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1 Panorama dos Estudos Sobre “Prática” no Brasil: Uma Análise da Produção Autoria: Marcelo de Souza Bispo, Lídia Cunha Soares, Erica Dayane Chaves Cavalcante Resumo Este estudo buscou responder a seguinte questão: o que os acadêmicos brasileiros estão produzindo com as teorias da prática? Mais especificamente, o nosso objetivo geral neste artigo é analisar a produção brasileira que lançou mão da abordagem das práticas sob os pontos de vista filosófico (ontológico-epistemológico) e metodológico. A metodologia foi um mapeamento bibliométrico seguido de uma análise qualitativa da produção brasileira. Os principais resultados apontam que ainda há poucos pesquisadores na área, que a produção está publicada na sua maioria em periódicos relevantes nacionais, mas que há inconsistências filosóficas e falhas metodológicas importantes em grande parte da produção analisada.

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Panorama dos Estudos Sobre “Prática” no Brasil: Uma Análise da Produção

Autoria: Marcelo de Souza Bispo, Lídia Cunha Soares, Erica Dayane Chaves Cavalcante

Resumo Este estudo buscou responder a seguinte questão: o que os acadêmicos brasileiros estão produzindo com as teorias da prática? Mais especificamente, o nosso objetivo geral neste artigo é analisar a produção brasileira que lançou mão da abordagem das práticas sob os pontos de vista filosófico (ontológico-epistemológico) e metodológico. A metodologia foi um mapeamento bibliométrico seguido de uma análise qualitativa da produção brasileira. Os principais resultados apontam que ainda há poucos pesquisadores na área, que a produção está publicada na sua maioria em periódicos relevantes nacionais, mas que há inconsistências filosóficas e falhas metodológicas importantes em grande parte da produção analisada.  

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Introdução Os estudos sobre prática não são novos nas ciências humanas e sociais, entretanto, nos últimos anos, a temática vem ganhando espaço nos estudos organizacionais, na administração e a produção científica vem aumentando consideravelmente. No Brasil, pesquisadores das área de aprendizagem, estratégia e organizações tem dado maior atenção ao tema. Nesse sentido, conhecer e avaliar a produção brasileira sobre os estudos com a abordagem das práticas pode contribuir para melhorar a compreensão do campo e apontar limitações e possibilidades de pesquisas na área. Alguns autores (Schatzki, 2001; Rouse, 2001; Gherardi, 2006, 2012; Geiger, 2009; Nicolini, 2013) já refletiram sobre como o conceito de prática vem sendo abordado ao longo do tempo e apresentam conceitos e classificações sobre esta temática. Apesar de ser uma palavra corriqueiramente utilizada no cotidiano do senso comum, assim como em textos acadêmicos, a palavra “prática” vem recebendo atenção especial por parte da filosofia, da sociologia e, mais recentemente, dos estudos organizacionais e da própria administração. O estudo das práticas ampliou o número de pesquisadores interessados pela temática e levou a criação de posicionamentos ontológicos, epistemológicos e metodológicos próprios desse campo de estudos, incluindo também, algumas variâncias entre os próprios pesquisadores no entendimento do que é uma prática. Nesse sentido, alguns nomes foram criados para determinar as pesquisas sobre o tema como, por exemplo, “práticas sociais”, “socioprática”, “estudos baseados em prática” e “estratégia como prática”. Essa diversidade criada dentro do campo de estudos das práticas ao mesmo tempo que enriqueceu o debate e ampliou o conhecimento do tema, por outro lado trouxe uma série de imprecisões filosóficas e metodológicas quanto ao seu uso por parte de um grande número de acadêmicos brasileiros. Muitos destes pesquisadores, provocados pela emergência do tema no exterior, especialmente na Europa, começaram a visualizar no estudo das práticas uma possibilidade de inovar e começaram a realizar pesquisas com esta “nova” perspectiva. Todavia, os estudos sobre prática não devem se resumir apenas em dizer que tudo “é na prática (in practice)” ou “como prática (as practice)”. Assumir as lentes das práticas é corroborar com pressupostos filosóficos e metodológicos que, por vezes, mesmo aparentemente semelhantes com a tradição interpretativista e os métodos qualitativos, mais utilizados pelos acadêmicos brasileiros, possuem características próprias. Em outras palavras, para pesquisar práticas é preciso ter o domínio dos pressupostos que este tipo de estudo carrega. Caso contrário, a chance de cair em um “falso cognato”, para fazer um trocadilho com a linguística, é real e problemático. Diante do exposto, esta pesquisa busca responder a seguinte questão: o que os acadêmicos brasileiros estão produzindo com as teorias da prática? Mais especificamente, o nosso objetivo geral neste artigo é analisar a produção brasileira que lançaram mão da abordagem das práticas sob os pontos de vista filosófico (ontológico-epistemológico) e metodológico. Assim, a partir de um mapeamento bibliométrico seguido de uma análise qualitativa da produção brasileira. A busca bibliométrica inicial se deu na base de dados do SPELL – Scientific Periodicals Electronic Library e após a varredura inicial, no currículo lattes dos autores identificados. Após esta introdução, o artigo apresenta um breve referencial teórico sobre o histórico dos estudos sobre prática, suas classificações, pressupostos e uma discussão sobre estratégias metodológicas. Em seguida é detalhada a estratégia desta pesquisa e são apresentados os dados resultantes da bibliometria em termos quantitativos para, na sequência fazer uma análise qualitativa da produção identificada. Para terminar são tecidas algumas considerações finais que visam refletir sobre os achados da pesquisa.

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A emergência da pesquisa sobre prática nos estudos organizacionais O interesse pelos fenômenos do cotidiano assim como a busca por novas abordagens teórico-filosóficas, despertou a atenção de muitos pesquisadores no início do século XXI pelo estudo da prática. Apesar do interesse recente, o tema já vem sido tratado de longa data por filósofos e cientistas sociais (Gherardi, 2006; Schatzki, 2001; Nicolini, 2013; Bispo, 2013a, 2013b). Entretanto, frente as limitações que muitas abordagens teóricas apresentavam de forma dicotômica em relação à sujeito/objeto, mente/corpo e agência/estrutura, possibilitou que novos olhares fossem considerados para a abordagem das práticas por trazer um entendimento diferenciado sobre estas dicotomias e a relação entre os ambientes macro e micro. Para Nicolini (2013), adotar a abordagem das práticas constitui uma mudança radical das formas tradicionais de compreender os fenômenos sociais e organizacionais. Segundo ele, quando adequadamente utilizada, esta abordagem produz uma nova sensibilidade que eventualmente pode oferecer uma nova visão dos fenômenos organizacionais. Assim, destacam-se como pressupostos (Nicolini, 2013): a) a unidade de análise para entender os fenômenos organizacionais por meio das práticas ganham destaque porque é por meio delas que se torna possível acessar e compreender a ação, a agência e os agentes. Em outras palavras, as teorias da prática oferecem uma possibilidade para reinterpretar os fenômenos organizacionais como, por exemplo, sugerindo que o objeto de pesquisa devem ser as atividades de gestão e empreendedorismo e não gestores e empreendedores; b) as teorias da prática vão além de descrever o que as pessoas fazem. As práticas são, de fato, criação de sentido, formação de identidade e ordenamento das atividades produzidas. De tal modo, as teorias da prática laçam mão de uma de uma perspectiva performática com objetivo de oferecer um novo olhar sobre o mundo social que vai além de dizer o que as pessoas fazem, algo comum nas visões positivista e racionalista das ciências sociais; c) considera a cognição e a criação de sentido (sense-making) como emergentes das práticas de uma organização. Assim, uma visão baseada em prática é uma alternativa para as perspectivas cognitivistas as quais buscam explicar o comportamento organizacional como algo resultado da mente dos indivíduos; d) a visão das práticas abraça a ideia de criação de sentido, mas rechaça que esta criação é um processo mental intangível, uma forma de troca simbólica ou um processo abstrato coordenado baseado em algum tipo de processo comunicativo. Nesse sentido, a criação de sentido e de conhecer (knowing) são concretos e identificados por meio do material (artefatos e objetos), da atividade discursiva, corpo, hábitos e preocupações que fazem parte da vida dos membros organizacionais; e) as teorias da prática sugerem que organizações e instituições são construídas e modificadas em razão do trabalho material e discursivo o que assume uma condição dinâmica na compreensão de ambas (ideia de organizing); f) assumem como relevantes as práticas discursivas para construção e reprodução de todas as coisas organizacionais e sociais, todavia resistem a ideia de que linguagem e discurso sozinhos podem explicar todos os fenômenos da vida organizacional. A abordagem das práticas sugere que é preciso teorias que deem conta da natureza heterogenia do mundo que vivemos o que inclui considerar objetos e materiais; g) consideram que as relações são compostas por conjuntos ou redes de práticas e rechaça a divisão dos fenômenos sociais em níveis como, por exemplo, “micro” e “macro”. Ao considerar os pressupostos apresentados, nota-se que as teorias da prática demandam de seus pesquisadores o conhecimento e a compreensão de uma série de elementos e fundamentos de maneira que a pesquisa conduzida não se perca tanto do ponto de vista filosófico (onto-epistemológico) quanto de método e análise de dados empíricos. Ademais, atenção especial é requerida ao fato de que as abordagens da prática apesar de carregarem semelhanças com muitas outras abordagens teóricas, não devem ser confundidas e, nem

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mesmo, serem consideradas apenas variações de posições epistemológicas e teóricas mais tradicionais e conhecidas por boa parte dos acadêmicos brasileiros. Ao fazer tais associações, a pesquisa à luz das teorias da prática estarão comprometidas. As teorias da prática

Para Schatzki (2001) uma teoria é um relato genérico ou abstrato sobre algo. Portanto, uma “teoria da prática” é um relato genérico ou abstrato das práticas e se refere a qualquer coisa sobre elas e ao campo das práticas. Todavia, o autor destaca que apesar da adoção de termos como “teoria das práticas”, “pensamento das práticas” ou “abordagem das práticas” de forma livre e intercambiada, os estudiosos do tema são reticentes a noção de “teorias” que se apresentam como gerais na explicação de como a vida social é. Ainda segundo o autor

Na teoria social, consequentemente, as abordagens das práticas promulgam uma ontologia social distinta: o social é o campo da corporificação, materialmente entrelaçando práticas centralmente organizadas em torno de um entendimento prático compartilhado. Esta concepção contrasta com os discursos que privilegiam indivíduos, (inter)ações, linguagem, sistema de significados, o mundo da vida, instituições/papéis, estruturas ou sistemas na definição do social (Schatzki, 2001:3).

Independentemente da diversidade, os teóricos das práticas defendem que fenômenos

como conhecimento, significado, atividade humana, ciência, poder, linguagem, instituições sociais e as transformações históricas ocorrem ou são aspectos componentes do “campo das práticas”. O campo das práticas é a interconexão das práticas humanas. Uma ideia central nesta abordagem é o pressuposto de que a prática é algo corporificado, materialmente mediado estabelecendo matrizes da atividade humana centralizada em torno do entendimento compartilhado da prática (Schatzki, 2001; Nicolini, 2013). Em outras palavras, trata-se de uma forma de “conhecimento tácito incorporado”.

Para Schatzki (2001), os teóricos das práticas, de modo geral, entendem que a atividade é corporificada (embodied) e que sua ligação com as práticas se dão pela mediação de artefatos e objetos e é esta mediação e a incorporação dela que faz parte do principal ponto de discussão desses acadêmicos. Nesse sentido, o “corpo” e a “atividade” são “constituídos” pela prática. Em outras palavras, o sentido de corpo e atividade se constituem porque são resultado da prática que eles compõem. A atividade é para os filósofos e cientistas sociais tradicionais, de modo geral, realizada por um grupo de pessoas e a prática é uma organização da atividade humana. Os pós-humanistas, centrados em ciência e tecnologia, acreditam que um conjunto de atividades que compõem a prática incluem elementos não-humanos como máquinas e os objetos de investigação científica.

Ainda segundo o autor é possível classificar os estudos sobre prática em quatro grandes correntes de pensamento, a filosófica, a sociológica, a cultural e a da ciência e tecnologia. Uma breve descrição de cada uma delas é apresentada a seguir.

- Filosófica: baseada na ideia de prática que subjaz sujeitos e objetos destacando o conhecimento não proposital (não reflexivo) e apontam as condições da inteligibilidade. Alguns autores relevantes nesta corrente são Wittgenstein (1953), Hubert Dreyfus (1991), Charles Taylor (1985); - Sociológica: nesta corrente, falar sobre práticas é tratar dos desejos como aqueles da atividade livre do objetivismo das estruturas sociais e dos sistemas para questionar as ações individuais e seu status como limitadores (fronteiras) dos fenômenos sociais para

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transcender ações estruturais rígidas. Destacam-se nesta corrente, Bourdieu (1977, 1990), Giddens (1979, 1984), Garfinkel (1967);

- Cultural: falar de prática é retratar a linguagem como uma atividade discursiva em oposição ao estruturalismo, semiótica, pós-estruturalismo e qualquer outra forma de pensamento que esteja orientado para estruturas, sistemas ou discursos abstratos. Representam esta corrente autores como Foucault (1976) e Lyotard (1984, 1988); - Ciência e tecnologia: desenvolvem conceitos de ciência como atividade em oposição a representação e reconsideração da dicotomia entre as entidades humanas e não humanas. São representantes desta corrente Rouse (1996), Pickering (1993), Orlikowski (2000, 2007), Suchman (1999, 2005), Latour (1990).

Ao analisar esta classificação é possível verificar que ela é bem ampla, de modo que algumas abordagens que iremos chamar aqui de “contemporâneas” não estão explicitas como é o caso da aprendizagem e conhecimento como práticas situadas, o que inclui as comunidades de prática (Lave & Wenger, 1991; Wenger, 1998; Gherardi, Nicolini & Odella, 1998; Nicolini, Gherardi & Yanow, 2003), a estética e o conhecimento sensível (Strati, 1992, 2007), a teoria ator-rede (Law, 1994; Latour, 1999, 2005) e da estratégia como prática (Whittington, 1996). Todas elas, tem suas raízes nas correntes apresentadas anteriormente, algumas delas, inclusive, trazem elementos combinados de mais de uma corrente e são resultado do movimento chamado de “practice turn” (Schatzki, 2001) ou “re-turn to practice” (Miettinen et al., 2009) que representa um novo olhar para o estudo das práticas a partir da década de 1990 e início dos anos 2000. A figura 1 ilustra este processo histórico, os textos e as setas em vermelho são os acréscimos realizados pelos autores deste artigo para ampliar o escopo da abordagem das práticas inicialmente adotado por Gherardi (2012).

Figura 1-Influências e história das teorias da prática Nota Fonte: adaptado de Gherardi (2012:201). Gherardi, S. (2012). How to conduct a practice-based study: problems and methods. Cheltenham: Edward Elgar.

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Estas formas de pensar as práticas, segundo Schatzki (2001), trouxeram contribuições decisivas para a compreensão de diversos assuntos. Entre elas, a significância da atividade humana, a natureza da subjetividade, personificação (embodiment), racionalismo, significado e normatização, o caráter da linguagem, ciência, poder, organizações, reprodução e as transformações da vida social. Estas contribuições se opõem a várias correntes de pensamento como o intelectualismo, representacionalismo, individualismo (teoria da decisão racional, individualismo metodológico, análise de redes, etc.), estruturalismo, estruturalismo-funcionalista, teoria dos sistemas, semiótica, entre outras formas de humanismo e pós-estruturalismo. Apesar da multiplicidade de perspectivas, todas elas partem da ideia da atividade, da ação.

Além de Schatzki (2001), outros autores como Rouse (2001), Gherardi (2006), Geiger (2009) e Nicolini (2013) também apresentam classificações sobre estudos da prática. Apesar das ligeiras diferenças, todas as classificações buscam evidenciar a diversidade de abordagens existentes. Entretanto, a classificação apresentada por Nicolini (2013) merece atenção especial por apresentar além das abordagens, os assuntos de interesse nos estudos organizacionais que a abordagem das prática vem despertando. Assim, destacam-se na literatura internacional o estudo de instituições, marketing, consumo, contabilidade, projetos, rotinas, uso de tecnologia, inovação social, tomada de decisão, entre outros. Aspectos metodológicos dos estudos sobre prática A literatura internacional, do ponto de vista metodológico, apresenta os estudos empíricos sobre prática essencialmente por meio de métodos qualitativos de pesquisa. Dentre os quais destacam-se as técnicas etnográficas e a teoria fundamentada ou grounded theory (Gherardi, 2012; Nicolini, 2013). Todavia, também é possível encontrar estudos conduzidos por meio de estudos de caso, etnometodologia e também combinações de técnicas de coleta dados qualitativos com outras denominações na tentativa de criação de metodologias próprias para os estudos sobre prática. É necessário destacar que os pesquisadores da área, em geral, evitam determinar “uma metodologia de investigação das práticas” em razão dos pressupostos filosóficos e teóricos que a abordagem carrega, especialmente o que diz respeito da determinação de práticas a priori, uma vez que as práticas são situadas. Entretanto, Gherardi (2012) busca apresentar orientações genéricas sobre quais devem ser as preocupações gerais do pesquisador ao ingressar no campo para a investigação das práticas. Para a autora, ao considerar a coleta de dados, há um aspecto importante no que diz respeito de que maneira o pesquisador pode acessar as práticas de uma coletividade e tentar compreendê-la como um outsider e/ou um insider. Para acessar as práticas como um outsider o pesquisador deve recorrer a regularidade com que as práticas se apresentam, ou seja, no padrão no qual um conjunto de atividades se organizam de forma que ele apresenta uma compreensão compartilhada pelos membros da comunidade e permitem a sua repetição. Neste caso, técnicas de observação permitem que estas regularidades sejam apreendidas devido a sua repetição e os objetivos relacionados a identificação e descrição das práticas atendidos. Assume-se que o pressuposto da recursividade das práticas é um elemento que permite tanto os praticantes quanto os pesquisadores reconhecerem que uma prática é uma prática, um fazer institucionalizado. Nas palavras de Gherardi (2012: 161)

Para entender prática ‘pelo lado de fora’, o pesquisador deve atentar-se e analisar um número de ‘repetições’ da mesma prática, com o propósito de construir uma tipologia de atividades na qual a prática e, nesta base

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empírica, deduzir quais são os objetos da prática e a lógica organizacional que regula o estabelecimento de redes de trabalho organizativas.

A autora diz que uma análise das práticas como outsider pode ser útil para o pesquisador se familiarizar com as atividades dos praticantes, entender o seu vocabulário e descrever a prática pesquisada. Contudo, ela ressalta que isto é um uso limitado das potencialidades que as teorias da prática proporcionam. Por outro lado, buscar acessar as práticas como um insider, segundo a autora, é a busca do ponto de vista da atividade a qual está sendo performada, com sua temporalidade e processualidade, assim como a ordem emergida e negociada da ação sendo executada. Vista de “dentro” a prática é uma ação coletiva (re)conhecida que encampa relações e conexões entre todos os recursos disponíveis e todas as restrições presentes. Em outras palavras, para acessar uma prática por “dentro” é preciso compartilhar dela na sua plenitude, ou seja, participar e conhecer (knowing) a prática. O Conhecer é alguma coisa que as pessoas fazem juntas em qualquer atividade cotidiana. Para Gherardi (2012: 162) “conhecer é estar apto para participar com o requisito de competência numa rede complexa de relações entre pessoas, artefatos materiais e atividades”. A autora complementa dizendo que atuar como um praticante competente é sinônimo de conhecer como se “conectar” com o campo das práticas investigadas. Ela termina dizendo que do ponto de vista metodológico, enquanto uma pesquisa como outsider a atenção do pesquisador é no fazer (doing), a pesquisa como insider foca no conhecer (knowing) como um fazer coletivo. Portanto, a pesquisa das práticas requer do pesquisador habilidade para coletar dados tanto como outsider quanto como insider para melhor compreensão da prática que se quer investigar. Nesse sentido, a coleta de dados precisa de atenção especial e cada técnica de coleta de dados precisa ser bem analisada a fim de cumprir com os objetivos da pesquisa, Nicolini (2009a, 2009b, 2013) e Gherardi (2012) apresentam algumas sugestões de como levar a cabo este tipo de coleta de dados. Do ponto de vista da análise dos dados empíricos, os autores da abordagem das práticas (Schatzki, 2001; Gherardi, 2012; Bispo & Godoy, 2012; Adamoglu de Oliveira, 2012; Nicolini, 2013) são enfáticos ao destacarem que a unidade de análise são as próprias práticas, sejam elas atreladas a qualquer corrente de pensamento sobre prática já discutidas anteriormente. Esta referência é importante porque não faz sentido dizer que se pesquisa “prática” e ao final de um estudo nenhuma prática é identificada e analisada. Mapeamento da produção brasileira sobre práticas: estratégia metodológica

Para consecução do objetivo proposto para este trabalho, utilizou-se a abordagem quantitativa e seu método de pesquisa se caracteriza como bibliometria, uma vez que por meio deste método é possível verificar as tendências e crescimento do conhecimento em determinada área, a dispersão e obsolescências de temas e a quantificação de produção por revistas (ARAÚJO, 2006). Em virtude de seus propósitos, qual seja o mapeamento da produção de uma temática numa área predeterminada a fim de se conhecer o seu “estado da arte”, este estudo pode ser classificado como uma revisão descritiva-analítica, já que se utilizou de procedimentos relativos à estatística descritiva, a saber: contagem de frequência, porcentagens, análise quantitativa, seguida de uma análise qualitativa da produção.

A fim de demarcar o âmbito da pesquisa, delimitou-se como sistema de indexação o SPELL – Scientific Periodicals Electronic Library, por permitir acesso livre à produção científica dos principais periódicos nacionais, nas áreas de administração, turismo e

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contabilidade. Por tanto, foi utilizado o modo busca avançada, tendo como critérios definidores: a) busca por título do documento; b) palavras-chaves: prática, ou estudos baseados em prática, ou EBP, ou práticas sociais, ou etnometodologia, ou teoria ator-rede, ou teoria da atividade cultural, ou estratégia como prática; c) não delimitação temporal da produção; d) artigo como tipo do documento; e) áreas do conhecimento sendo administração, contabilidade, economia, engenharia e turismo; e f) artigos no idioma espanhol, inglês e português.

Após realizado este procedimento preliminar, chegou-se a um quantitativo de 561 artigos, os quais tiveram seus títulos, palavras-chaves e autores conferidos para se visualizar a adequação dos estudos as abordagens de estudos sobre práticas discutidos no referencial teórico, assumindo assim este critério principal de inclusão dos artigos para análise. Por tanto, em uma primeira fase, 95 artigos foram analisados, a partir dos quais 123 autores e coautores brasileiros foram listados em suas produções.

Para melhor compreender a produção dos estudos, a etapa seguinte consistiu em conferir nos currículos lattes dos 123 autores listados se havia mais artigos alinhados a temática das práticas, observando e excluindo os casos duplicados, ou seja, os artigos cujos títulos já haviam sido notificados na etapa preliminar, chegando ao número de 46 artigos que após conferidos foi reduzido ao número de 18 artigos. Estes foram somados aos 95 da etapa anterior e totalizaram uma amostra de 113 artigos. Esta etapa visou garantir que toda a produção dos autores brasileiros fosse mapeada e incluída nas análises.

Após levantamento dos dados, estes foram categorizados e analisados em duas etapas. Na primeira se utilizou um roteiro de coleta de informações elaborado em cima das questões que motivaram a realização desde estudo e possibilitaram um olhar crítico acerca da produção científica sobre “práticas”, quais sejam: aspectos gerais - ano das publicações; áreas de estudo, instituições, autores, temas, palavras-chaves; os aspectos filosóficos - ontologia e epistemologia; os aspectos teóricos - base de referência conceitual; e os aspectos metodológicos - contexto, abordagem, tipo, métodos, técnicas de coleta, técnicas de análise.

O roteiro foi operacionalizado no Excel© versão 97-2003, no qual os dados foram organizados seguido do uso do software SPSS, possibilitando os procedimentos de análise estatística descritiva e inferencial, segunda etapa de operacionalização da análise. Resultados da produção brasileira sobre práticas Ao longo de dose anos de produção dos temas que fazem parte do guarda-chuva das abordagens baseados em práticas foram identificados 113 artigos. Desde que o primeiro artigo foi publicado em 2002 no Brasil, a produção vem crescendo paulatinamente e chegando ao seu ápice em 2011 com 24 publicações, e se mantém em 2012 e 2013 em 22 artigos como é possível observar na Tabela 1. Tabela 1 Artigos publicados sobre o tema por ano

Ano 2002 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Total

Artigos publicados 1 6 2 6 7 12 10 24 22 22 1 113

Observa-se na Tabela 1 que nos anos de 2003 e 2004 não foi publicado nenhum artigo nessa abordagem, no entanto, nos últimos cinco anos (2009 - 2013) o crescimento representa 80% da produção total. O que nos permite inferir que o campo dos estudos baseados em prática está crescendo e se consolidando, como indicando pelo movimento da virada da prática, ou “practice turn” (Schatzki, 2001).

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Além dos anos de publicação dos artigos, também pudemos perceber em quais revistas a temática têm predominado, os periódicos que mais publicaram são REBRAE. Revista Brasileira de Estratégia (13), Organizações & Sociedade - O&S (12), Cadernos EBAPE.BR (11), RAM – Revista de Administração Mackenzie (9), Revista de Administração Pública – RAP (9), Revista de Administração Contemporânea – RAC (7), RAE- Revista de Administração de Empresas (3), RECADM: Revista Eletrônica de Ciência Administrativa (3), RIGS – Revista interdisciplinar de Gestão Social (3), Gestão & Regionalidade (2), Organizações em contexto (2), R. Adm. FACES Journal (2), REGE. Revista de Gestão USP (2), Revista de Administração (FEA-USP) (2), Revista de Ciências da Administração (2), RGSA: Revista de Gestão Social e Ambiental (2), RIAE - Revista Ibero-Americana de Estratégia (2), TPA. Teoria e Prática em Administração (2), essas revistas juntas concentram 50,3% das publicações avaliadas.

As demais revistas publicaram apenas um artigo, são elas Administração Pública e Gestão Social, Advances in Scientific and Applied Accounting, BAR. Brazilian Administration Review, Cerne (UFLA), Contabilidade, Gestão e Governança, Desafio Online, Desenvolve - Revista de Gestão do Unilasalle, Desenvolvimento em Questão, Gestão e Planejamento, Gestão e Sociedade, NAU Social, Organizações Rurais & Agroindustriais, PRETEXTO, RAI : Revista de Administração e Inovação, REAd. Revista Eletrônica de Administração, REUNA, Revista ADM.MADE, Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, Revista Ciências da Administração, Revista de Administração da UFSM, Revista de Gestão da Tecnologia e Sistemas de Informação – RGTSI, Revista Gestão e Planejamento, Revista Micro e Pequena Empresa, Revista Organizações rurais & Agroindustriais, Revista Portuguesa e Brasileira de Gestão.

Foi identificada também a classificação dos periódicos no Qualis da Capes, como é possível observar na Tabela 2. Tabela 2 Qual a classificação Qualis dos periódicos identificados

Qualis Frequência Percentual A2 35 31,0% B1 36 31,9% B2 28 24,8% B3 7 6,2% B4 2 1,8% B5 2 1,8%

Não tem 3 2,7%

Total 113 100,0%

A maioria (31%) dos artigos pesquisados estão contidos em revistas com classificação

Qualis A2. O que representa que os estudos sobre prática, especialmente em estratégia, vem tendo boa aceitação pelos pares. Apenas uma revista (RIGS – Revista interdisciplinar de Gestão Social), de onde foram analisados três artigos, possui classificação Qualis “C” conceito atribuído pela juventude do periódico quando avaliado na última rodada do Qualis. Todavia, a RIGS lançou um número especial (jan. abr. 2013) voltado a discutir as Práticas na gestão social, e na administração razão pela qual apresentou os artigos mencionados.

A maioria dos artigos analisados (80,5%) tinham seus estudos na área de Administração, 7,1% na área de administração pública, e os demais tinham suas áreas de concentração afins, sendo, 3,5% na área de Educação, 2,7% em Tecnologia, Agronegócios e Contabilidade tinham cada uma 1,8%; e as de Turismo, Gestão ambiental, Engrenharia da

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Produção tinham 0,9% cada. Os autores mais produtivos na área podem ser observados na Tabela 3.

Tabela 3 Principais autores no tema

Principais Autores 1º Autor 2º Autor 3º Autor 4º Autor 5º Autor Total de artigos

Cristiano de Oliveira Maciel 4 2 - - - 6 Silvana Anita Walter 4 2 - - - 6 Marcelo Bispo 5 - - - - 5 Paulo Otávio Mussi Augusto - 4 1 - - 5 Samir Adamoglu de Oliveira 4 1 - - - 5 Alexandre de Pádua Carrieri - 3 1 - - 4 Ana Sílvia Rocha Ipiranga 4 - - - - 4 César Tureta 2 2 - - - 4 Diego Iturriet Dias Canhada 3 - 1 - - 4 Jader C. de Souza-Silva 4 - - - - 4 Ludmilla Meyer Montenegro 2 2 - - - 4 Rafael Alcadipani 2 2 - - - 4 Aleksander Roncon 1 - - 2 - 3 Clóvis L. Machado-da-Silva 1 2 - - - 3 Diego Maganhotto Coraiola 3 - - - - 3 Erlaine Binotto 3 - - - - 3 Gelson Silva Junquilho - 1 2 - - 3 Guilherme Lima Moura 3 - - - - 3 Mozar José de Brito - 2 1 - - 3 Natália Rese 1 2 - - - 3 Sergio Bulgacov - 3 - - - 3

Total 82

Ao analisar a tabela 3 é possível verificar que a produção ainda é pequena assim como o número de autores. Além disso, nota-se que há autores que aparecem apenas em co-autoria, dado que sugere que estes atuam no tema apenas de maneira tangencial e não têm nas práticas o seu principal foco de pesquisa. É importante mencionar que das quantidades de artigos apontados na tabela, há parcerias entre os autores em um mesmo artigo. Portanto, o número de artigos mencionados serve apenas para contabilizar a produção dos autores e não o número de artigos sobre prática. Nesse sentido, é possível concluir que são poucos os pesquisadores que atuam prioritariamente nos estudos sobre prática.

A tabela 4 apresenta as instituições que mais contribuíram com estudos sobre prática considerando o vínculo dos autores identificados na busca.

Tabela 4 Principais Instituições onde as pesquisas sobre o tema são desenvolvidas Principais Instituições (autores e coautores) Artigos publicados Porcentagem

UFPR 23 8,3% PUC-PR 12 4,3%

FGV 11 4,0% UFRGS 8 2,9% FURB 7 2,5%

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USP 7 2,5% UFPE 6 2,2% UFES 5 1,8% UFMG 5 1,8% UFPB 5 1,8% UFSC 5 1,8%

As principais instituições com mais pesquisa no tema são a UFPR com 8,3% e a PUC-

PR com 4,3% das pesquisas realizadas, a maioria dos estudos advindos das instituições se concentra sobre o tema da Estratégia como prática.

Na tabela 5 são apresentados as principais temáticas nas quais os pesquisadores utilizam a abordagem das práticas para condução de suas pesquisas. Tabela 5 Principais temas de pesquisa Principais temas estudados Artigos publicados Porcentagem Estratégia 48 42,5% Aprendizagem 21 18,6% Conhecimento organizacional 6 5,3% Cotidiano 4 3,5% Gestão do conhecimento 3 2,7%

82 72,6%

Os estudos estão centrados principalmente na área de estrátegia (42%), o que demonstra que é o principal tema que é estudado com base nas práticas sociais. A aprendizagem e o conhecimento organizacional que são temas relacionados, representam respectivamente 19,6% e 3,5%. É importante perceber que o tema estratégia como prática vem crescendo e se desenvolvendo, é possível perceber isso quando observamos que o periódico que concentra o maior número de publicações é o REABRE, e que o principal tema de pesquisa e as palavras- chave mais citadas são “estrategia como prática” 20 vezes, “estratégia” 10 vezes, “estratégia como prática social” 3 vezes e “strategizing” 3 vezes. A segunda palavra-chave mais citada é “comunidade de prática” com 8 ocorrências, outros termos que se destacam são “aprendizagem organizacional” e “aprendizagem” respectivamente aparecem 10 e 9 vezes.

Outras palavras-chaves também emergem e são importantes para o campo de análise, a Teoria ator-rede (6), Sensemaking (4), Conhecimento (4) e Criação de conhecimento (3), Etnometodologia (3), Pós-estruturalismo (3), Cotidiano (3).

É possível notar também que a produção brasileira ao se concentrar em basicamente duas temáticas (estratégia e aprendizagem/conhecimento) demonstra que ainda há espaço para o avanço do estudo das práticas no Brasil por meio de temas como consumo, educação, inovação, entre outros como aponta Nicolini (2013).

A tabela 6 apresenta os autores mais citados na produção brasileira.

Tabela 6 Quantidade de artigo em que o autor é citado

Primeiros autores mais citados Frequência Percentual

Whittington 48 42,5%

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Jarzabkowski 47 41,6%

Wenger 35 31,0%

Giddens 31 27,4%

Gherardi 28 24,8%

Lave 18 15,9%

Johnson 16 14,2%

Weick 12 10,6%

Law 9 8,0%

Nicolini 9 8,0%

Schatzki 9 8,0%

Brown 8 7,1%

Alcadipani 7 6,2%

Orlikowski 7 6,2%

Antonello 5 4,4%

Bourdieu 5 4,4%

Czarniawska 5 4,4%

Garfinkel 5 4,4%

Latour 5 4,4%

Rawls 5 4,4%

Scott 5 4,4%

Wilson 5 4,4%

Os autores mais citados no estudos como primeiro autor são foram apresentados da Tabela 7, os principais são Whittington é citado em 42,5% dos artigos, Jarzabkowki é citado como primeiro autor em 41,6 %, Weiger é citada com primeira autora em 31% dos artigos, Gidens é citado em 27,4% dos artigos, Gherardi é citada em 24,8% dos autores, Lave é citado em 14, 2% dos artigos. Desta forma, é possível perceber que os autores mais citados são da área de “estratégia como prática”, “comunidade de prática”, “Teoria da estruturação” e “Aprendizagem e conhecimento como prática”.

Do ponto de vista filosófico, apenas 23% apresentavam seu posicionamento epistemológico, em 77% dos artigos a epistemologia não foi evidenciada. Para analisarmos a metodologia dos estudos, consideramos apenas os estudos empíricos, esses correspondem a 65 artigos. Destes 76,9% de abordagem qualitativa, 13,8% eram Mistos, 5% eram quantitativos, e 1,5% não relataram.

Com relação ao método de pesquisa 53,8% eram estudo de caso de diversos tipos (exploratório, múltiplo, exploratório-descritivo, exploratório-explicativo e longitudinal), 6,2% eram etnográficos, 1,5% eram estudo fenomenológico e etnometodológico. Para realização das pesquisas, os autores coletaram dados em diversas fontes, 38,5% dos artigos analisados utilizaram uma técnica (sendo, a maioria, algum tipo de entrevista 21,5%), 24,6% utilizaram duas técnicas de coleta de dados (sendo, a maioria, uma combinação de algum tipo de entrevista com algum tipo de observação. Exemplo: Observação participante e entrevista semiestruturada), 21,5% utilizaram três técnicas de coleta (um tipo de observação, entrevista e documentos. Exemplo: entrevista semiestruturadas, observação participante e documentos), 7,7% utilizaram quatro técnicas (a maioria 3% algum tipo de entrevista, algum tipo de observação, conversas informais e documentos), 4,6% utilizaram cinco técnicas (3,1% eram observação, questionário, entrevista, focus group e documentos) e 3,1% não relataram. Outros

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métodos também foram utilizados combinados com os já mencionados, como conversas informais, questionários, realização de curso, narrativa – historia de vida, bloco de notas e escala liket.

As técnicas de análise de dados utilizadas no estudo foram diversificadas, 21,5% utilizaram apenas análise de conteúdo, 7,7% utilizaram análise de conteúdo combinada com outras técnicas (Exemplo: análise de conteúdo, estatística descritiva, estatística não-paramétrica (teste de correlação de Spearman, o teste U, e o teste de Kruskal Wallis), 10,8% não relataram a técnica de análise que utilizaram. De todas as técnicas utilizadas, algumas correspondiam aos estudos interpretativistas, foram relatadas as seguintes: Análise das práticas (1,5%), análise interpretativa (6,2%), interpretação com base nos cinco conceitos-chaves da etnometodologia garfinkiliana (1,5%), Técnicas de codificação da Grounded Theory (1,5%), Análise fenomenológica Sanders (1982) (1,5%).

Seguindo essa classificação, podemos observar que a maioria 78,5% analisaram as práticas outsider, e apenas 21,5% analisaram as práticas insider. Um dado curioso e relevante é que em 78,5% dos artigos empíricos analisados, a unidade de análise dos dados empíricos não era relacionado com alguma prática. Apenas 21,5% dos artigos apresentaram esta característica. Tal fato vai de encontro aos pressupostos dos estudos baseados em prática assim como as recomendações dos especialistas do tema. Uma análise qualitativa dos resultados: aspectos filosóficos, teóricos e metodológicos Ao considerar os resultados bibliométricos apresentados assim como os conteúdos dos artigos lidos, é importante apresentar uma análise qualitativa da produção brasileira sobre práticas que visa discutir aspectos gerais da produção juntamente com os filosóficos, teóricos e metodológicos. Iniciando pelos aspectos gerais, foi possível notar que a produção brasileira ainda é pequena, com poucos pesquisadores e está concentrada basicamente em dois temas, estratégia como prática e aprendizagem e conhecimento. Estas suas temáticas também foram as que mais se destacaram quando do movimento da virada das práticas (practice turn), neste momento no início dos anos 2000, no contexto internacional (cf. Geiger, 2009; Miettinen, Samra-Fredericks & Yanow, 2009) havia um grupo de pesquisadores voltados ao estudo de temas relacionados a aprendizagem e conhecimento denominado “Estudos Baseados em Prática” (para conhecer mais da história ver Bispo, 2013b) e outro para a “Estratégia como Prática” (para conhecer mais da história ver Carter, Glegg & Kornberger, 2008). Ambos tratavam do tema prática quase sem interlocução um grupo com o outro. Novos temas relacionados com os estudos da prática começam a ter mais força na literatura internacional a partir de 2005. Boa parte da falta de interação entre os pesquisadores dos estudos baseados em prática com os da estratégia como prática se deu, em boa parte, porque o primeiro grupo entendia que o segundo não possuía uma visão clara sobre qual conceito de prática utilizavam, ainda estavam muito ligados as “praticantes” do que com as “práticas” o que indicava um certo aprisionamento ao pressupostos positivistas e funcionalistas próprios das raízes dos estudos de estratégia. Autores como Carter, Glegg & Kornberger (2008) apresentam esta crítica e este movimento inicial da estratégia como prática iniciado em 2001 é chamado por Nicolini (2013) como primeira geração do movimento. Tal esclarecimento é necessário no contexto desta pesquisa porque nos estudos analisados os mesmos problemas ontológicos (o que é prática?) e epistemológico (como acessar as práticas?) foram identificados na produção brasileira, mas aqui os problemas foram tanto na área de estratégia como de aprendizagem e conhecimento. A desatenção aos pressupostos filosóficos ficaram claros nos dados quantitativos apresentados em que poucos

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artigos fazem este posicionamento ao longo da produção, logo os problemas metodológicos também se evidenciam. No contexto internacional, tanto em estratégia como em aprendizagem e conhecimento, não há produção quantitativa por parte dos autores mais relevantes em razão das consequências filosóficas que estes métodos podem proporcionar. Além disso, dentro de um contexto qualitativo, há uma forte tradição em pesquisas baseadas em métodos etnográficos e grounded theory justamente porque estas estratégias permitem ao pesquisador pesquisar as práticas como outsider e insider. Apesar de não ser algo proibido, o uso do estudo de caso não é predominante nos clássicos do tema e, na produção nacional, o método em geral é mal empregado por dar muita atenção as entrevistas, pouco atenção a observação e utilizar as recomendações de autores como Yin (2005) que são de posição epistemológica funcionalista. Além disso, o erro mais grave encontrado na produção brasileira foi a não adoção das práticas como unidade de análise dos estudos. Conforme pesquisadores relevantes da área (Schatzki, 2001; Gherardi, 2012; Nicolini, 2013) por meio das práticas ou ao utilizar as lentes das práticas que estes autores entendem que os fenômenos organizacionais são melhor identificados e compreendidos. Este ponto mostra uma fragilidade na produção brasileira sobre práticas. Por fim, o rigor nos estudos das práticas deve ser observado e o atendimento a este rigor depende de uma leitura extensa e minuciosa da literatura das práticas não apenas a partir do chamado practice turn, mas também das suas raízes filosóficas e sociológicas. Trata-se de um caminho desafiador frente a complexidade e a combinação de pensamentos existentes, contudo, extremamente necessário para conduzir uma pesquisa de alto nível com esta abordagem. Conclusões

Iniciamos este artigo com o objetivo de analisar a produção brasileira que lançaram mão da abordagem das práticas sob os pontos de vista filosófico e metodológico. Para tanto, foi conduzido um estudo bibliométrico que mapeou diversos aspectos da produção brasileira. Evidenciou-se que as áreas de estratégia e aprendizagem e conhecimento são as mais pesquisadas, fato que mostra as oportunidades que ainda existem em relação a utilização do paradigma das práticas (Gherardi, 2012; Nicolini, 2013) para estudar outros temas em administração em estudos organizacionais. Foi possível notal também que o número de pesquisadores na área ainda é pequeno, assim como a produção de modo geral. Por outro lado, a produção existente está sendo bem aceita pelos pares ao tomar como base que a maior parte da produção existente está em periódicos com Qualis A2 e B1. O ponto mais preocupante identificado com este estudo foram os problemas onto-epistemológicos e metodológicos em que os autores, de modo geral, não se posicionam em relação ao que entendem por prática ou qual corrente adotam. Somado a isto, as posições epistemológicas não são claras e estes fatos geram problemas de cunho metodológico. Em relação as estratégias de investigação empírica, a adoção expressiva do método estudo de caso, desproporcional a produção internacional, sugere que muitos autores recorrem a esta estratégia de pesquisa por ser “comum” na maior parte dos estudos qualitativos da área de administração no Brasil e, apenas aparentemente, sugerirem maior facilidade na sua condução. É preciso uma análise mais aprofundada da razão pela qual os pesquisadores adotam o estudo de caso assim como estes autores deveriam justificar melhor a adoção deste método na investigação das práticas. Além da estratégia de investigação empírica, a análise dos dados também se apresentou problemática em razão da maior parte dos autores não adotar as práticas como

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unidade analítica dos seus estudos. Nesse sentido, fica evidente dois pontos: 1) os pesquisadores brasileiros precisam ler mais sobre práticas em suas várias vertentes; 2) os avaliadores dos trabalhos nos periódicos, em geral, não estão preparados para fazer tal tarefa com o rigor e conhecimentos necessários, visto que a maior parte da produção está publicada em periódicos nacionais relevantes. É importante reforçar que o estudo aqui conduzido foi apenas em produções de periódicos, portanto consideradas definitivas. Nesse sentido, o rigor na avaliação desses artigos vai depender de um trabalho mais criterioso dos editores de revistas ao designar as avaliações para evitar os erros apontados. Como limitações é possível que alguns artigos publicados não tenham sido considerados por possíveis falhas na base de dados escolhida para pesquisa, o Spell¸ que ainda está em fase de consolidação, assim como um problema de atualização dos currículos lattes do autores identificados. Por outro lado, apresentam-se como sugestões estudos futuros com os autores aqui identificados para melhor compreender suas estratégias de pesquisa com práticas, além de fazer uma pesquisa mais ampla, utilizando outras bases de dados, para comparar os estudos conduzidos no Brasil com os internacionais. Por fim, acredita-se que este estudo contribuiu para apresentar a produção brasileira sobre práticas mostrando, inclusive, que a pesquisa deste tema é ampla incluindo os estudos baseados em prática e a estratégia como prática, trazendo uma discussão dos problemas filosóficos e metodológicos da produção pesquisada. Assim, entende-se que com este estudo outros pesquisadores possam iniciar suas pesquisas sobre prática com um olhar diferente e evitando os problemas aqui apresentados. Referências Adamoglu de Oliveira, S. A. & Montenegro, L. M. (2012). Etnometodologia: Desvelando a Alquimia da Vivência Cotidiana. Cad. EBAPE.BR, 10(1), 129-145. Araújo, C. A. (2006). Bibliometria: evolução história e questões atuais. Em Questão, 12(1), 11-32. Bispo, M. de S. & Godoy, A. S. (2012). A Etnometodologia enquanto Caminho Teórico-metodológico para a investigação da Aprendizagem nas Organizações. Revista de Administração Contemporânea, 16(5), 684-704. Bispo, M. de S. (2013a). Aprendizagem organizacional baseada no conceito de prática: contribuições de Silvia Gherardi. REV. ADM. Mackenzie, 14(6), 132-161. Bispo, M. de S. (2013b). Estudos baseados em prática: conceitos, história e perspectivas. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, 2(1), 13-33. Bourdieu, P. (1977). Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press. Bourdieu, P. (1990). The logic of practice. Stanford: Stanford University Press. Carter, C., Clegg, S. R. & Kornberger, M. (2008). Strategy as practice? Strategic Organization, 6(1), 83-99. Dreyfus, H. (1991). Being-in-the-World: a commentary on Heidegger´s Being and Time. Cambridge MA: MIT Press. Foulcault, M. (1976). The archaeology of knowledge. New York: Harper and Row. Garfinkel, H. (1967). Studies in ethnomethodology. Englewood Cliffs NJ: Prentice Hall. Geiger, D. (2009). Revisiting the concept of practice: toward an argumentative understanding of practicing. Management Learning, 40(2), 129-144. doi: 10.1177/1350507608101228 Gherardi, S., Nicolini, D., & Odella, F. (1998). Toward a social understanding of how people learn in organizations: the notion of situated curriculum. Management Learning, 29(3), 273-297. doi:10.1177/1350507698293002 Gherardi, S. (2006). Organizational knowledge: the texture of workplace learning. Oxford: Blackwell Publishing.

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