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Pedro Almeida Vieira Crime e Castigo O povo não é sereno

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Pedro Almeida Vieira

Crime e CastigoO povo não é sereno

Crimes de punho de renda

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Em terra de cegos quem tem olho morre

A descoberta do ouro e diamantes no Brasil embalara os portugueses,ao longo da primeira metade do século XVIII, numa pintalegrete verti-gem. Parecia abastança inesgotável. E céleres, as riquezas de além-marcravaram nos lusitanos a desoladora morrinha de ser possível viverbem sem labutar em demasia. Que o dissesse D. João V, que saborearaum reinado de abastança, servindo-se desse maná para tudo menospara modernizar o país. Em meio século quase só houve cabedais paraconstruir igrejas, conventos e outras mundanas futilidades. As terrasfi caram em pousio e a indústria nacional em descanso.

Mas tal como a vida tem o seu fi m na morte, também as jazidasfeneceram. Porém, se o Rei Magnânimo, depois de morrer em 1750,nada mais teve que fazer, Portugal viu-se obrigado a continuar vivendodepois da «morte» das minas brasileiras. Ou melhor, a sobreviver, estre-munhado por uma realidade feita pesadelo: défi ce galopante, amorti-zação de empréstimos a juros astronómicos, cada vez mais dependentedo mercado externo e com a desagradável inconveniência de não vermuito dinheiro entrando nos cofres da Fazenda.

A crise e a penúria, sabido está, sempre abriram oportunidades denegócio, se houver parceiros vivendo de ilusões. E mesmo em pre-núncios de tempos difíceis, Lisboa manteve-se, na segunda metadedo século XVIII, como uma das praças-fortes da Europa. O porto de Lisboa continuava enxameado de navios mercantes estrangeiros,

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enfi leirando-se para descarregar toda a espécie de víveres. Fervilhava a capital portuguesa de negociantes de todo o quilate e origem, um palco propício para homens astuciosos afi arem as unhas à cata de chorudas oportunidades.

João Nicós Lisboa Corte Real foi uma dessas raposas humanas quegravitaram pela Lisboa do início do reinado de D. José. De origens obs-curas, os seus apelidos denotam, contudo, pergaminhos de burguesia, embora não seja de descartar que os tenha inventado, algo comum numa época em que se criavam passados de forma fácil. No início dos anos 50, pouco antes do terrível terramoto, estabelecera-se em Lisboa com pompa e espalhafato, liderando uma promissora empresa com um vasto conjunto de sócios. A sua actividade era, se assim se pode defi nir, manufactureira: fabricação de letras de câmbio, perfeitas na execução, com excelentes imitações de fi rmas e assinaturas, usadas em negócios fi ctícios. Através desses expedientes, a empresa sacava avulta-das maquias, em dinheiro vivo, em praças estrangeiras e nas colónias portuguesas, sem sequer a outra parte envolvida o saber. Para alargar a sua infl uência, João Nicós e companhia montaram até delegações em praças estrangeiras, e com tal arte compunham requerimentos, registos e trocas comerciais fi ctícias que, se houvesse difi culdades nos fraudulentos saques, executavam judicialmente as letras. Para tal, até apresentavam confi ssões dos devedores, obviamente falsifi cadas. E saíam vitoriosos nas demandas.

As falcatruas desta empresa – que fi cou popularmente conhecidapor Companhia do Olho Vivo – correram de feição nos primeiros anos. Porém, a ambição é cega e, em vez de arrecadarem os milhões e pisgarem-se para outras paragens, José Nicós e os seus compar-sas continuaram impavidamente, esperando enganar todo o mundo durante todo o tempo. Erro colossal. No início de 1753, avolumando--se as queixas nacionais e estrangeiras sobre uma empresa lisboeta de quem ninguém sabia ao certo que mercadoria negociava, abriu-se uma devassa secreta. Fácil se tornou concluir que se estava perante uma companhia de burlões. Resultado: quase uma trintena de pessoas foi detida.

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Face à dimensão das trapaças e à sua expressão geográfi ca, este casoameaçou a já débil credibilidade portuguesa nos mercados interna-cionais e, por isso, o governo de D. José agiu com celeridade. Eram outros os tempos… Após as prisões dos suspeitos, os desembargadores demoraram apenas duas semanas para recolher provas, julgar os réus e decretar as sentenças. Com punições duríssimas. Num acórdão de 20 de Maio de 1753, o Tribunal da Relação de Lisboa decretou a pena de morte a 10 dos sócios da Companhia do Olho Vivo, entre os quais João Nicós, e aplicou penas de degredo, por vezes com açoites prévios, para outros 15 réus, grande parte dos quais tendo a insalubre cidade angolana de Benguela como destino. Os restantes foram absolvidos.

A severidade destas penas, num crime agora julgado com brandura,pode surpreender. Mas, também naquele tempo, surgiam empenhos para aligeirar as sentenças dos réus socialmente mais infl uentes. Em resultado do primeiro recurso, António Bernardino de Moura, João de Almeida e Manuel de Brito Vasconcelos – fi guras gradas na sociedade lisboeta – viram a pena de morte comutada para degredo perpétuo em Angola. E, poucos dias mais tarde, num segundo e derradeiro recurso, o cabecilha Nicós recebeu similar benefício, livrando-se assim de fi car pendurado pelo pescoço no patíbulo.

O caso virou escândalo, contudo, não pela alteração do acórdão,mas sim pelos motivos. Com efeito, na acta do segundo recurso, o desembargador Estêvão Fragoso Ribeiro fez questão de produzir umadeclaração de voto, confessando ter-se visto «obrigado a obedecer a quem, pedindo, mandava». Poucos dias depois, soube-se então, por portas e travessas, quem era o homem que «pedindo, mandava»: nada mais, nada menos que o infante D. António, tio do próprio rei, que andara visitando os juízes, apelando a favor da vida de João Nicós, por ser primo de Manuel de Passos, um seu criado e simultaneamente tesoureiro do Senado de Lisboa.

Apesar desta ignominiosa corrupção, as sentenças foram mantidase, no dia 1 de Junho desse ano, pelas 10 horas da manhã, procederam-se às execuções dos sete condenados à forca. O cortejo teve, porém, de ser reforçado por um esquadrão de cavalaria para amainar a fúria da

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plebe desejosa de fazer de carrasco ao poupado João Nicós. Até porqueele esteve presente, porquanto, embora salvo de enforcamento, foracondenado a açoites públicos antes de seguir para o degredo. Em todoo caso, testemunhos da época relataram a sua alegria, mesmo depoisde vergastado, ao regressar à cadeia do Limoeiro.

O melindre deste caso levou, no entanto, à tomada de medidas con-tra o desembargador Estêvão Fragoso Ribeiro. O rei D. José ordenouque o regedor das Justiças o repreendesse, não tanto pela sua decisãono recurso, mas sim por denunciar por escrito, mesmo se de formaambígua, os empenhos do infante D. António. De facto, assim constanum documento assinado pelo próprio soberano, esse desembargador«não devia fazer menção mais que do serviço de Deus e meu, e daboa administração da justiça». Segundo consta, Fragoso Ribeiro nãosuportou o desgosto desta régia admoestação e morreu cerca de umasemana depois. Os outros três desembargadores, que votaram tambéma favor da comutação da pena de João Nicós, não sofreram qualquerreprimenda.

D. José deteria poderes para mandar repetir o julgamento, mas nãodesejou perpetuar o escândalo, optando por recorrer à prorrogativade alterar o local da pena de degredo. E assim, considerando que omentor da Companhia do Olho Vivo se mostrava «indigno da sau-dade das gentes, porque perverterá ou inquietará com seus péssimose escandalosos costumes qualquer terra em que habite», o rei ordenouque João Nicós não fosse enviado para Benguela. Preferiu ordenar quefi casse «recluso por toda a sua vida na enxovia subterrânea da torre deSão Lourenço da Barra», no Bugio, em plena foz do Tejo.

Terrível destino, pior que as terras africanas, porque a masmorrada torre do Bugio tinha apenas 6 palmos de largo, 11 de comprimentoe 25 de altura1, entrando luz natural apenas no topo, por uma fresta.E, para sua alimentação, conforme atesta um documento ofi cial, somentelhe destinaram sete arráteis de carne, meio alqueire de feijão, canadae meia de azeite, um arrátel de biscoito em cada mês, além de uma

1 Em suma, era um cubículo de 1,32 por 2,42 metros e uma altura de 5,5 metros.

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canada de água por dia1. Parco sustento e fraca variedade. Ignora-sequanto tempo João Nicós aguentou estas horrendas condições antes de os seus mortiços olhos se fecharem em defi nitivo.

1 Um arrátel correspondia a 459 gramas; um alqueire – unidade de volume usadasobretudo em cereais – a 13,8 litros; uma canada a 2,66 litros.

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Cobradores à forca

Em tempos de crise, de urgentes e prementes necessidades monetáriasda Fazenda Pública – fatal íman para arrecadar e vórtice infalível paradesbaratar –, sabido é que se criam novos impostos, se ressuscitamtaxas em desuso, se agravam os tributos já existentes, o mais das vezespara resolver contingências fomentadas pelos governos, que sempreexigem, para se perpetuar, contínuas dádivas forçadas e esforçadas do povo. Assim foi ontem, assim é hoje, assim será amanhã…

E, então assim sendo, recuemos no tempo. Nos anos 60 do século XVII,pouco depois da Restauração da Independência, viu-se o rei D. João IVobrigado a decretar um novo imposto aos portugueses, sob pretexto degarantir verbas para reforço das tropas acantonadas na fronteira. Essataxa – a décima – incidia sobre prédios, ofícios e ordenados. Resolvidos osproblemas, este imposto extraordinário manteve-se ao longo das décadas,mas caiu no esquecimento das autoridades, não sendo actualizado com ainfl ação, deixando de constituir um peso para os contribuintes. O tempopassou e, mais de um século depois, exauridas as minas brasileiras, o reiD. José quis explorar outra jazida: o povo. E alguém na Corte se lem-brou em 1763 de reabilitar a décima, reformulando um maná olvidado eestendendo a sua aplicação aos capitais emprestados a juros e aos lucrosda indústria e do comércio.

Posto isto, procedeu-se a um registo predial, quer dos prédios urba-nos quer dos rústicos, e inventariaram-se as actividades económicas

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das famílias. Tudo foi registado em livros, onde se escrituraram, por freguesias, rua por rua, prédio por prédio, o nome do proprietário do imóvel e casas comuns, dos eventuais inquilinos e respectiva renda, e também, em determinados casos, a profi ssão e o maneio. Ninguém deveria escapar.

Na tarefa de recolha dos impostos, e para evitar trafulhices, impu-seram-se escrupulosas regras, tantas que o dinheiro recolhido pelos cobradores deveria ser depositado em cofres de três chaves, sob alçada de distintas pessoas de confi ança, antes de seguir para o Erário Régio, onde se situava também o órgão de fi scalização. No terreno, porque inexistiam então repartições de fi nanças, as cobranças eram geralmente exercidas por funcionários da administração pública, judicial ou crimi-nal, para garantir, por óbvias razões, a máxima idoneidade. Na teoria, claro, porque na prática foi o que se veria.

Com efeito, logo no primeiro quinquénio da década de 60, reben-taram diversos casos de corrupção e peculato apenas em Lisboa. Um dos visados foi o juiz do crime do bairro do Andaluz, José Joaquim Damásio Xavier, que desde 1764 superintendia os impostos da rica freguesia de Santa Isabel. Feitas as averiguações costumeiras constatou--se que afi nal, naquele bairro, nunca houvera cofre, nem chaves, nem claviculário, nem editais; tudo funcionara através de esquemas expeditos do corregedor e de mais três auxiliares com as nominatas de Jerónimo Nunes da Costa, Feliciano José Couceiro e Mateus Inácio. Na verdade, a bem dizer, as cobranças faziam-se de modo informal, sem cumprir quaisquer normas ofi ciais. O dinheiro recolhia-se sem qualquer nota de cobrança, sendo entregue ao executado apenas uma folha avulsa. Mais tarde, estes quatro homens descarregavam nos livros ofi ciais os montantes que mais lhes convinham.

Geralmente, as verbas cobradas eram excessivas, mas nem sempre.Para os amigos, o corregedor e seus comparsas atenuavam os montan-tes dos impostos – dando, por exemplo, um rico prédio urbano como sendo rural ou devoluto –, arrecadando uma «comissão» pela bondade. Por outro lado, aqueles que apresentavam reclamações, poderiam até receber um abatimento especial, se incluíssem alcavalas, embora ausente

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de certidões. Se houvesse demasiada reclamação, o caso podia tornar-se mais bicudo – para o contribuinte, claro. Consta que algumas pessoas que resmungaram deste expediente, indo pessoalmente a casa do corregedor, no sítio do Rego, de lá saíram sob ameaça de cadeia, açoites e galés.

Em suma, trocado por miúdos, os quatro homens foram useiros e vezeiros no surripianço de verbas públicas em alegre peculato. No pró-prio processo judicial levantado a estes «quatro xerifes de Nottingham» destaca-se mesmo a existência de uma espécie de manual da falcatrua, sob a forma de «dezasseis modos de que os réus usavam para roubarem os colectados e a Fazenda Real».

Expediente pouco ortodoxo usou também, por estas alturas, o escri-vão Francisco Xavier que, na zona da Bica, então agregado ao bairrolisboeta de Santa Catarina, tinha a incumbência de sacar a décima. Como a população era constituída sobretudo por estivadores, calafates e trabalhadores mecânicos, ausentes dos seus domicílios durante o horá-rio da labuta, o cobrador meteu-se em horas extraordinárias, fazendo visitas nocturnas aos colectados, para depois, na manhã e tarde do dia seguinte, se dedicar à escrita nos livros de registo ofi ciais.

Contudo, tendo sido entretanto nomeado para o cargo de carcereirodo Tronco1, viu que esse ofício o prendia demasiado. Não se querendolibertar das alcavalas de cobrador, e como os amigos são para as oca-siões, pediu então a um dos seus, chamado Luís Gonçalves, para lhe continuar a tarefa, em seu nome, prometendo-lhe metade das comissões. E, claro, também dos furtos à Fazenda Pública. Depois de descobertos, a devassa apurou, enfi m, que em pouco tempo, conferindo os diversos registos, se tinham eclipsado 130 285 réis à conta deste outsourcing.

Com menor maquia se abotoou António Baptista, cobrador na zonada Madalena, ao longo do ano de 1767. Neste caso, a burla incluiu a fal-sifi cação de registos, usando, por vezes, a assinatura do superintendente daquela freguesia. Para atalhar detalhes, diga-se que António Baptista se

1 Prisão localizada junto às Portas de Santo Antão, em Lisboa, onde eram encarceradosos delinquentes de crimes comuns.

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apropriou em poucos meses, segundo se concluiu no processo judicial,de quase 64 mil réis do erário público da décima.

Peculatos deste quilate eram crime muito grave naquela época, por-quanto o seu autor sempre seria considerado «violador da fé pública e dojuramento solene [ao rei], e por isso infi el a Deus e à Pátria». Portanto,todos os réus destes casos foram condenados, ao longo de 1769, a um«passeio» pelas ruas de Lisboa até ao patíbulo do Rossio. As sentençasdeterminaram ainda que, depois de pendurados na forca, as suas cabe-ças fossem decepadas e expostas até o tempo as consumir. Porém, emresultado dos recursos, os réus não perderam tudo: os desembargadoresquiseram ser benevolentes e voltaram atrás num pormenor da primeirasentença: prescindiram do «cortamento das cabeças», permitindo queos réus tivessem enterros de corpo inteiro.

Esta benesse cefálica já não foi concedida ao escrivão João José DiogoFernandes nem ao cobrador Diogo Fernandes que, na freguesia de SãoSebastião da Pedreira, também se mancomunaram para sacar dinheiroà décima. O modus operandi era algo semelhante aos anteriores casos: aplicaram impostos em excesso, omitiram valores cobrados, passaramrecibos não ofi ciais aos colectados e cometeram mais trinta por umalinha, computando estas moscambilhas a um prejuízo para o Erário Régiode quase três contos e novecentos mil réis. Um valor por baixo, diga-se.No julgamento, os desembargadores estimaram que este montante poderiaser apenas «uma quarta parte» do total desviado.

Como agravante, o tribunal ponderou a licenciosidade da vida destes dois réus: o escrivão João José metera-se em mancebia com a fi lha docobrador, enquanto este, antigo sapateiro, «sempre fora mal proce-dido, andando por casas de mulheres tais» [sic] – ou seja, frequentavaprostíbulos –, além de ter «uma manceba que publicamente levava àscasas de pasto ou tabernas». Portanto, hábitos intoleráveis para aquelaépoca, merecedores de se ser enviado para o outro mundo, depois daforca, sem cabeça.