mas eu queria pegar os três top mesmo. Para

mim, os três maiores são este três poetas.

Francisco - E sobre a escolha dos instrumentos de Planalto Central?

Roberto - Foi o que eu te falei, é uma formação super não convencional porque são sete

percussionistas, na verdade eram dois percussionistas os outros cinco eram músicos que se

transformaram em percussionistas, inclusive você, você se transformou em percussionista,

não é Chiquinho? Então, sete percussionistas, três violas de cocho, Berrante, quinteto de

cordas, piano, um clarinete revezando com o clarone. Então era uma formação totalmente

inusitada, sempre com essa tônica ternária que vai permeando em comunhão com os três

poetas. Eu quis uma formação inusitada pensando na percussão, a percussão é o grande eixo

de Planalto Central, os outros naipes circundam em torno deste setenário percussivo.

Francisco - Foi mais fácil a escolha dos instrumentos do que os poetas, pois entre os

instrumentos regionais parece que não tinha outra saída, era a viola de cocho ou nada.

Roberto - Eu quis usar a viola de cocho, não como os ribeirinhos tocam; eu não queria isto,

eu escrevi a viola de cocho com a afinação que eles usam, mas com outra sonoridade, não usei

nenhum trecho de cantigas de São Gonçalo, nada, não usei nada disso; eu só usei o

instrumento como eu poderia ter usado três bandolins por exemplo, mas eu usei a viola de

cocho porque eu queria caracterizar essa coisa da terra, e essa conexão com o Berrante. O

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Berrante é o iniciador e o finalizador deste grande círculo ternário. Eu queria esta simbiose

entre instrumentos tradicionais de orquestra e instrumentos não usuais.

Francisco - A viola de cocho pode ser considerada como ícone que representa o próprio povo

daqui e você utiliza três em Planalto Central, na época causando expectativa na comunidade

local. Você sabe qual foi a repercussão do uso deste instrumento na orquestra aqui e fora do

estado?

Roberto - Aqui teve dois lados, os cururueiros ficaram meus inimigos (risos), mas para as

pessoas que entenderam funcionou muito bem, na orquestra, na verdade, nesta pequena

orquestra com as violas de cocho. Fora, foi uma coisa demais porque não sei se já tinham

usado a viola de cocho, mas neste contexto acho que não, como instrumento solista, as três

violas de cocho à frente do grupo, como se fossem solistas mesmo: quem ficou na frente neste

agrupamento todo foram as três violas de cocho, a cantora e o narrador, estes cinco na frente

do grupo todo como solistas.Isso aí foi uma coisa que tanto repercutiu que fomos convidados

para a Tribuna da UNESCO em Paris em 1995, justamente por causa de Planalto Central no

concerto que nós fizemos na UNICAMP.

Francisco - O berrante não aparece na lista dos instrumentos da partitura manuscrita original,

como foi a decisão de inseri-lo?

Roberto - Não tinha na verdade como escrever o berrante; a gente resolveu incluir o berrante

no início como aquela coisa do trabalho que vai seguindo – se fosse hoje eu teria posto mais

umas trinta coisas diferentes – mas o berrante foi fundamental ali, tem essa coisa do Manoel

de Barros, o poema de Manoel de Barros fala dessa coisa pantaneira, tinha que estar presente

também, sem ser brega, mas ele só funciona como início e como final, ele funciona como

instrumento que delimita o início deste grande circulo ternário.

Francisco - É certo afirmar que você ao compor Planalto Central, está demonstrando o

alargamento de possibilidades da composição contemporânea aos futuros compositores

locais?

Roberto - Na época não pensava nisto, Chiquinho, porque nem estava envolvido com o

departamento dando aula, não possuía alunos, eu só estava regendo, regendo e compondo,

claro que o compositor sempre que ele compõe uma obra, sempre deixa um legado, que vai

ser analisado de uma maneira diferente, para ser visto de outra maneira e tal, mas na época

não pensava neste lado didático de Planalto Central, pensava em deixar uma obra,

aglutinando poesia, uma poesia forte, uma música forte, com uma rede interessante,

conectiva, como um corpo sonoro, isto é o que eu pensava, na realidade, e ela acaba ficando,

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no ano seguinte já estava no Departamento de Artes e falando de Planalto Central, quer dizer,

acabou virando um material didático um ano depois.

Francisco - Planalto Central foi tocado em Cuiabá, e logo em seguida no eixo Rio-São

Paulo, qual foi o alcance desta música, onde mais pode se mencionar que Planalto Central

tenha chegado?

Roberto - Quando uma peça vai para a Tribuna Internacional da UNESCO na França, é uma

peça de cada país que vai, ou seja, tem uma comissão que escolheu Planalto Central para

representar o Brasil neste encontro mundial e no qual todas as peças são distribuídas para

todas as rádios educativas do mundo, desde a Groelândia até Zimbábue, tudo, todas as rádios

educativas do planeta estão nesta Tribuna, recebem esse material destas obras todas que são

produzidos no mundo inteiro, ou seja, com certeza Planalto Central foi tocado no mundo

inteiro por meio destas emissoras, no mínimo, além da repercussão que teve no Rio, em São

Paulo, Campinas – foi demais. As montagens de Planalto Central eram sempre o ponto alto

dos concertos e os percussionistas não acreditavam que um violinista ou uma flautista pudesse

transformar-se em um percussionista, não é? Todo mundo tocava integrado, era bacana isto,

não é? Porque todos se sentiam solistas! E isso era importante, não é Chiquinho? O problema

que acontece em uma orquestra, o grande mal, é que as pessoas se sentem só uma parte

invisível de um organismo; neste agrupamento que tinha aqui, todos eram muito visíveis,

tinha solo de todos, todos estavam aparecendo realmente envolvidos com a produção, este que

era o grande diferencial, como era no Rio de Janeiro na Orquestra de Câmara, nós fazíamos

concertos com grupos reduzidos, só percussão..., todo mundo trabalhava, todo mundo tinha

uma presença grande, não era aquela coisa que só o regente fica aparecendo – todos

aparecem.

Francisco - Você poderia mencionar alguma herança de seu trabalho por aqui?

Roberto - Acho que ficou essa coisa de uma produção grande que está saindo, agora o disco

da Teresinha Prada, só com compositores daqui, o primeiro disco do Sextante também que foi

este disco que está o Planalto Central inclusive, e que já tinha três compositores daqui, um de

Minas Gerais, eu, três compositores daqui que foram meus alunos da graduação da

especialização, o Pio Toledo, a Beth Alamino e o Lau Medeiros, um compositor de Minas e

um compositor do Amapá, quer dizer, já tinha um gérmen de uma produção compositiva que

já estava despontando por aqui; isto foi acontecendo durante estes anos todos em que eu

estava ministrando o curso de composição na graduação. Isso está ficando cada vez mais

efervescente, claro, a tendência é melhorar cada vez mais, as Bienais estão aí, os músicos

estão mais envolvidos, alunos estão mais envolvidos com a produção dos séculos XX, XXI,

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todo mundo tocando... A gente hoje passa nos corredores e ouve uma música boa sendo

tocada, as percussões aí, a gente vê que a música está acontecendo mesmo e eu acho que isso

foi um começo, não é? Foi um começo.

Francisco - Roberto, normalmente as músicas são rotuladas por algum estilo em particular,

como você nomeia sua produção.

Roberto - Estilo é uma coisa maior, não é Chiquinho? É uma coisa de reunião, já a minha

produção tem uma poética minha, que eu chamo de Música Ritual, uma música envolvida

com esse processo ritualístico, de transcendência, esse processo repetitivo – não como no

Minimalismo –, mas a utilização de dados invisíveis na composição do tecido sonoro; a

minha poética tem uma cara, como as poéticas em geral têm, mas quando enveredo por estes

afluentes, tem uma cara específica – isso é o que eu chamo de Música Ritual.

Francisco - Dentre as teorias atuais existentes para explicar a contemporaneidade podemos

mencionar a Pós-Moderna. Podemos classificar sua música como pós-moderna? Por quê?

Roberto - Não! Nem pensar. O Boulez na década de 80 já dizia que pós-moderno é antigo

demais, não tem nada de pós-moderno, isso é coisa lá do pessoal da Linguística. Música não

tem isso, não tem o menor cabimento. O que você tem são vários afluentes no século XX,

totalmente diferente das outras áreas, vários afluentes, micro-afluentes que se abriram demais

a partir da década de 10 do século passado, e que já eram hiper vanguarda, lá na década de 10,

e a gente tem hoje um paradoxo danado, a gente tem compositores da minha geração

escrevendo uma música totalmente careta, totalmente neo-romântica. Não tem nada a ver isso,

isso não se aplica à Música. O Boulez já dizia na década de 80 que não se deve nem pensar

nisso (risos), porque não tem nem definição, na verdade; o pós-moderno é qualquer coisa, se

você pedir para um linguista definir o que é pós-moderno é qualquer coisa, eles não têm uma

definição. Assim como eles não têm definição para o que é signo na Semiótica, ou seja,

qualquer coisa que tem informação, é qualquer coisa que não seja moderno, é qualquer coisa

que esteja além..., então na verdade não tem explicação para isto, como não tem explicação

para o que é Música também; é a mesma coisa, não existe (risos).

Francisco - Muito Obrigado.

Roberto - Ah! Legal.

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ANEXO A – Partitura de Planalto Central

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ANEXO B – Programa do concerto sinfônico de 28/01/1982

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ANEXO C – Programa do concerto da Orquestra Wimmer, concerto dia das mães 1982

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ANEXO D – Concerto de estréia de Bussiki 10/12/1986

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ANEXO E – Concerto de abertura de temporada 1987 de Bussiki

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ANEXO F – Concerto da temporada 1987 de Bussiki - 05/07/1987

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ANEXO G – Programa do 1º concerto de Ricardo Wilson, 29/03/1992

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ANEXO H – Programa do 2º concerto de Ricardo Wilson, 06/05/1992

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ANEXO I – Programa do 1º concerto de Victorio, 08/-4/1994

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ANEXO J – Programa de concerto, Grutas Permitidas 17/08/1994

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ANEXO K – Cartas convite para execussão de concerto

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ANEXO L – Matérias jornalísticas

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ANEXO M – Gravação de Planalto Central em Áudio/CD

O arquivo da música Planalto Central em áudio esta gravada no CD.