pedro mexia 2

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Alice #5 Janeiro/Fevereiro 2011 O pessimista romântico / parte 2 1/10 Pedro Mexia O pessimista romântico / parte 2 entrevsta de maria joão freitas / fotografias de luís mileu Gosto de ler aquilo porque parecem dois auxiliares da condição humana: a Bíblia e o guia das doenças mentais. Alice: Visitas muito os dicionários? Pedro Mexia: Para escrever, não. Uso o dicionário para ler, mas para escrever não muito. De vez em quando há palavras que não conhecemos. ¶ Consideras-te um maníaco e um purista da língua? Não, estou mais preocupado com a comunicabilidade. Claro que, e até porque escrevo poemas, tenho noção que uma palavra num certo sentido é insubstituível. Tenho as duas experiências de escrita que são opostas: o jornalismo, em que qualquer palavra é substituível, por definição, e a poesia, em que só podia ser aquela. É uma tensão que existe sempre entre esses dois registos. O facto de escrevermos um texto num jornal e dizerem-nos: tens que cortar três parágrafos, cortarmos e o texto não se ressentir, mostra que há um lado algo arbitrário. Num poema, idealmente, é o contrário. ¶ Não tens tentação de ser poético na escrita jornalística? As crónicas têm uma componente poética. A crítica literária não, mas as crónicas sim. ¶ Escreves poesia como e quando? Não escrevo poemas regularmente há uns três anos, desde o Senhor Fantasma. Em parte, por causa da Cinemateca... ¶ Já lá vamos. Em que registo te expões mais: como poeta, blogger ou cronista? Não penso nas coisas em termos de exposição. ¶ Pões o mesmo de ti em todos esses registos? Há uma grande distinção naquilo que escrevo entre o que é profissional, aquilo que é encomendado e pago, onde tenho que cumprir umas certas regras e obedecer a uns certos protocolos, e o resto, que é o blogue e a poesia, onde posso escrever o que quiser, como quiser. No jornal, sigo uma série de regras. Por exemplo, nas críticas literárias, de acordo com o livro de estilo do Público, não se usa a primeira pessoa. Nas crónicas é diferente. E embora escreva artigos que não tenham nada a ver com a actualidade, as crónicas têm quase todas a ver com efemérides ou publicações recentes, alguma coisa de que se fala, não é uma coisa totalmente desligada do aqui e agora. A poesia e o blogue não obedecem a essas regras, e nesse sentido são mais livres. Nas crónicas que estão agora reunidas em As Vidas dos Outros as pessoas diziam-me que eu já não me expunha, o que também é falso. ¶ Acusaram-te do contrário do que é habitual. Como se ao falares das vidas dos outros não estivesses inevitavelmente a revelar a tua. Sim. E acho absurdo. São crónicas onde estão as minhas referências, as minhas obsessões, o meu gosto, e nalguns casos a minha biografia. ¶ Como o postal da fotografia da Audrey Hepburn que compraste para oferecer à tua Audrey e que até hoje continua dentro de um livro, a recordação da entrevista ao Bénard da Costa em que o gravador não funcionou, a tua visita à casa de Freud ou à exposição do Mark Rothko na Tate Gallery.

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Page 1: Pedro Mexia 2

    Alice #5 Janeiro/Fevereiro 2011

       O pessimista romântico / parte 2 1/10

 

Pedro Mexia

O pessimista romântico / parte 2

entrevsta de maria joão freitas / fotografias de luís mileu

Gosto de ler aquilo porque parecem dois auxiliares da condição humana: aBíblia e o guia das doenças mentais.

Alice: Visitas muito os dicionários? Pedro Mexia: Para escrever, não. Uso odicionário para ler, mas para escrever não muito. De vez em quando hápalavras que não conhecemos. ¶ Consideras-te um maníaco e um purista dalíngua? Não, estou mais preocupado com a comunicabilidade. Claro que, e atéporque escrevo poemas, tenho noção que uma palavra num certo sentido éinsubstituível. Tenho as duas experiências de escrita que são opostas: ojornalismo, em que qualquer palavra é substituível, por definição, e a poesia,em que só podia ser aquela. É uma tensão que existe sempre entre esses doisregistos. O facto de escrevermos um texto num jornal e dizerem-nos: tens quecortar três parágrafos, cortarmos e o texto não se ressentir, mostra que há umlado algo arbitrário. Num poema, idealmente, é o contrário. ¶ Não tenstentação de ser poético na escrita jornalística? As crónicas têm umacomponente poética. A crítica literária não, mas as crónicas sim. ¶ Escrevespoesia como e quando? Não escrevo poemas regularmente há uns três anos,desde o Senhor Fantasma. Em parte, por causa da Cinemateca... ¶ Já lá vamos.Em que registo te expões mais: como poeta, blogger ou cronista? Não pensonas coisas em termos de exposição. ¶ Pões o mesmo de ti em todos essesregistos? Há uma grande distinção naquilo que escrevo entre o que éprofissional, aquilo que é encomendado e pago, onde tenho que cumprir umascertas regras e obedecer a uns certos protocolos, e o resto, que é o blogue e apoesia, onde posso escrever o que quiser, como quiser. No jornal, sigo umasérie de regras. Por exemplo, nas críticas literárias, de acordo com o livro deestilo do Público, não se usa a primeira pessoa. Nas crónicas é diferente. Eembora escreva artigos que não tenham nada a ver com a actualidade, ascrónicas têm quase todas a ver com efemérides ou publicações recentes,alguma coisa de que se fala, não é uma coisa totalmente desligada do aqui eagora. A poesia e o blogue não obedecem a essas regras, e nesse sentido sãomais livres. Nas crónicas que estão agora reunidas em As Vidas dos Outros aspessoas diziam-me que eu já não me expunha, o que também é falso. ¶Acusaram-te do contrário do que é habitual. Como se ao falares das vidas dosoutros não estivesses inevitavelmente a revelar a tua. Sim. E acho absurdo. Sãocrónicas onde estão as minhas referências, as minhas obsessões, o meu gosto, enalguns casos a minha biografia. ¶ Como o postal da fotografia da AudreyHepburn que compraste para oferecer à tua Audrey e que até hoje continuadentro de um livro, a recordação da entrevista ao Bénard da Costa em que ogravador não funcionou, a tua visita à casa de Freud ou à exposição do MarkRothko na Tate Gallery.

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    Alice #5 Janeiro/Fevereiro 2011

       O pessimista romântico / parte 2 2/10

 

É verdade, estás lá sempre, a espreitar entre as palavras. E agora, estás aespreitar as perguntas? Já viste esta? Foi a minha gata que escreveu isto nodocumento, com as teclas. 5ttplufykstr. Como lhe hás-de responder? Éspicuinhas com os livros? Muito. ¶ Não emprestas livros a ninguém? Às vezestenho que emprestar, se for uma pessoa a quem é aborrecido dizer que nãoacabo por emprestar, mas evito. ¶ E tomas nota num livrinho a quememprestaste? Tomava, por acaso agora há muito tempo que não faço isso. ¶Qual foi o último livro que emprestas-te que não te devolveram? Foi umaantologia do conto português feita pelo Vasco Graça Moura, em 3 volumes,emprestei um deles e não faço ideia a quem. ¶ Os teus livros não se escondemde ti? Já me aconteceu, mas mesmo no meio da desarrumação sei mais oumenos onde eles estão. ¶ Estamos a falar de oito mil, dez mil livros? Não sei,não faço ideia. Sei que são seis divisões com livros. ¶ Compraste uma casa tãogrande por causa dos livros? Foi. Precisava de mais espaço para eles ¶ Quehomem serias no Fahrenheit 451? Sei que é difícil responder, mas... Há umapeça que é das coisas que gosto mais e que vi agora em palco, no mês passado,em Londres. É uma peça do Beckett, que se chama Krapp's Last Tape, vi umaencenação com o Michael Gambon. É uma peça curta, com um homem isolado,impaciente e maniento a ouvir gravações da sua vida passada e a comentá-las,reagindo às coisas ditas por uma voz antiga como se não fosse ele. ¶ Vais aLondres muitas vezes? Nos últimos cinco anos tenho ido duas vezes por ano. ¶ Sentes-te em casa em Londres? Sinto-me bem em Londres, mas não sei se mesinto em casa. Há ali coisas estranhas, ficar noite às 4 da tarde não é muitoagradável. ¶ Que personagem serias no livro Alice no País das Maravilhas?(pequeno riso) Não sei, não leio a Alice há muito tempo, nem sequer é o meuuniverso. O Lewis Carroll não faz parte do meu panteão. Há um escritortambém muito inglês de que gosto particularmente que é o Edward Lear e dassuas Limericks. Às vezes tendo a ler aquilo como um catálogo das pessoas queconheço. ¶ Vens nesse catálogo? Sim, de vez em quando... Havia uma raparigaque eu conhecia que tinha a ver com uma Limerick do Lear: "There was ayoung woman of Portugal... Whose ideas were excessively nautical"... E euadora aquilo. O Lewis Carroll tem uma atracção pelo infantil que eu não tenhode todo. ¶ Não gostas de crianças? Aquilo que me seduz nas crianças até vaide encontro ao Lewis Carroll, gosto do lado anarca, absurdo, surreal, asperguntas estranhas, a falta de pachorra para as solenidades sociais. Mas nãotenho irmãos, não tenho filhos, não contacto muito com crianças, não é umuniverso que me seja muito próximo. ¶ E animais de estimação? Quando eramiúdo tive um canário e uma tartaruga. Nunca tive cães nem gatos. ¶ Os livrossão o teu único animal de estimação? São os meus animais de estimação. ¶ Fazes festas neles? Nos livros? Não. ¶ Cheira-los? Isso sim, quando oscompro. A maioria dos livros não cheira a nada de especial. Mas há uns livrosque têm um cheiro especial. ¶ Como organizas a tua biblioteca? Por divisões,temas? Geralmente é por língua. Língua portuguesa, inglesa, francesa,espanhola e outros traduzidos. E depois por género: poesia, ficção, ensaio, masé um bocadinho flutuante, porque os livros vão chegando e nem sempre estãoarrumados. ¶ Acontece mudarem de sala? Sim, até porque há livros que estãoarrumados por autor, depois há um livro que está ali que pertence a um génerodiferente. Um livro de poemas do Beckett está onde, sendo que a poesia é algomarginal na obra dele?

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       O pessimista romântico / parte 2 3/10

 

¶ Gostas de Bukowski? Mais ou menos. Gosto de uma certa crueza na escrita,mas acho que é um universo muito estreito e depois ele repetiu aquilo até aexaustão. Quando li South of No North gostei imenso. Mas ele próprio é umapersonagem desagradável, cabotina. ¶ Misógino? Esse sim, era claramentemisógino. ¶ O que é que andas a ler agora? Para além das coisas que estou aler para o jornal, estou a ler teatro. Comprei muito teatro em Inglaterra. ¶ Játiveste problemas na alfândega por excesso de livros? Estranhamente, não.Ainda há uns tempos trouxe 96 livros de São Paulo. ¶ Não te imaginava emSão Paulo, isso não é gente demais para ti? Fizeram lá uma peça minha econvidaram-me. Comprei muitos livros e estava para trazer coisas da ClariceLispector, mas as capas eram tão feias... Há edições brasileiras horrorosas. ¶ Oque compraste hoje na Trama? Comprei dois livros de poesia antigos que nãotinha do Nuno Júdice, e do João Miguel Fernandes Jorge, comprei umabiografia do Raymond Carver em inglês e um livro de um alemão, HansMagnus Enzensberger, sobre uma viagem a Portugal nos anos 80. ¶ Quando teoferecem livros que já tens, o que fazes? Finges que não os tens? Sim, achoque é a maneira mais fácil de resolver o assunto. ¶ Qual é o livro que está natua estante embrulhado em papel celofane? É o Ofício de Viver, do Pavese, emitaliano. ¶ Gostas do Italo Calvino? Não é a minha família. Pertence à famíliado Borges, do Cortázar, à família da imaginação. ¶ E o Kundera? Eu não leioKundera há muito tempo, mas gosto muito. ¶ E os Maias? Fazem parte doslivros da tua vida? Devem agradar à tua costela romântica. Os Maias têm umadimensão romântica sim, mas não são um dos livros da minha vida. Há umaespécie de excesso de detalhe nos Maias... Gosto muito do Eça, mas tenho penaque ele nunca se tenha apaixonado, que tenha sempre tido uma barreira entreele e a vida. O que li do Eça que mais me marcou foi um conto chamado, "JoséMatias", que é uma espécie de paródia do romantismo, mas é uma paródiatriste, há ali uma nostalgia daquilo. Gosto do Eça mas também gosto doCamilo. O Camilo tem o outro lado, viveu as coisas apaixonadamente. ¶ Conseguiste comprar ou alguém te ofereceu Lisboa, Cidade Triste e Alegre?Consegui comprar. ¶ Deste os 90 euros? Sim, porque é fantástico. Descobri-oporque comprei um livro sobre livros de fotografia daquele fotógrafo inglês, oMartin Parr, e esse é o único título português que lá vem citado. ¶ Não tensuma noção moral para o preço dos livros? Se fosse um livro normal... masaquele é ilustrado, e raro. Se o livro não me interessasse tanto, não o teriacomprado. ¶ Qual é o teu limite moral para um livro? Não sei. Acho que nuncatinha comprado um livro que custasse 90 euros. Gosto muito de livros, mas nãotenho o culto do livro como objecto. ¶ Qual é o teu lugar e posição preferidaler? Em geral leio num sofá ou na cama. ¶ Gostas de ler em cafés epastelarias? Depende. Uma parte muito importante da minha leitura é passaros olhos pelas coisas que saíram. Portanto, se saíram oito romances e quero verse algum me interessa, em geral compro-os e leio-os na diagonal. ¶ Compraslivros que depois nunca lês? Que nunca leio integralmente, sim. Consigo estarcom um livro três quartos de hora e perceber se aquilo é bom ou não, se vale apena. E isso faço em qualquer lado. ¶ Estás treinado a ler na diagonal? Muitíssimo. Se for para esse efeito e fazer uma triagem, sim. E acho que nuncame enganei.

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       O pessimista romântico / parte 2 4/10

página de “Limericks”, Edward Lear

página de “Limericks”, Edward Lear

 

¶ Quantos livros tens editados? São seis de poesia, três diários e três decrónicas, mais um de teatro. ¶ Treze. Estás em vários locais, nas livrarias.Como poeta qual é o teu vizinho do lado, na letra M? A maioria das livrariasnão tem secção de poesia, mas quando há, geralmente estou entre o TolentinoMendonça e o Paulo José Miranda. Nos dois ou três dicionários onde venho,estou entre o Roberto Mesquita e o José Rodrigues Miguéis. No caso dosdiários como nas crónicas, as pessoas nunca sabem onde estão os livros. Olivro que se chama Estado Civil, que é um diário, talvez por causa do subtítulo,"Diário de uma crise" está muitas vezes... ¶ Mas não são todos? Não estássempre em crise? Não. Agora não estou em crise. ¶ Agora é o país que está.Agora é o país. Era precisamente por causa disso, esse livro estava no meio delivros do Medina Carreira. O Fora do Mundo já o vi na secção de teatro. ¶ E oNada de Melancolia? Enganaste quem te deu esse briefing para os textos:nada de melancolia. Não só enganei como ainda exibi isso no título. Foi muitobom. ¶ No Fora do Mundo, revelas que descobriste que podemos mandar SMSa nós próprios. Experimentei e era verdade. Sim, podes. Escreves o teunúmero e recebes. ¶ É triste ou é bom, podermos mandar mensagens a nóspróprios? Uma pessoa que se sinta só pode mandar mensagens a si própria.Escrevi essa nota como uma nota triste, com certeza. Mas escrevi um texto adizer que podia mandar mensagens a mim próprio porque nesse dia descobrique podia mandar mensagens a mim próprio. Tudo tem uma base factual.Quando descobri isso, percebi que também tinha uma dimensão melancólica, aideia de que a pessoa vive um certo fechamento, está isolada. ¶ Há algumnúmero de telemóvel que gostasses de ter e que ainda não tens? Não sei, atéporque as pessoas que mais admiro são pessoas que não faço questão deconhecer pessoalmente. ¶ Tens medo da desilusão? Pode não ser propriamentedesilusão. ¶ Qual foi o último número de telefone que apagaste? Foi da únicapessoa por quem me apaixonei por engano. E como era engano, apaguei. Àsvezes tiro porque são pessoas com quem perdi o contacto, mas por retaliação,não. ¶ Como descobriste que tinhas voz de Pato Donald? Foi quando mecomecei a ouvir na rádio. ¶ Tu és fã do elefante na sala. Chamas a atençãosobre os teus defeitos e fraquezas, ampliando-os até eles ficarem invisíveis.Não sei, não penso nisso como uma estratégia deliberada. Mas a voz de PatoDonald é verdade, aliás vê-se no gráfico do painel da TSF. Eles dizem que asmelhores vozes são aquelas que no gráfico estão sempre em linha recta e aminha está sempre a subir e a descer. ¶ Parece um electrocardiograma? Exactamente. Não tenho uma voz masculina. Tenho uma voz nasalada. E nãogosto da voz, mas não é uma coisa importante, é uma brincadeira. Aliás essetexto do Pato Donald é um texto brincado. ¶ Onde foste buscar o cabelo loiro eos olhos azuis? À minha mãe. Tem a pele branca e olhos azuis. Parece que háum antepassado sueco, do tempo das guerras napoleónicas. ¶ Não parecesportuguês. Passo por estrangeiro cá. Nos Restauradores tentam semprevender-me droga em inglês: "Do you want some?" ¶ Já te reconciliaste com atua barba? Nunca tive nenhum problema com a minha barba. Comecei a usarprimeiro barba, depois pêra, e habituei-me. Temos uma relação pacífica, apesarde ela ser mal semeada. ¶ Lembrei-me daquela mulher que te disse para tiraresa barba, que ficavas melhor sem ela e no dia seguinte apareceres sem barba eela dizer: afinal ficas melhor com barba. Isso foi uma experiência terrível. Abarba começou logo a crescer nesse dia, sim. Até hoje. ¶

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       O pessimista romântico / parte 2 5/10

 

Já fostes confundido com que figura pública? Já me disseram que era parecidocom o João Soares. Há um tipo bastante parecido que é um dramaturgonorueguês, chamado Jon Fosse. Até pus a fotografia dele no blogue. Um diarecebi uma carta do Jorge Listopad que dizia: "Não sabia que você eranorueguês". Tinha um recorte com uma fotografia desse tipo e realmentesomos muito parecidos (- Queres mais alguma coisa? - Era mais umaCoca-Cola Light. - E outra Água das Pedras fresca.) ¶ És nórdico e frio ou umromântico fora do seu tempo? Tenho sangues misturados, sou emocionalmentemestiço. Sou por natureza contido, reservado, introvertido, mas depois... Haviaum amigo meu que dizia que eu sou um conservador mas que quando meapaixono transformome no Che Guevara. É um bocado isso, nessa altura pegonas metralhadoras e vou para as matas. ¶ As tuas metralhadoras são feitas depalavras? Sim, não tenho outras armas, mas é verdade, transfiguro-me. É umaárea da minha existência em que as regras são completamente diferentes.Torno-me um radical, um tresloucado, mas acontece poucas vezes, felizmente.¶ Já alguma vez te pediram para escreveres uma carta de amor em nome deoutra pessoa? Ontem. ¶ Não me digas. Foste Cyrano de Bergerac ontem? Nãofoi exactamente escrever em vez de, ou seja, foi assumido que era eu queescrevia. Um leitor do blogue pediu-me uma carta, uma prenda de anos parauma namorada ou apaixonada, que acho que gosta do que eu escrevo. ¶ Inspiraste-te em quê para escrever? O conteúdo da carta vai buscar o próprioCyrano. ¶ Brincas com o próprio acto que estás a cometer. Exactamente,embora no caso do Cyrano ele finja que é o autor real e aqui não se trata disso.Assumo que estou a escrever a pedido de uma pessoa que não conheço, e ainterceder por ele. A rapariga faz anos hoje, ele pediu-me para enviar o e-maildepois da meia noite, e lá mandei. ¶ Vamos então à Cinemateca. Foi umagrande surpresa para toda a gente e até para ti, o convite do Bénard da Costapara a Cinemateca. Para mim foi, totalmente. Ele telefonou-me para nosencontrarmos e eu estava convencido que seria para apresentar um livro oualguma coisa desse género. Fiquei completamente estupefacto com o convite,não fazia ideia que fosse para isso. ¶ Qual foi a primeira pessoa com quempartilhaste isso? Provavelmente com os meus pais. ¶ Em algum momentopensaste em dizer não? O "não" era uma hipótese. Pedi uns dias para pensar eaté demorei mais tempo do que tinha dito. ¶ O que estava na balança? Nuncatinhas tido um emprego? Nine to five, não. Por um lado era a questão dotempo, por outro lado temia o lado burocrático, não seria a coisa para a qualestaria mais talhado. Mais tarde verifiquei que cumpri essa parte, sem gostomas sem dificuldade. É aborrecido, mas em grande medida é automático.Depois era a Cinemateca em si e o seu fascínio. As vezes que lá fui ao longodos anos... ¶ Sem imaginares que um dia terias esse cargo. E a possibilidade detrabalhar com o Bénard, embora ele sempre tenha dito que sairia em breve. ¶ Como foste recebido? Houve uma certa desconfiança em relação a ti? Sim,com a desconfiança natural face a uma pessoa que não é do meio. ¶ Fizeste láalgum amigo? Já tinha um amigo que trabalhava lá, o Luís Miguel Oliveira. ¶ Então tinhas com quem almoçar. Na verdade, raramente almocei com ele. Nãoposso dizer que fiz amigos lá, até porque relações de trabalho são relações detrabalho e sou muito adepto de separar as coisas. No entanto, posso dizer quena esmagadora parte do tempo que lá estive não tive problemas pessoais.

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       O pessimista romântico / parte 2 6/10

 

¶ Que pessoas, autores e realizadores tiveste a oportunidade de conhecer quenão terias se não estivesses lá? Havia um cineasta que eu já conhecia, mas comquem convivi bastante, que foi o Manoel de Oliveira. Foi a pessoa com quemestive mais vezes, que apresentei mais vezes, até o fui apresentar a Bruxelas. Éuma pessoa de quem gosto muito. E houve nesses dois anos alguns convidados.A Agnès Varda foi uma das pessoas que conheci, assim como uma pessoa quenão é do cinema, mas que leio sempre com muito interesse, o crítico culturalGreil Marcus, que escreve na Rolling Stone. Conheci o Zizek. ¶ De quefalaram? Falamos de várias coisas, de poesia portuguesa e de mulheres. Amulher dele, uma modelo argentina de 28 anos, era um espanto. ¶ Ficasparticularmente entusiasmado com as mulheres dos escritores? E dosadvogados, dos dentistas, dos arquitectos, dos engenheiros. Interessam-me asmulheres, ponto final. Acho graça, objectivamente, que um filósofo marxistalacaniano de sessenta e tal anos tenha uma namorada lindíssima de 28 anos. ¶ Escreveste muitas folhas da Cinemateca? Escrevi cento e tal folhas. Houvefilmes de que gostei muito, outros sobre os quais não sabia nada. ¶ Podesescrever sobre qualquer coisa? Poder, posso, mas não o faço bem, ninguémescreve bem sobre tudo. Não costumo sair das minhas das minhas três ouquatro áreas. Mas às vezes era preciso. Na altura tínhamos um ciclo de cinemada Córsega. Eu não sabia nada sobre o assunto, li algumas coisas e tentavaanalisar cada filme como um objecto autónomo. ¶ Qual foi a folha que te deumais gozo escrever? Gozo não é a palavra, tendo em conta o filme que é, masgostei muito de escrever sobre O Sacrifício do Tarkovski. E escrevi algumasfolhas sobre o Rohmer. ¶ Dizia-se que o Bénard da Costa tinha visto 57 vezes oJohnny Guitar. Já li vários números, mas sim, viu muitas vezes. ¶ Há algumfilme que pudesses ver 57 vezes? Tens um Johnny Guitar na tua vida?Cinquenta e sete vezes, mesmo numa vida longa, parece-me realmente muito,mas não me importava de ver muitas mais vezes ao longo da minha vida oParis,Texas. ¶ Por causa da Nastassja Kinski, a quem até dedicaste um textochamado A minha primeira namorada? Não só, mas também. Há nesse filmeuma confluência de elementos. É o Wenders da primeira fase, de que eu gostomuito, o Sam Shepard a escrever, uma certa mitologia americana on the road, aquestão da possibilidade da família, o casal, as relações humanas retratadascom pessimismo, a melancolia da música do Ry Cooder. Há um monólogo doHarry Dean Stanton que sei quase de cor. ¶ Qual é o teu western preferido? É oRio Bravo. ¶ O western é um género que as mulheres não apreciam muito? Owestern é um género mais amado pelos homens do que pelas mulheres, é umgénero que exclui as mulheres. O Rio Bravo é um filme maravilhoso, por duasrazões. Uma é aquela história da coragem individual face à coragem do grupo.Aliás, diz-se que o Rio Bravo foi feito em resposta ao O Comboio Apitou TrêsVezes e que o Hawks ficou horrorizado com aquela população que não queriaajudar o herói. No Comboio Apitou Três Vezes, toda a gente foge de o ajudarmas no Rio Bravo é ele que não quer ajuda. Aquilo era no contexto domacarthismo e tinha também esse lado alegórico. E o Rio Bravo tem outracoisa maravilhosa. É um filme sobre a relação entre os homens, a amizade, acoragem e a cobardia, a degradação, a interacção entre o John Wayne, o DeanMartin e Ricky Nelson é maravilhosa. Mas o western nem é dos meus génerosfavoritos. ¶ E o Johnny Guitar? Não é bem um western. Também gosto muitode O Homem que Matou Liberty Valance. ¶ E o Aconteceu no Oeste? Já éwestern spaghetti... No outro dia, vi um programa que falava do westernchucrute, na Alemanha. E também há o western paella.

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    Alice #5 Janeiro/Fevereiro 2011

       O pessimista romântico / parte 2 7/10

“Cyrano de Bergerac” (peça de 1957)

 

¶ A sério? Só falta o western bacalhau... Quais são os realizadores da tuavida? O Bergman e o Rohmer. ¶ E o Woody Allen? Mais do que este ou aquelefilme dele, a obra do Woody Allen. ¶ Por vezes tens um registo à Woody Allen.O universo do Woody Allen marcou-me muito. Mas mais do que falar dosfilmes concretos, é todo o universo dele de que gosto imenso.Como ele temuma produção extensíssima, há muito filmes de que não gosto. O último quegostei mesmo foi o Match Point. E adoro o Crimes e Escapadelas, Ana e assuas Irmãs e Uma Outra Mulher. ¶ Ainda não percebi qual é a tua relação como Antonioni. Nem eu. ¶ Preferes o Fellini? Eu tenho mais empatia peloAntonioni, mas ele ao mesmo tempo dispensa a empatia, porque éprecisamente um não-empático. O Fellini é um cineasta que eu admiro muito,mas com quem não tenho afinidades. O Antonioni é um cineasta totalmentevisual, tem um desprezo pelo argumento. É muito gélido. ¶ Qual é o teuAntonioni preferido? A Noite ou o Blow-up. Mas ao mesmo tempo, não hánenhum Antonioni de que não goste, tirando o Para Além das Nuvens. OAntonioni inventou o cliché da incomunicabilidade. ¶ Preferes Goddard ouTruffaut? Godard, o Truffaut tinha uma costela mainstream que nem semprefoi bem resolvida, embora tenha filmes maravilhosos, como A Mulher doLado. O Godard é o contrário, tem uma pulsão underground que às vezes émagnífica e outras vezes quase arbitrária. ¶ E o Hitchcock, que mexe com osnosso fantasmas todos? Deves adorar o Ladrão de Casaca, com a Grace Kelly.Quando ela pergunta, referindo-se ao frango, se ele prefere peito ou perna...Aquilo está repleto de subtextos. Nem sei como certas coisas passavam. Háuma cena em que ela está a pôr o colar de diamantes e as coisas que ele diz sãoquase escabrosas. Também gosto muito de A Corda. Não tem mulheres, é umfilme gay, mas tem aquela discussão dos geniozinhos sobre o crime impune eaquela coisa técnica de parecer um filme num só take. ¶ E o Confesso? Adoro oConfesso, é o meu lado católico. Segundo o Hitchcock, o Confesso foi umfracasso porque o público americano não percebeu o dilema do padre. ¶ Qual éo filme do Hitchcock que viste mais vezes? A Janela Indiscreta é o que vi maisvezes. Por acaso, é também é o que gosto mais. Basicamente, porque é umfilme sobre o voyeurismo. ¶ És voyeurista? Sou. Numa escala não punida pelocódigo penal, e não socialmente inquietante. ¶ Fazes pela calada? Gosto deapanhar as coisas, de ver, de ouvir. ¶ Tens falta de imaginação? Tenho muita. ¶Nunca iremos ler um livro de ficção escrito por ti? Dificilmente. Tenho muitopouca imaginação, muito pouca mesmo. Não está fora de hipótese eu escreverficção, mas não será muito imaginativa. ¶ E isso aborrece-te? Gostava de teralguma, como gostava de ter outros talentos. ¶ Quando é que descobriste quenão tinhas imaginação? Quando tentei escrever ficção. ¶ Tens uma vantagem,não deves ser medroso. O medroso é aquele que tem muita imaginação. Estásempre a imaginar coisas. Medroso não sou. ¶ Gostas de recontar históriasreais? Sim, recontar. Não me interessa que a maneira de contar seja real, gostode partir de uma coisa vista ou ouvida. ¶ Um voyeur é sempre alguém que nãotem imaginação, porque se tivesse não precisava de espreitar? Eu acho que sepode dizer exactamente o contrário, acho que o voyeur está sempre a imaginar.Mas não há muita gente que imagine de olhos fechados. ¶ A imaginação pede avisão? Ajuda muito. Porque é a partir daquilo que vê que dá um salto para afantasia. ¶ Os personagens literários fazem parte da tua vida? Em doseshomeopáticas, não no sentido de ficar a viver dentro dos livros.

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    Alice #5 Janeiro/Fevereiro 2011

       O pessimista romântico / parte 2 8/10

“Paris, Texas” (frame e capa de banda

sonora)

Rio Bravo

 

Não me considero um alienado da literatura, mas uma personagem fascinantepode ter uma certa realidade, como se fosse uma pessoa. ¶ Porque gostas tantode teatro? Porque descobri que é o meio mais adequado para dizer, investigar eexplorar certos aspectos das relações humanas. O texto que escrevi para teatronão é autobiográfico, mas também não é bem ficção. ¶ O teu "Nada de Dois"está ao pé de que autores nas livrarias? Como é teatro, em geral nem sequerestá nas livrarias, mas sou capaz de estar ao pé do Vieira Mendes, se ele estiverno M. ¶ Não gostavas de estar ao lado da Sarah Kane, na letra K? Não gostodela. Aquilo é muito cru para o meu gosto. Gosto do Tchekov e do Beckett, sãoas duas grandes referências. ¶ Nunca se percebeu bem porque saíste do Eixo doMal. Não me senti confortável a fazer o programa. E aquilo tinha bastanterepercussão, ou seja, eu era bastante reconhecido. ¶ No Pingo Doce, se é quevais ao Pingo Doce? No Pingo Doce é como o outro, o pior era nosrestaurantes, e eu não gostava disso. ¶ Quando saíste da Cinemateca voltaste ater muito tempo para ti. No fundo a Cinemateca foi um parêntesis na minhaexperiência. ¶ Mas tirou-te bastante liberdade, por muito que te tenha dado. Sim, mas foi a excepção, voltei ao que era a minha vida antes. Mais do que aexperiência de regressar à rotina antiga, foi a experiência da liberdade. E foiuma espécie de liberdade que não é uma liberdade ocasional ou imposta. Foiuma liberdade que nasce de uma decisão, e isso acontece poucas vezes. ¶ Quaisforam os motivos pessoais para saíres da Cinemateca? "Pessoais" é a palavrade código para dizer "não quero falar disso". ¶ Claro, eu sei, são pessoais eintransmissíveis. Nesta entrevista são intransmissíveis. ¶ És uma pessoadesconfiada ou crédula? Gostava de ser desconfiado. Mas nem sempre sou. ¶ Se soubesse que o mundo ia acabar amanhã o que é que fazias hoje? O mundoou eu? Se o mundo acabasse amanhã, é possível que fosse tentar emendar ascoisas que ficaram suspensas, os mal entendidos, as coisas por resolver. ¶ Eporque não finges que o mundo vai acabar amanhã e fazes isso hoje? Porque aboa vontade que existe num apocalipse não é a boa vontade da vida quotidiana.¶ O que gostarias de perguntar a Deus se o encontrasses? Gostava deperguntar a Deus: porque é que nos deixas a adivinhar? ¶ Talvez porque tenhasentido de humor? Provavelmente. ¶ Já alguma vez pensaste no teu epitáfio? Eu gosto de epitáfios, mas nunca encontrei um epitáfio bom para mim. Mas hádesde os líricos aos sarcásticos. Havia um escritor inglês, conhecido pelo seumau feito, que tinha este epitáfio: "Ainda rodeado de bestas". E depois háaqueles clássicos: "Eu bem vos avisei". Não sei, mas o meu seria certamenteirónico e não solene. A ideia de que vamos morrer é uma ideia que tem queestar sempre na mesinha de cabeceira, na mesa de trabalho. ¶ Pensas todos osdias isso? Quer dizer, sei todos os dias isso, isto é, a noção da morte estásempre presente no valor que atribuímos às coisas. Eu acho que é mais uma luzque uma sombra. ¶ Na mesinha de cabeceira está a ideia de morte. Nãoliteralmente, mas sim. Ao pé do despertador. Também sou sensível em relaçãoà ideia da loucura. ¶ Tens medo dela? Tenho algum, não é uma obsessão. ¶ Olha o que tenho aqui: Do Inconveniente de ter nascido, do Cioran. Isso éliteratura perigosa. ¶ "É preciso ser-se bêbado ou louco para ousar o recursoàs palavras, sejam elas quais forem". Em qual das categorias te incluis, nosbêbados ou loucos? Bêbedo não sou com certeza. ¶ És abstémio? Praticamente.¶ Então resta-te seres louco. Por acaso tenho uma prateleira onde estão a Bíbliae o livrinho dos diagnósticos de doenças mentais. O DSMIV da AmericanPsychiatric Association.

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    Alice #5 Janeiro/Fevereiro 2011

       O pessimista romântico / parte 2 9/10

 

¶ E já sabes qual é o tua mental disorder? Tenho um bocadinho de várias.Gosto de ler aquilo porque parecem dois auxiliares da condição humana: aBíblia e o guia das doenças mentais. Não há pessoas sem traumas, complexos eobsessões. ¶ Nunca te disseram "tu és doido"? Muitas vezes. Muita gente. ¶ Mais do que seria normal? Mais do que seria normal. Sobretudo nos últimosanos. Só nos últimos anos, acho eu. Há muita gente que acha que eu sou louco.¶ Gostavas que te chamassem Pierrot le Fou? A cinefilia não está muitopresente nessa gente. Ainda por cima gosto imenso desse filme. ¶ Outra doCioran: "Se nos pudéssemos ver pelo olhar dos outros desapareceríamosimediatamente". Como achas que os outros te vêem? De maneiras muitodiferente, uma das coisas engraçadas é que a Net permite muito ler coisas quedizem sobre nós, perceber o tipo de percepção que as pessoas têm de nós, e háuma pluralidade de de visões, das simpáticas às hostis, das realistas àsabsurdas, mas é interessante perceber que imagem é que as pessoas têm de nós.¶ E a tua imagem residual, qual é? Não sei... ¶ O Manuel Alberto Valentecontinua a dizer-te "Ó Pedro, a quantidade de pessoas que te odeiam"... ounão o tens encontrado? Não o tenho encontrado. ¶ Então não sabes como estáesse barómetro. Vou sabendo pelos blogues, dá um bocadinho para ver aspessoas que nos odeiam. ¶ Tens-te vindo a conhecer melhor graças ao queescreves no blogue? Não tenho a certeza que não me conhecesse à mesma.Claro que escrever explicita as coisas, mas eu penso muito sobre a minha vida.¶ Pensas muito em ti? Penso muito em mim. ¶ A ponto de te acusarem de selfcentered? Eu sou completamente self centered. ¶ Porquê? Porque é o que eutenho lá em casa. É um bocadinho como a pessoa comer o que tem nofrigorífico.¶ O que tens no frigorífico? Tenho pouca coisa, só bebidas, quase.Tenho uma ou outra coisa, para pôr no micro-ondas, tenho um frigorífico muitodespovoado. Mas ia-te dizer, tendo a considerarme essencialmente uma pessoamuito exigente. ¶ És rigoroso contigo? Sim, mas não no sentido que as pessoasdão a isso. As pessoas tendem a achar que eu sou masoquista, ou coisa dogénero. ¶ Também és exigente com os outros? Ou cometes a injustiça deapenas o seres contigo? Não, sou muito exigente com as pessoas de quemgosto. Com as outras, sou indiferente. Alguém falava na "paixão daindiferença", eu sou muito indiferente em relação à maioria das coisas e emrelação à maioria das pessoas. ¶ Não te comove ver uma pessoa em sofrimento?Depende, se estás a falar no telejornal, não, porque há alturas, como dizia oWilliam James, em que tens que ter "férias morais", senão estás a sofrer a todosos segundos. A maioria das pessoas são-me indiferentes, quer dizer, não tenhosentimentos positivos nem negativos sobre elas. Em geral ignoro as pessoassem fazer esforço nenhum para isso. ¶ "Assim que começamos a desejarcaímos na tentação do demónio", escreveu o Cioran. O grande desejo dodesejo não será não ser realizado? Porque se for, deixa de ser desejo. Na suafaceta mais doentia e perversa, o romantismo passa um bocadinho por aí. Odesejo desmesurado e não realizado, que se consuma na sua não-consumação. ¶"O aforismo é fogo sem chama. Compreende-se que ninguém se queiraaquecer nele". Tens um edredon de aforismos, não tens? Por acaso nãoconcordo nada com essa frase. O aforismo aquece porque é um bocadinhocomo a poesia. Tem um poder de concentração e de energia que pode dar calor,alento, tudo isso, embora seja uma espécie de sabedoria a posteriori. ¶ Quantasmentiras disseste durante a entrevista? Além desta que vais dar na resposta? Oque é que chamas de mentiras?

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    Alice #5 Janeiro/Fevereiro 2011

       O pessimista romântico / parte 2 10/10

 

¶ Numa entrevista, desconfio das respostas que são novas perguntas. Mentirasno sentido de dar uma representação conscientemente falsa da realidade?Nenhuma. Numa das peças do Sam Shepard ele diz "Lying is when you beliceit's true. If you already know it's a lie, then it is not lying". Gosto desta versãodo que é a mentira. Por mim, contento-me com a verdade ser a não-adulteraçãodos factos. ¶ Gostas de meias verdades? Mais uma vez tenho que te perguntar:o que são meias verdades? Acho que é possível dizer a verdade, mas não épossível dizer toda a verdade e nada mais que a verdade, isso não é possível. ¶ E meias mentiras, será possível dizer? Meias mentiras? Sim, no sentido em quenão são ditas com intenção de serem falsas. Quando falamos de nós próprios,dizemos meias mentiras, porque não estamos em posição objectiva de nosjulgar. ¶ Então quantas meias mentiras disseste? Só algumas meias. ¶ Vamospedir a conta? Isto foi uma odisseia. São 6 e meia. ¶ Ficaram tantas perguntaspor fazer. Não me perguntaste nada sobre política. Ainda bem, são tãoaborrecidas e cansativas essas perguntas. ¶ Não me passava pela cabeçafazer-te perguntas sobre política. Não é isso que me interessa. Na posteridadegostavas de ser reconhecido como poeta? Na posteridade? Tens cada uma. Nãoacredito na posteridade. Mas se ficasse alguma coisa, seria a poesia. ¶ Então,não vamos ter ficção assinada pelo Pedro Mexia? Não sei, a Bárbara quermuito. ¶ Como conheceste a tua editora, Bárbara Bulhosa? Foi um dosgrandes encontros da minha vida. De uma forma absolutamente ridícula. Euconhecia a Bárbara, sabia quem ela era, tinha falado com ela ao telefone, masnunca nos tínhamos encontrado pessoalmente. Um dia a Bárbara telefona-me ediz: "Pedro, esqueceste-te do nosso encontro? Estou aqui à tua espera na Fnacdo Chiado". Eu não tinha ideia de encontro nenhum, mas como sou muitodistraído, disse: "Esqueci-me, peço desculpa, vou já aí ter". Quando chego lá ea encontro no café e ela diz-me: " É o Pedro Mexia? Foi a si que telefoneiagora? Desculpe, era a outro Pedro que queria ligar, enganei-me." ¶ E o outroPedro não apareceu? Não sei, mas sei que a partir daí escrevi um prefácio paraum livro da Tinta-da-china, o Dicionário do Diabo do Ambrose Bierce, edepois comecei a editar lá. ¶ Antes da entrevista, pensava: se ele ainda nãoescreveu ficção, é porque não tem imaginação ou então está-se a guardar parauma coisa em grande, lá para os 60 anos. Ainda me faltam vinte anos. ¬ A