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Para citar esse documento: AMATE, Elisson Tiago Barros. Transbordança: interseções entre dança, política e cinema no ciberespaço da web. Anais do V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança. Natal: ANDA, 2017. p. 1115-1140. www.portalanda.org.br

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Para citar esse documento:

AMATE, Elisson Tiago Barros. Transbordança: interseções entre dança, política e cinema no ciberespaço da web. Anais do V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança. Natal: ANDA, 2017. p. 1115-1140.

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TRANSBORDANÇA: INTERSEÇÕES ENTRE DANÇA, POLÍTICA E CINEMA NO CIBERESPAÇO DA WEB

Elisson Tiago Barros Amate* (UFBA)

RESUMO: Como as experiências políticas dos corpos dançantes têm alcançado o ciberespaço da internet? Ao investigar interseções de linguagem entre cinema e dança para produções da web, pretende-se destacar processos criativos que assinalam a dança como testemunha da política, da vida e da experiência. A transbordança surge nessa identificação de experiências dialógicas em dança e política que recusam a relação figura-fundo da arte panfletária. Como conceito, a transbordança transborda a experiência em dança, na medida em que se relaciona com outros dispositivos e linguagens a fim de provocar proposições estético-políticas tanto no espaço público quanto na internet. Assim, multiplicam-se as telas da relação corpo-câmera quando os corpos dançantes estão simultaneamente nas ruas, em dispositivos portáteis como celulares e na rede mundial de computadores. A partir das reflexões de Marina Guzzo no artigo Arte, Dança e Política, este texto analisa três diferentes projetos de videodança para a internet: 100 lugares para dançar, Une minute de danse par jour e Aloka das Américas.

PALAVRAS-CHAVE: transbordança; videodança; arte; política; dispositivos

ABSTRACT: How does the political experiences of dance bodies have reached the cyberspace of the internet? Investigating the intersections of language between cinema and dance for web productions, it purposes to draught creative processes that signalize dance as a witness of politics, life and experience. The concept of overflow dance arises in this identification of dialogical experiences in dance and politics that refuse the relation figure-fund in pamphleteer art. As a concept, overflow dance overrun the

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experience in dance, in the means that relates itself to other devices and languages in order to raise aesthetic-political propositions in the public space and internet. In this way, the screens of the body-camera’s relation multiply itself when the dancing bodies are simultaneously on the streets, on portable devices such as cell phones and in the world wide web. From Marina Guzzo's reflections on the article Art, Dance and Politics, this text analyzes three different videodance projects for internet: 100 lugares para dançar, Une minute de danse par jour and Aloka das Américas.

KEYWORDS: overflow dance; videodance; art; politics; devices

Ao observar o contexto de expansão tecnológica na internet com o

advento de complexas e velozes cadeias de produção de conteúdo para

websites, plataformas de vídeo e redes sociais, esta pesquisa tem o objetivo de

analisar investigações em videodança, linguagem histórica de uma

impossibilidade dançada (PONSO, 2013), que têm adotado o ciberespaço da

internet (LEVY, 1999) como resultado final de seus processos criativos, a fim

de potencializar politicamente corpos dançantes e suas percepções

contemporâneas (SUQUET, 2011) no espaço público. Para tanto, há de se

pensar nas interseções entre as linguagens da dança contemporânea, do

cinema experimental; de dispositivo (PARENTE, 2007) e da internet nas

proposições estético-políticas dos artistas investigados.

Uma apropriação política da dança, nesses termos, é o que permeia a

atitude geral dos trabalhos analisados neste artigo e, ademais, segundo a

pesquisadora Marina Guzzo (2015), caracterizaria o discurso da dança

contemporânea hoje. “Ou seja, uma atitude situada a partir de seu próprio

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ponto de vista da realidade, com um engajamento crítico nas maneiras de fazer

dança, são características presentes nessa forma de arte” (GUZZO, 2015, p.

4). Interessa, entretanto, não só a disposição política das performances e

danças que alterem e reflitam maneiras de entender o mundo (GUZZO, SPINK,

2015), mas aproximações de múltiplas linguagens que constituem essa dança

filmada para a internet. Este corpo que dança para redes sociais ou canais de

vídeo, dança com uma câmera para depois se transformar em imagem em

movimento, ocupando telas de dispositivos celulares e/ou computadores.

A proposição de Marina Guzzo (2015) no artigo Arte, dança e política(s)

propõe uma base teórico-crítica para pensar as relações entre dança e política

no cenário de arte contemporânea, conectando-se, por conseguinte, à proposta

interdisciplinar desta pesquisa em vídeos de dança no ciberespaço da web.

Transbordança surge desta amálgama, numa tentativa de apontar caminhos

em dança contemporânea oriundos das relações que transbordariam dança,

corpo e movimento, partindo para telas e páginas da internet. Mas, sobretudo,

para a construção de discursos políticos que ocupam a cidade a partir dessas

danças, apontando o corpo como direito fundamental de ocupação do espaço

público e de produção de arte urbana. Neste sentido, é uma proposição que

também aproxima a dança dos estudos contemporâneos da performance

(PHELAN, 1997), entretanto, sem condensá-los, pois a performance adentra

questões ontológicas a partir de uma relação oposta à reprodutibilidade. Nesta

pesquisa, porém, o interesse de investigação está especificamente num corpo

dançante que se relaciona com as câmeras e o ciberespaço da web, portanto,

com a reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1975). E é este corpo em vídeo,

transformado em imagens em movimento, que propõe tensões políticas com o

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Estado em suas diversas estratégias sociais de controle, ao reiterar seu ato de

resistência em relação aos dispositivos (DELEUZE, 1999), convidando, então,

outros corpos para dançar no espaço público, seja institucional ou não (rua).

Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. [...] A única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é — e ela o é por natureza— ou se torna um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. A contrainformação só é efetiva quando se torna um ato de resistência. Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência. (DELEUZE, 1999: 12, 13)

Se pensada enquanto resistência, a experiência de dançar para a

câmera tensiona os imbróglios do controle social na medida em que estes

atravessam historicamente a linguagem audiovisual tanto nas interseções com

a dança quanto nas variações de formatos na web. Mas não só, as

videodanças analisadas nesta pesquisa são experimentos de resistência de

vida, dos corpos em relação aos dispositivos (DELEUZE, 1999). “A resistência

na arte tampouco é uma forma metafórica para expressar um sentido físico de

resistência. Ela implica designar a relação íntima entre uma obra de arte e uma

ideia política” (GUZZO, 2015: 11), visto que uma tensão entre estas é o que

cria proposições e organizações para o mundo. O conceito de transbordança

acompanha, então, a proposta política de Guzzo (2015) em dissonância às

formas de arte panfletária, pensadas neste artigo sob a forma de dança-

panfleto: “como figura e fundo, a arte se desenvolve em uma situação política e

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histórica específica [...] indica a política como uma forma de manipulação ou

inspiração para a obra” (GUZZO, 2015, p. 4). Na dança-panfleto, a metáfora

figura-fundo coloca a relação de dança e política em termos de plano de fundo

ou de forma e conteúdo. A ideia de um artista que, por exemplo, dança por

uma causa ou cuja causa faz a dança, numa espécie de

mimese/representação. Na transbordança, em contrapartida, as experiências

do corpo dançante seriam, a priori, imprescindíveis para pensar diálogos com a

política. “A arte como testemunha narrativa da política, da vida e da

experiência. [...] arte e a política estariam relacionadas pelas formas narrativas

e discursivas de estar no mundo, uma como testemunha da outra, em

processos de dialogia e coconstrução” (GUZZO, 2015, p. 4).

Segundo Guzzo, nesse formato, as construções são dialógicas e

performáticas, caracterizando-se politicamente não pelas mensagens

transmitidas ou pela representação de estruturas sociais (RANCIÉRE, 2005),

mas por uma criação de novos espaços-tempo, que se rompem ou se

conformam com outros. Isto daria visibilidade a formas de ocupação do espaço

por meio da dança, tanto pelas funções de reunir quanto de isolar um corpo

político, em constante dialogia na rua. Afinal, a experiência estética de dançar

fora de espaços consolidados pela burguesia enquanto circuito de

entretenimento produz vertigens. O corpo que dança se vê então, no cotidiano,

próximo ou solitário, visível ou invisível, benquisto ou odiado. Entende-se esta

proposta de afetação em Guzzo (2015) na medida crítica pensada por Walter

Benjamin acerca das possibilidades de uma arte contemporânea atravessada

por poderosos avanços tecnológicos no século XX.

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Da chapa fotográfica, pode-se tirar um grande número de provas; seria absurdo indagar qual delas é autêntica. Mas, desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear no ritual, ela se funda, doravante, em outra forma de práxis: a política (BENJAMIN, 1975, p. 17)

Configurando formas distintas de entender a relação entre política e arte

historicamente, o conceito de transbordança se fundamenta como um desses

canais de evidência estético-política das obras investigadas. Está presente,

portanto, em processos cuja dança transborda de si mesma, seja por um

acontecimento no espaço público ou pelas ressignificações da dança com

outras linguagens. Afinal, é tanto uma dança na rua, imprevisível pela própria

condição, quanto uma videodança que está na internet convidando o

espectador a dançar e ocupar a cidade. Se o convite for aceito ou

compreendido como tal, a dança transborda mais uma vez, produzindo redes

de corpos dançantes no ciberespaço. Este termo “especifica não apenas a

infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo

oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que

navegam e alimentam esse universo” (LÉVY, 1999: 17). Portanto, se há

acontecimentos na rua, há, obviamente, acontecimentos na web, visto que

experiências estético-políticas também estão em telas de computadores. O

corpo dançante na web não está isolado, mas dando-se a múltiplas e possíveis

relações.

Pensada num esquema de retroalimentação política, a transbordança

torna-se um conceito que produz canais de articulação em dança

contemporânea na internet, no contexto de uma ciberdança. Mais

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especificamente, de uma dança que se dá no ciberespaço da web: “a

ciberdança é um exemplo de obra híbrida eletrônica, constituída do encontro

entre as cibertecnologias e a arte da dança” (PIMENTEL, 2000: 172).

Observando as variáveis dessa proposição interdisciplinar entre linguagens, a

pesquisa se encaixa, finalmente, no universo dos processos criativos e

configurações em dança, relacionando-se às interações políticas e às

interfaces da dança contemporânea com os dispositivos de poder consolidados

pelo Estado, pela economia, pelos conhecimentos científicos e pela tecnologia.

A proposta de analisar três páginas de diferentes artistas se evidencia

no interesse de apontar algumas variações estabelecidas nesta relação corpo-

câmera-internet dentro da noção política de transbordança. Como cada canal

selecionado produz uma variedade extensa de vídeos, a análise recai sobre o

projeto estético-político dos artistas, atravessando um panorama que permeia o

conjunto da obra de cada um. Nos dois primeiros projetos, a proposição

teórico-metodológica se relaciona com as interseções do cinema de dispositivo

no ciberespaço e um pensamento em dança contemporânea, utilizando-se de

métodos de coletas de dados específicos da internet, com a reunião de

hiperlinks, entrevistas, materiais videográficos, etc. Outro método

imprescindível é a análise fílmica das obras e do contexto de sua produção.

A arista-pesquisadora Marina Guzzo retorna a esta investigação com o

projeto 100 lugares para dançar, que reúne uma centena de videodanças num

website específico do canal. Constitui-se em planos-sequência (em sua

maioria, não há cortes) filmados com várias pessoas dançando por pontos

diversos das cidades de Santos, São Paulo e Rio de Janeiro, numa duração de

pouco mais de um minuto, cada. A coletânea de experimentos propõe danças

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que ocupam variados espaços da cidade, reiterando questões que atravessam

a exclusão dos indivíduos dentro dos projetos urbanísticos das metrópoles. “A

falta de espaços coletivos e de possibilidades de posicionamento gera [...]

incerteza, insegurança e falta de garantia, [...] gera um impedimento a que haja

encontros” (GUZZO, 2015: 6). Segundo a pesquisadora, se as pessoas não

correm os riscos necessários para que uma ação política ganhe força, os

engajamentos civis desaparecem.

Imagem1

Imagem2

Imagem3 Imagem4

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Imagem5

A decorrência de tal fragmentação da coletividade, o espaço urbano

reverbera isolamentos sobre os corpos. Em 100 lugares para dançar1 os

espaços se tornam infinitos e aos mesmo tempo vazios (cem lugares ou sem

lugares?). Assim, os experimentos em vídeo que transbordam para a internet

projetam a (im)possibilidade de recriar presenças em espaços cujos

contextos especulativos são a norma, convidando a ocupações cotidianas,

sem torná-las úteis a algum propósito que não a resistência dançante. Se

não há utilidade no corpo que dança, o sentido de não encerrar as

performances numa informação reconfigura as ideias daquilo que é estar

numa rua, numa escada, numa praia. Quaisquer lugares são lugares para

dançar. Num tom por vezes irônico e pueril, Guzzo brinca com o pressuposto

de impossibilidade para dançar na rua, com as ausências na pressa diária,

com a carência de relações entre os corpos da metrópole, provocando 1“Trata-se de um estudo de improvisação, no qual a superfície do corpo - feita das roupas, das cores e dos cabelos - contorna a dança que é concebida no instante da sua execução. É do encontro com as pessoas, prédios, muros, barcos, [...] ruínas e sonhos que essa dança desvenda a cidade. [...] Lugares onde o corpo (des)especula [...] e se dissolve entre a memória do futuro e o risco do passado. Como artistas, encontramos a possibilidade de dar visibilidade à contradição da falta de espaços e possibilidades culturais da cidade, em oposição à pujança econômica e especulativa do mercado. Talvez porque somos estrangeiros, talvez porque ainda há muito que conhecer, talvez porque a dança tem espaços impensáveis. Vamos atrás deles, com a câmera e o corpo na mão”. Texto descritivo disponível em < http://100lugaresparadancar.org/100-lugares-para-dancar.> Acesso em: 31/08/2017.

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danças que escapem à mimese social cotidiana. E, se “a dança é o que

suspende o tempo no espaço” (BADIOU, 2002: 84), ela precede um nome ou

uma inscrição para o acontecimento, precedendo também a noção de tempo

na marcação numérica dos dias em relógios e dispositivos eletrônicos que

atribuem sentido à especulação nas metrópoles.

É esquecimento, porque é um corpo que esquece sua prisão, seu peso. É um novo começo, porque o gesto da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo. Brincadeira, é claro, pois a dança liberta o corpo de qualquer mímica social, de qualquer coisa séria, de qualquer convenção (BADIOU, 2002: 80)

Se para o filósofo francês Alan Badiou a dança equivale ao acontecimento e precede uma denominação, assim como espaço precederia o tempo, ela também seria metáfora do pensamento quando antecede a nomeação. Um acontecimento que ainda não foi fixado, uma indecisão, um ter e ao mesmo tempo “não-ter” lugar. Assim, o corpo que dança não estaria inscrito, determinado, mas em constante desaparição e reaparição. Numa perspectiva de corpo-pensamento, a outra investigação em videodança que se encaixa na mesma ideia de acontecimento, ao passo que reúne os princípios estético-políticos de uma transbordança, é Une minute de danse par jour2 (Um minuto de dança por dia), projeto hospedado na plataforma

2Vous qui suivez mes danses depuis quelques jours, quelques semaines, quelques mois, vous savez combien mon engagement est lié à un certain état de violence du monde et à l'envie d'agir au quotidien, depuis les attentats de janvier 2015, pour une poésie en acte, d'œuvrer pour la vie, pour des solidarités, pour plus de douceur entre les catégories et les corps. Depuis les événements tragiques du 13 novembre 2015, cet engagement est pour moi plus que jamais nécessaire. Mais danser devient très difficile dans ces circonstances. Chaque jour, je ne sais pas quelle danse je vais bien pouvoir faire, mais je pense qu'il faut plus que jamais être ensemble sur des modes sensibles et bienveillants qui accueillent nos diversités. Alors je danse. Je danserai encore aujourd'hui une petite danse de rien, un battement d'ailes de papillon, une goutte d'eau en regard du reste. Je danserai pour nous, pour le monde d'interrelations éthiques dans lequel j'ai envie de vivre. À tout à l'heure.

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Vimeo3. Ao concentrar quase 1000 vídeos na web dançando por várias cidades européias, em espaços públicos e privados, urbanos ou não, a artista francesa Nadia Vadori-Gauthier, doutora em Estética pela Universidade Paris VIII, propõe um resgate da sensibilidade cotidiana ao dispor um minuto do dia para a dança, exaltando a experiência do corpo em contraponto ao estado calamitoso de violência por que passa a Europa após as séries de atentados terroristas.

No contexto conflituoso em que se encontra Paris, cidade onde reside e

filma a maior parte dos vídeos, seu projeto surge em janeiro de 2015, a

princípio como uma reação ao ataque terrorista à redação do jornal Charlie

Hebdo. Sob o slogan aparentemente publicitário de Je suis Paris (Eu sou

Paris), Nadia se opõe às violências reproduzidas desde então na França,

como os ataques subsequentes de novembro de 2015 (além dos mais

recentes, totalizando dez), posicionando-se contra a violência numa

perspectiva cotidiana de dança pela cidade. A configuração dos vídeos tem

duração de pouco mais de um minuto em plano sequência (não há cortes

entre as sequências de movimento), em experimentos de danças que se

relacionam com pessoas, animais e plantas por diversos espaços, desde

praias, parques e árvores, até ruas, restaurantes, trens, museus, etc. A priori,

os vídeos poderiam ser considerados uma documentação das performances

da artista. Entretanto, como Nadia Gauthier dança para a câmera e seleciona

(17/11/2015)”. Texto disponível em: < http://www.uneminutededanseparjour.com/>. Acesso: 31/08/2017

3Plataforma online de hospedagem de vídeos. Endereço eletrônico: < https://vimeo.com/>.

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os trechos dos vídeos, a interseção de seus experimentos se dispõe na

relação do acontecimento para as telas.

Imagem 6 Imagem 7

Imagem 8 Imagem 9

Imagem 10 Imagem 11

Amparada pelo pensamento de Friedrich Nietzsche em Assim Falou

Zaratustra, a artista assina o fim de seus vídeos com a seguinte frase: “Et

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que l'on estime perdue toute journée où l'on n’aura pas dansé au moins une

fois”4. Se os dias são perdidos quando não dançados, talvez seja porque,

assim como Zaratustra, Nadia prevê na dança cotidiana o principal

enfrentamento do inimigo maior, o espírito do peso ao qual o profeta fictício

de Nietzsche alude. “A dança é, antes de mais nada, a imagem de um

pensamento subtraído de qualquer espírito de peso” (BADIOU, 2002: 79).

Neste caso, o espírito do peso se materializa na violência terrorista e

indiferença cotidianas de Paris, suas segregações e contextos latentes.

Em 2017, seu projeto desencadeou uma residência artística no centro

Paris Réseau Dance depois de dois anos consecutivos de experimentação

diária. A expansão de Une minute de danse par jour se deu, sobretudo, no

ciberespaço, pois os vídeos de Nadia Gauthier circularam inúmeras vezes

por redes sociais como o Facebook (onde possui mais de 10.000 seguidores

que acompanham suas publicações) e por plataformas como o Vimeo. Além

da perspectiva estético-política de ocupação dos espaços urbanos e

reconfiguração das relações cotidianas, as performances cotidianas da

artista francesa se inserem no universo da transbordança sobretudo no

momento que ela pede ao público de seus vídeos que compartilhe

experiências diárias de dança, sejam filmadas em casa ou na rua.

Nessa perspectiva, a ideia da rede de corpos que dançam na internet se

aprofunda para dar vazão aos ruídos de resistência a que alude o filósofo

Gilles Deleuze, quando fala prioritariamente do cinema em O ato de criação:

4Livre tradução do autor: “E todos os dias serão perdidos quando não tiver dançado sequer uma vez”. Data: 31/08/2017

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“a arte é aquilo que resiste [...]. Todo ato de resistência não é uma obra de

arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte

não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba

sendo” (DELEUZE, 1999: 13). Internacionaliza-se também, na medida em

que uma vasta diversidade de público assiste a Nadia Gauthier e compartilha

publicamente vídeos de dança. Tal façanha representa no ciberespaço os

inúmeros corpos espalhados pelo mundo que reconfiguram suas relações

cotidianas e urbanas a partir da dança.

Ao trazer para o debate os caminhos da internacionalização dos

corpos via ciberespaço, seja pelo contexto da globalização, seja pelas redes

de resistência que subtraem do consumo suas formas de controle,

chegamos ao ponto em que a transbordança aponta para outros formatos de

dança em suas interseções tecnológicas. Quando apresenta sua pesquisa

Formas do dançar o impossível: um salto do cinema de 1930 em direção à

videodança, a brasileira Luciana Ponso alerta para os paradigmas originários

da linguagem intercedida entre a dança e o cinema, ao descrever as

transposições para a tela de ações que se tornam acontecimentos visuais,

por vezes impossíveis de serem executadas apenas pelo corpo, em suas

limitações espaciais. Se tal perspectiva evidenciada pela montagem

cinematográfica, como faz Maya Deren no visionário Meshes of the afternoon

(1943), expande os processos criativos na relação corpo-câmera, quando

isso alcança o ciberespaço, a partir da ciberdança, os experimentos ganham

novas possibilidades de enredamento: há vários corpos dançantes

conectados entre si, produzindo resistência na web.

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Dançar o impossível designa o que a tela autoriza à dança: trânsitos impossíveis entre as relações espaço-temporais. Podemos estender essa expressão ao diálogo entre dança e tecnologia para além da relação dança e cinema: o uso cênico de projeções, o uso de softwares ao vivo, espetáculos que acontecem simultaneamente em lugares distintos são exemplos do que a dança vem utilizando para se constituir no cenário cultural vigente [...] por meio de uma obrigatória e mesma condição: a relação corpo-câmera. (PONSO, 2013: 11)

Levando em consideração não só as autorizações do cinema à dança,

mas a potência que adquire a linguagem cinematográfica com as

experiências em dança contemporânea, é imprescindível ressaltar o

abandono da forma-cinema ou do discurso hegemônico engendrado

historicamente sobre esse dispositivo (PARENTE, 2007). Reconsiderando

formas de fazer, pressupõe-se que, nas interseções da transbordança, o

projeto estético-político do corpo que dança não está interessado em

reproduzir um discurso narrativo e linear da forma-cinema, e, muito menos,

em fundar-se numa estética representacional da dança. Não há respostas

fixas que determinem esse fazer fílmico ou a experiência do corpo que

dança. O que há na transbordança são vestígios de imagens em movimento

que transbordam a relação ao vivo do corpo-câmera para as telas da web,

criando um cem número de redes que começam na experiência de dançar.

Abandonam-se hierarquias entre as linguagens: “a videodança é um dos

pontos de convergência existentes nessa Cultura Digital [...]. Pois então não

existem fronteiras, já que não existem mais territórios. Trata-se apenas de

emergências dos tempos de agora” (SANTANA, 2006: 8).

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Dito isto, o terceiro objeto de análise neste corpus é o projeto do autor

deste artigo, que idealizou o canal de videodança Aloka das Américas5.

Partindo metodologicamente da prática baseada como pesquisa, pretende-

se expor os percursos do processo criativo de Aloka, a fim de identificar

possíveis estratégias dentro das configurações em transbordança,

contribuindo às relações do canal com os projetos de 100 lugares para

dançar e Une minute de danse par jour, bem como suas respectivas relações

entre arte e política. “Na Pesquisa baseada na Prática, o artefato criativo é a

base para a contribuição ao conhecimento” (FERNANDES, 2013: 24). Ao

analisar os experimentos de Aloka, oriundos da interseção das linguagens

de dança-cinema no ciberespaço, e as relações com os princípios estético-

políticos em evidência, pressupõe-se uma aproximação mais contundente

sobre o saber-fazer do processo de criação em dança para a web.

Nesta investigação 6 , que se relaciona aos princípios estéticos e

filosóficos do dadaísmo 7 e às experiências anarquistas como a zona

5ProjetodoautorTiagoAmatehospedadonaplaraformadevídeosVimeo.Disponívelem:<https://vimeo.com/alokdasamericas>.Acessoem:31/08/20176“Alok, semo ‘a’, éumaexpressãobastanteusadana internet, que, inclusive, adoteino cotidianoparame referir a situações sobre as quais não tenho uma opinião formada,me restando rir ouchegar a conclusões absurdas. A estética do riso, do absurdo e da contemplação. Essa noção dediferença vemna forma da brincadeira, do reconhecimento da loucura cotidiana, quando corposnãoseencaixamempadrões.Ehojemeconsiderocadavezmaisdistantedeles,comopessoanãobinária(genderqueer)queocupaaruaparadançarquandobementende.Nessesentido,soualokaquedança.Eaíresolviacrescentaro‘a’noalokporqueimagineiquenemtodomundoentenderiaaexpressão.Naverdade,aindaestoudecidindoseusareialokoualoka,poisesseéapenasoiníciodoprocesso. Imaginovida longaparaoprojeto,masnuncasesabe, tambémpodeacabaraqualquermomento”. Entrevista concedida à pesquisadora Dally Schwarz para o portal Ctrl + alt + dança.Disponível em: < http://ctrlaltdanca.com/2016/07/31/eixo-do-fora-deu-aloka/> Acesso em:31/08/20177Vanguardaconhecidacomodadá, iniciadaemZuriqueporvoltade1916.Entreseusmanifestos,destacam-se os escritos de Hugo Ball e Tristan Tzara. Anuncia a ausência de propósitos

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autônoma temporária8, produzi vídeos em baixa qualidade de imagem, com

câmeras variadas, especialmente de celular, ao dançar por espaços públicos

e privados em cidades brasileiras. A idéia também se remete a potência do

discurso contemporâneo de dança quando aponta para a dança de qualquer

corpo dançante, não visando mais às hierarquias históricas de quem pode

ou não pode dançar. A configuração dos vídeos se dá a partir de uma

montagem anterior, com vários recortes das cenas previamente filmadas. E,

a priori, pretende-se experimentar com essa montagem, desafiando os

princípios métricos, lineares ou documentais da interseção do cinema com

outras linguagens. A exibição também culmina em estratégias de live action

via plataformas como o Facebook.

Entretanto, o projeto concentra-se num canal do Vimeo onde essas

danças se distribuem a partir de contextos variados. Danças que ocorrem em

praias, árvores, muros, casas, universidades. Quaisquer são os lugares. A

montagem se detém às variações possíveis de uma estética não normativa,

antes devedora à forma cinema.

Não devemos permitir que a “Forma Cinema” se imponha como um dado natural, uma realidade incontornável. Aliás, a “Forma Cinema” é uma idealização. É preciso dizer que nem sempre há sala, que a sala nem sempre é escura, que o projetor nem sempre está escondido, que o filme nem sempre é projetado (muitas vezes e cada vez mais, ele é transmitido por meio de imagens eletrônicas, seja na sala, seja em espaços outros), nem sempre o filme conta uma história (muitos filmes são atracionais, abstratos, experimentais, etc). Entretanto, as

determinantes para o fazer artístico, apostando na experiência atualizada pela crítica ealeatoriedade8Conhecida como TAZ (Temporary Autonomous Zone), é um manifesto de 1985 escrito pelo autor Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) sobre as possibilidades de criação em sistemas anárquicos e suas relações com as utopias piratas. Pensa estruturas distópicas de relação em contextos cibernéticos como a web 2.0 e de neoliberalismo selvagem, a partir de conceitos como redes, hackers, festa, resistência, gozação, farra, etc

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histórias do cinema recalcam os pequenos e grandes desvios produzidos neste modelo, como se ela se constituísse apenas do que quer que tenha contribuído para o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. Na verdade, o cinema sempre foi múltiplo, mas esta multiplicidade foi, por assim dizer, encoberta e/ou recalcada por sua forma dominante. Ao longo da história do cinema temos não apenas experiências esparsas, mas cinco momentos fortes (cinema do dispositivo, cinema experimental, arte do vídeo, cinema expandido, cinema interativo) que se notabilizam por grandes transformações e experimentações quanto ao dispositivo cinematográfico, sobretudo depois do pós-guerra. (PARENTE, 2007: 5)

Pensando tanto no cinema de dispositivo quando no cinema

experimental, cinemas em que a relação com a câmera produz não apenas

visualidades críticas, mas pretende uma fuga dos usos e atribuições

tradicionais da forma-cinema, Aloka dança numa relação abstrata de co-

construção com a experiência da presença. Nesse sentido, abandona um

cinema de representação ou aquilo que o pesquisador André Parente vai

chamar, no texto Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do

dispositivo, de esquematismos das figuras e dos discursos. Escapa, assim, à

linguagem e suas cadeias de significação, evitando reificações e

reproduções.

“Para o cinema experimental o que interessa não é a impressão de

realidade, ponto nodal do cinema de representação, mas a intensidade e a

duração das imagens. (PARENTE, 2007: 20)”. Portanto, dançar para câmera

não é apenas documentar uma cena com expectativa mimética de realidade

e, em seguida, submetê-la ao universo digital da rede mundial de

computadores, mas um experimento de visualidade que adquire o corpo

quando dança para um dispositivo como a câmera, não subtraindo desta

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relação os acontecimentos que são inerentes às experiências de dança no

espaço público e às suas releituras quando da transmissão das imagens na

web 2.0.

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Aloka dança para a câmera no intuito de que suas imagens “viralizem”

na internet, mas não apenas pelo movimento crítico em relação aos

dispositivos com quais se relaciona: câmeras, celulares, computadores e

web. No projeto, há a proposta estética do cinema marginal que, no Brasil,

teve forte representatividade com discursos de cineastas como Luiz

Rosemberg Filho e Rogério Sganzerla nas décadas de 1970 e 1980, e pelos

experimentos de artistas contemporâneos como Vera Mantero, que

reconfiguraram relações de dança com dispositivos disciplinares a partir das

aproximações entre corpo, percepção, pensamento e espectador.

Na hora em que alguns bailarinos procuram, através da tecnologia eletrônica, o meio de uma hibridação dos sentidos que apontaria para o horizonte "pós-humano” de um “cibercorpo", um outro setor da dança contemporânea centra mais que nunca a sua pesquisa no afinamento da percepção a partir somente dos recursos da presença. Silêncio, lentidão, aparente imobilidade são muitas vezes convocados. De Myriam Gourfink a Meg Stuart e Xavier Le Roy, passando por Vera Mantero, esse coreógrafos parecem procurar, não tanto desdobrar um novo dado cinético, mas criar condições de uma tomada de consciência pelo espectador do trabalho de sua percepção, verdadeira instância ficcionante. (SUQUET, 2011: 540)

Por isso, o projeto de videodança é, sobretudo, uma tentativa de

expandir as possibilidades da dança no espaço público e no ciberespaço,

repercutindo sensações, acontecimentos e estéticas dissidentes na esteira

“percepção-pensamento”. Nessa perspectiva, vincula-se à transbordança

enquanto conceito no instante que materializa no corpo e em suas relações

os processos dialógicos da vida cotidiana, testemunhando na dança os

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experimentos de um corpo que resiste à invisibilidade da mimese, incluindo

neste escopo variadas causas, entre elas a agressividade do Estado

brasileiro e do neoliberalismo global, em sua capitalização de relações,

assassínio de populações vulneráveis e subjugação de corpos a novas e

insondáveis formas de escravidão.

À arte e à dança caberia esse papel de desviar, experimentar e propor situações de estranhamento e de possibilidades. A dança teria papel privilegiado nesse sentido, pois, como arte do movimento, apresenta uma experimentação na forma primária de existência e organização humana que é o corpo. A própria definição de dança como prática reflexiva do corpo já é um processo social que pressupõe uma mobilização. O movimento gerado por um corpo que dança é uma proposta, uma ruptura, um recomeço, um fim. (GUZZO, 2015: 8)

A imprevisibilidade de dançar na rua e suas implicações estético-

políticas já apontadas pelos projetos anteriores demonstram que a

experiência crítica do corpo em movimento em relação à mímica social sofre

retaliações de toda ordem. Especulações, guerras, violência, terrorismo. E,

portanto, dançar no espaço público configura-se enquanto ato de resistência,

que não apenas se determina no experimento material de dançar e ocupar

ruas, mas na relação que se estabelece entre a poética e a consciência

crítica do movimento, a vida cotidiana e as relações com os dispositivos

cujas implicações estão em nossos corpos.

Essa dança se posiciona em relação ao real. “A dança pode ser política

a partir do movimento crítico que faz em relação à realidade, questionando

ou propondo possibilidades de ação e transformação da maneira que

existimos” (GUZZO, 2015: 9). Assim, as interseções pretendidas pela

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proposta de transbordança se encaixam nesse universo de dança

contemporânea que, segundo a pesquisadora francesa Annie Suquet, no

texto O corpo dançante – um laboratório de percepção, se dá numa

geografia multidirecional de relações entre o artista, a criação e o mundo. Ou

seja, que politicamente não cria divisões entre vida e representação, a partir

do instante em que pressupõe o corpo que dança como paisagem de

variáveis intensidades, num compartilhamento constante de experiências

cinestésicas não determinadas.

Através da exploração do corpo como matéria sensível e pensante, a dança do século XX não cessou de deslocar e confundir as fronteiras entre o consciente e o inconsciente, o “eu” e o outro, o interior e o exterior. E também participa plenamente na redefinição do sujeito contemporâneo. Ao longo do século, a dança contribuiu para desafiar a própria noção de “corpo”, a tal ponto que se tornou difícil ver no corpo-dançante essa entidade fechada em que a identidade encontraria os seus contornos. O bailarino contemporâneo vive a sua corporeidade à maneira de uma “geografia multidirecional de relações consigo e com o mundo”, uma rede móvel de conexões sensoriais que desenha uma paisagem de intensidades. A organização da esfera perceptiva determina os lances casuais dessa geografia flutuante, tanto imaginária como física. Assim os universos poéticos tão diferentes que a dança do século encaminhou poderiam ser descritos como outras tantas ficções perceptivas. Os arranjos coreográficos seriam apenas a sua extrapolação espacial e temporal. Se o bailarino se inventa dançando, se não cessa de fabricar sua própria matéria, trabalha também o espectador para sentir o corpo. A informação visual gera, no observador, uma experiência cinestésica (sensação interna dos movimentos do próprio corpo) imediata, e as modificações e as intensidades do espaço corporal do bailarino encontram assim a sua ressonância no corpo do espectador (SUQUET, 2011: 538)

As implicações dessa relação entre espectador e corpo dançante

anunciam os fragmentos de um longo processo de configurações na

percepção da dança, que não só foi influenciado pelos dispositivos ao longo

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do século XX, como amalgamou uma continuidade a partir de infindáveis

variações oriundas das geografias multidirecionais com o mundo a partir do

duo “matéria-memória”. Ora, neste instante a dança de um intérprete ou

performer pode chegar facilmente às páginas da internet em formato de

vídeo. E pode, inclusive, ser publicada numa transmissão ao vivo. Quais as

implicações políticas possíveis dessa acessibilidade para a produção de uma

experiência em dança contemporânea na internet? Em que medida avanços

na linguagem das imagens em movimento e da internet não influenciaram

novas proposições estéticas de corpos dançantes? Celulares ou câmeras de

bolso, portáteis, constantemente mais próximos de milhares de indivíduos

tornaram o registro ou filmagem de um corpo em movimento algo simples de

ser executado, em comparação a inacessibilidade histórica dessas

linguagens. Diante de tal conjuntura, um corpo que antes apenas dançava

para a câmera ou para um público se deparou transbordando as funções de

intérprete ou coreógrafo na construção de uma obra em imagem em

movimento para a web, acumulando tarefas como fez Maya Deren há mais

de meio século nas experimentações em 16mm.

Ao se tornar videomaker de um projeto de dança para web, por exemplo,

ou administrar os recursos próprios da linguagem do ciberespaço para a

edição e circulação do vídeo, esse corpo estabelece outras experiências de

criação com os dispositivos. É o caso de Une minute de danse par jour e

Aloka das Américas, projetos executados individualmente por intérpretes que

desempenham várias tarefas e aliam a elas suas proposições políticas a

partir da dança. E, mesmo no caso de 100 lugares para dançar, que possui

uma equipe maior para distribuir funções, as intervenções em relação aos

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dispositivos são múltiplas, quando produzem ruídos coletivos que, para além

da internet, ressignificam as relações humanas com o cotidiano das cidades.

Portanto, pensar um corpo dançante nas configurações intersticiais da

web demonstra o quanto são híbridas as propostas estético-políticas dos

artistas em questão e o quanto isso afeta o fazer artístico e as experiências

de incontáveis danças-políticas na internet a partir da interseção de

linguagens. A transbordança é apenas uma dentre tantas experiências

políticas de co-construção e dialogia a partir da dança e de suas relações

com as variadas linguagens do novo século. Corpos, afetividades,

percepções e movimentos têm proposto aos dispositivos configurações que

assinalam intervenções cotidianas nas cidades, fora e dentro das telas, on e

offline.

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Referências de Imagens (Print)

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http://100lugaresparadancar.org/100-lugares-para-dancar.> Acesso em: 31/08/2017

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Imagens 12, 13, 14, 15, 16 Aloka das Américas. Disponíveis em:

<https://vimeo.com/alokdasamericas> Acesso: 31/08/2017

* Graduado em Comunicação (UnB) e em Cinema & Audiovisual (UFF), Tiago Amate é atualmente mestrando do Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e artista residente na Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). Idealizador do canal Aloka das Américas, investiga interseções entre cinema marginal e dança contemporânea, vinculando videodança, cinema experimental e performance urbana. E-mail: <[email protected]>