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Para os meus pais —Obrigada por me ensinarem que,

na vida, o importante não é sobreviver à tempestade, mas dançar à chuva.

E eu estou, finalmente, a dançar…

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Prólogo

Bate. Bate. Bate.A dor que ecoa na minha cabeça pulsa ao ritmo do som, que

toma de assalto os meus ouvidos.Bate. Bate. Bate.Há tanto som, ruído branco, alto e a zumbir, e, no entanto, está tudo tão

misteriosamente calmo. À exceção daquele batuque.O que é aquilo?Por que raio está tão quente aqui, tanto que eu consigo ver as ondas do

calor a emergirem do asfalto, mas tudo o que sinto é frio?Sacana!À minha direita algo me chama a atenção (metal esmagado, pneus re-

bentados, revestimento desfeito) e tudo o que eu consigo fazer é ficar a olhar. O Becks vai estrangular-me por ter desfeito o carro. Vai desfazer-me aos bo-cados tal como o carro está, espalhado pela pista. Mas que raio aconteceu?

Sinto um tremor no fundo das costas.O meu coração dispara.A confusão cintila nos limites longínquos do meu subconsciente. Fecho

os olhos para tentar afastar o barulho que, subitamente, começou a ribom-bar nos meus pensamentos. Pensamentos que eu não consigo controlar percorrem a minha cabeça como areia que se escapa por entre os dedos.

Bate. Bate. Bate.Abro os olhos para tentar encontrar aquele maldito som que está a pres-

sionar a dor…… prazer para enterrar a dor…Aquelas palavras atravessam a minha mente como um sussurro. Abano

a cabeça, na tentativa de compreender o que se está a passar, e é quando o vejo: cabelo escuro a precisar de um corte; pequenas mãos a segurarem um helicóptero de plástico; um penso rápido do Homem Aranha à volta do dedo indicador que faz girar o rotor a fingir.

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Homem-Aranha. Batman. Super-Homem. Homem de Ferro.— Bate. Bate. Bate — diz ele com a mais suave das vozes.Porque soa, então, tão alto? Olhos grandes fitam-me através de pes-

tanas grossas, a inocência personificada naquela simples graça de verde. O seu dedo hesita no rotor ao cruzar os seus olhos com os meus, inclinando a cabeça para me examinar com atenção.

— Olá — digo eu, o silêncio ensurdecedor a ecoar no espaço entre nós.Algo não está certo.Decididamente, algo não está certo. A apreensão volta a emergir. Pistas

sobre o desconhecido redemoinham em volta da minha mente.A confusão abafa. Os seus olhos verdes consomem-me.A ansiedade dissipa-se quando um sorriso lento dá forma ao canto da

sua boca, suja de terra, e faz surgir uma covinha no seu rosto.— Eu não devia falar com estranhos — diz ele, endireitando as costas,

tentando ser o rapaz grande que quer ser.— Essa é uma boa regra. Foi a tua mãe que te ensinou isso?Porque é que ele me parece tão familiar?Ele encolhe os ombros de uma maneira descontraída. O seu olhar, após

percorrer cada centímetro do meu corpo, volta a encontrar-se com o meu. Os seus olhos vacilam perante algo que está atrás de mim mas, por alguma razão, não consigo desviar os meus olhos dele para olhar. Não é só por ele ser o miúdo mais engraçado que eu já vi… Não, é como se ele exercesse um poder sobre mim que eu não consigo contrariar.

Uma pequena linha vinca-lhe a testa conforme olha para baixo e belisca o outro penso de super-herói que mal cobre o grande raspão no seu joelho.

Homem-Aranha. Batman. Super-Homem. Homem de Ferro.Calem-se! Quero gritar aos demónios que estão na minha cabeça. Eles

não têm o direito de estar aqui… não há razão para estarem à volta deste doce rapaz e, no entanto, eles continuam a repetir-se tal como um carrossel. Tal e qual como o meu carro devia estar a andar à volta da pista agora. Então, porque estou a avançar em direção a esta criança que me confunde em vez de me preparar para a grande bronca que vou levar do Becks (e que, tendo em conta o aspeto do meu carro, será mais do que merecida)?

Ainda assim, não consigo resistir.Dou mais um passo na sua direção, lento e deliberado nos meus movi-

mentos, como se estivesse com os rapazes na Casa.Os rapazes. A Rylee. Preciso de a ver. Não quero estar sozinho. Preciso

de a sentir.

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Não me quero voltar a sentir destroçado.Porque estou a nadar num mar de confusão? E, ainda assim, dou mais

um passo pelo nevoeiro em direção a este inesperado raio de luz.Sê a minha centelha.— Tens aí uma ferida muito feia…Ele resmunga. É tão adorável ver este miúdo com uma cara tão séria,

com o nariz polvilhado de sardas, a olhar para mim como se me estivesse a escapar algo.

— Não me digas!E é atrevido. O meu tipo de miúdo. Abafo o riso ao mesmo tempo que ele

olha sobre o meu ombro pela terceira vez. Começo a virar-me para ver para onde ele está a olhar quando a voz dele me interrompe.

— Está bem?Como assim?— O que queres dizer com isso?— Está bem? — pergunta ele outra vez. — Parece que está um bocado

em baixo.— O que queres dizer com isso? — dou outro passo em direção a ele.

Os meus pensamentos fugazes, misturados com o tom sombrio da sua voz e a preocupação estampada na sua cara, estão a começar a enervar-me.

— Bem, na minha opinião está um bocado em baixo — sussurra ele enquanto o seu dedo envolto no penso rápido faz a hélice girar mais uma vez (bate, bate, bate) antes de apontar para o meu corpo.

A ansiedade sobe-me pelas costas até que olho para o meu fato de corri-da e vejo-o intacto. Com as mãos apalpo o fato para me acalmar.

— Não. Estou bem, companheiro. Vês? Está tudo bem — digo eu apres-sadamente e solto um suspiro de alívio.

Por momentos, o pirralho assustou-me.— Não, tonto — diz ele a revirar os olhos e a bufar antes de apontar

para trás de mim. — Olhe. Está um bocado em baixo.Viro-me, intrigado pela calma simplicidade do tom da sua voz, e olho

para trás de mim.O meu coração para. Bate. O fôlego fica estrangulado no meu peito.

Bate. O meu corpo fica congelado. Bate.Pisco os olhos vezes sem conta, tentando fazer desaparecer as imagens

que estão diante de mim. As visões passam por entre uma névoa viscosa.Homem-Aranha. Batman. Super-Homem. Homem de Ferro.Porra. Não. Não. Não. Não.

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— Está a ver? — diz a voz angelical por trás de mim. — Eu disse-lhe.Não. Não. Não. Não.O ar sai, finalmente, dos meus pulmões. Forço-me a engolir em seco

e a minha garganta sabe a lixa.Eu sei que estou a ver o caos mesmo diante dos meus olhos, mas como

é possível? Como é que estou aqui e ali?Bate. Bate. Bate.Tento mexer-me. Tento correr! Tento captar a atenção deles para lhes

dizer que estou aqui (e que estou bem), mas os meus pés não dão ouvidos à dor que faz ricochete no meu cérebro.

Não. Não estou ali. Só aqui. Eu sei que estou bem (sei que estou vivo), porque me consigo sentir a suster a respiração quando dou um passo em frente para observar melhor. O medo arrepia-me a nuca, pois o que estou a ver… não pode ser… simplesmente não é possível.

Homem-Aranha. Batman. Super-Homem. Homem de Ferro.A equipa médica corta o capacete do condutor e o zumbido suave da

serra acorda-me do meu estado de pré-fúria. Quando acabam de o cortar, tenho a sensação de que a minha cabeça vai explodir. Caio de joelhos, a dor é tão excruciante que a única coisa que consigo fazer é elevar as minhas mãos ao céu para a tentar parar. Tenho de olhar para cima. Tenho de ver quem estava no meu carro, quem vai pagar por isto, mas não consigo. Dói tanto.

… Pergunto-me se sentimos dor quando morremos …Faço um movimento brusco quando sinto a mão dele no meu ombro…

mas assim que a pousa, a dor deixa de existir.Mas que…? Eu sei que tenho de olhar. Tenho de ver com os meus pró-

prios olhos quem estava no carro, mesmo que, no fundo, eu saiba a ver-dade. Memórias desarticuladas tremem e dispersam-se pela minha mente como estilhaços de um vidro naquele maldito bar.

Maldito Humpty Dumpty.O medo sobe-me pela medula, apodera-se e ressoa dentro de mim. Não

consigo. Não consigo olhar para cima. Não sejas fraco, Donavan. Olho para a minha direita e para os olhos dele, a inesperada calma nesta tempestade.

— Aquilo é…? Eu estou…? — pergunto ao rapaz, com o ar preso na garganta, a apreensão pela resposta sequestrou a minha voz.

Ele limita-se a olhar para mim — olhos límpidos, expressão séria, lábios cerrados, sardas a dançar — antes de me apertar o ombro.

— O que é que lhe parece?

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Apetece-me abaná-lo até ele me dar o raio da resposta, mas sei que não o farei. Não posso. Com ele aqui a meu lado, no meio deste caos turbilho-nante, nunca me senti tão em paz e, ao mesmo tempo, tão assustado.

Forço-me a desviar o olhar do seu rosto sereno para observar a cena diante de mim. Sinto-me como se estivesse dentro de um caleidoscópio de imagens de rostos desalinhados conforme a cara — a minha cara — pousa na maca.

O meu coração rebenta. Crepita. Para. Morre.Homem-Aranha.Pele cinzenta. Olhos inchados, feridos e fechados. Lábios frouxos

e pálidos.Batman.A devastação entrega-se, o desespero consome, a vida crepita e, no

entanto, a minha alma segura-se.Super-Homem.— Não! — grito do fundo dos meus pulmões até a voz enrouquecer.Ninguém olha. Ninguém ouve. Ninguém responde: nem o meu corpo

nem os médicos.Homem de Ferro.O corpo na maca — o meu corpo — faz um movimento brusco assim

que alguém começa a aplicar pressão no meu peito. Alguém aperta o colar cervical, abre-me as pálpebras e verifica as pupilas.

Bate.Rostos cautelosos. Olhos derrotados. Movimentos automáticos.Bate.— Não! — berro outra vez, com o pânico a assenhorear-se de cada cen-

tímetro do meu corpo. — Não! Estou aqui! Mesmo aqui! Estou bem.Bate.Caem lágrimas. A descrença treme. Desaparecem possibilidades. A espe-

rança implode.A minha vida esbate-se.Os meus olhos centram-se na minha mão, um membro que pende da

maca, sem vida, uma gota de sangue a caminho da ponta do meu dedo antes de outra compressão no meu peito a precipitar em direção ao chão. Foco-me na-quela faixa de sangue, incapaz de olhar para a minha cara. Não aguento mais.

Não aguento ver a vida a ser sugada de mim. Não aguento o medo que rasteja para o meu coração, o desconhecido que entra lentamente no meu subconsciente e o frio que começa a penetrar-me a alma.

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— Ajuda-me! — viro-me para o rapaz tão familiar mas tão desconhe-cido. — Por favor, eu não estou pronto para… — imploro, num sussurro suplicante, com toda a vida que há em mim. Não consigo acabar a frase. Se o fizer, estarei a aceitar o que está a acontecer na maca perante mim — o que significa ele estar junto a mim.

— Não? — pergunta ele. Uma única palavra mas a mais importante da minha maldita vida. Olho para ele, consumido pelo que vai na profundeza do seu olhar: compreensão, aceitação, reconhecimento. Por mais que eu não queira deixar esta sensação que ele me transmite, a opção que ele me coloca (a escolha entre a vida e a morte) é a decisão mais fácil que eu já tive de tomar.

E, ainda assim, a decisão de viver (de voltar a passar pelo inferno da pro-vação que mereço por me ter sido dada esta escolha) significa que vou ter de abandonar este pequeno rosto angélico e a serenidade que a sua presença injeta na minha alma perturbada.

— Vemo-nos de novo? — Não sei bem de onde vem a pergunta mas sai da minha boca sem que eu consiga evitá-lo. Contenho a respiração à espera da resposta, desejando um sim e um não ao mesmo tempo.

Ele inclina a cabeça e faz um sorriso pretensioso.— Se o destino assim o quiser.O destino controlado por quem? Quero gritar-lhe. Por Deus? Pelo Diabo?

Por mim? Por quem, porra? Mas tudo o que consigo dizer é:— O destino?— Sim — responde com um pequeno aceno de cabeça enquanto olha

para o seu helicóptero e, depois, outra vez para mim.Bate. Bate. Bate.O som fica mais alto, sobrepondo-se a todo o ruído à minha volta e ainda

assim consigo ouvir a respiração dele. Ainda ouço o bater do meu coração nos meus tímpanos. Ainda consigo sentir o alívio suave da paz que envol-ve o meu corpo como um sussurro quando ele coloca a sua mão no meu ombro.

Subitamente, vejo o helicóptero de salvamento pousado ao lado da pista e escuto o incessante som dos seus rotores — bate, bate, bate — enquanto espera por mim. Eles começam a mover-se rapidamente em direção a ele e a maca é transportada.

— Não vai? — pergunta-me ele.Engulo em seco, olho para ele e retribuo com um aceno de cabeça re-

signado.

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— Sim… — é quase um sussurro, o medo do desconhecido a pesar no meu tom.

Homem-Aranha. Batman. Super-Homem. Homem de Ferro.— Olhe — diz ele e os meus olhos voltam a focar-se no seu rosto per-

feito. Ele aponta para o que se está a passar por trás de mim. — Afinal de contas, parece que os seus super-heróis vieram.

Rodopio, o coração alojado na minha garganta e a confusão a intro-meter-se na minha lógica. Ao princípio não reparo nisso, o piloto está de costas para mim, a ajudar a transportar a minha maca para o helicóptero, mas quando se vira para ocupar o seu lugar e pega no comando, torna-se claro como o sol.

O meu coração para.E começa a bater.Uma hesitante expiração de alívio vacila pela minha alma.O capacete do piloto está pintado.De vermelho.Com linhas pretas.O Homem-Aranha estampado na frente do capacete.O rapazinho dentro de mim celebra. O homem crescido dentro de mim

cede de alívio.Viro-me para me despedir do rapaz mas ele desapareceu. Como é que

ele sabia dos super-heróis? Olho para todo o lado à sua procura (a precisar da resposta), mas ele desapareceu.

Estou sozinho.Sozinho exceto pelo conforto daqueles por cuja chegada esperei uma

vida inteira.A minha decisão foi tomada.Por fim, os super-heróis chegaram.

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capítulo 1

O entorpecimento apodera-se lentamente do meu corpo. Não me consigo mexer, não consigo pensar, não consigo tirar os olhos do carro desfeito na pista. Se desviasse o olhar, tudo se tornaria real.

O helicóptero a sobrevoar-me estaria, de facto, a transportar o corpo fratu-rado do homem que amo.

Do homem de quem preciso.Do homem que não posso perder.Fecho os olhos e tento escutar, mas não ouço nada. Ouço apenas a mi-

nha pulsação. Vejo apenas imagens fragmentadas na minha mente, além da escuridão que tenho diante dos olhos — e dentro do meu coração. O Max converge no Colton e o Colton desvanece novamente no Max. Memórias que fazem com que a esperança a que me agarro como uma tábua de salva-ção comece a tremeluzir e a arder para logo se extinguir, como a escuridão a sufocar a luz da minha alma.

Corro-te, Ryles. A voz dele tão forte e firme percorre-me a mente e depois dissipa-se, reluzindo como fragmentos de papel a esvoaçar.

Dobro-me sobre mim mesma, esperando que cheguem lágrimas sufo- cantes ou que se incendeie um fogo cá dentro, mas nada acontece; sinto apenas um peso de chumbo na alma que me afunda no chão.

Esforço-me por respirar enquanto tento iludir a minha própria mente levando-a a acreditar que os últimos vinte e dois minutos nunca aconte-ceram. Que o carro não capotou e rodopiou no ar, envolto em fumo. Que o metal do carro não teve de ser cortado por paramédicos de rosto sombrio para libertar o corpo sem vida do Colton.

Nunca fizemos amor. Este único pensamento percorre-me a mente. Não tivemos oportunidade de correr depois de, finalmente, ele me ter dito as palavras que eu precisava de ouvir — e que ele, enfim, admitiu a si próprio.

Só quero voltar atrás no tempo e regressar à suíte, quando estivemos nos braços um do outro, quando estivemos unidos — vestidos e despidos —,

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mas as visões horríveis do carro desfeito não mo permitem. Tinham mar-cado a minha memória de um modo tão medonho pela segunda vez que é impossível que a minha capacidade de ter esperança não se ressinta.

— Ry, não estou lá muito bem — oiço as palavras do Max na minha cabe-ça, mas a voz é a do Colton. É o Colton a avisar-me do que aí vem. Do que já vivi na minha vida.

Oh, meu Deus. Por favor. Por favor, não.O meu coração contorce-se.O meu raciocínio definha.Passam imagens em câmara lenta.— Rylee, preciso que te concentres. Olha para mim! — Novamente as

palavras do Max. Começo a fraquejar, o meu corpo atinge o seu limite, tal como a minha esperança, mas há braços que me agarram e me abanam.

— Olha para mim! — Não, não é o Max. Não é o Colton. É o Becks. Tento concentrar-me e olhá-lo nos olhos; lagos azuis interrompidos por linhas vermelhas nos cantos. Vejo medo nos olhos dele. — Temos de ir para o hospital agora, OK? — A voz dele é gentil e firme ao mesmo tempo. Parece achar que se falar comigo como se eu fosse uma criança eu não me estilha-çarei nos milhões de pedaços em que a minha alma já está desfeita.

Não consigo engolir o nó que sinto na minha garganta para poder falar, por isso ele abana-me novamente. Todas as minhas emoções desaparece-ram, menos o medo. Aceno a cabeça, mas sou incapaz de me mover de outra forma. Silêncio total. Estão milhares de pessoas à nossa volta nas bancadas, mas todas em silêncio. Os seus olhos estão postos na equipa de limpeza e no que sobrou dos inúmeros carros na pista.

Esforço-me por ouvir algo. Por sentir um sinal de vida. Nada, além do silêncio total.

Sinto o braço do Becks à minha volta, a apoiar-me enquanto nos dirige para fora do corredor das boxes. Descemos umas escadas e entramos pela porta aberta de uma carrinha que está à nossa espera. Empurra-me gentil-mente para me ajudar a entrar.

O Beckett senta-se rapidamente ao meu lado e dá-me a minha mala e o meu telemóvel ao mesmo tempo que coloca o cinto de segurança e dá ordem para arrancar.

A carrinha acelera em frente, fazendo-me saltar ao abrir caminho. Olho em volta quando começamos a descer pelo túnel e só consigo ver carros Indy dispersos pela pista e completamente imóveis. São como lápides colo-ridas num silencioso cemitério de asfalto.

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Crash, crash, burn… A letra da canção debitada pelas colunas pene- tra o silêncio letal da carrinha. A minha mente vazia processa-a lenta- mente.

— Desliguem isso! — grito em pânico, enquanto as minhas mãos se cerram num punho e os dentes rangem e as palavras se encastram na rea-lidade que não consigo bloquear de forma alguma.

A histeria emerge.— Zander — murmuro. — O Zander tem uma consulta no dentista

na terça-feira. O Ricky precisa de chuteiras novas. O Aiden começa o apoio na quinta-feira e o Jax não apontou isso no calendário. — Olho em volta e encontro os olhos do Beckett fixos em mim. Pela minha visão periférica, consigo distinguir outros membros da equipa atrás de nós mas não sei como foram ali parar.

A histeria começa a borbulhar.— Beckett, preciso do meu telemóvel. O Dane vai esquecer-se e o Zan-

der precisa mesmo de ir ao dentista e o Scooter pre…— Rylee — diz ele num tom equilibrado, mas eu abano a cabeça.— Não! — grito. — Não! Preciso do meu telemóvel — começo a desa-

pertar o meu cinto de segurança, tão perturbada que nem reparo que tenho o aparelho nas minhas próprias mãos. Precipito-me sobre o Beckett para alcançar a porta deslizante da carrinha em movimento. Ele esforça-se por me agarrar para me impedir de abrir a porta.

A histeria entra em ebulição.— Larga-me! — luto com ele. Contorço-me e resisto-lhe, mas ele con-

segue controlar-me.— Rylee — diz ele novamente e o tom despedaçado na sua voz coincide

com o sentimento no meu coração quando a luta cessa.Desabo sobre o banco mas o Beckett aperta-me contra ele, igualmente

a arfar. Agarra-me na mão e aperta-a firmemente, sendo esta a única mos-tra de desespero na sua expressão impassível. Nem forças tenho para lha apertar em resposta.

O mundo fora da carrinha está toldado e o meu parou. Deitado numa maca algures por aí.

— Eu amo-o, Beckett — suspiro, por fim.O medo assola-me…— Eu sei — diz, exalando um suspiro agitado e beijando o cimo da

minha cabeça. — Eu também.… estou carregada de desespero…

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— Não o posso perder — as palavras mal se ouvem, como se, ao dizê--las, o perdesse mesmo.

… embato no desconhecido.— Eu também não.

O som das portas automáticas da sala de urgências a abrir e a fechar é paralisante. Estaco sempre que se movem. Traz-me de volta memórias perturbadoras e o branco angelical das paredes da entrada provoca-me tudo menos tranquilidade. Parece-me estranho que só me recorde das filas de luzes fluorescentes no teto (a única forma de me concentrar enquanto a maca era arrastada pela entrada), do jargão clínico a ser utilizado entre os médi-cos, da constante avalanche de pensamentos incoerentes e de, nesse tempo todo, o meu coração implorar pelo Max, pelo meu amor, por esperança.

— Ry? — A voz do Beckett afasta o pânico que me estrangula a gargan-ta, as memórias que sufocam os meus passos. — Podes entrar?

A delicadeza no seu tom renova-me, como um bálsamo para a minha ferida aberta. Só tenho vontade de chorar no conforto da sua voz. As lágri-mas obstruem-me a garganta e queimam-me os olhos mas, mesmo assim, não brotam. Não caem.

Respiro fundo para ganhar forças e dou ordem para que os meus pés se movam. O Beckett coloca um braço à volta da minha cintura e ajuda-me a dar o primeiro passo.

Rapidamente o meu cérebro processa o rosto do médico. Impassível. Sem emoções. A cabeça acena para a frente e para trás. Os olhos trans-mitem exculpação. Mostra uma postura derrotada. Recordo-me de querer fechar os olhos e desaparecer para sempre. A palavra «Lamento» sai dos seus lábios.

Não. Não. Não. Não consigo escutar aquilo outra vez. Não sou capaz de ouvir alguém dizer-me que perdi o Colton, especialmente quando tínha-mos acabado de nos reencontrar.

Mantenho a cabeça baixa. Conto os mosaicos laminados do chão en-quanto o Becks me encaminha para a sala de espera. Penso que esteja a falar comigo. Ou será com uma enfermeira? Não tenho a certeza porque não me consigo concentrar em mais nada para além de afastar memórias que me assolam; afastar o desespero para que, talvez, apenas um pouco de esperan-ça me consiga invadir novamente.

Sento-me numa cadeira ao lado do Beckett e olho entorpecidamente para baixo, para o telemóvel sempre a vibrar nas minhas mãos. Tenho várias

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mensagens e chamadas da Haddie, às quais não penso sequer em respon-der, embora saiba que ela está bastante preocupada. Seria um esforço muito grande neste momento.

Ouço o chiar de sapatos sobre o linóleo enquanto outras pessoas se colocam atrás de nós, mas foco-me no livro infantil sobre a mesa à minha frente. O Fantástico Homem-Aranha. A minha mente vagueia, fica obceca-da, foca-se. Será que o Colton teve medo? Saberia o que se estava a passar? Terá entoado o cântico de que falou ao Zander?

Este simples pensamento desfaz-me o coração e, ainda assim, as lágri-mas não surgem.

Vejo os enfermeiros a passarem pelo canto dos olhos. Ouço alguém a falar com o Beckett.

— O médico especialista necessita de saber exatamente qual o impacto sofrido para conhecermos melhor as circunstâncias. Tentámos ver a repe-tição do momento, mas o canal televisivo deixou de transmitir o programa. — Não, não, não. As palavras gritam e ecoam na minha cabeça e, mesmo assim, o silêncio asfixia-me. — Disseram-me que seria a melhor pessoa para o explicar.

O Beckett agita-se ao meu lado. A voz dele está tão cheia de emoção quando começa a falar que eu cravo os dedos nas minhas coxas. Ele aclara a garganta.

— Ele embateu na vedação de pernas para o ar… acho eu. Estou a ten-tar lembrar-me. Espere um pouco. — Deixa cair a cabeça sobre as mãos, massaja as têmporas com os dedos e suspira enquanto tenta reunir os pen-samentos. — Sim. O carro estava virado ao contrário. O aerofólio bateu no cimo da vedação de proteção com o nariz perto do chão. A parte central bateu na barreira de betão. O carro desintegrou-se em torno do assento.

O arquejo coletivo de milhares de pessoas em resposta ainda ressoa nos meus ouvidos.

— Há algo que nos possa dizer? — pergunta o Beckett à enfermeira.O som inconfundível do metal a ceder à força.— Neste momento, não. Ainda é cedo e estamos a tentar avaliar tudo…— Ele vai ficar…— Voltamos a dar notícias assim que seja possível.O cheiro de borracha queimada no asfalto coberto de gasolina.Ouve-se novamente o chiar de sapatos. Vozes murmuram. O Beckett

suspira e esfrega a cara com as mãos antes de esticar os dedos trementes de uma mão e agarrar na que eu tinha sobre a minha perna e a apertar.

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Um pneu solitário a rolar sobre a relva e a ressaltar contra a barreira de terra.

Por favor, dá-me apenas um sinal, imploro em silêncio. Qualquer coisa. Algo que me faça agarrar à esperança que se me escapa por entre os dedos.

Ecoa o toque de telemóveis através das paredes esterilizadas da sala de espera. Vezes sem conta. Como o som das pulsações das máquinas de frequência cardíaca que penetra e preenche a sala de espera. Quando uma delas se silencia, uma parte de mim também o faz.

Ouço a dificuldade do Beckett em respirar um momento antes de emitir um soluço estrangulado que me atinge como um furacão, rasgando a peque- na e frágil barreira que preservava o meu raciocínio e a minha fé. Por mais que ele tente afastar a violência das lágrimas, não consegue. A dor escapa e escorre-lhe pelo rosto; corrói-me que o homem que me tenha estado a dar forças esteja agora a desmoronar-se. Fecho os olhos com força e tento ser forte para ajudar o Beckett, mas só consigo ouvir repetidamente as suas palavras da noite anterior.

Abano a cabeça para trás e para a frente em descrença e pânico.— Lamento — sussurro. — Lamento mesmo muito. A culpa é toda

minha.O Beckett ergue a cabeça momentaneamente antes de secar os olhos

com as palmas das mãos. O gesto (de afastar as lágrimas como faz uma criança pequena quando tem vergonha) contorce-me ainda mais o coração.

Não consigo evitar o pânico que me assola quando percebo que é por minha culpa que o Colton está aqui. Afastei-o e não acreditei nele — cansei--o na noite anterior a uma corrida — e tudo porque fui inflexível e estava assustada.

— Fui eu que lhe fiz isto — as palavras matam-me. Rasgam-me a alma em pedaços.

O Beckett levanta o rosto com os olhos avermelhados.— Do que estás a falar? — Aproxima-se mais, com os olhos azuis em

choque a perscrutarem os meus.— Tudo… — Para-me a respiração e faço uma pausa. — Passei os últi-

mos dias a chateá-lo e já me tinhas dito que, se o fizesse, era eu que…— Ryl…— Confrontei-o, deixei-o, ficámos acordados até tarde e fui eu que fiz

com que ele entrasse naquele carro tão cansado e…

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— Rylee! — consegue dizer, finalmente, num tom áspero. Continuo a abanar a cabeça com os olhos a arder e as emoções a transbordarem. — Não te culpes.

Movimento-me bruscamente enquanto ele coloca os seus braços à mi-nha volta e me aperta. Coloco as minhas mãos em punho na parte da frente do seu fato protetor, com a rudeza do tecido a roçar-me no rosto.

— Houve uma colisão. Ele envolveu-se sem se aperceber. Faz parte da corrida. A culpa não é tua. — A voz dele falha e cala-se. Rodeou-me com os seus braços e eu sinto-me encurralada e claustrofóbica. O sufoco arre-bata-me.

Preciso de me mexer para libertar o desassossego que me consome a alma. Dirijo-me à outra ponta da sala de espera e regresso. Ao meu se-gundo movimento, o rapazinho na cadeira de canto salta do seu lugar para pegar num lápis de cor. As luzes vermelhas nos seus sapatos começam a piscar e captam a minha atenção. Estreito os olhos para ver melhor, con-templando o triângulo invertido com o S no centro.

Super-Homem.O nome acaricia-me o subconsciente, mas a minha atenção é desviada

para a televisão quando alguém muda de canal. Ouço o nome do Colton e sustenho a respiração com medo de olhar, mas querendo ver as imagens que estão a passar no ecrã.

Parece que toda a sala estaca e se move coletivamente. Uma massa de pilotos e caras repletas de emoção foca-se no ecrã. O apresentador diz que ocorreu uma colisão que provocou a interrupção das corridas durante mais de uma hora. O ecrã muda para a imagem da nuvem de fumo e de carros tombados uns sobre os outros. O ângulo é diferente do nosso quando está-vamos na pista e, por isso, conseguimos ver mais, mas quando o carro do Colton faz a curva, a transmissão interrompe as imagens. Todos os ombros em torno da televisão descaem quando a equipa percebe que o que esperava ansiosamente ver não será mostrado. A peça termina com o jornalista a dizer que ele estava, neste momento, a ser tratado em Bayfront.

Vejo o corpo sem vida do Colton na maca, com o Max sentado a meu lado. As similitudes da situação tiram-me o ar do peito numa dor sem fim. As memórias colidem.

Viro-me e vejo os Westins a entrarem na sala de espera. A mãe do Colton, régia e autoritária, parece pálida e perturbada. Engulo com mui-to esforço, incapaz de desviar o olhar deles. O Andy ajuda-a gentilmente, guiando-a até uma cadeira enquanto a Quinlan lhe segura na outra mão.

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O Beckett aparece de repente para abraçar a Dorothea e, em seguida, a Quinlan com abraços rápidos mas cheios de significado. O Andy apro-xima-se e abraça o Beckett num abraço mais demorado, e o seu desespero é comovente. Ouço um soluço reprimido, cujo som quase me despedaça.

Observar o desenrolar de toda esta cena instiga memórias do funeral do Max. Um pequeno caixão cor-de-rosa sobre um caixão preto de tamanho normal, ambos cobertos por rosas vermelhas, fazem-me recordar palavras que não sou capaz de ouvir novamente: és pó e em pó te tornarás. Fazem--me recordar os abraços ocos, vazios que nada fazem para confortar. O tipo de abraços que nos deixam extremamente sensibilizados e em carne viva quando a nossa alma já foi desfeita.

Começo novamente a andar de um lado para o outro entre murmúrios quase mudos de «quanto tempo mais teremos de esperar até nos dizerem alguma coisa?». Todas aquelas caras, geralmente fortes e enérgicas, estão agora marcadas por rugas de preocupação. Quando paro de andar, deparo--me com os olhos do Andy e da Dorothea.

Ficamos simplesmente a olhar uns para os outros, sendo as nossas caras o espelho da descrença e da angústia, até que a Dorothea me estende uma mão trémula.

— Eu não sei o que… Lamento imenso… — Abano a cabeça enquanto aquelas palavras me escapam.

— Nós sabemos, querida — diz ela envolvendo-me nos seus braços e encostando-se a mim, uma amparando a outra. — Nós sabemos.

— Ele é forte. — É tudo o que o Andy diz enquanto passa a mão pelas mi-nhas costas numa tentativa de conforto. Mas este gesto, abraçar os pais dele, consolarmo-nos uns aos outros, os rostos inundados de lágrimas e os solu- ços abafados, torna tudo real. A minha esperança de que fosse tudo um pesa- delo dissipa-se.

Balanço-me e tento concentrar-me em algo, qualquer coisa, que me faça sentir que não estou a perder o controlo.

Mas continuo a relembrar o rosto do Colton. Enquanto no meio da equipa desnorteada — a mesma equipa sentada a meu lado, com as cabe-ças apoiadas nas mãos, os lábios apertados, os olhos fechados em súplica — mantinha um olhar de certeza e admitia os seus sentimentos por mim. Preciso de parar e recuperar o fôlego, mas a dor que se dissemina pelo meu peito não para.

A televisão atrai de novo a minha atenção. Um sussurro penetra a mi-nha mente e viro-me para ver o que se trata. É um trailer do novo filme do

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Batman. A esperança reacende-se quando entro nas profundezas da minha mente — na última hora que passou.

O livro do Homem-Aranha sobre a mesa. Os ténis do Super-Homem. O filme do Batman. Tento pensar que se trata de uma coincidência, que ver três dos quatro super-heróis é um acaso totalmente aleatório. Tento dizer a mim mesma que preciso de ver algum sinal do quarto super-herói para acreditar em tudo aquilo. Que preciso do Homem de Ferro para completar o círculo, para confirmar o sinal de que o Colton vai superar tudo.

De que vai voltar para mim.Começo à procura, com os olhos a sobrevoar toda a sala de espera en-

quanto a esperança se agiganta e prepara para florescer, se conseguir encontrar o último sinal. As minhas mãos tremem; o meu otimismo está à tona, cautelosamente à espera de erguer a sua cabeça cansada.

Ouço sons vindos da entrada e o barulho — aquela voz — incendeia toda a emoção que pulsava na minha pele.

Estou prestes a explodir.O cabelo louro e as longas pernas transpõem a porta e não me importo

que a cara dela pareça tão devastada e preocupada quanto a minha. Toda a dor que sinto no peito, toda a angústia, se erige com a mesma sensação de um elástico a estalar sobre a pele.

Ou de um relâmpago a soar.Atravesso a sala de espera em segundos, provocando o rodar súbito de

cabeças com o resmoneio que deixo sair da minha garganta quando desper-to em fúria.

— Sai daqui! — grito-lhe, atravessada por tantas emoções que só consi-go sentir uma enorme confusão avassaladora. A cabeça da Tawny ergue-se e os seus olhos desconcertados cruzam-se com os meus, a boca aberta de espanto. — Sua intriguista de…

Fico sem ar quando os braços fortes do Beckett me agarram por trás e me puxam contra o seu peito.

— Larga-me! — luto contra ele e ele aperta-me cada vez mais. — Larga-me!— Poupa-te, Ry! — resmunga sem me largar, com o seu tom de voz

reservado e firme a atravessar-me os ouvidos. — Precisas de poupar todo esse fogo e energia porque o Colton vai precisar disso. De todos os bocadi-nhos! — As palavras dele atingem-me como um soco nas minhas feridas, derrubando a minha adrenalina. Paro de resistir, com os braços dele ainda à minha volta como tiras de aço e a sua respiração ofegante a tocar-me no rosto. — Não vale a pena gastares as tuas energias com ela, OK?

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Não consigo encontrar palavras (neste momento sou incapaz de qual-quer coerência), por isso aceno apenas com a cabeça em concordância, esforçando-me por me concentrar num qualquer ponto no chão à minha frente em vez de nas pernas longas paradas à minha direita.

— Tens a certeza? — reafirma ele antes de me soltar lentamente e de se colocar à minha frente, forçando-me a olhá-lo nos olhos, para testar se honrarei a minha palavra.

O meu corpo começa a tremer, cativo da fúria, da dor e do desconhecido que me atravessa.

A minha respiração interrompe-se porque os meus pulmões doem a cada inspiração. É a única mostra da agitação que sinto dentro de mim quando vejo a bondade coberta de preocupação nos olhos do Beckett. Sinto-me pes-simamente por ele estar a tomar conta de mim quando ele também adora o Colton e está a sofrer tanto quanto eu, por isso obrigo-me a acenar. Ele devolve-me o aceno antes de se virar, bloqueando-me a visão da Tawny com o seu corpo.

— Becks… — suspira o nome dele e só a voz dela deixa-me os nervos em franja.

— Nem uma palavra, Tawny! — a voz do Beckett é baixa e controlada, audível apenas para nós os três, apesar dos inúmeros pares de olhos que observam o nosso confronto. Vejo o Andy erguer-se no outro lado da sala enquanto tenta perceber o que se está a passar. — Só te deixo ficar aqui por um motivo, apenas um motivo… o Wood vai precisar de todas as pessoas a apoiá-lo se… — diz ele, com um nó na garganta — quando ele supe-rar tudo isto… e isso inclui-te, embora, depois do que provocaste entre ele e a Ry, a palavra amiga não seja a que melhor se aplica a ti.

As palavras do Becks apanham-me de surpresa. Ouço a resposta dela num som reservado antes de se abater o silêncio… e ela começar a chorar. Uma ladainha baixa e pesarosa que aniquila o meu controlo.

E passo-me da cabeça. A certeza que dei ao Becks de que ia poupar as minhas forças desvanece.

— Não! — grito, tentando tirar o Beckett do caminho e entrando em ação. — Não te atrevas a chorar por ele! Não te atrevas a chorar pelo ho-mem que tentaste manipular! — Sinto braços a conterem-me novamente por trás, evitando que o meu soco atingisse o seu alvo, embora não me importe, porque a realidade já não faz sentido. — Sai daqui! — berro, com a voz a tremer enquanto sou arrastada para longe do rosto aturdido dela. — Não! — Luto contra os braços que me contêm. — Deixem-me!

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— Calma… —a voz e os braços do Andy envolvem-me com firmeza, tentando acalmar-me e controlar-me ao mesmo tempo. Só me consigo con-centrar na necessidade de fazer uma paragem na boxe, enquanto o meu coração acelera e o meu corpo treme de raiva. Preciso de ver o Colton. Preciso de lhe tocar, de acalmar a inquietação da minha alma.

Mas não posso.Ele está algures por ali, o meu patife rebelde incapaz de deixar em paz

o rapaz destroçado dentro dele. O homem que tinha começado a curar-se está agora desfeito e mata-me por dentro saber que não sou capaz de o aju-dar. Que as minhas palavras de encorajamento e a minha natureza paciente não serão capazes de consertar o corpo imóvel e hirto que foi carregado naquela maca e rapidamente levado algures entre estas paredes; tão perto e, ainda assim, tão longe de mim. Que ele tem de confiar em estranhos para se curar agora. Estranhos que não fazem ideia da cicatriz invisível que ele ainda tem à superfície da alma.

Chegam mais mãos para me tocarem e acalmarem, da Dorothea e da Quinlan, mas não são as que eu quero. Não são as do Colton.

De súbito, atinge-me um pensamento assustador. Sempre que o Colton está por perto, consigo sentir um formigueiro, uma sensação que me diz que ele está ao meu alcance, mas neste momento não sinto nada. Sei que ele está fisicamente perto, mas a faísca dele é inexistente.

Preciso que sejas a minha faísca. Consigo ouvir a voz dele a dizer estas palavras, consigo recuperar a memória da respiração dele sobre a minha pele como uma pena… mas não o consigo sentir.

— Não posso! — grito. — Não posso ser a tua faísca quando não sinto a tua, por isso não te atrevas a extinguir-te. — Não me importo de estar numa sala cheia de pessoas, de ser envolta nos braços da Dorothea, já que a única pessoa que quero que me ouça não o pode fazer. Saber isso provoca um desespero que consome cada pedaço do meu ser que ainda não está paralisado pelo medo. Ergo os punhos nas costas do casaco da Dorothea, en-costando-me a ela enquanto imploro pelo filho. — Não te atrevas a morrer, Colton! Preciso de ti, raios! — grito para o silêncio estéril da sala de espera. — Preciso tanto de ti que me sinto a morrer aqui, agora, sem ti! — A minha voz falha tal como o meu coração e, apesar da ajuda dos braços da Dorothea, dos murmúrios da Quinlan e do raciocínio calmo do Andy, não consigo aguentar.

Empurro-os e olho para eles antes de atravessar a entrada cegamente aos tropeções. Sei que estou a perder o controlo. Estou tão entorpecida e vazia

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que nem tenho energia para discutir com o Beckett e reacender o ódio que sinto pela Tawny. Se me culpo por o Colton estar ali, ela bem pode ter a cer- teza de que partilha essa culpa comigo.

Viro a esquina para me dirigir à casa de banho e preciso de me obrigar a andar. Pressiono as mãos contra a parede em busca de apoio; caso con-trário, caio. Tento não me esquecer de respirar, digo a mim mesma para colocar um pé em frente do outro, mas é praticamente impossível quando o único pensamento que me ocorre é que o homem que amo está a lutar pela vida e não posso fazer rigorosamente nada para o ajudar. Não tenho esperança nem forças.

Sinto-me a morrer por dentro.As minhas mãos guiam-me até à ombreira de uma porta que transpo-

nho a cambalear em direção à cabine mais próxima, acolhendo o silêncio da casa de banho vazia. Desabotoo os calções e, quando os faço descer pe-las coxas, os meus olhos captam o padrão axadrezado das minhas cuecas. O meu corpo quer desistir, quer deslizar pelo chão e afundar-se no esqueci-mento, mas eu não. Em vez disso, as minhas mãos agarram nas presilhas dos calções ainda sobre as coxas. Não consigo inspirar ar suficiente. Começo a hiperventilar e a ficar tonta. Coloco as mãos na parede mas não serve de nada quando o ataque de pânico me atinge na sua totalidade.

Podes apostar o que quiseres em como essa bandeira axadrezada vai ser

minha.

Acolho o som memorizado da voz dele. Deixo o seu ribombar permear--me como se fosse a cola de que necessito para me voltar a unir. A res-piração sai irregular por entre os meus lábios enquanto me tento agarrar à memória — àquele incrível sorriso e à travessura infantil dos seus olhos — antes de me ter beijado pela última vez. Levo os dedos aos lábios, espe-rando ligar-me a ele, com o medo do desconhecido a pesar-me no coração.

— Rylee? — A voz faz-me regressar ao presente e só quero que se vá embora. Quero que me deixe intacta com a minha memória do calor da pele dele, do sabor do beijo dele, da possessão no toque dele. — Rylee?

Batem à porta.— Hum, hum? — É tudo o que consigo dizer, porque a minha respira-

ção é forçada e irregular.— Sou eu, a Quin. — A voz dela é suave e oscilante e fico destroçada

ao perceber como está fraca. — Ry, por favor, sai daí…Estico-me e destranco a porta e ela empurra-a para a abrir, olhando-me

de modo estranho, com o rosto cheio de lágrimas e o rímel esborratado

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a enfatizar uma devastação latente nos seus olhos. Ela contrai os lábios e começa a rir, de uma forma quase histérica que, ao ecoar nas paredes de azulejos à nossa volta, transmite apenas medo e desespero. Ela aponta para os meus calções meio despidos e para as cuecas axadrezadas e continua a rir-se, com lágrimas a escorrer pelo rosto, formando um contraste estra-nho com o som que lhe sai da boca.

Começo a rir-me com ela. É a única coisa que consigo fazer. As lágri-mas não saem, o medo não diminui e a esperança hesita quando o primeiro riso se escapa dos lábios. Parece tão errado. Parece tudo errado e, por uns instantes, a Quinlan — a mulher que me odiou à primeira vista — aproxi-ma-se e envolve-me com os seus braços enquanto o riso dela se transforma em soluços. Soluços de medo descontrolado que contorcem as entranhas. O seu corpo magro treme enquanto a angústia se intensifica.

— Tenho tanto medo, Rylee — é tudo o que consegue dizer entre cur-tas respirações, mas é o que basta que ela diga porque eu sinto exatamente o mesmo. A derrota na sua atitude, a robustez da sua dor e a força do seu pulso refletem o medo que sou incapaz de expressar, pelo que me encosto a ela com tudo o que tenho. Precisando desta conexão mais do que tudo.

Abraço-a e acalmo-a o melhor que posso, tentando ser tão paciente quanto desejo que o sejam comigo. É muito mais fácil mitigar o deses-pero de outra pessoa do que enfrentar o meu próprio desespero. Ela tenta afastar-se, mas eu não a consigo largar. Não tenho forças para atravessar as portas e esperar pelas notícias do médico que tanto receio ouvir.

Aperto os calções e olho para cima para ver o meu próprio reflexo no es-pelho. Consigo ver as memórias assombrosas a passarem diante dos meus olhos. A minha mente apressa-se a mostrar-me um espelho retrovisor destruído, com o sol refletido nas suas margens partidas e manchadas de sangue, enquanto o Max exala o seu último suspiro. Em seguida, a minha mente agarra-se a uma memória mais feliz noutro espelho. Um utilizado no calor da paixão para demonstrar porque sou o suficiente para o Colton. Porque ele me escolheu.

— Vamos — sussurra, quebrando o meu transe enquanto me liberta, mas colocando a mão dela na minha cintura. — Quero estar lá se o médico aparecer.

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capítulo 2

O tempo aumenta. Cada minuto parece uma hora. Cada momento das três horas que se passaram parece uma eternidade. Cada som de portas a abrir deixa-nos a todos a tremer e afunda-nos a seguir

no mesmo negrume. O caixote de lixo transborda com copos de água va-zios. Os fatos-macaco já foram desapertados e atados à volta das cinturas enquanto a sala de espera começa a encher. Os telemóveis tocam inces-santemente com pessoas que tentam saber novidades. Mas ainda não há novidades.

O Beckett está sentado ao lado do Andy. A Dorothea está rodeada pela Quinlan de um lado e pela Tawny do outro. A sala de espera está repleta de murmúrios e a televisão soa baixinho nos meus pensamentos. Sento--me sozinha e, à exceção das constantes mensagens da Haddie, agradeço a solidão, pois permite-me não consolar nem ser consolada — a minha esquizofrenia aumenta a cada segundo que passa.

O meu estômago contorce-se. Tenho fome mas fico com náuseas só de pensar em comida. A minha cabeça está pesada mas aceito essa dor, aceito o tambor que ressoa dentro dela para tentar acelerar o tempo. Ou abrandá--lo: o que for melhor para o Colton.

O som eletrónico da porta. O som de passos. Nem abro os olhos desta vez.

— Tenho notícias sobre o Sr. Donavan — a voz arrepia-me. Ouve-se o barulho de pés apressados enquanto as pessoas se levantam e a sala é preenchida por ansiedade contida em antecipação do que vai ser dito.

O medo avassala-me. Não consigo ficar de pé. Não me consigo mexer. Estou tão petrificada pelas palavras que lhe vão sair da boca que me forço a engolir, mas continuo paralisada, tremendo.

Aperto as mãos contra a pele nua das minhas coxas, tentando usar a dor para apagar as memórias. Esperando que o passado não se repita — que não troque um carro desfeito com um homem que amo por outro.

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Ele aclara a garganta e eu respiro profundamente; rezando, desejando, precisando de algum tipo de apoio a que me agarrar.

— Deixem-me dizer-vos que os exames ainda estão a decorrer, mas o que podemos afirmar com certeza é que é claro para nós que o Sr. Donavan sofreu uma lesão por desaceleração súbita com uma rutura de um órgão interno devido à força com a qual embateu na vedação. A lesão ocorre por-que o corpo é forçado a parar, mas os órgãos continuam a mover-se devido à inércia. Do que pudemos observar…

— Em português, por favor — sussurro. A minha mente tenta com-preender o jargão médico, sabendo que se não estivesse imersa neste nevoeiro de incerteza seria capaz de o processar. Ele para perante o meu comentário e, embora não consiga levantar os olhos para olhar para ele, repito, mais alto. — Em português, por favor, doutor — o medo domina--me por completo. Ergo os olhos cautelosamente para os cruzar com os dele e a equipa vira-se para me olhar enquanto fico parada em frente ao médico. — Estamos todos bastante preocupados e, embora saiba o que está a dizer, essa terminologia está a assustar-nos bastante… — a minha voz desvanece e ele acena gentilmente — estamos demasiado emotivos para processar tudo isto agora… tem sido uma longa espera enquanto esteve lá dentro com ele… por isso, pode explicar-nos, por favor, o que se passa?

Ele sorri gentilmente, mas os olhos dele estão sérios.— Quando o Colton embateu no muro, o carro parou, o corpo dele

parou, mas o cérebro continuou em frente, embatendo contra o crânio. Felizmente, ele estava a usar um dispositivo HANS1 que ajudou a proteger a ligação entre a coluna e o pescoço, mas a lesão que resultou do embate continua a ser grave.

O meu coração e a minha respiração aceleram enquanto penso em mi-lhões de possibilidades diferentes.

— Ele vai…? — o Andy atravessa-se diante de mim para ficar de frente para o médico e faz a pergunta que não consegue terminar. O silêncio cai sobre a sala e o movimento nervoso de pés para enquanto todos aguarda-mos a resposta com a respiração interrupta.

— É o Sr. Westin, certo? — pergunta o médico enquanto estende a mão ao Andy que meramente acena com a cabeça. — Sou o Dr. Irons2. Não lhe

1 Dispositivo de segurança usado pelos pilotos de competições automobilísticas. O formato em U permite que se encaixe na nuca e ombros, ligando-se ao capacete e protegendo o pescoço de possíveis impactos. [N. do E.]

2 Iron em língua inglesa significa «ferro». [N. da T.]

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vou mentir… o seu filho teve duas paragens… o coração dele parou duas vezes durante o caminho até ao hospital.

Sinto que o fundo da minha alma me abandonou de vez ao ouvir estas palavras. Não me deixes. Por favor, não me deixes. Suplico silenciosamente, esperando que as palavras cheguem até ele nos confins deste hospital.

O Andy estende uma mão e aperta a da Dorothea.— Conseguimos estabilizar o coração após algum tempo, o que é bom

sinal, uma vez que estávamos com receio de que a artéria aorta tivesse rompido devido à força do impacto. Neste momento, sabemos que ele tem um hematoma subdural — o médico olha para cima e cruza os seus olhos com os meus antes de continuar. — O que significa que as veias rompe-ram e a área entre o cérebro e o crânio está cheia de sangue. A situação é duplamente complicada porque o cérebro do Colton está a inchar devi- do ao trauma do embate no crânio. Ao mesmo tempo, todo o sangue dentro do crânio está a fazer pressão sobre o cérebro, porque não tem forma de escapar para aliviar essa pressão — o Dr. Irons percorre toda a equipa com os olhos. — Neste momento, está relativamente estável, por isso estamos a prepará-lo para a cirurgia. É imperativo que a façamos para aliviar a pressão sobre o cérebro e parar o inchaço.

Vejo a Dorothea a esticar-se e a apoiar-se no Andy, o seu óbvio amor incondicional pelo filho intensifica cada uma das minhas emoções.

— Quanto tempo demora a cirurgia? Ele está consciente? Sofreu outras lesões? — O Beckett fala pela primeira vez, disparando rapidamente as per-guntas em que todos estávamos a pensar.

O Dr. Irons engole em seco e mexe os dedos ao olhar para o Beckett.— As outras lesões são menores comparativamente com a da cabeça.

Não está consciente nem ficou consciente em algum momento até agora. Está no habitual estado de coma que vemos neste tipo de lesões, murmu-rando incoerentemente, resistindo-nos, esporadicamente. Quanto ao resto, saberemos mais quando iniciarmos a cirurgia e virmos os danos que o san-gue provocou no cérebro.

O Beckett liberta o ar que tinha sustido e consigo ver os ombros dele a descaírem, embora não tenha a certeza se foi de alívio ou de resignação. Nenhuma das palavras do médico aliviou o peso que sinto na minha alma. A Quinlan avança e agarra na mão do Becks enquanto olha de relance para os pais antes de colocar a questão que todos tememos.

— Se o inchaço não parar com a cirurgia… — a voz dela é irregular, o Beckett deposita um beijo fraterno no topo da sua cabeça como forma

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de encorajamento. — … o que significa? O que estou a querer perguntar é, tendo em conta que está a falar de uma lesão no cérebro, qual é o prognósti-co? — A respiração dela é interrompida por um soluço travado na garganta. — Quais são as hipóteses do Colton?

O médico suspira alto e olha para a Quinlan.— Neste momento, antes de avançarmos para a cirurgia e de vermos se

existem lesões, não me sinto confortável em avançar com um prognóstico. — O suspiro estrangulado do Andy quebra o silêncio. O Dr. Irons avança e coloca uma mão no seu ombro até que o Andy olha para cima e cruza o olhar com o dele. — Estamos a fazer absolutamente tudo o que podemos. Temos bastante prática neste tipo de situações e estamos a dar ao seu filho todos os benefícios desse treino. Entenda que não vou falar em percenta-gens, não por ser uma causa perdida, mas porque necessito de ver mais para saber com o que estamos a lidar. Quando souber, podemos estabelecer um plano de ação e basearmo-nos nele. — O Andy acena-lhe subtilmente, passando uma mão sobre os olhos e o Dr. Irons olha para cima e verifica as caras de todos na sala. — Ele é forte e saudável, o que são fatores positivos a ter do nosso lado. É mais do que óbvio que o Colton é adorado por muitas pessoas… fiquem a saber que eu tenho conhecimento desse facto e que o tomo em consideração na sala de operações.

Dito isto, coloca um sorriso no rosto e sai da sala. Após a sua saída, ninguém se move. Ainda estamos em choque.

Estamos todos a deixar que a gravidade das suas palavras resvale para as falhas na nossa esperança. As pessoas começam a mover-se lentamente e a mudar de posição quando os pensamentos se misturam e as emoções tentam assentar.

Mas sou incapaz disso.Ele está vivo. Não morto como o Max. Vivo.A dor abafada de alívio que sinto não é nada comparativamente à pu-

nhalada afiada do desconhecido. Não é o suficiente para acalmar o medo que se instalou nas profundezas da minha alma. Começo a sentir as garras violentas da claustrofobia a queimarem-me a pele. Expiro longamente ten-tando reduzir a transpiração que goteja sobre o meu lábio superior e que desce sobre a minha coluna. A respiração sai-me dos pulmões sem fornecer oxigénio ao meu corpo.

As imagens voltam a disparar na minha cabeça. Do Max para o Colton. Do Colton para o Max. O sangue a sair lentamente das suas orelhas. Pelos cantos da boca. Salpicando todo o carro destruído. O meu nome em luta

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nos seus lábios. A sua súplica a assustar-me. Tudo gravado como uma mar-ca que me persegue para sempre.

Laivos de desassossego dão lugar ao pânico. Preciso de ar fresco. Preciso de uma pausa da opressão que inunda esta sala de espera. Necessito de cor e ressonância — algo cheio de vigor e de vida como o Colton — algo mais do que cores monocromáticas e memórias avassaladoras.

Levanto-me e saio a correr da sala de espera, ignorando o Beckett a cha-mar por mim. Cambaleio cegamente em direção à saída. Desta vez o som das portas a abrirem chama por mim e oferece-me uma pausa da histeria que extorque a minha esperança.

Fazes-me sentir, Rylee…

Cambaleio através das portas, a memória toca-me na alma como uma pena, mas atinge-me como um soco no estômago. Arquejo de forma audí-vel, com a dor a irradiar de cada sinapse. Respiro irregularmente, precisando de algo que me ajude a recuperar a fé de que necessito para encarar a rea-lidade de que o Colton pode não conseguir sobreviver à cirurgia. À noite. À manhã.

Sacudo a cabeça para afastar o veneno que me devora os pensamentos quando dobro a esquina do edifício e me deparo com uma multidão. Estão ali mais de cem câmaras a disparar ao mesmo tempo. O ressoar de pergun-tas parece uma tempestade tão ruidosa que recuo devido à onda de barulho. Sou imediatamente cercada, ficando com as costas apoiadas contra a parede enquanto microfones e câmaras são impulsionados em direção à minha cara para documentar a minha diminuição lenta de controlo da realidade.

— É verdade que estão a dar a extrema-unção ao Colton?As palavras ficam armadilhadas na minha garganta.— Como estão as coisas entre si e o Sr. Donavan?A fúria intensifica-se, mas sou arrebatada pela avalanche.— É verdade que o Colton se encontra no seu leito de morte com os pais

junto dele?Os meus lábios abrem e fecham, os meus punhos contraem-se, os meus

olhos ardem, a minha alma chora e a minha fé na humanidade desmorona--se. Sei que pareço um veado em frente aos faróis de um carro, mas estou encurralada. Sei que, se pensasse, iria sentir as garras da claustrofobia den-tro de mim, sinto que me apertam a traqueia quando as mãos dos media me retiram o ar. Respiro apenas em doses pequenas. O céu azul gira sobre mim enquanto a minha mente se deforma num redemoinho lento, a escuridão começa a infiltrar-se enquanto a minha consciência desvanece.

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Precisamente quando estou prestes a cair naquela letargia agradável, braços fortes agarram-me e evitam que eu me despedace no chão. O meu peso embate contra o Sammy como um comboio de carga e as memórias da última vez que caí nos braços de um homem passam-me pela cabeça. Ocor-rem-me imagens agridoces de tabuletas para leilões perdidas e portas de armários emperradas. Olhos de um verde vibrante e um sorriso arrogante e confiante.

Único. Rebelde. Ousado.A voz do Sammy atravessa-me a mente nublada enquanto critica os jor-

nalistas.— Afastem-se! — resmunga enquanto suporta o meu peso morto

com a mão à volta da cintura. — Daremos notícias quando as soubermos. — Os flashes voltam a incendiar a noite.

Novamente, o som de portas a abrir, mas desta vez não me retraio. O terror no interior do edifício é muito mais palpável do que o que está no exterior. A minha respiração começa a normalizar-se lentamente e o meu coração a desacelerar. Sou empurrada para uma cadeira e, quando olho para cima, vejo o Sammy a olhar para mim à procura de algo.

— O que raio pensava que estava a fazer? Eles podiam tê-la comido viva — afirma. Esta flagrante exibição de emoção vinda de um guarda-costas geralmente impassível ajuda-me a perceber o erro que cometi ao ir lá fora. Ainda estou a tentar adaptar-me ao mundo bastante social do Colton; sinto--me horrível porque enquanto estava na sala de espera rodeada por todos, o Sammy devia estar cá fora sozinho a garantir que nos deixavam em paz e que ninguém nos perturbaria.

— Desculpe, Sammy — suspiro. — Só precisava de apanhar um pouco de ar e… desculpe.

Mostra preocupação nos olhos.— Está bem? Já comeu alguma coisa? Quase desmaiou ali. Acho que

precisa de comer alguma…— Estou bem. Obrigada — digo enquanto me ergo lentamente. Acho

que o surpreendo quando lhe aperto a mão. — Como está você, Sammy?Encolhe os ombros despreocupadamente, embora o gesto indique mais

do que isso.— Desde que ele esteja bem, eu estou bem.Ele acena com a cabeça e regressa ao seu posto às portas do hospi-

tal antes de eu poder dizer o que quer que seja. Os meus olhos seguem os seus movimentos durante um instante, ouço os comentários insensíveis

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da imprensa a repetirem-se na minha mente, enquanto reconstruo a cora-gem para regressar à sala de espera.

Fecho os olhos durante um momento. Permito-me sentir algo mais do que o entorpecimento que consome a minha alma. Tento arrancar da pro-fundeza do meu desespero o som do riso dele, o sabor do beijo dele, até a sua natureza teimosa e o raciocínio firme — algo que reajuste as costuras do meu coração que o amor do Colton voltou a juntar.

Inconsequente, Rylee. Nunca poderias ser inconsequente.

A memória sussurra-me na mente ajudando a reacender a esperança. Respiro fundo e forço-me a percorrer o longo corredor no fim do qual to-dos esperam impacientemente. Acabo de passar pela sala dos enfermeiros quando ouço o nome do Colton a ser mencionado por duas enfermeiras viradas de costas para mim. Abrando o passo, tentando ouvir alguma infor- mação. Tento impedir a minha mente de se inquietar com a ideia de estarem a mentir-nos a respeito da gravidade da situação, quando ouço as palavras que expulsam o ar dos meus pulmões. Fazem o meu coração parar. Provo-cam um calafrio em ricochete pelo meu corpo.

— Quem está na Sala de Operações 1 com o Sr. Donavan?— É o Dr. Irons que está à frente do caso.— Porreiro, podes crer que se eu pudesse escolher alguém para me

operar nestas circunstâncias, seria sem dúvida o Homem de Ferro.Homem-Aranha.Arquejo e as enfermeiras viram-se para me observarem. A mais alta das

duas avança e inclina a cabeça.— Posso ajudá-la?Batman.— O que é que chamou ao Dr. Irons?Super-Homem.Ela olha para mim e a sua sobrancelha ergue-se levemente.— Refere-se à nossa alcunha para o Dr. Irons?Homem de Ferro.Só consigo acenar com a cabeça porque a minha garganta está sufocada

de esperança.— Oh, ele é conhecido por aqui como o Homem de Ferro, querida.

Precisa de alguma coisa?Homem-Aranha. Batman. Super-Homem. Homem de Ferro.Abano a cabeça mais uma vez e dou três passos em direção à sala de

espera, mas encosto-me a uma parede e deslizo até ao chão, assoberbada

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pela esperança, dominada pela presença dos adorados super-heróis do Colton.

Uma obsessão da infância tornou-se, agora, numa fixação cheia de espe- rança em idade adulta.

Descanso o meu rosto sobre os joelhos dobrados agarrando-me à ideia de que esta coincidência é mais do que apenas isso. Balanço a cabeça para a frente e para trás, pronunciando os seus nomes num cântico sussurrado que pela primeira vez é proferido com absoluta reverência.

— O Colton costumava dizer isso a dormir, quando era pequeno — a voz do Andy agita-me e vejo-o deslizar pela parede ao meu lado, exalando forte- mente pelos lábios. Movo-me ligeiramente para poder olhar para ele. Parece mais velho desde que a corrida começou, esta manhã. Os olhos dele trans-mitem uma dor controlada e a boca tenta erguer um sorriso suave mas falha redondamente. O homem que conheço como sendo cheio de vida foi saqueado na sua exuberância.

— Não ouvia isso há imenso tempo. Na verdade, nunca mais me lem-brei disso até a ouvir dizê-lo — ri entredentes suavemente, colocando uma mão sobre o meu joelho enquanto estica as suas pernas.

— Andy… — o nome dele é apenas um murmúrio nos meus lábios enquanto o vejo a batalhar contra as emoções. Quero desesperadamente falar-lhe dos sinais, da ocorrência aleatória dos super-heróis adorados pelo seu filho, mas ele vai achar que estou a perder o juízo tal como temo que o Beckett esteja a pensar.

Tal como eu própria receio.— Surpreende-me que ele lhe tenha falado sobre eles. Costumava ser

o código secreto que entoava em pequeno quando tinha um pesadelo ou estava assustado. Nunca explicou o porquê de estes quatro super-heróis lhe servirem de conforto — olha-me, deixando morrer o sorriso que tinha. — A Dottie e eu pensávamos que ele esperava que estes super-heróis o sal- vassem de…

As palavras flutuam entre nós e transformam-se em perguntas que ambos queremos colocar mas nenhum de nós as expressa. O que saberá o Andy que eu não saiba e vice-versa? Seca uma lágrima com as costas da mão e exala um suspiro agitado.

— Ele é forte, Andy… ele vai ficar… ele tem de ficar bem — digo final-mente, quando confio na determinação na minha voz.

Ele apenas acena com a cabeça. Vemos um grupo de médicos a passar por nós rapidamente e o meu coração aloja-se na garganta, preocupada que

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esteja relacionado com o Colton. Ele passa uma mão sobre o rosto e observo o amor a preencher-lhe os olhos.

— Da primeira vez que o vi, partiu-me o coração e tomou posse dele com um simples olhar — aceno-lhe com a cabeça, para que continue por-que entendo o que ele está a dizer, o filho dele fez o mesmo comigo.

Capturou-o, roubou-o, partiu-o, sarou-o e ganhou-o para sempre.— Estava a rever uma cena na minha caravana. Tinha sido uma longa

noite. A Quin estava doente e tinha ficado acordado a noite toda — abana a cabeça e olha-me nos olhos durante um instante antes de olhar para bai-xo, para se focar na bracelete do relógio em que tem estado a remexer. — Já estava atrasado para entrar em cena. Abri a porta e quase tropecei nele — faz uma pausa enquanto tenta fazer desaparecer as lágrimas que lhe preenchem os olhos. — Recordo-me de dizer asneiras alto e em bom som e de ver a sua pequena figura dar um salto para trás, cheia de medo, reação que não compreendi vinda de uma criança. Ele recusou-se a olhar para mim por mais meiga que a minha voz fosse.

Dou-lhe a mão, apertando-a para que ele saiba que conheço os demó-nios do Colton sem que ele os tivesse revelado. Posso não saber os porme-nores, mas já vi o suficiente para perceber a essência.

— Sentei-me no chão ao lado dele e esperei que ele percebesse que não lhe ia fazer mal. Cantei a única canção de que me lembrei — ri-se. — Puff

the Magic Dragon. Da segunda vez, ele ergueu a cabeça e, finalmente, olhou para mim. Meu Deus, ele roubou-me o coração. Tinha os maiores olhos verdes que eu já vira naquele rosto pequeno e pálido. E olharam para mim com tanto medo… tanto mau pressentimento… que tive de me controlar para não o abraçar e confortar.

— Nem imagino — murmuro, começando a afastar a minha mão mas parando quando o Andy a aperta.

— Ao início, não me falou. Tentei de tudo para o levar a dizer-me o seu nome ou o que estava ali a fazer, mas nada consegui. Na verdade, o mundo parou e tudo deixou de ter importância (eu estar atrasado, o dinheiro des-perdiçado, tudo) porque estava hipnotizado pelo rapazinho frágil cujos olhos me diziam que tinha visto e vivido demasiado na sua curta vida. A Quinlan tinha seis anos na altura. O Colton era mais pequeno do que ela, por isso pensei que tivesse cinco. Fiquei em choque quando a polícia, mais tarde nessa noite, me disse que ele tinha oito anos.

Tento engolir o inchaço que sinto na garganta enquanto ouço os pri-meiros momentos na vida do Colton em que recebeu amor incondicional.

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A primeira vez em que lhe foi dada uma vida de possibilidades em vez de uma vida de medo.

— Acabei por lhe perguntar se tinha fome e ele esbugalhou logo os olhos. Não tinha muito na caravana de que um miúdo pudesse gostar, mas tinha um Snickers e tenho de admitir — diz com uma risada —, queria mesmo que ele gostasse de mim… por isso pensei: «Que miúdo não se deixa tentar por um doce?».

Sorrio com ele, sabendo que o Colton come um Snickers antes de cada corrida. Que ele comeu um Snickers hoje. O meu peito aperta-se com o pensamento. Aconteceu tudo há apenas algumas horas? Parece ter sido há dias.

— Sabes, eu e a Dottie falámos na possibilidade de termos mais filhos… mas eu tinha decidido que a Quin chegava para nós. Bom, devo dizer que ela teria gostado de ter mais filhos, mas eu estava bem com um. Caramba, tínhamos vidas ocupadas com imensas viagens e tínhamos sorte por ter-mos uma rapariga saudável, como é que podíamos pedir mais? A minha carreira estava a subir em flecha e a Dottie também aceitava uns papéis, quando lhe apetecia. Mas, depois daquelas poucas horas com o Colton, não hesitei nem por um segundo. Como poderia eu afastar-me daqueles olhos e do sorriso que eu sabia estar escondido entre o medo e a vergonha? — Escorrega-lhe uma lágrima pela face, a sua preocupação com o filho, então e agora, estampada no rosto. Olha para mim com os olhos cinza cheios de emoções. — Ele é a pessoa, o homem, mais forte que alguma vez conheci, Rylee — estremece com um soluço. — Preciso que também o seja agora… não posso perder o meu rapaz.

As palavras dele ecoam no mais íntimo do meu ser, porque eu entendo a angústia de um pai assustado pela iminente perda de um filho; o medo instalado que não se quer admitir, mas que espreme cada parte do coração. Encho-me de compaixão por este homem que deu tudo ao Colton e, ainda assim, o entorpecimento dentro de mim encarcera as minhas lágrimas.

— Nenhum de nós pode, Andy. Ele é o centro do nosso mundo — sus-piro numa voz fraca.

O Andy inclina a cabeça para o lado, perscruta-me e estuda-me por um momento.

— Sinto medo de cada vez que ele entra naquele carro. Toda a santa

vez… mas é o único momento em que o vejo a libertar-se do peso do pas-sado… em que o vejo ultrapassar os demónios que o assombram — aperta a minha mão até que o fito e vejo a sinceridade nos seus olhos. — O único

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momento até recentemente, na verdade. Até ver como fala, se preocupa e age… consigo.

Deixo de respirar e as lágrimas surgem pela primeira vez, mas não caem. Depois de ter a mãe do Max, a Claire, a odiar-me durante tanto tem- po, a aprovação implícita do pai do Colton é colossal. Soluço uma vez, tentando conter o tornado de emoções que rodopia dentro de mim.

— Eu amo-o — é tudo o que consigo dizer. Em seguida, é tudo em que consigo pensar. Eu amo-o e posso nunca vir a ter a oportunidade de lho mostrar, agora que ele admitiu sentir o mesmo por mim. Agora encontro--me num abismo de circunstâncias tão fora do meu controlo que temo não voltar a ter a hipótese de o fazer.

A voz do Andy afasta-me do meu ataque de pânico crescente.— O Colton disse-me que o encorajou a procurar a mãe biológica.Olho para baixo e desenho círculos no meu joelho com a ponta do dedo,

cautelosa pelo facto de esta conversa poder tomar um de dois caminhos: o Andy pode estar agradecido por eu ter tentado ajudar o filho a superar o seu passado ou pode estar chateado e pensar que estou a tentar afastá-lo dos pais.

— Agradeço-lhe por isso — exala suavemente. — Penso que ele sente falta de algo e talvez saber o que é feito dela o ajude a sentir-se bem. Só o facto de ele falar sobre isso, de abordar o assunto, é um grande avanço. — Coloca um braço sobre o meu ombro e puxa-me em direção a ele, e a mi-nha cabeça descansa sobre o seu ombro. — Por isso, obrigado por o ajudar a encontrar-se a si mesmo de várias formas.

Aceno com a cabeça em reconhecimento. Não sei o que dizer perante as suas palavras. Ficamos sentados desta forma durante algum tempo, acei-tando e oferecendo conforto um ao outro quando apenas sentimos vazio por dentro.

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