pintar sobre temas específicos, que vão do acadêmico§ões/revista pge/pge_13... · tiragem: 800...

600

Upload: phungkhuong

Post on 30-Nov-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • A obra que ilustra a capa desta edio, intitulada A Nova Ponte, de autoria da artista Itajacy Dornellas. O quadro foi pintado em pastel seco sobre tela texturada e retrata a ponte Carlos Lindenberg, conhecida popularmente como Ponte da Passagem, inaugurada, em Vitria (ES), no ano de 2009. A autora, alm de artista plstica, procuradora de Justia aposentada. Nascida em Guau (ES), Itajacy Dornellas gosta de pintar sobre temas especficos, que vo do acadmico ao moderno, utilizando diferentes tcnicas. Suas principais inspiraes vm da simplicidade e das lembranas da vida rural, da histria do Esprito Santo e da vivncia do povo capixaba.

  • Revista da PRocuRadoRia GeRal do estado do esPRito santo

  • issn 1808-897 X

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 1 596, 1 sem. 2014

    Revista da PRocuRadoRia GeRal do estado do esPRito santo

    v. 13, n. 13, 1 sem. 2014

  • Revista da Procuradoria Geral do Estado do Esprito Santo

    Procurador-Geral do estadoRodrigo Marques de abreu Jdice

    COMISSO EDITORIAL

    diretor resPonsvelRodrigo Francisco de Paula

    MeMbrosBruno colodetti

    Horcio augusto Mendes de sousa

    equiPe tcnicaalexandro Batista

    claudia de oliveira Barros FeitosaRenato Heitor santoro Moreira

    equiPe de Produo:Reviso: trade comunicao

    Projeto grfico: Contempornea

    capa: itajacy dornellas

    editorao: Bios

    Impresso: Grafitusa

    Exemplares desta publicao podem ser solicitados :

    Procuradoria Geral do Estado do Esprito SantoCentro de Estudos/Bibliotecaav. n. s. da Penha, 1590, 8 andar, Barro vermelhocep.: 29.057-590 vitria estel.: (27) 3636-5115Website: www.pge.es.gov.br

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo. vitria: PGe/es, 2014. semestral. issn: 1808-897 X

    1. direito Peridicos. i. Procuradoria Geral do estado do esprito santo.

    cdd: 340

    tiragem: 800 exemplares

    Os trabalhos publicados so de exclusiva responsabilidade de seus autores. As opinies neles manifestadas no corres-pondem, necessariamente, s orientaes oficiais da Procura-doria Geral do Estado.

  • GOvERnO DO ESTADO DO ESPRITO SAnTO

    Jos Renato CasagrandeGoveRnadoR do estado

    PROCURADORIA GERAL DO ESTADO

    Rodrigo Marques de Abreu JdicePRocuRadoR-GeRal do estado

    Rodrigo Francisco de PaulaPRocuRadoR do estado

    cHeFe do centRo de estudos e inFoRMaes JuRdicas

  • SUMRIOapresentao ............................................................................................ 9

    editorial .....................................................................................................11

    1 DOUTRInA

    1.1 A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade ..................................................... 15

    Alexandre Brunelli Costa

    1.2 o direito moradia frente clusula da reserva do possvel: um dilogo sobre os direitos sociais a partir da realidade poltico-social brasileira ............................................... 35

    lvaro Augusto Lauff Machado

    1.3 Parmetros para uma deciso racional em casos de judicializao de polticas pblicas .................................................. 63

    Anderson Santana Pedra

    1.4 eram eles iluminados? notas sobre o Judicirio e a democracia ................................................................................ 83

    Andr Pimentel Filho

    1.5 Panorama do reequilbrio econmico-financeiro dos contratos administrativos .........................................................113

    Arthur Moura de Souza

    1.6 deciso contra legem: sob uma perspectiva doutrinria e jurisprudencial ............................................................................. 155

    Carlos Augusto Lessa Arivabene

    1.7 A advocacia pblica estadual e sua unidade orgnica .................. 183 Claudio Penedo Madureira

    1.8 anlise jurdica da decretao de priso de secretrio estadual de sade por descumprimento de deciso judicial no mbito dos Juizados Especiais da Fazenda Pblica ................ 227

    Daniel Mazzoni

    1.9 Breves observaes acerca do direito de greve dos servidores pblicos que exercem atividades indelegveis e o corte de ponto, segundo entendimento dos tribunais superiores ...................................................................................... 255

    Guilherme Rousseff Canaan Ricardo Cesar Oliveira Occhi

    1.10 a ilegalidade da divulgao nominal da remunerao dos agentes pblicos com fundamento na lei de acesso informao (lei 12.527/2011) ..................................................... 279

    Gustavo Calmon Holliday

  • 1.11 delegaes atpicas de servios pblicos: estudo de caso a respeito da transformao de concesso de servio pblico de transporte municipal em estadual .................... 299

    Horcio Augusto Mendes de Sousa

    1.12 a constituio de 1988 e o direito fundamental do preso ressocializao pelo trabalho: implicaes pragmticas, normativas e jurisprudenciais ........................................................ 333

    Horcio Augusto Mendes de Sousa Orlando de Oliveira Gianordoli

    1.13 da (ir)retroatividade da deciso judicial que relativiza a coisa julgada ............................................................................... 357

    Luiz Henrique Miguel Pavan

    1.14 Reviso parlamentar no controle de constitucionalidade, constitucionalismo popular e humildade institucional .................... 381

    Marianna Montebello Willeman

    1.15 Qualificao econmico-financeira ................................................ 407 Pericles Ferreira de Almeida

    1.16 Direito: noo, conceituao e finalidade social ............................ 451 Reis Friede

    1.17 diferenciao de preos em processos licitatrios. o abuso de poder econmico das empresas ................................ 473

    Tatiana Cludia Santos Aquino

    1.18 a segurana jurdica e os efeitos dos atos administrativos fundados em leis inconstitucionais ....................... 495

    Thiago Alves de Figueiredo

    2 PARECER

    2.1 anlise de projeto de parceria pblico-privada para execuo de obras de adequao da infraestrutura e operao dos servios de identificao civil e criminal............... 543

    Juliana Paiva Faria Faleiro Pricles Ferreira de Almeida

    AnEXO

    normas para publicao ........................................................................ 593

  • 9

    APRESEnTAO

    como tem sido de praxe, a Procuradoria-Geral do estado do esprito santo (PGe/es) lana mais uma edio anual de sua Revista que, em 2014, chega ao seu 13 volume. a publicao tornou- se referncia entre os colegas de carreira jurdica, advo-gados, magistrados, professores e estudantes de direito.

    a Revista da PGe/es chega em um momento crucial de nosso estado, no qual a Procuradoria-Geral do estado vem sen-do cada vez mais demandada a se manifestar como rgo de controle sobre questes cujo grau de complexidade aumenta ordem de uma verdadeira progresso geomtrica.

    J no incio deste ano, a PGe/es, por meio de suas aes, fez com que o estado vislumbrasse um acrscimo de receita de participao especial da ordem de R$ 1,2 bilho, oriundo da deciso da agncia nacional de Petrleo (anP) que, acatando a tese da PGe/es, determinou que a Petrobras passasse a con-siderar como um nico campo petrolfero os campos do Parque das Baleias (an, azul, Franca, cachalote e Jubarte), bem como os campos de caxaru e Pirambu.

    ainda na rea de petrleo, a PGe/es obteve uma outra vitria parcial que poder aumentar ainda mais a produo de petrleo do estado. em ao encampada pela PGe/es, a 3 vara Federal cvel determinou a realizao de percia para ve-rificar as fronteiras de mar territorial entre os estados da Bahia, do esprito santo e Rio de Janeiro. caso a tese proposta seja confirmada pela percia, os campos petrolferos de Roncador, albacora leste e 80% do campo de Frade sero incorporados plataforma continental capixaba, ampliando sobremaneira os recursos de royalties e de participao especial para o estado.

    na rea Fiscal, a PGe/es tambm tem conseguido resulta-dos extraordinrios na arrecadao, por intermdio da cobrana extrajudicial de dvidas de empresas e pessoas fsicas com o estado. a implementao desse tipo de cobrana ampliou de 1% para 12,77% o percentual de xito na recuperao de crditos. com esse tipo de cobrana, a PGe/es contribuiu tambm para desafogar o Poder Judicirio, reduzindo o nmero de aes de

  • 10

    execuo fiscal que, em 2011, chegou a 4.693, contra no mais que 400 em 2013.

    Casos como esses s ratificam a importncia do trabalho de uma Procuradoria com profissionais de alto gabarito tcnico como os que atuam na Procuradoria-Geral do estado do espri-to santo, e que vm garantindo ao Poder executivo ganhos de arrecadao que so revertidos em obras e projetos sociais para a populao capixaba.

    com tantos exemplos de competncia, nosso grupo de pro-curadores mostrou tambm que o conhecimento acadmico sua base para a atuao na PGe/es. nos 18 artigos e um pare-cer que compem o contedo desta revista, temos a participa-o de 14 procuradores do estado do esprito santo, entre eles especialistas, mestres e doutores, que fazem desta edio uma publicao com contedo qualificado e reconhecido por toda a rea do direito.

    uma boa leitura a todos!

    Rodrigo Marques de Abreu JdicePRocuRadoR-GeRal do estado

  • 11

    EDITORIAL

    a Revista da Procuradoria-Geral do estado do esprito santo chega a sua 13 edio, reunindo 18 artigos e um pare-cer. toda a seleo do material foi realizada de forma criteriosa pelo centro de estudos e informaes Jurdicas da PGe/es (cei), de modo a manter o alto nvel dos trabalhos que vm sendo publicados desde 1997, quando a Revista lanou o seu primeiro volume.

    chama a ateno na 13 Revista da PGe/es a ampliao do nmero de procuradores de estado que contribuiu para esta edio. em 2012, quando a PGe/es lanou o volume 12 de sua Revista, cinco procuradores figuraram como autores de artigos. nesta edio, esse nmero subiu para 14procura-dores. so eles: anderson santana Pedra, arthur Moura de souza, claudio Penedo Madureira, daniel Mazzoni, Guilher-me Rousseff canaan, Ricardo cesar oliveira occhi, Gustavo csar de Mello calmon Holliday, Horcio augusto Mendes de sousa, orlando de oliveira Gianrdoli, luiz Henrique Miguel Pavan, Pricles Ferreira de almeida, tatiana cludia santos aquino, thiago alves de Figueiredo e Juliana Paiva Faria Fa-leiro.

    contriburam tambm para esse trabalho advogados e pro-fessores, mestres e doutores em direito, procuradores de ou-tros rgos e estados e um desembargador federal do Rio de Janeiro.

    no entanto, a 13 edio da Revista da PGe no seria pos-svel sem o valoroso trabalho de equipe dos servidores do cei, a quem, nas pessoas de alexandro Baptista e cludia de oliveira Barros Feitosa, fao, aqui, em nome da PGe/es, um agradeci-mento especial. igualmente, Renato Heitor santoro Moreira, da assessoria de comunicao da PGe/es, teve um papel impor-tante na organizao dos trabalhos. o empenho dessa equipe foi fundamental para que tudo se mantivesse dentro dos padres de qualidade que a publicao apresenta.

  • 12

    encerro desejando a todos uma excelente leitura e alertan-do aos interessados em publicar conosco que j estamos rece-bendo novos artigos e pareceres para o volume 14 da Revista, que dever ser lanada no final de 2014.

    Rodrigo Francisco de PaulaPRocuRadoR-cHeFe do centRo de estudos

    e inFoRMaes JuRdicas (cei)

    PRocuRadoRia-GeRal do estado do esPRito santo (PGe/es)

  • 1 doutRina

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    15

    1.1

    A TOLERnCIA RELIGIOSA E O COnTRATO SOCIAL: UMA RELEITURA

    DA vISO ROUSSEAUnIAnA ACERCA DA nECESSIDADE DE TOLERnCIA

    nA vIDA EM SOCIEDADE

    aleXandRe BRunelli costa*

    suMRio: 1 introduo. 2 a religio e a tolerncia religiosa. 2.1 Conceito de tolerncia. 2.2 A questo da tolerncia religiosa em Rousseau. 2.3 Espcies de religio. 2.4 A viso contempornea de tolerncia religiosa. 2.4.1 O pluralismo de valores, tolerncia e intolerncia. 2.4.2 Tolerncia no contexto poltico-pedaggico: edu-cao como ethos da diferena. 3 o pacto social. 4 concluso. 5 Referncias.

    1 IntroduoO filsofo Jean Jacques Rousseau contribuiu muito signifi-

    cativamente para o chamado sculo das luzes, juntamente com outros importantes pensadores do perodo, como Hobbes, Lo-cke, e Montesquieu.

    suo de nascimento, Rousseau escolheu a Frana para vi-ver, entre idas e vindas, at sua morte, ocorrida na cidade de Ermenonville. a convivncia com esse ambiente favorvel tam-bm deve ter influenciado positivamente no amadurecimento de seu pensamento, haja vista a efervescncia cultural presente na segunda metade do sculo Xviii. duas de suas maiores obras foram publicadas no ano de 1.762: o Contrato Social e o Emlio.

    De famlia humilde, pois era filho de relojoeiro, Rousseau foi um filsofo a margem dos grandes nomes de seu sculo, e nem por isso permaneceu afastado dos grandes debates de seu tempo.

    * Graduado em direito pela uFes. especialista em Hermenutica Jurdica e Prtica Judiciria pela uFes. Bacharelando em Filosofia pela UFES.

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa16

    embora, por vezes, incompreendido, o autor genebrino se viu tendo que se refugiar noutras cidades do velho continente, como quando o Parlamento de Paris condenou a obra Emilio a ser queimada e seu autor pena de priso.

    apesar de sua grande capacidade intelectual, Rousseau exerceu os ofcios de gravador e copiador de msica, para po-der sobreviver.

    Outro fato no menos influente sobre seus escritos que Rousseau, mesmo tendo convivido com um pastor protestante, na infncia, decidiu por se converter ao catolicismo, da a pre-sena da verve crist em sua abordagem sobre a temtica da religio e, por efeito, na questo da tolerncia religiosa e civil.

    Para citar um exemplo, em uma das cartas endereadas a voltaire (Cartas sobre a providncia, de 18 de agosto de 1.756), Rousseau j antecipava a questo que viria a ser mais bem explicitada no seu Contrato Social, a de atender-se a Csar e a Cristo na velha e desafiadora proposio bblica que afirma ser impossvel servir a dois senhores.

    isto , a discusso que gira em torno de saber como obter a paz social em governos nacionais politestas. Para o clebre autor, a intolerncia teolgica e civil so naturalmente a mesma.

    Assim, estudar a tolerncia religiosa e sua influncia naquela que pode ser considerada a obra de maior destaque desse autor para a filosofia (Contrato Social) constitui a essncia deste artigo.

    2 A religio e a tolerncia religiosa

    2.1 Conceito de tolernciaA tolerncia1 uma ideia moderna com contornos traados

    em longa luta histrica, sobretudo a religiosa, na qual so expos-tos os limites do dogmatismo.

    Por dogma, entende-se uma verdade inquestionvel. de onde se conclui que aes baseadas no dogmatismo, como von-

    1 Voltaire tambm se dedica ao tema da tolerncia. Escreve que ela constitui um apangio da humanidade. Aquilo que lhe caracteriza. E condena a intolerncia. Para ele, a discrdia o grande mal do gnero humano e a tolerncia seu nico remdio. J no sculo XX, Gadamer escreve que a tolerncia se apre-senta no como um signo da debilidade e sim da fortaleza.

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    17

    tades imperialistas, nacionalismos, e racismos, produzem como resultado sofrimento e humilhao.

    dessa experincia e das ideias libertrias defendidas pelos iluministas emergiram uma srie de contribuies tericas, que pavimentaram o caminho para que a ideia de tolerncia fosse assimilada pela conscincia dos povos, como condio de so-brevivncia nas sociedades pluralistas, o que confere tolern-cia um carter positivo.

    2.2 A questo da tolerncia religiosa em RousseauNo mbito filosfico, um dos textos mais conhecidos sobre

    a tolerncia religiosa a Carta sobre a tolerncia, de John lo-cke, de 1.689, que tem como contexto a perseguio religiosa na Inglaterra do final do sc. XVII, e trata da separao entre a vida civil e a vida religiosa. Pelo princpio da tolerncia estaria garantido o interesse religioso da igreja e o interesse poltico do estado. Locke associa tolerncia e racionalidade, em razo da laicizao do estado.

    J Rousseau aborda o tema da religio civil e da tolerncia religiosa e civil no captulo viii do livro iv do Contrato Social. Para o autor genebrino, os homens de modo algum tiveram a princpio outros reis alm dos deuses, nem outro governo seno o teocrtico.

    aps uma lenta alterao de sentimentos e de ideias, fruto da evoluo social humana, os homens passaram a aceitar ou-tro semelhante como seu senhor e se persuadir de que assim se estariam bem.

    se antes havia um deus em cada sociedade, dois povos estranhos um ao outro, geralmente inimigos, no poderiam re-conhecer por muito tempo um mesmo senhor, mas isso no implicava conflitos religiosos, pois apenas um no reconhecia o deus do outro. a guerra poltica era tambm teolgica, j que nos estados monotestas, no se distinguiam os deuses de suas leis.

    Foram as divises nacionais que resultaram no politesmo (dentro de um mesmo estado) que deflagraram os conflitos reli-

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa18

    giosos. Pelo simples fato de que o deus de um povo no dispu-nha de qualquer direito sobre os outros povos.

    exemplo claro disso advm do caso dos judeus. textual-mente escreve:

    Quando, porm os judeus, submetidos aos reis da Babilnia e em seguida aos da sria, obstinadamente no quiseram reconhecer nenhum outro deus alm do seu, essa recusa, considerada como uma rebelio contra o vencedor, incitou contra eles as perseguies que se encontram na sua His-tria e das quais no se conhece outro exemplo antes do cristianismo2.

    no tempo em que cada religio encontrava-se ligada unica-mente s leis do estado que as prescrevia, absolutamente no havia maneira de converter um povo seno dominando-o, nem outros missionrios que no os conquistadores.

    diferentemente do exemplo dos judeus, a estratgia de dominao dos povos romanos se revelou mais eficiente, a ponto de permitir que o imprio romano se estendesse do oci-dente ao oriente. Pois, alm de adotar os cultos e deuses dos vencidos, os romanos concediam o direito de plis, de modo que os povos habitantes desse vasto imprio passaram sem sentir a contar com uma multido de deuses e de cultos, quase que os mesmos em todos os lugares, e, assim, o paga-nismo foi finalmente conhecido no mundo como uma nica e mesma religio.

    nesse contexto, com a vinda de cristo e o estabelecimento de um reino espiritual, houve a separao do sistema teolgi-co do poltico. e como a ideia de um reino num outro mundo supraexistencial nunca penetrou na cabea dos pagos, estes consideraram os cristos verdadeiros rebeldes, fato que motivou a posterior perseguio destes por aqueles.

    segundo Rousseau, de um reino num outro plano existen-cial, os cristos acabaram por busc-lo aqui mesmo, sob um chefe visvel, o mais violento despotismo.

    2 Rousseau, Jean Jacques. Do contrato social: ensaio sobre a origem das lnguas. traduo lourdes santos Machado. 4. ed. so Paulo: nova cultural, 1987. p. 138.

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    19

    no entanto, como sempre houve um prncipe (para o go-verno dos homens) e leis civis, resultou dessa dupla posse um conflito perptuo de jurisdio que tornou toda a boa poltica im-possvel aos estados cristos se jamais e conseguiu saber se era ao senhor ou ao padre que se estava obrigado a obedecer.

    nestas breves linhas, observa-se como Rousseau aprofun-da a questo religiosa e civil, ao afirmar que nos Estados onde a lei religiosa era tambm a lei civil no havia motivos para dis-crdias, ainda que num outro estado vizinho vigorasse o culto a outro deus. Mas, a partir do ponto em que dentro de um mesmo estado passou-se a admitir o culto a vrios deuses, com a sepa-rao da lei civil e da religiosa, a discrdia se instalou, e nestes nunca mais houve paz.

    Avanando na anlise, Rousseau afirma que outros povos at tentaram restabelecer o antigo sistema, porm sem xito. o esprito do cristianismo tomou conta de tudo. Ressalta a ten-tativa de Maom, que ligou muito bem seu sistema poltico, en-quanto a forma de seu governo persistiu entre os califas (chefes supremos do islamismo) que o sucederam, at quando os ra-bes foram subjugados por brbaros, que reiniciaram a diviso entre os dois poderes.

    Mais, em todo lugar em que o clero forma um corpo , na sua alada, senhor e legislador. Por isso, tanto na inglaterra quanto na Rssia, apesar de o rei e o czar, respectivamente, se torna-rem tambm chefes da igreja, tudo no permaneceu inalterado, porque nesses dois casos continuaram coexistindo dois poderes e dois soberanos.

    Afirma o clebre autor que, de todos os autores cristos, Hobbes foi o nico que viu muito bem o mal e o remdio para a questo da separao do poder poltico e do religioso.

    decerto, o esprito dominador do cristianismo era incompa-tvel com seu sistema j que o interesse do padre sempre seria mais forte do que o do estado.

    Nos pareceres de Bayle e Warburton, Rousseau afirma que jamais se fundou qualquer estado cuja base no fosse a reli-gio, bem ainda que a lei crist mais prejudicial do que til firme constituio do Estado (CONCEIO, 2010, p. 118).

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa20

    2.3 Espcies de religioPara seguir adiante, cumpre distinguir trs espcies de reli-

    gio, que assim so definidas por Rousseau:

    i) a religio do homem ou o cristianismo do Evangelho3, sem templos, altares e ritos, limitada ao culto puramente interior do deus supremo e aos deveres eternos da mo-ral, a religio pura e simples do evangelho, o verdadeiro tesmo4, que pode ser chamado de direito divino natural;

    ii) a do cidado ou dos primeiros povos, inscrita num s pas, com seus deuses, seus padroeiros prprios e tu-telares. tem seus dogmas, seus ritos, seu culto exterior prescrito por lei, e considera infiis estrangeiros e brba-ros os demais que no a seguem. Por fim, ela s leva os deveres e direitos do homem at onde vo seus altares, sendo denominada direito divino civil ou positivo;

    iii) e, uma terceira espcie, mais estranha, na qual se inse-re o cristianismo romano, entre outros. comenta o autor genebrino que esta d ao homem duas legislaes, dois chefes, duas ptrias, o submetendo a deveres contradi-trios e o impedindo de poder ao mesmo tempo ser de-voto e cidado, chamada de religio do padre e resulta num direito misto e insocivel.

    sob uma perspectiva poltica, todas trs espcies possuem defeitos, mas, de todas elas, a ltima a pior, visto que rompe a unidade social, pondo o homem em contradio consigo mesmo.

    a penltima boa, por um lado, e m, por outro. enquanto une o culto divino ao amor das leis e ensina que servir o estado servir o deus tutelar, reputada boa. Resume-se numa esp-cie de teocracia em que o pontfice deve ser tambm o prncipe. Morrer pela ptria alcanar o martrio, violar as leis mpio, e submeter um culpado execrao pblica devot-lo clera dos deuses (sacer esto: seja sacrificado aos deuses).

    3 este completamente diverso daquele pregado ou professado pelos romanos.4 crena na existncia de vrios deuses.

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    21

    ocorre que, fundando-se no erro e na mentira, essa religio engana os homens, torna-os crdulos, supersticiosos, e submer-ge o verdadeiro culto da divindade num cerimonial vo, assim m. e mais: permite que a tirania se instale e que transforme o povo em sanguinrio e intolerante com relao aos demais que no professam da mesma f.

    Por sua vez, a antepenltima espcie, escreve Rousseau, revela-se uma religio santa, sublime, verdadeira, os homens, filhos de um mesmo e nico Deus, se reconhecem irmos e iguais, com o que a sociedade assim formada no se dissolve nem com a morte.

    no entanto, essa religio falha igualmente s demais ao dei-xar as leis unicamente com a fora que tiram de si mesmas. Por isso, fica fragilizado um dos grandes elos da sociedade particu-lar (o eu comum). desse modo, o cristianismo do Evangelho no capaz de ligar os coraes dos cidados ao estado. isso contraria o esprito social.

    Para o filsofo, uma sociedade de cristo no formaria nem uma sociedade mais perfeita nem seria uma sociedade de ho-mens. explica-se: fora de ser perfeita, faltar-lhe-ia coeso, vcio que destri a prpria ideia de coeso.

    sendo o cristianismo uma religio inteiramente espiritual, a ptria do cristo no pertence a este mundo (terreno), onde o Estado tem seus alicerces e encontra sua finalidade. Conse-quentemente o cristo cumpre seu dever perante a lei, mas o faz com uma indiferena profunda quanto ao bom ou mau sucesso do seu trabalho, j que vive na esperana da vida eterna.

    Para que uma sociedade fosse pacfica e vivesse em har-monia seria necessrio que todos os cidados fossem igualmen-te bons cristos; mas ainda que um nico no fosse bom, esse seria responsvel pela deflagrao dos conflitos no seio social.

    Prosseguindo nesta anlise, Rousseau considera que uma repblica crist uma contradio em termos, pois um exclui o outro. o cristianismo prega a servido e dependncia (os ver-dadeiros cristos so feitos para ser escravos), ao passo que a repblica pressupe sujeitos livres e independentes.

    Reconhece o filsofo que, como o Evangelho de modo al-gum estabelece uma religio nacional, impossvel conceber

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa22

    uma guerra sagrada entre os prprios cristos. tanto assim que, quando os imperadores passaram a ser cristos, ou seja, quando a cruz expulsou a guia, desapareceu todo o valor ro-mano dos soldados cristos que, sob os imperadores pagos, se mostravam5 bravos.

    avanando alm da poltica, o autor volta-se ainda para o direito, e conclui que o direito que o pacto social d ao soberano sobre os sditos no ultrapassa os limites da utilidade pblica. de modo que os sditos somente devem ao soberano as contas de suas opinies enquanto elas interessam comunidade.

    Por isso, interessa ao soberano, apenas, que cada cidado tenha uma religio que o faa amar seus deveres (civis).

    Mas, h uma profisso de f puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar como sentimentos de sociabilidade, sem os quais impossvel ser um bom cidado ou sdito fiel.

    esses dogmas da religio civil devem existir em pequeno nmero e ser o mais simples possvel, sem necessidade de ex-plicaes ou comentrios. dessa ordem, tem-se: dogmas posi-tivos (divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e provisora, a felicidade dos justos, a santidade do contrato social e das leis) e dogmas negativos (a intolerncia que pertence aos cultos que exclumos).

    Sobre esse ltimo ponto, no h distino entre a intolern-cia civil e a teolgica, que so inseparveis6. implica dizer que, em todos os lugares onde se admite a intolerncia religiosa, impossvel que no tenha um efeito civil e, assim que surge, o soberano no mais o , mesmo temporalmente (KaWaucHe, 2008, p. 130).

    e, quando no existe mais e no pode existir qualquer re-ligio nacional exclusiva, devem-se tolerar todas aquelas que

    5 Para Rousseau, sob a gide de um imperador pago, os soldados cristos emulavam bravura, pelo simples fato de que so predispostos para a paz e no para a guerra.

    6 escreve Rousseau: Na minha opinio, enganam-se os que distinguem a intolerncia civil da intolerncia teolgica. Essas duas intolerncias so inseparveis. impossvel viver em paz com gente que se cr danada; am-la seria odiar a Deus que a castiga; absolutamente necessrio convert-la ou puni-la. Onde quer que a intolerncia teolgica seja admitida, toma-se impossvel que no haja algum efeito civil; e to logo este aparea deixa o soberano de ser soberano, mesmo em relao ao poder temporal a partir de ento, os sacerdotes passam a ser os verdadeiros senhores, e os reis apenas seus oficiais. Rousseau, Jean Jacques. Do contrato social. disponvel em: . p. 66. acesso em: 11 mar. 2014.

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    23

    toleram as demais, desde que seus dogmas em nada contrariem os deveres do cidado.

    em sua feliz concluso, Rousseau anota que o dogma de que fora da Igreja no h salvao somente serve a um governo teocrtico, porque em qualquer outro ser pernicioso.

    com efeito, o poder poltico tem uma forte ligao com o poder religioso, na perspectiva rousseauniana, no tanto para estabelecer o governo civil, mas para auxiliar em sua conserva-o e no respeito s leis por parte do cidado.

    Para isso, contribui significativamente a necessidade de que os cidados vinculados a um determinado credo respeitem os demais cidados e suas respectivas crenas, j que admitida a presena de vrios deuses num mesmo estado, o tesmo.

    no passado, os monotesmos serviam de impedimento in-tolerncia, mas se estes no tm mais lugar, da resulta que a in-tolerncia se faz uma ameaa premente que precisa ser contida, pelas leis civis e religiosas, a fim de evitar riscos comunidade.

    com isso fcil de ver a funo relevante a ser exercida pela tolerncia religiosa e civil nas sociedades modernas, sob pena de rompimento do tecido social, porque, para que uma reli-gio no conflite com a outra, foroso que se reconheam mu-tuamente, como capazes de professar uma f, e no interfiram umas noutras, sendo vlido o mesmo para as leis civis, na vida interna do estado.

    2.4 A viso contempornea de tolerncia religiosano sculo seguinte (XiX), apresentando uma contribuio

    ao pensamento de Rousseau, stuart Mill acrescenta ideia de tolerncia religiosa a importncia do pluralismo, da liberdade de opinio e crena, baseado na independncia do indivduo. Mill adota como princpio que a autoproteo constitui a nica finali-dade pela qual se garante humanidade, individual ou coletiva-mente, interferir na liberdade de ao de qualquer um. ou seja, somente se deve admitir a interferncia na liberdade de algum se for para evitar danos liberdade dos demais (HeRMann, 2006, p. 4).

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa24

    Mill amplia a liberdade para alm do campo religioso e destaca-se de Locke quando condena a intolerncia pelos prejuzos que provoca. a liberdade de opinio est associada liberdade de discusso. Por isso, a condio de errncia e de falibilidade humana s pode ser superada pela discusso livre. Pela proposta de Mill, a liberdade deve se dar pela au-sncia de interferncias e pela capacidade de livre escolha, com o que a tolerncia independe do efetivo reconhecimento do outro.

    Junto com as reflexes filosficas, a ideia de tolerncia rece-beu grande contribuio da sensibilidade esttica, como aquela advinda da obra de Gotthold lessing, em sua pea de teatro Na-than der weise, que remete fbula dos trs anis, inspirada na terceira novela da primeira jornada do Decameron, de Boccac-cio, no qual se busca saber qual das leis religiosas a legtima herdeira de deus. a fora artstica da pea consiste em narrar o quanto a tolerncia deve contar com a alteridade do outro (HER-Mann, 2006, p. 5).

    a partir desse ponto, segundo schmidinger apud Hermann (2006, p. 6), a tolerncia passa a significar o respeito a opinies, pessoas e aes, independentemente de suas respectivas vi-ses de mundo.

    A tolerncia no possui um objetivo prprio, mas serve de condio para que os valores possam se desenvolver. Signifi-ca dizer que a tolerncia pressupe que nenhum indivduo nem uma comunidade podem levantar uma pretenso de verdade absoluta para suas crenas e verdades e que as mesmas per-manecem relativas ao seu contexto.

    2.4.1 O pluralismo de valores, tolerncia e intolerncia

    na modernidade, o pluralismo torna-se condio indispen-svel cincia, arte, ao direito e poltica, a fim de corrigir a unilateralidade do pensamento.

    a tematizao da categoria pluralidade foi promovida por Kant, em Antropologische Didaktik, como um modo de pensar no qual se deve tomar em relevo a perspectiva do outro genera-lizado, o cosmopolita (HeRMann, 2006, p. 6).

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    25

    o pluralismo exige uma descentrao do eu. assim, o plu-ralismo condio necessria para a tolerncia e participa da liberdade poltica moderna.

    o discurso iluminista carrega consigo a ideia de homem uni-versal. este deve ser confrontado com a pluralidade das dife-rentes perspectivas. Por certo, rejeitar o pluralismo nos leva intolerncia.

    A tolerncia como valor relaciona-se diretamente com a abertura ao reconhecimento da alteridade e da diferena. Para Walzer apud Hermann (2006, p. 7), a tolerncia torna a diferen-a possvel e a diferena torna a tolerncia necessria. Embora no haja pluralismo sem tolerncia, a existncia de pluralismo, por si s, no garante a tolerncia.

    Para Gadamer apud Hermann (2006, p.7), a contemporanei-dade e seus processos geram uma espcie de domnio univer-sal. Assim, o impulso iluminista que gerou a ideia de tolerncia tambm gerou um grau de universalidade dominante, por meio do predomnio da racionalizao instrumental, em que o diferen-te passa a ser rejeitado.

    Para que a tolerncia no decaia em intolerncia, neces-srio o reconhecimento do outro e da pluralidade das alteridades existentes. A tolerncia no sobrevive no espao da racionalida-de instrumental e limitada, em que o outro subsumido (HeR-Mann, 2006, p. 7).

    o reconhecimento do outro depende de uma nova racionali-dade, que deve se efetivar por processos intersubjetivos. tole-rncia se ope a subjetividade. Ao afirmar a identidade, o sujeito no mais reconhece o outro.

    A tarefa moral da tolerncia hoje ultrapassa as dimenses que lhe deram origem. dentro de um contexto de exacerbao da violncia torna-se urgente a tarefa de (re)analisar a ideia de tolerncia. necessrio ensinar s novas geraes a importn-cia do combate intolerncia, como fez Voltaire, no passado, e o fizeram, em tempos mais prximos, Derrida e Habermas, que, apesar de suas diferenas, contribuem significativamente para a reformulao da ideia.

    derrida apud Hermann (2006, p. 9) encarna o terico da des-construo, por entender que alguns princpios e valores ociden-

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa26

    tais que possuem pretenso de validade universal no passam de mecanismos de tentativa de impor vantagens a determinados grupos que representam o poder dominante.

    ainda segundo derrida, o mesmo ocorre com a ideia de to-lerncia, originada nas lutas religiosas, que carrega um rema-nescente de paternalismo em que o outro no visto como um outro. Por isso ele defende a necessidade de revisar o conceito de tolerncia luz das transformaes da tecnocincia, da glo-balizao e da telemdia.

    Derrida prope ainda, ao invs da tolerncia, a hospitalida-de. a diferena entre ambas reside naquilo que pode ou no ser acolhido. A hospitalidade limitada tolerncia (vigiada). Re-vela constituir um verdadeiro limite para a tolerncia ao aceitar o outro apenas at certo ponto, ou seja, uma hospitalidade condicional, na qual aceitamos o outro desde que ele obedea s nossas regras, linguagens e costumes. ao contrrio, a hospi-talidade incondicional no um convite, mas est aberta para algum que no esperado nem convidado, um totalmente outro. derrida reconhece haver uma tenso paradoxal entre as duas formas de hospitalidade, pois heterogneas (podemos nos mover de uma a outra apenas por um salto absoluto) e indisso-civeis (no posso abrir a porta sem tornar essa hospitalidade efetiva).

    assim, derrida espera que o conceito de hospitalidade se torne mais amplo que o de tolerncia. Sendo que a hospitali-dade incondicional possibilidade de abertura ao outro. Para isso, apoia-se em Kant, na obra paz perptua, entre direito de convite e direito de visitao.

    Por outro lado, Habermas apud Hermann (2006, p. 11) tam-bm reconhece que algumas de nossas ideias que se univer-salizaram devem ser submetidas a uma impiedosa crtica. ele reinterpreta a tolerncia a partir de uma comunidade democrti-ca, articuladamente com a ao e a racionalidade comunicativa. Compartilha a crtica ao carter paternalista da tolerncia.

    Para Habermas, os limites do que tolervel so determina-dos arbitrariamente pela autoridade e isso traz o cerne da into-lerncia. Portanto, o padro comum para julgar os limites da to-lerncia a lealdade aos princpios democrticos, contidos nas

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    27

    prprias constituies democrticas, atravs de procedimentos prprios que permitam revisar autorreflexivamente suas prprias fronteiras.

    segundo Habermas, participantes livres e iguais podem arti-cular racional e discursivamente conflitos e alcanar um acordo comum, livre de manipulao e violncia. Ele reafirma ainda a importncia de padres universalistas da moral.

    Derrida e Habermas reinterpretam a tolerncia consideran-do a complexidade de sociedades pluralistas e o compromisso com a tradio de liberdade. em comum, reconhecem a alteri-dade como condio para o alargamento da ideia de tolerncia. o desconstrutivismo denuncia o carter repressivo da razo oci-dental. a racionalidade intersubjetiva sabe dos limites de nossa compreenso e aprende a adotar perspectivas mtuas, interpre-tadas intersubjetivamente.

    Honnet discorre sobre o reconhecimento do outro pela inter-subjetividade, a ponto de escrever que a liberdade de autorrea-lizao depende de pressupostos que s podem ser adquiridos na presena do outro.

    2.4.2 Tolerncia no contexto poltico-pedaggico: educao como ethos da diferena

    A tolerncia introduzida no contexto pedaggico como um dos valores do nosso mundo comum e assume uma dimenso formativa, dada a proximidade entre a formao humana na teo-ria da educao e a valorizao da tolerncia, quando remetem para a fundamentao moderna do ser racional, do sujeito aut-nomo e da liberdade individual.

    A tolerncia passa a orientar a ao educacional desde a criao dos sistemas pblicos de ensino, como uma das media-es entre o sujeito e o mundo.

    No obstante, a relao entre tolerncia e educao se tor-na problemtica pelos mesmos motivos que envolvem a questo da tolerncia e da intolerncia.

    Os novos caminhos para a tolerncia na educao se abrem a partir da recepo da desconstruo e do multiculturalismo, que iro recontextualiz-las num ethos da diferena.

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa28

    num primeiro aspecto, a crtica desconstrutivista aponta a incorporao da tolerncia como um valor de nvel mnimo, ou seja, um deixar que o outro no seja impedido, o que pode degradar em uma desconfiana, recusa e, at mesmo dio. A desconstruo da verdade absoluta contribui para a abertura ao outro.

    a questo do erro, isto , da falibilidade humana, j constava nos textos de Mill e voltaire, e permite que a imaginao articule novas formas de interveno que acolha a diferena. deve-se fazer valer a dimenso da esttica da educao.

    Num segundo aspecto, a tolerncia tem sua dimenso acen-tuada como um valor moral a partir do multiculturalismo.

    Para tanto, necessrio desenvolver uma racionalidade in-tersubjetiva, capaz de enfrentar a tenso entre tolerncia e into-lerncia. Uma dialogicidade em que se estabelea uma abertura para o outro.

    A tolerncia do valor moral se associa defesa de um ethos da diferena, na forma defendida por Reichenbach apud Her-mann, quando afirma que a educao aquisio de um ethos no trato com a diferena, em que o conflito do sujeito com o mundo no mais que o conflito com a diferena (2006, p. 15).

    nessa linha, Walzer apud Hermann adverte que ningum aprender bastante se no se familiarizar com diferentes enga-jamentos (2006, p. 15).

    em suma, alm do reconhecimento das diferenas preciso rever nossa interpretao da tolerncia, em nome da mais au-tntica tradio da educao, que, segundo os gregos, entende--se como dilogo.

    3 O pacto social Rousseau detm o mrito de tratar exaustivamente de um

    dos temas mais relevantes da filosofia poltica clssica, o con-trato social, sobretudo ao propor o exerccio da soberania pelo povo, contrariando o pensamento predominante na poca. so-berano o povo, e no o governante.

    no obstante, uma ressalva necessria antes de se avan-ar no tema. a questo do pacto social foi tratada por Rousseau

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    29

    em duas obras: Contrato Social e Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. esta ltima precede aquela cronologicamente.

    Fixada essa noo bsica, chegado o ponto de observar que, para Rousseau, o homem nasce livre, e por toda parte en-contra-se aprisionado.

    a trajetria do homem, da sua condio de liberdade no es-tado de natureza7 at o surgimento da propriedade (privada), com todos seus inconvenientes, foi tratada no Discurso sobre a origem da desigualdade.

    nessa obra, Rousseau visa reconstruir hipoteticamente a histria da humanidade, deixando de lado os fatos, pelo fato de que estes so de difcil verificao ante a insuficincia dos ves-tgios deixados pelos homens, para que se elabore uma ideia precisa de toda a sua histria.

    J no Contrato Social, Rousseau apresentar um dever-ser de toda ao poltica, indicando as condies de possibilidade de um pacto (social) legtimo, atravs do qual os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural, ganhem, em troca, a liberdade civil.

    Para tanto, o fundamental a condio de igualdade das partes contratantes. Nenhum homem tem autoridade natural sobre seus semelhantes (Rousseau,1987).

    na condio de iguais, nenhum homem poderia, ento, pretender-se superior aos demais. caberia, agora, proceder na busca de outro elemento de ligao entre os homens e o poder. Porque a fora no faz o direito (Rousseau,1987).

    nesse aspecto, o mrito de Rousseau foi justamente con-ceber que somente a fora de um pacto em que todos se reco-nhecessem iguais e decidissem por entregar a representao do poder a apenas um que poderia dar sustentao ao corpo

    7 segundo o autor, nesse estado (pr-contrato) os homens eram bons e felizes enquanto cuidavam de sua prpria sobrevivncia, at o momento em que criada a propriedade e uns passam a trabalhar para outros, gerando escravido e misria. o terico do bom selvagem concebe que foi a introduo da desigualdade entre os homens, com a predominncia da lei do mais forte, que tornou os homens ruins, no a natureza. o contrato social, para ser legtimo, exige que o povo igual e livre esteja reunido sob uma s vontade, por sua prpria deliberao: este ato de associao produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos so os votos das assemblia e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade (Rousseau, 1987, p. 39).

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa30

    poltico. Porm, no basta um momento inicial de legitimidade, preciso que esta permanea, ou seja, mantenha-se por todo o tempo, sob o risco de ruir a estrutura de poder na sociedade assim estabelecida. constitui uma verdadeira mxima rousseau-niana a afirmao de que

    um povo s ser livre quando tiver todas as condies de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obedincia a essas mesmas leis signifique, na verdade, uma submisso deliberao de si mesmo (WeFFoRt, 2003, p. 196).

    segundo Rousseau, o corpo soberano que surge aps o contrato o nico capaz de determinar o modo de funciona-mento da mquina poltica. com isso, estariam dadas todas as condies para a realizao da liberdade civil.

    noutras palavras, se homens se reconhecendo iguais se atribuem leis vlidas para todos, a obedincia decorrer no da fora (fsica ou moral) com que a lei (im)posta, mas pelo fato de cada homem ver nela o resultado da sua vontade, de se sen-tir seu coautor, e j que dada a si mesmo, de modo livre, no resta aos homens outro caminho que no o cumprimento volun-trio da lei.

    Para o ponto, interessa deixar assentado que a fora do pacto social est necessariamente atrelada ao reconhecimento mtuo da condio de igualdade, que, por sua vez, constitui a garantia da liberdade civil. Bem como, o poder pertence ao povo e se este decide por ced-lo comunidade toda, de modo que no o trans-fere pessoa do governante, mas vontade geral, para que se cumpram os fins desta, como a promoo da paz social.

    o pacto social constitui um meio para preservao dos ho-mens, que no dispem de outro meio seno a agregao de foras. esse contrato possui uma s clusula: a alienao total de cada associado, com todos os seus direitos, comunidade toda, pois, em primeiro lugar, desde que cada um se d completamen-te, a condio igual para todos e, sendo a condio igual para todos, ningum se interessa em torn-la onerosa aos demais.

    uma ltima ressalva: para Rousseau, o governo tambm deve obedincia s leis, por isso est submetido vontade so-

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    31

    berana do povo, embora o prprio autor reconhea que o gover-no tende a subjugar o povo que o criou.

    J em relao representao poltica, Rousseau revela-se contrrio a ela no nvel da soberania, a ponto de escrever no livro iii do Contrato Social que uma vontade no se representa, porque a soberania inalienvel.

    contudo, o autor reconhece a necessidade de existirem representantes em nvel de governo, e alerta para que destes tambm no se descuide, pois tendem a agir em nome prprio, e no em nome daqueles que representam. Com o fim de evitar esse problema, prope a alternncia dos representantes.

    com a adeso ao contrato o homem perde a sua liberdade natural (que s conhece limites nas foras de outro indivduo), e um direito ilimitado a tudo que o seduz e que ele pode alcanar. todavia, recebe em troca a liberdade civil (que se limita apenas pela vontade geral) e a propriedade de tudo que possui (sendo esta distinta da posse, que corresponde ao efeito da fora ou o direito do primeiro ocupante8, da propriedade, que s pode fundar-se num ttulo positivo).

    o Contrato Social serviu aos anseios dos revolucionrios franceses de 1.789, e tem sido utilizado at os dias atuas para fundamentar, sobretudo, a legitimidade do corpo poltico, da sua inegvel contribuio para o pensamento filosfico em pleno s-culo XXi.

    4 ConclusoA perspectiva abordada pelo filsofo contratualista leva

    compreenso de que os planos religiosos e civis estiveram um-bilicalmente ligados nas religies monotestas, servindo de elo comum entre os cidados ao estado, e neste perodo no ha-via maior dissenso dentre os governos teocrticos nem dentre as diversas religies. Mas, como um no reconhecia o deus do

    8 Assim entendido, grosso modo, como aquele que primeiro fincou sua estaca na terra e nela se manteve sem a oposio de outro mais forte.

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa32

    outro, a guerra poltica seria tambm teolgica nesses estados, porque indistintos eram os deuses de suas respectivas leis.

    Foi a partir do surgimento dos estados nacionais e do polite-smo que as guerras religiosas e civis tiveram incio.

    e, embora o cristianismo do evangelho tenha o mrito de conceber um cidado bom, essa religio foi incapaz, por si s, de ligar o homem comunidade, j que toda a sua proposta centra-se numa vida em outro plano, no neste, onde atuam o Governo e as leis civis.

    Em decorrncia do pluralismo, a ideia de tolerncia adqui-riu novos contornos, que a torna uma condio indispensvel cincia, arte, ao direito e poltica, a fim de corrigir a uni-lateralidade do pensamento, nomeadamente, nas sociedades cosmopolitas. sob essa perspectiva, o homem universal dos iluministas confronta-se com o homem plural dos sculos XX e XXi, enquanto a questo de como (re)ligar o homem (nova) sociedade se revela ainda em aberto.

    Consequentemente, a tolerncia passa a ser compreendida como um valor, uma abertura ao reconhecimento da alteridade e da diferena. Sob a tica pedaggica, a tolerncia tende a ser vista como um dos valores do nosso mundo comum e assume uma dimenso formativa, passando a orientar a ao educacio-nal, e mediando interaes entre o sujeito e o mundo. os novos caminhos para a tolerncia na educao exigem uma recontex-tualizao num ethos da diferena.

    Certamente, a tolerncia constitui um valor moral a partir do multiculturalismo, e alm do reconhecimento mtuo das di-ferenas preciso rever a interpretao do termo tolerncia, em nome da mais autntica tradio da educao, que, segundo os gregos, entende-se como dilogo.

    no aspecto poltico, Rousseau elabora a tese do Contrato Social como indispensvel manuteno da paz social e da consecuo dos fins do Estado, sob o risco de retorno ao estado de natureza, que embora fosse bom, restou conspurcado pelo domnio do mais forte, bem como pela criao da propriedade (privada), por ser o homem, agora, incapaz de garantir sua pr-pria segurana, e por extenso a posse e propriedade de seus respectivos bens.

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    A tolerncia religiosa e o contrato social: uma releitura da viso rousseauniana acerca da necessidade de tolerncia na vida em sociedade

    33

    Fixadas essas balizas, extrai-se da defesa da tolerncia re-ligiosa e do contrato social que o cidado no pode deixar de considerar o respeito lei religiosa e civil, ainda que viva num Governo testa, o que exige de cada cidado um esforo muito maior que aquele experimentado nos Governos teocrticos, pois ainda que o cristo no se sinta vinculado fortemente ao estado, na busca da paz social, preciso que um vnculo (jurdico, so-cial, ou religioso) se estabelea, para que o cidado no atente contra a lei. Para isso torna-se decisiva tambm a presena do elemento religioso e do social, juntamente com o jurdico, no processo de formao do carter e no modo de ser de cada cidado, at porque cedio que nem sempre o jurdico forte o suficiente para demover o cidado da prtica de um ato ilcito. nesse sentido, deve ser reconhecido que, por vezes, o religio-so e o social prestam auxlio bastante eficiente, especialmente quando se trata do processo de formao dos cidados. Afinal, a norma jurdica deve atuar como ultima ratio, e no como a primeira e nica forma de regulao de comportamentos no seio social. a guisa de exemplo, mister citar a hiptese de o Poder Judicirio ser acionado para que os pais mandem seus filhos escola ou, ao menos, retire-os da rua, quando no esto no horrio escolar.

    com apoio em Habermas apud Hermann (2006, p. 11), pos-svel afirmar que o padro comum para julgar os limites da tole-rncia deve ser a estrita lealdade aos princpios democrticos.

    estes, por sua vez, precisam ser previamente estabelecidos segundo critrios igualmente democrticos, o que em diversas sociedades ou estados ainda est muito longe de ocorrer, em pleno sculo XXi.

    Como afirmou Rousseau, a tolerncia religiosa e civil so inseparveis. sobre essa observao vale acrescentar que, na atualidade, a tolerncia para com as minorias afigura-se indisso-civel vida na aldeia global.

    contudo, isso exige que, igualmente, as minorias aceitem a submisso prvia s regras do jogo democrtico, inclusive o cumprimento das deliberaes posteriores.

    sem esse assentimento tcito de ambos os possveis inte-ressados, corre-se o risco da tolerncia ser mal compreendida,

  • Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 15 34, 1 sem. 2014

    alexandre Brunelli costa34

    vindo a decair na intolerncia de uns para com os outros, o que remete aos tempos do retorno ao estado de natureza, pela que-bra do contrato social.

    5 Referncias

    CONCEIO, Moiss do Carmo. Rousseau e a tolerncia. Revista Pesquisa em Foco - Educao e Filosofia, v. 3, n. 3, p. 110-123, set. 2010.

    HeRMann, Nadja. Racionalidade e tolerncia no contexto peda-ggico. in: FveRo, altair alberto; dalBosco, cludio almir; MaRcon, telmo. (org.). Sobre filosofia e educao: racionali-dade e tolerncia. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2006. disponvel em: . acesso em: 15 dez. 2012.

    KaWaucHe, thomaz. da religio natural religio civil em Rousseau. Revista Princpios, natal, v. 15, n. 23, p. 117-133, jan./jun. 2008.

    Rousseau, Jean Jacques. Do contrato social: ensaio sobre a origem das lnguas. traduo lourdes santos Machado. 4. ed. so Paulo: nova cultural, 1987.

    ______. Do contrato social. disponvel em: . acesso em: 11 mar. 2014.

    WeFFoRt, Francisco c. Os clssicos da poltica. 13. ed. so Paulo: tica, 2003. v.1.

  • 35

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    1.2

    O DIREITO MORADIA FREnTE CLUSULA DA RESERvA DO POSSvEL: UM DILOGO

    SOBRE OS DIREITOS SOCIAIS A PARTIR DA REALIDADE POLTICO-SOCIAL BRASILEIRA*

    lvaRo auGusto lauFF MacHado**

    SUMRIO: 1 Introduo. 2 Reflexos da poltica nos direitos sociais a partir da perspectiva do estado brasileiro. 3 o direito fundamental a condies mnimas de moradia e uma interpretao ampla quanto a sua eficcia. 4 A (in)aplicabilidade da reserva do possvel como clusula restritiva ao direito fundamental moradia. 5 considera-es finais. 6 Referncias.

    1 Introduoa modernidade e o advento do estado liberal trouxeram con-

    sigo, em primeiro momento, o estabelecimento do homem como sujeito livre frente ao estado que no poderia restringir-lhe o status libertatis. aps, demonstrada a necessidade de presta-es estatais para o prprio desenvolvimento da sociedade, surge o momento em que o estado assume a responsabilidade de garantir aos cidados condies de sua mantena e de seu desenvolvimento.

    apesar da responsabilidade assumida, em virtude do no adimplemento dessas obrigaes, nasce o dficit prestacional do estado social, momento no qual a sociedade passa a sen-tir a necessidade de reivindicar que as garantias prometidas sejam cumpridas. isso, em momento seguinte, ser objeto de enfrentamento no estado democrtico de direito, de modo que poder-se-(ia) manejar mecanismos de coero para que este

    * estudo desenvolvido no semestre de 2013/02 para a disciplina de direitos Humanos sociais e Metaindi-viduais ministrada pelo Prof. dr. carlos Henrique Bezerra leite no Programa de Ps-Graduao stricto sensu Mestrado e doutorado em direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de direito de vitria - Fdv, vitria, es.

    ** Mestre em direitos e Garantias Fundamentais e especialista em direito Processual e Material tributrio pela Faculdade de direito de vitria Fdv, vitria, es. advogado militante e Professor universitrio.

  • lvaro augusto lauff Machado36

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    mesmo estado atenda, por exemplo, s promessas do estado social. ou seja, um momento de construo de uma teoria que garanta eficcia aos direitos sociais.

    contudo, essa realidade e essa construo dos modelos de estado (liberal, social e democrtico de direito), diferentemen-te do que ocorreu nas naes desenvolvidas, no foram viven-ciadas nos pases perifricos.

    as rupturas paradigmticas no se deram de forma ordena-da ao passo que o estado democrtico de direito surge, dentro da realidade brasileira, no momento de uma intensa globaliza-o sob a gide de um capitalismo sem funo social , em que grandes organismos internacionais (FMi, Banco Mundial) buscavam intervir, ainda que de forma oblqua, nas questes polticas e econmicas do pas.

    o mesmo estado brasileiro que convive, ao longo das dca-das, com um elevado dficit de direitos sociais inserido den-tro de um modelo que nega, ao menos em sua gnese, toda a construo terica necessria para uma construo social, qual seja: a compreenso da solidariedade. ou seja, quando se faz necessria uma pauta poltico-econmico-social a partir de uma vertente solidria, para efetivao dos direitos sociais, o Brasil, na contramo, presencia uma intensa interferncia do capitalis-mo, trazendo consigo toda sua carga individualstica, em que o sujeito valorado quanto aquilo que consegue produzir e, tam-bm, consumir.

    se para a implantao de direitos sociais fundamental uma postura comunitarista, que empreenda esforos no auxlio ao outro, valorando-se e auxiliando queles que detm menos condies financeiras, o capitalismo, por sua vez, vem construir a compreenso de que somente ter garantias aquele que de-tiver capacidade econmica de se sobrepor perante a prpria sociedade.

    um conflito que se estabelece entre os direitos sociais e o modelo poltico-econmico-social capitalista, cuja anlise, por algum tempo, passou ao largo das discusses jurdicas.

    e a partir da que se pretende observar como o direito moradia, direito social que , vem se estabelecendo na realida-de brasileira dentro desse estado democrtico de direito. isso

  • o direito moradia frente clusula da reserva do possvel: um dilogo sobre os direitos sociais a partir da realidade poltico-social brasileira

    37

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    porque a efetivao do direito moradia nada mais do que um meio de se zelar pela dignidade dos prprios cidados brasilei-ros.

    evidente que o direito moradia, conforme se observar no presente ensaio, ser observado em ateno quelas condies mnimas de habitao que todo cidado merece gozar e cuja eficcia deve ser tutela, de forma direta, pelo Estado.

    a compreenso da efetivao do direito moradia como negao das situaes de miserabilidade que ainda assolam a realidade brasileira, como, v.g., os elevados nmeros de pesso-as sem-teto. o direito social, ento, que merece ser tutelado para se garantir o mnimo de condio existencial que qualquer ser humano deve gozar.

    e como a prestao desse mnimo passa pela necessria prestao do estado, surge o debate a partir das condies do estado em efetivar esses direitos sociais. isso porque, em que pese o dficit prestacional das polticas pblicas, importada ao direito brasileiro uma teoria que busca justificar a incapacidade de prestao dos direitos sociais: a clusula da reserva do possvel.

    a partir da reserva do possvel apontam-se limitaes pol-tico-econmico-oramentrias do estado para prover todos os direitos sociais, haja vista o fato de que, como no se pode ne-gar, a efetivao de direitos demanda, inevitavelmente, custos.

    veja-se que o debate retorna questo envolvendo a cons-truo do modelo poltico-econmico-social capitalista frente s necessidades sociais brasileiras: o estado, importante mante-nedor do sistema capitalista, frente ao dilema de prover queles cidados que foram alijados desse mesmo sistema e que, por-tanto, no agregam a esse modelo.

    dentro de todo esse contexto em que se estabelece o mode-lo capitalista, a necessidade de efetivao do direito moradia e a resistncia do Poder Pblico que se questiona: possvel, dentro da realidade brasileira, haver restrio prestao des-se direito social moradia, que garanta condies mnimas de habitabilidade ao cidado, mediante a clusula de reserva do possvel?

    o que pretende se estabelecer que, em que pese a rele-vncia terica advinda da absoro da clusula da reserva do

  • lvaro augusto lauff Machado38

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    possvel, de origem germnica, ela no suficiente para sus-tentar a negao a prestao de um direito social, e, portanto, fundamental. Isso ganha ainda mais relevo quando se verifica que na sociedade brasileira notria a ausncia de condies mnimas habitacionais de diversos seres humanos.

    2 Reflexosdapolticanosdireitossociaisapartirdaperspectiva do Estado brasileiroO Estado moderno, no final do sculo XIX e incio do sculo

    XX, passou1 a conviver com o regime capitalista. e, desde ento, vem fundando suas bases numa construo poltica e social que prestigia o individualismo e o aumento do sistema de produo, tudo em detrimento das classes que sustentam esse prprio sis-tema, e que so, ao bem da verdade, a grande parcela da so-ciedade.

    um modelo em que no s o capital, mas, sobretudo, o fo-mento ao consumo ganha evidncia e, para tanto, so ignorados aqueles que no esto inseridos dentro desse contexto. no Bra-sil, tudo isso foi sendo incorporado num processo extremamente distinto dos pases desenvolvidos, haja vista o fato de que a formao de um estado liberal, um estado social e um estado democrtico de direito nas terras tupiniquins no foi construda, mas absorvida desordeiramente.

    Isso se demonstra deveras evidente quando se verifica que em nossa histria o que se entende por um estado social , pode--se afirmar, um momento de um Estado ditatorial que prestava servios aos cidados sem, contudo, garantir-lhes direitos funda-mentais mnimos como liberdade e, inclusive, a prpria dignidade. ou seja, o Brasil tem uma histria prpria que demanda, portanto, uma compreenso prpria de como se deu (e deve se dar) a ins-taurao dos direitos sociais na sua realidade e, via de consequ-ncia, como buscar uma forma efetiva de torn-los eficazes.

    1 isso porque, acompanhando as lies de Boaventura de sousa santos (2003, p. 76), entende-se que o paradigma da modernidade, o estado Moderno, anterior ao modo de produo capitalista.

  • o direito moradia frente clusula da reserva do possvel: um dilogo sobre os direitos sociais a partir da realidade poltico-social brasileira

    39

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    em que pese todas as crises desse estado social brasilei-ro, certo que, assim como os demais modelos, as promessas foram inmeras e no cumpridas. Mas, no momento seguinte, quando vem a ser estabelecido um estado democrtico de di-reito para atender esses dficits, h a insurgncia e interveno poltica de um ideal capitalista que refuta qualquer idea de soli-dariedade e prestao social.

    em uma anlise da poltica na modernidade e dos distintos momentos dos estados europeus, Boaventura de sousa santos (2003, p. 80) afirma que

    [...] o primeiro perodo tornou claro no plano social e polti-co que o projecto da modernidade era demasiado ambicioso e internamente contraditrio e que, por isso, o excesso de promessas se saldaria historicamente num dfice talvez ir-reparvel. o segundo perodo tentou que fossem cumpridas, e at cumpridas em excesso, algumas das promessas, ao mesmo tempo que procurou compatibilizar com elas outras promessas contraditrias na expectativa de que o dfice no cumprimento destas, mesmo se irreparvel, fosse o menor possvel. o terceiro perodo, que estamos a viver, representa a conscincia de que esse dfice, que de facto irreparvel, maior do que se julgou anteriormente, e de tal modo, que no faz sentido continuar espera que o projecto da moder-nidade se cumpra no que at agora no se cumpriu.

    a anlise do professor portugus sobre como se deu, via de regra, o estabelecimento dos momentos polticos-sociais da modernidade, que se encerram no terceiro ponto, em que se toma conscincia do dficit prestacional e busca-se, portanto, formas de mitig-lo e de serem garantidos os direitos sociais.

    contudo, como destacado anteriormente, esses momentos no foram bem delineados na realidade brasileira, haja vista que no Brasil o terceiro momento no veio como uma resposta na-tural aos dois anteriores, pior, surgiu, repita-se, no momento de maior pungncia do modelo capitalista.

    o capitalismo brasileiro e a compreenso nacional de es-tado democrtico de direito surgem em momentos prximos, o que traz problemas na prpria eficcia dos direitos sociais. isso porque o que o capitalismo traz de mais prejudicial para

  • lvaro augusto lauff Machado40

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    o projeto poltico-social de qualquer nao o fato de no en-xergar (ou no querer) os problemas dos dficits sociais e suas necessrias solues; a negativa a uma postura solidarista e comunitarista fundamental para que haja uma poltica slida para efetivao dos direitos sociais.

    Elimina-se, enfim, a capacidade de uma construo reflexiva e crtica com relao aos direitos sociais. como se o capita-lismo demandasse um individualismo puro e retirasse do projeto poltico-econmico-social a capacidade de (re)discutir formas de soluo para os problemas sociais flagrantes no cenrio nacional.

    ao invs de prevalecer uma autonomia do sujeito e de sua capacidade cognitiva frente prpria realidade social e seus ine-gveis problemas, surge uma postura arredia a esse pensamen-to crtico-social. o debate social irrelevante para o sistema e, por vezes, um empecilho para sua prpria manuteno. isso se subtrai mais uma vez das lies do professor portugus (san-tos, 2003, p. 89), para quem

    [...] ao fim dos monoplios de interpretao (da famlia, da igreja ou do estado), levado a cabo com xito pelo paradig-ma da modernidade, no parece seguir-se a autonomia de interpretao, mas antes a renncia interpretao. as so-ciedades capitalistas avanadas parecem bloqueadas, con-denadas a viver do excesso irracional do cumprimento do projecto da modernidade e a racionalizar num processo de esquecimento ou de autoflagelao o dfice vital das pro-messas incumpridas.

    H uma crise, portanto, de compreenso dos direitos so-ciais, em virtude do fato de que o capitalismo no traz consigo uma capacidade de interpretao alm da postura objetificante e individualista do direito. ou seja, ao se enxergar a sociedade a partir dessa perspectiva, no se consegue dar relevncia aos problemas cotidianos da vida coletiva. em outras palavras: ao se formar uma sociedade individualista, no se consegue cons-truir um modelo de pensamento que amplie a capacidade de se observar essa mesma sociedade dentro de uma perspectiva pluralista, universalista e, sobretudo, solidria, fundamental para efetivao dos direitos sociais.

  • o direito moradia frente clusula da reserva do possvel: um dilogo sobre os direitos sociais a partir da realidade poltico-social brasileira

    41

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    esse modelo individualista traz, com isso, srios problemas de interpretao do sujeito frente prpria sociedade, na medida em que os distncia. Explica-se esse fenmeno da seguinte forma:

    a distino sujeito-objecto, a separao total entre meios e fins, a concepo mecanicista da natureza e da sociedade, o cisma entre factos e valores e a objectividade concebida como neutralidade, uma ideia do rigor quantitativo e eucli-diano inimiga da complexidade e insensvel fractalidade dos fenmenos, uma teorizao pretensamente universalis-ta, mas na realidade androcntrica e etnocntrica tudo isto conspirou para criar um buraco negro epistemolgico volta dos grandes problemas da vida colectiva e das relaes in-terculturais (santos, 2003, p. 285).

    anthony Giddens (1991, p.19), ao debater quanto s ques-tes que surgem a partir da modernidade, e a forma que a socie-dade as enxerga, estabelece que a necessidade de fazer com que o projeto da modernidade d certo traz, consigo, situaes perigosas, dizendo que

    o mundo em que vivemos hoje um mundo carregado e pe-rigoso. isto tem servido para fazer mais do que simplesmen-te enfraquecer ou nos forar a provar a suposio de que a emergncia da modernidade levaria formao de uma ordem social mais feliz e mais segura.

    Essa crise, portanto, do projeto da modernidade, e a dificul-dade que o capitalismo traz para que possam ser efetivamente enfrentados os dficits prestacionais aos mais variados grupos de cidados brasileiros que demonstram como h uma cri-se poltico-econmico-social no atual estado brasileiro para dar efetividade aos direitos sociais. no se pensa em direito social haja vista que se prestigia um modelo em que se preconiza o individualismo.

    Braudillard (1981, p.15) afirma que se vive, hodiernamente, em funo dos objetos sendo eles, portanto, que fundam as re-laes sociais:

    vivemos o tempo dos objetos: quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua suces-

  • lvaro augusto lauff Machado42

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    so permanente. actualmente somos ns que os vemos nascer, produzir-se e morrer, ao passo que em todas as outras civilizaes anteriores eram os objetos, instrumen-tos ou monumentos perenes, que sobreviviam s gera-es humanas.

    esse modelo do projeto da modernidade, capitalista e con-sumerista, traz consigo, portanto, severas dificuldades na ob-servncia s mais variedades necessidades coletivas. Contudo, no se pode negar que o dficit prestacional sentido, dia a dia, por aqueles que dependem cotidianamente de prestaes emergenciais do estado.

    a partir desse sentimento crescente de alijamento de gran-de parcela da sociedade brasileira, que no pde se inserir no modelo capitalista-consumerista, surgem as reivindicaes pela efetivao dos direitos sociais. essas reivindicaes ganham fora e, inclusive, instrumentos para sua efetivao, com o ad-vento da constituio Federal de 1988.

    ou seja, a partir do momento em que passam a ser compre-endidos os direitos sociais e a sua fora dentro do prprio texto constitucional pode-se criar uma forma de enfrentar toda a cons-truo advinda desse modelo poltico capitalista, negando-se o individualismo e prestigiando-se a coletividade.

    a compreenso de cidado, mormente a partir da nova constituio, passa a ser observada sobre o prisma da coletivi-dade, entendendo-se que a concepo de homem que subjaz s actuais constituies [...] no um mero indivduo isolado ou solitrio, mas sim uma pessoa solidria em termos sociais (naBais, 2012, p. 31).

    o solidarismo e a compreenso de que as questes sociais demandam a aplicao de um direito metaindividual so meios de se enfrentar o superado projeto da modernidade pautado no capitalismo-individualista. os direitos fundamentais de terceira dimenso, ento, ultrapassam a dualidade liberdade/igualdade, ao contrrio, como afirma Bolzan (1996, p 125): [...] o cerne do direito deixa de ser o direito individual-egostico e passa a ser predominantemente coletivo e difuso onde a socializao e a coletivizao tem papel fundamental.

  • o direito moradia frente clusula da reserva do possvel: um dilogo sobre os direitos sociais a partir da realidade poltico-social brasileira

    43

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    isso se demonstra de forma efetiva a partir do momento em que aes coletivas comeam a serem manejadas, em de-trimento de aes individuais, para soluo de problemas que demandam a aplicao de direitos sociais aos mais variados grupos. isso tudo leva a compreender que a constituio Fede-ral traz consigo elementos que autorizam uma interpretao que prestigie os direitos sociais e sua eficcia plena.

    o que impede, por outro lado, a leitura do texto constitu-cional dessa forma no o seu texto em si, mas um modelo poltico-social-econmico individualista que no faz com que se alcance essa dimenso do direito. H, portanto, uma crise po-ltica e interpretativa quanto verdadeira compreenso da efi-ccia dos direitos constitucionais na realidade brasileira, o que se pode resolver a partir de uma nova interpretao da prpria constituio Federal.

    Nesse sentido, Ana Paula de Barcelos (2002, p. 212) afirma que a Constituio estabelece como um de seus fins essenciais a promoo dos direitos fundamentais. as polticas pblicas constituem o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizados de forma sistemtica e abrangente.

    Verifica-se, portanto, que a crise poltica que o projeto da mo-dernidade e o ideal capitalista trazem, dentro do contexto individu-alista, para a efetivao dos direitos sociais na realidade brasileira corresponde a um paradigma constitucional a ser superado, em prol da compreenso coletiva e metaindividual dos direitos, num modelo solidarista. A partir da, poder-se- conceber uma efic-cia plena dos direitos sociais, que possuem previso na prpria constituio Federal e, dentre eles, o direito moradia.

    3 O direito fundamental a condies mnimas de moradia e uma interpretao ampla quanto a sua eficciano restam dvidas que o modelo poltico-social-econmico

    do estado brasileiro, calcado no individualismo, deveras pre-judicial efetivao dos direitos sociais. contudo, a partir da prpria constituio Federal que se buscar romper com essa forma de interpret-los.

  • lvaro augusto lauff Machado44

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    isso porque os direitos sociais esto devidamente previs-tos no artigo 6 da constituio Federal e so, portanto, direitos fundamentais que gozam (ou devem gozar) de ampla eficcia. via de consequncia, em casos em que qualquer cidado no desfrute de condies mnimas de qualquer desses direitos, ne-cessria se faz interveno, mesmo que jurisdicional, para sua imediata prestao. assim, dentro do rol previsto no texto cons-titucional adotar-se-, no presente ensaio, o direito moradia como objeto privilegiado da pesquisa.

    o direito moradia, como direito social expresso, foi incor-porado ao citado enunciado constitucional a partir da emenda constitucional n 26, de 14 de fevereiro de 2000. contudo, sua aplicao no sistema constitucional vigente j se dava a partir de uma interpretao de direito internacional.

    isso porque o Pacto internacional de direitos econmicos, sociais e culturais, desde 1966 j trazia a previso, em seu arti-go 11.1, reconhecendo o direito de toda pessoa a um nvel ade-quado de moradia. o Brasil, por sua vez, ao tornar-se signatrio do citado instrumento, incorporou-o ao direito interno por meio do decreto n 591 de 06 de julho de 1992.

    em que pese as divergncias doutrinrias acerca do pro-cesso de recepo dos instrumentos internacionais no direito interno o que certamente demandaria outra pesquisa2, como exaustivamente fizeram Flvia Piovesan, Nelson Camatta, den-tre outros perfila-se do entendimento de que, antes do advento do 3 do art. 5 da constituio Federal, mas em uma interpre-tao adequada (e arrojada) do seu 2, bastava o Brasil ser signatrio de um instrumento internacional para que ele gozasse do status de norma constitucional.

    a interpretao destoa, reconhece-se, de grande parcela da doutrina, inclusive das cortes superiores, que admitem que nesses casos o tratado teria status de lei ordinria ou da recm--criada norma supralegal. Faz-se ressalvas a tais considera-

    2 Para uma maior pesquisa acerca das divergncias quanto recepo de instrumentos internacionais no direito interno brasileiro sugere-se, ab initio, a leitura da obra de Flvia Piovesan (Piovesan, Flvia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. so Paulo: saraiva, 2012) e nelson Moreira camatta, mormente no captulo 3, item 3.2 da obra Direitos e Garantias Constitucionais e Tratados In-ternacionais de Direitos Humanos. (MoReiRa, nelson camatta. Direitos e garantias constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos. Belo Horizonte: Frum, 2012).

  • o direito moradia frente clusula da reserva do possvel: um dilogo sobre os direitos sociais a partir da realidade poltico-social brasileira

    45

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    es mas, como dito anteriormente, tais questes demandam uma outra pesquisa prpria que, repita-se, poder ser bem estu-dada pelas obras supracitadas.

    Passadas essas discusses, admite-se, a partir de aplicao da hermenutica constitucional, balizada inclusive nos citados autores, que o direito moradia, sim, muito antes da emenda constitucional n 26, j poderia ser compreendido como norma constitucional e, com isso, garantia fundamental de todo cidado brasileiro.

    contudo, retomando-se a leitura do pr-falado Pacto inter-nacional, importante registrar que, tamanha era a relevncia do direito moradia sob a tica do direito internacional que, em 1991, o comit sobre os direitos econmicos, sociais e cultu-rais das naes unidas editou um comentrio Geral (n 04) ao pacto dando toda nfase ao direito habitao adequada.

    os citados comentrios formulados pelo organismo inter-nacional trazem a compreenso de que o direito moradia vai muito alm de uma residncia, ou espao fsico de domiclio de um ser humano. , ao bem da verdade, o locus em que um ci-dado possa gozar de condies adequadas de habitabilidade, sob pena de ter violada sua prpria dignidade.

    Ingo Sarlet (2003, p. 86), em obra sobre o tema, afirma que

    [...] face intima conexo com a dignidade da pessoa huma-na, assim verifica-se desde logo, que, na interpretao do contedo de um Direito Moradia, h que considerar par-metros mnimos indispensveis para uma vida saudvel.

    o contedo hermenutico-constitucional, portanto, do direito moradia passa pela verificao de que o ser humano tenha condies de habitao que no lhe privem de sua dignidade mnima. Veja-se que no est aqui a se verificar o direito social de prover, indiscriminadamente, casas a qualquer um, mas sim de garantir que nenhum cidado sofra com a mazela de no ter um local com condies mnimas para poder viver e ter sua famlia.

    o presente ensaio, portanto, trabalha com a ideia de mo-radia associada dignidade do ser humano e a garantia ao mnimo para que ele no perca essa prpria dignidade. Mesmo

  • lvaro augusto lauff Machado46

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    porque a moradia, como direito social que , busca exatamen-te atender aqueles que, no processo de formao do estado, foram alijados das garantias mnimas existenciais e, portanto, so carentes de uma interveno eficaz do Poder Pblico. Em outras palavras:

    [...] os Direitos Sociais no configuram um direito de igualda-de, baseado em regras de julgamento que implicam um tra-tamento uniforme: so, isto sim, um direito das preferncias e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatrio com propsitos compensatrios (FaRia, 2002, p. 105).

    assim, se um sujeito estiver em condio de miserabilidade, e no gozar de um teto adequado para sua moradia, a se faz necessria a interveno do estado para prover, dentro do que prev a prpria carta Magna vigente, as necessidades desse cidado.

    as situaes em que um sujeito no goze de condies mnimas para sua dignidade no podem, como mais frente se debater com mais nfase, ser restringidas sob argumen-to algum, na medida em que o prprio estado est calcado sobre uma carta Poltica que traz consigo a moradia como direito social e, portanto, fundamental para a vida dos seus cidados.

    em que pese tal assertiva, sabe-se que as condies viven-ciadas no Brasil esto muito aqum do que prev a sua prpria constituio. so inmeras as pessoas que no possuem um lar, e maior ainda a incidncia daqueles que possuem um teto, mas sem condio mnima de habitabilidade.

    O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) e o instituto de Pesquisa econmica aplicada (iPea, 2005, p. 94), em levantamento realizado na ltima dcada, constataram que em mdia 14,8 milhes de brasileiros moram em residncias su-perpovoadas, ou seja, que no comportam o nmero de habitan-tes que nela residem; de outro lado, 7,2 milhes vivem em do-miclios com irregularidade fundiria, quer seja com problemas de registro ou em situaes de iminente perda da residncia por alguma ao judicial (possessria ou petitria); 43,4 milhes ca-recem de acesso simultneo a abastecimento de gua, esgoto e

  • o direito moradia frente clusula da reserva do possvel: um dilogo sobre os direitos sociais a partir da realidade poltico-social brasileira

    47

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    coleta de lixo e, por fim, 5,3 milhes sofrem nus excessivo com o pagamento de aluguel.

    esses brasileiros, que na estatstica so representados em nmeros, so, na verdade, homens, mulheres, crianas e idosos que veem seu dia a dia passando sem contar com um lugar em que possam se abrigar, se estabelecer e, mais importante, viver com uma dignidade mnima.

    so pessoas que ou no possuem casa, ou, quando pos-suem, no tm condies de higiene bsica, como banho, abas-tecimento de gua etc. para esses indivduos que a prestao do estado do direito social moradia deve ser positiva e efetiva. explica-se.

    H a construo doutrinria3 de que, em linhas gerais, a prestao dos direitos sociais se d a despeito das inmeras classificaes de duas formas: mediante seu status negativo e seu status positivo. a prestao negativa seria a partir do mo-mento em que o estado cria mecanismos infraconstitucionais de manuteno e proteo moradia, como, v.g., a legislao que garanta a impenhorabilidade dos bens de famlia ou o sistema Financeiro de Habitao. at mesmo o Prof. ingo sarlet (2003, p. 86) chega a afirmar que

    considerando que os direitos sociais possuem uma dimen-so negativa (defesa e proteo) e uma dimenso positiva (direito a prestaes) incontroversa a aplicabilidade imedia-ta de normas que possuem o contedo de defesa e proteo a estes direitos, dotadas de plena justiciabilidade, possibi-litando a sua exigibilidade integral em Juzo. no que tange a sua dimenso positiva, objetivada por direitos prestao, [...] a aplicabilidade da referida norma no tem o mesmo grau e modus operandi para todos os direitos sociais.

    o status negativo do direito social moradia gozaria, sem nenhum questionamento, de uma eficcia plena, no sendo ar-gumentvel sua restrio. isso por razes bvias, haja vista o

    3 Faz-se referncia parte da obra de Flvio Pansieri (2012, p. 87-129), que faz algumas observaes a respeito dessas classificaes dos modos de eficcia dos direitos sociais, como tambm obra de Jos afonso da silva (2012, p. 1) e Rosalia carolina Kappel Rocha (2005, p. 7-33), dentre outros.

  • lvaro augusto lauff Machado48

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    fato de que basta o estado manter o status quo daqueles que so detentores de condies mnimas de habitabilidade.

    o status positivo, por sua vez, seria exatamente aquele em que o estado, e tambm particulares, deveriam promover pol-ticas pblicas para que fossem atendidas as garantias sociais queles que no detm o mnimo para sua dignidade, in casu, para aquele que no detm uma moradia com condio de ha-bitabilidade.

    contudo, nesse ltimo caso, surgem os questionamentos, de que a prestao do direito social de forma positiva no po-deria gozar de plena eficcia, dada a dificuldade de sua exequi-bilidade. o direito moradia, dependeria, por exemplo, de uma atuao do legislador para sua concretizao, que no conferiria ao cidado um direito imediato; no seria exequvel, conforme afirma Vieira de Andrade (1998, p. 67) em sua obra.

    exequvel, ento, apenas o direito social de manter e ga-rantir a moradia para aquele que j a detm (status negativo), mas o mesmo no conferido quele que no possui condies mnimas de habitabilidade. Isso, afirma-se nesse momento, um reflexo da postura social que se assumiu, inevitavelmente, a partir do modelo capitalista.

    Prestigia-se a manuteno daquele que j est inserido dentro de um nicho de capacidade econmica e, sobretudo, de consumo, criando-se mecanismos que atendam suas necessi-dades, numa postura eminentemente individualstica; nega-se, por outro lado, a necessidade de se iniciar um pensar solidrio que observe que determinadas mazelas humanas somente po-dero ter soluo a partir de solues coletivas e que impliquem numa prestao para quele que no detm condies de agir sozinho.

    Assim, afirma-se que

    esses direitos encontram-se atrelados concretizao da igualdade material que pressupe medidas que no sejam uniformes, mas que consigam criar um sistema equnime de oportunidades e de liberdade-igualdade (fundado na ideia de que livre aquele que pode usufruir de condies mnimas para garantia de sua dignidade) (PansieRi, 2012, p. 130).

  • o direito moradia frente clusula da reserva do possvel: um dilogo sobre os direitos sociais a partir da realidade poltico-social brasileira

    49

    Revista da Procuradoria Geral do estado do esprito santo - vitria, v.13, n.13, p. 35 62, 1 sem. 2014

    Falar que a prestao positiva de direito social moradia no exequvel exercer uma interpretao individualista e ob-jetificadora da Constituio Federal, haja vista que sua previso encontra-se amparada como direito fundamental e, alm disso, existem mecanismos constitucionais para que sua exigncia possa ser promovida pelo Poder Judicirio.

    isso porque

    no seio do estado moderno-solidarista, construiu-se o pro-cesso constitucional, que se tornou um instrumento pblico a ser regido por um juiz participativo e responsvel. este, em sua atividade, deve estar atento ao princpio do contra-ditrio e ao princpio da efetividade que exige a superao de antigos modelos de tutela jurisdicional para determinadas situaes lesivas, em prol da mais eficaz realizao do direito (cavalcante, 2007, p.411).

    os processos constitucionais so meios para que a prestao do direito moradia se d de forma positiva, e no apenas mante-nha a sua faceta negativa. contudo, em pesquisa jurisprudencial junto s Cortes Superiores brasileiras, verifica-se que tanto o Su-premo tribunal Federal como o superior tribunal de Justia so provocados a atuar em temas de direito moradia em seu status negativo, sobretudo em questes envolvendo a garantia ao bem de famlia e a proteo do sistema Financeiro de Habitao.

    encontrou-se, entretanto, um julgado em que houve a de-terminao de que medidas positivas fossem adotadas, o que ocorreu no ai 708667 agR/sP (BRasil, 2012) junto ao supremo tribunal Federal, de relatoria do Ministro dias toffoli. naquela oportunidade restou assentado que

    agravo regimental no agravo de instrumento. constitucional. ao civil pblica. obrigao de fazer. implementao de po-lticas pblicas. Possibilidade. violao do princpio da sepa-rao dos poderes. no ocorrncia. Precedentes. 1. o Poder Judicirio, em situaes excepcionais, pode determinar que a administrao Pblica adote medidas assecuratrias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violao do princpio da separao de poderes. 2. agravo regimental no provido.

  • lvaro augusto lauff Machado50