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Universidade Presbiteriana Mackenzie PARADIGMA OU CAMPO: UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE O PROCESSO DE PROJETO Alessandra Márcia De Freitas Stefani SÃO PAULO 2014

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  • Universidade Presbiteriana Mackenzie

    PARADIGMA OU CAMPO:UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE O

    PROCESSO DE PROJETO

    Alessandra Márcia De Freitas Stefani

    SÃO PAULO │ 2014

  • PARADIGMA OU CAMPO:UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE O

    PROCESSO DE PROJETO

    Alessandra Márcia De Freitas Stefani

    Tese apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como

    requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Arquitetura e

    Urbanismo

    Orientadora: Prof. Dra. Ana Gabriela Godinho Lima

    SÃO PAULO │ 2014

  • S816p Stefani, Alessandra Márcia de Freitas.Paradigma ou campo: uma análise da produção acadêmica so-

    bre o processo de projeto / Alessandra Márcia de Freitas Stefani.– 2014.

    282 f. : il. ; 30 cm.

    Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – UniversidadePresbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.

    Referências bibliográficas: f. 197-205.

    1. Pesquisa acadêmica em projeto. 2. Processo de projeto. 3.Processo de projeto digital. 4. Modelo de projeto digital. I. Títu-lo.

    CDD 745.2

  • Alessandra Márcia de Freitas Stefani

    PARADIGMA OU CAMPO:UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE O

    PROCESSO DE PROJETO

    Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação em Arquitetura e

    Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito

    parcial para a obtenção do título de Doutor

    Aprovada em: _____/ _____/_____

    Banca Examinadora

    ________________________________________________

    Prof. Dra. Ana Gabriela Godinho LimaUniversidade Presbiteriana Mackenzie

    ________________________________________________

    Prof. Dra. Teresa Maria RiccettiUniversidade Presbiteriana Mackenzie

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Michael BiggsUniversity of Hertfordshire

    ________________________________________________

    Prof. Dra. Cecília Helena Godoy Rodrigues dos SantosUniversidade Presbiteriana Mackenzie

    ________________________________________________

    Prof. Dra. Maria Alice Junqueira Bastos

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    Para Felipe, meu querido sobrinho.

    Um raio de luz em minha vida.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    AGRADECIMENTOS

    À Dra. Ana Gabriela Godinho Lima minha eterna gratidão por orientar-

    me nesta jornada de conhecimento, e que, com muita gentileza,

    sabedoria e paciência ajudou-me a centrar-me nas questões essenciais

    da natureza da minha investigação e concluir o trabalho.

    À Dra. Teresa Maria Riccetti, pelas sugestões apresentadas no momento

    da qualificação, pela colaboração e incentivo na minha trajetória de

    pesquisa acadêmica em projeto.

    Ao Dr. Michael Biggs, pelas sugestões de enquadramento teórico para

    minha investigação no momento de qualificação.

    À Dra. Nara Sílvia Marcondes Martins, pelo incentivo à minha participação

    e produção na pesquisa acadêmica na Universidade Presbiteriana

    Mackenzie.

    Aos meus pais, Angelina da Silva Freitas Stefani e Gilberto Stefani, pelo

    incentivo amoroso e apoio constante em minhas decisões pessoais e

    profissionais.

    À minha irmã, Gilseane de Freitas Stefani, pela imensa paciência em ouvir

    minhas dúvidas e questionamentos desta investigação e muitas vezes

    ajudar a verbalizar meus pensamentos, pelo intenso esforço dedicado à

    correção da escrita acadêmica. A sua presença e ajuda, que me auxiliou

    a finalizar este relatório.

    À minha irmã, Lizandre de Freitas Stefani, que se não estava presente

    fisicamente na elaboração desta tese, esteve e participou da construção

    da dissertação do meu mestrado, meu primeiro passo em pesquisa

    acadêmica.

    Às queridas amigas Ireneide Ulliana Rosa, Henny Aguiar Bizarro Rosa

    Favaro e Grace Kishimoto e aos amigos Marcelo Silva Oliveira e Ivo

    Eduardo Roman Pons, pela presença e energia positiva nesta caminhada.

    Este trabalho foi financiado em parte pelo Fundo Mackenzie de Pesquisa.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    RESUMO

    Esta pesquisa se dá no contexto da FAU-Mackenzie, a partir da

    experiência da autora como professora de Computação Gráfica no curso

    de Design, e propõe uma reflexão sobre a discussão acadêmica acerca

    do impacto das ferramentas digitais no processo de projeto.

    Tem como objetivo principal identificar fatores presentes no discurso

    acadêmico, que ajudem a compreender em que medida as ferramentas

    digitais estão efetivamente moldando um novo paradigma de processo

    de projeto ou se, em última análise, o que há de novo é a construção de

    um discurso, que ao configurar e delimitar um campo de pesquisa

    busca valorizar protagonistas e agentes que na cena tradicional dos

    discursos acadêmicos acerca do processo de projeto não mereceriam o

    mesmo destaque.

    Utiliza como fundamentação teórica as ferramentas de pensamento –

    habitus, campo e capital - tal como construída por Pierre Bourdieu e a

    noção de transição de paradigmas, definida por Thomas Kuhn, para

    mapear o campo de pesquisa em projeto e investigar o Modelo de

    projeto digital apresentado por Rivka Oxman, no texto ‘Theory and

    Design in the First Digital Age’, publicado na revista Design Studies, 2006.

    A fim de analisar o processo de projeto em âmbito acadêmico, a tese faz

    um recorte de estudo sobre a produção textual de dois autores

    considerados referências no campo de pesquisa em projeto - Rivka

    Oxman e Nigel Cross, que são aqui eleitos como porta-vozes de seus

    campos e respectivas comunidades científicas.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    Esta pesquisa teórica baseou-se em um levantamento bibliográfico

    extenso da produção intelectual publicada pelos autores referenciados e

    considera tais textos como narrativas e discursos dos autores para

    ambientar o objeto de estudo – processo de projeto digital - no contexto

    social de sua produção científica e cultural.

    Entre as contribuições presentes neste estudo estão um quadro de

    questões sobre as lacunas não respondidas no modelo de projeto digital

    de Oxman, contribuição que pode servir de base para futuras pesquisas

    e investigações sobre este tema.

    Além disso, outra contribuição deste estudo foi a apresentação integral

    da tradução do texto ‘Theory and Design in the First Digital Age’ (2006),

    de Rivka Oxman, que preenche uma lacuna na pesquisa em projeto

    digital no Brasil, já que existem poucos textos traduzidos desta produção

    acadêmica.

    Palavras-chave: Pesquisa acadêmica em projeto. Processo de projeto.

    Processo de Projeto Digital. Modelo de Projeto Digital.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    ABSTRACT

    This research takes place in the context of FAU-Mackenzie and from the

    author's experience as Computer Graphic Professor of Designer, who

    proposes a reflection on the academic discussion about the impact of

    digital tools in the design process.

    Having as main objective to identify factors in academic discourse to help

    understanding in what extent digital tools are effectively shaping a new

    paradigm or if what is new lately is the construction of a discourse

    configuring and defining a research field aiming to add value to players

    and agents who would not deserve within the scene of traditional

    academic discourses the same spotlight in design process.

    It uses as theoretical foundation Pierre Bourdieu´s thinking tools -

    habitus, field and capital - as well as the notion of paradigm shift by

    Thomas Kuhn in order to map design research field and to investigate

    the digital design model presented by Rivka Oxman in her article ‘Theory

    and Design in the First Digital Age', published in Design Studies

    Magazine, 2006.

    In order to analyze academic context for design process this thesis focus

    on textual production of two authors considered references in the field

    of design research - Rivka Oxman and Nigel Cross - who are elected by

    this study as spokespersons of their fields and their scientific

    communities.

    This theoretical research was based on an extensive bibliographic survey

    of intellectual production made by the referenced authors and it

    considers their texts as narratives and discourses to understand our

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    studied object – the digital design process – within its social context of

    their scientific and cultural production.

    Among the contributions belonging to this study there is one table with

    some unanswered questions about left over blanks in digital design by

    Oxman which can function as themes for future research and

    investigations with regards to digital design model.

    In addition, another benefit of this study was the presentation of the full

    translation of the article 'Theory and Design in The First Digital Age'

    (2006), by Rivka Oxman, which fills a gap in the Brazilian research as

    there are only a few texts translated about digital design in the academic

    production.

    Keywords: Academic Design Research. Design Process. Digital Design

    Process. Digital Design Model.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Figura 01

    Croqui de Sheinman.

    Fonte: CROSS (2011, p. 89) .................................................................................. 27

    Figura 02

    Transformação sequencial algorítmica.

    Fonte: TERZIDIS (2006, p. 79) .......................................................................... 27

    Figura 03

    Croqui de Niemeyer.

    Fonte: archdaily.com.br ....................................................................................... 27

    Figura 04

    Projeto topológico de Farah Farah, Technion, Israel.

    Fonte: OXMAN (2008, p. 43) ............................................................................ 28

    Figura 05

    Diagrama de um campo social.

    Fonte: THOMSON (2008, p. 72) ....................................................................... 32

    Figura 06

    Estratégia de Gordon Murray.

    Fonte: CROSS (2007b, p. 95) ........................................................................... 80

    Figura 07

    Estratégia de Kenneth Grange.

    Fonte: CROSS (2007b, p. 95) ........................................................................... 80

    Figura 08

    Estratégia de Victor Scheinman.

    Fonte: CROSS (2007b, p. 95) ............................................................................ 81

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    Figura 09

    Modelo de estratégia de projeto seguido por projetistas criativos.

    Fonte: CROSS (2007b, p. 96) ............................................................................ 81

    Figura 10

    Modelo de coevolução de problema-solução.

    Fonte: DORST; CROSS (2001, p. 435) ............................................................ 83

    Figura 11

    Fases principais do processo de projeto da equipe de Ivan, John e Kerry.

    Fonte: CROSS (2011d, p. 122) ............................................................................. 85

    Figura 12

    Fases principais do processo de projeto da equipe de Scheinman.

    Fonte: CROSS (2011d, p. 123) ............................................................................. 86

    Figura 13

    Análise de esquema de emergência de cadeira derivado

    de representações genéricas.

    Fonte: OXMAN (1999, p. 219) ............................................................................ 115

    Figura 14

    Modelo de “ver-mover-ver” ampliado com reflexão em ação de Schön.

    Fonte: OXMAN (2002, p. 137) ........................................................................... 117

    Figura 15

    Emergência sintática.

    Fonte: OXMAN (2002, p. 141) ........................................................................... 118

    Figura 16

    Emergência semântica.

    Fonte: OXMAN (2002, p. 143) .......................................................................... 119

    Figura 17

    ‘Re-cognição em emergência visual’ – um modelo expandido

    de emergência.

    Fonte: OXMAN (2002, p. 158) .......................................................................... 122

    Figura 18

    Esquema genérico.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 241), tradução APÊNDICE J, p. 247............... 136

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    Figura 19

    Esquema genérico: símbolos, fronteiras e ligações.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 242), tradução APÊNDICE J, p. 248............. 137

    Figura 20

    Modelo baseado em papel.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 245), tradução APÊNDICE J, p. 252 ............. 139

    Figura 21

    Modelo descritivo de CAD.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 247), tradução APÊNDICE J, p. 254 ............. 140

    Figura 22

    Modelo CAD de geração-avaliação.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 248), tradução APÊNDICE J, p. 255................. 141

    Figura 23

    Modelos de formação.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 250), tradução APÊNDICE J, p. 260................. 142

    Figura 24

    Modelos gerativos.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 255), tradução APÊNDICE J, p. 265.................. 145

    Figura 25

    Modelo de formação baseada em performance.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 258), tradução APÊNDICE J, p. 269.................. 147

    Figura 26

    Modelos gerativo baseado em performance.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 259), tradução APÊNDICE J, p. 270.................. 148

    Figura 27

    Modelo composto integrado.

    Fonte: OXMAN (2006, p. 261), tradução APÊNDICE J, p. 272................... 149

    Figura 28

    Comparação entre Modelo descritivo de CAD (Fig. 21) x

    Modelos de formação (Fig. 23).

    Fonte: OXMAN (2006), tradução APÊNDICE J, p. 254, 260...................... 165

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    Figura 29

    Comparação entre Modelo gerativos (Fig. 24) x

    Modelo de formação baseada em performance (Fig. 25) x

    Modelos gerativo baseado em performance (Fig. 26).

    Fonte: OXMAN (2006), tradução APÊNDICE J, p. 265, 269, 270............. 166

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    SUMÁRIO

    1. INTRODUÇÃO ................................................................. .....................18

    1.1 O Argumento .......................................................................................18

    1.2 Referencial Teórico ............................................................................22

    1.2.1 ‘Ferramentas de pensamento’ de Bourdieu ..................................25

    1.2.2 Noção de transição de paradigma de Kuhn ..................................36

    1.3 Estrutura da Tese .................................................. .............................44

    2. O CAMPO DE PESQUISA ACADÊMICAEM MODOS DO SABER PROJETAR ................................................49

    2.1 Porta-voz do Campo: Nigel Cross ..................................................53

    2.2 Campo de Pesquisa Acadêmica emModos Do Saber Projetar .................................................................59

    2.2.1 Métodos e metodologia de projeto .................................................59

    2.2.1.1 Estágio prescritivo de pesquisa em projeto .........................................612.2.1.2 Estágio descritivo de pesquisa em projeto ...........................................622.2.1.3 Estágio observacional de pesquisa em projeto ...............................66

    2.2.2 Modos do saber projetar......................................................................68

    2.2.3 Prática reflexiva de projeto ................................................................73

    2.2.4 Pensamento de projeto .......................................................................76

    3. O CAMPO DE PESQUISA ACADÊMICAEM PROJETO AUXILIADO POR COMPUTADORES ..................... 88

    3.1 A lógica de projeto de Herbert A. Simon ..........................................92

    3.2 Campo de Pesquisa Acadêmica emProjeto Auxiliado por computadores ..................................................94

    3.2.1 Projetar como uma atividade de resolução de problemas(1960 a 1980) ..........................................................................................96

    3.2.2 Projetar como uma atividade baseada em conhecimento(1980 a 1995) ..........................................................................................99

    3.2.3 Projetar como uma atividade social (1995 a 2000) ...................102

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    3.3 Porta-voz do campo: Rivka Oxman ....................................................105

    3.4 Cognição de projeto e computação .....................................................112

    3.4.1 Re-representação de projeto ..............................................................113

    3.4.2 Emergência em projeto ........................................................................116

    4. COMENTÁRIOS SOBRE O TEXTO ‘TEORIA E PROJETO DAPRIMEIRA ERA DIGITAL’, À LUZ DAS FERRAMENTAS DEPENSAMENTO DE BOURDIEU E DO CONCEITO DETRANSIÇÃO DE PARADIGMA DE KUHN .......................................126

    4.1 Precedentes de pesquisa de Rivka Oxman na formulação deprojeto digital ...............................................................................................128

    4.2 O projeto digital por Rivka Oxman ......................................................131

    4.2.1 Teoria e prática do projeto digital ....................................................131

    4.2.2 Exemplares de projeto digital ...........................................................133

    4.2.3 Modelos de processos de projeto digital .......................................135

    4.2.4 Impactos do modelo de processo de projeto digital

    segundo Oxman ....................................................................................149

    4.3 Paradigma ou campo? .............................................................................153

    4.3.1 Implicações da redução da atividade de projetarao processo de projeto ........................................................................153

    4.3.2 A prática reflexiva de Schön no projeto digital ...........................157

    4.3.3 A lógica do projeto de Simon no projeto digital .........................158

    5. COMENTÁRIOS DAS ESTRATÉGIAS DE PROCESSO, GERAÇÃO EFORMULAÇÃO DE PROBLEMAS NO MODELO DE PROJETODIGITAL À LUZ DO CONJUNTO DE CONHECIMENTOSDO CAMPO DE PESQUISA ACADÊMICA EM MODOSDO SABER PROJETAR ................................................................... ..162

    5.1 Estratégia de processo de projeto digital .......................................163

    5.1.1 A apropriação das formas de projetar do campo de pesquisaacadêmica em projeto auxiliado por computadores .................163

    5.1.2 A questão da interação no modelo de projeto digital ..............165

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    5.1.3 Ausência de modelagem computacional para etapade Avaliação do modelo de projeto digital ...................................169

    5.1.4 O posicionamento central do projetista nomodelo de projeto digital ...................................................................171

    5.2 Estratégia de Geração de projeto digital .........................................173

    5.2.1 Geração, Representação e Interação ..............................................173

    5.2.2 Croquis no projeto digital ...................................................................176

    5.2.3 Geração e adoção de conceito nomodelo de projeto digital ...................................................................179

    5.3 Estratégia para formulação de problemas deprojeto digital................................................................................................181

    5.3.1 A formulação de problemas nopensamento de projeto digital .........................................................182

    5.3.2 Experiências mal sucedidas de relacionar problema e soluçãode uma maneira lógica no campo de pesquisaem projeto auxiliado por computadores .......................................186

    6. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 189

    REFERÊNCIAS ................................................................. ........................ 197

    APÊNDICE A

    Tema dos Congressos CAAD ..........................................................................206

    APÊNDICE B

    Participação de Rivka Oxman em Congressos CAAD .............................208

    APÊNDICE C

    Produção Acadêmica de Rivka Oxman ........................................................210

    APÊNDICE D

    Artigos Rivka Oxman.

    Tema (EXPERT SYSTEM) .................................................................................214

    APÊNDICE E

    Artigos Rivka Oxman.

    Tema (KNOWLEDGE-BASED SYSTEM IN DESIGN) ………………………......215

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    APÊNDICE F

    Artigos Rivka Oxman.

    Tema (COGNITION AND DESIGN) ...................................................................219

    APÊNDICE G

    Artigos Rivka Oxman.

    Tema (DESIGN WEB SPACE) ...........................................................................222

    APÊNDICE H

    Artigos Rivka Oxman.

    Tema (DIGITAL DESIGN) ...................................................................................225

    APÊNDICE I

    Artigos Rivka Oxman.

    Palavra-chave (DIGITAL DESIGN) ..................................................................229

    APÊNDICE J

    Tradução

    Texto: ‘Theory and Design in the First Digital Age’ ....................................231

    APÊNDICE K

    Produção Acadêmica de Nigel Cross .............................................................280

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    18

    1 INTRODUÇÃO

    1.1 Argumento

    O foco central desta pesquisa reside na reflexão sobre a discussão

    acadêmica acerca do impacto das ferramentas digitais no processo de

    projeto.

    Esta reflexão dirige-se, especificamente, a identificar fatores presentes

    no discurso acadêmico, que ajudem a compreender em que medida as

    ferramentas digitais estão efetivamente moldando um novo paradigma

    de processo de projeto ou se, em última análise, o que há de novo é a

    construção de um discurso, que ao configurar e delimitar um campo

    de pesquisa busca valorizar protagonistas e agentes que na cena

    tradicional dos discursos acadêmicos acerca do processo de projeto não

    mereceriam o mesmo destaque. Cabe notar que, para efeito da

    argumentação apresentada nesta tese, utilizamos a noção de campo tal

    como construída por Pierre Bourdieu (1989, 2004a, 2004b, 2006), e que

    detalharemos mais adiante.

    O recorte deste estudo delineia-se sobre a produção textual de dois

    autores considerados referências no campo de pesquisa em projeto:

    Rivka Oxman e Nigel Cross. Este campo de pesquisa e conhecimento de

    projeto congrega diferentes comunidades, ou subcampos de pesquisa

    em projeto, dos quais os autores acima são reconhecidamente

    representantes.

    Rivka Oxman é arquiteta, israelense, com bacharelado, mestrado (1983)

    e doutorado (1988) na Technion - Israel Institute of Technology e

    participante ativa da comunidade científica de pesquisa em projeto

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    19

    auxiliado por computadores. Esta comunidade reúne-se em torno dos

    congressos de projeto arquitetônico auxiliado por computadores (ver

    APÊNDICE A) na América do Norte (ACADIA1), na Europa (eCAADe2 e

    CAAD Futures3), na Ásia (CAADRIA4), América Latina (SIGRADI5) e

    Arábia Saudita e região (ASCAAD 6 ). A produção científica destes

    congressos é reunida na base de dados online, CUMINCAD 7 , que

    condensa toda a produção científica dos congressos de todos os

    continentes, desde a época dos primeiros congressos no início dos anos

    1980. Além desta produção textual, a comunidade de projeto auxiliado

    por computadores mantém o periódico ‘International Journal of

    Architectural Computing’, desde 2002, e relações estreitas com o

    periódico inglês ‘Environment and Planning B’, desde a década de 1970.

    Oxman possui uma produção acadêmica empírica e teórica expressiva

    intelectualmente e em quantidade. Segundo o levantamento deste

    estudo, em termos bibliográficos, são 109 artigos e capítulos de livros

    (ver APÊNDICE C), publicados de 1986 a 2012. Nas suas atividades de

    pesquisa, ela desenvolveu softwares, realizou pesquisa empírica para

    analisar aspectos cognitivos do processo de projeto e elaborou questões

    teóricas do processo de projeto digital.

    O que destaca Oxman em sua comunidade científica é a participação

    ativa no periódico científico britânico Design Studies, com textos sobre

    cognição de projeto, computação, e processo de projeto auxiliado por

    computadores. A autora publica nessa revista desde os anos 1990 e, em

    1996, editou um volume especial sobre ‘Cognição de Projeto e

    Computação’ (Special issue: Design Cognition, 1996, v. 17, n. 4) com

    1 ACADIA – Association For Computer Design In Architecture

    2 eCAADe – Education And Research Computer Aided Architectural In Europe

    3 CAAD Futures – Computer Aided Architectural Design Futures

    4 CAADRIA – Computer Aided Architectural Design Research In Asia

    5 SIGRADI – Sociedad Iberoamericana de Gráfica Digital

    6 ASCAAD – Arab Society Compuper Aided Architectural Design

    7 Cumulative Index of Computer Aided Architectural Design

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    20

    ênfase na escolha de autores que abordam a ciência cognitivista para

    tratar o pensamento de projeto. Em 2002, ganhou o prêmio de melhor

    artigo do ano publicado pela Design Studies, o que fez com que se

    tornasse um membro do corpo editorial desta revista. Em 2006, editou

    um volume especial na Design Studies sobre ‘Projeto Digital’ (Special

    Issue: Digital Design, 2006, v. 27, n. 3) onde pleiteou a existência de um

    novo paradigma para projeto, baseando-se na configuração de

    modelos de processo de projeto com ferramentas digitais gerativas,

    no texto ‘Teoria e Projeto na Primeira Era Digital’ (Theory and Design in

    the First Digital Age).

    Nigel Cross é arquiteto, inglês, com bacharelado em arquitetura na

    University of Bath, mestrado e doutorado na UMIST- University of

    Manchester Institute of Science and Technology e representa a

    comunidade científica de pesquisa em ‘modos do saber projetar’, que

    começa a se organizar em meados da década de 1970 para contestar o

    enquadramento matemático e científico que o Movimento de Métodos

    de Projeto da década de 1960 imprimiu ao projeto. Tal comunidade

    estrutura-se na década de 1980, em função da organização do campo de

    estudos em projeto como uma terceira área da educação, ao lado das

    ciências e humanidades, conforme argumentação de L. Bruce Archer

    (1979) e do próprio Cross (1982). Esta comunidade organizou–se em

    torno do periódico científico britânico Design Studies, lançado em 1979,

    cujo objetivo inicial foi estabelecer as bases teóricas para moldar a

    disciplina de projeto.

    Cross tem um papel central para a comunidade pesquisa em projeto no

    momento em que os atores da cena de pesquisa em projeto se

    organizam para moldar a estrutura da disciplina de projeto. Ele participa

    da elaboração e organização dos valores intrínsecos de projeto como

    sujeito de estudo, derivados de modelos de como projetistas pensam e

    atuam, ou como o autor nomeou ‘modos do saber projetar’. Tal conjunto

    de diretrizes para a disciplina de projeto está explicitada no artigo

    ‘Designerly Ways of Knowing’, publicado em 1982, na revista Design

    Studies. A revista tornou-se uma parte essencial para a ação de Cross de

    estruturação do campo de estudos em projeto. O autor, que participou

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    21

    da fundação da revista em 1979, é editor chefe da mesma desde 1984 até

    os dias atuais.

    Cross, além de estabelecer as diretrizes para organizar projeto como

    sujeito de estudo e para moldar a disciplina de projeto, construiu uma

    produção intelectual acadêmica significativa (ver APÊNDICE J),

    exercendo no campo de estudos de projeto um papel similar ao de um

    alfaiate, alinhavando e costurando as produções dos mestres do

    Movimento de Métodos de Projeto - John Christopher Jones, Christopher

    Alexander, Horst W. J. Rittel e L. Bruce Archer - com a geração em

    ascensão intelectual no campo - Bryan Lawson, Jane Darke e anos depois

    Kees Dorst e Gabriela Goldschmidt - para construir um conjunto

    significativo de conhecimentos da atividade de projeto, para elaborar a

    visão que é atualmente a visão preponderante do campo de estudos em

    projeto, que a comunidade como um todo reconhece como pensamento

    de projeto.

    O reconhecimento adquirido por Cross ao longo de sua trajetória

    intelectual, acadêmica e institucional está associado à pertinência e à

    perseverança na construção de conhecimento sobre a atividade de

    projeto, a afirmação e construção do campo de estudos em projeto, e à

    participação na construção e estruturação de instituições de referência

    para campo de projeto como a revista Design Studies, a Design Research

    Society (DRS) e o Design Thinking Research Symposium.

    A reflexão aqui apresentada escolheu denominar Oxman e Cross porta-

    vozes das matrizes disciplinares de suas respectivas comunidades

    científicas de pesquisa. O objetivo é utilizar o domínio das narrativas que

    tais autores impõem ao campo de estudo de projeto para analisar o

    processo de projeto em âmbito acadêmico.

    Vale ressaltar que, embora ambos tenham sido eleitos porta-vozes, o

    papel de cada um como tal difere por conta do capital simbólico que

    possuem e esta diferença é explicitada nesta tese. Cross já delineou,

    construiu e estruturou um subcampo de pesquisa em projeto junto com

    sua comunidade, o que nesta tese chamamos de ‘campo de pesquisa

    acadêmica em modos do saber projetar’. Já Oxman está pleiteando uma

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    22

    transição de paradigma para o campo de pesquisa em projeto, com a

    apresentação de modelos de processo de projeto digital.

    A revista Design Studies constitui o contexto, a plataforma, e é o ponto

    de contato de Oxman (que pertence à comunidade científica de

    pesquisa em projeto auxiliado por computadores) com o campo de

    pesquisa em ‘modos do saber projetar’, este liderado por Nigel Cross.

    Nesta investigação, tratamos esta instituição intelectual – a revista

    Design Studies - como o espaço em que atuam os principais autores de

    pesquisa em projeto, com suas agendas e agências em que se travam os

    jogos intelectuais para capitalização cultural dos agentes.

    1.2 Referencial teórico

    O quadro teórico utilizado para as análises empreendidas nesta pesquisa

    constrói-se fundamentalmente sobre dois autores - Pierre Bourdieu

    (1930-2002) e Thomas S. Kuhn (1922-1996).

    O trabalho do sociólogo francês Pierre Bourdieu estende-se por uma

    extensa variedade de objetos e temas de estudo, atravessando os limites

    disciplinares que delimitam a sociologia, antropologia, educação, história

    cultural, linguística e filosofia. Segundo Grenfell (2008), dois aspectos

    caracterizam sua abordagem da sociologia, a primeira corresponde a

    uma compreensão particular do elo entre a prática e a teoria, e a

    segunda, diz respeito ao conjunto singular de termos para empregar no

    curso de análise e discussões dos resultados de suas investigações. Tais

    termos são chamados por ele de “ferramentas de pensamento” e

    surgiram no curso das pesquisas empíricas realizadas. Habitus, campo e

    capital, as “ferramentas de pensamento” de Bourdieu, são utilizadas para

    iluminar os processos sociais ainda não desvelados, reprimidos; e para o

    conhecimento dos mecanismos sociais tácitos de dominação e da

    manutenção das hierarquias, que produzem tanto as exclusões como as

    prerrogativas.

    A produção intelectual do americano Thomas Kuhn contribuiu para o

    “giro histórico” na filosofia e para a metodologia da ciência. O autor

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    23

    estudou física na Universidade de Harvard, e não comungava da visão da

    racionalidade lógico-científica acerca da ciência. A sua abordagem da

    existência de “revoluções científicas” seguia na contramão do

    pensamento de orientação positivista. Kuhn, segundo González (2004),

    ofereceu um enfoque incompatível com uma posição lógico-

    metodológica, considerava que as “revoluções científicas” comportavam

    conteúdos incomensuráveis na Ciência. A estrutura das revoluções

    científicas, construção de Kuhn da distinção entre “ciência normal” e

    “ciência revolucionária”, é definida pela distinção entre períodos em que

    se aprofundava a investigação sobre a base de conhecimento já

    disponível e períodos em que buscava, no plano teórico e prático, a

    substituição do conjunto de conhecimentos, a ruptura semântica,

    epistemológica, metodológica descrita como “revolução científica”.

    Pierre Bourdieu

    No caso do primeiro autor, utilizamos as assim chamadas “ferramentas

    de pensamento8” habitus, campo e capital, de Bourdieu (2004a, 2004b,

    2006) como instrumentos metodológicos, utilizados como filtros de

    leitura dos textos de Oxman e Cross, particularmente no que se refere ao

    emprego de ferramentas digitais. Em outras palavras, o objetivo é

    observar se ao longo dos textos de ambos os autores podemos

    identificar a presença de um campo cultural, constituído nos termos de

    Bourdieu, detalhado mais adiante.

    Uma vez entendido que há um campo estabelecido, trataremos de

    identificar, sempre por meio de textos, evidências de manejo de

    conhecimentos e comportamentos que, ao serem interpretados sob a

    ótica do habitus e do capital, também detalhado mais adiante, nos

    fornecem um quadro do que pode estar em jogo quando abordados os

    papéis das ferramentas digitais nos processos de projeto, e em que

    medida este “jogo” estaria de fato afetando e transformando os

    8 Michael Grenfell (2008, p. 47) denominou os conceitos-chave de Pierre Bourdieu“thinking tools”.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    24

    paradigmas correntes, nos quais se insere a discussão acerca do

    processo de projeto em âmbito acadêmico.

    Para compreender uma produção cultural, Bourdieu (2004b, p. 20-21)

    apresenta a hipótese de que existe um “universo intermediário” entre “o

    texto e o contexto” do objeto em estudo, ou seja, o campo, que nesta

    investigação é representado pelo processo de projeto (o constructo

    cultural).

    Entre o texto e o contexto do processo de projeto, afirma Bourdieu

    (2004b, p. 20-21), estão “inseridos agentes e instituições que produzem,

    reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência”. É o caso de

    Rivka Oxman e Nigel Cross (agentes dos campos), dos congressos de

    projeto auxiliado por computadores e da revista Design Studies (no caso

    as instituições produtoras e reprodutoras). “Esse universo é um mundo

    social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos

    específicas” (BOURDIEU, 2004b, p. 20-21) e não simplesmente às leis de

    descobertas científicas ou técnicas, como vemos normalmente em

    campos de estudos científicos de tradições positivistas.

    Com o enquadramento teórico das ferramentas de pensamento habitus,

    campo, e capital, de Bourdieu, é possível compreender a existência da

    teoria de projeto digital de Oxman, que é baseada em modelos de

    processo de projeto digital, no sistema de relações constitutivo da classe

    dos fatos reais e possíveis, aos quais pertence sociologicamente, ou seja,

    em relação ao conhecimento estruturado pela pesquisa em ‘modos do

    saber projetar’. Com tal ação de investigação, apreendemos o objeto de

    estudo de maneira não individual, nem irredutível, e muito menos com

    reverência, descartando a tradição positivista da ciência (BOURDIEU,

    2007, p.183-184).

    Thomas S. Kuhn

    Com relação ao segundo autor, Thomas S. Kuhn (2009, 2011), esta

    pesquisa apoia-se em seu conceito de transição de paradigmas

    associado às revoluções científicas para analisar o avanço científico

    proposto para o novo paradigma de projeto apoiado em ferramentas

    digitais.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    25

    A teoria da estrutura das revoluções científicas de Kuhn foi elaborada em

    1962, de acordo com o autor, para resgatar os estudos científicos dos

    estereótipos a-históricos extraídos dos textos como repositórios de

    fatos, teorias e métodos. Se por um lado Kuhn aponta para a necessidade

    de determinar quando fatos científicos foram inventados ou

    descobertos, por outro, devemos olhar com cuidado erros, acertos e

    desenvolvimentos por acumulação do fazer científico.

    Neste estudo, Kuhn (2011) apresentou os dois sentidos de paradigma de

    sua teoria: o sentido global, que estabelece o paradigma como matriz

    disciplinar no qual se incluem todos os objetos de compromissos do

    grupo de investigadores, comprometidos com as mesmas regras e

    padrões para a prática científica; e o sentido exemplar, no qual um

    conjunto de compromissos e soluções é aceito pelo grupo como

    paradigmático, como modelo concreto para a gênese e a continuação de

    uma tradição de pesquisa determinada.

    A partir destes dois sentidos de paradigma, esta pesquisa utiliza os

    conceitos de Kuhn para identificar elementos das matrizes disciplinares

    que se referem ao ‘campo de pesquisa acadêmica em modos do saber

    projetar’ e ao ‘campo de pesquisa acadêmica em projeto auxiliado por

    computadores’, e apresenta suas obras exemplares, ou seja, aspectos

    que são aceitos como paradigmáticos pela ‘comunidade científica de

    pesquisa em modos do saber projetar’ e ‘comunidade científica de

    pesquisa em projeto auxiliado por computadores’.

    1.2.1 ‘Ferramentas de Pensamento’ de Bourdieu

    A teoria do campo é compreendida como uma metodologia que articula

    as três principais ferramentas de pensamento do autor: habitus, campo

    e capital. Estes conceitos, disseminados em vários livros do autor na

    década de 1970 e 1980, foram explicitados por Bourdieu em entrevista

    dada a Loic J. D. Wacquant, publicada no artigo ‘Towards a Reflexive

    Sociology: A Workshop with Pierre Bourdieu’, em 1989.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    26

    A relação entre as três ferramentas constitui a “lógica da prática” de

    Bourdieu, de acordo com Karl Maton (2008). A lógica da prática é o

    resultado de uma ação organizada dos agentes, mas “obscura e de dupla

    relação” entre habitus e campo, que demanda uma relação de

    interconexão de estrutura e tendência (disposição, predisposição,

    propensão, inclinação). Bourdieu (1986 apud MATON, 2008, p. 51)

    sumariza a relação entre os três conceitos na seguinte equação:

    [(habitus) (capital)] + campo = prática.

    Embora Bourdieu tenha inserido os conceitos em uma relação

    matemática simbólica, ele mesmo deixa bem claro que as relações entre

    todos os conceitos são “interdependentes” e trata-se de um “trio co-

    construído”. Nenhuma das ferramentas habitus, campo e capital devem

    ter primazia ou dominância sobre as outras, ou “as três estão enroladas

    num emaranhado juntas como em um nó Górdio, que somente podem

    ser entendidas por uma desconstrução caso a caso” (BOURDIEU apud

    THOMSON, 2008, p.69).

    Este estudo busca, neste momento, compreender cada uma destas

    ferramentas com maior profundidade, iniciando pelo habitus, que é um

    conceito que por um lado expressa a forma como os indivíduos

    desenvolvem suas atitudes e disposições e, por outro lado, as formas

    como esses indivíduos engajam-se em determinadas práticas. O habitus

    está relacionado ao conhecimento canônico que uma pessoa domina, ao

    conhecimento dos problemas do campo em que esta pessoa se insere e

    à sua capacidade de solucionar tais problemas.

    No caso de projeto, podemos utilizar o exemplo da habilidade em

    sketches/croquis e do domínio das habilidades computacionais para

    compreender o habitus do projetista do campo de estudos em projeto.

    Assim, o habitus da comunidade de projeto, por exemplo, dispõe os

    indivíduos a certas atividades e perspectivas que expressam os valores

    constituídos culturalmente e historicamente pelo campo em questão.

    Uma obra de arte, ou uma citação, ou um croqui, ou um algoritmo tem

    significado e interesse para alguém apenas se esta pessoa possuir

    competência cultural, ou seja, os códigos e cânones para entender o que

    está ali codificado. O croqui de Scheinman (Fig. 1) por exemplo

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    27

    apresenta decisões e soluções para problemas de projeto para um

    acessório de bicicleta. Já o exercício de projeto de Terzidis (Fig. 2)

    apresenta o algoritmo (expressões matemáticas) para a transformação

    sequencial de um cubo na direção x e y para gerar uma implantação, um

    posicionamento dos cubos em um espaço. Ambos os desenhos sugerem

    visões da matriz cultural dos dois projetistas. Scheinman (Fig. 1)

    estabelece uma conversa com o projeto através do croqui e Terzidis (Fig.

    2) estabelece uma conversa com o projeto através da construção do

    algoritmo, da expressão matemática.

    Fig.1 – Croqui de Sheinman. Fig.2 - Transformação sequencialFonte: Cross, 2011, p. 89. Algorítmica. Fonte: Terzidis, 2006, p. 79.

    Retirados os croquis ou desenhos computadorizados baseados em

    algoritmo de seu contexto de projeto, seu valor e relevância alteram-se.

    Fig.3 – Croqui de Oscar Niemeyer. Fonte: archdaily.com.br

    O croqui de Oscar Niemeyer (Fig. 3) apresenta a estratégia

    composicional baseada na rotação do componente que estrutura o

    espaço e é um elemento estrutural do projeto, enquanto que o modelo

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    28

    tridimensional computacional de Farah Farah (Fig. 4) esboça a

    composição da geometria topológica para o projeto. Ambos projetistas

    demonstram habilidades diferentes para apresentar os projetos com

    meios visuais de natureza analógica (Fig. 3) e digital (Fig. 4), e

    habilidades diferentes para usar geometrias euclidianas (Fig.3) e

    topológicas (Fig. 4).

    Neste entendimento de habitus, o indivíduo identifica-se e é identificado

    pelas habilidades aprendidas e conquistadas, no campo de estudos a que

    pertence.

    Fig.4 – Projeto topológico de Farah Farah, Technion, Israel. Fonte: Oxman, 2008, p. 43.

    Ana Gabriela G. Lima (2009) inicia a discussão sobre o conceito de

    habitus para ilustrar o mesmo, com uma ponderação de Maton (2008)

    de que, frequentemente, em nosso comportamento cotidiano nos

    sentimos como se fossemos agentes livres e, em certa medida,

    imprevisíveis. Entretanto, baseamos nossas decisões cotidianas e

    suposições nos comportamentos e nas atitudes previsíveis dos outros.

    Maton ainda considera esclarecedor o ponto de partida do pensamento

    de Bourdieu; “tudo do meu pensamento foi iniciado deste ponto: como

    o comportamento pode ser regulado sem ser um produto de obediência

    às regras explícitas? ”

    Em outras palavras, Bourdieu questiona como aestrutura social e a conduta individual podem serreconciliadas, e (para usar os termos de Durkheim)como o “outro” e o “eu” social são uma ajuda a si

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    29

    mesmo para moldar um ao outro (MATON, 2008, p.50, tradução da autora9).

    Ainda no texto de Lima (2009), Maton comparece discutindo como o

    habitus conceitualiza a relação entre o objetivo e o subjetivo, por meio

    do “outro” e “eu” social que descrevem como os fatos sociais são

    internalizados. A autora também se refere à explicação de Robert Moore

    (2008), para quem, aqueles com habitus bem formados são mais

    elevados em estruturas sociais, já que nem todo habitus e suas instâncias

    de capital cultural são acordados com igual valor na sociedade. Por

    exemplo, o habitus do artista versus o habitus do artesão, ou então o

    habitus do cientista versus o habitus do projetista.

    Visualizamos a diferença de capital cultural entre cientistas e projetista

    através do embate que se travou na comunidade de pesquisa em projeto,

    na década de 1960, ainda parcialmente organizada para moldar projeto

    à ciência, ou desenvolver uma ‘ciência projeto’ (design science), com as

    tentativas para construir um método de projeto racionalizado e

    científico.

    Depois de um aprofundamento sobre o habitus, a seguir, esta pesquisa

    busca aprofundar a compreensão sobre o campo descrito por Bourdieu.

    Quanto ao campo, Lima (2009) descreve tal conceito de Bourdieu como

    estando relacionado com o espaço social no qual interações, transações

    e eventos ocorrem. Na perspectiva do autor, uma análise do espaço

    social significa não só localizar o objeto de investigação em seu contexto

    histórico específico, seja ele local/nacional/internacional e relacional,

    bem como interrogar os modos pelos quais conhecimentos prévios sobre

    o objeto em investigação foram gerados.

    O campo é uma metáfora de Bourdieu para representar os âmbitos da

    prática cultural. Assim, um campo pode ser definido como uma série de

    instituições, regras (doxa), rituais, convenções, categorias, designações

    e compromissos que constituem uma hierarquia objetiva, e que produz

    9 In other words, Bourdieu asks how social structure and individual agency can be reconciled,and (to use Durkheim´s terms) how the “outer” social, and “inner”, self-help to shape eachother (MATON, 2008, p. 50).

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    30

    e autoriza certos discursos e atividades. Um campo é também

    constituído pelos conflitos que ocorrem quando grupos de indivíduos

    tentam determinar o que constitui o capital dentro daquele campo e

    como aquele capital deve ser distribuído. No caso desta pesquisa, a

    proficiência no uso de ferramentas digitais no processo de projeto é

    considerada um capital pois o domínio de tais instrumentos implica para

    um conjunto de pessoas no campo de pesquisa em projeto um sinal de

    inovação, de contemporaneidade.

    Patrícia Thomson (2008, p. 68-74) delineia o campo em três tipos de

    analogias: o campo de futebol, os campos de força da ficção científica e

    o campo de força da física. Na primeira imagem, um campo de futebol é

    definido como um lugar limitado onde o jogo é jogado. A fim de jogar,

    os jogadores assumem suas posições no campo. O jogo tem regras

    específicas junto com habilidades básicas que jogadores novatos devem

    aprender antes de começarem a jogar. O que jogadores podem fazer e

    onde eles podem ir durante o jogo depende na sua posição do campo. A

    condição atual física do campo (se ele estiver molhado, seco e bem

    gramado ou cheio de buracos), também tem um efeito no que os

    jogadores podem fazer e então como o jogo pode ser jogado. Campos

    são moldados diferentemente de acordo com o jogo que é jogado. Eles

    têm suas próprias regras, histórias, jogadores, estrelas, legendas e

    conhecimento.

    Nos campos culturais vislumbrados nesta pesquisa por meio dos textos

    dos autores representantes das comunidades de pesquisa em projeto -

    Cross e Oxman, brilham jogadores diferentes. No campo cultural

    manifestado nos textos de Cross brilham Bruce Archer (1922-2005),

    Donald Schön (1930-1997), Bryan Lawson, Kees Dorst e já no campo

    visível dos textos de Oxman jogam ilustres jogadores como Herbert

    Simon (1916-2001). William Mitchell (1944-2010), John Gero e George

    Stiny.

    Em alguns textos da trajetória da pesquisa dos autores Cross e Oxman,

    jogadores de um campo aparecem, são mencionados e referenciados em

    outro campo. Por exemplo, no período da investigação de Oxman, de

    cognição de projeto e computação (1995 – 2006), a autora investiga os

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    31

    elementos da teoria de prática-reflexiva de projeto de Donald Schön.

    Herbert Simon, por exemplo, é citado por Cross em 1982, pela definição

    de que o fenômeno de estudo na cultura de projeto é o mundo artificial.

    Segundo Lima, embora Thomson não mencione isso, “algumas regras e

    comportamentos em todos os jogos não são explícitos ou formalizados,

    mas cada jogador no time aprende como se comportar a fim de continuar

    jogando o jogo, ou seja, ganhar e permanecer no jogo” (2009, p.10).

    O segundo campo descrito por Thomson, o campo de força da ficção

    científica, é construído por meio do estabelecimento de uma fronteira

    entre o que está acontecendo internamente e o que está acontecendo

    fora.

    As atividades dentro seguem padrões regulares eordenados e têm alguma previsibilidade: sem isto, omundo social dentro do campo de força poderia seranárquico e parar de funcionar. A ordem social emespaçonaves de ficção científica é hierarquicamenteestruturada: ninguém é igual e há algumas pessoasque são dominantes e que têm poder de decisãosobre os modos nos quais os pequenos mundossociais operam (THOMSON, 2009, p.70, tradução daautora10).

    Lima (2009), afirma que a espaçonave nesta analogia pode ser

    entendida como um campo de força, feito para proteger o ambiente

    interior do externo, e dentro do qual os indivíduos organizam-se de

    acordo com determinada hierarquia. Cabe lembrar que os indivíduos

    ocupam simultaneamente vários campos sociais, tais como o econômico,

    educacional, artes, burocrático, político, etc.

    O terceiro campo, o que se refere ao domínio da física, Thomson (2009,

    p.71) entende o campo de força como ele é geralmente representado:

    “um conjunto de vetores que ilustram as forças empregadas por um

    objeto sobre o outro”.

    10 The activities inside follow regular and ordered patterns and have some predictability:without this, the social world inside the force field would become anarchic and cease tofunction. The social order on fictional space ships is hierarchically structured: noteveryone is equal, and there are some people who are dominant and who have decision-making power over the ways in which the little social world functions (THOMSON, 2009,p.70).

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    32

    De acordo com Lima (2009), a analogia com os campos de força

    estudados na física é útil como forma de análise da sobreposição e dos

    elementos rivais - que constituem a sociedade, ou o espaço social -

    considerando campo como um universo das relações sociais constituídas

    por membros do campo, com suas próprias lógicas, habitus, capitais e

    interesses.

    Compreender a dinâmica entre habitus e campo, conforme a construção

    de Bourdieu, implica em algum entendimento sobre sua noção de capital.

    Assim, começamos a relacionar os conceitos de capital com o de habitus

    e campo e, também, com os diferentes tipos de capital: o cultural, o

    econômico, o social, o científico e o simbólico.

    Bourdieu propõe que o capital cultural e o econômico operam como dois

    polos hierarquizados no campo social (Fig. 5): “Em um polo, o dominante

    economicamente ou temporalmente e as posições dominadas

    culturalmente e, em outro, as posições culturalmente dominantes e

    economicamente dominadas” (BOURDIEU apud THOMSON, 1988, p.71).

    Fig. 5. Diagrama de um campo social. Fonte: Thomson, 2008, p. 72.

    De acordo com Bourdieu (2006), para entender a estrutura e o

    funcionamento do mundo social, é necessário reconhecer a noção de

    capital como uma noção que vai além do aspecto econômico. As formas

    de capital cultural e social podem ser vistas como “transubstanciadas”

    em formas de capital econômico.

    O capital cultural é uma forma de valor associada ao gosto culturalmente

    aceito, aos padrões de consumo, atributos, habilidades e premiações.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    33

    Dentro do campo da educação, por exemplo, um título acadêmico

    constitui-se em capital cultural.

    Segundo Lima (2009), um aspecto importante que Moore (2008) ilumina

    é o contraste entre a natureza do capital econômico explícito e a

    natureza velada do capital cultural. O criador é abertamente um

    instrumento de mudança auto interessado. A troca mercantil não é de

    um valor intrínseco, mas é sempre um meio para um fim (lucro, interesse,

    uma recompensa, etc.).

    Assim como o capital cultural, outro conceito que interfere no habitus e

    no campo do indivíduo é a doxa. Doxa, de acordo com Cecília Deer

    (2008), é um conjunto de valores e discursos essenciais que um campo

    articula, tais como seus princípios fundamentais, e que tendem a ser

    vistos como inerentemente verdadeiros e necessários. Para Bourdieu, a

    “atitude dóxica” significa a obediência incorporada e inconsciente às

    condições que são, de fato, bastante arbitrárias e contingentes.

    Na mesma linha de raciocínio está o capital simbólico, que é a forma de

    capital ou valor não reconhecida como tal. Prestígio e reputação

    brilhante, por exemplo, operam como capital simbólico porque não

    significam nada em si mesmos, mas dependem das pessoas acreditarem

    que alguém possui essas qualidades.

    Em nossa pesquisa, Nigel Cross, possui prestígio e reputação no campo

    de pesquisa em projeto, como nenhum outro autor. Em 2005, Cross,

    recebeu o prêmio máximo da Design Research Society (DRS), ‘Lifetime

    Achievement Award’, por sua efetiva contribuição em promover

    mudanças no desenvolvimento de pesquisa em projeto. Antes dele, só

    Bruce Archer e John Chris Jones receberam tal prêmio, seus mestres.

    Bourdieu (apud MOORE, 2008) afirma que isto é também verdade para

    outras formas de capital simbólico. O capital simbólico está associado

    com os habitus bem formados e definidos, ele representa aquele mais

    alto em capital cultural, embora nem todos os habitus bem formados

    sejam iguais perante a sociedade.

    O capital simbólico, segundo Bourdieu:

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    34

    [...] em seus modos distintivos, nega e reprime seuinstrumentalismo para proclamar a si mesmo comodesinteressado e de valor intrínseco. No campo dasartes, por exemplo, o capital cultural é apresentadocomo reflexo do valor intrínseco do trabalho de arteem si mesmo (“essencialismo”) e a capacidade decertos talentos individuais (aqueles com “distinção”)em reconhecer e apreciar aquelas qualidadesessenciais (MOORE, 2008, p. 103 – 104, tradução daautora11).

    Ainda, nos diferentes tipos de capital, uma das formas que precisam ser

    compreendidas é o capital científico. Este, de acordo com Moore (2008),

    é materializado na forma de livros lançados, instrumentos e artefatos

    gerados pelo campo e em laboratórios de pesquisas do assunto. O

    habitus associado ao capital científico traduz-se no domínio do

    conhecimento dos problemas do campo e nas técnicas para resolver tais

    problemas.

    Compreendidas as ferramentas habitus, campo e capital, podemos então

    dizer que, os indivíduos que personificam mais claramente os habitus de

    um grupo, seu capital (em todos os tipos de capital existentes) tornam-

    se então representantes do campo que participam. Estes indivíduos são

    reconhecidos e legitimados pelas pessoas que se consideram membros

    da comunidade em questão e assumem uma realidade social

    representada.

    Personificações são experts investidos de autoridade em função do

    capital simbólico, que personificam uma ficção social a que eles dão

    existência, na e por sua própria existência, e da qual recebem de volta

    seu próprio poder (BOURDIEU, 2004a). A percepção da realidade social

    do campo, as perspectivas e os pontos de vistas dos agentes sobre a

    realidade são visões tomadas a partir de determinada posição no espaço

    social, revelando uma apreensão ativa do campo.

    11 […] in their distinctive ways, deny and suppress their instrumentalism by proclaimingthemselves to be disinterested and of intrinsic worth. In the field of the arts, for example,cultural capital is presented as reflecting the intrinsic value of art works in themselves(“essentialism”) and the capacity of certain gifted individuals (those with “distinction”) torecognize and appreciate those essential qualities (MOORE, 2008, p.103-104).

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    35

    Neste sentido, cada campo tem seu próprio porta-voz que “é substituto

    do grupo, que existe somente através dessa delegação e que fale e age

    através dele” (BOURDIEU, 2004 a, p. 168).

    Nigel Cross é a personificação do campo de pesquisa acadêmica em

    modos do saber projeto e, portanto, é legitimado como porta-voz deste

    campo. Como porta-voz, Cross representa e reconhece outros autores

    da mesma comunidade em seus textos.

    Como exemplo podemos citar a apropriação do termo ‘designerly ways

    of knowing’, título do artigo seminal de Cross, de 1982, do texto

    ‘Whatever became of Design Methodology? ’, de Bruce Archer. Tal texto

    foi escrito para lançar a revista Design Studies (1979) e estabelecer a

    base teórica para tratar projeto como uma disciplina coerente de estudo.

    My present belief, formed over the past years, is thatthere exists a designerly way of thinking andcommunicating that is both different from scientificand scholarly ways of thinking and communicating,and as powerful as scientific and scholarly methods ofenquiry, when applied to its own kinds of problems(ARCHER, 1979, p. 17, grifo da autora12).

    Rivka Oxman, por sua vez, personifica o campo de pesquisa acadêmica

    em projeto auxiliado por computadores. A autora personifica sua

    comunidade, e em seus textos há referências direta ou indiretamente sua

    comunidade de pesquisa formada por Herbert A. Simon, William Mitchell,

    John Gero e George Stiny.

    O campo de pesquisa acadêmica em projeto, representado por Cross, é

    questionado por Oxman, em função do desenvolvimento de novas

    12 Optamos por deixar o texto em inglês para apontar a correspondência de sentido

    entre ‘designerly ways of knowing’ e ‘designerly way of thinking and communicating’.

    Tradução da citação direta pela autora: “Minha crença atual, formada ao longo dos

    últimos anos, é que existe um modo de pensar e comunicar ‘de projetar’ que são ambos

    diferentes tanto das formas científicas e acadêmicas de pensar e de se comunicar, e tão

    poderosa quanto os métodos científicos e acadêmicos de investigação, quando

    aplicado aos seus próprios tipos de problemas” (ARCHER, 1979, p. 17).

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    36

    tecnologias para projeto, no texto ‘Teoria e Projeto na Primeira Era

    Digital’ (2006). Para a autora, as mudanças representam um nível

    profundo de alteração, o que estaria por gerar um novo paradigma para

    projeto.

    O campo intelectual, no qual o embate entre Oxman e Cross acontece, é

    a revista Design Studies. Nela, o jogo é jogado, lembrando que como

    disse Bourdieu (apud THOMSON, 2008, p. 78) “o jogo que é jogado nos

    campos não tem um vencedor final, isso é um jogo sem fim e este sempre

    implica no potencial para mudança a qualquer momento”.

    Cross, que é o fundador da revista Design Studies, detém o habitus e

    capital do campo de estudos em projeto. Já Oxman ganhou o

    reconhecimento da sua produção intelectual (capital científico e cultural)

    no mesmo campo, no entanto, seu habitus advém de uma comunidade

    específica do campo, o de projeto auxiliado por computadores.

    Como observação final a esta seção do texto, cabe observar que, ao

    longo do texto, os termos "campo" e "comunidade" são empregados

    com o mesmo significado, ou seja, àquele referente à noção acima

    descrita de Pierre Bourdieu.

    1.2.2 Noção de transição de paradigma de Kuhn

    Thomas Kuhn proporcionou uma visão histórica da atividade científica

    como fator chave para analisar a existência das revoluções científicas e

    propor para a mesma uma estrutura, explicitada no livro ‘A estrutura das

    revoluções científicas’, em 1962. Até a apresentação de sua visão, a

    ciência era descrita como uma acumulação de descobertas e invenções

    individuais, baseadas no conceito de desenvolvimento da ciência por

    acumulação. A sua visão permitiu procurar e analisar dados históricos

    para responder às questões postas pelo estereótipo a-histórico de textos

    científicos, tanto “para determinar quando e por quem cada fato, teoria

    ou lei científica contemporânea foi descoberta ou inventada”, quanto

    para “descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e superstições

    que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    37

    moderno texto científico” (KUHN, 2011, p. 20). Esta visão permitiu uma

    concepção fragmentária da ciência, diferente da visão evolucionista

    preponderante na história da ciência.

    O giro histórico promovido pelo autor permitiu a distinção conceitual

    entre Ciência normal e Ciência revolucionária (KUHN, 2011). A primeira

    permitia o aprofundamento e ampliação do conhecimento já

    conquistado, explicitado no conjunto de paradigmas compartilhados

    pela disciplina. Durante esse período o campo científico debruça-se

    sobre o conhecimento dos fatos relevantes que o paradigma apresenta,

    aumentando a correlação entre os fatos e as predições que o paradigma

    estabelece, construindo uma rede articulada de conhecimentos sobre o

    paradigma.

    A segunda distinção conceitual, a Ciência Revolucionária, destaca os

    momentos na ciência em que se realiza a substituição de um paradigma

    por outro. Esta ruptura (semântica, epistemológica, metodológica) foi

    descrita como ‘revolução científica’.

    Segundo Kuhn (2011), o paradigma deixa de funcionar de modo

    adequado para atender aspectos da natureza dirigidos anteriormente

    pelo paradigma compartilhado, gerando o sentimento de funcionamento

    defeituoso, que pode levar à crise de ruptura. A crise se estabelece no

    campo e a necessidade de escolher entre paradigmas em competição

    fica eminente.

    O processo de ruptura de paradigmas realiza-se observando algumas

    etapas:

    A consciência prévia da anomalia, a emergênciagradual e simultânea de um reconhecimento tanto noplano conceitual como no plano da observação e aconsequente mudança das categorias eprocedimentos paradigmáticos – mudança muitasvezes acompanhada por resistências (KUHN, 2011, p.89).

    Para uma reflexão mais apropriada sobre a ruptura de paradigma no

    pensamento de projeto, vale uma reavaliação sobre o que é paradigma

    e como podemos definir ou marcar uma mudança de paradigma em

    determinadas áreas de conhecimento.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    38

    O que é paradigma?

    Thomas Kuhn estabelece o conceito de paradigma no livro “A Estrutura

    das Revoluções Científicas”, em 1962. Nele, e em alguns escritos

    posteriores, Kuhn afirma que toda e qualquer comunidade científica

    possui um paradigma ou um conjunto de paradigmas.

    Para o autor, uma comunidade pode se transformar em função de

    alguma realização científica notável, abandonar um conjunto de

    preceitos estruturados pelo paradigma anterior para adotar um novo,

    que é mais poderoso e pode redefinir todas as linhas de trabalho que

    coexistiam então.

    De acordo com Kuhn (2011a, p. 222-223):

    [...] uma comunidade científica é formada pelospraticantes de uma especialidade. Estes foramsubmetidos a uma iniciação profissional e educaçãosimilares, numa extensão sem paralelos na maioria dasoutras disciplinas. Neste processo absorveram amesma literatura técnica e dela retiraram muitas dasmesmas lições. Normalmente as fronteiras dessaliteratura-padrão marcam os limites de um objeto deestudo científico e em geral cada comunidade possuium objeto de estudo próprio.

    Kuhn (2011c) denominou o período de coexistência de várias linhas de

    pensamento em uma ciência como pré-paradigmático e o posterior

    como pós-paradigmático.

    Pré-paradigmático refere-se ao momento do campo antes que o mesmo

    se defina em prol de um determinado modelo ou padrão aceito, um

    paradigma. No período pré-paradigmático coexistem várias escolas

    rivais, cada qual com uma defesa totalmente diversa sobre um mesmo

    tema de estudo.

    Já o período pós-paradigmático é definido pelo abandono de um

    conjunto de paradigmas por todas as escolas para a adoção de um novo,

    que reorganiza o campo e empodera o comportamento profissional da

    comunidade remanescente.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    39

    No texto ‘Reconsiderações acerca dos paradigmas’, Thomas Kuhn (2011c,

    p. 311-337) apresenta dois sentidos que o termo “paradigma” tem no livro

    ‘A estrutura das revoluções científicas’, de 1962.

    Um sentido de “paradigma” é global e abarca todosos compromissos compartilhados por um grupocientífico. O outro isola um tipo de compromissoparticularmente importante e é, portanto, umsubconjunto do primeiro (KUHN, 2009, p. 312).

    O primeiro sentido para “paradigma”, o sentido global, é substituído pelo

    autor pela expressão “matriz disciplinar” para facilitar sua compreensão.

    Segundo Kuhn (2011c), “disciplinar” significa que é de posse comum dos

    praticantes de uma disciplina profissional e “matriz” por que é composta

    por elementos ordenados de vários tipos, com especificidades.

    Os constituintes da matriz disciplinar incluem amaioria ou todos aqueles objetos de compromisso dogrupo descritos no livro como paradigmas, partes deparadigmas ou paradigmáticos (KUHN, 2011c, p. 315).

    Para o reconhecimento da operação cognitiva do grupo e leitura desta

    “matriz disciplinar”, Kuhn descreveu três componentes constituintes da

    mesma, nomeando-os “generalizações simbólicas, modelos e

    exemplares” (KUHN, 2011c, p. 315-316).

    ‘Generalizações simbólicas’ são expressões empregadas sem

    questionamento pelo grupo, que podem ser formuladas sem grande

    esforço, de forma lógica como os símbolos, tais como as fórmulas

    matemáticas. Os modelos fornecem à comunidade científica as

    analogias preferidas pelos membros da comunidade em questão. No

    caso de analogias profundamente mantidas, tornam-se a ontologia da

    comunidade científica.

    Já o componente ‘exemplares’ refere-se às soluções aceitas pelo grupo

    como “paradigmáticas”. O termo ‘exemplares’, para Kuhn, é outro nome

    para o segundo sentido de paradigma no livro.

    O segundo sentido de paradigma – que Kuhn descreveu como um

    subconjunto do primeiro sentido, o global, deriva da observação e

    reconhecimento dos membros da comunidade para um tipo de

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    40

    compromisso particularmente importante do grupo, um conjunto de

    soluções de problemas aceitas pelo grupo como ‘exemplares’, ou como

    ‘paradigmáticas’.

    Os três componentes da “matriz disciplinar” constituem a capacidade da

    comunidade científica de “funcionar como produtora e validadora de

    conhecimento sólido” (KUHN, 2011c, p. 316). E nesta pesquisa, estes

    componentes foram utilizados para configurar a matriz disciplinar da

    comunidade científica de pesquisa em modos do saber projetar e da

    comunidade científica em projeto auxiliado por computadores.

    A caracterização de revolução científica

    A primeira pergunta que se instala é a validade de se aplicar a estrutura

    da revolução científica para campo de pesquisa e conhecimento em

    projeto. Como apontamos no argumento, na década de 1980, a campo

    de pesquisa de projeto afirmou-se como um campo de estudo diverso

    das ciências e das humanidades. O enquadramento teórico de Kuhn, da

    revolução científica a um sujeito de estudo autônomo em relação à

    ciência como projeto, é consentido por Kuhn quando o autor conceitua

    paradigma como uma matriz disciplinar compartilhada por uma

    comunidade científica. O autor permite-nos então questionar, com

    tranquilidade, se está sendo moldado um novo paradigma de processo

    de projeto para o campo de pesquisa em projeto.

    A segunda questão que se coloca à investigação deste estudo é que a

    natureza da ruptura de paradigmas em relação ao processo de projeto,

    que Oxman reivindica para o campo de pesquisa em projeto, diz respeito

    a alterações tecnológicas dos meios e ferramentas de projeto. Esta

    ruptura está no espectro da Tecnologia e não da Ciência.

    Uma das dificuldades de tratar uma questão tecnológica como uma

    revolução científica é que, como demonstrado por Juana M. Martinez

    (2004, p. 344), a revolução tecnológica não tem a finalidade de produzir

    um “produto verdadeiro” e sim um “produto eficiente para resolver os

    problemas práticos”. E, também, não supõe a abolição das teorias

    empregadas anteriormente, ou seja, não pressupõe a substituição de

    conceitos de paradigmas anteriores.

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    41

    Martinez (2004, p. 346) afirma que as formas de fazer da tecnologia

    requerem a existência de artefatos anteriores como pressupostos

    necessários para o desenvolvimento de novas tecnologias e, em certos

    aspectos, as formas anteriores continuam vigentes.

    Outra interessante questão apontada por Martinez é a relatividade e

    flexibilidade que Kuhn adotou para o conceito de ruptura de paradigmas.

    Ele afirma que, em alguns casos, quando o acordo não é possível, pode

    existir uma mudança por persuasão. E, tal mudança por persuasão

    aplica-se com mais propriedade em cenários de uso de tecnologia.

    [...] pois se bem concorrem motivos estritamenteracionais nas mudanças, por tratar-se de umaatividade com uma intrínseca dimensão social se vêmais afetada por elementos externos que atuamcomo fatores decisivos nas mudanças tecnológicas(MARTINEZ, 2004 p. 346).

    A noção de Kuhn de transição de paradigma supõe uma mudança de

    ‘visão de mundo’, mesmo que somente para os participantes daquela

    comunidade. A forma diferente de interpretar a realidade permitirá a

    reordenação dos elementos disponíveis, conduzindo a novos horizontes

    de possibilidades para a disciplina, mas não necessariamente uma

    alteração ontológica da área de pesquisa e conhecimento. Não é alterada

    a realidade da qual se parte, mas sim a interpretação, a compreensão e

    aplicação dela.

    Essa interpretação e compreensão da alteração da realidade, no caso da

    tecnologia, podem não só produzir vocabulários diferentes

    (característicos de ruptura de paradigma) com pontos de vistas

    incomensuráveis para uma mesma situação, como também podem fazer

    surgir objetos, artefatos nunca antes existentes, cuja designação será

    igualmente nova (MARTINEZ, 2004).

    A questão que se coloca é se tais “produtos e léxicos novos da

    Tecnologia” são “necessariamente revolucionários” (MARTINEZ, 2004,

    p.351).

    Como podemos observar nos capítulos 2 e 3 desta investigação - em que

    analisamos o ‘campo de pesquisa acadêmica em modos do saber

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    42

    projetar’ e o ‘campo de pesquisa acadêmica em projeto auxiliado por

    computadores’, com suas matrizes disciplinares e paradigmas

    preponderantes de processo de projeto - observamos a preponderância

    de duas visões de projeto, que reconhecemos como paradigmas, para o

    campo de pesquisa em projeto.

    O paradigma de projeto como resolução de problemas foi esmiuçado no

    livro ‘The Sciences of the Artificial’, de Herbert A. Simon e tornou-se

    preponderante no ‘campo de pesquisa acadêmica em projeto auxiliado

    por computadores’. Esta literatura é um divisor de águas no campo de

    projeto, pois foi contestada durante a década de 1970, abrindo espaço

    no campo de pesquisa em projeto para a formulação de um paradigma

    novo de projeto como prática reflexiva, desenvolvido no livro ‘The

    Reflective Practitioner’, de Donald Schön, em 1983. Utilizaremos neste

    estudo então, o termo paradigma, para tratar de duas visões diferentes

    de projeto, de naturezas de abordagens diferentes para projetar.

    Estes dois paradigmas de projeto coexistem no campo de pesquisa em

    projeto desde então. Correspondem a duas linhas de pensamento: uma

    abordagem positivista (Simon) para projetar, que imprime ao projeto

    uma base racional-técnica de operação - para operar os problemas de

    projeto, e outra abordagem construtivista para projetar (Schön), que

    imprime ao projeto uma base racional prática - artística, intuitiva, social

    e construtiva de operação - para operar situações de incerteza,

    singularidade e de conflito de valores em projeto.

    Estas duas abordagens de projeto têm forças complementares nas

    atividades em projeto (DORST; DIJKHUIS, 1995), e elas têm

    preponderâncias, importâncias diferentes em comunidades de estudos

    em projeto.

    A comunidade científica que nos anos 1960 investigou métodos

    sistemáticos de projeto e na década de 1970 debruçou-se sobre a

    investigação da natureza ‘mal definida’ dos problemas de projeto, aqui,

    neste estudo denominamos ‘comunidade de pesquisa acadêmica em

    modos do saber projetar’. Esta comunidade não adotou o tratamento

    lógico que Simon imprimiu a projeto – a lógica de projeto. Já o grupo

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    43

    que durante os anos 1960 investiu em linguagens de programação, em

    construção de softwares de análise, síntese e avaliação de projeto,

    adotou a lógica de projeto baseada em otimização de problemas de

    Simon e levou adiante a introdução dos computadores no universo de

    projeto. Neste estudo denominamos este grupo de ‘comunidade de

    pesquisa acadêmica em projeto auxiliado por computadores’.

    Como dissemos, Kuhn explica que quando o paradigma deixa de

    funcionar de modo adequado gera o sentimento de funcionamento

    defeituoso, o que pode levar à crise de ruptura. A crise pode não

    necessariamente levar a uma substituição de um paradigma por outro,

    mas pode fazer emergir um novo paradigma. Neste estudo, entendemos

    que o sentimento de inadequação do conjunto de conhecimento, fez

    emergir um novo paradigma de projeto – a prática reflexiva de projeto,

    que se traduziu em um rearranjo dos pesquisadores do campo de

    pesquisa em projeto, em duas comunidades de pesquisa em projeto com

    visões diferentes sobre projeto, como delineadas nos parágrafos acima.

    Entendemos que a nova ‘visão de mundo’ da prática reflexiva em projeto

    fez emergir uma forma diferente de interpretar e compreender a

    realidade, gerando novos vocabulários e pontos de vistas novos de

    projeto, como a epistemologia baseada na prática (SCHÖN, 1983), que

    elaborou o conceito de ‘reflexão-em-ação’ para atividade de projetar

    através da interação com meios visuais, e do ‘enquadramento do

    problema’, que pressupõe que para formular o problema que será

    resolvido, projetistas devem enquadrar uma situação problemática de

    projeto, estabelecer limites e relações e impor uma moldura coerente

    para guiar movimentos de projeto subsequentes. O vocabulário

    ‘reflexão-em-ação’ e ‘enquadramento de problema’ constituíram-se em

    uma interpretação e compreensão diferente da realidade de projeto, nos

    idos da década de 1980. Hoje, tais pontos de vistas fazem parte de nossa

    realidade projetual contemporânea.

    Sendo assim, esclarecemos que nesta investigação para identificar

    fatores presentes em discurso, das comunidades de Oxman e de Cross,

    a fim de buscar compreender em que medida as ferramentas digitais

    moldam um novo paradigma de processo de projeto, foi necessário

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    44

    realizar a investigação sobre o paradigma de projeto apresentado por

    Oxman é diferente da visão de projeto de Simon e da visão de projeto

    de Schön.

    Kuhn (2011a) já assinalava que investigar o modo da aceitação do

    paradigma pela comunidade cientifica é fundamental para descobrir

    como tomam formas as revoluções científicas e, que devemos recorrer à

    instrumentos metodológicos para examinar as técnicas de

    argumentação persuasivas, efetivas dentro dos grupos científicos. Em

    nosso estudo, tais instrumentos são as ‘ferramentas de pensamento’ de

    Bourdieu: habitus, campo e capital.

    1.3 Estrutura da tese

    O primeiro capítulo apresenta o argumento deste estudo que busca

    compreender em que medida as ferramentas digitais estão efetivamente

    moldando um novo paradigma de processo de projeto ou se, em última

    análise, o que há de novo é a construção de um discurso que, ao

    configurar e delimitar um campo de pesquisa, busca valorizar

    protagonistas e agentes na cena tradicional dos discursos acadêmicos

    acerca do processo de projeto. Além disso, trata dos referenciais teóricos

    utilizados: as ferramentas de pensamento de Bourdieu e o conceito de

    transição de paradigmas de Kuhn.

    No caso de Bourdieu, o referencial trabalhado são as três principais

    ferramentas de pensamento do autor, o habitus, campo e capital e a

    constituição da lógica da prática a partir das mesmas. A lógica da prática

    é o resultado de uma ação organizada dos agentes entre habitus e

    campo, que demanda uma relação de interconexão de estrutura e

    tendência - disposição, predisposição, propensão, inclinação. Bourdieu

    sumariza a relação entre os três conceitos na seguinte equação:

    [(habitus) (capital)] + campo = prática.

    Já em Kuhn, este estudo utiliza sua visão histórica da atividade científica

    como fator chave para analisar a existência das revoluções científicas e

    propor à mesma uma estrutura. O giro histórico promovido pelo autor

  • Paradigma ou Campo: uma análise da produção acadêmica sobre o processo de projeto│Alessandra Márcia De Freitas Stefani│

    45

    permitiu a distinção conceitual entre Ciência normal e Ciência

    revolucionária, que no campo científico se traduz em construir uma rede

    articulada de conhecimentos sobre a matriz disciplinar em questão e

    eventualmente, na transição de paradigmas, romper esta rede de

    conhecimentos vigentes.

    No segundo capítulo, este estudo faz uma análise do ‘campo de pesquisa

    acadêmica em modos do saber projetar’, representado por seu porta-voz

    Nigel Cross. O estudo demonstra o fio condutor da narrativa de Cross

    para o ‘campo de pesquisa acadêmica em modos do saber projetar’, uma

    subdivisão do campo de pesquisa em Projeto que aconteceu a partir da

    sistematização da pesquisa em Projeto como uma terceira área de

    conhecimento, ao lado das Ciências e Humanidades, na década de 1980.

    Tal sistematização foi estabelecida no artigo ‘Designerly Ways of

    Knowing’ e serviu de base para o programa de pesquisa deste novo

    subcampo, dedicado a estudar como os projetistas pensam e agem

    durante o processo de projetar.

    No terceiro capítulo, esta investigação dedica-se a mostrar a trajetória

    seguida pelo ‘campo de pesquisa acadêmica em projeto auxiliado por

    computadores’, a partir de sua origem e desdobramentos. O capítulo

    trata da lógica de projeto de Herbert A. Simon e das formas de projetar

    existentes neste campo nas décadas de 1960 até 2000, definidos por

    William Mitchell. Apresentamos Rivka Oxman como porta-voz do ‘campo

    de pesquisa acadêmica em projeto auxiliado por computadores’ e

    analisamos sua produção relativa à cognição de projeto e computação,

    representados no conceito de re-representação de projeto e emergência

    em projeto.

    No quarto capítulo, este estudo comenta o texto ‘Teoria e projeto da

    primeira era digital’, de Oxman, no qual a autora propõe um n