planalto central: marco da mÚsica contemporÂnea
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA
CONTEMPORÂNEA
FRANCISCO LOPES DOS SANTOS FILHO
PLANALTO CENTRAL:
MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA EM MATO GROSSO
Cuiabá
2011
FRANCISCO LOPES DOS SANTOS FILHO
PLANALTO CENTRAL:
MARCO DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA EM MATO GROSSO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea, da Universidade Federal de
Mato Grosso, como requisito para obtenção do
título de Mestre em Estudos de Cultura
Contemporânea na Área de Concentração
Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de
Pesquisa Poéticas Contemporâneas.
Orientadora: Profª. Drª. Teresinha Rodrigues
Prada Soares
Cuiabá
2011
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte
S237p Santos Filho, Francisco Lopes dos.
Planalto Central : marco da música contemporânea em Mato Grosso
/ Francisco Lopes dos Santos Filho. -- 2011.
270 f. : il. color. ; 30 cm.
Orientadora: Teresinha Rodrigues Prada Soares.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2011.
Inclui bibliografia.
1. Planalto Central - Música. 2. Música contemporânea de concerto.
3. Música de concerto – Mato Grosso – Percurso. 4. Roberto Victorio.
5. Planalto Central - Partitura. I. Título.
CDU 785.11.082.4(817.2)
Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099
Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte
Só se encontra Deus onde existe o amor. Dedico este trabalho aos meus 4 amores:
Keli Mendes Del Corso Lopes
Júlia Del Corso Lopes
Natan Del Corso Lopes
Luiza Del Corso Lopes
AGRADECIMENTOS
Ao Criador Incriado que subsiste por si mesmo, todos os seres lhe devem a existência e “todas
as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se Fez”.
A minha esposa Keli Lopes, pelo constante incentivo e contribuição.
Teresinha Prada, pela orientação zelosa, competente e compromissada.
Roberto Victorio, pelo seu importante papel para os rumos da música em Mato Grosso, e a
pronta disponibilidade em prestar esclarecimentos para esta pesquisa.
Ludmila Brandão, pelo empenho em tornar o ECCO uma realidade.
Pauxy Gentil Nunes Filho, pelas valiosas sugestões para o aprimoramento deste trabalho.
Benedito Fausto P. Borges Filho, pelo valioso auxílio nos primeiros passos rumos ao
mestrado.
Aos amigos que contribuíram para realização do mestrado: Fabrício Carvalho, Iracema
Irigaray, Giselle Gamba Rubira, Marcia Furtado, Edson Vieira de Assunção, Jordan A. Souza,
Silbene Perassolo, José Wilson Paulino da Silva, João Quinzani.
As instituições que apoiaram meu ingresso neste programa:
Universidade Federal de Mato Grosso.
Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso- SEDUC.
Orquestra Sinfônica da UFMT.
Escola de Artes da UFMT.
Escola Malik Didier Namer Zahafi.
“A arte é uma realidade eterna, fora do tempo ou do capricho dos deuses [...]. O criador luta
contra as formas estabelecidas e quer elaborar produtos que apresentem um aspecto novo e
que possam abrir caminhos e apetências inéditas à fantasia e à imaginação." (THARRATS,
1995, pp. 12-14).
RESUMO
A produção de Música de Concerto em Cuiabá, até a década de 80, apresentava um perfil
ligado ao tonalismo. A partir de 1994, houve uma mudança significativa desta estética
musical. Um novo padrão de produção começou a ser executado, estabelecendo práticas
musicais observadas na contemporaneidade, isto é, na pós-modernidade. Neste momento, a
obra Planalto Central, do compositor carioca Roberto Victorio, pela sua construção,
elementos estéticos e poéticos, constitui um marco do processo de mudança estética da
música na capital mato-grossense.
Palavras-chave: Música Contemporânea de Concerto. Música de concerto em Mato Grosso -
Percurso. Pós-modernismo. Mestiçagem. Planalto Central. Roberto Victorio.
ABSTRACT
The production of Concert Music in Cuiabá, till the decade of 80, had a profile linked to
Tonalism. After 1994, there was a meaningful change of the music style. A new standard of
production began to be done by establishing music practices based on contemporaneity, that
is, the post-modernity. At this moment Planalto Central (Central Plateau), piece by Roberto
Victorio (composer from Rio de Janeiro) become a land mark in the process of esthetic
changes of music in Cuiabá, because of its construction, esthetics and poetic elements.
Key-word: Contemporany Concert Music. Concert Music in Mato Grosso - Path. Post-
modernism. Miscegenation. Central Plateau. Roberto Victorio.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Violas de Cocho ................................................................................................................... 27
Figura 2 - Dito Verde e sua viola de cocho ........................................................................................... 29
Figura 3 - Lula recebendo viola de cocho do prefeito de Cuiabá Wilson Santos ................................. 33
Figura 4 – Vaqueiro tocando berrante ao manejar o gado .................................................................... 76
Figura 5 – Palacio Paiaguás (Cuiabá) ................................................................................................... 80
Figura 6 - Primeiro Poema, Compasso 1. Intervenção do Berrante. ..................................................... 96
Figura 7 - Seção F, Primeiro Poema ..................................................................................................... 97
Figura 8 - Compassos 144-146, Terceiro Poema .................................................................................. 97
Figura 9 - Bloco Intervalar Gerador, compasso 1, Primeiro Poema ..................................................... 98
Figura 10 - Compasso 4, Primeiro Poema ............................................................................................. 99
Figura 11 – Compassos 6-7, Primeiro Poema ..................................................................................... 101
Figura 12 – Compasso 8, Primeiro Poema .......................................................................................... 102
Figura 13 – Compasso 11, Primeiro Poema ........................................................................................ 103
Figura 14 – Compasso 16, Primeiro Poema ........................................................................................ 104
Figura 15 – Compasso 19, Primeiro Poema ........................................................................................ 105
Figura 16 – Compasso 20, Primeiro Poema ........................................................................................ 106
Figura 17 - Compasso 1, Segundo Poema ........................................................................................... 106
Figura 18 – Compasso 3, Segundo Poema .......................................................................................... 107
Figura 19 - Compasso 4, Segundo Poema ........................................................................................... 107
Figura 20 - Compassos 16-17, Segundo Poema .................................................................................. 108
Figura 21 - Compassos 19-20, Segundo Poema .................................................................................. 108
Figura 22 - Compasso 26, Segundo Poema ......................................................................................... 109
Figura 23 - Compasso 29, Segundo Poema ......................................................................................... 110
Figura 24 - Compassos 60-61, Segundo Poema .................................................................................. 111
Figura 25 - Compasso 61, Segundo Poema ......................................................................................... 111
Figura 26 - Compasso 62, Segundo Poema ......................................................................................... 112
Figura 27 - Compasso 65, Segundo Poema ......................................................................................... 113
Figura 28 - Compasso 67, Segundo Poema ......................................................................................... 113
Figura 29 - Compasso 69, Segundo Poema ......................................................................................... 114
Figura 30 - Compasso 72, Segundo Poema ......................................................................................... 115
Figura 31 - Compasso 78, Segundo Poema ......................................................................................... 115
Figura 32 - Compasso 80, Segundo Poema ......................................................................................... 116
Figura 33 - Compasso 80, Segundo Poema ......................................................................................... 116
Figura 34 - Compasso 88, Terceiro Poema ......................................................................................... 117
Figura 35 - Compasso 88, Terceiro Poema ......................................................................................... 118
Figura 36 - Compasso 89, Terceiro Poema ......................................................................................... 119
Figura 37 – Quadro de ocorrências do setenário ................................................................................. 120
Figura 38 - Compasso 92, Terceiro Poema ......................................................................................... 120
Figura 39 - Compassos 97-98, Terceiro Poema .................................................................................. 121
Figura 40 - Compassos 102-103, Terceiro Poema .............................................................................. 121
Figura 41 - Compassos 104-105, Terceiro Poema .............................................................................. 122
Figura 42 - Compassos 102-103, Terceiro Poema .............................................................................. 122
Figura 43 - Compasso 109, Terceiro Poema ....................................................................................... 123
Figura 44 - Compasso 115, Terceiro Poema ....................................................................................... 123
Figura 45 - Compasso 117, Terceiro Poema ....................................................................................... 124
Figura 46 - Compasso 122, Terceiro Poema ....................................................................................... 124
Figura 47 - Compasso 126, Terceiro Poema ....................................................................................... 125
Figura 48 - Compassos 134-135, Terceiro Poema .............................................................................. 126
Figura 49 - Compassos 136-139, Terceiro Poema .............................................................................. 127
Figura 50 - Compasso 139, Terceiro Poema ....................................................................................... 128
Figura 51 - Compassos 143-146, Terceiro Poema .............................................................................. 128
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO PÓS-MODERNO ................................................ 16
1.1 Divergências Comuns entre o Pensamento Moderno e o Pós-moderno ............................. 18
2 PLANALTO CENTRAL E MESTIÇAGEM ...................................................................... 24
2.1 Planalto Central: Processo de Hibridações ........................................................................ 29
3 A MÚSICA DE CONCERTO DO SÉCULO XX E AS SUAS VERTENTES ............... 34
3.1 O Século XX e a Sua Música ............................................................................................. 35
3.2 Vertentes e Tendências da Música Contemporânea ........................................................... 38
4 O PERCURSO DA MÚSICA DE CONCERTO EM MATO GROSSO ........................ 44
4.1 A Primeira Fase .................................................................................................................. 45
4.2 A Segunda Fase .................................................................................................................. 48
4.3 A Terceira Fase ................................................................................................................... 53
4.4 A Quarta Fase ..................................................................................................................... 68
5 PLANALTO CENTRAL EM TRÊS POEMAS PARA VOZ E PEQUENA
ORQUESTRA ......................................................................................................................... 75
5.1 Primeiro Poema .................................................................................................................. 81
5.2 Segundo Poema .................................................................................................................. 84
5.3 Terceiro Poema ................................................................................................................... 86
5.4 Planalto Central - Marco da Música Contemporânea em Mato Grosso ............................ 88
5.5 A Partitura de Planalto Central .......................................................................................... 92
5.6 Exame da Partitura.............................................................................................................. 94
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 130
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 133
APÊNDICE A – Transcrição da entrevista com Roberto Victório ........................................ 138
ANEXO A – Partitura de Planalto Central ............................................................................ 145
ANEXO B – Programa do concerto sinfônico de 28/01/1982 ............................................... 214
ANEXO C – Programa do concerto da Orquestra Wimmer, concerto dia das mães 1982 .... 216
ANEXO D – Concerto de estréia de Bussiki 10/12/1986 ...................................................... 218
ANEXO E – Concerto de abertura de temporada 1987 de Bussiki ........................................ 221
ANEXO F – Concerto da temporada 1987 de Bussiki - 05/07/1987 ..................................... 226
ANEXO G – Programa do 1º concerto de Ricardo Wilson, 29/03/1992................................ 232
ANEXO H – Programa do 2º concerto de Ricardo Wilson, 06/05/1992................................ 236
ANEXO I – Programa do 1º concerto de Victorio, 08/-4/1994 .............................................. 240
ANEXO J – Programa de concerto, Grutas Permitidas 17/08/1994....................................... 244
ANEXO K – Cartas convite para execussão de concerto ....................................................... 257
ANEXO L – Matérias jornalísticas ........................................................................................ 259
ANEXO M – Gravação de Planalto Central em Áudio/CD ................................................... 270
12
INTRODUÇÃO
A produção de Música de Concerto1 em Cuiabá até a década de 1980 estava restrita
aos recitais promovidos pelos conservatórios locais, e os saraus lítero-musicais, que eram
eventos realizados normalmente em residências, por iniciativa de pequenos grupos de músicos
e admiradores que produziam a música de câmara.
Além disso, os grupos maiores eram as bandas de música, que realizavam retretas nos
coretos das praças da capital, bem como nas festividades populares e eventos sociais solenes2.
A partir do início dos anos 80, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) cria a
primeira Orquestra Sinfônica do Estado de Mato Grosso. Todavia, por se tratar de uma
instituição de ensino superior e extensão, a Orquestra da UFMT foi concebida como
laboratório, capacitando os próprios músicos, que futuramente iriam compor as suas estantes.
Para tanto, foram contratados profissionais com a função precípua de ensinar música à
comunidade interessada.
A prioridade de vagas para aulas de música era para os alunos da UFMT; entretanto, a
atividade foi estendida para toda comunidade cuiabana interessada no aprendizado musical,
promovendo desse modo uma maior integração entre a Instituição de Ensino e a comunidade
local.
Iniciadas as atividades, a sinfônica da UFMT foi o corpo musical de referência para a
produção da música de concerto na capital, de modo que a música sinfônica ao vivo, passou a
fazer parte do cotidiano da cuiabanidade, e o Teatro Universitário se torna ponto de encontro
para as audições3.
O repertório praticado era composto de música nos estilos Barroco, Clássico,
Romântico e Brasileiro de Concerto. Enfim, música tradicional tonal4. Vez ou outra, a
Sinfônica dividia o palco com o Coral Universitário, com o qual era comum a execução de
música sacra. Havia também a prática de convidar músicos solistas, advindos de outros
1 O termo Música de Concerto será utilizado em substituição ao Erudito (Erudito como genérico que engloba
vários estilos musicais), por causar menos controvérsia (terminação vista com desconfiança por suscitar entre
outras coisas, elitismo e hierarquização). Empregaremos a terminação Música de Concerto para a música que
não pertence ao universo que abarca a produção da música popular, e qualquer menção ao erudito deve ser
entendida neste sentido. No meio musical é senso comum, tanto que o compositor e musicólogo Paulo de Tarso
Salles, autor do livro Aberturas e Impasses: O pós-modernismo na música e seus reflexos no Brasil, 1970-1980,
utiliza o termo Música Erudita Brasileira (MEB) para se referir às obras dos compositores brasileiros. 2 Ver capítulo 4.2.
3 Ver capítulo 4.3.
4 Ver Anexos B a J.
13
Estados, que exibiam habilidades virtuosísticas em seus instrumentos5. Este foi o perfil da
estética musical praticada até o início da década de 90.
A partir de 1994, com a troca do maestro da sinfônica, houve em Cuiabá uma
mudança significativa da estética musical. Um novo padrão de produção musical começou a
ser executado nesse momento, tendo como uma das obras mais importante Planalto Central,
do compositor Roberto Victorio (1959)6. A referida obra apresenta em sua construção
elementos estéticos e poéticos que merecem um exame aprofundado que poderá apontar
subsídios (necessários) para ser considerada como um marco do processo de mudança da
estética musical.
Os eventos que marcaram a passagem de uma estética musical para outra, em Cuiabá
ensejam a pesquisa sobre o processo em si, as motivações que geravam tal produção musical,
os agentes envolvidos nesta nova empreitada, e a situação do marco que inaugura este
processo.
Contudo, para alcançar tal fim, é mister fazer a ligação com uma linha de pesquisa
voltada para a reflexão sobre o ator social contemporâneo e suas práticas sociais, bem como
os modos de pensar e de criar.
A investigação ora proposta encontra-se no diálogo, cruzamento de conceitos e
informações com os variados autores que teorizam a contemporaneidade.
A música sempre encarnou os valores, modos de percepção, significação,
comportamentos, crenças, imaginários e história das civilizações.
[...] as canções poderiam constituir-se em um acervo importante para se
conhecer melhor ou revelar zonas obscuras das histórias do cotidiano dos
seguimentos subalternos. Ou seja, a canção e a música popular poderia ser
encarada como uma rica fonte para compreender certas realidades da cultura
popular e desvendar a história de setores da sociedade pouco lembrados pela
historiografia (MORAES, 2000, p. 204-205).
Igualmente a música contemporânea traduz as mudanças observadas em “nosso
tempo”7, as transformações, a multiplicidade de conceitos e fazeres; revela ainda a história e
acena para o devir. “A música da pós-modernidade não é uma, mas várias” (JAMESON apud
SEKEFF; ZAMPRONHA, 2009, p. 13).
5 Jornal Diário de Cuiabá, DC Ilustrado, 19/09/1991, p. 31.
6 Ver capítulo 5.5.
7 A forma instrumental, os tipos de instrumentos e seus timbres, a interpretação e também os arranjos de um
dado documento sonoro contêm indicações fundamentais para compreender [...] suas relações com as
experiências sociais e culturais de seu tempo (MORAES, 2000, p. 215).
14
Assim, por meio da música podemos compreender um certo momento histórico e,
observando o mundo, podemos melhor compreender esta música.
A música, [...] pode ser compreendida como parte constitutiva de uma trama
repleta de contradições e tensões em que os sujeitos sociais, com suas
relações e práticas coletivas e individuais e por meio dos sons, vão
(re)construir partes da realidade social e cultural (MORAES, 2000, p. 212).
Para a compreensão do tempo presente faz-se necessário trilhar pelos meandros dos
conceitos que estabelecem os saberes, as práticas, os valores e as crenças que envolvem o
mundo contemporâneo.
Entre as teorias que têm sido utilizadas para explicar o mundo contemporâneo figura o
Pós-Moderno, pois “o que se chama hoje de teoria contemporânea […] é na verdade um
fenômeno estritamente pós–moderno” (JAMESON, 2004, p. 40).
A nova estética musical observada nos idos de 1994 em Mato Grosso marca uma
ruptura com as práticas musicais dos períodos que a antecederam. Em Cuiabá, músicos
pesquisadores e apreciadores da música puderam, daquele momento em diante, conhecer,
desenvolver e apreciar esta música que, para eles, era nova.
Inicia-se, assim a produção de uma linguagem musical até então não praticada pela
classe artística local, evidenciada pela falta de fontes.
“O pós-moderno, entretanto, busca rupturas, busca eventos em vez de novos mundos
[…] busca os deslocamentos e mudanças irrevogáveis na representação dos objetos e do modo
como eles mudam” (JAMESON, 2004, p. 13).
O repertório desta novel era musical, marcado por uma justaposição de elementos que
determinam as posturas contemporâneas do fazer instrumentos musicais,8 como a viola de
cocho ou o berrante, denunciam um processo de misturas, que são concebidas como
hibridação e mestiçagem – termos muito comuns na teoria pós-moderna, caracterizada pelas
misturas, pela hibridação.
“Práticas híbridas podem ser identificadas na religião, na música, na linguagem, no
esporte, nas festividades e alhures [...] devemos ver as formas híbridas como resultados de
encontros múltiplos e não como o resultado de um único encontro” (BURKE, 2003, p. 28).
Também é característica da nova música a ruptura com os modos tradicionais de
composição e toda forma de conceitos, valores e crenças dos períodos que a antecederam.
8 Roberto Victorio utilizou na orquestração de Planalto Central instrumentos típicos da região mato-grossense.
Ver capítulo 2.1.
15
Enquanto a arte moderna surgiu de manifestos com idéias definidas, a pós-
moderna veio para desfazer princípios, regras valores, práticas, realidades,
misturar várias tendências e estilos, ser hierarquia de valores; ser aberto e
plural; derrubar as fronteiras entre as diversas manifestações artísticas
(HERR; KIEFER, 2009, p. 90).
Dentre as práticas realizadas no campus da UFMT, neste novo horizonte musical
podemos citar:
1 Produção local de obras compostas exclusivamente para a Orquestra Sinfônica da
UFMT e por ela executadas.
2 A UFMT como centro de referência da produção da música contemporânea no Brasil e
exterior9.
3 Movimentos resultantes, como a Bienal de Música Brasileira Contemporânea de Mato
Grosso e o Grupo Sextante Mato Grosso.
Uma nova ordem musical passa a ser desenvolvida, onde os instrumentistas têm a
possibilidade de compor, criar e difundir a própria música. A plateia experimenta uma
diversidade de timbres e formas musicais, além de ouvir músicas inéditas – músicos,
compositores e plateia são cúmplices.
9 A Orquestra Sinfônica da UFMT, em 1994, foi a única orquestra brasileira executante de um repertório
exclusivamente voltado para a música contemporânea. Assim sendo, tornou-se conhecida de vários compositores
brasileiros que compuseram especialmente para ela. Em conseqüência, a orquestra realizou várias estréias
mundiais. A gravação do CD Grutas Permitidas foi distribuída para vários países e a música Planalto Central,
primeira faixa do CD, representou o Brasil na Tribuna da UNESCO na França.
16
1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO PÓS-MODERNO
Dos termos utilizados para descrever o tempo presente, isto é, a contemporaneidade e
os paradigmas observados no âmbito do social, cultural, filosófico, artístico, um dos que tem
tido grande utilização é o Pós-Moderno.
Jameson (2004, p. 40) diz que: “O que se chama hoje de teoria contemporânea [...] é
na verdade um fenômeno estritamente pós–moderno”, e é desta perspectiva que será abordado
o tempo presente. Este termo tem sua origem, segundo Grenz (1997, p. 34, grifo do autor),
por volta da década de 1930, e o referido autor informa que:
A gênese do conceito acha-se na obra do escritor espanhol Federico de Onis.
Em sua Antologia de la poesia española e hispanoamericano (1934), de
Onis parece ter introduzido o termo para se referir a uma reação dentro do
modernismo.
Muito embora não haja unanimidade entre os pesquisadores de quem tenha utilizado o
termo pela primeira vez, há também quem atribua ao escritor britânico Arnold Toynbee, que
teria se referido ao pós-moderno em sua obra Estudo de História, escrito entre os anos de
1934 a 1961, trabalho este, composto em doze volumes.
Nesta enciclopédia ele investiga as civilizações abordando suas origens,
desenvolvimentos e os declínios. “Segundo Toynbee, a era pós-moderna caracteriza-se pelo
fim do domínio ocidental e pelo declínio do individualismo, do capitalismo e do cristianismo”
(GRENZ, 1997, p. 35).
Entretanto, é nos idos dos anos 1960, década marcada por uma intensa movimentação
em prol de mudanças sociais e culturais, como por exemplo, as manifestações em torno de
maio de 68, que definitivamente o termo pós-moderno será abordado como fenômeno.
O nascimento da era pós-moderna chegou a ser atribuído com dia, local e hora
marcada, que foi exatamente 15 de julho de 1972, na cidade de St. Louis no Estado de
Missouri nos Estados Unidos da América. Ali foi registrada a implosão do complexo
habitacional Pruitt-Igoe, projetado e concebido conforme ideologia proposta pelo CIAM –
(Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) – que traduziu a essência do pensamento
moderno na arquitetura.
O conjunto habitacional Pruitt-Igoe “representava o epítome da arquitetura, moderna
cujo objetivo era o emprego da tecnologia para a criação de uma sociedade utópica que
beneficiasse a todos” (GRENZ, 1997, p. 29). Entretanto o aumento da violência no local se
17
tornou um grande problema para as autoridades, além das edificações sofrerem ataques de
depredadores.
O conjunto habitacional teve duração de 20 anos e investimento avaliados em milhares
de dólares. Contudo, todas tentativas em renovar o projeto fracassaram e a construção,
mediante ordens judiciais, foi implodida. Para muitos, este evento foi considerado como o
marco definitivo da consolidação do pós-modernismo no mundo.
“Segundo Charles Jencks, que tem sido aclamado como „um dos proponentes de maior
influencia da arquitetura pós-moderna‟, esse evento simboliza a morte da modernidade e o
nascimento da pós- modernidade” (GRENZ, 1997, p. 29).
Em sua gênese, o pós-modernismo realmente se dá na arquitetura, porém ele ocorrerá
em todas as artes, e o que caracteriza a teoria pós-moderna é a ruptura com o ideal moderno.
Do mesmo modo que todo o conjunto de edifícios que fazia parte do complexo Pruitt-
Igoe foi desmoronado naquele fatídico 15 de julho, deixando somente lembranças daquilo que
era para ser o símbolo do bem estar social, assim também o conjunto das crenças, das
verdades que abarcaram o pensamento moderno, ruiu diante da perspectiva pós-moderna.
Assim sendo, o prefixo “pós” não intenciona significar continuidade, sequência ou
algo que vem logo depois, mas uma negação, interrupção de uma abordagem que influenciou
o pensamento ocidental, “em sua base, portanto, a perspectiva pós-moderna é antimoderna”
(GRENZ, 1997, p. 30).
Nesta ocasião, um crítico do jornal alemão Frank-furter Allgemeine Zeitung
colocou uma tese cuja significação ultrapassa o próprio acontecimento; trata-
se de diagnóstico dos nossos tempos: „A Pós-Modernidade apresenta-se
claramente como Anti-Modernidade.‟ Tal afirmação evidencia uma
tendência emocional de nossos tempos que impregnou todas as esferas da
vida intelectual (HABERMAS, 1983, p. 86).
Apontaremos algumas distinções entre moderno e pós-moderno, quanto às suas linhas
de pensamentos, na tentativa de traduzir alguns pontos relevantes que possam contribuir para
a compreensão do pensamento do tempo presente e consequentemente os seus efeitos na arte.
Em nosso caso, na música.
18
1.1 Divergências Comuns entre o Pensamento Moderno e o Pós-moderno
Iniciemos estas especulações mencionando Lyotard (2006, p. xvi), que em seu livro A
Condição Pós-moderna afirma que “considera-se „pós-moderna‟ a incredulidade em relação
aos metarrelatos”, ou seja, teorias que explicam a sociedade de modo abrangente. Enfim,
rompimento com as utopias.
De fato o marxismo que deu origem ao socialismo (e por décadas foi empregado
principalmente no leste europeu e alguns países asiáticos, que por oposições de ideológicas
promoveram a divisão política do mundo em blocos) entra em um processo de decadência e o
apogeu da crise se dá com a dissolução da União Socialista Soviética e, posteriormente, a
reintegração da Alemanha. Neste último caso o mundo presenciou a queda do muro de
Berlim, evento que é considerado um marco do desenrolar daquele momento histórico, assim
como o fim da era moderna e o início da era pós-moderna.
Coincidentemente, os grandes marcos dados como o fim do período moderno e o
início do pós-moderno se deram com demolições, tendo inclusive sido utilizados como
metáforas, cujas expressões são apresentadas como desconstrução, desabamento,
desmoronamento das grandes utopias, dos metarrelatos.
Os eventos acima mencionados provocaram mudanças significativas em todos os
campos de ordem social no mundo e inauguram uma nova era no pensamento ocidental: a
passagem da teoria moderna para a pós-moderna.
Em uma sintética retrospectiva histórica, Salles (2005, p. 17) informa que
modernidade é o termo que encerra um conceito de época que designa um período que
começou no século XVI e os marcos desta era foram a descoberta das Américas (ou do Novo
Mundo), a Reforma protestante e o Renascimento. Modernismo será um conceito estético e
artístico, que terá abordagens diferenciadas na Europa e em sua síntese, caracteriza-se pela
negação ao antigo, ao velho e ao compromissado com as utopias.
Novamente no final do século XIX e início do século XX artistas se apropriam do
termo moderno para designar suas artes, caracterizado pela mudança de paradigmas e rupturas
com conceitos estabelecidos.
Neste período artistas contemporâneos se utilizarão do termo moderno para “justificar
e legitimar a arte de vanguarda até a década de 70” (SALLES, 2005, p. 19). No Brasil o
movimento modernista foi estabelecido a partir do evento conhecido como Semana de Arte
Moderna de 1922.
19
À ultima onda de renovação convenciona-se chamar de „movimento
moderno‟, ou „modernismo‟. Essa cria um tipo de unicidade entre os vários
„modernismos‟, congregados sob o signo de „modernidade‟ essa sucessão de
rupturas cria um tipo de unicidade entre os vários modernismos,
congregados sob o signo de „modernidade‟ (SALLES, 2005, p. 19).
Após a crise do socialismo ficou mais evidente a expansão do mercado mundial assim
como a abertura ao capital especulativo, favorecendo o estabelecimento de um dos mais
importantes fenômenos observados no mundo pós-moderno, qual seja, a globalização, onde o
capital assim como bens de qualquer natureza, inclusive cultural, circulam livremente entre as
nações ignorando fronteiras; realidade apresentada nos acordos entre as nações tais como:
Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), Tratado Norte-Americano de Livre Comércio
(NAFTA10
) e a Comunidade Econômica Europeia (CEE).
Tal fenômeno tem sido estudados por sociólogos, antropólogos, historiadores,
filósofos e cientistas de áreas afins, que formulam teses na tentativa de compreender e
explicar as implicações de ordem social, cultural e política que a globalização tem provocado.
A mundialização tem gerando novas crises, entre elas a crise de identidade. Inclusive tem
provocado dúvidas relacionadas às atribuições do Estado Nação e a abrangência do papel que
atualmente ele deve desempenhar.
A reabertura do mercado mundial, a retomada de uma competição
econômica ativa, o desaparecimento da hegemonia exclusiva do capitalismo
americano, o declínio da alternativa socialista, a abertura provável do
mercado Chinês às trocas, e muitos outros fatores, vêm preparar os Estados,
neste final dos anos 70, para uma revisão séria do papel que habituaram a
desempenhar desde os anos 30, que era de proteção e guia, e até de
planificação de investimento (LYOTARD, 2006, p. 6).
O pensamento moderno de progresso inevitável que tem origem no Iluminismo, não é
mais comungado na era pós-moderna porque as pessoas não acreditam que a ciência e a
tecnologia serão capazes de resolver todos os problemas sociais e as mazelas que o homem
provocou na natureza. Qualquer criança em idade escolar é sabedora do buraco na camada de
ozônio; os telejornais informam a todo o momento as causas do aquecimento global que
normalmente são provocados por emissão de gases poluentes principalmente pelas grandes
indústrias.
O fenômeno El Niño é conversa comum em botequins e toda coletividade de alguma
maneira, já foi afetada pelo desequilíbrio da Natureza, seja por invernos rigorosos ou períodos
10
North American Free Trade.
20
de estiagem; bem como inundações causadas por tempestades, frios fora do inverno, calor nas
regiões onde normalmente possuem um clima ameno, e o mais grave em todas estas
sequências de fatos são os registros de considerável número de óbitos na população atingida.
Uma das mais recentes preocupações dos cientistas está relacionada ao
descongelamento da calota polar.
A geração pós-moderna também está convencida de que a vida na terra é
frágil. Ela acredita que o modelo iluminista da conquista humana da
natureza, que data de Francis Bacon, deve ceder lugar rapidamente a uma
nova atitude de cooperação com a terra, pois, em seu entender, a
sobrevivência da humanidade está ameaçada (GRENZ, 1997, p. 32).
Outra distinção entre moderno e pós-moderno é a crença moderna na Verdade
Universal que está intrinsecamente relacionada à Razão, que somente por seu meio o
conhecimento terá validade. Esta teoria não será mais acolhida na pós-modernidade pois os
meios não-racionais de conhecimento são reconhecidos agora; porque o ser humano é
percebido holisticamente, isto é, como um todo – incluindo também as emoções.
De acordo com o holismo, o homem não é somente matéria física, mas um ser dotado
de espiritualidade e munido da capacidade de produção de subjetividade, além de possuidor
de sentimentos. Para ser completo deve estar integrado à Natureza. Por isso terapeutas
contemporâneos têm difundido que a ocorrência de muitos males e doenças são de origem
emocional. Esta ideia tem transitado entre os profissionais das áreas ditas alopáticas. “O
holismo pós-moderno implica a rejeição do ideal iluminista do indivíduo fleumático,
autônomo e racional” (GRENZ, 1997, p. 32).
“Habermas e Boaventura Santos defendem a superação do uso da razão moderna
iluminista, centrada no indivíduo, por um novo uso da razão, voltada para a ação
comunicativa e solidária” (SALLES, 2005, p. 57).
No pós-moderno a Verdade está relacionada à uma coletividade específica, em
oposição à tese de Verdade Universal, pois sendo concebida culturalmente, passa a ser
patrimônio da comunidade que a constrói. Portanto como apropriação coletiva, atenderá a
demanda dos grupos que a criou. Entretanto por existirem diversidades de comunidades
humanas da qual participam os indivíduos, muitas serão também as verdades.
O sujeito da era pós-moderna convive com a diversidade cultural e múltiplas
expressões artísticas. Para ele estão ampliados o acesso à informação, que são oferecidos
pelos mais variados meios e este conjunto de opções, tem-se favorecido a idéia de ecletismo.
21
Salles (2005, p. 59), ao referir-se especificamente sobre a música, assevera que “o pós-
modernismo abre, isso sim, a possibilidade de convivência entre estilos considerados
excludentes entre si”, e na mesma assertiva o autor diz que não acredita que exista “uma
postura hierárquica entre os estilos” e a expressão utilizada para caracterizá-la é ecletismo.
Não são raros os indivíduos que se autodenominam ecléticos. A sua cultura é marcada
por intercâmbios e cruzamentos de outras culturas entre os quais alguns aspectos são
assimilados e apropriados ao seu modo de vivencia, influenciando os seus costumes e a sua
concepção de mundo.
Com isto, o que se quer dizer é que não existe um confronto bipolar e rígido
entre as diferentes culturas. Na prática, o que acontece é um sutil jogo de
intercâmbios entre elas. Elas não são vistas como exteriores entre si, mas
comportando cruzamentos, transações, intersecções. Em determinados
momentos, a cultura popular resiste e impugna a cultura hegemônica; em
outros, reproduz a concepção de mundo e de vida das classes hegemônicas
(ESCOSTEGUY, 2004, p. 147).
Entre os filósofos que inspiraram o pensamento pós-moderno podemos mencionar
Heidegger que rejeitou uma das linhas mestras do pensamento moderno, a teoria de
Descartes sobre a existência, além de se opor ao conceito de Verdade Universal que
norteava todo pensamento ocidental até então sobre ele. Grenz (1997, p. 157-158) relata
que:
Ele rejeita a suposição comum de que a verdade consiste numa
correspondência entre nossas afirmações e uma realidade totalmente
formada que existe fora de nós [...]. A verdade não é absoluta e autônoma,
argumenta ele; ela é relacional, A visão dominante é inadmissível
simplesmente porque o conceito de um mundo externo é, em si mesmo,
ilógico. Temos somente o mundo da experiência pelo qual somos envolvidos
como participantes.
No pós-moderno o conceito de Verdade é substituído por verdades; o original, isto é,
originalidade, pela reprodução. Não existe mais interesse pelo “puro”. A atenção, o interesse
está voltado para os cruzamentos, para as misturas, surgindo deste modo várias teorias para
explicá-las, dentre elas podemos mencionar mestiçagens, hibridações e creolização entre
outras.
Não se concebe a divisão da cultura como alta ou baixa entre a dita “Alta” cultura e a
cultura de massas, porque não existe uma hierarquia de importância entre o erudito e o
popular.
22
Não cabe, pois estabelecer juízos de valor hierarquizantes em termos de
Cultura „Alta‟ e „baixa‟, tampouco lamentar uma suposta „queda de nível‟ da
arte; se a música que vai a mídia talvez não seja a mais avançada, é preciso
reconhecer que a importância cultural dada à música atual não se guia pelos
conceitos de avanço e retrocesso (SALLES, 2005, p. 54).
Assim o interesse do pesquisador contemporâneo está voltado para as massas, para as
pessoas comuns, o estilo de vida da juventude, para as culturas populares, suas músicas,
literaturas (revistas, manuais), as expressões artísticas tais como o grafite, dança de rua, os
meios de comunicação de massa, programas de TV, publicidade. “É um projeto de pensar
através das implicações da extensão do termo „cultura‟, para que inclua atividades e
significados da gente comum” (BARKER; BEEZER apud ESCOSTEGUY, 2004, p. 150).
O homogêneo pelo heterogêneo: a arte pós-moderna se interessa pela fragmentação,
pois “um mundo moderno, homogêneo e coerente teria repentinamente dado lugar a um
universo pós-moderno, fragmentado, heterogêneo e imprevisível?” (GRUZINSKI, 2001, p.
44).
A antropologia substitui o interesse do distante para próximo; o saber não é domínio
somente da classe científica, das academias universitárias e dos laboratórios. O conhecimento
empírico tem valor reconhecido.
O pensamento moderno de progresso inevitável e contínuo está descartado; a
liberdade, que era um dos cânones da era moderna, não é mais a bandeira do pós-moderno,
pois o cidadão abre mão da liberdade em função da sua segurança. Ele é informado que está
sendo filmado por câmeras de segurança em locais de sua rotina diária tais como
supermercados, postos de gasolina, elevadores, corredores de edifícios públicos e privados e
até na rua onde mora.
A Razão cede espaço para a intuição. O sujeito pós-moderno não é cético; acredita na
subjetividade e reconhece a importância dos saberes empíricos.
As noções de espaço, tempo e território têm agora outras configurações. Enfim em
uma época caracterizada pela globalização e, consequentemente pela informação instantânea
tem possibilitado que determinados eventos sejam acessados ao mesmo tempo por pessoas
nas mais diferentes posições geográficas ou nacionalidades; contribui para que os indivíduos
adquiram uma outra percepção de mundo.
Ademais em um período marcado pela heterogeneidade, não poderá prevalecer a
existência do termo „unanimidade‟, e assim como houve por parte do pensamento pós-
moderno uma rejeição à teoria moderna, também existem resistência e oposição ao pós-
23
moderno, tanto por artistas como por pensadores. Se Pierre Latour, por exemplo, chega ao
ponto de negar a era moderna, como poderia legitimar a pós-moderna?
Não estamos entrando em uma nova era; não continuamos a fuga tresloucada
dos pós-pós-pós-modernistas; não nos agarramos mais à vanguarda da
vanguarda; não tentamos ser ainda mais espertos, ainda mais críticos,
aprofundar mais um pouco a era da desconfiança. Não, percebemos que
nunca entramos na era moderna. (LATOUR, 1994, p. 51).
Entretanto as acusações deferidas ao pensamento pós-moderno é tema apropriado para
uma abordagem mais acurada em pesquisa direcionada e que não será realizada nesta
oportunidade.
24
2 PLANALTO CENTRAL E MESTIÇAGEM
O objetivo deste capítulo é fazer uma abordagem da origem da viola de cocho, com
foco principal em sua característica mestiça, com base no pensamento de Serge Gruzinski e
Michel Serres que trabalham na linha das misturas das culturas, tais como mestiçagem e
hibridação.
No primeiro momento, será feito uma retrospectiva histórica, amparada
principalmente nos Cadernos de Folclore Mato-Grossense Nº 1 e Nº 2 (1990), organizados
pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, Departamento de Cultura, de Cuiabá. Estas
publicações reúnem pesquisas sobre a viola de cocho, o Cururu e o Siriri11
. Em seguida,
situaremos o uso da viola de cocho na contemporaneidade, fazendo menção da sua primeira
inserção em uma orquestra sinfônica, num processo de hibridação (conforme o conceito
formulado por Gruzinski), quando é utilizada na obra Planalto Central do compositor
Roberto Victorio.
Para esta abordagem foi inicialmente emprestado o caráter metafórico de Serres, com
a intenção de traduzir o nascimento da viola de cocho, que surgiu por meio de encontros e
trocas culturais, produzindo assim seu verdadeiro caráter, qual seja, mestiço.
Tudo começou pelo rio nestas regiões do centro. Neste planalto, que para o Atlântico
ou Pacífico, se percorre a mesma distância, o rio foi o condutor, a integração, a ligação com o
resto do país. Pelo rio se vinha e se ia - ele trazia, mas também levava. Primeiro, vieram os
bandeirantes, depois mercadorias de todos os tipos. Pelo rio tudo era trazido, como também
saiam, mas principalmente saiam. Daqui era levado o ouro, o “oiro” sonhado pelos
portugueses. Segundo Lott (1986, p. 37),
Os perigos da navegação pelo rio Madeira, Negro, Guaporé, Arinos, e
Tapajós eram superados pelo ouro estimulante, farto, disponível – e um
mercado consumidor com alto poder aquisitivo. A navegação pelo Rio
Cuiabá, além de completar o circuito, também abastecia a cidade de Cuiabá.
11
O Cururu e o Siriri são manifestações folclóricas comuns em Mato grosso e Mato Grosso do sul, envolvem
música e dança com a utilização de instrumentos musicais de fabricação regional, que são o mocho, que é uma
espécie de tamborete com couro de boi percutido por dois bastões de madeira, o ganzá, que é confeccionado de
taquara e friccionado por um pedaço de osso da costela bovina, e a viola de cocho que também é de origem local.
Ver Caderno de Folclore Mato-grossense nº 1 e nº 2, 1990.
25
Mas o rio não trazia somente bens de consumo. Ele trazia pessoas, e pessoas trazem
sonhos. Por ele vieram as primeiras peças teatrais, os dramas, as comédias e as primeiras
óperas, “A Grécia quem diria, foi parar em Cuiabá” (LOTT, 1986, p. 21).
O rio alimenta o povo e o seu imaginário. Não é por acaso que Michel Serres, em sua
Filosofia Mestiça, empresta o rio para as suas narrativas: ele conhece e reconhece a força do
rio; percebe suas correntes, seu fluxo e suas margens. O seu rio é metafórico; navegar, verter,
nadar, atravessar, tudo é metáfora. Por meio dele (o rio) nasce o mestiço. E é por ele que
nasce o sentido.
Sobre o eixo móvel do rio e do corpo, estremece, comovida, a nascente do
sentido [...]. Ao atravessar o rio e entregar-se completamente nu ao domínio
da margem à frente, ele acaba de aprender uma coisa mestiça. O outro lado,
os novos costumes, uma língua estrangeira, é claro. Mas acima disso, acaba
de aprender a aprendizagem nesse meio branco que não tem sentido para
encontrar todos os sentidos (SERRES, 1993, p. 14).
Foi por intermédio do rio, o mesmo do Minhocão do Pari e do Negrinho D‟água que,
segundo a lenda, veio a mestiça viola de cocho.
Os mitos e as lendas sempre foram utilizados para explicar fenômenos, estórias,
crendices e todo tipo de coisas que permeiam o imaginário das pessoas.
Atualmente a viola de cocho é figurada como um produto de origem pantaneira, mato-
grossense, símbolo da terra; inclusive, estampada em outdoors, shopping centers, aeroporto,
folders, cartazes, brasões e até mesmo, como um dos ícones representativos da região. Tem
sido utilizada pelas agências especializadas em propaganda e marketing no apoio à Copa do
Mundo em Cuiabá12
.
Apesar de hoje em dia, a viola de cocho estar veiculada nos meios de comunicação em
massa, assim como presente em debates promovidos por institutos e associações culturais,
existem poucos registros que esclareçam a sua origem, dentre eles o que se segue nos permite
analisar seu verdadeiro caráter:
O cururueiro Luiz Marques da Silva, fundador e presidente da AFOMT –
Associação Folclórica de Mato Grosso, através de pesquisas conseguiu o
depoimento de pessoas de várias localidades do Estado, resgatando a
seguinte lenda: Há mais de 200 anos [...] à beira do rio Cuiabá, morava um
artesão, „fazedor‟ de canoas, colheres de pau e cochos (recipiente usado para
alimentar animais) [...] certo dia atracou um barco em que viajava um
senhor, presumidamente um paraguaio, trazendo um instrumento de cordas,
12
Fonte: sites oficiais da Secretaria Estadual de Cultura, da Agência da Copa, www.copanopantanal.com.br/
?=destaques (Na África).
26
provavelmente um violão. Aproveitando a estadia do visitante, o artesão foi
logo aprendendo algumas posições musicais. Mas o cidadão paraguaio,
músico de profissão, depois de algum tempo resolveu partir, levando consigo
o instrumento. [...] o artesão[...] não se contendo, usou da memória e,
pegando a madeira que empregava na confecção de seus utensílios talhou o
mais parecido que sua mente guardara da forma do violão. Adaptou com
criatividade as cordas, confeccionando-as com imbira de tucum (planta da
região ribeirinha). Depois de pronta o artesão dirigiu-se à vila, levando
consigo a viola que fabricara. As pessoas, curiosas, perguntaram o nome do
instrumento. Como o mesmo, sem o tampo, tivesse a forma de um cocho,
respondeu: VIOLA DE COCHO! (CADERNO DE FOLCLORE MATO-
GROSSENSE Nº 1, 1990, p. 5)
A estória acima ilustra como pode ocorrer a mestiçagem. Ela poderia muito bem ser
utilizada por Gruzinski na formulação de sua teoria e fazer parte de seu livro Pensamento
Mestiço. Se reportarmos o uso da viola de cocho em Planalto Central, talvez possamos
perceber o mesmo efeito que Algodoal13
produziu em Gruzinski como proposta para
compreender a realidade mesclada.
Assim a “lenda” da origem da viola de cocho pode dar outra perspectiva ao discurso
de entusiasmados pesquisadores, folcloristas, agentes culturais e outros que ainda hoje ao
falarem deste instrumento, buscam encontrar algo genuíno e puro.
Tentam apontar uma única identidade: a regional; não compreendendo ou até mesmo
ignorando a realidade polimorfa e as múltiplas identidades que ela possui; como sendo o
resultado de uma sequência de fatos, um ajuntamento de informações, conhecimentos,
técnicas, materiais, trocas, enfim, misturas:
Mas outra cilada espreita o pesquisador: a noção de identidade que atribui a
cada criatura ou a cada grupo humano características fundadas num substrato
cultural estável ou invariante. Essa definição pode tanto vir dos interessados
como um reflexo condicionado do observador e reduzir-se na linguagem
corrente a uma etiquetagem sumária que logo vira caricatura (GRUZINSKI,
2001, p. 48).
Tylor (2005, p. 73) relata que certa vez, um chefe Banto disse ao missionário Eugene
Casalis que, “um evento é sempre filho de outro e não devemos esquecer o parentesco”; desse
modo podemos considerar nesta frase uma síntese da mestiçagem que se fez viola.
Em seu trabalho, Burke (2003, p. 28), descreve que: “Práticas híbridas podem ser
identificadas na religião, na música, na linguagem, no esporte, nas festividades e alhures [...]
13
Referência à ilha de Algodoal ao sul do delta do Amazonas, observada por Gruzinski que se atentou para a sua
realidade mesclada, isto é, pelas múltiplas realidades evidenciadas por contrastes tais como bucólico e urbano,
local e universal, remoto e contemporâneo, isolado e conexo (GRUZINSKI, 2001, p. 23-25).
27
devemos ver as formas híbridas como resultados de encontros múltiplos e não como o
resultado de um único encontro”.
De acordo com a lenda narrada pelo cururueiro14
Luiz Marques da Silva, percebemos
um encontro do ribeirinho com o paraguaio, o qual o primeiro, por meio de adaptações, se
apropria do molde do instrumento estrangeiro e, com técnica local, utiliza-se dos materiais
que tinha disponível tais como: madeira (sarã ou figueira), cola de póca de peixe e a corda de
tucum (utilizada pelos índios e pescadores).
Figura 1 - Violas de Cocho
Fonte: Foto coletada no Site da TV Centro América
Este suposto encontro culminará no nascimento da viola de cocho (figura 1)
evidentemente mestiça, um instrumento que tem origem ainda questionada, (talvez oriental,
ou européia, ou tudo junto) mas cujo resultado é um mosaico de conhecimentos e técnicas que
se ajustam para a consecução de um determinado fim, o surgimento do distinto, do novo.
Se quisermos ir mais além de libertar a análise cultural de seus tropismos15
fundamentalistas identitários, devemos situar a hibridação em outra rede de
14
Relativo ao tocador e cantador de Cururu. 15Tropismo: termo emprestado da biologia, que segundo o dicionário Aurélio é uma “reação de aproximação ou
afastamento de um organismo em relação à fonte de estímulo” (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2004, p. 795.).
28
conceitos: por exemplo, contradição, mestiçagem, sincretismo,
transculturação e creoulização (CANCLINI, 2001, p. 18, tradução nossa).16
Este é o sentido das coisas mestiças, híbridas, miscigenados, creoula ou qualquer outro
termo encontrado no universo de conceitos que hoje constituem o vocabulário dos cientistas
sociais, antropólogos, filósofos e linguistas.
Muitos termos são metafóricos [...]. Cinco metáforas em particular dominam
as discussões, extraídas respectivamente da economia, zoologia, metalurgia,
culinária e lingüística. Estarei portanto discutindo as idéias de empréstimo,
hibridismo, caldeirão cultural, ensopadinho cultural e finalmente tradução
cultural e „crioulização‟ (BURKE, 2003, p. 39).
Assim a existência do mestiço só é possível pelos fluxos migratórios e
consequentemente os encontros. “No encontro de culturas, um cocho que se fez viola”
(ANJOS FILHO, 2002, p. 67).
Das aproximações entre as culturas foi viabilizado o nascimento da viola de cocho. É
daí provavelmente a sua origem. Em suma, “a história de todas as culturas é a história do
empréstimo cultural” (SAID apud BURKE, 2003, p. 44), foram, portanto, estes empréstimos
que concretizaram o fazer da viola.
A viola de cocho então veio originalmente para incorporar-se a uma das expressões
culturais da população local proliferando-se por toda região, encaixou-se muito bem no cururu
e siriri, que são os gêneros musicais mais populares e que se espalharam tanto rio abaixo
como rio acima.
A viola de cocho é encontrada de Rosário a Corumbá, ou seja, toda extensão territorial
pantaneira. Seu uso se dá como instrumento de acompanhamento e marcação de ritmos das
músicas que são tocadas em rodas de homens17
(Cururu), mulheres e crianças (Siriri), que
dançam e cantam suas crenças, amores, peripécias e as paisagens locais.
Atualmente tem lugar cativo em grupos de expressão folclórica, nos meios onde as
manifestações culturais locais são o assunto, como nos centros culturais e institutos.
16
Si queremos ir más allá de libertar al análisis cultural de sus tropismos fundamentalistas identitários,
debemos situar a La hibridacion en otra red de conceptos: por ejemplo, contradicción, mestizaje, sincretismo,
transculturación y creolización (CANCLINI, 2001, p. 18). 17
“O Cururu consiste em no mínimo, dois cantadores, sempre do sexo masculino: um tocando a viola de cocho e
o outro o ganzá ou os dois tocando viola. Mesmo quando o grupo de cururueiros é grande, cantam sempre em
duplas, acompanhados pelo toque dos instrumentos de todos os participantes, cujo número de violas é sempre
maior, pois o som do ganzá é muito alto.
“Nem sempre o cururu é somente cantoria e dança. Há que pratique o cururu até hoje, em forma de „porfia‟
(desafio), quando um cantador faz uma pergunta a um dos companheiros, desafiando seus conhecimentos em
algum tema, principalmente bíblico” (CADERNO DE FOLCLORE MATO-GROSSENSE Nº 2, 1990, p. 10).
29
Aludindo a Mário de Andrade (apud GRUZINSKI, 2001, p. 23), com o verso “Sou um
tupi tangendo um alaúde”, porém desta feita, o tupi não somente se apropria do instrumento
estrangeiro, mas contribui com a construção de um novo; mesclando seus conhecimentos
técnicos e inserindo materiais de sua vivência; materializando um objeto para atender aos
anseios pessoais e de sua coletividade, transportando-o para o seu cotidiano (ver figura 2).
Figura 2 - Dito Verde e sua viola de cocho
Fonte: Foto coletada no site Olhares fotografia on line
2.1 Planalto Central: Processo de Hibridações
O advento da música contemporânea em Cuiabá tem ligações com o Rio, mas do Rio
com “R” maiúsculo, o Rio que não é metáfora, ou seja, a cidade do Rio de Janeiro, de onde
procede o compositor Roberto Victorio.
Este compositor inicialmente vem para Cuiabá para ser o maestro da Orquestra
Sinfônica da UFMT e, em posse de seu cargo, propõe outra maneira de realizar a música bem
distinta das práticas musicais que por aqui se faziam, como observado em análise dos
programas de concerto da orquestra em que o repertório se restringia ao tonalismo, ou seja,
músicas compostas entre os séculos XVIII e XIX. Victorio insere nas programações a música
30
de vanguarda, “uma apologia ao presente [...] em sua busca obsessiva do novo” (ARRUDA,
1994, p. 29).
Este tipo de proposta musical ainda não tinha sido vivenciado por esta orquestra e
Victorio se estabeleceu como o mais importante incentivador e difusor da música
contemporânea em Cuiabá.
A música contemporânea, que o citado compositor propõe, é uma música que não está
presa às regras formais da música tonal, nem tão pouco compromissada com a regularidade do
pulso e da linha melódica. Com isso Roberto Victorio trouxe para Cuiabá a controvérsia há
muito tempo existente no meio musical: a dicotomia tonal/atonal, inserindo uma prática
musical até então inédita.
Com isso, a formação instrumental da orquestra não fica mais amarrada aos moldes
das orquestras clássicas ou românticas, de modo que a sua formatação pode variar conforme a
intenção do compositor em explorar determinadas sonoridades.
O timbre é um dos elementos mais importantes desta abordagem, “o timbre, assim
como a notação, passam a ser pensados como unidades formadoras do corpo musical e como
elementos primordiais dentro de poéticas, onde todo um motivo gerador de uma obra pode
partir de um dado tímbrico ou de notação” (VICTORIO, 2003, p. 6) posto que o compositor
contemporâneo explora as sonoridades dos instrumentos musicais das maneiras mais
diversificadas e muitas vezes de um jeito bem diferente do usual.
A opção pela busca tímbrica como parâmetro primordial no processo de
criação, sem abrir mão do ritmo como ferramenta guia e formadora do
arcabouço deste trilhar, abriu uma janela sui generis para o contato com o
signo e o símbolo absolutamente transformador e delineador do perfil
musical deste século (VICTORIO, 2003, p. 5).
O compositor tem a liberdade de inserir instrumentos musicais que não fazem parte da
formação tradicional de uma orquestra sinfônica ou outras formações musicais quaisquer,
principalmente quando seu interesse está direcionado para o timbre.
A música contemporânea que se estabeleceu em Mato Grosso admite ampla liberdade
compositiva na procura por uma vasta expressividade, pois permite misturas, provocando um
emaranhado de sonoridades em favor do resultado musical.
Para Gruzinski (2001, p. 43), “O fato é que o fenômeno da mistura se tornou uma
realidade cotidiana, visível nas ruas [...]. Multiforme e onipresente, ela associa criaturas e
formas que a priori, nada deveria aproximar”.
31
A obra Planalto Central, composta em 1994 pelo compositor Roberto Victorio, é um
exemplo da hibridização musical que comumente ocorre no âmbito da música contemporânea.
A formação instrumental desta peça consiste em: soprano – (voz feminina), três violas
de cocho, berrante, três trompetes, piano, clarineta, clarone, 7 percussões, quinteto de cordas.
Esta música possibilitou o encontro de instrumentos que em seu local de vivência não
dividiam o mesmo espaço musical, neste caso, viola de cocho e o berrante. Não se tem
registro da presença do berrante no cururu e siriri, bem como do uso da viola de cocho em
formações orquestrais, dividindo o espaço com violinos, violas, violoncelos e contrabaixos,
instrumentos de tradição européia.
De acordo com Serres (1993, p. 27), “As duas bandas ou caminhos se encontram no
lugar de intersecção, mestiço, simples, duplo e cruzado: ausente, excluído, poderosamente
presente”.
Por intermédio de Planalto Central, a viola de cocho é transportada dos quintais dos
ribeirinhos para um palco de teatro (Teatro Universitário) e é tocada não da forma usual do
cururueiro, ou seja, por acordes que dão a base harmônica da melodia e movimentos de
pulsação rítmica, mas aos modos do compositor contemporâneo em suas buscas pelas
possibilidades timbrísticas.
A sua linguagem tradicional não é reproduzida. Ocorre a troca por uma linguagem até
então estranha a ela; suas cordas são tangidas em sequência de notas sucessivas e alternadas,
ou seja, dedilhadas em vez de batidas simultâneas em todas as cordas.
Em certos momentos seu corpo (caixa de ressonância) é percutido com a mão do
músico para explorar as possibilidades sonoras do instrumento. O pizzicato Bartok18
também
é utilizado e as cordas são bruscamente puxadas e soltas batendo no corpo do instrumento
produzindo um efeito percussivo.
A música Planalto Central alude a Cuiabá antiga e às paisagens do pantanal por meio
dos versos do poeta Manoel de Barros. A viola de cocho é inserida nesta obra repetindo de
outra maneira o papel que ela exerce em sua origem.
De origem estrangeira (européia), a viola de cocho se torna pantaneira para atender aos
fazeres culturais do pantaneiro e agora pantaneira, vem para atender às práticas musicais de
origem estrangeira (européia). Como cita Burke (2003, p. 32), “A África imita a África por
intermédio da América”. Seria o mesmo que dizer, a Europa imita a Europa por intermédio do
Pantanal? Essa questão reflete o que se entende como circularidade cultural.
18
Neste tipo de Pizzicato a corda é puxada verticalmente e solta em direção ao espelho do instrumento, causando
um efeito percusivo.
32
Sobre esta circularidade cultural acreditamos que um notável fenômeno encontrado na
humanidade é o êxodo, a migração, qual seja, a capacidade de transportar-se de um local para
o outro. E nesta mudança é levada toda sua carga cultural e o mais importante, ela é adaptada
aos novos locais. É portanto, neste encontro que ocorre a citada circularidade.
O homem refaz suas práticas e incorpora novos modos. É neste processo que ocorrem
mestiçagens e todas as misturas que se possa classificar. Reside aí um importante testemunho
da grande força criadora humana.
Em Mato Grosso a viola de cocho foi empregada nas rodas de cururu e siriri, como
coadjuvante dessas que são consideradas uma das maiores expressões culturais da
comunidade que circunda as regiões do pantanal.
O Cururu e o Siriri, com a participação da viola de cocho, cantam e dançam o
ambiente, o homem e o seu cotidiano. Na contemporaneidade, associados a todo este conjunto
de coisas, é acrescido outra prerrogativa, qual seja: o simbólico.
Desta forma ela, além de cantar o povo e atender os seus anseios expressivos, passa
agora a simbolizá-lo e representá-lo; figurando onde a noção de identidade cultural precisa de
uma representação.
O deslocamento da razão primeira do existir da viola de cocho foi direcionada para a
música contemporânea quando empregada em Planalto Central que reforça as sonoridades
que o compositor queria explorar e experimentar em sua obra e investiga as suas
possibilidades timbrísticas. Deste modo a viola de cocho incorpora também outra
característica que é próprio das obras de arte, a de objeto de apreciação.
Roberto Victorio, ao conceber Planalto Central, comenta em entrevista que pensou
em inserir na sua música o que havia de mais representativo para a cultura desta região. Deste
modo não ignorou a viola de cocho, mas a incluiu em sua música pela força de sua
representação. Pois como vimos anteriormente, ela não é somente representativa, mas tem
sido louvada ora como discurso político de folcloristas ou entidades governamentais, ora
como discurso publicitário ou estratégias de marketing.
Estes últimos se apropriam de sua imagem para obtenção das mais variadas vantagens,
sempre utilizando a temática viola de cocho e a cultura do povo mato-grossense, conforme
podemos perceber na figura 3, em que o prefeito da cidade de Cuiabá, Wilson Pereira dos
Santos, presenteia o então Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, por ocasião de
sua visita a cidade.
33
Figura 3 - Lula recebendo viola de cocho do prefeito de Cuiabá Wilson Santos
Fonte: Foto coletada no Site RDNEWS
Nesta ocasião acordava-se a liberação de verbas do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) para Cuiabá. Segundo informações da RDNEWS, no valor estimado de
200 milhões de reais, para obras de saneamento básico.
34
3 A MÚSICA DE CONCERTO DO SÉCULO XX E AS SUAS VERTENTES
O termo Música do Século XX será mais apropriado se pronunciado no plural
(Músicas do Século XX) devido à diversidade de tendências que tem sido observada no
âmbito da produção deste século, pois não há um único modelo ou escola, mas várias.
Na Música do Século XX o termo estilo que foi utilizado para classificar as produções
musicais dos séculos anteriores se torna redutivo e é assim que Salles (2005, p. 58-59),
conclui em suas pesquisas, após uma profunda análise dos principais aspectos que levaram a
música do modernismo ao pós-modernismo. Para ele é impossível “encontrar uma fórmula
reducionista de estilo musical para o pós-modernismo”. Assim sendo, “classificá-lo dessa
forma seria não reconhecer as forças conflitantes que compõe a pós-modernidade” (SALLES,
2005, p. 58-59). Deste modo alguns compositores têm substituído o termo estilo musicais por
tendências, para se referir à música do século XX.
Marlos Nobre aponta 21 tendências musicais e Roberto Victorio 14, na tentativa de
explicar o quadro em que a Música Contemporânea se encontra e que serão apresentadas
adiante.
Neste capítulo faremos uma abordagem dos elementos que distinguem a música do
século XX da produção musical antecedente. Para tanto apontaremos algumas modificações
no campo social e cultural do referido século para se ter um panorama que justifique as
mudanças verificadas.
Alguns conceitos de Lyotard foram aplicados, visto que se trata de um dos mais
conceituados teóricos do pensamento contemporâneo; além de dois compositores brasileiros
não menos importantes, de gerações distintas e que possuem visões do cenário musical que
devem ser levadas em consideração. Pois enquanto Marlos Nobre demonstra as tendências da
música do século XX, com foco nos compositores europeus e norte-americanos, Roberto
Victorio direciona sua abordagem para a música brasileira, demonstrando os compositores
que mais se identificam com cada tendência mencionada.
Existem outros trabalhos de pesquisas que foram desenvolvidos por compositores
brasileiros com a mesma temática. Segundo Salles (2005, p. 156), Ricardo Tacuchian
observou “cinco grandes tendências” para a música contemporânea19
. Ele é um compositor
19
Ricardo Tacuchian classificou a música contemporânea por “Cinco Grandes tendências”, a saber: 1.
Vanguarda, 2. Neonacionalismo, 3. Neo-romantismo, 4. Pós-modernismo, 5. Música eletroacústica (SALLES,
2005, p. 156).
35
brasileiro que se auto-classifica como pós-modernista.20
O curioso da abordagem de
Tacuchian é o fato de ter incluído o pós-modernismo como uma delas e não como um
processo guarda-chuva, isto é, um projeto maior que envolve várias tendências. Seu
pensamento aproxima o pós-modernismo do que classificaríamos como estilo, mas o
posicionamento de Tacuchian encontra oposição e Paulo de Tarso Salles (2005, p. 159),
sustenta que,
A definição de pós-modernismo proposta por Tacuchian como „um
comportamento estético que tenta superar as velhas polaridades que
definiram a música do século XX‟ é, portanto, segundo procuramos
demonstrar, um conceito que pode abranger todas as noções anteriores, que
chamamos „pós-modernismo‟, e não „uma entre cinco tendências‟ visto
como um estilo [...] o pós-modernismo então é „inevitável‟, não se pode
entrar ou sair dele como uma opção estilística.
Nobre e Victorio apresentam mais tendências e focam as suas abordagens por
perspectivas diferentes, que se colocarmos lado a lado, teremos uma visão mais ampla do
complexo panorama musical da música do século XX, contemplando a música brasileira,
como veremos.
Roberto Victorio que é um compositor de geração mais recente que Marlos Nobre e ao
tratar da música do século XX - XXI inclui compositores da novíssima geração, inclusive uma
mato-grossense. Também demonstra vertentes que não foram mencionadas por seu colega de
ofício.
Victorio fez suas considerações por ocasião das aulas que foram ministradas no
módulo “Estética e Processos Composicionais”, em 2010, oferecidas no Mestrado de Estudo
da Cultura Contemporânea, ECCO, na UFMT.
3.1 O Século XX e a Sua Música
Quando se fala em música contemporânea, isto é, a música do século XX, devemos ter
em mente um divisor para esta produção – a primeira e a segunda metade do século. Os anos
50, segundo Lyotard, foram marcados pela remodelação de consciências e consequentemente
20
Salles (2005, p. 160) inclui entre os compositores que se “autodenominam pós-moderno”, Tacuchian e
Almeida Prado.
36
mudanças no âmbito cultural. Portanto estes aspectos afetam diretamente a produção artística
que a eles estão intrinsecamente ligados.
Nossa hipótese de trabalho é a de que o saber muda de estatuto ao mesmo
tempo que as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na
idade dita pós-moderna. Esta passagem começou desde pelo menos o final
dos anos 50, marcando para a Europa o fim de sua reconstrução
(LYOTARD, 2006, p. 5).
As tentativas em classificar a música do século XX por estilos, como ocorria nos
séculos anteriores, se mostraram ineficientes, principalmente a partir da segunda metade do
século – período em que se verifica praticamente uma revolução nos meios de comunicação.
O acesso à informação, entre outros fatores, favoreceu a diversidade de produção que
se torna uma das características da música deste período, pois o compositor tem à sua
disposição, com extrema facilidade, acesso à produção musical de sua época ou de qualquer
outra.
As práticas composicionais tradicionais parecem esgotar-se diante dos anseios de
busca por novas alternativas musicais por parte do compositor contemporâneo. Portanto
houve a necessidade de se encontrar uma alternativa para a classificação desta música.
Existe atualmente ampla literatura que discorre sobre este tema. Entretanto
utilizaremos o ensaio “Tendências da Criação Musical Contemporânea” apresentado pelo
compositor brasileiro Marlos Nobre em um Congresso Internacional realizado na Espanha no
ano de 1994 que tinha como temática – “Música e Sociedade nos anos 90”.
Diante da dificuldade em se conferir um estilo musical ao século XX Marlos Nobre
chega a ser imperativo sobre este aspecto e diz “ser impossível falarmos da existência de um
estilo genérico de época ou de dois estilos contrapostos que tenham um efeito polarizador tal
como sucedeu na primeira metade do século XX” (NOBRE, 1994, p. 73). Portanto o termo
“tendência musical” passa a ser utilizado para substituir estilo e classificar este complexo
quadro em que se encontra a música do século XX.
A produção da música de concerto do início do século XX ainda estava sobre o efeito
das maneiras musicais dos últimos anos do XIX e naquele período figuravam como
importantes compositores Stravinsky e Schoenberg, entre outros; que deram grandes
contribuições para o estabelecimento de mudanças que são claramente verificáveis no âmbito
da música erudita em geral.
Entretanto não se pode conferir a somente dois compositores a responsabilidade de
todas as mudanças verificadas na produção da música do século XX, mesmo que eles tenham
37
tido vital importância para esse processo, como Schoenberg, a quem é atribuída a autoria do
sistema composicional dodecafônico.
Assim Marlos Nobre faz menção a compositores que ele considera representantes
fundamentais da música da primeira metade do século, que são: Bartok, Prokofiev,
Hindemith, Shostakovitch, Villa-Lobos, Ravel, De Falla, Berg, Webern e Krenek.
Os compositores acima mencionados, além de contribuírem para a produção da música
do século XX, influenciaram sobremaneira a geração dos compositores da segunda metade do
século. O mesmo se pode observar com a música do século XXI, que nesta primeira década
tem raízes profundas na produção de seu antecedente.
Como a música pode traduzir o comportamento e as mudanças de ordem social de uma
época. Podemos observar isso especialmente na segunda metade do século XX, período
considerado como a era da comunicação; quando a informação passa a ser transmitida em
grandes proporções, simultânea e instantaneamente em escala mundial. Passamos da época da
produção para a era da informação, neste sentido:
“A multiplicação das máquinas informacionais afeta e afetará a circulação dos
conhecimentos, do mesmo modo que o desenvolvimento dos meios de circulação de homens
(transporte), dos sons e, em seguida, das imagens (media) o fez” (LYOTARD, 2006, p. 4).
O evento de 11 de setembro nos Estados Unidos da América pode servir de exemplo
da dimensão em que a informação está veiculada em escala global e instantânea. Eis que foi
transmitido ao mesmo tempo, para todo o mundo, como se tivesse sido ensaiado e informado
previamente à população o acontecimento.
As filmagens do evento foram mostradas por vários ângulos e distâncias; oportunidade
em que o impacto dos aviões sobre as Torres Gêmeas foi visto ao vivo por expectadores
estarrecidos em seus televisores ou computadores via internet por todo o globo terrestre.
A transmissão via satélite dos eventos de 11 de setembro foi similar ao de uma Copa
do Mundo, em que as câmeras filmadoras ficam estrategicamente colocadas para a maior
diversidade de imagens possível, fornecendo ao espectador minúcias impossíveis de se
perceber a olho nu no local.
Deste modo antes mesmo que as torres ruíssem, todo o planeta já estava informado do
evento. Inclusive suscitando entre os espectadores comentários pré-concebidos sobre os
possíveis responsáveis pelo atentado. Este evento, não fosse trágico, poderia ser considerado
um espetáculo.
Pelo exemplo acima pode se perceber o quadro atual em que se encontra a transmissão
de informação e do conhecimento no século XX. Confirmando a previsão de Lyotard sobre os
38
efeitos dessa dinâmica sobre as pessoas que culminará com efeitos decisivos na diversidade e
heterogeneidade dos aspectos culturais da humanidade. O mesmo se pode observar na
produção musical, principalmente na da segunda metade do século.
“A partir dos anos 50 e até nossos dias, entretanto, o panorama é de extrema
diversidade de tendências, até chegarmos a um verdadeiro emaranhado, no qual cada
compositor busca um estilo individual de expressão, ainda que poucas vezes o encontre”
(NOBRE, 1994, p. 74).
O compositor atual tem muita facilidade em adquirir informações sobre a produção
musical atual, que também pode ser acessada via internet.
A percepção de tempo e espaço tem outras configurações: o passado e o presente
podem ser reproduzidos simultaneamente. Ouve-se de Bach a Victorio digitando-se poucas
teclas em um terminal de computador. São situações como estas que podem suscitar
relevantes questões.
Ludmila Brandão (2010), por exemplo, em uma de suas aulas no módulo de
Designações do Tempo Presente, no programa de mestrado ECCO, inquiriu à sala, “o que é o
contemporâneo? Quem é nosso contemporâneo?” E conclui em seguida dizendo; “o
carroceiro é meu contemporâneo”.
Ora, em uma época cujas pesquisas espaciais apontam para a existência de água no
subsolo de Marte; nas ruas movimentadas de Cuiabá se vislumbra entre o trânsito,
charreteiros guiando seus cavalos, transportando suas mercadorias. Desse modo o passado é
tão acessível e atual quanto o presente.
Assim sendo, tanto a Cuiabá contemporânea quanto Algodoal do Amazonas ou
Planalto Central de Roberto Victorio podem expressar a realidade mesclada com as suas
implicações multitemporais, pesquisadas e demonstradas por Gruzinski na formulação de sua
teoria.
Atestam também como estas múltiplas realidades tem afetado a produção de artistas e
pesquisadores.
3.2 Vertentes e Tendências da Música Contemporânea
Pelo exposto acima, falar em estilo musical para classificar a música produzida no
século XX é considerado uma atitude reducionista, considerando-se a perceptível
39
heterogeneidade de fazeres e saberes musicais. Para explicar este contexto Marlos Nobre
aponta para “duas grandes vertentes estéticas” que ele nomeia respectivamente de “linha
germânica” e “linha latina”. Para ele estas duas linhas influenciaram tendências da música
contemporânea do início do século XX até os dias atuais.
A linha germânica evoluída do cromatismo total como um dos últimos recursos para
novas sonoridades do sistema tonal e que tem como ponto culminante Wagner e Mahler cede
lugar ao sistema dodecafônico serial desenvolvido por Schoenberg, a partir do qual ficou
estabelecida a era do atonalismo; sendo sua principal característica a liberação da dissonância.
A música não fica mais presa às regras tonais; entretanto, conforme observa Nobre,
esta vertente musical ainda estava presa às formas de composição tradicional. As principais
mudanças observadas neste primeiro momento ocorreram em relação ao parâmetro altura,
mantendo-se intactos os usos dos outros parâmetros conforme estabelecidos anteriormente.
Vemos assim claramente, que a concepção de forma em Schoenberg e seus
seguidores, estava ainda totalmente atrelada às formas tradicionais,
sobretudo com a mesma mecânica do „allegro sonata‟, mais ou menos
camuflada de acordo com cada compositor, mas sempre presente (NOBRE,
1994, p. 75).
Marlos Nobre chega a comentar que a manutenção da forma observada no sistema
dodecafônico serial pode nos dar a impressão de estar ouvindo um Brahms desafinado.
Entretanto todos nós sabemos que as mudanças, quaisquer que sejam, nunca ocorrem
abruptamente. Parecem obedecer a uma série de acontecimentos que as favoreçam.
A Linha Latina, por sua vez, originada em Mussorgsky, passando a Debussy e
Stravinsky, tem como principal característica exatamente o rompimento com a forma musical,
que ainda estava solidamente internalizada na produção da música serial.
A linha latina caracteriza-se pela liberação da forma musical do conceito de
„desenvolvimento‟ temático e também do conceito da obra como uma
organização formal que começa em um princípio temático até suas
conseqüências finais (NOBRE, 1994, p. 76).
Nesta outra vertente musical os compositores não abandonam totalmente as regras da
tonalidade. Entretanto irão utilizá-las sem a imposição dos encadeamentos harmônicos. Eles
serão tratados como “entidades independentes em função exclusivas de suas propriedades
acústicas” (NOBRE, 1994, p. 76).
Nesta linha, como já foi dito, é abolida a forma na qual o compositor apresenta o tema,
desenvolve e depois reapresenta em direção ao clímax da obra. No entanto ele estabelece um
sistema de seções no qual o compositor desenvolve a idéia musical.
40
Outro elemento primordial para a nova concepção musical é o uso da repetição, que
será estabelecido como o fator mais importante da música. Como exemplos deste
estabelecimento de organização compositiva, Nobre cita, Vexations de Satie, que é uma
página repetida 840 vezes; a primeira das três peças para Quarteto de Cordas de Stravinsky,
rico em ostinatos; a obra Integrales de Varèse, em que segundo Nobre “o compositor utiliza
um procedimento de registração fixa em complexos sonoros que se mantém invariáveis
durante extenso período de tempo” (NOBRE, 1994, p. 79), e por fim o famoso Bolero de
Ravel que talvez seja o mais popular exemplo de música repetitiva que se possa relacionar. A
partir da idéia da repetição, o minimalismo se estabelece como um dos mais emblemáticos
procedimentos da música do século XX.
Ao dar sua contribuição para o entendimento da música do século XX, por meio de
duas linhas nomeadas de latina e a germânica, Marlos Nobre propõe uma simplificação que
marca, respectivamente, o estabelecimento da atonalidade e o desmantelamento da forma
musical, os quais podemos considerar como os germens embrionários por onde foram
estabelecidos os alicerces da música contemporânea.
A música do século XX, conforme dissemos anteriormente, será mais apropriada se
pronunciada na forma plural devido ao emaranhado de tendências existentes, Marlos Nobre
chega a classificá-la como Torre de Babel e menciona 21 tendências que englobam o cenário
contemporâneo conforme seqüência exposta abaixo:
1. Pós-serialista: música com rigor de escrita, de construção, obedecendo a
um sistema pré-estabelecido pelo compositor.
2. Compositores que utilizam o timbre até as últimas conseqüências, o
timbre como recurso primordial para a composição.
3. Música Espectral: essencialmente instrumental. Sons resultantes de uma
nova utilização de ressonâncias e micro-intervalos.
4. Estética do Som Puro, prolongado, estirado, vibração individual
extrema.
5. Micro-Tonalidade, caracterizada pelo uso de intervalos menores que
meio-tom.
6. Música Eletroacústica: produzida por meios eletrônicos como
computadores e sintetizadores.
7. Música Acusmática: som auditivo puro sem a presença do músico no
palco, espetáculo realizado por meio de auto-falantes.
8. Música Instantânea, junção da música contemporânea com o jazz.
9. Música Minimalista: variações ínfimas do tema repetidas muitas vezes,
tendo como principais representantes, Steve Reich, Terry Riley, John
Cage, John Adams, Michael Nyman e Philip Glass.
10. Conceito de Massa Sonora.
11. Música Estocástica (Xenakis), baseada sobre cálculos matemáticos da
probabilidade.
12. Música Multi-serial, fusão da multitonalidade e do serialismo.
13. Retorno ao Neoclássico.
41
14. Influência do Rock e Músicas Alternativas.
15. Teatro Musical, Happening musical.
16. Poli-estilo: linguagem musical autônoma por meio de adaptações,
combinações de diferentes estilos.
17. Maximalismo, Nova Complexidade.
18. Clusters ou Blocos sonoros.
19. Cromatismo-modal, utilização de diferentes modos simultaneamente.
20. Politonalismo: utilização de diferentes tonalidades simultaneamente
criando dissonância.
21. Aleatoriedade (NOBRE, 1994, p. 80)
A música contemporânea comporta todas as tendências acima citadas que são
praticadas simultaneamente. Por isso não é possível a sua classificação por estilos e esta
condição se constitui como uma das mais importantes características que essa música possa
apresentar, qual seja, a multiplicidade de tendências.
Tome-se como exemplo os Anais do XIII Encontro Nacional as ANPPOM,
do qual participamos, e cujo tema principal, exposto na palestra inaugural de
Jean-Jacques Nattiez, era justamente a pluralidade como tendência para a
música do século XXI (SALLES, 2005, p. 161).
Mas se não é possível encontrar um estilo no pós-moderno, é possível verificar os
procedimentos que são mais comuns na música pós-moderna. E é desta perspectiva que Salles
(2005, p. 128) menciona os resultados da pesquisa de Beatrice Ramaut-Chevassus (1998).
Segundo Salles, essa pesquisadora faz um “inventário das técnicas, funções e conceitos em
jogo na música pós-moderna”.
Ramaut-Chevassus observa a freqüência de três manifestações no domínio estético.
Segundo afirma, ocorre “uma nova atitude em relação ao passado, o gosto pelo ecletismo e a
busca pela comunicabilidade” (RAMAUT-CHEVASSUS apud SALLES, 2005, p. 128).
Partindo disso ela classifica seis procedimentos: 1. Melodia, 2. Repetição, 3. Simplicidade, 4.
Citação, 5. Colagem e 6. Retorno às diferenciações nacionais/étnicas. Por eles estabelece os
critérios do “gesto composicional” da música pós-moderna.
Os procedimentos apontados por Ramaut-Chevassus são observáveis nos
apontamentos de Marlos Nobre e Roberto Victorio e por sutil análise, podemos verificar que
estão internalizados em determinadas tendências por eles classificadas.
Apesar de Nobre e Victorio enumerarem várias tendências, existem também os
compositores que não se enquadram ou não admitem se enquadrar em nenhuma delas.
Preferem classificar suas obras por estilo individual. Também existem os compositores que
ainda querem compor suas músicas obedecendo às regras tradicionais do tonalismo e às regras
42
composicionais estabelecidas no século XIX, por assim ser, “o pós-modernismo está longe de
ser um estágio de consenso” (SALLES, 2005, p. 161).
A música contemporânea brasileira apresenta o mesmo quadro de complexidade e os
compositores não comungam de tendência única. O compositor Roberto Victorio durante aula
realizada no dia 24 de junho de 2010, no módulo de Estética e Processos Composicionais
classificou 14 Vertentes da música contemporânea brasileira da seguinte maneira:
1. Nacionalismo, representado principalmente por Villa-Lobos/Neo-
nacionalismo, por João Guilherme Ripper e Ernani Aguiar.
2. Modalismo/Neo-modalismo, Pauxy Gentil-Nunes, Marcelo Moreira.
3. Cunho Indígena, pesquisa não nacionalista, Kilza Setti, Maria Helena
Rosa Fernandes.
4. Música Ritual, que utiliza no processo composicional a numerologia,
Kabala e referencial Alquímico, e a transcendência. Como representante
desta tendência, o compositor Roberto Victorio, desde 1980, inspirado
em Bela Bartók.
5. Música experimental, Marcelo Palhares e outros.
6. Música Eletrônica, processada por meios tecnológicos, computador e
sintetizador, Rodolfo Caezar, Flo Meneses, Denise Garcia, Paulo Chagas
e Cristina Dignart21
.
7. Influência popular, não nacionalista, Marcos Ferrer, Pauxy Gentil-
Nunes.
8. Atonalismo/Atonalismo Livre.
9. Minimalismo/Neo-minimalismo.
10. Aleatório/Aleatório controlado, Ana Cecília Santos22
.
11. Happening/Multimídia.
12. Poliestilo, plano simultâneo, conexão de planos.
13. Música e Repetição (processo de repetição que não é necessariamente
minimal).
14. Maximalismo, nova complexidade (VICTORIO, 2010).
O século XX então se apresenta como um grande mosaico de possibilidades musicais
em que as expressões do presente e do passado convivem simultaneamente, pois a produção
da música contemporânea não interrompe a produção musical anterior, assim como também
não foi impedida por ela.
Mesmo que por parte dos simpatizantes da música erudita tonal tradicional tenha
havido certa rejeição para com a música contemporânea de concerto (e esta reação não é
surpresa nem novidade). Ela tem sobrevivido e a sua produção garantida, pois em torno da
21
A compositora Cristina Dignart é cuiabana, foi aluna de composição de Roberto Victorio. Seu trabalho em
música eletroacústica tem sido bem recebido, com obras premiadas e apresentadas no Brasil e exterior. É
professora da graduação em Música da UFMT e membro do Núcleo de Estudos de Composição e Interpretação
da Música Contemporânea da UFMT. 22
Ana Cecília é paranaense radicada em Cuiabá desde a infância, foi aluna de Roberto Victorio na graduação em
música da UFMT e no Mestrado em Estudos de Linguagens, oferecido pelo Instituto de Linguagens da mesma
instituição. É detentora de prêmios pelo seu trabalho como compositora e possui obras registradas em CDs e
DVDs.
43
música contemporânea existem músicos, pesquisadores e um público consumidor interessado.
Essa legião de adeptos tem assegurado e ampliado o consumo da música contemporânea.
Em Mato Grosso tal assertiva pode ser comprovada ao considerar-se o público
presente em concertos exclusivos para execução da música do século XX e que tem apogeu
nas Bienais de Música Contemporânea de Mato Grosso. Vale ressaltar que esses eventos
foram idealizados pelo compositor Roberto Victorio, como forma de difundir a música
contemporânea de concerto em Mato Grosso.
Na 3ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea de Mato Grosso, realizada no ano
de 2008 na UFMT em Cuiabá, todos os concertos obtiveram significativa participação de
público, inclusive com audiência acima da capacidade de lotação do ambiente. Neste evento
foram observadas pessoas em pé no auditório.
Os recursos financeiros têm sido garantidos por meio de instituições públicas e
privadas, entre elas universidades e ONGs. Estas últimas são patrocinadas pelas iniciativas
privadas e por projetos culturais. Entretanto, não haveria o patrocínio nem a participação
destas instituições se não houvesse um público a quem esta produção fosse destinada; é
evidente que os investimentos para a música contemporânea são tímidos, se comparados aos
investimentos de outras vertentes musicais, mas têm dado sustentação necessária para a sua
sobrevivência.
44
4 O PERCURSO DA MÚSICA DE CONCERTO EM MATO GROSSO
Mencionaremos o percurso da música de concerto em Mato Grosso por quatro fases
distintas. Estas etapas foram percebidas no curso de nossa pesquisa, após verificações em
material bibliográfico.
As duas primeiras etapas foram baseadas na investigação de dois pesquisadores: a
pianista Maria Benedita Deschamps Rodrigues, mais conhecida por Dunga Rodrigues e o
teatrólogo Alceu de Moura Lott. Ambos descreveram as atividades artísticas ocorridas em
Cuiabá-MT, amparados em relatos documentais que datam do século XVIII à primeira metade
do XX e forneceram importantes informações sobre a música daqueles períodos.
Situamos a primeira fase da música de concerto em Mato Grosso como aquela que foi
praticada no período colonial e que se estendeu até o século XIX com as primeiras
representações de óperas.
A segunda fase ocorreu na primeira metade do século XX e é marcada pelas
realizações dos saraus lítero-musicais, que foram as práticas musicais que se estabeleceram na
capital mato-grossense; viabilizados pelas facilidades propiciadas pelo agrupamento
camerístico.
A terceira fase da música de concerto aconteceu a partir da década de 1980, com a
criação da primeira orquestra sinfônica do estado de Mato Grosso.
A quarta fase se deu com o início da produção de vanguarda23
da música
contemporânea de concerto, ocorrida nos idos de 1994. Utilizamos vanguarda como sinônimo
de inovação, “uma característica secundária de arte de vanguarda é que, quando ela entra num
terreno novo, viola as regras, entrincheirando-as”24
(KOSTELANETZ, 1992, p. 4, tradução
nossa), e também porque foi o termo escolhido pelo compositor Roberto Victorio para se
referir as obras que propunha oferecer ao público cuiabano, logo que iniciou os seus trabalhos
no ano de 1994.
23Richard Kostelanetz (1992, p.1, tradução nossa) utiliza três critérios para classificar vanguarda. Para ele, “ela
transcende as atuais convenções artísticas em seus aspectos mais cruciais, criando uma diferenciação entre si e as
práticas atuais das massas, em segundo lugar o trabalho da vanguarda levará um tempo considerável para atingir
sua máxima audiência; e em terceiro, ela irá provavelmente inspirar futuros esforços de avanço.”
“It transcends current artistic conventions in crucial respects, establishing a discernible distance between itself
and the mass of current practices; second, avant-garde work will necessarily take considerable time to find its
maximum audience; and, third, it will probably inspire future, comparably advanced endeavors”
(KOSTELANETZ, 1992, p.1). 24
One secondary characteristic of avant-garde art is that, in the course of entering new terrain, it violates
entrenched rules (KOSTELANETZ, 1992, p. 4).
45
Esta etapa foi amparada por relatos (entrevista), programas de concertos, notícias
fornecidas pela imprensa local da época e uma monografia de conclusão de curso.
Desta feita podemos concluir que a prática da música de concerto em Cuiabá não é
recente e em cada período ela apresenta um caráter diferente. Os registros destas atividades
musicais remontam ao período colonial, quando aconteceram encenações de óperas em praça
pública.
“A produção de músicas de caráter genuinamente erudito, também se fazia presente,
sendo que existem registros muito antigos a respeito desses tipos de produção musical, desde
o período áureo do colonialismo português em Cuiabá” (SANTOS FILHO, 1996, p. 13).
4.1 A Primeira Fase
A descoberta do ouro nas lavras mato-grossenses motivou o interesse do império
português por estas regiões e a sua extração que atualmente é conhecida como garimpo exigia
abundância de mão-de-obra. Além do mais os mineradores deveriam fixar-se no local por um
longo tempo, tendo em vista que o acesso a esta região era muito difícil e o único meio de
transporte era o rio.
“Entre 1735 e 1740, as minas mato-grossenses contavam com aproximadamente 40
mil habitantes, tendo sido já restabelecida a via de imigração, outra vez estimulada pela
descoberta de novas minas” (LOTT, 1986, p. 32).
Outro grande empecilho para ir e vir era a grande distância geográfica existente entre a
Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá e os outros centros do império para onde eram destinados
o ouro retirado das lavras mato-grossenses; além dos perigos oferecidos pelos índios locais
que atacavam os mineiros em imigração e os comerciantes que abasteciam as minas.
As dificuldades da recém-criada vila (1727), elevada de categoria pela
excelente arrecadação dos quintos reais eram grandes: os rios eram de difícil
acesso, os índios atacavam as monções vindas de São Paulo para abastecer o
circuito das minas mato-grossenses, o ouro precisava ser escoado e as minas
abastecidas (LOTT, 1986, p. 30).
Deste modo, manter homens nesta remota região não era tarefa fácil. Foi necessária
uma mínima organização logística, que se dava com circulação de bens e mercadorias de
consumo. Dentre elas, atividades culturais como o teatro e a música. Assim sendo, as óperas
46
que eram representadas na Europa foram adaptadas e encenadas aos moradores, em locais
públicos, com as devidas adequações necessárias.
As „óperas‟ são vertentes de ópera italiana, grande sucesso em Portugal,
apresentadas em Mato Grosso, com as devidas cautelas no item qualidade.
Vale lembrar que eram copiadas das comédias de Metástasio, musicadas, e
interpretadas por amadores, em tablado público (LOTT apud SANTOS
FILHO, 1996, p. 13).
Segundo Lott (1986, p. 38), por trás das atividades culturais e das festas populares
havia um projeto de dominação por parte do império português. Para ele “elas contribuíam
para facilitar a dominação econômica, auxiliavam o controle do poder cultural e reafirmavam
o poder colonial”.
Deste modo a ópera foi utilizada como um dos instrumentos de dominação cultural e
político e até mesmo um dos mecanismos para fixar o homem na terra, pois manter uma
população local era também a garantia de posse e alargamento das fronteiras que estavam
sendo disputadas pelo império espanhol. Portanto as representações das óperas faziam parte
dos planos do império português para garantir o sucesso da colonização do Planalto Central
do Brasil, inclusive com abundância de registros.
As primeiras óperas representadas em solo mato-grossense eram encenadas ao ar livre
em praça pública; diferentemente da Europa onde as récitas aconteciam em locais fechados e
nos grandes teatros (que podem ser considerados verdadeiros monumentos arquitetônicos).
Neles a plateia européia se dirigia exclusivamente para assistir ao espetáculo.
Em Mato Grosso as óperas não eram espetáculos isolados oferecidos à comunidade.
Elas faziam parte das programações de festejos organizados para comemorar alguma data
especial ou também para recepção de autoridades, militares ou da corte, como também parte
das comemorações de aniversários de pessoas ligadas à realeza. Era muito comum também a
sua representação nas festas religiosas promovidas pelo clero local.
Os festejos tinham como uma das características as longas durações com que
aconteciam. Eles chegavam a ser realizadas por vários dias sucessivamente.
À noite, houve vários festejos, bem como nas duas noites que seguiram.
Representaram-se Óperas e comédias em tablado público, além de danças,
bailes e outros festejos que duraram por muitos dias, sendo em todos o geral
contentamento (RODRIGUES, 2000, p. 38).
As representações das óperas muitas vezes eram patrocinadas pela burguesia local
para abrilhantar comemorações de datas especiais. Rodrigues (2000, p. 38) em sua
investigação sobre o movimento musical em Cuiabá, transcreve as crônicas de autoria de
47
Joaquim da Costa Siqueira, extraído dos anais do Senado da Câmara de 1777, estes
documentos relatam algumas festividades ocorridas entre os séculos XVIII e XIX.
15 de novembro de 1794 - Houve teatro e representaram-se óperas, comédias
e danças. Festejaram o nascimento da sereníssima princesa da beira. [...] 03
de novembro de 1794 - Deveriam os comerciantes mandar construir dois
navios de madeira pintados e bem armados, dentro dos quais se fariam
representar algumas danças e duas óperas. Os juízes de ofício de alfaiates e
sapateiros ofereceram, cada qual, uma comédia. [...] Em todas as noites
houve música nos paços dos conselho e depois pelas ruas, pelo professor de
línguas e mestre de música Joaquim Mariano da Costa e pelo mestre Antonio
Francisco das Neves. [...] 17 de setembro de 1796 - Chegada do general
Caetano Pinto de Miranda Montenegro. Nesta noite e nas duas sucessivas,
houve orquestras com dois mestres de música e bandos de máscaras,
contradanças e tambores que tocavam caixa de guerra. Após três dias, houve
baile e contradança no palácio e seis comédias, sendo três representadas por
homens brancos e as outras por três, por preto. [...] Ano de 1809 - Notícia de
restauração de Portugal, contra o domínio napoleônico. Foi festejada em
coro de música instrumental e vocal, drama cantado, drama recitado e árias
sobre a glória de armas portuguesas. Nos intervalos de música havia danças
e farsas de homens brancos. [...] Ano de 1810 - Núpcias dos espanhóis D.
Maria Tereza Michaela com o Senhor Infante D. Pedro. No dia 29 houve
música do regimento com toques de caixa, orquestras e música vocal e
instrumental. [...] 24 de julho de 1817 - Aniversário de El-Rei D. João VI.
Na praça, em frente ao palácio foi arranjado um teatro e nas balaustradas se
alojavam coros de música instrumental e vocal. [...] (RODRIGUES, 2000, p.
38-41).
Não temos a pretensão de dar o registro de todas as óperas apresentadas em solo mato-
grossense. No entanto, pelo conteúdo dos apontamentos mencionados acima, podemos
verificar que a ópera foi o mais representativo processo de realização da música de concerto
nos dois primeiros séculos de Mato Grosso.
A ópera não era um somente um dos meios de entretenimento da população local mas,
como já dissemos, fazia parte de um projeto político de dominação bem como uma das
estratégias para fixação do homem na terra e proteger a fronteira. A grande quantidade de
apresentações de óperas em Mato Grosso chegou a ser notada nos mais importantes centros da
época que reivindicavam a mesma atenção e protestavam por uma rotina cultural, se não
igual, pelo menos parecida com a que por aqui se realizava.
Se, em Cuiabá, no coração de Mato Grosso, houve atividade musical séria,
desde 1729 e, se em agosto de 1780, ali se representou Ézio em Roma, de
Pórpora, temos o direito de acreditar numa vida musical, pelo menos
igualmente importante, num centro mais perto da capital (RJ) e de maiores
recursos econômicos (LANGE apud RODRIGUES, 2000, p. 45).
48
Tendo passado o período áureo da extração do ouro os historiadores locais registram
um período de marasmo econômico por toda região, pois o esgotamento do ouro, o
distanciamento geográfico, além das dificuldades de acesso de Cuiabá com o restante dos
centros econômicos, determinaram um período de estagnação do crescimento desta região que
perdurou até a primeira metade do século XX.
“É preciso saber que nós mato-grossenses vivemos isolados do mundo por mais de
200 anos e Cuiabá só não acabou pela fibra de seus filhos. A verdade é que o cuiabano
sobreviveu de teimoso que é” (MENDONÇA apud DORILEO, 2005, p. 366).
Contudo esta fase apática da economia mato-grossense não comprometeu a realização
das atividades artísticas que faziam parte dos vários festejos promovidos nestas paragens.
Aliás, foi em tempo de crise que mais ocorreram estas festas: aproximadamente 30 anos, entre
1760 e 1790. Lott (1986, p. 45) informa que no ano de 1790 houve apresentações de 13 peças
teatrais e uma ópera em somente dois meses, agosto e setembro. São muitas atividades
culturais, se considerarmos que foram realizadas por uma pequena e remota comunidade dos
mais importantes centros do país, formada por uma parca população que era, na maioria,
composta por mineradores.
A ópera foi o mais importante gênero musical ocorrido nos dois primeiros séculos da
história de Mato Grosso.
4.2 A Segunda Fase
As dificuldades vividas pelos cuiabanos no início do século XX para se integrarem ao
país e obterem as facilidades oferecidas pelos grandes centros chegaram a ser consideradas
pelo historiador Rubens de Mendonça como um sacrifício, algo que consumia grandes
esforços. Nada parecido com as facilidades da vida cotidiana do cuiabano da Cuiabá
contemporânea. Este escritor relata que:
O sacrifício do cuiabano não era apenas pelo rio Cuiabá, o sacrifício maior
era quando antes do advento da estrada de ferro Itapurá-Corumbá, hoje
Noroeste do Brasil, para chegar a São Paulo ou ao Rio de Janeiro o mato-
grossense tinha que atravessar três países estrangeiros: Paraguai, Argentina e
Uruguai (MENDONÇA apud DORILEO, 2005, p. 366).
49
Por outro lado existia na cidade uma vida musical ativa, onde eram produzidas várias
vertentes, tais como a música regional dos ribeirinhos, que serviam aos festejos tradicionais
bem como as retretas realizadas nos coretos das praças pelas bandas locais. Além da
existência de uma movimentação musical camerística com forte ligação com a literatura. Esta
última foi a forma de música de concerto que mais se adequou à Cuiabá do início do século
XX.
Mas, a arte musical é que se tornou motivo de maior gosto e interesse dos
mato-grossenses, em particular dos cuiabanos. Vivendo isolada por muito
tempo, os seus habitantes encontraram na música uma forma de
entretenimento e o meio mais representativo de desenvolvimento da cultura
regional (VICTORINO apud SANTOS FILHO, 1996, p. 14).
Deste modo a música de concerto era realizada pela elite local, principalmente pelas
pianistas da cidade que também se dedicavam ao ensino da música. As apresentações eram
organizadas em locais fechados e muitas vezes fazendo parte de programações de atos
solenes.
O isolamento25
da Cuiabá do início do século XX, denunciado por Rubens de
Mendonça, não desfavoreceu a vida musical da cidade que aliás, dela se valia como uma das
opções de entretenimento.
O historiador Virgilio Corrêa Filho informou em seus escritos de 1920 a existência de
uma expressiva quantidade de músicos na capital. Deste modo, relatando “estar generalizado
o estudo de piano, e de outros instrumentos e ser elevado o número de musicistas” (CORREA
FILHO, 1920, p. 91). Ele deixa registrado também a existência de bandas de músicas no
início do século e devemos levar em consideração que bandas de música são corpos musicais
que exigem uma quantidade maior de músicos.
“A preferência por aquelas expressões musicais tanto se revela nas cidades e vilas, em
que geralmente não falta a banda de música, mais ou menos servida de artistas espontâneos”
(CORRÊA FILHO, 1920, p. 91).
Mas o principal veículo da música de concerto da primeira metade do século XX foi o
sarau, que era comumente denominado de sarau lítero-musical, por exatamente dividirem as
programações com recitações de poemas.
25
O termo isolamento usado para qualificar Mato Grosso entre o século XIX e a primeira metade do século XX,
é um postulado comungado por vários historiadores mato-grossenses, entre eles Rubens de Mendonça. O
isolamento denunciado era também um ponto de vista a partir dos grandes eixos do país, o que de fato existia
eram dificuldades de acesso, estagnação econômica e de crescimento.
50
Os saraus eram realizados por ocasião de festividades ou solenidades da cidade e
aconteciam nos casarões das famílias cuiabanas, nos clubes, agremiações, institutos, na
Academia Mato-Grossense de Letras e no Salão Nobre do Palácio da Instrução.
A produção musical de caráter erudito ficou por conta de grupos de pessoas
que se reuniam para audições de piano nos saraus [...] O sarau foi uma
maneira de produção musical que se adaptou muito bem em Cuiabá, tanto ao
gosto dos cuiabanos, como pelo fato de favorecer uma maior liberdade na
formação dos grupos, pois, um sarau é basicamente camerístico (SANTOS
FILHO, 1996, p. 14).
Dorileo deixou registrado em seu livro Egéria Cuiabana o programa de um sarau
lítero-musical que se realizou no dia 21 de maio de 1927 no Centro de Letras, para
homenagear a eleição do arcebispo cuiabano Francisco de Aquino Correa, em sua posse em
uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Constam no programa as seguintes músicas e
poemas:
I - Fantasia F. Schubert, op 15 - pela senhorinha Elza de Figueiredo
II- Offerecimento da festa - pelo Presidente do Centro,
III- Le Carnaval de Pesth, 9ª Rhapsodie de Lizt - pela Senhorinha
Anathalinha Beltrão,
IV - Mocidade, poesia do homenageado - pela Senhorinha Dinah Ponce de
Arruda,
V - El canto del prisionero, melodia argentina - pela Senhorinha Alba Novis
VI - Ave Maria, poesia do homenageado pela Senhorinha Graziela Maciel,
VII – Rhapisodie n. 6 de Franz Lizt – pela Senhorinha Guilhermina de
Figueiredo
VIII – A Capital Verde, poesia do homenageado – pela Senhorinha Maria
José Pereira Leite,
IX – L‟Orange, . Wroblewski – pela Senhorinha Maria de Lourdes de
Oliveira,
X – A Bandeira do Brasil, poesia do homenageado – pela Senhorinha
Guilhermina de Figueiredo
XI – A Sertaneja, de B. Itiberê – pela Senhorinha Elza Duarte Monteito
XII – A Cuiabá, poesia do homenageado – pela Senhorinha Carolina de
Souza
XIII – Minha Mãe, poesia do homenageado – pela Senhorinha Alayde de
Figueiredo,
XIV – Fantasia „in re minore‟ de Mario Vitali – pela Senhorinha Irene
Arruda,
XV – A Flor de Aguapé, poesia do homenageado – pela Senhorinha Lilia
Póvoas,
XVI – Ninho de Flor, poesia do homenageado – pela Senhorinha Alayde de
oliveira,
XVII – Tristesse Mezzacapo, violino e piano – pelas Senhorinhas Cesarina e
Célia de Mattos
XVIII – Palavras do homenageado (DORILEO, 1976, p. 98-99).
51
Por uma sucinta análise do programa acima transcrito podemos deduzir que aponta
para a maciça presença feminina na organização dos saraus lítero-musicais, além de
demonstrar o envolvimento de parte da elite cuiabana, como pode ser observado pelos
sobrenomes das participantes que são facilmente reconhecidos pela população local.
Outro aspecto observável no programa acima é a escolha do repertório musical
apresentado. Ele consistia basicamente da música tonal européia do século XVIII.
Dentre as pessoas que se mobilizavam na organização dos saraus lítero-musical da
primeira metade do século XX podemos mencionar a compositora e pianista cuiabana
Zulmira Canavarros que foi uma das mais importantes motivadoras desta modalidade musical,
além dos músicos Honório Simaringo e Nilson Constantino, as pianistas Dunga Rodrigues e
Maria Ambrosio Pommot, assim como membros da Academia Mato-grossense de Letras.
Os idealizadores dos saraus foram responsáveis pela criação, no ano de 1947, de um
movimento cultural denominado “Centro Artístico e Musical de Cuiabá” (DORILEO, 1976,
p. 83). O movimento, em sua essência, tinha a intenção de fomentar as várias manifestações
artísticas da cidade e promover o ensino de música. Constituía-se como uma das primeiras
tentativas de se instituir a instrução musical e garantir para a sociedade os recursos humanos
que ela demandava.
Contudo, pela ata de fundação do Centro, podemos perceber que não foi mencionado
absolutamente nada que se relacionasse com a música de concerto do século XX.
Diferentemente do que aconteceu com a literatura, pois na primeira metade do século os
poetas Silva Freire, Dias Pino e Manoel de Barros já possuíam em seus currículos uma vasta
produção literária de vanguarda.
A ata de fundação do Centro Artístico Musical de Cuiabá foi assinada por uma
diretoria composta por 11 pessoas além de 49 membros fundadores. Consta como objetivos:
Incentivar o Culto das artes em suas diversas modalidades, especialmente a
música, organizando o seu ensino à mocidade e coordenando a sua atividade
entre os estudiosos e diletantes dos seus múltiplos ramos. Destinado, ainda, a
organizar conjuntos musicais, clássicos e regionais, a revivescência da
música tipicamente cuiabana e entre suas finalidades futuras, a fundação de
uma escola de música e o canto, passo inicial para o futuro Conservatório e o
amparo aos músicos pobres‟ (DORILEO, 1976, p. 84).
Percebemos também que o conteúdo da ata de fundação demonstra claramente a
intenção de garantir a realização da música de concerto, pois o termo clássico é comumente
utilizado como uma designação genérica estilística para se referir à música de concerto. Por
outro lado os saraus lítero-musicais e os movimentos em torno da música em Cuiabá atestam
52
para a defasagem da música com seu tempo, se comparada com a produção literária mato-
grossense.
No ano de 2007 a Coordenação de Cultura da UFMT recebeu da família da pianista
Maria Ambrósio Pommot (Cáceres, 1908 – Cuiabá, 1991), esposa do violinista francês
Georges Pommot (Ville D‟Autun, 1887 – Cuiabá, 1983), todo o acervo particular de
partituras.
O casal Pommot, principalmente Maria Ambrósio, além do ensino da música, tinha
íntima ligação com os saraus lítero-musicais e, conseqüentemente, com a música de concerto
na capital mato-grossense. Em análise das obras contidas no acervo, verifica-se a tendência da
prática da música européia tonal.
Dona Marly Pommot acaba de doar um precioso tesouro a Universidade
Federal de Mato Grosso. Trata-se do acervo total de partituras didáticas e de
concerto para violino e piano que pertenceu ao casal. Ela explicou que o
material, já devidamente catalogado, se encontra na operosa Coordenação de
Cultura e deverá ser disponibilizado para consulta pública na Biblioteca
Central da UFMT, dentro em breve [...] A julgar por minha análise
preliminar do catálogo, são obras de compositores tradicionais europeus e
brasileiros com relevante grau de dificuldade técnica, o que denota o nível
artístico do duo Pommot de piano e violino (ARRUDA, 2007).
O formato camerístico do sarau favoreceu a sua ampla disseminação pela capital mato-
grossense, pois a sua organização era facilitada por envolver poucos executantes, (como
observado no programa acima). O sarau também se adequava a qualquer ambiente, por não
necessitar de amplo espaço para sua realização; que na maioria das vezes acontecia nas
residências dos simpatizantes da música de concerto.
Deste modo o sarau musical pode ser considerado o mais expressivo representante da
música de concerto da primeira metade do século XX em Cuiabá e sinaliza ligação com os
futuros eventos da música de concerto em Mato Grosso. O professor Benedito Pedro Dorileo
(1934), idealizador da primeira orquestra sinfônica do Estado, possuía envolvimento pessoal e
profundo conhecimento dos saraus realizados em Cuiabá. Inclusive quando Dorileo ocupou o
cargo de vice-reitor da UFMT, viabilizou a contratação de Benedita Dechamps Rodrigues,
com a intenção que contribuísse com o processo musical da Universidade.
Antes, o vice-reitor propôs ao reitor a admissão de Benedita Dechamps
Rodrigues (Dunga Rodrigues), como agente didático, reconhecida pianista
que, no passado, conviveu com a musicista Zulmira D‟Andrade Canavarros,
a egéria cuiabana. Em 1980, pela portaria nº VR 08/80 [...] Esta pianista
passa a contribuir com a arte musical na Universidade, marcando sua
presença nos saraus freqüentes, como, por exemplo, no ano X da
Universidade [...] (DORILEO, 2005, p. 204).
53
4.3 A Terceira Fase
A população cuiabana da década de 70 testemunhou mudanças dos destinos do ensino
superior em Mato Grosso e, consequentemente, dos rumos da música de concerto, pois foi
exatamente no ano de 1970 que foi criada a Fundação Universidade Federal de Mato Grosso
(FUFMT).
Esta universidade deu início a suas atividades a partir do já existente Instituto de
Ciências e Letras de Cuiabá, que foi criado em 1952, mas que efetivamente principiou o
ensino no ano de 1966, em instalações provisórias nas dependências da escola Liceu
Cuiabano, que se situa na Rua Getúlio Vargas no centro da capital.
Antes, Cuiabá já possuía a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mato
Grosso, instituída no primeiro governo do médico cuiabano, Fernando
Corrêa da Costa, através da lei nº. 235, de dois de outubro de 1952, porém o
funcionamento insipiente deu-se em 1966, 14 anos depois, em instalações
cedidas pelo Colégio Estadual de Mato Grosso (Liceu Cuiabano). Foi seu
primeiro diretor, Nilo Póvoas (DORILEO, 2005, p. 39).
O então presidente do Instituto - Benedito Pedro Dorileo foi fundamental para o
processo de criação da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso; inclusive,
participando não somente da concepção da Universidade como também tomou parte da sua
administração.
“Todos nós sabemos que o professor Dorileo foi o braço e o cérebro da Universidade
Federal de Mato Grosso, desde a sua instalação. Homem de rara capacidade de trabalho, dá
tudo de si para a Universidade” (MENDONÇA apud DORILEO, 2005, p. 363).
Assim sendo, o anúncio da criação da Universidade Federal de Mato Grosso se deu em
uma cerimônia realizada com o propósito de despedida do Instituto de Ciências e Letras de
Cuiabá, que definitivamente encerrava as suas atividades do ensino superior na capital mato-
grossense, e foi o próprio professor Benedito Pedro Dorileo quem se encarregou de transmitir
a notícia.
Em 30 de dezembro de 1971, como presidente do ICLC, dei por encerrada as
suas atividades e, por conseqüência, as do conselho administrativo, então
absorvido pela lei que criou a Universidade Federal. [...] Nessa sessão de
encerramento e despedida, dei conhecimento haver redigido o documento de
Escritura de Constituição da Fundação Universidade Federal de Mato
Grosso, com base na lei de sua criação, nº 5.647 de 10 de dezembro de 1970,
lavrada no dia 27 de dezembro de 1971, no Cartório do 1º Ofício de Cuiabá,
54
assumindo a pessoa jurídica, com fundamento, ainda no Código Civil.
Nascia, existia de direito e de fato a FUFMT (DORILEO, 2005, p. 49-59).
As instalações da Universidade Federal foram edificadas em uma área na região do
bairro do Coxipó com endereço na avenida que atualmente leva o nome do criador do antigo
Instituto de Ciências e Letras de Cuiabá, o governador Fernando Corrêa da Costa.
Inicialmente composta de três blocos (A, B, C), Instituto de Ciências e Letras de
Cuiabá (mesmo nome do antigo instituto mantido pelo governo estadual) e um parque
aquático. No ano seguinte iniciam-se a construção do bloco de Tecnologia. O campus
universitário foi inaugurado em 12 de março de 1971.
Começam as atividades acadêmicas da Fundação Universidade Federal de Mato
Grosso tendo o médico Gabriel Novis Neves como seu primeiro reitor e Benedito Pedro
Dorileo no cargo de vice-reitor.
No quarto ano de existência por iniciativa da vice-reitoria principiam estudos para a
criação da Banda Sinfônica da FUFMT, nos idos do ano de 1974. Três anos após a
inauguração do recém criado campus universitário. Para tal foi criada uma comissão que se
encarregou de planejar e instituir a Banda Sinfônica e, dentre as pessoas escolhidas para
compor a comissão se encontrava o primeiro maestro Konrad Wimmer, e o primeiro
administrador da orquestra, Domingos Vieira de Assunção.
Em 24 de abril de 1974, na recém-criada Unisselva26
, afluíram as primeiras
idéias benfazejas no que se refere à música propriamente dita, quando por
força da portaria nº VRAc 014/74, assinada pelo então vice-reitor acadêmico
Benedito Pedro Dorileo, foram designados os professores Luiz Carlos Lopes
Manhães, Konrad Wimmer, Donato Fortunato Ojeda e Domingos Vieira de
Assunção para, em comissão, oferecerem subsídios para a organização da
Banda Sinfônica Universitária (ASSUNÇÃO apud DORILEO, 2005, p.
357).
No mesmo ano, em 1974 a banda inicia suas atividades. Foram adquiridos pela
Universidade os primeiros instrumentos. Inicialmente 17, e com a aquisição começaram os
primeiros ensaios.
A proposta era que a banda fosse agregada por alunos, professores e servidores da
UFMT, bem como pessoas da comunidade local e músicos profissionais. Estes últimos teriam
também a atribuição de ensinar música.
26
Unisselva, Universidade da Selva, nome fantasia utilizado para designar a Fundação Universidade Federal de
Mato Grosso (FUFMT) até a década de 80, mas que está em desuso. Atualmente até a abreviatura oficial tem
suprimido Fundação de seu nome, de modo que não é mais figurado a abreviatura FUFMT em documentos e
logomarca da instituição, sendo substituída pela abreviatura UFMT, que persiste mesmo a universidade sendo
ainda uma fundação.
55
Sendo a universidade uma instituição de ensino superior e extensão universitária foi
oferecida via extensão, cursos de música para a comunidade cuiabana onde a banda
funcionaria como um laboratório de prática em conjunto. Deste modo a banda foi composta
em sua maioria por pessoas leigas em música. Entretanto, com o propósito de capacitar os
futuros músicos que comporiam suas estantes.
Finalmente, em 1º de julho de 1975, foi oficializada a existência da Banda Sinfônica
Universitária por meio da portaria GR-523/75, inclusive com regulamento próprio. As
apresentações da banda se realizaram dentro e fora do campus universitário e o repertório era
formado por músicas especificas para bandas, tais como músicas marciais e dobrados.
A música de concerto propriamente dita começou a ser apresentada em público dois
anos mais tarde; mais precisamente em 1977, ano em que as atividades da banda foram
intensas, se considerado o pouco tempo de sua existência.
Em 1977, deu-se ênfase a músicas de Orquestra, arranjadas para Banda
Sinfônica. Foram apresentadas, a exemplo, a Abertura da Ópera Carmem, a
Cavalaria Ligeira, o Hino e Marcha Triunfal da Ópera Aída e outras mais.
Executou-se, ainda, neste ano, o primeiro Concerto de Câmara. Foi profícuo
o trabalho, tendo a Banda Sinfônica se apresentado 63 vezes até esse ano
(ASSUNÇÃO apud DORILEO, 2005, p. 358).
A partir de 1978 a Banda possuía um repertório com maior diversidade e composto
por “músicas de Bandas, de Câmara e Sinfônicas” (ASSUNÇÃO apud DORILEO, 2005, p.
359). Daí por diante o repertório do grupo foi direcionado exclusivamente para a música de
concerto que era mais compatível com a proposta inicial da universidade e também com os
objetivos do maestro que teve a sua formação musical na Europa. Konrad Wimmer (1933-
2004) era um cidadão alemão casado com uma brasileira e com ela constituindo família
composta por três filhos e uma filha.
A música de concerto fica deste modo aos cuidados da Fundação Universidade Federal
de Mato Grosso, que por ser uma instituição pública, pôde arcar com os custos financeiros
para a manutenção da Banda Sinfônica, que possuía um corpo de músicos estáveis e
assalariados para este fim.
Nesta condição a Universidade fez a diferença, porque nos períodos anteriores a
música de concerto era realizada por músicos voluntários que a apresentavam por seus
próprios meios, sem com isso receber o pro labore. Portanto não possuindo uma agenda
obrigatória de compromissos.
O concerto sinfônico, fator importantíssimo no desenvolvimento cultural da
capital e região, teve ótima aceitação por parte do público [...] executando
56
música erudita, ela apresentava do mesmo modo importantes obras dos
grandes mestres da música universal, de todas as épocas e nacionalidades.
[...] Entre as obras de destaque, citam-se: o 1º Movimento da Sinfonia nº 40,
de Mozart, a Dança Húngara de Brahms, Poeta e Camponês, de Suppé,
Vozes da Primavera, de Strauss, Hino e Marcha Triunfal da Ópera Aída, de
Verdi, Marcha Turca, de Mozart, Fogos de Artifício, de Haendel, Hino a
Diana, de Gluck e o Barbeiro de Sevilha, de Rossini (ASSUNÇÃO apud
DORILEO, 2005, p. 359).
Mas os dias da Banda Sinfônica Universitária estavam contados e a sua existência
descartada após um pronunciamento do MEC, orientando que “banda de música no interior é
com a Prefeitura” (DORILEO, 2005, p. 187). Por isso a partir da banda sinfônica iniciam
estudos para sua transformação em orquestra sinfônica. Esse processo culmina dia 21 de
setembro de 1979, com a publicação pela reitoria da UFMT da resolução CD 57/79, que cria a
Orquestra Sinfônica Universitária.
Nesse afã, celebrávamos o Dia da Árvore, sendo propício o dia 21 de
setembro de 1979 para criar a Orquestra Sinfônica Universitária, com
organização progressiva. Consegui consubstanciar, com assessoria, a
redação da resolução nº CD 57/79, que promoveu a Banda Sinfônica. Como
reitor substituto, admiti Konrad Wimmer para o cargo de maestro, e
Domingos Vieira de Assunção para o de Intendente Administrativo
(DORILEO, 2005, p. 191).
O estabelecimento da orquestra não foi imediato. Além da aquisição de novos
instrumentos, o princípio educativo também foi aplicado. Pois a orquestra deveria ser
praticamente uma orquestra escola, oferecendo à comunidade universitária e cuiabana o
ensino gratuito de música.
Primeiramente os músicos da banda foram remanejados para outros instrumentos,
além da ampliação do quadro funcional com contratação de músicos para compor novos
naipes, tais como o das cordas.
Os trabalhos para a reestruturação do novo corpo artístico começaram pela
compra de instrumentos próprios para orquestra. Os instrumentos adquiridos
foram fagotes, oboés, flauta, trompas e os instrumentos da família das
cordas, violinos, violas violoncelos e contrabaixos. Os músicos da banda
foram remanejados para tocarem outros instrumentos, de acordo com o
interesse de cada um, e a necessidade da orquestra (SANTOS FILHO, 1996,
p. 28).
Os músicos de cordas contratados acumularam a função de professores de seus
instrumentos. Então para compor o naipe das cordas foi inicialmente feito contato com um
quarteto de cordas de Campo Grande (MS). O grupo era integrado pelos violinistas Cezar
Cruz Wulhyneck e Frederico Jansen, o violista José Lourenço Parreira e o violoncelista
57
Conrado Corrêa Ribeiro. Além do quarteto a pianista Cássia Virgínia Coelho de Souza,
também de Campo Grande.
Desse grupo somente o 2º violinista Frederico Jansen recusou-se a estabelecer
residência em Cuiabá. Então o ensino dos instrumentos de cordas ficou ao encargo dos
componentes que aceitaram a proposta da universidade. Coube a pianista o ensino de teoria
musical.
No ano de 1982 foi contratada pela orquestra a violinista Hella Gilda Wall Epp, que
passou a integrar o quarteto como segundo violinista e também ofereceu aulas de violino.
Deste modo a orquestra pôde aumentar a oferta do ensino deste instrumento.
Os músicos do novo quarteto de cordas acumulavam à função de docência e ensaios
para realização de concertos camerísticos, além dos ensaios e concertos da orquestra.
“Finalmente, o Quarteto de Cordas da Universidade é uma realidade. Foi quase um
ano de ensaios. Trabalho sério e belo. Cézar, Gilda, Parreira e Conrado ensaiavam todos os
dias na casa de Gilda” (DORILEO, 2005, p. 339).
As aulas eram ministradas nas instalações da orquestra que funcionava no Parque
Aquático da UFMT, antigo Restaurante Universitário. Para realização das aulas foi criada a
Escola de Cordas que passou a funcionar como um laboratório para o futuro curso de música
da universidade.
Surge a escola de cordas, com 22 instrumentos de cordas distribuídos entre
violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, contando com o magistério do
violinista Cézar Cruz Wulhyneck e do violoncelista Conrado Corrêa Ribeiro
e prática instrumental de conjunto com Konrad Wimmer (DORILEO, 2005,
p. 193).
A ideia inicial da criação da Orquestra não era somente de propiciar para a cidade uma
agenda cultural, mas também de oferecer subsídios para formação de novos músicos,
abastecendo deste modo a comunidade com o profissional habilitado para exercer a sua
atividade musical, tanto para a própria orquestra como para qualquer outra formação musical
da cidade. Além de proporcionar uma maior proximidade entre a instituição e a comunidade
em geral. A orquestra seria uma ponte entre a comunidade local e a instituição universitária.
Para desenvolver este trabalho o maestro Konrad Wimmer tinha o perfil ideal, pois
possuía muita experiência no ensino da música.
Wimmer acumulou sua prática do ensino musical durante os anos que atuou como
sacerdote salesiano e ministrava aulas aos alunos do Patronato Salesiano Padre Calletti (entre
outras instituições de ensino). Com a sua transferência para a UFMT, trouxe consigo a
58
experiência na docência musical. Na orquestra, exerceu a função de maestro, arranjador,
professor de teoria e harmonia musical e até mesmo o ensino de violino antes da chegada dos
músicos do quarteto27
.
Em torno da orquestra orbitavam ideias da criação definitiva de uma escola de música
do nível médio ao superior por um trabalho em conjunto com o governo do estado. Este
proporcionaria o ensino médio e a UFMT o ensino superior.
Os profissionais que atuariam desde a etapa da organização, coordenação e execução
do curso eram provenientes da UFMT e consequentemente, da orquestra.
A orquestra ofertaria seus músicos para o ensino dos instrumentos, os servidores para
a administração, inclusive o maestro. As aulas seriam oferecidas na rede pública de ensino,
nas dependências das escolas estaduais.
Célere, o vice reitor Dorileo, em 1981, ativou os contatos e foi elegida(SIC),
junto a Secretaria de Estado de Educação a Escola Estadual Presidente
Médici O projeto estabeleceu 40 vagas, com duração de 2.988 horas, a serem
integralizadas no mínimo em quatro anos. [...] O corpo docente já estava
previsto com: José Lourenço Parreira, profissional de alto nível do Exército
Brasileiro, do Forte Coimbra, vindo à disposição para compor a Orquestra
Sinfônica; Domingos Vieira de Assunção, Intendente Administrativo da
OSU, apontado para coordenador; Konrad Wimmer, maestro [...] Cezar Cruz
Wulhynek, violinista da OSU. E ainda: Hella Gilda Wall Epp, Cássia
Virgínia Coelho de Souza, [...] Décio Gioielli, Luiz Roberto Peres, Lisboa
Batista, Patrícia Vitória Penha e Deizia Santos Barros (DORILEO, 2005, p.
197-198).
Naquela ocasião foi publicada a “portaria do vice-reitor nº GR 233/81, de 18 de
setembro de 1981” (DORILEO, 2005, p. 199), que designava a professora Laura Maria
Furtado que deveria coordenar a organização curricular do curso. Entretanto o projeto foi
interrompido por força do decreto nº 84.817 de 18 de junho de 1980 (DORILEO, 2005, p.
199) que em seu teor proibia contratação de pessoal, somente admitindo por uma
excepcionalidade. Esta Lei tinha efeito até 31 de Dezembro de 1981, mas antes mesmo de
expirar o prazo foi lançado o decreto nº 86.795, de 28 de dezembro de 1981 (DORILEO,
2005, p. 199), que proibiu novas contratações sem prazo definido. O decreto previa
27
Sobre a experiência de Wimmer com a docência musical, Peter Büttner (ex-sacertote e ex-diretor pedagógico
de Wimmer) nos informou que o maestro era um “excelente professor de matemática e do ensino da música, e no
Seminário Arquidiocesano Cristo Rei, em 1967, foi Diretor de Estudos e maestro da banda. Também criou uma
banda no Colégio Salesiano de Araçatuba em1968, mas o trabalho que lhe deu maior visibilidade foi o que
realizou no Patronato Salesiano Padre Calletti, em Alto Araguaia. Nesta escola foi responsável pela criação de
uma banda sinfônica entre os anos de 1969-1972, e na UFMT foi coordenador do departamento de artes, o
primeiro regente do Coral Universitário, e também criou a banda que se transformou em orquestra” (Depoimento
coletado com Peter Büttner em sua residência no dia 09 de fevereiro de 2011).
59
contratação somente para excepcionalidades e para o governo federal da época, música não
era considerada uma excepcionalidade.
Os dois decretos põem um ponto final na pretensão de se estabelecer na capital mato-
grossense a oferta do ensino público e gratuito de música, fracassando novamente um ideal
que tinha dado seus primeiros sinais na década de 40.
Deste modo a orquestra continuou internamente a oferecer o ensino gratuito de música
para abastecer suas próprias estantes. Eram ministradas aulas de todos os instrumentos que
compõem a orquestra.
Neste período, a música de concerto foi oferecida para a comunidade cuiabana por
meio dos grupos de câmara compostos pelos músicos, professores, alunos da orquestra e
também pela orquestra completa, com apresentações no Teatro Universitário.
A música não ficou restrita ao Teatro. Havia ainda solicitações de apresentações tanto
por outros departamentos da instituição como externos, oportunidade em que eram levados
grupos pequenos, formados por naipes da própria orquestra.
Era muito comum a realização de concerto didático e, por seu intermédio, ministradas
informações sobre os compositores das músicas executadas, bem como a formação do grupo e
algumas curiosidades sobre os instrumentos musicais – muitos deles desconhecidos da
população local; os menos conhecidos eram oboés e fagotes.
O programa musical apresentado pela orquestra era basicamente composto por
músicas dos compositores dos séculos XVIII e XIX.
Sucederam-se os Concertos, com obras: Abertura da Ópera de Carmen, de
Bizet; a Suíte Quebra-Nozes, de Tchaikovsky; Conto dos Bosques de Viena,
de Strauss; Abertura da Ópera Don Giovanni, de Mozart; Abertura, do Padre
Maurício; Música Aquática, de Haendel; Minueto, de Mozart; Abertura
Prometheus, de Beethoven; Prelúdio do III Ato de Lohengrin, de Wagner;
Ifigênia em Áulis, de Glück; Final da 5ª Sinfonia de Beethoven e Ária e
Allegro, de Scarlatti (DORILEO, 2005, p. 191-192).
A gestão de Konrad Wimmer como maestro da Orquestra Sinfônica da UFMT
encerrou-se no dia 19 de agosto de 1986 e foi marcada principalmente pela criação e
estruturação da orquestra, assim como pelo ensino musical.
Para assumir temporariamente o seu cargo foi colocado o trompetista Francisco José
Penha até que se contratasse o maestro definitivo. Chico Penha, como era conhecido, era
também orquestrador e na ocasião fez várias adaptações para a Orquestra Sinfônica
Universitária, incluindo em seus arquivos o repertório da música popular brasileira e música
pop internacional.
60
Sua gestão teve duração de cinco meses, e trabalhou neste curto espaço de tempo a
música que tinha mais intimidade – Música Popular Brasileira (MPB). Chico Penha era um
conhecido músico da noite cuiabana e trouxe para a orquestra a sua experiência com a MPB.
Nestes meses não se realizaram concertos no Teatro Universitário. Os trabalhos da orquestra
foram direcionados ao atendimento interno, assim como as solicitações externas.
As apresentações eram na maioria das vezes realizadas por grupos de câmara que
tocavam em aberturas de solenidades, simpósios, congressos, inaugurações e posses.
A formação camerística facilitava o atendimento das solicitações por não exigir no
local do evento um amplo espaço, como é necessário para a orquestra; assim como o baixo
custo financeiro da atividade (resultado pela pequena circulação de servidores).
Além disso, um concerto realizado pela orquestra envolve complexa rede logística,
como transporte de materiais e instrumento, utilização de servidores braçais para carga e
descarga, serviços gráficos, pessoal do cerimonial, além de toda equipe do Teatro
Universitário que é composta por vários técnicos (som, iluminação, bilheteria, entre outros).
Se a apresentação acontecer fora do teatro, envolve uma logística mais cara, com contratação
de estrutura de palco, som e iluminação; além de prestação dos serviços habituais.
Na curta gestão de Francisco José Penha as atividades da escola de cordas
continuaram normalmente, com aulas regulares oferecidas pelos professores.
Em janeiro de 1987 Marcelo Bussiki assume a direção da orquestra - um jovem
maestro cuiabano de apenas 27 anos de idade; que tinha se ausentado de Cuiabá para obter
formação superior em regência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O novo regente imprimiu na orquestra um caráter mais performático, com programa
composto por músicas de maior complexidade técnica para os instrumentistas. Deste modo foi
necessária a qualificação dos músicos.
Foram viabilizados para os músicos, com recursos da UFMT, cursos nos festivais de
músicas que acontecem no verão e inverno, em cidades como Brasília (DF), Curitiba (PR),
Poços de Caldas (MG), Juiz de Fora (MG). Além destes cursos a orquestra passou a receber
músicos de outros Estados para ministrar aulas nas dependências da orquestra. E além do
ensino, deveriam também completar as estantes da orquestra nos concertos.
Para atender as necessidades técnicas da orquestra ficou muito comum a vinda para
Cuiabá do Quarteto de Brasília, grupo formado por músicos professores da Universidade de
Brasília (UNB), com experiência no ensino de seus instrumentos28
.
28
Ver Anexo L, p. 259, matéria jornalística com os nomes e um breve currículo dos integrantes do Quarteto de
Cordas de Brasília.
61
Marcelo Bussiki inicia na Orquestra Sinfônica Universitária a rotina de contar nos
concertos com a participação de solistas provenientes dos grandes centros do país,
principalmente do Rio de Janeiro. Ele inaugura este tipo de parceria: orquestra dividindo o
palco com os solistas que exibiam técnica e virtuosismo musical29
.
O primeiro solista foi o pianista Nelson Freire, em um concerto realizado no dia 10 de
dezembro de 1986 no Teatro Universitário, juntamente com o Coral Universitário30
. Neste
concerto, Marcelo Bussiki era maestro convidado, com tudo acertado para assumir a direção
da orquestra para o ano de 1987.
A partir de sua administração ficou estabelecida a organização da agenda de
compromissos da orquestra por Temporadas de Concertos, realizando em Cuiabá concertos
com datas pré-definidas para todo o ano, independente de datas comemorativas, repetindo em
Cuiabá prática muito comum das grandes orquestras brasileiras.
O concerto de encerramento de Temporada era sempre no dia 10 de dezembro, em
comemoração ao aniversário da Universidade. E deveria portanto, ser o mais suntuoso, com a
participação do Coral Universitário.
Na temporada do ano de 1987 (em maio) foi convidado o pianista Luiz Medalha. No
programa da noite constava o Concerto para Violão e Orquestra em Ré Maior de Antônio
Vivaldi, com solo de Euclides Ferreira da Silva Filho que também era um componente da
orquestra como violoncelista; e na sequência, Concerto para Piano e Orquestra em Fá
Menor, BWV 1056, de Johann Sebastian Bach, executado pelo pianista convidado.
Na segunda parte, Elegia, de autoria de Genaro Marsiglia (1924-), compositor mato-
grossense da cidade de Miranda (MS); a Suíte Vila Rica, do compositor paulista, Camargo
Guarnieri (1907-1993), nascido em Tietê (SP). O concerto foi encerrado com a música
Batuque do compositor carioca Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948).
No dia 05 de Julho de 1987, no Teatro Universitário, concerto com o Coral
Universitário e Turíbio Santos, como solista convidado. No programa31
da noite as seguintes
obras: A.Vivaldi – Glória – Solistas – Nair Gama Ferreira Lopes (I Soprano), Noeme Busto
Gama (II Soprano), Elizabeth Gama Simões (Contralto), Contínuo - Cássia Virgínia C. de
Souza. II Parte – R. Klatovsky – Dança Nº 1 da Ópera „A Viúva de Valência‟, H. Villa-Lobos
– Concerto para Violão e Pequena Orquestra, Solista, Turíbio Santos, G. Peixoto – Maracatú,
Solista – Dalva Lúcia Duarte (Piano).
29
Ver Anexos: D-L, p. 218-259, matéria jornalística e programas de Concerto. 30
Ver Anexo D, p. 218, o programa do dia 10/12/1986 em comemoração ao aniversário da UFMT e tendo como
atração principal o pianista Nelson Freire. 31
Ver Anexo F, p. 226, o programa do concerto.
62
No dia 04 de setembro de 1987 o solista convidado foi o violoncelista Claudio Jaffé.
No programa da noite executou o Concerto para Violoncelo e Orquestra em Lá Menor, Opus
33, de Camile Saint-Saëns.
Todos os solistas convidados pela orquestra eram conhecidos no meio musical. A
gestão do maestro Marcelo Bussiki também foi marcada pela interação da Orquestra
Sinfônica Universitária com o restante do país, pelo fato de ele ter trazido para as suas
estantes músicos provenientes de outros Estados. Era uma prática necessária porque a
orquestra não tinha em seu quadro a quantidade de músicos que o repertório exigia. Além
disso os músicos convidados davam reforço técnico. Há que se considerar que a Orquestra
Sinfônica Universitária era em sua base formada por instrumentistas aprendizes. Deste modo
completaram as estantes da orquestra durantes os próximos programas da orquestra músicos
provenientes de Brasília, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
A orquestra passa a ser conhecida nacionalmente e causa interesses de músicos solistas
e maestros em participar de suas temporadas, para a qual enviavam propostas e currículos.
Normalmente eram profissionais com carreira e premiações internacionais. Dentre estes
músicos podemos citar a violinista Elisa Y. Fukuda, o clarinetista José Botelho, o maestro
Fabio Neri, entre outros32
.
Em relação à música vocal, além dos rotineiros concertos com o coral universitário, a
orquestra também realizou apresentações com cantores líricos conhecidos. Dentre eles
podemos mencionar Inácio de Nonno, Fernando Portari, Ruth Staerk, Siléa Stopatto e
Francisco Nery.
Em 10 de dezembro de 1991 foi organizado o espetáculo Mozart 3133
com texto e
direção de Orlando Codá. Este concerto basicamente representava as árias mais conhecidas da
ópera Don Giovanni de Mozart. Orquestra no fosso, cantores no palco e cenário preparado
especialmente para o espetáculo. Foi a primeira representação em Cuiabá de uma ópera em
um teatro com todas as instalações apropriadas para esta modalidade de espetáculo.
O Jornal Diário de Cuiabá trazia em sua página cultural a notícia com o seguinte
subtítulo: “Depois de mais de um século sem espetáculos de ópera, Cuiabá revive o gênero
clássico com uma peça em homenagem ao bicentenário de Mozart”34
.
32
Ver Anexo K, p.257-258, cartas dos músicos solistas que solicitam participação nos concertos da Orquestra
Sinfônica da UFMT. 33
O titulo do espetáculo Mozart 31 é uma alusão à ópera Don Giovanni composta por Mozart aos 31 anos de
idade. 34
Ver Anexo L, p. 259, matéria jornalística.
63
Neste mesmo ano (1991) Marcelo Bussiki encerra suas atividades, deixando a direção
da orquestra para realizar um mestrado em Houston, nos Estados Unidos da América.
Para assumir o seu lugar foi contratado o maestro Ricardo Wilson Rocha (1959), que
tinha acabado de concluir doutorado em regência de orquestra, na Escola Superior de Música
de Karlsruhe na Alemanha, onde estudou de 1988 a 1991.
Rocha estreou na Orquestra Sinfônica Universitária na Temporada de 1992, com um
concerto realizado no dia 29 de março e com um programa composto por obras de Rossini,
Mozart e Beethoven. Destacamos as seguintes palavras proferidas pelo maestro como
saudações ao público e músicos da orquestra:
Logo ao saber que vinha para Cuiabá passei a ler tudo o que me era possível
sobre a cidade e seu estado: estatísticas, reportagens, verbetes
enciclopédicos, etc. [...]
Já informado do fato de que a Orquestra da Universidade é a única não só da
cidade mas também de todo o imenso estado mato-grossense, choquei-me
realmente ao saber que Cuiabá, capital, não tinha sequer uma escola de
música, uma instituição musical capaz de orientar e formar os talentos locais,
à exceção dos que têm no piano ou no violão a sua afinidade.
Pensei comigo: heróis mesmo, esses músicos da Orquestra!
Com a força de sua vocação conseguiram aprender e desenvolver-se
autodidaticamente nos instrumentos precários que tiveram acesso! [...]
A orquestra, por exemplo, ainda precisa ficar importando de vinte a vinte
cinco por cento de músicos para seus concertos, colocando „gatilhos‟ em
instrumentos que não tem mais reparo, assim como inventando outras saídas
para problemas práticos quando simples doação de um instrumento por
algum dos que cultivam gado ou a contratação de músicos-professores para a
fundação de uma escola de música pela instituição governamental
competente solucionariam, por si só, tais problemas. [...]
A Orquestra Sinfônica da UFMT, que ora assumo como regente titular,
espelha este Brasil macunaímico e contraditório, virtuoso, e pecador, rico e
revoltantemente pobre, mas ainda digno de amor e da confiança dos
brasileiros [...] (ROCHA, 1992).
O discurso de estreia de Ricardo Rocha é marcado por preocupações com o
encaminhamento que se dava para a música de concerto em Cuiabá, escancarando logo de
início a fragilidade do trabalho que vinha sendo empenhado; assim como dando possíveis
soluções para os problemas, tais como a criação de uma escola de música na cidade. Tal idéia
pareceu fazer parte de um coro unânime, que desde 1947 era idealizada uma escola pública
para o ensino da música em Cuiabá. Entretanto o tom de seu discurso foi a principal causa de
desentendimento entre ele e a administração superior da UFMT, o que acarretou seu
64
desligamento da instituição universitária em 01/10/1993, conforme informações da imprensa
local35
.
Dentre outras declarações, pronunciar que o público cuiabano não estava acostumado
a ouvir música erudita, pode levar ao entendimento de que o maestro Ricardo Wilson Rocha
ignorou a existência de uma plateia que frequentava assiduamente os concertos realizados
pelos maestros que o antecederam e que era o mesmo público que assistiria aos seus
concertos.
Pode ser entendida também como uma interpretação cultural equivocada, e isto
consequentemente gera conflitos, e foi o que ocorreu. Asseverar que o cuiabano não tinha o
hábito de consumir música erudita, pode ser entendido como falta de percepção de que na
década de 90 o processo de globalização estava em franco processo de expansão, e trazia em
seu bojo, facilidades ao acesso de informações. Além disso, apesar de Cuiabá possuir somente
uma orquestra sinfônica, haviam lojas especializadas em artigos musicais. Estas ofertavam
grande variedade de gravações em CDs e DVDs de músicas erudita executadas por orquestras
de diversos países - as mesmas gravações que circulavam na Europa e Estados Unidos.
Além da Orquestra Sinfônica da UFMT, e do comércio especializado em artigos
musicais, o acesso da música de concerto em Cuiabá era ofertado gratuitamente por meio das
emissoras de rádio e televisão da capital, assim como por intermédio da internet.
Existe em Cuiabá uma história devidamente registrada das atividades realizadas por
pianistas na cidade, bem como os saraus lítero-musicais que executavam a música erudita;
além dos trabalhos realizados pelo Coral Universitário e dos grupos de Câmara da cidade.
Posto isto, as declarações do maestro geraram confrontos, troca de acusações e o seu
desligamento da instituição universitária.
Contudo, se na área da política cultural o maestro não obteve grandes êxitos; no
campo musical ofereceu propostas que devem ser levadas em consideração. E em sua gestão
realizou uma programação musical que primava pela execução da Música Brasileira de
Concerto, assim como dando continuidade ao trabalho de qualificação dos músicos da
orquestra.
Deste modo, Ricardo Wilson Rocha traz para o seu concerto de estréia a fagotista
alemã Ariane Petri, para executar o Concerto para Fagote e Orquestra em Si bemol maior, do
compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, que oferece aulas aos fagotistas da
35
Ver Anexo L, p. 259.
65
orquestra, auxiliando-os com apoio técnico, apontando soluções para as dificuldades
existentes no repertório dos concertos de temporada.
Com relação aos instrumentistas de cordas, Ricardo continuou a trazer os do Quarteto
de Cordas de Brasília, que além de completar a orquestra, ministravam aulas de seus
instrumentos. As aulas eram ofertadas nos ensaios de naipes.
Os ensaios de naipes, ou seja, ensaios por grupos de instrumentos da mesma família,
como as cordas, compostas pelos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, passaram a ser
rotineiros. Neles eram dirimidas as dificuldades de passagens específicas do grupo, além das
marcações de arcadas.
A proposta de trabalho do maestro Ricardo Wilson Rocha incluía a realização de
concertos didáticos para o público em geral, preparando-os para os concertos do dia seguinte.
Nestes concertos didáticos o maestro realizava uma análise musical de uma das obras do
concerto, bem como comentários sobre o compositor e sobre a orquestra sinfônica.
Uma das propostas de Ricardo Wilson Rocha é realizar, um dia antes de
cada apresentação da orquestra, um concerto didático com entrada franca. O
maestro pondera que o público cuiabano ainda não tem o hábito de ouvir
música erudita. O concerto didático antes das apresentações será justamente
para tornar esta música conhecida (DIÁRIO DE CUIABÁ, 1992, p. 25).
Outra proposta do Maestro Ricardo Wilson Rocha era a de incluir, em todas as suas
programações, músicas de compositores brasileiros, ou seja, Música Brasileira de Concerto
(MBC). Ele alegava que os trabalhos dos compositores brasileiros não tinham a divulgação
que poderia ser dada. Informou que, mesmo existindo uma extensa produção musical, o
compositor da Música Brasileira de Concerto ainda era desconhecido da maioria da população
do Brasil, contrastando com a ampla atenção que é dada para a Música Popular Brasileira
(MPB).
A Orquestra Sinfônica da UFMT, conhecendo tal problemática de difusão e
acesso, assume, a partir deste concerto, o compromisso de destinar no
mínimo um terço de sua programação geral para obras da MBC,
programação que prevê inclusive a realização de dois concertos dedicados a
esta literatura, como os do dia sete de setembro, em homenagem à
brasilidade, e do dia primeiro de novembro, chamado de „Prata da Casa‟
porque dedicado aos músicos da Orquestra e da cidade de Cuiabá (ROCHA,
1992, p. 1).
Deste modo em seu segundo concerto de temporada, fez parte do programa a Sinfonia
Nº 5 de Franz Schubert, Rio São Francisco de João Guilherme Ripper e encerrando a
programação com a Abertura da ópera Os Mestres Cantores de Nuremberg de Wagner.
66
No concerto do dia 07 de setembro de 1992, com o título: “Grande Concerto em
Homenagem à Brasilidade”, continha na programação: a Abertura da Ópera O Guarani de
Antonio Carlos Gomes (1870), Roda de Amigos (1979), para quarteto de madeiras e orquestra
de câmara, do Compositor Cézar Guerra Peixe (1914-1993) – para esta música foi convidado
o Quarteto de Madeiras da Bahia formado pelo flautista Lucas Robatto, a oboísta Adriana
Diaz, o clarinetista Klaus Haefele e a fagotista Claudia Sales, todos os integrantes deste
quarteto eram chefes de naipes da Orquestra Sinfônica da Bahia – e, para encerrar o concerto,
foi tocada a música Bachianas Brasileiras nº 7 (1942), de Heitor Villa-Lobos (1887-1959).
O maestro Ricardo Rocha continuou o trabalho na orquestra conforme proposta
firmada com os músicos e o público, contemplando a Música Brasileira de Concerto e no dia
01 de novembro de 1992 apresentou o concerto “Prata da Casa”.
O concerto „Prata da Casa‟ é dedicado às nossas estrelas da dança e da
música de concerto, estrelas desta Universidade, da Cidade de Cuiabá – aqui
representada pelo Ballet Caroline – e do grande Mato Grosso – caso de
Genaro Marsiglia, único compositor sinfônico mato-grossense de que se tem
notícia [...] A reunião de tais artistas, que aqui vivem e trabalham, tem, entre
outras, a função de mostrar ao público que neste imenso oeste brasileiro
existe um pequenino reduto, um „posto avançado‟, uma espécie de „Missão‟
onde se pratica e, acreditem, se realiza música erudita (ROCHA, 1992).
Este concerto foi dividido em três partes intercalados com a realização de Música de
Câmara, Música Sinfônica, Coral e Ballet. Neste espetáculo a programação prestigiava
músicos de Cuiabá e compositores brasileiros. Também neste concerto o maestro protesta pela
existência de uma escola de música em Cuiabá e inicia o espetáculo com a composição
intitulada - Fantasia por uma Escola de Música, sendo ele mesmo quem executou ao piano.
Tratava-se de variações e improvisos sobre o Hino de Mato Grosso.
No programa foram apresentadas peças dos compositores brasileiros Ronaldo
Miranda, Prelúdio e Fuga (para quarteto de madeiras), Villa-Lobos, Choros nº 2 para flauta e
clarineta; Sérgio Vasconcelos Corrêa - Homenagem à Villa-Lobos, para piano e orquestra de
cordas; Guedes Peixoto, Maracatu, para orquestra e piano; Genaro Marsiglia, Suíte para
Orquestra; Antonio Vaz, O Veraniquatiá, para coro e de Ernest Mahle, A Arca de Noé,
também para coro.
Deste modo, a gestão de Ricardo Wilson Rocha frente à Orquestra Sinfônica
Universitária teve como foco principal a realização da Música Brasileira de Concerto, e como
pode ser verificado acima, oferecendo o repertório de compositores do século XX, entretanto,
sempre da vertente nacionalista. Prada nos informa que “nos anos 50, ligam-se também ao
Nacionalismo nomes como Edino Krieger, Ernest Mahle, Oswaldo Lacerda, Sérgio
67
Vasconcelos Corrêa, Marlos Nobre e Almeida Prado”. (PRADA, 2010, p. 28), entende-se por
nacionalistas, neste caso, os compositores brasileiros que fizeram parte do repertório da
Sinfônica da UFMT que optaram por compor música tonal, obedecendo praticamente às
regras da música do século XIX, com forte influência em Villa-Lobos e Camargo Guarnieri.
Para José Maria Neves, o Nacionalismo no Brasil se situou nos 30 primeiros
anos do século XX, dominado pela forte personalidade de Heitor Villa-
Lobos(1887 – 1959) e foi marcado pelos princípios estéticos das técnicas
composicionais herdadas do século XIX. Neves afirma: „o fenômeno
nacionalista é essencialmente populista, o que condiciona uma postura
criativa de aceitação e de Cultivo de uma Linguagem musical facilmente
compreensível pelo povo, em anacrônico prolongamento da tradição
romântica‟ (PRADA, 2010, p. 20).
Após verificação nos programas da orquestra da época não foi constatado nada que se
relacionasse com a música de vanguarda.
Na gestão de Ricardo Rocha ocorreu a mudança do nome da orquestra que
inicialmente era apresentada para o público como Orquestra Sinfônica Universitária.
Entretanto por entender que a orquestra não era composta por acadêmicos do curso de música
da UFMT, substituiu o nome para Orquestra Sinfônica da UFMT, nome que persiste até os
dias atuais.
Ricardo Wilson Rocha deixa a direção da orquestra no dia 01 de outubro de 1993. Sua
saída foi conturbada, motivada por desentendimentos com a sua chefia imediata, denúncias e
acusações. Temperos perfeitos para um romance da teledramaturgia com direito a manchetes
de jornais, envolvendo Orquestra Sinfônica da UFMT, Centro Acadêmico de Direito, Vice-
Reitoria, Coral Universitário e a Coordenação de Cultura da UFMT36
.
Fora da Orquestra Sinfônica da UFMT, Ricardo Wilson Rocha Cria a Orquestra
Filarmônica de Mato Grosso e o Madrigal Guia, para dar continuidade com o seu projeto de
Música Brasileira de Concerto, assim como da música sacra barroca. Por fim funda a
Sociedade Musical Bachiana Brasileira e por meio desta, captação de recursos pela Lei de
Incentivo à Cultura e a iniciativa privada, para realização dos concertos na capital. Cria a
partir de então o Coral da Sociedade Musical Bachiana Brasileira (Coral da SMBB).
A base da Orquestra Filarmônica de Mato Grosso foi formada com os músicos da
Orquestra Sinfônica da UFMT. Os músicos provenientes de outros Estados eram para
36
Ver Anexo L, p. 262-265, matéria jornalística com o título “O Estranho no Ninho”, que foi como o maestro
Ricardo Wilson Rocha se autodenominou ao se defender das acusações de preconceituoso.
68
completar os naipes. O caráter do repertório utilizado nos concertos destes grupos era o
mesmo do utilizado na Orquestra da UFMT.
O programa do Concerto de Encerramento da Temporada 1996 da Filarmônica
sintetiza bem o perfil do trabalho de Ricardo Wilson Rocha até então. A programação foi
executada pelo Coral SMBB, Coral da TELEMAT, Ensemble Vocal Bachiana Brasileira,
Orquestra Filarmônica de Mato Grosso. A programação foi dividida em duas partes: na
primeira, Glória, ré maior, RV 589 de Antônio Vivaldi (1678 – 1741) e na segunda,
Magnificat, ré maior (2ª versão 1730 BWV 243), de Johann Sebastian Bach (1685 – 1750).
Esta programação confirma a tendência dos maestros da Orquestra Sinfônica da UFMT em
realizar músicas do século XVIII e XIX, repertório este que teve vigência até o início da
década de 90 em Cuiabá.
4.4 A Quarta Fase
Esta fase da música de concerto é marcada pela produção da Música Contemporânea
Brasileira de Concerto, com raízes na música de vanguarda, com total rompimento com a
estética musical dos séculos XVIII, XIX e o seu sistema tonal.
E foi naquele clima tenso existente entre o maestro Ricardo Wilson Rocha e a direção
da UFMT que Roberto Victorio assumiu a da Orquestra da UFMT.
Vim em 1994 a convite da Coordenação de Cultura porque o regente que
estava aqui tinha saído, ele teve uma grande desavença, aí eles foram ao Rio
de Janeiro me convidar. Eu aceitei o convite [...]. Foram Marina Miller Porto
Carrero, que era coordenadora de Cultura na época e o ex-regente que estava
fora do Brasil, Marcelo Bussik (VICTORIO, 2010.).
A direção superior da Universidade Federal de Mato Grosso necessitava de um
maestro para ocupar o cargo da orquestra que se encontrava vago, e dar continuidade à agenda
cultural que se estabelecera entre a instituição e a comunidade cuiabana, produzindo a música
orquestral que a plateia estava acostumada a ouvir.
A procura por um maestro resultou na contratação de um compositor maestro. Aliás,
foi algo que aconteceu sem um plano previamente estabelecido, pois para a direção da UFMT,
um regente era suficiente para os trabalhos que estavam sendo desenvolvidos na orquestra.
69
Não se cogitou para Roberto Victorio, qualquer organização de núcleo de pesquisa
para a música contemporânea e suas vertentes, ou um trabalho exclusivo com a música de
vanguarda. Entretanto foi dada toda liberdade para o maestro desenvolver o trabalho que
melhor lhe conviesse e sobre isto Victorio (2010) relata em entrevista que:
[...] eles nunca imaginariam o que eu iria fazer (risos). Era para ter mais um
regente aqui. Na verdade, para ser curto e grosso, eles queriam mais um
regente que continuasse o trabalho que eles vinham fazendo, só que eu fiz
pela metade; vim para cá e fiz o que eu queria fazer [...] eles não sabiam nem
o que era música contemporânea, na verdade. Quando eu assisti ao concerto
em 1993, antes de vir para cá, percebi que estavam estagnados.
Deste modo, a produção da música contemporânea de concerto com raiz na vanguarda
em solo mato-grossense, aconteceu por acaso, pois ela só existia nos planos do compositor
Roberto Victorio; ele entendeu que era um trabalho factível em Cuiabá que oferecia campo
propício. Desta forma, em seu concerto de estreia ele principia o programa37
proferindo as
seguintes palavras:
Apesar de já estarmos no limiar do próximo século, as manifestações
culturais em todos os sentidos nos são ainda estranhas, herméticas;
aparentam ser de qualquer outro lugar e não do momento em que vivemos e
respiramos. No tocante à música, não podia ser diferente. A música
composta neste século pelos grandes mestres permanece na quase total
obscuridade, engavetada para os „futuros ouvidos‟ apreciarem. Nossa
obrigação enquanto músicos é desvelar ao público esta imensidão do
universo musical de nosso século; uma diversidade de tendências que
afloram desde a primeira década até os dias de hoje, numa rapidez maior do
que a capacidade de assimilação do público e mesmo dos próprios músicos (VICTORIO, 1994).
As pretensões do compositor desde o início foram para uma produção exclusivamente
de música contemporânea, mudando a trajetória da programação habitual da orquestra,
distinguindo-a das orquestras do restante do país.
Ele propunha um trabalho com obras inéditas, além da aproximação da orquestra e
consequentemente da plateia com os principais núcleos de produção da música
contemporânea do país.
Na atualidade, apenas duas orquestras em todo o mundo dão vazão a esta
produção riquíssima e pouco ou nada conhecida: uma em Nova York e outra
em Londres. E a Orquestra Sinfônica da UFMT, em sua nova trajetória, se
propõe a desempenhar esta tarefa, trazendo em Cuiabá músicos e grupos
37
Ver Anexo I, p.240, o primeiro programa de concerto com a direção do maestro Roberto Victorio.
70
especializados em música do século XX para montagem de obras primas,
especialmente de compositores brasileiros vivos (VICTORIO, 1994).
Era o início do rompimento com a música tradicional tonal, amparado por um trabalho
inédito. Um repertório inédito não somente para a plateia local, mas global, pela realização de
estreias mundiais de várias obras musicais, trazendo ao conhecimento do público a produção
dos compositores de seu tempo; em especial dos compositores brasileiros. Deste modo,
despertando no público local o interesse e o gosto por uma música que até então não fazia
parte do seu cotidiano.
Em suma, diríamos que este concerto se constitui no ponto de partida de uma
nova fase da Orquestra Sinfônica Universitária, em que se pretende romper
com um hiato – o desconhecimento quase absoluto por parte das platéias
brasileiras da produção musical de hoje. Entendemos que tal lacuna existe
em decorrência da falta de seriedade e constância na montagem de obras
contemporâneas que despertem o gosto do público por esta diversidade
sonora, familiarizando-o com a mesma (VICTORIO, 1994).
O concerto de abertura da temporada de 1994 com estreia de Victorio na direção da
Orquestra Sinfônica da UFMT foi dividido em duas partes. Na primeira, Sinfonia n.º 5, de
Franz Schubert (1797 – 1828) e na segunda parte, Impressione de la Puna de Alberto
Ginastera (1916 – 1983), Ori Otvi, de Marcus Ferrer (1965), e encerrando com The Magic
Labyrinth, do compositor Aurélio de La Vega (1935).
Ao iniciar o concerto com uma sinfonia de Schubert; que é um compositor do período
Romântico do século XIX, nota-se a preocupação do maestro em preparar o público para a
proposta que estaria por vir, uma vez que para a grande maioria do público local, seria o
primeiro acesso à Música de Concerto Contemporânea desvinculada do sistema tonal
tradicional.
O maestro sempre teve o cuidado de esclarecer o público sobre o repertório que a
orquestra iria executar e fazia por meio de entrevistas e também nos concertos.
Começa a partir de então um trabalho de preparação e formação de platéia, uma vez
que é muito comum a rejeição deste tipo de repertório para o espectador que não está
habituado com esta categoria musical. Também é fato que a reação negativa do público não é
novidade para o compositor de música contemporânea e Victorio deixa isto muito claro em
entrevista concedida. Quando perguntado se houve dificuldades de aceitação da sua música
ele informa que:
Normal, claro que tive. Tive dos músicos também, claro, mas com eles foi
contornável porque se sentiram estimulados. Eu percebi, um ou outro.
Sempre tem um ou outro que realmente são mais radicais, como tinha no
71
Rio, como tem em qualquer lugar, mas eu sentia que eles estavam
estimulados para tocar um outro tipo de música diferente, uma música que
para eles a princípio parecia como não música, porque eles nunca tinham
tocado nada daquele jeito (VICTORIO, 2010).
Roberto Victorio tinha ainda pela frente a tarefa de persuadir os próprios músicos da
orquestra que ora assumia, uma vez que para os mesmos este trabalho também era novidade.
Portanto as reações que foram percebidas pelo maestro proviam tanto dos componentes da
orquestra como da plateia que tinha sido formada pelos maestros que o antecederam.
Contudo, assim como houve reações negativas, também sucedeu o contrário. Em torno
de suas propostas, musicistas, pessoas interessadas e o público, contribuíram para a
continuidade do projeto de realização de música contemporânea em solo mato-grossense
(como veremos adiante) e a partir do segundo concerto da temporada de 1994 ficou bem
definida a trajetória da Orquestra Sinfônica da UFMT com relação ao conteúdo de seu
repertório.
Esse é um trabalho que a Orquestra está realizando desde o início do ano,
dedicando-se à preparação de um repertório de Vanguarda que também
estará apresentando em vários concertos já marcados em São Paulo e Rio de
Janeiro. [...] A mudança no repertório da Orquestra Sinfônica da
Universidade Federal de Mato Grosso já traz bons resultados e uma agenda
cheia para os próximos meses (BARBANT, 1994, p. 1E).
O projeto do maestro compositor incluía a gravação do primeiro CD da Orquestra
Sinfônica da UFMT, produção de um vídeo, excursão pelas capitais brasileiras que possuíam
núcleo de produção de música contemporânea, a participação em festivais de música
moderna, assim como também, realizar concertos no exterior. Houve convites da Malásia,
França, Alemanha, Bélgica e Argentina, mas não chegaram a ser realizados.
Esta movimentação em torno da Música de Concerto Contemporânea foi amplamente
divulgada, inclusive pela imprensa local que atraiu a atenção para a sinfônica da UFMT,
contribuindo para a formação de músicos e uma plateia interessada na produção da Música de
Concerto Contemporânea.
Plateia? Claro, a plateia mudou totalmente, eram aquelas senhoras que
vinham assistir a trechos de óperas de Aída, de Verdi, de Bellini. Quando
nós começamos a fazer os concertos com outro repertório, com outra
sonoridade, a plateia mudou, mas mudou para melhor, as pessoas que
realmente precisavam ouvir aquilo (VICTORIO, 2010).
Foi, portanto, também o início da reconfiguração do público da Orquestra Sinfônica da
UFMT, que tinha à sua disposição um repertório de vanguarda da Música de Concerto do
século XX.
72
Victorio permaneceu na sinfônica da UFMT até o final de 1994; seu último concerto
como maestro titular aconteceu nos dias 06 e 07 de outubro de 1994, no Teatro Universitário,
com o espetáculo intitulado “Cruzar e Bifurcações”, demonstrando a influência que a música
Planalto Central exerceu sobre a produção artística de Roberto Victorio no decorrer do ano
de 1994.
Neste último espetáculo, a arte dos encartes dos programas de concerto, das filipetas e
dos cartazes foi realizada por Wlademir Dias Pino, que também emprestava o título de seu
poema “Cruzar e Bifurcações” ao concerto.
Foi uma reunião de artes, isto é, um cruzamento de poéticas, como foi sugerido pelo
próprio título do espetáculo, pois nele se encontraram Música, Literatura, Artes Plásticas,
Artes Cênicas e Lutheria.
Foram musicados os poemas: Cruzar e Bifurcações, de Dias Pino, Oferenda de
Rabindranath Tagore, Insônia de Fernando Pessoa e Transeuntes Transitamos de Ricardo do
Carmo.
No saguão de entrada do Teatro Universitário houve a organização de duas
exposições, uma da artista plástica e soprano Rose Vic; com trabalhos de escultura em pedra
sabão e material acrílico e outra do luthier João Quinzani; com a exposição de instrumentos
musicais elaborados a partir das madeiras de Mato Grosso. A programação musical constava
de seis peças – destas, duas foram primeira audição mundial e as outras quatro foram primeira
audição em Mato Grosso, conforme programa descrito abaixo:
** 1 - Cinco Peças Livres (Roberto Victorio)
Poema: Wlademir Dias Pino
Solista: Marcelo Palhares
** 2- The Hollow Men (Vincent Persichetti)
Solista: Benedito Borges
** 3– Insônia (Carlos Belém)
Poema: Fernando Pessoa
Solista: Marcelo Coutinho
Direção Cênica: Luis Carlos Ribeiro
** 4-Concerto Op. 24 - Anton Webern
* 5-Oferenda ( Alexandre Schubert)
Poema: R. Tagore
Solista Ronaldo Victorio
* 6-Transeuntes Transitamos (Roberto Victorio)
Poema: Ricardo do Carmo
Solista: Marcelo Coutinho e Ronaldo Victorio
* primeira audição mundial
** primeira audição em Mato Grosso (UNIVERSIDADE FEDERAL DE
MATO GROSSO, 1994)
73
No ano de 1995, Roberto Victorio ingressa no Departamento de Artes da UFMT por
meio de concurso público, ocupando a cadeira de Laboratório de Música Dodecafônica e
Experimental, desvinculando-se definitivamente da direção artística da Orquestra Sinfônica
da UFMT, sem, no entanto, perder contato com os músicos, sendo que, com eles, organizou o
Grupo Sextante Mato Grosso para dar continuidade ao processo de produção da Música
Contemporânea em Mato Grosso.
Empossado no Departamento de Artes da UFMT, dedica-se à docência e à formação
de novos compositores, cujas composições são estreadas com o Grupo Sextante Mato Grosso
já no ano de 1995 (com menos de doze meses de trabalho).
O primeiro concerto que apresentou as composições dos alunos do Departamento fez
parte da programação de aniversário de 25 anos da UFMT, no Teatro Universitári, em
09/12/1995, com o seguinte programa:
Eugênia Gomes – Distúrbios, para flauta e piano
Bia Corrêa – Clareando, para violino e oboé
Carlos Roberto Pereira – Duo, para flauta e oboé
Telma Goulart – Rompante, para violino e piano
Ester Goulart – Quelal, para violino e piano
Érica da Matta - Duas Cordas, para violino e violoncelo
Teresa Albuquerque – Rimeda, para violino e violoncelo
Suzi Simões – Lacisumadalas, para violino e violoncelo
Adriana Janeth – Ticvá, para violoncelo e piano
Carlos Roberto Pereira – Suíte Nº 1, para piano
Roberto Victorio – Contraste, para flauta, violoncelo, soprano e piano
Poema: Estevam Ferreira
Débora Jesuíno – Ousadia, para flauta, 2 violoncelos e contralto
Jair Jerônimo – Babel, para voz, violino e percussão
-Intervalo-
Jurandir Lara – Ousadia, para voz, piano e percussão
Ester Goulart, Suzi Simões e Carlos Roberto Pereira – Metanóia, para vozes,
piano e percussão
Adriana Balsanelli – Distorcendo, para dois sintetizadores
Pio Toledo – A Árvore, para violino, violão e serrote
Linda Cavalhian, Bia Corrêa e Rosy Arruda – Digerindo, para narrador,
percussão e liquidificador
Ana Golveia e Barbara Foster – Onopatopeizando, para coro e percussão
Nadia Boabaid - Despertar, para voz, violino, percussão e fita Magnética
Beth Alamino – O Retorno, para contrabaixo, pedras e fita magnética
Maristela Beber, Larissa de S. Pinto e Rosimary Silveira – Unânime, para
piano, tam-tam e fita magnética (GRUPO SEXTANTE, 1995).
Esta programação que foi nos moldes camerísticos, apresentou 21 peças inéditas de
compositores mato-grossenses, alguns dos quais figurariam mais tarde nas Bienais de Música
Contemporânea de Mato Grosso (que passaram a fazer parte da agenda cultural de Cuiabá),
dentre os compositores, Beth Alamino e Pio Toledo.
74
A Orquestra Sinfônica da UFMT, no ano de 1995, estava sem um maestro titular
motivado pelo impedimento do Governo Federal em realizar concursos públicos para provisão
de cargos vagos, portanto ficou fora desta programação. A sua participação restringiu-se a
concessão dos músicos para integrar o Grupo Sextante Mato Grosso.
Sem um regente titular, a Sinfônica da UFMT prioriza as atividades para atendimento
interno da universidade por meio de grupos de câmara extraídos de seus naipes. Para tal,
foram mais comuns a participação do Quinteto de Metais e do Quarteto de Cordas.
Diante do problema legal que persistia e prejudicava os trabalhos, a solução
encontrada para Sinfônica da UFMT foi nomear para seu maestro, um músico de suas
próprias estantes, e para tal fim foi escolhido o flautista Fabrício Carvalho. O anúncio deste
músico como novo maestro da Orquestra Sinfônica da UFMT foi feito pela coordenadora de
cultura da época, Marina Müeller, em um concerto de câmara realizado dia 18 de dezembro
de 1996, no Teatro Universitário.
Com um maestro definitivo, a Sinfônica da UFMT torna a priorizar a execução de um
repertório tonal tradicional, ficando a produção da música contemporânea de vanguarda
representada pelo Departamento de Artes da UFMT, sob a coordenação do compositor
Roberto Victorio.
Um ganho para a plateia cuiabana que pode optar pela vertente musical que mais
atenda ao seu gosto; um repertório composto por músicas do século XVIII ao XX, inclusive
da novíssima geração de compositores mato-grossenses, realidade esta que teve como
embrião Planalto Central inaugurada no dia 04 de agosto de 1994, testemunhando a
heterogeneidade dos fazeres musicais da era pós-moderna.
75
5 PLANALTO CENTRAL EM TRÊS POEMAS PARA VOZ E PEQUENA
ORQUESTRA
A característica de Planalto Central que mais salta aos olhos é o instrumental
escolhido pelo compositor. A escolha dos instrumentos é extremamente estratégica para a
concepção da obra musical, pois cada instrumento possui sua peculiaridade e possibilidades
sonoras.
Deste modo, a partir da escolha dos instrumentos que resultará uma das características
mais importantes para a escuta musical: o timbre.
Com a opção pela utilização do berrante, e da viola de cocho – a mais impressionante
personagem mestiça de Planalto Central, a grande mestiça da obra – bem como dos três
poemas – cada qual com poética e abordagem distinta uns dos outros – todos presentes na
mesma obra, interpretados por um narrador e um soprano e amparados por toda formação
orquestral. Aqui ocorreu hibridação musical.
A hibridação musical está presente em todos os âmbitos da obra, assim como da
própria orquestra sinfônica que, em consequência, passa a ter uma formação instrumental
mesclada, misturada, intercambiada. Formação evidenciada por instrumentos musicais que em
princípio nada tinham em comum. Distancia observada inclusive entre a viola de cocho e o
berrante, que, em outras circunstâncias, não dividem o mesmo espaço de realização musical.
Os tempos cronológicos se cruzam e são vivenciadas múltiplas realidades nesta obra
que se manifestam na rusticidade dos instrumentos (viola de cocho e berrante) utilizados nas
poéticas de vanguarda dos três poetas mato-grossenses e do compositor carioca Roberto
Victorio. Sem, no entanto, causar estranheza para os padrões musicais do pós-modernismo.
Local e universal se amalgamam de modo que já não são nem um nem outro, mas
híbridos; mesclados.
Para ocorrerem os encontros é necessário um local. A convergência e intercambio se
dão em Planalto Central. Sua estreia aconteceu no palco do Teatro Universitário, lugar
escolhido pela Orquestra Sinfônica da UFMT, que até então realizava a música de concerto
tradicional tonal38
.
38
Referência à reprodução da música tonal que a orquestra realizou desde a sua fundação até o final do ano de
1993, ou mais especificamente ao último concerto da temporada. Houve uma interrupção deste processo a partir
do primeiro concerto da Temporada 1994 que foi estreado por Roberto Victorio.
76
A configuração instrumental observada em Planalto Central antecipa que se trata de
uma composição com uma forte ligação com aspectos da cultura de Mato Grosso e adianta o
que o compositor quer propor com a sua obra.
Não se trata de uma música regional mato-grossense. Muito pelo contrário, é uma obra
composta conforme as possibilidades da música de concerto contemporânea e que traz em sua
essência a inconfundível poética do compositor Roberto Victorio, que declara39: “Na verdade
eu ia juntando essas sonoridades todas que eu via aqui, dos ribeirinhos; sonoridades da viola
de cocho; eu queria usar isso numa poética minha”.
Assim o compositor utiliza elementos da cultura regional (instrumentos musicais) e
trabalhos literários que, aliás, segundo o próprio compositor, podem ser considerados o cerne
da obra40
; e extrai tanto as potencialidades timbrísticas dos instrumentos bem como o
potencial literário dos escritores locais para arquitetar a sua obra.
Planalto Central é uma música com uma variedade instrumental considerável, cujas
inovações estão relacionadas à combinação dos instrumentos tradicionais de orquestra
sinfônica com os da cultura regional mato-grossense e um de uso rural nacional, a saber:
1. Viola de Cocho – em sua essência, ribeirinha e pantaneira, bem como altamente
significativa para o fazer cultural dos atores sociais locais.
2. Berrante – conhecido nacionalmente, principalmente nas regiões sertanejas do país
e que tem intrínseca ligação com a pecuária e seu manejo.
Figura 4 – Vaqueiro tocando berrante ao manejar o gado
Fonte: Foto coletada no Site Terra Stock
39
Ver Apêndice A, p. 138, a entrevista concedida em 19/08/2010. 40
Ver entrevista em Apêndice A, p. 138.
77
Ambos os instrumentos são muito populares em Mato Grosso, sendo cada um ao seu
modo executado por toda região.
Victorio oportunamente faz uso e aproveitamento do que cada instrumento destes pode
proporcionar, conferindo a Planalto Central muita personalidade e distinguindo-a das suas
produções anteriores, bem como das composições que fizeram parte dos programas
apresentados no início desta nova era musical para os mato-grossenses41
.
Outra característica importante a ser observada em Planalto Central é a quantidade de
instrumentos empregados, que além de numerosa, é diversificada e estabelece a prerrogativa
de ser classificada como música orquestral. Por isso intitulamos este capítulo de “Planalto
Central em Três Poemas para Voz e Pequena Orquestra”, mencionando a obra distintamente
do compositor Roberto Victorio, no programa de concerto42
que registrou a primeira audição
mundial, datada de 04 de agosto de 1994, em Cuiabá, no Teatro Universitário, da
Universidade Federal de Mato Grosso. Contudo ressaltamos que intitulamos o capítulo desta
pesquisa e não a obra. Pequena Orquestra é sugerido porque Planalto Central foi escrita para
todos os naipes que compõem a orquestra sinfônica tradicional: as cordas, as madeiras, os
metais e a percussão. Entretanto com instrumental dos naipes em número reduzido.
O termo Pequena Orquestra não é inédito, mas também não é o mais comumente
utilizado. O compositor Heitor Villa-Lobos chegou fazer uso dele em 1951 para intitular seu
concerto para violão que originalmente tinha o nome de Fantasia Concertante e que mais
tarde foi mudado para Concerto para Violão e Pequena Orquestra, atendendo assim ao
pedido do violonista Andrés Segóvia que intencionava interpretar um concerto para Violão de
sua autoria. Por outro lado, os catálogos especializados em música erudita normalmente
utilizam a terminação “orquestra de câmara” para referir-se a uma orquestra reduzida.
ORQUESTRA DE CÂMARA Pequena orquestra capaz de tocar em um
pequeno salão. O termo é aplicado de forma imprecisa, mas se refere
geralmente a um grupo em que há mais de um executante por parte
orquestral. (DICIONÁRIO..., 1985, p. 275).
O Dicionário Grove de Música (1994, p. 686) conceitua orquestra de câmara como
“uma orquestra com reduzido número de componentes” e que este tipo de formação musical
surgiu como “uma reação ao gigantismo da orquestra pós-romântica”.
Na instrumentação de Planalto Central os naipes estão dispostos da seguinte forma:
1. Naipe das cordas em formação reduzida, sendo: 01 violino, 01 viola, 01 violoncelo e
01 contrabaixo.
41
Ver Anexos B-H, p. 214-236, programas de concerto. 42
Ver Anexo I, p.240, programa de concerto.
78
2. Naipe das madeiras: 01 clarinete em si bemol, 01 clarone ou clarinete baixo.
3. Naipe dos metais: 03 trompetes em si bemol.
4. Naipe da percussão: tímpanos, bombo sinfônico, pandeiro, pau de chuva, tumbadoras,
caixa clara, ton-tons, surdo, tantam, pratos, queixada, ganzá, reco-reco, chocalho,
triangulo, clave.
5. 01 piano.
6. 03 violas de cocho.
7. 01 berrante43
(não está escrito na partitura manuscrita original, mas é parte integrante
da música deste a estreia).
O naipe da percussão está completo e é o que tem maior número de integrantes. Não
poderia ser diferente em uma música que prima pela exploração timbrística. O próprio
compositor esclarece: “eu quis uma formação inusitada pensando na percussão. Ela é o grande
eixo de Planalto Central. Os outros naipes circundam em torno deste setenário percussivo”
(VICTORIO, 2010)44
.
A instrumentação de Planalto Central também inaugura a utilização da viola de cocho
em uma orquestra, pois ela ainda não havia sido incluída neste grupo apesar de sua
antiguidade e popularidade até porque a viola de cocho foi originalmente construída para
atender exclusivamente à demanda cultural da comunidade local que era executada pelos
cururueiros nas rodas de Cururu e Siriri, trazendo em sua rusticidade a expressão musical do
homem da terra45
.
Quanto ao berrante, não encontramos nos arquivos da Orquestra Sinfônica da UFMT
qualquer menção de seu uso, porém é notório que ele é utilizado como um recurso de
comando pelos boiadeiros durante as comitivas de boiadas, para facilitar a comunicação entre
os peões no transporte do gado de um lugar ao outro. Seu som é comumente ouvido no
Pantanal, bem como nas zonas rurais.
Até então, a Orquestra Sinfônica da UFMT ainda não tinha registrado em seus
programas de concertos46
a inclusão desses dois instrumentos, seja em arranjos ou adaptações
de músicas, ou composições que originalmente propiciassem seu uso. A Orquestra Sinfônica
da UFMT era a única orquestra existente no estado de Mato Grosso.
43
Ver Apêndice A, p.138. 44
Em Apêndice A, p. 138. 45
Ver Capítulo 2. 46
Ver Anexos B-H, p. 214-236, programas de concerto.
79
Deste modo, Planalto Central congrega em seu arcabouço importante representantes
da expressão cultural local, pois foi inspirada tanto nos fazeres do homem rústico pantaneiro
como do intelectual e contemporâneo, como veremos a partir do capitulo 5.1. Trata-se de uma
obra monumental que foi composta congregando valores de homens do rio, com a
expressividade do poeta Manoel de Barros – pantaneiro por opção, mundial na concepção – e
Silva Freire, ambos ativistas ligados aos importantes movimentos literários. E também por
“homens do Rio” que se fizeram cuiabanos por pura abstração e absorção: os cariocas
Wlademir Dias Pino e Roberto Victorio.
Em entrevista com o compositor47
ele informa que teve o cuidado de reunir em uma
única obra o que ele acreditava ser representativo para a produção literária contemporânea
bem como bastante significativo para esta região e achou nos três poetas citados essa
representatividade.
Então, juntei os três gigantes da literatura mato-grossense, Wlademir Dias
Pino, Silva Freire, que já era falecido, e o Manoel de Barros que na verdade
é de Cuiabá, mas está em Mato Grosso do Sul. Peguei três poemas deles e fiz
uma vestimenta sonora para aqueles belíssimos poemas (VICTORIO, 2010).
Os critérios foram rigorosos, tendo em vista que a escolha não foi por falta de opção.
Esses poetas não são os únicos em Cuiabá, pois a literatura mato-grossense, diferentemente da
música, esteve mais próxima dos movimentos de vanguarda nacional e conta uma extensa
produção.
Para se ter uma ideia, Magalhães (2001, p. 124) informa que no final da década de
1930 já se falava em literatura moderna em Cuiabá, e os escritores se movimentavam em
torno das revistas Pindorama, Canga e Sarã. Entre os nomes da literatura local, Victorio
poderia contar com Lobivar de Matos, João Antonio Neto, Rubens de Mendonça Tertuliano
Amarilha, Padre Raimundo Pombo, Ricardo Guilherme Dicke, Marilza Ribeiro, Tereza
Albues, Hilda Gomes Dutra Magalhães, Padre Antônio Pimentel, Dom Pedro Casaldáliga e
Aclyse de Matos, entre outros. A escolha dos três poetas de Planalto Central se deu pela forte
identificação do compositor com a produção literária dos autores de que ele tinha
conhecimento ainda na cidade do Rio de Janeiro, muito antes de sua mudança para Cuiabá.
Com relação à representatividade da cultura mato-grossense, a escolha dos
instrumentos de Planalto Central foi mais direta. Até porque o compositor não teria à sua
disposição um leque de opções como teve com a literatura de Mato Grosso, pois o
47
Ver Apêndice A, p. 138, entrevista concedida.
80
instrumento musical que dá mais visibilidade à cultura local é a viola de cocho, que é
difundida por todas as classes sociais. Portanto conhecida de todos, assim como tendo
presença obrigatória nas festas populares (diferentemente dos poetas, que são conhecidos por
uma classe mais específica da região, neste caso pessoas ligadas à literatura).
Já a utilização do berrante se dá pela ligação com o aspecto rural do estado. Ora, Mato
Grosso na década de 90 se configurava como o estado que detinha o status de ter o maior
rebanho bovino do país, sendo então a pecuária uma importante fonte de riqueza. Fato que
pode ser comprovado ao observar o Palácio Paiaguás (Figura 5), sede do governo do Estado
de Mato Grosso, que tem estampadas em sua fachada as figuras bovinas de Humberto
Espíndola, consagrando a força da pecuária. Assim, viola de cocho e berrante se tornam em
Planalto Central um elo com a intimidade da terra.
Figura 5 – Palácio Paiaguás (Cuiabá)
Fonte: Foto coletada no site do Wikipédia, a enciclopédia livre
Planalto Central foi composta para 24 instrumentos e executada por 25 músicos,
incluindo a regência. Não existe hierarquia entre os instrumentos, bem como predominância
de solo, como ocorre na música tradicional tonal, onde os instrumentos de afinação
determinada, principalmente os violinos, tem a preponderância dos solos. Mas em Planalto
Central, os instrumentos de afinação indeterminada, isto é, a percussão, possuem o mesmo
grau de participação no grupo, pois todas as inserções funcionam para explorar o timbre e
81
efeitos dos instrumentos de cada naipe, proporcionando uma atmosfera e um colorido
apropriado entre as intervenções das linhas poéticas que integram a obra.
Com cerca de 14‟38‟‟ minutos de duração, conforme informação constante no CD
Grutas Permitidas, Planalto Central está dividida em três poemas que formam os grandes
blocos ou seções que compõem a obra.
Cada poema instrumentado de Planalto Central possui movimento próprio, expresso
com independência uns dos outros, formando um tríplice arcabouço da obra. De modo que
cada poema poderia muito bem ser extraído para ser executado, sem prejuízo qualitativo ou
quantitativo e encerra em si mesmo cada parte.
A escolha dos três poemas que compõem Planalto Central não se deu somente pela
temática ou estilos e a seleção dos poetas não aconteceu aleatoriamente; pois os escritores,
como já foi dito, são artistas que conquistaram o status de serem considerados importantes
representantes da literatura contemporânea mato-grossense.
Para tanto faremos uma exposição dos aspectos biográficos dos autores bem como da
sua produção artística, partindo pela ordem escolhida por Victorio, na tentativa de uma
melhor compreensão do papel que cada um deles tem para a literatura mato-grossense, assim
como da importância de seus poemas para a obra musical.
5.1 Primeiro Poema
O Poema Auto Retrato Falado de autoria de Manoel de Barros (1916 apud
VICTORIO, 1994), que inicia a música, foi extraído do livro Ignorãnça (1993). Ele teve sua
publicação um ano antes da composição de Planalto Central, fato que demonstra a
familiaridade de Victorio com a produção artística de seu tempo. Deste poema o compositor
utiliza os seguintes versos.
Venho de uma Cuiabá garimpo de ruelas entortadas
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes,
aves árvores e rios
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e
lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz
Já publiquei 10 livros de poesia, ao publicá-los em sinto como desonrado e
fujo para o Pantanal onde sou abençoado à garças.
82
Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta por de que herdei uma fazenda de gado. Os bois me
recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.
O nome completo do escritor é Manoel Wenceslau Leite de Barros e como bom poeta
que é, possui uma percepção bastante peculiar dos fatos e prefere dizer que nasceu no Beco da
Marinha na beira do Rio Cuiabá, no dia 19 de dezembro de 1916 - poderia simplesmente dizer
que nasceu em Cuiabá (MT).
Passou parte de sua infância no pantanal de Corumbá (MS) onde seu pai era um
fazendeiro e isto foi extremamente marcante para a sua obra, pois nela ele registra as
paisagens, personagens e os viventes, num verdadeiro mosaico de imagens do local por ele
vivenciado e que mais tarde são traduzidas em versos como marca indelével de sua obra - “me
criei no pantanal de Corumbá entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios”.
Dos três poemas escolhidos para a música Planalto Central, Auto Retrato Falado de
Manoel de Barros é o que traduz mais explicitamente imagens do regional mato-grossense.
Ele transporta para sua obra a vivência pantaneira e retrata com a sua poética o cotidiano
rural.
Como vários jovens intelectuais de sua época, aproxima-se do ideal comunista.
Entretanto após uma grande desilusão, rompe com os ideais do partido político e retorna para
o Pantanal. Mais tarde sua obra irá traduzir este rompimento, quando optará por reverenciar as
inutilidades.
Na verdade, toda linha poética de Manoel de Barros nega o Capital, na
medida em que privilegia as „inutilidades‟, aquilo que, no mundo
materialista e tecnológico, não serve para nada porque não pode ser
contabilizado em lucros (MAGALHÃES, 2001, p.147).
A boa situação financeira do poeta favoreceu que vagasse mundo afora. Deste modo
morou na Bolívia, Peru e nos Estados Unidos. Em Nova York estudou cinema e pintura no
Museu de Arte Moderna, fato que pode ter contribuído para o verdadeiro caráter de sua
produção literária.
O poeta demonstra extensa criatividade pois vem publicando obras desde 1937 e até o
ano 2006. Já havia lançado 27 livros tanto no Brasil como no exterior, com obras publicadas
em Portugal, França, Espanha e Alemanha.
83
Sua primeira publicação foi Poemas Concebidos sem Pecado (1937) e nos idos de
1980, Millôr Fernandes tornou-o conhecido do grande público por meio das colunas das
revistas Veja, Isto É, e no Jornal do Brasil. A Editora Civilização Brasileira publicou sua obra
em quase a totalidade, sob o título de Gramática expositiva do chão.
O reconhecimento da importância da obra de Manoel de Barros parte de pessoas
intimamente ligadas à literatura nacional, como Guimarães Rosa e Antonio Houaiss. O
escritor coleciona em seu currículo várias premiações ofertadas por instituições privadas e
governamentais.
Manoel de Barros tem sido estudado por pesquisadores e literatos e alguns chegam
arriscar classificar sua arte. Hilda Magalhães, por exemplo chega a rotular sua obra como
Surrealista.
A consciência dos dramas sociais e a inadequação do autor na metrópole
apontam uma segunda vertente poética em suas obras de estréia: o
compromisso com a realidade. Entretanto já se podem constatar algumas das
características da fase madura do autor, como a visão surrealista do mundo e
o fascínio pela terra e pelas „inutilidades‟ (MAGALHÃES, 2001, p. 147).
Os escritos de Manoel de Barros falam do Pantanal, dos animais e das pessoas que
povoam esta região. Seus poemas falam das árvores, dos pássaros, lagartos, insetos. É um
artista, ou melhor, um poeta do qual emana a arte inspirada no Pantanal que vai para o mundo.
Suas publicações extrapolam as fronteiras da territorialidade local.
“A natureza estetizada por Manoel de Barros é, ao mesmo tempo, regional e universal,
já que diz respeito a todas as coisas em seu estado pré-consciente, mágico e misterioso entre o
consciente e inconsciente” (MAGALHÃES, 2001, p. 153).
Victorio declara que escolheu este poeta para compor Planalto Central porque além da
afinidade que tinha com a sua obra, alimentava o desejo em musicar um poema de Manuel de
Barros. O compositor chega a esboçar certa indignação por ninguém ter feito isso antes.
O poema Auto Retrato Falado com o qual o compositor inicia a música Planalto
Central, é uma descrição do homem regional, porém ao mesmo tempo universal. Era o que
Victorio precisava para iniciar uma obra em que faz apologia à região que escolheu para fixar
residência e desenvolver sua produção artística, mesmo que em princípio não tivesse planos
de transferir-se para Cuiabá, como foi declarado em entrevista. O compositor intencionava
morar por aqui por somente um ano e retornar para o Rio de Janeiro. Entretanto deixa
transparecer o interesse em deixar o registro de sua passagem pelo local e mostrar o que veio
fazer.
84
O poema Auto Retrato Falado apresenta um regionalismo distinto da prática de outros
poetas mato-grossenses, como Dom Aquino Correa (parnasiana). Não proclama heróis ou
aventureiros, santidades, majestades ou tesouros, mas uma poética contemporânea que é
aproveitada por Victorio que com sua musicalidade, vai instrumentá-la em Planalto Central.
5.2 Segundo Poema
Intitulado por Silva Freire (1928- 1991) simplesmente de Poema. Victorio vai utilizar
os seguintes versos:
As raízes das grutas permitidas
Estão roídas por letras
Expulsando nossa infância usual
Os poemas se definem ao sol
E afeiçoam-se no vapor do último lago
Que bebeu a morte da amada
Nem o infinito do teu ser surgirá da taça
Escondida entre as colunas de tua cabeça,
- amada de todos nós!
A alegria só
De não ter sido indivisível
Absolverá a poesia inascida, para sempre.
Procederá de algas, matas e membros
De personagens diluíveis:
- folhagens pintadas de braços
- lastros de embarcações lubrificando faróis
- cerrados morrendo em fuligens.
Morrendo assim nos olhos estatualizados de pescadores...
Benedito Santana Silva Freire nasceu em Mimoso, distrito de Santo Antônio do
Leverger, no dia 20 de setembro de 1928. Obteve formação superior em Direito que o
qualificou para ocupar uma cadeira de professor da Faculdade de Direito da UFMT.
Jornalista, contista e poeta, foi imortalizado pela Academia Mato-Grossense de Letras. Foi
também membro da União Brasileira de Escritores-MT.
Em Cuiabá, juntamente com Dias Pino, criou as revistas O arauto da juvenília e O
Saci (1949), que foram muito importantes para a produção e divulgação da literatura de
vanguarda, uma vez que os meios de comunicação e divulgação estavam sob a égide dos
conservadores. “Autor experimental, sua arte desafia o bom tom e o conservadorismo da
85
literatura clássica o que o torna, em determinados casos, algo hermética” (MAGALHÃES,
2001, p. 162).
Na cidade do Rio de Janeiro criou a revista Japa (1953) juntamente com o poeta e
amigo Wlademir Dias Pino e dirigiu o periódico Movimento que era promovido pela AME
(Associação Metropolitana dos Estudantes). Esta associação possuía filiados em todo o
território nacional e o periódico obteve premiação internacional pelo seu conteúdo
vanguardista. Suas principais publicações foram os livros Águas de Visitação (1979), Barroco
Branco (1989) e Trilogia Cuiabana (1991).
Escritor de vanguarda, chamava a atenção dos intelectuais de sua época, agradando ou
causando impacto nos meios literários. Hábil no manuseio das palavras para compor seus
escritos em que a “palavra é a Razão maior de existência do poema, é o espaço experimental
que sustenta seu projeto estético” (MAGALHÃES, 2001, p. 164). Seus escritos possuem uma
personalidade inconfundível, misturando com maestria elementos do regional com o
universal, do local, por meio de seus costumes populares, com o erudito conservador e
filosófico.
Como pode se constatar, a obra de Silva Freire reserva-nos muitas surpresas
estéticas, que emergem no texto sob o signo da contemporaneidade. Uma
contemporaneidade que confabula o falar regional e o erudito, o poético e o
racional, nas sendas da experimentação, na busca do texto sempre novo.
Neste sentido Silva Freire é, sem dúvida alguma, um dos mais bem
sucedidos poetas de Mato Grosso (MAGALHÃES, 2001, p. 182.).
A obra de Silva Freire é inspirada em Cuiabá, que é o seu tema favorito na qual ele
fala do povo, seus costumes e o cotidiano; versa sobre pessoas comuns, suas coisas, seus
fazeres, o falar e seus trejeitos. Utiliza a sua poética contemporânea, vanguardista,
experimental e concreta para retratar o regional, pois é por esta região que ele busca sua
inspiração e assim como a razão da sua criação.
O espírito pós-moderno resiste às explicações unificadas, abrangentes
e universalmente válidas. Ele as substitui por um respeito pela
diferença e pela celebração do local e do particular à custa do
universal (JENCKS apud GRENZ, 1997, p. 30).
Pelo exposto, podemos entender o que moveu Victorio a escolher este poeta para
compor sua obra, trabalho que visava traduzir em sua poética as imagens e a personalidade do
Planalto Central do Brasil.
86
5.3 Terceiro Poema
O terceiro e último poema que compõe Planalto Central é Cruzar e Bifurcações, de
Wlademir Dias Pino e Victorio utilizará somente fragmentos dele, com os seguintes versos:
Peixes gravados
Em folha verde-mar
Cabelos da amada
Dentro das flautas abandonadas
Conchas flutuando
Aos pares – mudos olhos
Caminhos de luas
Rastros feito mastros
(calor de trilhos)
(olhos flutuando)
Como música esconde segredos
Sede colorida
Desgarrada em dentes
Rugas alheias
Em mistérios nossos
Olhos desenhados em mãos
Semente esculpida
Em barco escuro
... A velhice das coisas que voam.
Wlademir Dias Pino, poeta, professor, programador visual e gráfico nasceu no Rio de
Janeiro no ano de 1927, mas veio para Cuiabá quando ainda era criança, aos nove anos de
idade. Mesmo sendo carioca a sua ligação com Cuiabá faz com que a sua literatura seja
considerada mato-grossense.
Fixando residência em Cuiabá, se torna não somente um escritor talentoso, mas um
importante ativista ligado a movimentação literária, agrupando-se a vários escritores que
formavam a nova geração em Mato Grosso. Promoveu a difusão da literatura de vanguarda,
fundando revistas, jornais e periódicos com a colaboração de seu amigo Silva Freire, com o
qual tinha estreita relação.
Wlademir Dias Pino, Rubens de Mendonça e Otoniel Silva criaram o Manifesto
Intensivista - “nova ordem literária ditada contra os dogmas do academicismo antes
totalmente reinante” (SILVER, 1969), que foi difundido por meio dos jornais Sarã (1951) e
Arauto da Juvenília (1949). Na cidade do Rio de Janeiro funda o jornal Japa (1953)
juntamente com Silva Freire.
87
A obra de Dias Pino é memorada nos livros que narram a história da literatura em
Mato Grosso, assim como em inúmeros artigos e trabalhos acadêmicos, pois de fato passou
grande parte de sua vida dedicando a este estado o melhor de si, que é a literatura. Um grande
diferencial para a sua obra é a estreita ligação com trabalhos visuais. Magalhães (2001, p.
193) em seu livro História da Literatura de Mato Grosso Século XX, chega intitular um
capítulo como “Wlademir Dias Pino: O Poema Visual”
A arte de Dias Pino extrapola as fronteiras do estado de Mato Grosso e, no Rio de
Janeiro, juntamente com os poetas Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos,
Ronaldo Azeredo e Ferreira Gullar, fundam o Movimento da Poesia Concreta, que ultrapassa
os limites da abrangência nacional, tornando-se conhecido e divulgado internacionalmente.
Jovem, inquieto e talentoso, participava ativamente de importantes movimentos
literários, exposições e debates, como a Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de
Arte de São Paulo - MASP (1956) e Noite de Arte Concreta, no MEC (1957). Em 1967, lidera
o Movimento Poema-Processo; participa também da IX Bienal de São Paulo (1967) e, no ano
seguinte, da I Bienal de Arte Construtiva na cidade de Nuremberg na Alemanha; além de
participar de inúmeros eventos desta natureza por todo o Brasil.
Foi professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde lecionou no
curso de Comunicação Visual e, na Universidade Federal de Mato Grosso, atuou como
pesquisador e programador visual.
Dos três poetas de Planalto Central, Wlademir Dias Pino (1927) foi o que Roberto
Victorio teve maior contato e intimidade. Por meio desta música, eles selaram uma forte
amizade que resultou, na época, e posteriormente, em vários trabalhos em conjunto; de modo
que enquanto Victorio organizava a programação dos concertos de temporada (pois nem todas
as obras que faziam parte dos concertos eram composições de sua autoria), Dias Pino
planejava a arte visual que compunha os encartes dos programas.
O presente autor é violinista da Orquestra Sinfônica da UFMT desde 1984, tendo
participado ativamente de todo o processo ao qual ela passou naquele período. Foi notado que
era muito comum a presença de Dias Pino nos ensaios para os preparativos de Planalto
Central e, após o mesmo dedicava tempo a longas conversas com o maestro, que muitas vezes
se prolongavam até altas horas da noite. O próprio Victorio relatava que falavam de suas artes
e compartilhavam experiências. Não raramente, eram os dois que fechavam as instalações da
sede da orquestra que na época ficava no Parque Aquático da UFMT, onde atualmente é o
Museu Rondon.
88
A admiração entre ambos era recíproca, mas principalmente por parte de Victorio, que
conhecia o trabalho de Wlademir desde quando ainda morava no Rio de Janeiro e confessa
nutrir muita admiração por sua obra, reconhecendo nela genialidade.
A primeira coisa que fiz foi travar contato com Wlademir Dias Pino, que é
um gênio da literatura, um gênio, uma pessoa inteligentíssima, um gênio das
artes visuais, da visualidade, na verdade – não das artes visuais, da
visualidade – um dos maiores pensadores que eu conheço no Brasil, e ele
morava aqui nessa época, era funcionário da UFMT, foi um dos fundadores
da universidade na década de 70. Ficamos amigos e Wlademir tinha poemas
maravilhosos que nunca haviam sido musicados por ninguém [...]
(VICTORIO, 2010)48
.
O encontro dos dois resultou em Planalto Central, que é uma música composta a oito
mãos (três poetas e um compositor); uma obra sui generis - resultado da reunião de poéticas
variadas que agrega em seu arcabouço duas artes, qual seja, a música e a literatura, que enfim
se completam num único discurso.
Victorio reserva a Wlademir Dias Pino o gran finale de Planalto Central - a
conclusão da música, ou melhor, o final da obra utilizando para isto o poema Cruzar e
Bifurcações que já no título apresenta o verbo cruzar, que sugere entrelaçamento. Em
Planalto Central, há vários cruzamentos – podemos mencionar as duas vertentes artísticas,
que são a música e a literatura. As poéticas dos autores, neste caso quatro, também se cruzam:
Victorio, Dias Pino, Silva Freire e Manuel de Barros. Há ainda o cruzar de elementos do
regional com o erudito contemporâneo, evidenciados pelo uso das violas de cocho em
poéticas de vanguarda (da música e literatura), assim como a sua inserção em uma orquestra
composta pelos naipes tradicionais: cordas, madeiras, metais e percussão.
Se bifurcação é um caminho que se divide em dois, em Planalto Central o sentido
desta estrada é inverso. Pois são dois caminhos, isto é, duas vertentes artísticas que se
coadunam e o resultado final do trajeto é Planalto Central.
5.4 Planalto Central - Marco da Música Contemporânea em Mato Grosso
Planalto Central foi composta em Cuiabá e foi concluída no dia 10 de junho de 1994
(conforme informação constante na partitura manuscrita pelo compositor). A primeira audição
48
Ver Apêndice A, p. 138, entrevista concedida.
89
mundial aconteceu em um concerto da Orquestra Sinfônica da UFMT com o nome de “Grutas
Permitidas, Músicas do Século XX”, no Teatro Universitário em 04 de agosto de 1994. Este
concerto foi o segundo realizado por Victorio em Cuiabá na direção artística da Sinfônica da
UFMT, mas foi o primeiro com um programa totalmente dedicado à música contemporânea.
Por isso um dia antes, no dia 03 de agosto, foi realizado um ensaio aberto na forma de
concerto didático ocasião em que o maestro interagiu com o público, falando da formação da
orquestra, das obras literárias que compõem o concerto, dos compositores, além da produção
contemporânea que era inédita para a maioria do público local.
As informações eram importantes e necessárias para a plateia. A Sinfônica da UFMT
tinha um público fiel às suas programações e estava habituado a ouvir músicas do repertório
tradicional tonal, como foi verificado pela análise de toda a programação da orquestra49
,
anterior à direção de Roberto Victorio.
Entretanto o concerto de 04 de agosto foi o primeiro realizado em Cuiabá com
repertório exclusivo de música contemporânea e a principal atração deste concerto era a
música Planalto Central. A obra atiçou a curiosidade do público local pelo seu conteúdo,
recheado de aspectos do regionalismo local.
O concerto foi amplamente divulgado pela imprensa, pois a UFMT tem uma
assessoria de comunicação dedicada a repassar informações das suas atividades para os meios
de comunicação local. De modo que no dia da apresentação, entre o público costumeiro,
encontravam-se presentes os cururueiros da cidade, que não passaram despercebidos, pois
estavam paramentados com seus chapéus brancos, silenciosos e atentos, aguardando para ver
a viola de cocho ser tocada pela primeira vez com a orquestra.
A partir de Planalto Central a Orquestra da UFMT passa para a condição de ser a
única orquestra do país com um repertório totalmente dedicado à música contemporânea e isto
pode ser considerado como uma das mais importantes contribuições que Victorio prestou à
música deste Estado. A orquestra sai do anonimato e é divulgada nos grandes centros como
São Paulo e Rio. Ela se torna conhecida dos compositores brasileiros que estavam
empenhados na produção da música do século XX, inclusive compondo especialmente para
ela, utilizando a instrumentação que a orquestra dispunha.
Planalto Central foi a primeira música contemporânea concebida em solo mato-
grossense com importante diferença: os elementos da cultura regional. Portanto se não
houvesse razões suficientes para que ela fosse considerada um marco, a sua condição de
49
Ver Anexo L, p. 266-267. Matérias jornalísticas.
90
primogenitura por si só basta como argumento para considerá-la como tal. Planalto Central
não é somente uma música nascida em Cuiabá. Ela é mato-grossense. Os três poetas que a
compõem lhe conferem esta cidadania.
Planalto Central reúne em seu conteúdo as prerrogativas de uma música que foi
composta para a posteridade; inabalável pelo tempo. Foi concebida por Victorio na fase em
que sua carreira musical já apresentava uma trajetória artística definida - o compositor sabia
muito bem o que queria com a sua arte e não tinha dúvida de seus objetivos. Ao desembarcar
em Cuiabá trouxe na bagagem o seu currículo com um vasto catálogo de obras suas, inclusive
algumas músicas com premiações internacionais - por essas razões demonstrando que se
tratava de um compositor que apesar de jovem, possuía larga experiência.
Victorio tinha em mente desenvolver e difundir a música contemporânea em Mato
Grosso. Compor é o que ele faz de melhor e este é o tipo de trabalho que ele tem obtido
reconhecimento nacionalmente e internacionalmente.
Idealista, conhecia de antemão o campo em que iria atuar e demonstrou bastante
vontade de trabalhar e produzir; assim como estimular os músicos e influenciar as pessoas
com a música de seu tempo50
. Enfim, ele também pôde experimentar elementos novos na sua
carreira: estava em uma terra muito distinta da sua, mas encontrou por aqui pessoas dispostas
a experimentar e realizar um trabalho em conjunto e gerar a música contemporânea que por
aqui até então não se tinha registro.
A gestação da música contemporânea em Mato Grosso foi demorada, mas aconteceu.
Antes tarde que nunca, pois a Música do Século XX é estreada com um considerável atraso,
uma vez que foi somente no ano de 1994, já no limiar do século XXI, ano que veio
testemunhar a atemporalidade musical em que Mato Grosso se encontrava e por pouco este
Estado passa pelo século XX sem experimentar a música de sua época.
Deste modo, o advento de Planalto Central coloca um ponto final na lacuna que
existia na produção da música de concerto local e preenche o abismo que havia entre música
erudita e a sua temporalidade.
Se por um lado Cuiabá estava bem servida com a sua produção literária, considerando
que para os padrões nacionais de difusão artística, a literatura estava praticamente atualizada,
pois desde a década de 40 estava ligada aos mais importantes movimentos literários do Brasil;
por outro a música produzida por aqui não ultrapassava os limites estéticos impostos no
50
Ver Apêndice A, p. 138-144.
91
século XIX. Mas Planalto Central, com a poética de Victorio, torna-se a conexão da música
com seu tempo e qualifica a produção musical como atualizada.
Planalto Central não marca somente a fronteira que dividiu a produção musical em
Cuiabá, mas registra a inversão da trajetória habitual da música erudita, pois anteriormente ela
era produzida em outros centros e trazida para cá.
Cuiabá estava em uma relação passiva com a música. Estava na condição de somente
reproduzir a música de compositores de fora do Estado, principalmente das celebridades dos
grandes centros do país ou de compositores estrangeiros dados como mestres da música
erudita. Entretanto a categoria de passividade em que se enquadrava a música erudita em
Mato Grosso foi superada com Planalto Central, que foi a primeira música de concerto
contemporânea produzida aqui e levada para os grandes centros.
Portanto como demonstrado anteriormente o programa do concerto de 04 de agosto de
1994, que tinha Planalto Central como atração principal foi reapresentado na primeira turnê
da Sinfônica da UFMT no eixo Rio - São Paulo, sendo que a primeira apresentação ocorreu
em 15 de agosto na Sala Cecília Meirelles no Rio de Janeiro; a segunda em São Paulo no dia
17 no MASP e a terceira e última foi realizada no dia 18 de agosto em Campinas no campus
da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.
O jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, no seu caderno Tribuna Bis (1994, p.
4) de 15 de agosto de 1994 anunciou na seção Roteiro Carioca o concerto da Orquestra
Sinfônica da UFMT com o seguinte título: “Sinfonias que vem do Planalto Central”,
informando em seu conteúdo que o destaque para o concerto é a música Planalto Central.
Entretanto Planalto Central extrapola as fronteiras da nação brasileira quando segundo
informações do próprio compositor, foi selecionada para representar o Brasil na Tribuna
Internacional de Compositores da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura51
, (UNESCO) que acontece na França.
Naquela oportunidade a música era para ser executada ao vivo pela Orquestra
Sinfônica da UFMT, todavia o convite ficou prejudicado em face da ausência de patrocínio.
Porém foi enviada uma gravação de Planalto Central concluindo deste modo o processo de
honraria concedido pela UNESCO.
A projeção internacional de Planalto Central sela a inversão da trajetória da música
contemporânea mato-grossense, pois segundo informações do próprio compositor a UNESCO
distribui a gravação para várias emissoras de rádios educativas em todo o mundo.
51
The United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.
92
Ante todo o exposto acreditamos que Planalto Central é um marco para o processo da
música contemporânea em Mato Grosso pois estão reunidos em seu torno vários elementos
que a classificam como tal. Ratificamos a assertiva com as palavras da então reitora da
Universidade Federal de Mato Grosso, Luzia Guimarães que após assistir a um dos ensaios de
Planalto Central disse: “Faltava-nos construir a Contemporaneidade pela música e agora vejo
que atingimos essa idade”52
; frase esta que não foi proferida por uma musicóloga ou
musicista, mas que traduz a mudança significativa que ocorreu com o percurso da Música de
Concerto em Mato Grosso.
5.5 A Partitura de Planalto Central
Planalto Central se constitui como marco histórico para o início da produção da
Música Contemporânea de Concerto em Mato Grosso, com uma importante carga de
significado para o processo que se iniciara na primeira metade da década de 90, pois traz em
seu arcabouço fortes vínculos com elementos da terra da qual foi inspirada.
Adentraremos nos meandros da partitura de Planalto Central na busca por demonstrar
os elementos musicais que asseverem se tratar de uma Música de Concerto Contemporânea,
desvinculada do processo tradicional tonal, e conhecer a rede de inteligência que a constitui.
Não se trata de uma análise profunda informando toda a complexa rede dos elementos
musicais que ela apresenta, pois Planalto Central é uma obra muito extensa e extremamente
rica em aspectos sonoros, timbrísticos e rítmicos. É uma música que possui muita densidade e
sutilezas, além de agregar significados que extrapolam as fronteiras do musical.
Portanto, alguns elementos serão destacados para demonstrar a sua condição de
contemporaneidade, até porque outra pretensão que não esta será mais apropriada se
desenvolvida como tema central de outra pesquisa.
Antes de iniciarmos o exame da partitura, faremos uma sucinta introdução aos
princípios da Numerologia, ciência em que Roberto Victorio se interessa, a ponto de aplicar
alguns conceitos na música Planalto Central.53
52
Frase registrada no programa da primeira audição mundial de Planalto Central, em Anexo J, p. 255. 53
As nossas suspeitas sobre a ressonância da Numerologia em Planalto Central, bem como a utilização dos
correspondentes da cadeia setenária (o sete em Numerologia está relacionado à criação), foram confirmadas em
depoimento (04/03/2011) pelo compositor que inclusive fez alusão à sua música Heptaparaparshinokh (1991),
que foi composta três anos antes de Planalto Central. Segundo ele, “o sete ainda estava muito recente na minha
93
Os números estão presentes em toda historia da humanidade. Por eles, foi possível a
demarcação dos territórios, a contagem dos bens (tais como rebanhos de animais) e a noção
de distância pela utilização das medidas de comprimento. Eles regem todas as transações
comerciais e financeiras desde a Antiguidade. Por eles é possível a noção da quantificação de
pesos, volumes, além da orientação de posição geográfica, edificações e calendários.
É atribuído ao povo hebreu a autoria de uma das mais conhecidas doutrinas místicas
baseadas em números, e esta se deu ao atribuírem números para cada letra de seu alfabeto,
combinação que deu origem à Cabala54
. Tanto ela quanto a Numerologia associam os
números à Metafísica, aos aspectos religiosos e filosóficos.
Para estas duas correntes, os números não são meras ferramentas matemáticas
utilizadas para quantificações diárias, eles expressam significados e respostas para temas
ligados à religião e à filosofia. A Bíblia, que é o livro sagrado mais conhecido do Ocidente, é
um exemplo da aplicação do sentido esotérico dos números, o que pode ser verificado do
primeiro ao último livro55
, desde os temas que abordam a criação do universo (Gênesis) até os
que falam da destruição do mundo (Apocalipse).
O fato é que tanto a Numerologia quanto a Cabala e temas ligados à Metafísica,
Esoterismo e Ritual exercem forte influência na criação artística de Roberto Victorio, e ele
demonstra isto com muita clareza em sua classificação da Música do Século XX, ao incluir a
“Quarta Vertente” como “Música Ritual”, além de ter em seu catálogo diversas obras que
expressam esta temática. Entre elas podemos mencionar: A Colônia do Pêssego (1987),
Mandala (1987), Heptaparaparshinokh (1991)56
, Quatro Visões (1991), Tetragrammaton I
(1994), entre outras músicas57
. O compositor comentou em uma de suas aulas, que chegou a
estudar o idioma hebraico para entender melhor a Cabala.
Foi comentado no capítulo 1.2, que o holismo presente no homem pós-moderno se
contrapõe ao ceticismo racional do pensamento moderno. Ocorre que Roberto Victorio
expressa bem a concepção holística em sua obra ao tratar dos temas ligados à Metafísica, à
Cabala e Numerologia, chegando a considerar o som musical como “Entidade Sonora” e a
música como “Entidade”. A sua opção criativa se encaixa muito bem na pós-modernidade,
mesmo que ele não se considere um compositor pós-modernista, mas este posicionamento
cabeça”, naquela época ele também realizou sua Dissertação de Mestrado que foi desenvolvida com esta
temática. 54
Ver Guimarães em, Números as Pegadas da Divindade, 2009, Ed. Madras. 55
A Biblia é composta por vários livros que são divididos por Velho e Novo Testamento. 56
Segundo Roberto Victorio a tradução de Heptaparaparshinokh é; o sete que caminha para Deus. 57
O catálogo completo das obras de Roberto Victorio pode ser encontrado no site: www.robertovictorio.com.br
94
como artista também é previsto na pós-modernidade, que não é de forma alguma um tema
fechado, nem mesmo uma unanimidade.
Os compositores Béla Bartók (1881-1945) e George Crumb (1929- ), exerceram forte
influência artística em Roberto Victorio e desenvolveram composições que abordam esta
mesma temática. Dentre as obras de Crumb podemos mencionar Makrokosmo I (1972),
Makrokosmo II (1973) e Mecânica Celeste (Makrokosmo IV, 1979). Bartók foi o maior
divulgador da seção áurea58, a “sua obra de maior destaque quanto à seção áurea é a Música
para Cordas, Tímpano e Celesta (1936)” (PRADA, 2008, p. 152).
Não é possível falar em números sem mencionar Pitágoras, que além de matemático
foi responsável pela criação de uma escola iniciática, que ficou conhecida como Pitagórica.
As suas doutrinas herméticas influenciaram sobremaneira os alquimistas, esotéricos,
teosóficos, ocultistas e as bases da Numerologia. “Ele já dizia que tudo o que existe é regido
pelos números” (GUIMARÃES, 2009, p. 7).
Em Numerologia, cada número tem um significado e envolve associações e
encadeamentos, e estas relações são denominadas de Cadeias Numéricas. “Cada Cadeia
Numérica é um universo próprio e tem características especiais” (GUIMARÃES, 2009, p.
12), e elas estão incorporadas em Planalto Central com suas redes de significações.
5.6 Exame da Partitura
O exame da partitura de Planalto Central evidencia a relação entre a composição de
Victorio e a cadeia numérica setenária. O sete aparece em várias combinações que serão
demonstradas adiante, “ele está sempre ligado à criação e pode-se vê-lo presente na natureza,
de forma contundente” (GUIMARÃES, 2009, p. 51).
Segundo a Bíblia, o mundo foi criado em sete dias, que deram origem aos
sete dias da semana, palavra esta que deriva do latim sepmana = sete dias.
Em muitas línguas, os dias são dedicados aos planetas sagrados. Assim no
inglês os dias da semana são: Sunday (Sol), Monday (Lua), Tuesday
(Marte), Wednesday (relacionado com Mercúrio), Thursday (relacionado
com Júpiter), Friday (relacionado com Vênus) e Saturday (Saturno); no
58
Seção áurea, segundo Prada (2008, p. 152) é um “procedimento matemático pelo qual se acha o ponto de
partida de uma espiral até sua abertura cada vez maior, ad infinitum”, este cálculo matemático mede proporção e
as formas existentes na natureza e tem tido aplicação em várias vertentes artísticas.
95
espanhol Lunes (Lua) Martes (Marte), Miércoles (Mercúrio), etc.
(GUIMARÃES, 2009, p. 51).
Faz sentido pensar na utilização do setenário em Planalto Central, considerando-se
que Victorio tinha a intenção de criar uma nova mentalidade musical, um novo
relacionamento e percepção que atingisse tanto os músicos como a plateia em Cuiabá.
O sete aparece explícita e implicitamente nesta música, por várias formas de
representação, tal como acontece na Numerologia.
O sete é composto por conjuntos de números 1+6=7, que representam a
unidade e a perfeição dela. Quando somamos 3+4=7, dizemos que a tríade
superior se une ao quaternário inferior e, finalmente, com 2+5=7 temos o
recipiente da dualidade (GUIMARÃES, 2009, p. 52).
As combinações que compõem o sete são representadas em toda a música,
principalmente o 3 (ternário), 4 (quaternário), e o 5 (quintenário). O 3 ou ternário está
fortemente representado, pois a música foi composta em três movimentos, sendo cada um
deles desenvolvido sobre um poema. A sua arquitetura obedece a uma ordem ternária que
pode ser percebida por toda a peça e sobre essa relação Roberto Victorio nos informou que:
Tem uma ordem ternária em Planalto Central, os três poemas, eu uso três
violas de cocho, conexão com os três trompetes, tem uma coisa de três, os
três movimentos e tal, então alguns arcos dentro de Planalto Central são
ternários também, ela tem uma ordem interna, uma rede de inteligência que
estará organizando esta peça inteira (VICTORIO, 2010, p. 3).
Mas se o Ternário ficou em evidência, pode-se perceber a presença do Binário nas
vozes (narrador e soprano), na relação intervalar geradora de segundas maiores e menores.
Quanto ao Quintenário, ele pode ser aludido pela formação escolhida para o naipe das
cordas (quinteto de cordas), representações das quiálteras de cinco, que tem sua primeira
aparição no quarto compasso do 1º movimento, executadas pelo tom-tom.
O Setenário, nos sete percussionistas, intervalos de sétimas, aliás, o naipe da percussão
é o que possui o maior número de integrantes, ocupando posição de destaque e foi
considerado pelo compositor como um dos mais importantes da orquestra.
A percussão é também um naipe solista e divide o discurso musical com toda
formação orquestral, em uma evidente troca de posições. Nas músicas tonais tradicionais a
ideia musical é priorizada para instrumentos melódicos. Já em Planalto Central, a percussão
intercala a ideia musical com as cordas, como pode ser verificado principalmente a partir do
compasso 127 do Terceiro Poema (Tempo movido).
96
Para a percussão, Victorio utilizou treze instrumentos e sete instrumentistas para
executá-los. A partitura foi escrita para: bombo sinfônico, pandeiro, pau de chuva,
tumbadoras, caixa clara, tom-tons, surdo, tantam, pratos, queixada, ganzá, reco-reco,
chocalho, triângulo e clave.
O berrante não aparece escrito na partitura original, mas foi inserido na música e faz
sete intervenções. Para demonstrar as suas entradas serão utilizados setas nos devidos
compassos que foram identificados por meio de escuta musical, facilitando assim a
identificação e compreensão do leitor. A opção por utilizar fragmentos da partitura original
manuscrita pelo próprio compositor, para ilustrar as considerações, se deu pelo valor histórico
do material. O compositor informou em entrevista que o berrante foi incluído no decorrer do
processo criativo, para ele, foi fundamental a sua utilização a partir do momento em que teve
de trabalhar com os versos de Manoel de Barros e as imagens do pantanal. As entradas do
berrante apontam para os números compostos do setenário obedecendo a sequência 3+1+3; a
primeira ocorre no início logo após o primeiro ataque da orquestra com todos os instrumentos
(com exceção da viola de cocho), a entrada se dá após um fortissíssimo (fff) súbito, com três
toques, ainda no primeiro compasso, que apresenta um 4/4 quase sem medida (ver figura 6).
Figura 6 - Primeiro Poema, Compasso 1. Intervenção do Berrante.
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A segunda intervenção é por um toque na seção F do primeiro poema, compasso 14,
entre as violas de cocho que executam acordes com predominância de intervalos de quarta e o
Clarinete sib, ambos instrumentos com prolongamento e adensamento rítmico (ver figura 7).
Berrante
97
Figura 7 - Seção F, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A terceira intervenção ocorre nos três últimos compassos do terceiro poema, do 144 ao
146 acompanhado ao fundo pelas cordas, o piano e percussão em pianissíssimo (ppp) (ver
figura 8).
Figura 8 - Compassos 144-146, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Se a música que fazia parte dos programas da sinfônica da UFMT estava fortemente
ligada ao tonalismo, Planalto Central rompe abruptamente com esta tradição logo na sessão
A.
Berrante
Berrante
prolongamento
piano
percussão
98
O primeiro poema foi divido pelo compositor em nove seções por letras. Será
denominado Bloco Gerador o bloco de notas com predominância de intervalos de 2ªs e
Intervalo Gerador o intervalo de 2ª, e fica convencionada a nota fá como Nota Geradora. No
primeiro compasso, com a apresentação em fortissíssimo (fff) do bloco gerador, onde os
intervalos de segundas maiores e menores predominam provocando gritante dissonância, e
consequentemente um cluster. Provocado pela utilização das notas fá, fá#, sol, lá, sib, si, réb,
mib, mi (ver figura 9).
Figura 9 - Bloco Intervalar Gerador, compasso 1, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
bloco gerador
99
Este primeiro poema é todo narrado, e a inserção da narração sempre ocorre após
intervenção do bloco intervalar gerador, ou da síntese intervalar geradora, ou a nota geradora
fá, como pode ser percebido na seção A, compasso 1, seção B, após o Bloco gerador, seção C,
após a síntese intervalar realizada pela flauta, contrabaixo e 1º violino, em intervalos de
segundas.
O bloco intervalar gerador reaparece um compasso antes da seção D, a partir da
síntese intervalar pelo contrabaixo e clarone (fá e sol). A última entrada da narração é no
segundo compasso da seção I, após, o bloco intervalar gerador tocado pelas cordas, e a nota
geradora pelo clarone com a nota fá, e o tímpano com o fá#. Nota-se que o bloco intervalar
gerador ou a síntese intervalar geradora foram utilizados para marcar inícios e finais das
seções, sendo que o início é marcado por grande intensidade sonora, normalmente
demarcados por fortissíssimos (fff), e os finais pelas sutilezas dos pianissíssimos (ppp).
Na seção A, o movimento Lentíssimo quase sem medida em compasso 4/4, ainda que
concebido com a escrita métrica, mantém os músicos em total dependência da regência pelo
fraseado predominado pela instabilidade do pulso, aproximando a realização da performance
instrumental aos padrões da escrita relativa.
Mostrando agora claramente a dimensão que o sete toma em Planalto Central, vemos
que o terceiro compasso, em 3/8, lança a primeira ideia dos números que compõem o sete,
pela apresentação do ternário (semínima pontuada, naipe das cordas), quaternário (quartetina
do bombo sinfônico), setenário (4 semicolcheias e 3 fusas, da tumbadora), (ver figura 10).
Figura 10 - Compasso 4, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
cordas
b. sinfônico
tumbadora
100
A seção B (compasso 5) será a primeira apresentação de uma seção concebida pela
escrita relativa59
. O maestro é quem vai coordenar as entradas provocando várias e distintas
ambiências sonoras, como se o compositor apresentasse uma a uma as possibilidades
timbrísticas da música. Os instrumentos entram praticamente como solistas, acompanhados
por sutil prolongamento sonoro do piano e contrabaixo, e dos versos recitados pelo narrador
com imagens que remetem ao Planalto Central do Brasil: “Me criei no Pantanal do Corumbá,
entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios”. As entradas dos instrumentos
obedecerão a seguinte sequência:
1ª - flauta em mezzo forte (mf).
2ª - 1º trompete com surdina em mf.
3ª - piano com as notas sib 1 e si 4, extremos grave e agudo do instrumento.
4ª - tom-tons.
5ª - clarone por técnica expandida60
, provocando multisom. O recurso gráfico para transcrever
esta execução é inexistente na grafia musical tradicional, deste modo, a seção B traz a
primeira inserção da escrita contemporânea em Planalto Central.
6ª - tom-tons e surdo.
7ª - bombo sinfônico em mezzo piano (mp).
8ª - violas de cocho, com prolongamento rítmico, por aproximadamente com duração de cerca
de cinco segundos.
9ª - tímpanos.
A seção C (compassos 6 a 9) é predominada pela escrita métrica. As cordas, com
exceção do 1º violino, executam uma sequência descendente em acordes quartais, sucedido
por uma ascensão até uma fermata com a mesma relação intervalar anterior (ver figura 11).
59
Na escrita relativa as relações de tempo musical e pulsação não estão presas à métrica estabelecida pela
fórmula de compasso, diluindo as limitações da grafia proporcional tradicional. 60
Pela técnica expandida, o instrumentista tem que explorar sonoridades (timbres) que extrapolam o uso
tradicional do instrumento; as possibilidades são diversificadas e variam de um instrumento para o outro.
101
Figura 11 – Compassos 6-7, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A relação com a cadeia setenária desta seção aparece nas unidades de compassos do
4/4 e 3/8 (4+3). Entretanto no compasso 8, ( 3/8), percebemos os compostos do sete por 3, 5,
4, sendo o 3 pelas três semicolcheias dos Tímpanos, cinco pelas quatro fusas e uma
semicolcheia da tumbadora e o 4 pelas duas fusas e duas semicolcheias do tom-tom. Neste
mesmo compasso ocorre a segunda inserção da técnica expandida, com o frulato na nota fá
(5) executada pela flauta (ver figura 12).
cordas
102
Figura 12 – Compasso 8, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Da seção D à seção G, percebemos a predominância da escrita relativa, e o
prolongamento das notas tanto por ligaduras como pela grafia de som pedal (ver figura 13).
Flauta
frulato
timpano
tumbadora
tom-tom
103
Figura 13 – Compasso 11, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A regência coordena as entradas do narrador (e este também deve ter domínio da
leitura de partitura). O poema está em primeiro plano, e a narração, intercalada pelos
instrumentos; a maioria das suas intervenções é realizada nos momentos de pausa da
orquestra.
A seção G apresenta várias ambiências sonoras e todos os instrumentos têm a
indicação de prolongamento rítmico ou sonoro accellerando sem crescer: os violinos com
extremos agudos em harmônicos, o piano com Si 4 e Sib1 (região grave e aguda
simultaneamente) a viola e o violoncelo col legno battuto61
, contrabaixo em pizzicato62
executando uma sequência em intervalos de sétima, na sequência a percussão com as
tumbadoras, tom-tons, e o reco-reco. No piano, foi utilizada a técnica expandida: o pianista
tem que deslizar as unhas nas cordas do piano, provocando um glissando ascendente, o pau de
chuva em piano (p) e o encerramento desta seção ocorre com dois golpes do tímpano em
intervalos de segunda menor com dinâmica decrescente Fá# e Fá (mf) e (p) e é uma seção
musical que ocorre entre a narração. Estas múltiplas ambiências sonoras citadas na seção G,
podem ser percebidas pelo ouvinte na minutagem 2‟26‟‟ ao 2‟48‟‟ (ver figura 14).
61
Golpe de arco utilizado nos instrumentos do naipe das cordas, que consiste em bater com o arco sobre o
instrumento, na corda ou no próprio corpo, a tradução do termo de origem italiana é “bater com a madeira”. 62
Técnica de se tocar os instrumentos do naipe das cordas sem a utilização do arco, dedilhando as cordas.
Prolongamentos som pedal / ligadura
104
Figura 14 – Compasso 16, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
105
Na sessão H, onde ocorre o encerramento do primeiro poema, ao todo formada por
quatro compassos, o compositor opta pelo retorno à escrita métrica ou tradicional nos dois
primeiros compassos, 5/4 e 3/8, e reapresenta a sequência das relações ternárias nos trompetes
com quiálteras de três e clarinete pelas semínimas pontuadas. No 3/8, toda a composição do
setenário é reapresentado pela percussão, o quaternário pelo bombo sinfônico, o setenário
pelas tumbadoras, o quintenário pelos tom-tons e surdo, e o ternário pelo reco-reco (ver figura
15).
Figura 15 – Compasso 19, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Os dois últimos compassos são reservados para o encerramento do primeiro poema
com a escrita relativa. O piano apresenta a síntese intervalar, Si e Sib (ver figura 16), e o
encerramento da sessão com a dinâmica decrescente esvaindo a densidade sonora até quase o
silêncio total, pelo pianissíssimo (ppp) do bombo sinfônico.
b. sinfônico
tumbadora
tom-tom e surdo
réco-réco
clarinetes
106
Figura 16 – Compasso 20, Primeiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
O primeiro movimento mostra, desde o início, elementos que caracterizam a Música
de Concerto Contemporânea, tais com a predominância do atonalismo, que é inserido no
primeiro compasso pelo bloco intervalar gerador, além do uso de técnicas expandidas, que
proporcionam múltiplas ambiências sonoras; a utilização da escrita relativa, a inserção de uma
nova grafia musical que possa corresponder às experimentações timbrísticas que ocorrem
neste primeiro poema, nova grafia esta que nas mãos de Wlademir Dias Pino é transformada
em arte plástica, como pode ser percebida no programa de concerto concebido por ele, no
Anexo J, p. 244.
O segundo poema é iniciado com um fortíssimo súbito (ff) por meio do bloco
intervalar gerador, este bloco tem a participação de quase todos os instrumentos da orquestra,
inclusive a viola de cocho (o compositor não incluiu o piano). Não há interrupção sonora
entre eles - a ligação ocorre por meio do bloco intervalar gerador.
Voltando a apontar os termos da Numerologia na obra, percebe-se que no primeiro
compasso o clarone apresenta os compostos da relação setenária com a quintina, tercina e
sextina (5, 3 e 6), (ver figura 17).
Figura 17 - Compasso 1, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
No terceiro compasso o 4 aparece pela quartina pelo 1º trompete, estas quatro figuras
rítmicas geradoras e suas variações estão presentes em todo o segundo poema (ver figura 18).
piano
clarone
107
Figura 18 – Compasso 3, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A cadeia setenária também é representada pelas fórmulas dos compassos 3/4 (3+4),
2/16 (1+6), 7/8 (7), 5/16 (1+6), 3/16 (1+6) Elas estão presentes no decorrer de todo o segundo
poema, que é o mais longo - ele possui 58 compassos intercalados entre a escrita métrica e a
relativa, sem repetir a mesma fórmula por mais de dois compassos seguidos.
Este tipo de escrita torna o instrumentista totalmente dependente da marcação da
regência, praticamente a mesma que ocorre com a escrita relativa, como verificamos dos
compassos 10 ao 1863
, (que compreende exatamente 9 compassos), e do 31 ao 44, totalizando
14 compassos sem nenhuma fórmula de compasso repetida.
Neste segundo poema, ocorre a primeira participação do soprano (quarto compasso),
entre o primeiro trompete e a percussão (ver figura 19). A fórmula de compasso 3/4,
demonstra relações com o setenário assim como a célula rítmica da cantora. (3+4), (3+3+1).
Figura 19 - Compasso 4, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
No compasso 16, a polirritmia da percussão (sete ao todo), alterna com a
homorritmia64
das cordas (ver figura 20).
63
Numeração da partitura original. 64
O mesmo ritmo.
trompete
soprano
108
Figura 20 - Compassos 16-17, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
As violas de cocho entram no compasso 19 com acoplamentos intervalares de
segundas e sétimas, provocando clusters tocados em movimentos batidos, ritmados, e no
compasso seguinte uma sequência dedilhada com preponderância de quartas (ver figura 21).
Figura 21 - Compassos 19-20, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
cordas
percussão
109
Nos compassos 24 e 25, os discursos sonoros da percussão são sucedidos pelas cordas,
trompetes e viola de cocho, realizando a ponte para o poco meno, que tem início com o bloco
intervalar gerador (ver figura 22).
Figura 22 - Compasso 26, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A entrada da soprano é acompanhada sempre por poucos instrumentos. No compasso
29, somente as violas de cocho tocam simultaneamente com a soprano (ver figura 23).
Bloco gerador
110
Figura 23 - Compasso 29, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A narração terá início somente no compasso 43, após o toque do piano realizado pela
síntese intervalar sib e si. A soprano entrará no próximo compasso como eco da narração, por
um sutil acompanhamento realizado por instrumentação reduzida, mas provocando múltiplas
ambiências timbrísticas, realizadas pelos tímpanos, piano, violinos e o clarone.
soprano
violas de cocho
111
Os compassos 49 ao 59, desenvolvidos com a escrita métrica, são realizados somente
pelo instrumental da orquestra, sem a participação das vozes, sendo iniciado pelas violas de
cocho, sucedido pelo frulato do clarone. Na sequência uma polirritmia da percussão antecede
a homorritmia das cordas, propiciam ao ouvinte ampla experiência timbrística, as inserções
dos naipes são intercaladas, propiciando multiplicidade de ambiências sonoras pelos variados
timbres e dinâmicas exigidos na execução instrumental.
A partir do compasso 60, desenvolvido em escrita relativa, inicia-se a seção com a
maior variedade de técnicas expandidas e diversidade timbrística da música, e tem início com
as violas de cocho, com a solicitação de percussão na caixa de ressonância do instrumento, no
tampo com dois dedos, e percussão no cavalete. A improvisação é coordenada com
prolongamento. Para descrever a execução foi apresentada uma grafia nova, pois a escrita
musical tradicional não contempla as múltiplas sonoridades que o compositor contemporâneo
deseja explorar. compasso 60 e 61(Ver figura 24).
Figura 24 - Compassos 60-61, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
O piano é tocado por dentro com golpes diretamente nas cordas pelo pianista, e é
registrado também por uma grafia contemporânea (ver figura 25).
Figura 25 - Compasso 61, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Técnica expandida
prolongamentos
piano
112
Na sequência, o 1º violino toca um mi em harmônico na quarta oitava do instrumento
(extremo agudo), e uma sequência de improvisações realizadas pela percussão é indicada com
grafia contemporânea.
No compasso 62, a soprano com a sílaba “só” soa como eco da narração, ela executa o
fraseado em técnica expandida, onde é solicitado variação das alturas em micro-tons (ver
figura 26).
Figura 26 - Compasso 62, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Do compasso 64 ao 68 (para o ouvinte que não domina a leitura musical, compreende
a minutagem 6‟49‟‟ a 8‟02‟‟ da música), ocorre uma impressionante exploração de ambiência
sonora da música, que é provocada pelos múltiplos timbres dos instrumentos utilizados nesta
seção, com uso da técnica expandida, além de improvisações coordenadas, que possibilitam
ao músico instrumentista a coautoria da criação musical.
A seção é iniciada por golpes das baquetas da percussão em fortíssimo (ff),
contrastando com os pianíssimos (pp) dos trompetes e do reco-reco, que allargando
crescendo para um mezzo forte (mf), direcionando o fraseado para as cordas que executam em
sul ponticello (muito próximo ao cavalete do instrumento), nas cordas agudas em microtons.
Após cada ataque da percussão, as cordas realizam a mesma sequência (ver figura 27).
soprano
113
Figura 27 - Compasso 65, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A seção é encerrada pela soprano, com indicação de som agudíssimo e crescendo para
um fortissíssimo (fff) com a frase: “sem-pre” (ver figura 28).
Figura 28 - Compasso 67, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
trompetes
cordas
percussão
réco-réco
soprano
114
Com a execução pelas cordas do bloco intervalar gerador é iniciada a próxima seção.
Neste segundo poema, todas as seções são iniciadas pelo bloco intervalar gerador, ou pela
síntese intervalar.
No próximo compasso, a entrada sequencial das cordas, da mais grave para a mais
aguda, conduz a entrada para as 3 violas de cocho, que desenvolvem improvisações com
efeitos percutidos e dedilhados (ver figura 29).
Figura 29 - Compasso 69, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
O narrador retoma os últimos versos do poema, que será intercalado (não como eco)
com a soprano até o final do segundo poema, para tanto, é utilizado a escrita relativa. No
compasso 72, a 2ª e a 3ª violas de cocho tocam acordes de segundas e a 1ª com pizzicato
Bartok (ver figura 30).
violas de
cocho
cordas
115
Figura 30 - Compasso 72, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
No compasso 78, o setenário reaparece com sete colcheias pelo naipe das cordas com
a fórmula de compasso 7/8 (ver figura 31).
Figura 31 - Compasso 78, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Na penúltima seção (Sem Pressa) o piano atua com a utilização de técnica expandida
(o pianista toca por dentro com golpe nas cordas), entre as intervenções do narrador e da
soprano (ver figura 32).
pizzicato Bartok.
Violas
De
cocho
cordas
116
Figura 32 - Compasso 80, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
As cordas encerram a seção propiciando múltiplas ambiências sonoras, utilizando
golpes de arco col legno battuto, fazendo a ponte para a última seção do poema (ver figura
33).
Figura 33 - Compasso 80, Segundo Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A seção é encerrada com as violas de cocho, que realizam lentamente arpejos dos
acordes formados pelo bloco intervalar gerador. O fraseado da viola de cocho é encaminhado
por uma dinâmica de decrescendo para um piano (p), fazendo ao mesmo tempo
acompanhamento para o narrador que encerra com o verso: “morrendo assim nos olhos
estatualizados de pescadores”.
Este segundo poema, como visto, é mais longo que o primeiro e mais denso, pode-se
perceber pela maior incidência dos naipes que estão em blocos e normalmente com a
participação maior de instrumentos. No segundo poema, tem início a participação da soprano,
que realiza várias intervenções como eco da narração do poema.
As experimentações timbrísticas também aparecem com maior frequência, além deste
poema possuir a maior seção desenvolvida com escrita relativa, as solicitações de
performance com a utilização de técnica expandida será ampliada inclusive com a viola de
cocho. Várias intervenções acontecem por adensamento rítmico pelos instrumentos em
piano
cordas
117
blocos. Com mais nuances de dinâmica que o primeiro poema, é percebido também um
grande arco que tem início com um fortíssimo (ff) que se caminha para o (pp) e a ligação com
o próximo poema ocorre com a soprano por células rítmicas que tem ligações com os
compostos do setenário. A ideia em torno do setenário por meio das células rítmicas será
concluída no terceiro poema.
O terceiro e último poema é iniciado pelo bloco gerador por um fortíssimo (ff) súbito,
sem interrupção sonora com o poema anterior, tocado pela percussão, trompetes e violas de
cocho. Narrador e soprano completam a fusão entre os poemas pela combinação de palavras;
enquanto a narração do poema anterior termina em “pescadores”, a soprano inicia o terceiro
poema com “peixes”, o fraseado é cantado com prolongamento sonoro na “Região média” da
voz (ver figura 34).
Figura 34 - Compasso 88, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Na sequência (figura 35, compasso 88) improvisações coordenadas. A regência
ministra as entradas dos instrumentos que entram por blocos. O primeiro grupo são as cordas
com golpes de arco sul ponticello ( ff ), em seguida o adensamento dos trompetes que culmina
em frulato (ff).
O encerramento da seção fica com a percussão, que realiza improvisações por
adensamentos rítmicos e prolongamentos, obedecendo a dinâmicas de crescendo em direção a
um ( ff ) (ver figura 35).
soprano
118
Figura 35 - Compasso 88, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Percebemos que alguns eventos se destacam, como na próxima seção (figura 36,
compasso 89) Movido, o clarinete é inserido entre as pausas dos outros instrumentos
contrastando com a densidade sonora da seção anterior (ver figura 36).
trompetes
cordas
percussão
119
Figura 36 - Compasso 89, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Clarineta Sib
120
A relação setenária vai aparecer com mais frequência e clareza neste último poema,
que além das combinações rítmicas podem ser percebidas nas fórmulas de compasso, pela
unidade de tempo (UT), unidade de compasso (UC), ou em ambas. Como mostra a tabela:
nº de ocorrências Fórmula Relação Setenária c/ UT e UC
4 15/16 UT 16 = 1+6
3 3/4 UT+UC = 4+3
3 7/16 Ambas UT 16 = 1+6, UC 7
3 5/2 UT+UC= 2+5
1 7/8 UC=7 Figura 37 – Quadro de ocorrências do setenário
Fonte: Dados do exame do pesquisador
São muitas ocorrências, considerando que o poema está intercalado por seções de
compassos com escrita relativa e proporcional.
No compasso 92, o naipe das cordas inicia a apresentação da célula rítmica geradora
do terceiro poema, que está relacionada ao setenário. Ela é apresentada pelos compostos do 7,
que se dão pela soma (4+3), e o contrário (3+4), que são obtidos pelas figuras rítmicas das
semicolcheias (ver figura 38).
Figura 38 - Compasso 92, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Esta idéia vai permear um diálogo entre os naipes da orquestra e a soprano, por
perguntas e respostas, pela ocorrência ou variação da célula geradora.
A partir do compasso 94, a percussão inicia uma sequência polirrítmica por variações
da célula geradora, que será respondida pelas cordas e os trompetes. A seção é encerrada no
compasso 96, com a participação dos 3 naipes em bloco (percussão, cordas e metais).
A ideia continua nos compassos 97 e 98 (sem interrupção), em nova seção (Meno); o
piano realiza variações da célula geradora pela utilização das quiálteras de três, junto com a
Célula Geradora 4 Célula Geradora 3
121
soprano que também canta sobre quiálteras por um alargamento da célula geradora 3 (ver
figura 39), e no compasso seguinte, como uma variação rítmica da célula geradora do (3+4) e
(4+3).
Figura 39 - Compassos 97-98, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
No compasso 102, uma sequência de frulatos dos trompetes anuncia a nova seção
(Movido). Neste mesmo compasso, percebemos uma nova grafia para o clarinete. Nela
contém a informação, “multisons, livre, na região indicada (pedal)”, no caso, região grave.
Esta bula65
confere ao instrumentista a participação na criação da música.
No compasso 103, a soprano canta por alargamento rítmico a célula geradora 3.
Figura 40 - Compassos 102-103, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Na seção iniciada no compasso 104 (Movido – Energético), a cadeia setenária vai
aparecer na fórmula do compasso 15/16, e também nas células rítmicas tocadas pelo naipe da
percussão. Ela pode ser percebida pelas semicolcheias na repeticão do 4 por três vezes, pode
ser verificada na combinação da terceira e quarta últimas células rítmicas do compasso.
65
Bula são as informações que o compositor oferece na partitura com instruções para realização de passagens
com grafias que não pertencem à escrita musical tradicional.
Nova grafia Alargamento
soprano
122
Figura 41 - Compassos 104-105, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A idéia lançada pela percussão vai ser desenvolvida por variações rítmicas com o
piano, soprano e clarinete no compasso 107 (ver figura 42).
Figura 42 - Compassos 102-103, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
E no 109, com as Violas de cocho, que além das combinações 4 e 3, e as
improvisações por percussão no corpo do instrumento, realizam um glissando com um
percussão
clarinete soprano
piano
123
crescendo que faz uma ponte para a reexposição da célula rítmica geradora que é tocada pelas
cordas no compasso 110, conferindo uma rica seção em ambiências sonoras que pode também
ser conferida pela minutagem, 11‟25‟‟ a 11‟48‟‟.
Figura 43 - Compasso 109, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
No compasso 115, com a fórmula de compasso 5/2, as cordas executam um bloco
intervalar de terças (mi, sol, sib, ré#, fá#), entre duas e novas grafias contemporâneas, uma
para o piano, com “golpes nas cordas” e a outra para as tumbadoras, caixa clara, tom-tons e
surdo, indicando “improvisos rápidos” (ver figura 44).
Figura 44 - Compasso 115, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
violas
de
cocho
novas
grafias
124
Na próxima seção, o compasso 117, escrito com a fórmula de compasso 5/2, o naipe
das cordas executam uma sequência de variações da célula geradora 4 e 3, com golpes de
arcos col legno battuto, e um prolongamento sonoro com dinâmica crescente (ver figura 45).
Figura 45 - Compasso 117, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
No compasso 122, as cordas, em bloco, tocam a célula geradora sob a pausa do
restante da orquestra, prenunciando o clímax do terceiro poema (que ocorrerá a partir do
compasso 127), (ver figura 46).
Figura 46 - Compasso 122, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
A ponte para a reexposição (Meno) das células geradoras é realizada pela soprano por
um alargamento da célula rítmica geradora 3, pronunciando o verso “semente esculpida em
barco escuro”, acompanhada pelas Violas de cocho, que executam acordes e a solicitação de
desafinar pelas cravelhas (desaf. – lento) e o tímpano com o pedido de bater na borda com
adensamento rítmico e prolongamento (ver figura 47).
cordas
células geradoras
col legno battuto
125
Figura 47 - Compasso 126, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Com a fórmula de compasso 15/16, tem início a seção (Tempo – Movido) que é uma
das mais densas de Planalto Central (ver compasso 127 terceiro poema). As inserções dos
instrumentos ocorrem em blocos, provocando uma poderosa massa sonora.
Esta seção é longa para os parâmetros da peça, e foi composta por 9 compassos com
escrita metrica. A sua escuta encontra-se na minutagem 12‟56‟‟ a 13‟19.
Ela tem início pelo naipe da percussão com a informação de um (f), por uma sequência
isorrítmica por 2 compassos. O próximo compasso rompe com a sequência anterior,
caracterizado pela polirritmia da percussão e a homorritmia dos trompetes, que tocam por
golpes em Staccato (f).
O naipe da percussão produz grande densidade sonora que é obtita pela quantidade de
instrumentos e a informação da dinâmica em (f).
Esta seção é encerrada pela soprano, que realiza quatro ataques crescendo do (f) para o
(fff) fechando deste modo a relação com o setenário (3+4) considerando a relação de 3 que a
soprano canta no início, com a de 4 que ela canta no final da seção.
Os rufos dos pratos suspensos e o tam-tam encarregam-se de completar o poderoso
(fff) que marca o encerramento da seção.
soprano
Violas de cocho
timpano
126
Figura 48 - Compassos 134-135, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
O início da próxima seção (Lento) acontece por um contraste de dinâmica obtido com
a vibração do tam-tam produzido na última batida que ocorreu na seção anterior, a sonoridade
do instrumento se encaminha por um prolongamento sonoro obtido por ligaduras, à vibração
solitária do tam-tam é somada as notas raspadas nas cordas do piano.
127
Flashes dos elementos do terceiro poema aparecem com ataques curtos em (ff), pelas
cordas que tocam golpes de arco sul ponticello, o clarone com improvisações na região grave,
e a soprano na região aguda com a pronúncia silábica “a”. Essa passagem é acompanhada ao
fundo por uma nota mi “sonoro” em (p) do contrabaixo, e finalmente o ataque dos trompetes e
percussão encerram a sequência (ver figura 49).
Figura 49 - Compassos 136-139, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
O piano, em técnica expandida, por “golpes nas cordas”, faz a ponte para a última
seção (Lentíssimo) do terceiro poema (ver figura 50), com predominância de prolongamentos
sonoros realizados por ligaduras. Estes prolongamentos percorrem em sequência decrescente
iniciada por um (p) que se caminha para um (ppp), quase um silêncio.
clarone
cordas
trompetes
percussão
128
Figura 50 - Compasso 139, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Entre os prologamentos, aparecem curtos ataques da percussão em diminuendo,
partindo do (mf) do compasso 141, para (ppp) do último compasso.
O narrador pronuncia: “A velhice das coisas que voam”. Em seguida, uma batida curta
da percussão em (pp) marca o início dos 3 toques do berrante que ocorrem nos compassos
144, 145 e 146 (localizado também pela minutagem 14‟02‟‟, 14‟09‟‟, 14‟18). Após o último
toque do berrante, a sonoridade vai se diluindo caminhando para o silêncio(ver figura 51).
Figura 51 - Compassos 143-146, Terceiro Poema
Fonte: Partitura original de Planalto Central
Berrante
piano
129
O maestro ainda de costas para o público com os braços caindo lentamente sobre o
corpo coordena os últimos instantes do silêncio, devagar se volta para a plateia, e o silêncio é
interrompido pelos aplausos do público66
.
Registra-se deste modo o marco histórico do início da produção da Música de
Concerto Contemporânea em Mato Grosso.
66
Não consta na partitura.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema do presente trabalho é o resultado de convivência do presente autor com os
fatos recolhidos. Contudo, o conhecimento dos bastidores e os meandros dos acontecimentos
foram revelados durante o percurso do próprio trabalho.
Apesar da vivência com parte dos eventos, como músico integrante da Orquestra
Sinfônica da UFMT, tivemos o cuidado de manter a imparcialidade e observar os processos
que envolvem esta pesquisa com comprometimento, e isentos de paixões, na busca por
corresponder aos rigores científicos da academia.
Também não acreditamos que este trabalho tenha esgotado os conteúdos propostos,
nossa intenção foi a de abrir possibilidades para novas leituras e interpretações em outras
pesquisas.
Para tanto, mencionamos fatos históricos, teorias e linhas de pensamento, além de
documentação anexa que podem auxiliar em outras abordagens mais aprofundadas em
temáticas próximas à nossa.
Optamos por entender o tempo presente pelo viés do pensamento pós-moderno, por
ser heterogêneo, aceito, questionado, ou até mesmo negado, porém é uma das linhas do
pensamento mais estudadas e debatidas entre os pesquisadores e encontramos traços do pós-
modernismo em Planalto Central.
A pós-modernidade tem apresentado realidades que também podem ser percebidas na
música, como a sua heterogeneidade, que foram visualizadas em Planalto Central. Nesta
música encontramos misturas, cruzamentos e múltiplos fazeres musicais, entre eles, a
utilização da escrita tradicional intercalada pela contemporânea, assim como a execução
instrumental regida por estes dois paradigmas.
Ainda fazendo referência à heterogeneidade da pós-modernidade, esta foi demonstrada
pelas várias tendências musicais classificadas tanto por Marlos Nobre como por Victorio.
Percebemos por elas as múltiplas concepções e realidades musicais realizadas pelos
compositores contemporâneos, sendo que Planalto Central se encaixará na tendência “Música
Ritual”, que utiliza no processo composicional a Numerologia.
Ao mencionar as 14 tendências, Victorio relacionou compositores brasileiros da nova
geração, inclusive duas mato-grossenses Cristina Dignart e Ana Cecília Santos, isto deixa
evidente a continuidade de um processo musical que teve início com Planalto Central.
131
Em nossas investigações sobre a vivência musical em Cuiabá, percebida por quatro
fases distintas, comprovou-se que nas três primeiras fases houve exclusividade para a música
tonal tradicional, o que é muito natural para a primeira fase. Na segunda, que contempla
grande parcela do século XX e que foi marcada pela proximidade da música com a literatura,
(saraus lítero-musicais) isso poderia ter gerado uma ligação com a produção contemporânea,
pois como visto, já existia uma considerável atuação de vanguarda literária, mas isto não
ocorreu; a música não foi afetada pelos avanços que percebemos na literatura.
Do mesmo modo, na terceira fase – com as mudanças de maestros da orquestra, em
que ambos vieram de grandes centros; o primeiro do Rio de Janeiro, que é um dos mais
avançados centros brasileiros para a produção da Música Contemporânea de Concerto; e o
segundo, que veio da Alemanha, berço das inovações musicais que influenciaram a produção
mundial – não foi encontrado, contudo, nenhum traço de vanguarda ou inovação, como
comprovam os programas de concerto em anexo.
As inovações musicais e o rompimento com padrões estabelecidos pelo sistema tonal
tradicional que existiam em Mato Grosso, foram verificados somente a partir da quarta fase,
com a substituição na orquestra da UFMT de um maestro por um maestro compositor; é nela
que ocorre uma mudança radical da vivência musical em Cuiabá, e que culmina em Planalto
Central.
Nesta última fase, houve também uma inversão da trajetória comum da música, pois
ela vinha dos grandes centros para Cuiabá. Mas com Planalto Central, a música começou a
ser produzida em Cuiabá com elementos do local e reproduzida nos grandes centros,
posicionando Mato Grosso na categoria de produtor de Música de Concerto. Assim sendo, a
UFMT na segunda metade da década de 90 passa a ser considerada um centro de referência
para a produção da Música de Concerto Contemporânea, e vários compositores compõem
para a sua Orquestra Sinfônica, que, em consequência, vai realizar várias estréias mundiais.
A orquestra, que executava músicas dos compositores do século XVIII e XIX, passa
neste momento a tocar obras de compositores locais e contemporâneos, que concebem obras
por poéticas do século XX, colocando a música em Mato Grosso em igualdade temporal com
outras vertentes artísticas, como a literatura.
Planalto Central, com a poética de Victorio, torna-se a conexão da música com seu
tempo e qualifica a produção musical como atualizada, fatos estes que não passaram
despercebidos pelo público, crítica ou autoridades. Os discursos existentes nos programas de
concertos e nas matérias noticiadas pela imprensa comprovam este entendimento.
132
Também é de se destacar que os procedimentos da Música de Concerto
Contemporânea encontrados na partitura de Planalto Central corroboram nessa visão. São
eles:
1) Rompimento total com os procedimentos tonais
2) Utilização da escrita métrica com a relativa.
3) Nova grafia musical para atender às solicitações de explorações de novas
ambiências sonoras.
4) Técnica expandida.
5) Participação do músico na criação da obra.
6) Misturas e cruzamentos de elementos musicais e extramusicais, Literatura e
Numerologia.
7) Poemas de Vanguarda, que são recitados e cantados sem ligação com o tonalismo.
Reiteramos que Planalto Central se constitui como um marco histórico do percurso da
Música de Concerto em Mato Grosso, visto que foi a primeira obra mato-grossense a romper
com a estética musical tradicional praticada anteriormente; a principal atração nos concertos
que inauguraram a quarta fase da Música de Concerto em Mato Grosso, como também da
primeira turnê da Orquestra Sinfônica da UFMT fora do estado; carrega em seu arcabouço
elementos significativos de Mato Grosso, inclusive o próprio nome, além de agregar valores
artísticos mato-grossenses inestimáveis; além disso, foi a música de maior projeção daquele
momento histórico marcado pelas rupturas de paradigmas, inclusive com honraria concedida
pela UNESCO.
Os elementos compositivos que ela possui foram utilizados posteriormente em outras
composições de Victorio, tais como a música Sentinelas de Pedra (1996), inspirada na
caverna Aroe Jari localizada em Chapada dos Guimarães e Cerrados (1997), pois seu título
remete à vegetação que predomina em Mato Grosso.
Todo o conjunto de dados que foi visualizado confirma a assertiva de que a música
Planalto Central é um marco histórico do percurso da Música de Concerto em Mato Grosso;
ela foi parte de um processo histórico que passou por várias etapas, se encaixando nas
engrenagens deste processo – não a situamos como um ato heróico nem enaltecemos seu
criador como o “salvador da pátria”.
Pelo exposto, sabemos que muito pode ser dito, muito nos escapou e que outros olhares,
leituras e perspectivas podem apontar novas abordagens e se somar a esta leitura. O que
desejamos é que este trabalho possa contribuir como o primeiro passo para novas
investigações.
133
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GRUPO SEXTANTE DE MATO GROSSO. Grutas permitidas = Allowed grottos.
Manaus: Sonopress Rimo, [199-?]. 1 CD. Faixa 1.
_______. Roberto Victorio: depoimento [19 ago. 2010]. Entrevistador: Francisco Lopes dos
Santos Filho. Cuiabá, 2010.1 CD. Entrevista concedida a elaboração da Dissertação de
Mestrado sobre Planalto Central: marco da música contemporânea em mato-grosso.
138
APÊNDICE A – Transcrição da entrevista com Roberto Victório
Transcrição da entrevista concedida pelo compositor Roberto Victorio, por ocasião das
investigações para o desenvolvimento da Dissertação de Mestrado “Planalto Central: marco
da música contemporânea em Mato Grosso”, em 19 de agosto de 2010, nas dependências do
Instituto de Linguagens, da UFMT.
Francisco - Roberto, em que data você veio para Cuiabá?
Roberto - Vim em 94 a convite da coordenação de cultura porque o regente que estava aqui
tinha saído; ele teve uma grande desavença. Aí eles foram ao Rio de Janeiro me convidar; eu
aceitei o convite, vim aqui, vim assistir a um concerto da orquestra e resolvi ficar porque
achei que tinha um trabalho importante de música contemporânea para ser feito aqui. Eu vi
que o trabalho da orquestra era muito tênue, muito, muito simples e tinha material para
desenvolver um trabalho mais interessante e foi o que a gente fez mesmo, fizemos um
trabalho de música contemporânea bem interessante durante quase um ano.
Francisco - Você lembra em que ano você veio para ver a orquestra?
Roberto - No final de 1993.
Francisco - Quem foram as pessoas que te convidaram para vir para cá?
Roberto - Foram Marina Miller Porto Carrero, que era coordenadora de Cultura na época e o
ex-regente que estava fora do Brasil, Marcelo Bussiki. Eles foram ao Rio de Janeiro me
convidar.
Francisco - Quando você veio assistir à orquestra pela primeira vez o regente foi Marcelo
Bussiki?
Roberto - Foi, foi Marcelo Bussiki.
Francisco - Ao aceitar a proposta, inicialmente você tinha a intenção de estabelecer
residência em Cuiabá?
Roberto – Não! Ia ficar só dez meses e voltar.
Francisco - Você sabe qual era a intenção da direção da UFMT em trazer você a Cuiabá?
Roberto - Ah! Com certeza não era para fazer o que eu fiz, eles nunca iam imaginar que eu ia
fazer aquilo (risos); era pra ter mais um regente aqui, na verdade, pra ser curto e grosso,
porque eles queriam mais uma pessoa, mais um regente que continuasse o trabalho que eles
vinham fazendo, só que eu fiz pela metade, só vim para cá, e fiz o que eu queria fazer (risos).
139
Francisco – Então não houve a intenção que você promovesse um núcleo de pesquisa e
produção da música contemporânea?
Roberto - Não! Foi isso que eu falei, eles não sabiam nem o que era música contemporânea,
na verdade. Quando eu assisti ao concerto em 1993, antes de vir para cá, percebi que estavam
estagnados.
Francisco - Qual era seu objetivo, quando aceitou o convite?
Roberto - Era o de estender um trabalho que eu já vinha fazendo no Rio de Janeiro, não só
como compositor durante muitos anos, mas também como regente. Nos últimos dois anos
estava regendo a Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Francisco - Quando você fez o primeiro ensaio com a Orquestra da UFMT, você conversou
muito com os músicos, falou de sua produção, propostas, assim como a produção da música
contemporânea mundial. O que fez você acreditar que um projeto de produção local de
música contemporânea pudesse dar certo?
Roberto - Por vários motivos. Primeiro, eu percebi que eles estavam estagnados, já não
tinham mais estímulo nenhum para tocar; segundo, eu tinha certeza que se eu os estimulasse,
eles iam acabar estudando de verdade, e foi o que aconteceu mesmo – eu dei encargos para
cada um deles, organizava os ensaios, não sei se você se lembra, Chiquinho? Os ensaios eram
muito direcionados, ensaio de naipes, ninguém precisava vir todos os dias para os ensaios, fiz
com que cada um fizesse os solos; transformei a orquestra, que também não era uma orquestra
sinfônica, mas num grupo de câmara também, fazíamos peças com grupos pequenos, dentro
dos concertos de orquestra, fazíamos sempre uma peça com grupo pequeno de câmara e isto
estimulava os músicos a estudarem música, coisa que estavam esquecendo já naquela época.
Francisco - Quanto tempo você ficou na direção da Sinfônica da UFMT?
Roberto - Um ano, 94 inteiro.
Francisco - Algum compositor, que não você, compôs especialmente para a sinfônica,
aproveitando a formação musical que você dispunha, assim como faziam para o Sextante?
Roberto - Vários compositores, posso citar que eu me lembro, faz tanto tempo, Carlos
Almada, Marcos Ferrer, Carlos Cezar Belém, Alexandre Schubert, Maria Helena Rosa
Fernandes.
Francisco - Você teve alguma dificuldade de aceitação da música contemporânea, por parte
do público, bem como dos músicos ou da direção administrativa da UFMT?
Roberto - Normal, claro que tive, tive dos músicos também, claro, mas com os músicos foi
contornável porque se sentiram estimulados. Eu percebi, um ou outro, sempre tem um ou
outro que realmente são mais radicais, como tinha no Rio, como tem em qualquer lugar, mas
140
eu sentia que eles estavam estimulados para tocar um outro tipo de música – diferente, uma
música que para eles a princípio parecia como não-música, porque eles nunca tinham tocado
nada daquele jeito. Platéia? Claro, a platéia mudou totalmente, eram aquelas senhoras que
vinham assistir a trechos de óperas de Aída, de Bellini e Verdi... Quando nós começamos a
fazer os concertos com outro repertório, com outra sonoridade, a platéia mudou, mas mudou
para melhor, as pessoas que realmente precisavam ouvir aquilo. A verdade é que, na minha
cabeça, isto era um absurdo como é um absurdo até hoje: você ter um organismo dentro de
uma universidade, que é um núcleo de pesquisa de arte de vanguarda, e você não trabalhar
com vanguarda dentro de uma universidade – teria sentido se fosse a orquestra ou o coral ou
qualquer outra coisa da Sadia ou do Modelo, que pode fazer o que quiser para entretenimento,
agora dentro de uma universidade é um total absurdo um organismo ficar trabalhando com um
material que não seja vanguarda. Se você verificar na Química, na Física ou na Biologia,
ninguém está trabalhando com a teoria do século XVIII, por que com a música tem que ser
assim? Isto é um absurdo!
Francisco - A música Planalto Central é o tema gerador desta pesquisa, você poderia
comentar sobre a escolha do título da música?
Roberto - Foi porque quando eu cheguei à região a primeira coisa que fiz foi travar contato
com Wlademir Dias Pino, que é um gênio da literatura, um gênio, uma pessoa
inteligentíssima, um gênio das artes visuais, da visualidade, na verdade, um dos maiores
pensadores que eu conheço no Brasil, e ele morava aqui nessa época; era funcionário da
UFMT, foi um dos fundadores da universidade na década de 70. Ficamos amigos e Wlademir
tinha poemas maravilhosos que nunca foram musicados por ninguém, isso é um absurdo
também, eu fui o primeiro a musicar, talvez o único, ninguém mais musicou. Ele é muito
hermético também, então na verdade eu ia juntando essas sonoridades todas que eu via aqui,
dos ribeirinhos, sonoridades da viola de cocho... E eu queria usar isso numa poética minha,
usando e sabendo que era uma coisa necessária para os músicos também, esse contato com
outro tipo de música, uma música mais sofisticada que ia fazê-los crescer como músicos
também e aí juntei assim. Tem uma ordem ternária em Planalto Central, os três poemas que
eu uso, as três violas de cocho, em conexão com os três trompetes; tem uma coisa de três, os
três movimentos e tal, então alguns arcos dentro de Planalto Central são ternários também,
ela tem uma ordem interna, uma rede de inteligência que organizará esta peça inteira. Então
juntei os três gigantes da literatura mato-grossense, Wlademir Dias Pino, Silva Freire, que já
era falecido, e o Manoel de Barros que na verdade ele é de Cuiabá mas está em Mato Grosso
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do Sul, peguei três poemas deles e fiz uma vestimenta sonora, para aqueles belíssimos poemas
e daí saiu essa coisa (risos).
Francisco - Na música Planalto Central você utiliza poemas de três poetas, sabemos que
Cuiabá possui vários escritores com vasta produção literária. Poderia comentar mais sobre a
escolha, porque você tinha outros nomes que poderia utilizar, como Dicke entre outras
pessoas, mas você preferiu estes três poetas?
Roberto - Por uma razão bem simples até. A primeira e mais o importante é que eu gosto
mais dos três, eu tinha lido muita coisa dos três, o Dicke é mais contista, é diferente – ele
possuía poucos poemas mesmo –, e a ligação que existe entre eles, na verdade, é que eu já
conhecia o Manoel de Barros e sempre quis trabalhar algum poema dele, eu o conheci aqui
em Mato Grosso, e o Silva Freire e Wlademir Dias Pino não tem como desconectar os dois,
porque além de terem sido muito amigos, eles têm uma poética muito parecida, a escrita deles
é muito parecida, e eu queria juntar estes três que pra mim são os três maiores, não tem como
– eu sei que tem pessoas maravilhosas, gente boa da novíssima geração, inclusive na época eu
conheci também um discípulo de Silva Freire chamado Rogério Andrade, excelente escritor
que as pessoas pouquíssimo conhecem, o Eduardo Ferreira que é maravilhoso, tem o Ivens
Scaff que é um escritor que eu gosto muito –, mas eu queria pegar os três top mesmo. Para
mim, os três maiores são este três poetas.
Francisco - E sobre a escolha dos instrumentos de Planalto Central?
Roberto - Foi o que eu te falei, é uma formação super não convencional porque são sete
percussionistas, na verdade eram dois percussionistas os outros cinco eram músicos que se
transformaram em percussionistas, inclusive você, você se transformou em percussionista,
não é Chiquinho? Então, sete percussionistas, três violas de cocho, Berrante, quinteto de
cordas, piano, um clarinete revezando com o clarone. Então era uma formação totalmente
inusitada, sempre com essa tônica ternária que vai permeando em comunhão com os três
poetas. Eu quis uma formação inusitada pensando na percussão, a percussão é o grande eixo
de Planalto Central, os outros naipes circundam em torno deste setenário percussivo.
Francisco - Foi mais fácil a escolha dos instrumentos do que os poetas, pois entre os
instrumentos regionais parece que não tinha outra saída, era a viola de cocho ou nada.
Roberto - Eu quis usar a viola de cocho, não como os ribeirinhos tocam; eu não queria isto,
eu escrevi a viola de cocho com a afinação que eles usam, mas com outra sonoridade, não usei
nenhum trecho de cantigas de São Gonçalo, nada, não usei nada disso; eu só usei o
instrumento como eu poderia ter usado três bandolins por exemplo, mas eu usei a viola de
cocho porque eu queria caracterizar essa coisa da terra, e essa conexão com o Berrante. O
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Berrante é o iniciador e o finalizador deste grande círculo ternário. Eu queria esta simbiose
entre instrumentos tradicionais de orquestra e instrumentos não usuais.
Francisco - A viola de cocho pode ser considerada como ícone que representa o próprio povo
daqui e você utiliza três em Planalto Central, na época causando expectativa na comunidade
local. Você sabe qual foi a repercussão do uso deste instrumento na orquestra aqui e fora do
estado?
Roberto - Aqui teve dois lados, os cururueiros ficaram meus inimigos (risos), mas para as
pessoas que entenderam funcionou muito bem, na orquestra, na verdade, nesta pequena
orquestra com as violas de cocho. Fora, foi uma coisa demais porque não sei se já tinham
usado a viola de cocho, mas neste contexto acho que não, como instrumento solista, as três
violas de cocho à frente do grupo, como se fossem solistas mesmo: quem ficou na frente neste
agrupamento todo foram as três violas de cocho, a cantora e o narrador, estes cinco na frente
do grupo todo como solistas.Isso aí foi uma coisa que tanto repercutiu que fomos convidados
para a Tribuna da UNESCO em Paris em 1995, justamente por causa de Planalto Central no
concerto que nós fizemos na UNICAMP.
Francisco - O berrante não aparece na lista dos instrumentos da partitura manuscrita original,
como foi a decisão de inseri-lo?
Roberto - Não tinha na verdade como escrever o berrante; a gente resolveu incluir o berrante
no início como aquela coisa do trabalho que vai seguindo – se fosse hoje eu teria posto mais
umas trinta coisas diferentes – mas o berrante foi fundamental ali, tem essa coisa do Manoel
de Barros, o poema de Manoel de Barros fala dessa coisa pantaneira, tinha que estar presente
também, sem ser brega, mas ele só funciona como início e como final, ele funciona como
instrumento que delimita o início deste grande circulo ternário.
Francisco - É certo afirmar que você ao compor Planalto Central, está demonstrando o
alargamento de possibilidades da composição contemporânea aos futuros compositores
locais?
Roberto - Na época não pensava nisto, Chiquinho, porque nem estava envolvido com o
departamento dando aula, não possuía alunos, eu só estava regendo, regendo e compondo,
claro que o compositor sempre que ele compõe uma obra, sempre deixa um legado, que vai
ser analisado de uma maneira diferente, para ser visto de outra maneira e tal, mas na época
não pensava neste lado didático de Planalto Central, pensava em deixar uma obra,
aglutinando poesia, uma poesia forte, uma música forte, com uma rede interessante,
conectiva, como um corpo sonoro, isto é o que eu pensava, na realidade, e ela acaba ficando,
143
no ano seguinte já estava no Departamento de Artes e falando de Planalto Central, quer dizer,
acabou virando um material didático um ano depois.
Francisco - Planalto Central foi tocado em Cuiabá, e logo em seguida no eixo Rio-São
Paulo, qual foi o alcance desta música, onde mais pode se mencionar que Planalto Central
tenha chegado?
Roberto - Quando uma peça vai para a Tribuna Internacional da UNESCO na França, é uma
peça de cada país que vai, ou seja, tem uma comissão que escolheu Planalto Central para
representar o Brasil neste encontro mundial e no qual todas as peças são distribuídas para
todas as rádios educativas do mundo, desde a Groelândia até Zimbábue, tudo, todas as rádios
educativas do planeta estão nesta Tribuna, recebem esse material destas obras todas que são
produzidos no mundo inteiro, ou seja, com certeza Planalto Central foi tocado no mundo
inteiro por meio destas emissoras, no mínimo, além da repercussão que teve no Rio, em São
Paulo, Campinas – foi demais. As montagens de Planalto Central eram sempre o ponto alto
dos concertos e os percussionistas não acreditavam que um violinista ou uma flautista pudesse
transformar-se em um percussionista, não é? Todo mundo tocava integrado, era bacana isto,
não é? Porque todos se sentiam solistas! E isso era importante, não é Chiquinho? O problema
que acontece em uma orquestra, o grande mal, é que as pessoas se sentem só uma parte
invisível de um organismo; neste agrupamento que tinha aqui, todos eram muito visíveis,
tinha solo de todos, todos estavam aparecendo realmente envolvidos com a produção, este que
era o grande diferencial, como era no Rio de Janeiro na Orquestra de Câmara, nós fazíamos
concertos com grupos reduzidos, só percussão..., todo mundo trabalhava, todo mundo tinha
uma presença grande, não era aquela coisa que só o regente fica aparecendo – todos
aparecem.
Francisco - Você poderia mencionar alguma herança de seu trabalho por aqui?
Roberto - Acho que ficou essa coisa de uma produção grande que está saindo, agora o disco
da Teresinha Prada, só com compositores daqui, o primeiro disco do Sextante também que foi
este disco que está o Planalto Central inclusive, e que já tinha três compositores daqui, um de
Minas Gerais, eu, três compositores daqui que foram meus alunos da graduação da
especialização, o Pio Toledo, a Beth Alamino e o Lau Medeiros, um compositor de Minas e
um compositor do Amapá, quer dizer, já tinha um gérmen de uma produção compositiva que
já estava despontando por aqui; isto foi acontecendo durante estes anos todos em que eu
estava ministrando o curso de composição na graduação. Isso está ficando cada vez mais
efervescente, claro, a tendência é melhorar cada vez mais, as Bienais estão aí, os músicos
estão mais envolvidos, alunos estão mais envolvidos com a produção dos séculos XX, XXI,
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todo mundo tocando... A gente hoje passa nos corredores e ouve uma música boa sendo
tocada, as percussões aí, a gente vê que a música está acontecendo mesmo e eu acho que isso
foi um começo, não é? Foi um começo.
Francisco - Roberto, normalmente as músicas são rotuladas por algum estilo em particular,
como você nomeia sua produção.
Roberto - Estilo é uma coisa maior, não é Chiquinho? É uma coisa de reunião, já a minha
produção tem uma poética minha, que eu chamo de Música Ritual, uma música envolvida
com esse processo ritualístico, de transcendência, esse processo repetitivo – não como no
Minimalismo –, mas a utilização de dados invisíveis na composição do tecido sonoro; a
minha poética tem uma cara, como as poéticas em geral têm, mas quando enveredo por estes
afluentes, tem uma cara específica – isso é o que eu chamo de Música Ritual.
Francisco - Dentre as teorias atuais existentes para explicar a contemporaneidade podemos
mencionar a Pós-Moderna. Podemos classificar sua música como pós-moderna? Por quê?
Roberto - Não! Nem pensar. O Boulez na década de 80 já dizia que pós-moderno é antigo
demais, não tem nada de pós-moderno, isso é coisa lá do pessoal da Linguística. Música não
tem isso, não tem o menor cabimento. O que você tem são vários afluentes no século XX,
totalmente diferente das outras áreas, vários afluentes, micro-afluentes que se abriram demais
a partir da década de 10 do século passado, e que já eram hiper vanguarda, lá na década de 10,
e a gente tem hoje um paradoxo danado, a gente tem compositores da minha geração
escrevendo uma música totalmente careta, totalmente neo-romântica. Não tem nada a ver isso,
isso não se aplica à Música. O Boulez já dizia na década de 80 que não se deve nem pensar
nisso (risos), porque não tem nem definição, na verdade; o pós-moderno é qualquer coisa, se
você pedir para um linguista definir o que é pós-moderno é qualquer coisa, eles não têm uma
definição. Assim como eles não têm definição para o que é signo na Semiótica, ou seja,
qualquer coisa que tem informação, é qualquer coisa que não seja moderno, é qualquer coisa
que esteja além..., então na verdade não tem explicação para isto, como não tem explicação
para o que é Música também; é a mesma coisa, não existe (risos).
Francisco - Muito Obrigado.
Roberto - Ah! Legal.
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ANEXO A – Partitura de Planalto Central
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ANEXO B – Programa do concerto sinfônico de 28/01/1982
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ANEXO C – Programa do concerto da Orquestra Wimmer, concerto dia das mães 1982
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218
ANEXO D – Concerto de estréia de Bussiki 10/12/1986
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221
ANEXO E – Concerto de abertura de temporada 1987 de Bussiki
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226
ANEXO F – Concerto da temporada 1987 de Bussiki - 05/07/1987
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229
230
231
232
ANEXO G – Programa do 1º concerto de Ricardo Wilson, 29/03/1992
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235
236
ANEXO H – Programa do 2º concerto de Ricardo Wilson, 06/05/1992
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240
ANEXO I – Programa do 1º concerto de Victorio, 08/-4/1994
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ANEXO J – Programa de concerto, Grutas Permitidas 17/08/1994
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ANEXO K – Cartas convite para execussão de concerto
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ANEXO L – Matérias jornalísticas
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ANEXO M – Gravação de Planalto Central em Áudio/CD
O arquivo da música Planalto Central em áudio esta gravada no CD.