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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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Olhos de barro - Manuel Eudócio ainda cria arquéti-pos em cerâmica, apesar de problemas de saúde

Está na moda - O etanol é a nova atração para os americanos e os governadores brasileiros

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xpedi-

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Expediente

Sumário

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EditorialA polêmica está lançada: em que o filme “Cartola”, de Lírio Ferreira e Hiton

Lacerda, inova ou repete as falhas do documentário cinematográfico? Para dis-cutir o assunto, o Pernambuco convocou dois especialistas Rodrigo Carreiro e Anco Márcio Tenório Vieira, a fim de lançar luzes sobre assunto importante, considerando-se que o cinema atinge sua maioridade com a participação de diretores e roteiristas importantes. Rodrigo procura demonstrar do ponto de vista técnico quais as inovações aí aparecidas, enquanto Anco Márcio faz uma leitura mais acadêmica, austera e, em certo sentido, conservadora, criticando, logo no princípio, a má conservação daquilo que chama de “nossa memória fílmica”. Aliás, refere-se às cenas em preto e branco, históricas, que compõem o documentário. Rodrigo, porém, conclui: “Este é um filme que tem algo a dizer sobre a identidade cultural”.

Porém o mais importante de tudo está no fato de que Pernambuco tem feito uma revolução no cinema brasileiro, retomando mesmo a tradição do Ciclo Cinematográfico de vinte – década de vinte do século passado – ainda com a mais vigor e criatividade, até porque, justiça seja feita, conta com uma tecnologia avançada. Mas tecnologia, é preciso lembrar, sem a participação de figuras exponenciais não é nada. Mera tecnologia, como se diz. O fator humano é o fundamento da criatividade. E isso, justamente, a cineastas da força de um Lírio Ferreira, de um Paulo Caldas, de um Cláudio Assis, para falar apenas nos nomes daqueles que estão em evidência. Além, ainda, das surpresas, que sur-gem a cada dia.

E Clarice Lispector? A bela e meiga Clarice Lispector? É importante ler o artigo de Schneider Carpeggiani sobre a exposição que se realiza em São Paulo sobre a vida e a obra da escritora, com um material inédito e surpreendente. Não fume na cama, apesar no aviso pregado na parede, Clarice fumou na cama e quase paga com a vida. Sofreu queimaduras em várias partes do corpo, e houve até quem sugerisse um gesto de suicida, algo numa confirmado. Clarice é absolutamente extraordinária e uma exposição deste tipo só faz alimentar o espírito e engrandecer a vida.

E o homenageado da quinzena é Caruaru, para onde o governador Eduardo Campos se desloca, com toda a sua equipe, para registrar, de forma enfática, os 150 anos de existência da localidade. O caderno Saber +, editado por Marilene Mendes, dedicada o número à Capital do Agreste, com matérias assinadas pela própria Marilene, Rose Maria, Marisa Pontes, Pedro Marins, entre outros, enfo-cando assuntos fundamentais para o desenvolvimento da cidade.

Algo memorável, sobretudo para uma cidade que alcançado os melhores resultados em várias áreas, desde o futebol até o econômico – comércio, indústria e serviços – e ainda grandes perspectivas para o futuro. Foram reali-zadas matérias com populares e o presidente da Academia Caruaruense de Letras revela, em bom artigo, que ali não entram apenas os intelectuais, mas criadores de todos os níveis, mamulengueiros, artistas populares. Seguidores de Mestre Vitalino, a exemplo de Manuel Eudóxio, na matéria de Bruno Albertim.

Há, também, o artigo sobre a “Geração Esfacelada”, enfocando o livro de poemas de Robson Sampaio, procurando examinar o surgimento de um grupo de escritores que são os últimos boêmios, aqueles que têm uma visão escatológica do Recife, no momento em que cidade mergulha na pós-moder-nidade sem, em muitos pontos, ter deixado o passado.

Raimundo [email protected]

Tudo o que é comum - Artigo levanta discussão sobre as novas formas de se viver o fetiche

Você tem um nome a zelar - Os perigos de você dar um “google” no seu(sua) paquera

Não fume na cama - Exposição do Museu da Língua Portuguesa traz originais de Clarice Lispector

As rosas no caminho da arte - Polêmicas anális-es sobre o documentário que retrata a vida de Cartola

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equipe de produção

Debora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco -CEPE

Rua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140Fone: (81) 3217.2500– FAX: (81) 3222.5126

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Inédito - Cartum de Jarbas Domingos pensa a globalização12

Geração esfacelada - Um olhar na nova poesia feita na Região Metropolitana do Recife

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Alexandre Belém

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “Movimento Armorial”, para debater com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

diretor de Gestão Bráulio Mendonça Meneses

diretor industrial Reginaldo Bezerra Duarte

Gestor Gráfico

Júlio Gonçalvespresidente

Flávio Chaves

Vice-GoVernador

João Lyra Netosecretário da casa ciVil

Ricardo LeitãoGoVernador do estado

Eduardo Campos

tratamento de imaGem

Sebastião Corrêa reVisão

Gilson Oliveira

editor executiVo Schneider Carpeggiani [email protected]

edição de arte

Jaíne [email protected]

editor

Raimundo Carrero

secretário Gráfico

Gilberto Silva

Transgressão - De que é feita a rebeldia da MPB hoje?

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omportamen-Fo

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vida comum é uma prisão. Pessoas comuns não despertam desejo. Comida comum não apetece. Entretenimento comum é uma droga. E, admita quem tiver coragem, sexo comum não excita de verdade. Para

este último, o fetiche está como um dos antídotos mais conhecidos e sobre-vive - a duras penas, com reinvenção - somente para tornar as coisas um pouco menos comuns. Sua batalha é sobressair e firmar seu papel redentor diante da atual configuração da sociedade em tempos de superexposição. Para alguns, essa "abertura" e o fato de as pessoas confessarem sem amarras o que as excita profundamente, o que provoca uma espécie de "alta voltagem", fez com que o fetiche perdesse um pouco de sua potencialidade. Ou seja, aquilo que antes era muito velado e, talvez por isso, altamente eletrizante, hoje virou algo declarado, que dá apenas um leve choque, transportando o fetiche do idola-trável ao banal.

Há quem discorde um pouco dessa linha de raciocínio, como uma quaren-tona bem acima do peso que freqüenta salas de bate-papo na internet dedi-cadas ao fetiche com gordinhas. "Acho que o fetiche está longe de morrer. Essa exposição trouxe novas possibilidades, reuniu as pessoas. Por exemplo, a internet organizou essa prática, criou conexões", esclarece ela que diz não ficar sem parceiro um dia sequer e tem uma fila de adoradores esperando por uma chance que seja. Personagens como a sua, GG_46fogosa, estão mais presentes no inconsciente coletivo do que se possa imaginar, ao lado de pés, mãos, seios, língua, roupas íntimas e, claro, couro.

A pesquisadora Valerie Steele ao escrever Fetish - fashion, sex & power, nos meados da década de 90 (após visitar clubes fetichistas concorridos em Londres, a exemplo do famoso Torture garden), fez constatações interessantes. Uma delas foi perceber que as roupas fetichistas pareciam, sob um olhar mais atento, muito semelhantes às utilizadas na moda contemporânea, que, com freqüência, exibe elementos de fantasia sendo inspirada, muito em particular, por temas sexuais.

Embora tenha hoje seu perfil muito mais conectado ao delírio, ao desejo e, abertamente, ao erotismo, o fetiche guarda no seu significado histórico uma relação profunda com o mágico, com artefatos que tenham propriedades sobrenaturais dignas de culto. Daí a origem da devoção, da idolatria quase irracional. Sua ligação com o religioso também é fato: há tratados históricos de missionários como Fetichism and fetish worshippers, do reve rendo P. Baudin, escrito na Inglaterra do século XIX, denunciando religiões bárbaras e pessoas que adoravam ídolos de madeira e barro. Verdades desse tipo comprovam que o fetichismo não está ligado apenas à sexualidade, mas também ao poder e à percepção em todos os níveis, até nos mais sagrados.

Sacralizar imagens e cenas que existem apenas nas nossas cabeças é uma das bases mais firmes do fetiche. E, ao mesmo tempo, para alguns, pode tor-nar-se o epicentro da prisão se não houver um transplante eficaz da imagi-nação para o real. Um prisioneiro do próprio fetiche, um advogado de 25 anos, casado com uma mulher da mesma idade e pai de uma menina de 2 anos, se considera virgem até hoje por nunca ter colocado seu fetiche em prática. "Gostaria de realizar isso, mas nunca tive coragem. Até hoje procuro por uma mulher entre 40 e 55 anos para praticar sadomasoquismo em mim. Nesse dia vou perder minha virgindade", confessa o rapaz".

Para muitos estudiosos, os desejos mais diversos, e que estão espalhados aos montes, são quase todos fruto de cenas ou associações de nossa educação sexual. Eles guardam símbolos às vezes compreensíveis somente para quem os tem, ou, em muitos casos, nem isso. Um desejo incontrolável e inexplicável é apenas sentido em sua maior potencialidade e é capaz de produzir os orgas-mos mais verdadeiros. Exemplos de cenas incompreensíveis andam escondi-dos nas mentes de amigos, familiares. Muitos podem trabalhar ao lado da pós-adolescente que queria transar com o médico em cima de uma maca após ser examinada."Tinha que ser no consultório, pois o cheiro dos medicamentos me excita". O sargento que acha algemas e sacos plásticos uma combinação perfeita pode morar no seu prédio. Assim como a dona-de-casa que sonha em transar com um completo desconhecido. "Tipo filme: olhou, gostou, transa, sem trocar telefone. Bem intenso". E todos, claro, são pessoas normais. Exatamente como a gente.

Como essas pessoas, fora do quarto, a maioria veste personagens quando fala sobre sexo. E convive com suas frustrações. Há uma jovem médica casada e com um filho de quatro anos que queria ter um fetiche, mas não tem. "Tudo hoje parece muito exposto, muito teatral, muito realizável. Não sobra espaço pra nada". Sua prisão é o vazio. Ela conhece o desejo incontido em forma de fetiche, aquilo que faz o mundo quase parar, que acelera os batimentos... E que, se fosse posto em prática, certamente faria a vida parecer, assim, menos... comum.

Dario Brito

As novas “ferramentas” desse não mais obscuro objeto de desejo

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poca estranha, esta nossa. Ao mesmo tempo em que todos anunciam estar loucos para se apaixonar e reclamam, cheios de vodca ou Pitu, para o amigo sonolento que precisam de amor, temos um medo absurdo de quebrar a cara. Argh, como dói. É tão ruim que vamos criando mecanismos cada vez mais poderosos de distanciamento, filtros que captam qualquer casca de banana no caminho. Mas

nossos termômetros pessoais para fugir - ou entrar, tem quem goste - de roubadas têm um grande aliado na busca pela auto-preservação: a estupenda e já sociológica invenção de Larry Page e Sergey Brin, o multifuncional Google. Com ele, pedindo licença a Buñuel, já não pre-cisamos de obscuros objetos de desejos. À luz do mecanismo de busca, eles são perfeitamente visíveis e classificáveis. Estão ali, mostrando-se em blogs, orkut, fotolog, lista de discussão. Você dá um Google no seu quase (dependendo do resultado da busca) querido e zás: terá dados como em que ano e lugar ele passou no vestibular, se é citado academicamente, se aparece no Bob Flash (aparece? xi...), se tentou se candi-datar ao Big Brother, se... bem, se você vai realmente embarcar nessa.

Dar um Google em alguém tem vantagens maravilhosas, é verdade. Principalmente para nós, que selecionamos de maneira espartana o próximo corpo e cérebro que poderá entrar em nosso cafofo. Vamos supor que você, moderna (o) de doer, esteja numa fase de ouvir uma banda africana que tocava rock psicodélico nos anos 60. No Google que você dá, descobre, via blog ou qualquer outro meio virtual, que aquele pedacinho do céu só escuta trash music dos anos 80. Bola preta pra ele. Você segue em frente, sozinha, mas com sua dignidade e psicodelia africana intocadas.

Pode ser pior: vai que você está investindo no novo rock do Sul dos Estados Unidos e nesse Google geralmente realizado de madrugada vê que sua querida simplesmente a.d.o.r.a. Philip Glass? Ah, não, absurdo, você tem um nome a zelar. Veja que aqui só utilizamos exemplos musicais, mas eles poderiam perfeitamente demonstrar incompatibilidades gastronômicas, espirituais, de ordem fashion ou se-xual... são uns

abençoados, esses Larry e Sergey. Ajudam a nós, com o décimo coração colado a Super Bonder, a nos livrarmos de eventuais crápulas. Não nos interessa, nenhum pouquinho, começar devagar e talvez saber, em banho-maria, se o tal crápula realmente merece o título. A

praticidade e a conexão rápida de sua casa determinam que você já vá para aquele encontro sabendo bem a persona que irá encontrar. É uma mão na roda: você já chega no restaurante, acompanhado pelo já aparentemente entendível objeto de desejo, pedindo um cabernet sauvingnon. Esperto, tinha visto no profile da pessoa, disponível via Google, que ela odeia brancos e carmenere (aliás, a sua uva preferida).

Mas, apesar de prático, o recurso que também está aí para preservar seu coração e sanidade pode ser perigoso. Senão vejamos: testando a ferramenta para esta pequena matéria, dei um Google no meu próprio irmão. Susto: tinha uns seis rapazes com o nome dele espalhados pelo Brasil. Um, por sinal, fazia parte de uma quadrilha de assaltantes no Rio de Janeiro. Garanto que não era ele. Mas imagi nem se, caso uma interessada fizesse o mesmo que eu e visse aqueles resultados assombrosos, acreditasse que aquele cidadão distinto (e casado, vai aí um alô para a interessada) na verdade é chegado a uma AR-15? É um caso a se pensar. E optar se é melhor continuar com a seleção virtual ou partir com a cara pro mundo. Ela pode ser quebrada, é verdade. Mas Philip Glass, a bandinha psicodélica africana, a trash music anos 80 ou os roqueiros do Sul dos EUA estarão lá, em seu sonzinho, para lhe consolar das inevitáveis lapadas.

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Fabiana Moraes

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ão fume na cama. O primeiro so -... O conselho está assim mesmo, escrito na página pela metade. Logo ali ao lado, é possível apreender o sentido da frase partida. Um vídeo repete sem parar a última entrevista que Clarice Lispector concedeu à televisão. Respondendo às per-guntas com longos intervalos de silêncio e acendendo um cigarro após o outro, é possível ver as marcas do incêndio que a escritora sofre-

ra pouco tempo antes.Obsessiva, como são todos os fumantes (e viciados em geral), Clarice adormeceu com um cigarro na mão e sofreu queimaduras em várias

partes do corpo. Para alguns, essa teria sido uma tentativa de suicídio, gesto extremo e até condizente com a mulher que escreveu sobre angústias lancinantes, num código estranho até para o mais kafkiano dos seus pares literários brasileiros.

“Na maioria das vezes eu sou alegre, só estou triste hoje, porque estou cansada”, desmonta Clarice, durante a entrevista, qualquer um que queira embaralhar a escritora angustiada com a mulher de olhar cortante, monossilábica, que conversa com o repórter invisível.

A última entrevista de Clarice concedida à TV Cultura em 1977 e seu conselho escrito pela metade fazem parte da mostra temporária em sua homenagem, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. A exposição consta do calendário que lembra os 30 anos de morte da auto-ra.

Essa é a segunda vez que o Museu da Língua Portuguesa abre suas portas para homenagear um autor. Ano passado, um andar inteiro foi dedicado ao aniversário de cinqüenta anos de Grande sertão veredas, de Guimarães Rosa. A cenógrafa Bia Lessa recriou o romance de maneira condizente com o autor mineiro: veredas permitiam que o público tivesse contato com trechos do livro na perspectiva dos seus principais perso-nagens.

O caminho de Riobaldo, de Diadorim ou do demônio? O visitante é quem escolhia por onde se deixaria ser guiado por Rosa. Com design de Daniela Thomas e Felipe Tassara, a mostra de Clarice não permite comungar caminhos. Não é histérica como sua antecessora, é calada, isolada. A solidão é sua maior aventura.

Num corredor, TVs levam o público para dentro da exposição. Transeuntes do Jardim da Luz foram convidados a ler trechos da novela A hora da estrela (última publicada pela autora). A maioria, inclusive, nunca havia lido Clarice antes. A perplexidade na cara de cada um dos leitores con-vidados é compreensível: Não se lê Clarice, torna-se um pouco Clarice.

Em seguida, o Museu da Língua Portuguesa se transforma num enorme gaveteiro: São duas mil gavetas. Só sessenta e cinco delas têm chaves, encerrando originais da autora. Há fotos, cartas, livros autografados, trechos de textos de Clarice riscados e até seu título de eleitor. Ao abrir cada uma delas, o leitor enfrenta surpresas, são inúmeros encontros e leituras à deriva.

A aventura solitária a que obra de Clarice nos transporta fica clara numa carta para seu filho, Paulo, pouco antes dele ir fazer intercâmbio no exterior. Seria sua primeira viagem sem a companhia de alguém da família. A mãe avisa que ele irá viajar cercado de amor e que o fato dele estar só, esse sim, será sua grande aventura. “Você irá ganhar muito com ela”, aconselha a carta perdida numa das gavetas da exposição.

A disposição aleatória, propositadamente displicente, dos objetos em cena é o ponto alto da exposição armada por Daniela Thomas e Felipe Tassara. Não há o didatismo que em geral estraga esse tipo de projeto. A dupla dispôs o universo da autora de uma forma que possibilita o visitante fazer seu percurso sem caminhos pré-definidos ou tom professoral. O ideal é se perder. Essa é a grande aventura clariceana.

Nada de cigarro antes de dormir e a solidão é a maior aventura...Esses e outros “conselhos” estão na mostra tem-porária de Clarice Lispector no Museu da Língua Portuguesa Schneider Carpeggiani

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xposição

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Documentário provoca especialistas e causa debates sobre qualidade da obra

Anco Márcio Tenório Vieira

Por outro lado, poderíamos perguntar (descartando a idéia biográfica), se o docu-mentário versa sobre o samba brasileiro, particularmente do samba carioca, e da sua luta para se firma como o gênero por excelência do País, tendo Cartola como seu epicentro? Parece-nos também que não. O filme não explora, por exemplo, como esse gênero assumiu tantos estilos ao longo da sua história (e isso já nos anos 20 e 30): como o samba de breque, o samba canção, o samba enredo, a bossa nova (anos 50), o pagode... A lin-guagem do samba e as suas nuances não é o objeto do filme, pois tirante as canções de Cartola, poucos são os sambas de outros compositores que ouvimos ao longo da pro-jeção.

Então: do que trata o filme? Poderíamos pensar (num raciocínio generoso) que ele fala do próprio gênero em questão: o filme documentário. Um metadocumentário que expõe a crise de paradigma que seria realizar um documentário - buscar uma verdade defensável - no nosso tempo presente. Se é assim - e a idéia não deixa de ser pertinente nesses tempos de crise da Razão, ou do que vem se entendendo por Razão - o filme poderia versar sobre qualquer assunto. Muda-se o tema, ou o personagem, e teríamos a mesma problemática em questão. No caso, a crise da linguagem.

Na verdade, este não é um problema de Cartola, mas do documentarismo brasileiro, com raríssimas exceções. Entramos numa sala de cinema, assistimos a imagens deslum-brantes, adquirimos informações que até então desconhecíamos, não raramente nos

emocionamos com o que vemos na tela, mas quando saímos da sala de projeção, nos perguntamos: mas do que mesmo, enquanto idéia, trata o filme que acabamos de ver? Como não sabemos, discutimos passagens da película, a linguagem do diretor, a quali-dade ou não da fotografia, mas não conseguimos discutir sobre o filme como um todo, como algo coerente e sistêmico. E um filme, assim como qualquer obra de reflexão intelectual, não é constituído de núcleos, mas de um todo que os encerra. Não é a idéia que deve estar subordinada a este ou aquele núcleo, e sim cada passagem ou questão abordada é que deve urdir, dar unidade ao filme como uma totalidade.

O segundo problema que, de certa forma, está subordinado ao primeiro, é sobre o entendimento geral do tema. Explico-me: digamos que eu seja um estrangeiro. Digamos que eu assisto ao filme. A pergunta é: o filme é auto-explicável? Eu saio co nhecendo quem é esse tal de Cartola? Qual é de fato a importância que tem sua música (dentro do gênero perseguido por ele) para o seu País, a ponto dele merecer um longa-metragem? Parece-me novamente que não. Nos envolvemos no filme, enquanto brasileiros, porque conhecemos o personagem em foco, convivemos com a música em questão, localiza-mos a cidade em que se passa a ação, a sua realidade social e os entrevistados que estão no documentário. Mais: localizamos (dependendo da cultura cinematográfica de cada um) até as cenas dos filmes citados e os políticos que desfilam ao longo do filme (Vargas, Jânio, Goulart). Sim, mas onde fica este espectador estrangeiro e o seu afã de sair infor-

artola: música para os olhos é o documentário escrito e dirigido por Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, ambos responsáveis, nos Anos 90, pela retomada do então mori-bundo cinema brasileiro, com o longa-metragem Baile Perfumado. Apesar dos 11

anos decorridos entre a atual produção de 2007 e a ficção de 1996, há em comum entre as duas obras o recurso à citação de imagens e de fotografias que foram produzidas por aqueles que registraram, em película, o século 20 no Brasil. Se o uso desse recurso lem-bra-nos o que fomos, o quanto desse passado continua presente no nosso dia-a-dia, o que perdemos ou ganhamos ao longo do nosso processo civilizatório e, de alguma maneira, como é impossível recuperar o paraíso que algum dia acreditamos que éramos depositários, também revela a idéia de continuidade, de sistema, no cinema brasileiro.

No caso de Cartola, sabemos que os documentários - assim como os ensaios e teses acadêmicas - são construídos em cima de citações. Logo, a primeira coisa que chama atenção ao seu espectador é como estamos perdendo, no Brasil, a nossa memória fílmi-ca. Seja por desleixo e má conservação ou porque o material que usamos, nos últimos 30 anos, para registrar nossa história ou realizar ficções cinematográficas, não resiste ao tempo. Imagens recentes já estão esmaecidas, sem bri lho, foscas. Pior: com a qualidade do registro sonoro comprometida. O mesmo ocorre quando se recorre à memória tele-visiva.

Cartola também nos revela que nem sempre a última e a mais moderna tecnologia é a mais confiável. É dessa forma que as imagens em preto e branco, produzidas em película (16 ou 35mm), são mais duráveis do que as produzidas pela sua sucessora - a colorida - e esta, por sua vez, é mais perene do que as que foram registradas em Super 8 ou, mais recentemente, em Vídeo Cassete. É assim que uma imagem de Getúlio Vargas dos anos 30 se mostra muito mais nítida e conservada do que a de um filme relativa-mente recente, como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Júlio Bressane, de 1985.

O fato é que Cartola é, de certa forma, um documentário que registra (intencional-mente ou não) a miséria (no quesito conservação) daquela que é a arte por excelência do século 20: o cinema e suas congêneres. Miséria que se estende à própria mentalidade dos que fazem a arte cinematográfica no Brasil. Sempre ouvi e li cineastas reivindicando mais verbas públicas para o cinema nacional, mas nunca ouvi ne nhum deles defender que pelo menos 5% ou 10% do dinheiro destinado às novas produções fossem aplica-dos na conservação dos filmes já realizados. Esquecem que o filme produzido hoje também vai estar, num futuro próximo, caso as condições de conservação não se mod-

ifiquem, em semelhante estado de degradação das películas produzidas no passado. O segundo ponto que nos chama atenção no documentário de Hilton e Lírio é a

maneira como eles suprem, em determinadas passagens da vida do biografado, a carên-cia de imagens por citações de outras películas brasileiras. Cenas de um filme de José Lewgoy e Oscarito (Aviso aos navegantes), em que este se esconde sob as cobertas, sugerindo que se esconde do cônjuge da sua amante, servem para ilustrar o depoimen-to de Sérgio Cabral. Neste, o crítico carioca fala sobre como o jovem Cartola foi “resgata-do” da vida pregressa por uma senhora casada, com quase o dobro da sua idade, e que veio a se tornar a sua primeira esposa.

São citações, como dissemos, que revelam não apenas as referências que formaram a geração dos citados cineastas (“O universo das comunicações de massa é - reconheça-mo-lo ou não - o nosso universo”, lembra Umberto Eco), como também o tênue fio que urde o cinema brasileiro. É assim que cenas das chanchadas da Atlântida, do Cinema Novo, do Cinema Marginal das décadas de 70 e 80 e televisivas se entrelaçam, sem ordem de hierarquia, e revelam a diversidade das linguagens que cons truíram a nossa cultura visual. Sem purismos, muito menos com posições autoritaria mente excludentes.

No entanto, apesar da beleza das imagens e das músicas de Cartola que, não raras vezes, nos embevecem, creio que o filme encerra dois problemas que são recorrentes nos documentários pátrios.

O primeiro é, na falta de um termo melhor, a ausência de uma tese, de uma idéia norteadora a ser perseguida. Do que trata o filme, perguntamos ao término da sessão. É uma biografia? Parece-nos que não, pois há lapsos consideráveis da sua história pessoal. Décadas são passadas quase em brancas nuvens. Ficamos sem conhecer fatos essenciais da vida de Cartola, tais como: desde o dia em que ele saiu de casa, quanto tempo ele ficou sem falar com o pai? Quando ele volta à morada paterna, depois do “fracasso” do Zicartola, foi um momento de reencontro, onde as mágoas da juventude foram dissipa-das, ou eles (pai e filho) eram, antes desse reencontro, amigos e já se freqüentavam? Quais as relações de Cartola com os filhos adotivos? - fato praticamente inexplorado ao longo do filme. O que fazia Dona Zica antes de conhecer Cartola (a propósito, há um belo e longo depoimento dela num dos programas do “Sem Censura”, da TVE)? Inclusive, pouco sabemos sobre sua relação com a primeira esposa: foi harmônica? Foi tumultua-da? Qual a causa da sua morte? Entramos na sessão sem nada saber do assunto, saímos desinformado do mesmo modo.

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m certo momento de Cartola: Música para os Olhos (Brasil, 2007), documentário de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, um dos entrevistados narra um pitoresco episódio da vida de Cartola. Na ocasião, o compositor foi flagrado no quarto de uma amante pelo marido dela. Para ilustrar o caso, contado com malícia tipicamente

carioca, os dois diretores pernambucanos usam o trecho de uma antiga chanchada de Oscarito, no qual uma situação idêntica é encenada pelo impagável comediante. A passagem ilustra perfeitamente a estética original, leve e irreve-rente que Ferreira e Lacerda utilizam para narrar a biografia de um dos maiores gênios da música popular brasileira.

Cartola passa longe da sisudez do documentário clássico. É representante legítimo da escola contemporânea do gênero, que abre espaço para experimentalismos e se afasta da narrativa tradicional, de objetividade quase jornalísti-ca. Não pretende contar uma história bem comportada, com começo, meio e fim. Costuradas de maneira mais lúdica, não-linear, as imagens de naturezas distintas (entrevistas do biografado, cenas de shows, depoimentos de amigos e pesquisadores, arquivos de TV, pedaços de filmes antigos, seqüências ficcionais com atores, trechos de programas de rádio, fotografias) são organizadas em um mosaico bem adequado à ginga e ao espírito boêmio do biografado.

Aliás, o material reunido durante oito anos de pesquisa, extremamente rico e diversificado, não foi filtrado de acordo com o valor histórico das imagens. A edição final obedece apenas às necessidades da narrativa. Vale tudo. A decisão de abolir a figura do narrador é apenas uma de muitas liberdades artísticas que, se desagrada aos apreciadores do documentário clássico, ajuda a atingir um objetivo maior do que simplesmente traçar a biografia de um artista. O filme de Lírio e Hilton mira em Cartola e acerta na geração inteira à qual ele pertenceu. Uma geração que se confunde com o samba da periferia, com a ginga e o cheiro de suor dos negros, com o jeito malandro de falar e de levar a vida, batucando numa caixa de fósforos e tomando cerveja. Este é um filme que tem algo a dizer sobre identidade cultural.

Por si só, estas qualidades já valeriam uma conferida atenta, mas há muito mais. Cartola oferece uma aula de mon-tagem criativa. A estrutura cronológica é respeitada, mas os diretores encontram sempre maneiras originais de con-textualizar (e até mesmo comentar, com olhar crítico) as diferentes fases da vida do compositor. Quando o filme chega à década de 1950, quando Cartola passou alguns anos sumido, sem que ninguém soubesse por onde andava, a tela fica negra, e o público ouve apenas o áudio do filme por alguns minutos. Há quem pense que se trata de defeito de projeção, mas não é – trata-se de opção estética para sublinhar a ausência de informações sobre o que fazia o com-positor àquela altura da vida.

Em outro momento, o filme introduz um trecho de narração radiofônica do lendário segundo gol uruguaio, na final da Copa de 1950, apenas para ajudar o espectador a contextualizar o que acontecia no mundo, àquela altura da vida de Cartola. Mas o melhor exemplo da narrativa lúdica talvez esteja a inclusão de cenas de soldados marchando, quando a narrativa adentra os anos 1960. A alusão ao golpe militar de 1964 é clara, assim como é óbvio o comentário irônico dos diretores a respeito do episódio histórico, já que essas imagens são invertidas na projeção, de modo que os soldados parecem andar para trás. A informação vem através da mais pura idéia de montagem: o choque de um plano com o próximo, acrescido do áudio, induz a um significado completamente novo, que não existe nos elementos isolados. Puro cinema, simples e fácil de entender, mas que exige participação do espectador na decodificação da

mensagem. Além disso, há as entrevistas deliciosas, repletas de casos divertidos contados pelos amigos biriteiros do sambis-

ta (Carlos Cachaça, Nelson Sargento). A verdadeira peça de resistência, porém, está nas músicas, para as quais o filme abre espaço generoso. Várias canções são entoadas por intérpretes de qualidade comprovada (Beth Carvalho, Nara Leão), mas as melhores emocões aparecem na voz do próprio Cartola. Talvez o momento mais emocionante seja uma versão espontânea de “O Mundo é um Moinho”, entoada ao lado do pai. Ou “Nós Dois”, composta dias antes do casamento com Dona Zica, e cantada de frente para ela, que ouve calada, cheia de sorrisos maliciosos.

Mesmo com tantos predicados, o maior trunfo de “Cartola” é a recusa em pintar um retrato sofrido de Cartola. Seria fácil fazer isso. Nascido Agenor de Oliveira, em 1908, o compositor viveu na pindaíba a vida inteira. Foi um boêmio de carteirinha, desses que não liga para dinheiro. Levou uma vida repleta de mulheres e bebida e até teve um bar da moda, nos anos 1960, mas nunca guardou um centavo do que faturou. Compôs mais de 500 músicas, incluindo vários clássicos da MPB, mas só gravou o primeiro disco aos 66 anos, depois que, endividado e com prob-lemas de saúde, precisou voltar a morar com o pai. Mesmo assim, nunca perdeu o bom-humor, a mole cagem, o jeito boêmio e despreocupado de encarar a vida. O filme preserva, intacta, a alegria de viver de Cartola, algo que a estéti-ca irreverente até mesmo realça. Seria difícil fazer maior justiça a um dos artistas seminais para entender a idéia de ser brasileiro.

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Rodrigo Carreiro

mado sobre o que vira? Eis o verdadeiro paradigma! Não estou falando de dida tismo (longe de mim), e sim da compreensibi lidade diante de informações completamente desco nhecidas por ele. Compreensibilidade que é exigida até quando esta-mos diante de pares, e estabelecemos um mínimo de informação, um código comum, para que possa-mos entender os referen tes que vamos a partir dali compartilhar.

Para estabelecer uma tese e, por sua vez, defendê-la, faz-se necessário a construção de um raciocínio que, mesmo que desconheçamos o tema em questão, possamos acompanhar e, como deve ocorrer em qualquer obra que se propõe a ser um documentário, entendê-lo. Pois só a partir do que é colocado, podemos de fato construir argumentos para dizer se gostamos ou não do que vimos, se concordamos ou não com o que foi argu-mentado. Sem tal premissa, continuamos achando esta ou aquela cena interessante, alguns depoi-mentos inteligentes, mas apenas isso. Só.

Diante das nossas ressalvas, vale a pena ver Cartola? Sim. O cuidado com as imagens e com as músicas revelam a ciosidade dos seus diretores. As músicas, como não poderiam deixar de ser, são impagáveis. Certas cenas valem por um filme, a exemplo da passagem em que Donga canta com Chico Buarque, no Programa de Heber Camargo, o primeiro samba gravado - Pelo telefone -, tendo ao fundo Pixinguinha. Donga não só canta, como samba, samba maravilhosamente bem (é de arre-piar). Imagens que nos remetem às origens de tudo: a casa de Tia Ciata. Outra cena a dar vulto, é

a que ele canta para o seu velho pai. Lindo. Por fim, destaco também as imagens do seu enterro, que abrem e fecham o filme. Particularmente as cenas que encerram o documentário: os amigos conversando, rindo e bebendo em memória do morto. Ao fundo, o cemitério. São cenas que nos remetem à velha máxima alencariana, tomadas do Eclesiástico, de que “tudo passa sobre a terra”.

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anuel Eudócio não é apenas um artista. É um criador de arquétipos. Cronista de sua cultura, de sua cidade, de seu tempo, cristalizou no barro cenas e per-sonagens da vida nordestina que, hoje raras, estão mais presentes no imagi-

nário do que na própria realidade. Único remanescente vivo da primeira geração de ceramistas do Alto do Moura, foi

ele quem primeiro moldou na cerâmica as figuras do boi-bumbá e do cavalo marin-ho, personagens do reisado tão popular na Caruaru de sua infância, um folguedo hoje quase inexistente.

Criativo aos 76 anos, o homem que ajudou a estabelecer as bases da cerâmica popular brasileira no século vinte luta para continuar a enxergar o que deu para o mundo ver. Instrumentos de toda a vida, seus olhos agora já não auxiliam como antes o fluxo das peças entre sua mente e a realidade.

“Já não consigo fazer acabamentos muito detalhados nas minhas peças”, diz ele que, aguerrido, só abandona o ateliê onde vive no Alto do Moura para idas sema nais ao oftalmologista. O glaucoma e a catarata teimam em cansar-lhe a vista. “Até ler já virou uma coisa muito difícil”, conta Eudócio.

Se, desde o final dos anos 70, ele já não investia muito em peças pequenas – salvo sob a insistência de colecionadores egressos de lugares tão díspares quanto o Recife, o Rio de Janeiro, ou Berlim – , agora as miniaturas são artigos tecnicamente impos-síveis em sua obra.

“Acho bonito peças pequenas, mas não são mais para mim”, diz ele, admirador das centimétricas esculturas da sobrinha Marliete Rodrigues. “Toda minha família acaba com problemas na vista”, diz, atrás de grossas lentes e ainda em busca de óculos ade-quados. “Já fiz três, nenhum está funcionando bem para ver de perto”.

Reproduzidas ad nauseam por artesãos – nordestinos ou não – , as peças de Eudócio são sinônimo imediato da arte popular figurativa brasileira. Clássicas. Ao lado de Zé Caboclo, Zé Rodrigues, Ernestina e do mais notório de todos eles, o mestre Vitalino, Eudócio ajudou a estabelecer as bases da escola que mudaria a visão sobre a arte popular do Brasil. Mãos e olhos habilidosos, talhou as cenas de um Nordeste hoje em extinção. Aquele que ainda não havia trocado o pastoreio e as brincadeiras

de terreiro por shows de forró eletrônico, brega e outros arremedos das metrópoles típicos da indústria de massas.

Com a quebra de preconceitos já pavimentada pela Semana de Arte Moderna e pelo Movimento Regionalista liderado por Gilberto Freyre no Recife na década de 1920, sua estética contribuiu para amolecer as sempre preconceituosas fronteiras entre a popular e a chamada arte erudita.

Do outro lado do Atlântico, o Picasso que tanto se inspirou nas máscaras tradicio-nais africanas, por exemplo, chegou a expor um boi de Vitalino ao lado de suas próprias obras. Disse que eram equivalentes em importância. “Eudócio é o mais orig-inal e instigante entre os artistas brasileiros vivos que trabalham com o barro”, diz o esteta Moacir dos Anjos, curador da próxima Bienal de Artes Plásticas do Mercosul.

“Não faz sentido classificá-lo como artesão ou artista popular. Ele é um artista. Por uma questão sociológica, ainda tentam classificá-lo preconceituosamente”, esta-belece.

Mesmo que lhe custem mais esforço da retina, novas peças ainda nascem sob o movimento de suas mãos. A mais recente é uma santa ceia em que os apóstolos envergam não túnicas romanas, mas camisas estilo “volta ao mundo”, de chita, ou as calças do tecido “alvorada”, disponíveis na Feira de Caruaru onde ele começou a vend-er seus bonecos.

“Antes, bastava a gente olhar para a realidade para fazer uma peça. Hoje, o mundo tem de tudo. Então, a gente tem que tirar as coisas da cabeça”, diz.

Viúvo há oito meses, ele segue, como o homem velho da canção de Caetano, deixando morte e vida para trás. Interessa-lhe mais o Nordeste que tinha sua vida social nas quermesses diante da igreja matriz na indefectível praça central em vez daquele que, de calças apertadas, chacoalha um forró eletrônico em vaquejadas. A realidade já lhe escapa. Nem lhe interessa tanto. Além das mãos, da vista cansada e do barro, arquétipos caboclos seguem como seu material de trabalho.

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Saber

Olhos de barroBruno Albertim

Manoel Eudócio, último remanescente da 1ª geração de ceramistas do Alto do Moura, enfrenta sérios problemas de visão, mas continua a fazer sua arte

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Vânia Carvalhode Nova York

advogado americano Jeffrey Galperin enfrentou a chuva intermitente de um dia de primavera em Nova York para fazer novos negócios. Saiu de Portchester, no estado de Nova York, pegou um trem para Manhattan e foi até o número 680 da 5 avenida, onde

funciona o Council of Americas, para ouvir sobre oportunidades no Brasil. Queria conhecer os projetos dos oito governadores que estavam no evento e trocar o maior número de cartões de visitas possível. Galperin descobriu o Brasil no último ano e tem se dedicado a aprender portu-guês assistindo filmes brasileiros, “Cidade baixa, O homem que copiava, Cidade de Deus e outros. Compro os dvds na loja de importados brasileiros”, conta. Mas, seu objetivo número um é fazer dinheiro com o Brasil, ele quer ter como clientes de seu escritório empresas brasile-iras.

Galperin é um representante de uma nova leva de empresários americanos atentos ao país verde-amarelo. Essa nova onda é bem diferente do “Brasil que entrou na moda” de quase dez anos, que colocou o país no circuito fashion, e consagrou como ícones a modelo Gisele Bundchen e as sandálias havaianas. É uma nova tendênica mais objetiva, de gente que quer fazer negócios e busca resultados.

A estabilidade política e econômica do Brasil e a descoberta do etanol como alternativa viável de substituição do petróleo trouxe o país de volta à cena. Os homens de negócios amer-

icanos em geral e, não apenas as grandes multinacionais, como demonstra o próprio Galperin, querem conferir as oportunidades.

Os governadores brasileiros que também enfrentaram a chuva em Nova York demonstraram que não querem decepcionar seus interlocutores. Como bons vendedores, apresentaram um leque de atividades e projetos que contemplam praticamente todos os setores da economia. Sergipe tem petróleo, gás e hidrelétricas. “Somos o Arkansas do Brasil, um estado pequeno que deu certo”, afir-mava o governador Marcelo Deda (PT). O governador de Santa Catarina, Luiz Henrique (PMDB), garante que as terras de seu estado são de uma qualidade extraordinária. “Os japoneses já recon-heceram que nossa maça Fuji é melhor do que a original japonesa”.

O Piauí é um estado rico em mineração, especialmente opala e níquel. Uma opala lapidada chega a valer até dez vezes o valor do ouro. O fato dessas riquezas serem praticamente descon-hecidas não desanima o governador Wellington Dias (PT) “Minha função é fazer o Brasil e o mundo descobrir o Piauí”, disse.

O governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), ressaltou a importância da aproxi-mação com a América do Norte para o seu estado, da ligação histórica entre Recife e Nova York - judeus saídos da capital de Pernambuco teriam ajudado a criar a mais importante cidade amer-icana. Para reforçar a idéia de estado voltado para o mundo, o governador pernambucano citou seus grandes projetos. O Porto de Suape, com localização estratégica, tem potencial de pólo de distribuição internacional, o grande potencial do turismo, o esforço para ser um pólo de tecnolo-gia e, claro, o etanol. “No Nordeste existe um clima de animação, não trazemos mais o discurso das queixas”, disse.

Campos se referia a revigorante mudança política que atingiu a região na última eleição. Mas, seu discurso também poderia ser interpretado pela perspectiva de uma nova pala-vra-chave, o etanol. Segunda maior região produtora do país, o Nordeste tem muito a lucrar caso as negociações entres brasileiros e americanos avancem nessa questão. É inegável o interesse dos americanos pela tecnologia de biocombustíveis brasileira. O etanol brasileiro é mais competitivo e menos poluente que o etanol de milho desenvolvido pelos americanos. Um dos seus maiores entraves é a sobretaxa de 54% para sua importação no mercado dos Estados Unidos..

A promessa de negócios com o combustível tem levado estados que não estão inseridos no mapa brasileiro do etanol a buscar um posicionamento rápido. O governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), anunciou em Nova York que Belo Horizonte será a sede do “Centro de Inteligência do Etanol”, uma instituição de excelência em pesquisas sobre o biocombustível. O centro já teria um investimento garantido do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no valor de US$ 100 milhões e começaria a ser estruturado ainda nesse mês de maio.

O matogrossense Blairo Maggi (PR) defende que seu estado, grande produtor de grãos, passe a produzir cana-de-açúcar sem prejuízo para a produção de alimentos e para o pantanal e a mata amazônica. “Precisamos apenas de um duto para escoar o álcool até os portos”, afir-ma. De olho no apelo internacional pelo tema da preservação do meio ambiente, o governa-dor do Amazonas, Eduardo Braga, propos a criação de um “bolsa-floresta” para a população que mora em áreas de riscos de desmatamento. Doações internacionais poderiam financiar o projeto.

Nos últimos meses, desde que os presidentes Lula e George W. Bush iniciaram uma aproxi-mação para discutir o novo combustível, o etanol tem sido bombadeado por críticas no exterior. Na visão dos críticos, o etanol vai aumentar a fome no mundo e destruir a Amazônia.

O esforço brasileiro para defender seu combustível tem sido discreto nos Estados Unidos. Só no último dia 30 de abril, um simpósio patrocinado em Nova York por uma ong brasileira ligada às Nações Unidas, evento subseqüente ao encontro de governadores com empresários, demonstrou que os brasileiros querem reafirmar a qualidade de seu produto e desmentir as críticas. No Hotel Hilton, na 6 avenida, um super-elenco foi escalado para “apoiar” o etanol brasileiro. Dois ex-presidentes norte-americanos, George Bush e Bill Clinton, afirmaram que o etanol brasileiro é a melhor alternativa de biocombustível. Até a supermodelo inglesa Naomi Campbell passou para prestigiar e tirou fotos com os presentes, inclusive o ex-presidente José Sarney.

O americano Galperin nao conseguiu tirar fotos com Naomi. Mas, ele gostou do que ouviu dos brasileiros e decidiu continuar aprendendo português. O próximo filme brasileiro que pretende assistir é “O ano que meus pais saíram de férias”.

Está na modaO Brasil do etanol é a nova atração para os americanos e os governadores brasileiros querem aproveitar o bom momento para atrair investimentos

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á uma nova poesia no Recife. Algo que se move entre a boemia e a exaltação da cidade. É verdade que segue uma tradição poética pernambucana que vem de Carlos Pena Filho e Mauro Mota. E, ainda mais, de Manuel Bandeira, aquele cujo rigor formal leva o leitor a imaginar que está diante de uma crônica ou de um conto. E de

cujo leveza nasce um texto imensamente belo, sem adjetivos e palavras inúteis.Esta nova poesia se consolida com a publicação de “O Recife e Outros Poemas”, de Robson Sampaio, o cronista do

cotidiano na Folha de Pernambuco, entre problemas da cidade e denúncias, igualmente elaborados num livro rec-heado de apresentações. Mas um traço a se observar neste poeta, assim como em outros que incorporam uma espécie de geração esfacelada, e que passa por Ericson Luna, Francisco Espinhara e Nivaldo Lemos.

O que se vê, de imediato, é uma geração - tal qual no livro de Robson - que se joga no uso do discurso formal mas com uma busca de conteúdo que se dilacera entre o Recife amado e exaltado, o Recife sufocado pela solidão e pelo álcool, enfim, edificado sobre os abismos da boemia. Boemia, aliás, que se torna mais do que uma presença - trans-forma-se num personagem - ou numa personagem? - deste “Recife e Outros Poemas”.

O pêndulo narrativo se move entre esses dois motivos, oscilando com angústia e com alegria, com uma espécie de felicidade que se alimenta das águas e dos mangues. Por isso, o poeta exalta: “Vagabundos, uni-vos! Vinde louvar o Recife e ouvir ladainhas das devotas beatas a compor a Sinfonia dos pecadores de corpo e de alma”.

Não é sem motivo, portanto, que a palavra vagabundo surge com tanta ênfase neste livro. Está também presente nas obras destes outros vagabundos, louváveis vagabundos, que preenchem a paisagem poética do Recife, agora solitária com seus bares vazios, e as nostálgicas prostitutas percorrendo as vielas esquecidas. Lembram, portanto, as cidades do poetas marginais, eles próprios inseridos nesta habitação inóspita.

Há, assim, uma espécie de simbiose entre cidade e poetas, entre vagabundos e marginais, entre aqueles que sonham a cidade querida e que devorados por ela, numa situação que beira a loucura mas, que, felizmente, produz poetas e poemas, congrega todos num só lamento e num só gemido, como se as cidades pós-modernas fossem apenas dor, delírio e abismo.

Sem dúvida uma poesia que registrada, espantada, o nascimento de um geração que, embora já publicando, se ergue ainda mais vigorosa em livros como este, num momento em que a literatura parece silenciada, sufocada por uma cultura de massa que a cada momento ocupa mais espaços. A literatura está viva e os nossos poetas também.

A nova poesia per-nambucana se solidar-iza com o Recife, a boemia e os vagabun-dosRaimundo Carrero

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Caetano Veloso continua um artista transgressor, mas a reação da platéia não é mais a mesma, levantando a pergunta: De que são feitas hoje as trangressões?

que há de comum entre a moça que, literalmente, rastejou pelo palco até os pés de Caetano Veloso, na segunda apresentação de Cê, no Teatro Guararapes, no dia 1° de maio de 2007, e um rapaz que xingou o cantor de viado há 30 anos, no

Teatro do Parque, na passagem da turnê Bicho Baile Show pelo Recife? Caetano Veloso cantava London London, uma de suas canções do exílio, composta

em 1969, em Londres, quando, súbito, notaram, o cantor e a platéia, que uma moça, como uma serpente, arrastava-se sinuosamente pelo palco até onde ele estava. Caetano impediu que os seguranças retirassem a moça do palco. Pagou pra ver. Ela parou aos seus pés. Deitada, esperou que a canção terminasse. O próprio cantor a ajudou a se levantar, ganhou um beijo e um abraço. Cerca de mil pessoas permanece-ram impassíveis nas poltronas. Não se manifestaram. Nem contra, nem a favor.

“Viado”! O grito, em meio a uma das canções do show Bicho Baile Show, no Teatro do Parque não teve a mesma recepção. Caetano interrompeu o show. Pediu que os spotlights fossem dirigidos para a platéia, e desafiou o autor do grito a se identificar. Fez-se um silêncio constrangedor no teatro... Visivelmente contrariado Caetano res-saltou que sempre que fazia show no Recife aconteciam incidentes semelhantes. No Geraldão, quatro anos antes, enquanto ele cantava a versão de Asa Branca, uma obser-vação grosseira o levou a parar o show, revidar com chumbo grosso e retirar-se do palco indignado.

A moça-serpente de Cê, deste ano, e o anônimo rapaz do “ viado” em Bicho Baile Show são espelhos de suas respectivas épocas. Apesar da distância que os separa, os dois shows têm semelhanças. Ambos são transgressões do eternamente inquieto Caetano Veloso. Bicho Baile Show ousava convocar para dançar uma geração que ainda pensava em ser convocada para lutar contra o regime militar. Em 1977, enquanto aqui se vivia sob a abertura lenta e gradual do governo Geisel, lá fora a música disco irrompia avassaladora, e não demorou a desembarcar no Brasil. Dança era alienação. Caetano não gravou um álbum de disco music, mas de influências nigerianas, com a banda Black Rio, montado a partir do movimento homônimo que surgia na periferia carioca. O disco Bicho nem é tão dançável (o Refavela de Gil, da mesma época, é bem mais). O show Bicho Baile Show, sim. A intenção inicial, era apresentá-lo em salões, sem poltronas, onde as pessoas pudessem dançar, “pra seu corpo ficar odara”.

Odara vem do ioruba, o belo, tudo que é bom, positivo. Tornou-se um termo odiado pela esquerda. Quando a crítica começou a baixar a ripa nos baianos - ou seja, Caetano e Gil - eles rebateram, e logo foram chamados de patrulha Odara. Na Veja, Tárik de Souza, já o mais importante crítico do país, em junho de 1977, escreve um artigo intit-ulado Adorando o próprio umbigo, no final do qual deixava a pergunta no ar: “Caetano não estaria agora - como pergunta ele próprio, sábio e corajoso - apenas entre comov-

ido e deslumbrado com sua fertilidade como artista e artesão? Somente adorando o umbigo e o próprio ego? Cartas para a redação”.

Por onde passou Bicho Baile Show promoveu reações nas platéias. Em Goiânia, Caetano Veloso deu um esculacho de quase vinte minutos na platéia que o queria o incendiário de dez anos atrás, rejeitando o Leãozinho, e Odara. Talvez não fosse o que o baiano esperasse, afinal um ano antes ele, Gil, Gal e Bethânia pintaram e bordaram com Os Doces Bárbaros. Ele podia muito bem repetir o discurso feito no festival inter-nacional da canção de 1968: “É esta a juventude que quer tomar o poder?....Vocês não estão entendendo nada, nada”.

Três décadas depois, Caetano Veloso está novamente na estrada, com seu rep-ertório mais rock and roll, embora não seja nenhum neófito no gênero: “A coisa do rock é uma coisa do tempo da gente. É todo um modo de ser. É um pouco assim a cara do nosso tempo. A gente está nesta coisa o tempo todo, não importa como. Eu não penso mais o que é rock, o que não é. A gente já está dentro dele. Tudo é rock”. A afirmação é antiga, de antes do Bicho Baile Show, foi pinçada de uma entrevista à Ana Maria Bahiana em 1975.

Cê, o disco roqueiro de Caetano Veloso é tão transgressor quanto Bicho. Embora cinqüentão, o rock continua estigmatizado como uma música barulhenta para adoles-centes. Desde 1965, o rock alcançou a maioridade, concedida por Beatles, Bob Dylan, Rolling Stones, mas os velhos fãs de Caetano Veloso,os que o acompanham desde Alegria, alegria querem ir para um teatro escutar MPB.

Porém onde os fãs querem romance, ele lhes dá rock'n roll. O som da guitarra de Pedro Sá toma conta de todo espaço do Teatro Guararapes.

Porém, ao contrário do que fariam, ou fizeram, 30 anos antes, a platéia não se mani festa. Escuta passiva. A espera, talvez, de um Você é linda, Sou loco por ti America, Baby, canções que embalaram sua juventude, ou “adolescidade”, idade de pedra e paz. Caetano não faz concessões. Até a veneranda Sampa vem em embalagem rock and roll. Uma pequena parte do público vai embora na metade do show. O restante conti-nua impassível. Só quem se manifestou na platéia, foi a moça-serpente, a que rastejou pelo palco até Caetano. Ou melhor, ela não se manifestou, fez uma performance. Mas a platéia lhe foi indiferente, assim como continuou indiferente aos sons da guitarra de Pedro Sá, da bateria de Marcelo Callado, e do baixo de Ricardo Dias Gomes, e ao rock de Caetano Veloso. Quem sabe, ali na platéia, impassível, não se encontra aquele rapaz que reagiu contra o Odara e os requebros de Caetano Veloso, gritando o “viado”, no Teatro do Parque, num longínquo 1977?

José Teles

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