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1 Sumário páginas Introdução 02 I - O Burlesco 07 I. 1. Deformações burlescas e paródia. 08 I. 2. As intenções da ironia no discurso do narrador. 16 I. 3. O riso nas interações cômicas e irônicas. 25 II – A Carnavalização da Morte 35 II. 1. Da alegoria à humanização: elementos do maravilhoso na narrativa. 38 II. 1.a. O mito 39 II. 1.b. A paródia 40 II. 1.c. A metamorfose 42 II. 2. O processo da Inversão. 50 II. 2.a. A revolução 51 II. 2.b. Uma sociedade decadente 54

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1

Sumário páginas

Introdução 02

I - O Burlesco 07

I. 1. Deformações burlescas e paródia. 08

I. 2. As intenções da ironia no discurso do narrador. 16

I. 3. O riso nas interações cômicas e irônicas. 25

II – A Carnavalização da Morte 35

II. 1. Da alegoria à humanização: elementos do maravilhoso na narrativa. 38

II. 1.a. O mito 39

II. 1.b. A paródia 40

II. 1.c. A metamorfose 42

II. 2. O processo da Inversão. 50

II. 2.a. A revolução 51

II. 2.b. Uma sociedade decadente 54

III – O Humanismo em José Saramago 57

III. 1. Preocupações Existencialistas. 59

III. 2. O Encontro entre o Ser e a Morte. 65

III. 2.a. Representações históricas da morte 66

III. 2.b. O universo carnavalizado do encontro do ser com a morte 71

Conclusão 77

Bibliografia 79

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Introdução

Nossa pesquisa é o resultado da leitura e do questionamento pessoal surgido a partir da

percepção do uso bastante sutil de ironias e de situações cômicas na obra do escritor

português José Saramago, As Intermitências da Morte (2005). Nesta obra o autor consegue

tornar o impossível, possível e o improvável, provável. É um exemplo da fantasia e do

mágico na Literatura, pois além de retratar em si uma reflexão utópica e irônica, diríamos

até mesmo, carnavalesca do que seria o mundo sem a morte, constitui também uma

verdadeira afirmação da vida. Assim, buscamos compreender como todas essas

características juntas em uma narrativa podem de certa forma, “conviver” sem prejudicar a

mensagem que o autor quer passar.

José Saramago é considerado um grande romancista português. Embora ele não assuma

como o seu primeiro romance Terra do Pecado (1947), a base de sua literatura é o Neo-

Realismo difundido em Portugal a partir de 1938. Assim, o romance que efetivamente dá

início à sua carreira é Manual de Pintura e Caligrafia (1977), que nasce de uma confissão

só permitida e nascida com os alvores do Movimento das Forças Armadas e pela crença de

que valeria a pena se autobiografar moderadamente num volume que refletia a vida e a

imagem de muitos dos seus contemporâneos. Em seguida, publica Objecto Quase (1978) e

Levantado do Chão (1980), cujo tema abordado é a Reforma Agrária. Mesmo sendo

influenciado pelo Neo-Realismo, José Saramago deu um sentido próprio à sua produção,

apresentando nela parábolas bastante criativas e inteligíveis, pontuação peculiar, diálogos

entre textos importantes da Língua Portuguesa e da Literatura Universal, assim como o uso

de provérbios e aforismos. Talvez por essa infinidade de características em sua escrita, ele

seja considerado por alguns leitores como um autor cuja obra é de difícil compreensão. No

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entanto, José Saramago já conquistou milhões de leitores em todo o mundo pela magia de

sua literatura, não negando jamais seu ateísmo, sua posição contra o dogmatismo de

algumas religiões, além de seu engajamento no partido comunista. Nesse aspecto, João

Céu Silva afirma o seguinte sobre o autor:

José Saramago é o escritor que saiu da gaveta com o 25 de abril de 1974. Não

foi o escritor de grandes obras guardadas para serem publicadas quando o

regime mudasse, porque até então fizera os mesmos versos de que qualquer

português poderia ser autor, mas um homem que foi fermentando na sua

cabeça-e em alguns escritos do período formativo que se prolongou por décadas

de vida- uma escrita vigorosa e inventiva, que veria a luz do dia pela força das

contradições que a democracia em construção fez explodir. 1

Mas ainda em relação ao Neo-Realismo, ele superou essa corrente estética por meio de

seu estilo inconfundível e entre outras coisas, ao dialogar com a tradição do Realismo

Mágico2 empregando essa categoria em alguns de seus romances como um procedimento

narrativo de transgressão, junto à ironia e à intertextualidade. Podemos incluir como

romances que fazem parte da estética do Realismo Mágico Memorial do Convento (1982),

A Jangada de Pedra (1986) e As Intermitências da Morte 3. Neste último, utilizando-se de

uma linguagem bastante humorada e lúdica, José Saramago trata da morte de forma

bastante contraditória e ao mesmo tempo cômica, porém não deixando de lado as ironias

que comportam críticas sociais bastante severas. Temos nesse romance dois momentos

bem distintos: o primeiro trata da constatação da ausência da morte por um período de sete

meses, em certo país fictício, do medo, da desordem e da euforia geral que se segue, lado a

1 João Céu e Silva, Uma longa viagem com José Saramago, Porto, Editora Porto, 2009, p.212 “O termo Realismo Mágico foi empregado pela primeira vez em 1925 na Alemanha, pelo crítico de arte e historiador Franz Roh (1890-1965) num livro publicado pela Revista do Ocidente, intitulado O Realismo Mágico. O uso original refere-se ao tipo de obra literária ou artística que apresenta a realidade a partir de uma perspectiva incomum que, sem transcender os limites do natural, induz no leitor ou observador um senso de irrealidade. O uso atual descreve textos em que duas visões opostas de mundo- uma natural e outra sobrenatural- são apresentadas como se não fossem contraditórias, lançando-se mão de mitos e crenças de grupos etno-culturais para os quais essa contradição não se manifesta.” Tânia Mara Antonelli Lopes “ O realismo mágico em José Saramago”, In:Estudos lingüísticos (UNESP),São Paulo, dezembro de 2008.3 A obra As Intermitências da Morte será sempre indicada no corpus de nossa pesquisa pela abreviação AIM.

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lado com situações plenas de realidade resultando na aceitação do fato pelos personagens,

ao passo que no segundo momento da obra, temos a morte como personagem, revelada de

início na sua forma medieval e que vai sofrendo metamorfoses até chegar, finalmente, à

sua forma humanizada. José Saramago utilizou-se da mitologia para desenvolver essa

personagem e para ligar esses dois momentos do romance, há a famosa Carta mensageira

de Parca que por eufemismo significa economizar. O próprio escritor define esse romance

de “a história de Eros e Tânatos”4 ao referir-se à frase que o inicia e que o finaliza “ No dia

seguinte ninguém morreu” deixando bem claro que o amor venceu a morte, e mostrando a

possibilidade de tudo recomeçar de forma cíclica.

Em 1984, publica O Ano da Morte de Ricardo Reis e em 1989, História sobre o Cerco

de Lisboa; em 1990, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, obra que lhe valeu a decisão de

deixar o seu país para ir viver na Espanha, na Ilha de Lanzarote “após ter ouvido bastantes

e severas críticas de vários quadrantes de uma sociedade católica pouco acostumada a ver

seus pilares ficcionados a bel-prazer de um criador”5. Considerando a sua vasta produção

literária, sobretudo no gênero romance, o próprio escritor se justifica dizendo que cada

romance seu “é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que o

preocupa” 6. Assim, escolhemos o romance As Intermitências da Morte para nossa análise

no propósito de detectar a presença de elementos burlescos distribuídos em situações onde

encontramos a sátira às instituições sociais (igreja, políticos, máphia7, exército, casas de

repouso, seguradoras, etc.); a ironia, que é marca constante, sobretudo, na linguagem do

narrador e o cômico que muitas vezes leva ao riso por estar presente em situações

inusitadas e subversivas com o objetivo de excitar o leitor fazendo-o refletir. Nesse

propósito, nosso trabalho está dividido da seguinte forma: na primeira parte da pesquisa,

4 Resposta à pergunta feita por João Céu e Silva na ocasião de uma entrevista em Tias de Fajardo.5 João Céu e Silva, Uma longa viagem com José Saramago, op. cit., p. 78.6 Id., ibid., p. 46.7 No romance essa palavra é escrita com ph para diferenciar-se da máfia internacional.

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temos uma análise das duas partes do romance onde estudaremos a ironia, sobretudo nas

questões que abordam reflexões econômicas, religiosas, políticas e patrióticas, sobretudo

no discurso do narrador. Nele, nosso objetivo é de tentar entender como se consegue

conciliar o cômico e o irônico em algumas situações burlescas e como esse romance

trabalha o cômico no que é real e no que é imaginário. É a partir destas indagações, que

buscaremos as respostas através de um estudo crítico-analítico da primeira parte da obra,

apoiando-nos na teoria da carnavalização de Mikhaïl Bakhtine e nos estudos sobre a ironia

e sobre a comicidade. Na segunda parte estudaremos o processo de humanização da Morte

perpassando desde a mitologia à metamorfose dessa personagem que se apresenta a partir

da segunda parte como personagem de primeiro plano (nomeadas por nós como mulher-

morte e em seguida, morte-mulher). E, finalmente na terceira parte, além de abordamos o

humanismo latente em José Saramago, faremos uma breve análise histórica e filosófica

sobre o pensamento do homem frente à morte ou frente a essa possibilidade.

No desenvolvimento do corpus de nossa pesquisa, encontraremos algumas

comparações com outras obras do autor por tratarem de assuntos que permeiam o nosso

tema principal. Entre essas obras podemos citar Ensaio Sobre a Cegueira (1995), cujos

temas abordados surgem a partir de uma ausência, no caso a ausência de visão para a partir

dela tratar sobre questionamentos que envolvem a razão, assim como em As

Intermitências da Morte, os questionamentos surgem a partir da ausência da morte. Outra

obra citada no corpus é O Ano da Morte de Ricardo Reis por tratar também da temática da

morte, além, claro, de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Memorial do Convento e os

Cadernos de Lanzarote (1994-1998) cuja importância está em demonstrar textualmente

algumas encenações do Eu do autor em estudo e a sua faceta crítica por meio da ironia.

Com relação ao título de nossa pesquisa “Da alegoria à humanização: elementos da

ironia e do cômico na obra As Intermitências da Morte de José Saramago”, tivemos como

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objetivos principais: analisar as ironias e as formas burlescas bem como a evolução da

temática da morte dentro da narrativa partindo da possibilidade de todas essas

características estarem presentes na mesma obra. Com relação ao tema da morte, bastante

enfatizado na nossa pesquisa, não indica de modo algum que pretendemos realizar um

tratado sobre ele, mas sim mostrar o modo distinto e criativo com que José Saramago lida

com esse assunto, além de caracterizá-lo pelo mistério, refletido pelo aspecto lúdico da

linguagem, e pelo medo daquilo que não se conhece, objetivando implicitamente chegar a

uma reflexão filosófica bem humorada.

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PRIMEIRA PARTE

O Burlesco

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Esta parte do trabalho visa ao estudo de elementos burlescos na obra As Intermitências

da Morte, amparando-se na observação do uso de ironias (situacionais e discursivas) e de

efeitos do cômico que levam o leitor à reflexão e ao riso; no entanto, não deixaremos de

fazer ao longo de nossa análise pequenos comentários sobre a simbologia de alguns

elementos presentes no texto.

I. 1. Deformações burlescas e paródia

No romance, como já foi dito, há a presença da crítica social, ora de forma severa ora de

forma sutil. O ataque aos diversos segmentos sociais dá-se de forma gradativa; assim, para

manter-se distante e sentir-se mais à vontade para fazer as críticas através do discurso do

narrador e do dialogo entre as personagens, o autor cria um espaço ficcional bastante

definido (um pequeno país católico cujo nome é desconhecido), porém tendo sempre a

preocupação com as leis temporais citando a matemática do tempo como reguladora de

todas as ações. É nesse contexto que as regras do sistema desse pequeno país são alteradas

e as realidades invertidas; aqueles que são considerados intelectuais são convocados para

encontrar a solução. Temos então um universo carnavalizado onde tudo ou quase tudo é

modificado a partir da presença de um fato que marcará a vida de todos os moradores desse

país:

No dia seguinte ninguém mais morreu. O fato, por absolutamente contrario às

normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos

os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos

quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de

ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com

todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas,

matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença,

uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra

nada.( AIM,p.13.)

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A frase que inicia a obra “No dia seguinte ninguém mais morreu” é o primeiro indício

de que tudo estaria em breve às avessas e um pré-anúncio dos fatos fantásticos que

estariam a acontecer. Esta frase que aguça também a curiosidade do leitor, causando um

certo estranhamento momentâneo retornará no final, sugerindo assim uma nova hipótese,

ou seja, a possibilidade de haver uma outra intermitência, uma outra fase cíclica, que será

deixada pelo autor em suspenso. Vale ressaltar também que “o dia seguinte” é o primeiro

dia de um novo ano, neste caso (novo de fato), o que nos remete à simbologia de algumas

cerimônias mítico-rituais da passagem de Ano em algumas sociedades que também

utilizam celebrações carnavalescas. Esses ritos de passagem pressupõem uma “morte” (do

tempo “velho” ou ano “velho”) e um novo nascimento (do tempo “novo” ou ano “novo”),

afirmando através do tempo a necessidade de purificação, de renovação periódica da vida,

razão pela qual se ligam ao culto dos mortos. Nesse sentido, Mircea Eliade explica que

“cada ano novo é considerado como reinício do tempo, a partir do seu momento inaugural,

isto é, uma repetição da cosmogonia”8. Sendo assim, a escolha desse período do ano, a

nosso ver, não foi meramente ocasional. O autor tem plena consciência de que há toda uma

simbologia que explica a importância dessa renovação em várias culturas. Por isso opta por

ele para demarcar o início do mundo carnavalizado dentro da narrativa, definindo e

determinando a vida dos habitantes do país citado no romance antes e depois da passagem

do ano.

Nessa narrativa, a opção por situar este fato “absolutamente contrário às normas da

vida” na passagem do ano, revela-se assim extremamente significativa. Essa ocorrência

inusitada, mesmo numa matemática temporal controlada, instaura um tempo de exceção,

uma desordem que é característica de um mundo às avessas que, no entanto, impera não

8 Mircea Eliade, Mito do Eterno Retorno: cosmo e história, São Paulo, Mercuryo, 1992, p.59.

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somente na passagem entre o dia anterior e o seguinte, mas durante um período de sete

meses, ou seja, de quase uma gestação humana, o que para nós não deixa de ser de extrema

importância para a compreensão dos fatos que se desenrolam ao longo do romance. Assim,

as conseqüências que a ausência da morte provoca permitem refletir melhor sobre a relação

entre a vida e a morte, que são opostos que se complementam. O que no início parecia ser a

realização de uma antiga e persistente aspiração humana- o desejo de imortalidade, a vida

eterna- revela-se na prática uma catástrofe, um verdadeiro pesadelo.

A ausência dos mortos provocará um caos abalando diversos setores da vida humana.

Logo, com o objetivo de tecer profundas críticas a personagens que representam alguns

setores da sociedade, instituições, costumes e valores serão ridicularizados a partir de

situações provocadas pela tomada de consciência desse problema (a ausência e em seguida

o retorno da morte) e que intencionalmente levarão o leitor a refletir sobre a seguinte

questão: Se as pessoas não morrem para que serve a Igreja?:

As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, que lhes dermos, não

têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do

pão para a boca. Os delegados das religiões não se deram ao incômodo de

protestar. Pelo contrário, um deles, conceituado integrante do sector católico,

disse, Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para

que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado no pescoço e, chegada

a sua hora, acolham a morte como libertação. (AIM, p.38)

A seu tempo conheceremos os motivos desta provação, entretanto vamos pôr os

rosários a trabalhar, Nós faremos o mesmo, refiro-me às orações, claro está ,

não aos rosários , sorriu o protestante, E também vamos fazer sair à rua em todo

país procissões a pedir a morte, da mesma maneira que já faziam ad petendam

pluviam, para pedir a chuva, traduziu o católico (...) Para começar , levantar a

sessão , respondeu o mais velho, E depois,Continuar a filosofar, já que

nascemos para isso, e ainda que seja sobre o vazio,Para quê, Porque a filosofia

precisa tanto da morte como as religiões, se filosofarmos é por saber que

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morreremos, monsieur de Montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a

morrer. (AIM, p.40)

O burlesco serve-se da paródia na imitação ridicularizadora, demonstra também um

grande conhecimento dos valores das regras vigentes bem como uma capacidade para

manusear a linguagem e o estilo. Daí o fato de encontrarmos também nas citações acima

uma faceta do cômico. No diálogo entre religiosos e filósofos a conclusão de que eles

deveriam promover uma procissão para pedir a volta da morte é, além de ridículo, cômico.

No entanto, há um ponto de forte crítica em seus discursos: o domínio do povo através do

medo da morte. Aqui não temos somente uma questão de crítica social, mas também uma

amostra do pensamento ideológico de José Saramago com relação às religiões, sobretudo a

Católica. Apesar de se afirmar ateu, ele tem grande interesse pelas questões religiosas.

Segundo ele, sendo a religião um fenômeno exclusivamente humano, é natural que

provoque a curiosidade em um escritor, ainda que ateu. E como se sabe, As Intermitências

da Morte não é a primeira obra a tratar do tema. Em Objecto Quase (1978), coletânea de

contos, podemos destacar críticas bem elaboradas a personagens ligadas à Igreja e à

política portuguesa de transição do Estado Novo e os primeiros tempos após o 25 de abril;

e em Memorial do Convento (1982) se problematiza a questão dos trabalhadores que

sofrem pela grandeza e poder da Igreja. Na obra em estudo, como verificamos abaixo,

essas críticas são bem explícitas:

Finalmente, last but not least, a igreja católica, apostólica e romana tinha muitos

motivos para estar satisfeita consigo mesma. Convencida desde o princípio de

que a abolição da morte só poderia ter sido obra do diabo e de que para ajudar a

deus contra as obras do demo nada mais é poderoso que a perseverança na

prece, tinha posto a virtude da modéstia que com não pequeno esforço e

sacrifício ordinariamente cultivava, para passar a felicitar-se, sem reservas, pelo

êxito da campanha nacional de orações cujo objetivo, recordemo-lo, fora rogar

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ao senhor deus que providenciasse o regresso da morte o mais rapidamente

possível para poupar a pobre humanidade aos piores horrores, fim da citação.

As preces haviam demorado quase oito meses a chegar ao céu, mas há que

pensar que só para atingir o planeta marte precisamos de seis, e o céu, como é

fácil de imaginar, devera estar muito mais para la, treze mil milhões de anos-luz

(...). (AIM, p.126)

A Igreja é por diversas vezes tratada ao longo da narrativa como “santo instituto que

não tem certeza de quem teria mais autoridade, deus ou a morte; ou se ambos eram caras

da mesma moeda”. Nota-se no teor das críticas toda ideologia de um escritor que não

acredita em Deus, e que põe sempre em dúvida a Sua existência tentando mostrar no texto

que tudo não passa de invenção dessa “instituição santa” que na verdade impõe ao povo a

dicotomia morte/salvação para sobreviver. Não podemos desconsiderar, dentro desse

pensamento, a intenção presente na escrita das palavras deus, igreja, diabo, verificadas em

todo o texto com letras minúsculas, chamando à atenção do leitor para essa tríade e a

importância dela na compreensão geral de suas ideias.

Na obra estudada, o burlesco encontra-se em uma explícita paródia apresentada ainda

na primeira parte da narrativa. Ela é explicita porque critica o “pseudo-patriotismo” dos

habitantes do pequeno país católico. Contudo, deixa claro pelas evidências na narrativa de

que se trata do povo português porque ao lermos o trecho dentro do conjunto da obra,

temos a sensação de que a mensagem transmitida remete a lembranças de algo já

conhecido ou vivido. Então temos também de certa forma a intertextualidade para o efeito

do humor no que se refere à desconstrução do mito da bandeira nacional, tornando o que é

sério em algo cômico:

Um dia, uma senhora em estado de viúva recente, não encontrando outra

maneira de manifestar a nova felicidade que lhe inundava o ser, e se bem que

com a ligeira dor de saber que, não morrendo ela, nunca mais voltaria a ver o

pranteado defunto, lembrou-se de pendurar para a rua, na sacada florida da sua

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casa de jantar, a bandeira nacional. Foi o que se acostuma chamar meu dito,

meu feito. Em menos de quarenta e oito horas o embandeiramento alastrou a

todo o país, as cores e os símbolos da bandeira tomaram conta da paisagem,

com maior visibilidade nas cidades pela evidente razão de estarem mais

beneficiadas de varandas e janelas que o campo. Era impossível resistir a tal

fervor patriótico (...). (AIM, p.26)

Esse romance foi publicado em 2005 e no ano precedente teve lugar a Euro Copa.

Nesse período, havia a bandeira portuguesa espalhada em janelas de todo o país

coincidentemente aos fatos narrados na obra em estudo. O próprio José Saramago afirma

claramente que “... se o nosso patriotismo fosse tão alto, se fosse um sentimento de paixão

patriótica... Eu creio que há outros motivos com certeza mais importantes do que ganhar

um desafio de futebol, ou não, para que aquele patriotismo tome a palavra9.” A paródia

aqui é bastante clara, a problemática é real, e como o autor é conhecedor da cultura

popular de Portugal, pode posicionar-se contra certos ritos,valores e posturas que, para os

portugueses é uma forma de demonstrar seu amor à pátria ao passo que para o autor, trata-

se de mera hipocrisia. Logo, José Saramago preferiu parodiar na narrativa, pois dentro da

ficção ele pode tudo; contudo faz questão de dizer por si mesmo o que pensa, sem se

esconder na fala do narrador. Linda Hutcheon, em seu ensaio explicativo sobre a paródia,

sugere que o homem ocidental moderno tem necessidade de afirmar o seu lugar na difusa

tradição cultural que o cerca, levando-o a buscar deliberadamente a incorporação do velho

ao novo em um processo de desconstrução e reconstrução por meio dos recursos

estilísticos encontrados na ironia e da inversão:

A paródia é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com

distância crítica cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo.

Versões irônicas de transcontextualização e inversão são os seus principais

9 João Céu e Silva, Uma longa viagem com José Saramago, op. cit., p. 307.

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operadores formais, e âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso à

homenagem reverencial.10

As situações burlescas nesse romance estão bastante próximas do conceito de

carnavalesco e até aparentam-se com a paródia na medida em que vulgarizam um gesto tão

sublime que é o hastear de uma bandeira nacional em ocasiões solenes. Logo, referindo-se

ainda à situação citada, podemos concluir que qualquer leitor que tenha conhecimento da

cultura e da história de Portugal, sem dúvida, perceberá o burlesco e a caricatura.

Reforçando ainda mais os atos burlescos, essa mesma atitude assumida pela personagem

na primeira parte da obra será repetida por outros para anunciar de forma bem grotesca, na

segunda parte, a casa onde futuramente alguém irá morrer. Percebemos abaixo o uso da

expressão “farol para os empacotadores de defunto” para designar esse fato:

Como já se terá percebido, a bem lembrada utilização da bandeira nacional iria

ter uma dupla finalidade e uma dupla vantagem. Havendo começado por servir

de guia aos médicos, iria ser agora farol para os empacotadores de defunto.

(AIM, p.115)

Segundo Mikhaïl Bakhtine, reforçando o que foi dito, o conceito de paródia está

interligado ao de carnavalização: essa segunda vida da cultura popular constrói-se de certa

forma como paródia da vida ordinária. Assim, excentricidades, absurdos e escândalos em

gestos são permitidos nesse mundo. É a subversão total contra qualquer tipo de convenção,

na medida em que o carnaval propõe uma nova ordem, que é a desordem. Portanto,

podemos afirmar que a paródia, na atualidade, muito mais do que ridicularizar, tem o papel

de recodificar ironicamente, através da transcontextualização que assinala a intersecção da

criação e da recriação, da invenção e da crítica. Desafiando normas, renovando ou

reformando, mesmo quando se identifica com o outro. Linda Hutcheon explica “ (...) a

ambivalência, estabelecida entre repetição conservadora e diferença revolucionária, faz

10 Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, Rio de Janeiro, Edições 40, 1989, p. 54.

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parte da própria essência paradoxal da paródia.11”. Essa ambivalência, nestas passagens

paródicas de As Intermitências da Morte, deve-se em grande parte às estratégias do uso da

ironia no discurso dos personagens e, principalmente no do narrador, o que confirmamos

no decorrer da nossa análise. Portanto o uso da paródia conforme foi estudado aqui vai

muito além do simples “fazer críticas” com o uso de ironias: ela serve também como

mecanismo de reflexão.

Outra característica burlesca bastante presente na narrativa é o exagero. Temos ações

com alguns elementos mágicos que por mais que o autor, através da voz do narrador, tente

explicá-los, não consegue ser suficientemente convincente porque a linguagem é,

certamente, bastante exagerada. Um exemplo disso é a exageração numérica de caráter

gradativo dentro do texto reforçando assim, um aspecto cômico ao tratar da morte dos

moribundos:

Durante sete meses, que tantos foram os que a trégua unilateral da morte havia

durado, tinham-se ido acumulado em uma nunca vista lista de espera mais de

sessenta mil moribundos, exatamente sessenta e dois mil quinhentos e oitenta,

postos de uma só vez em paz por obra de um instante único, de um átimo de

tempo carregado de uma potência mortífera que só encontraria comparação em

certas repreensivas ações humanas. (AIM, p.113)

Então estamos de acordo, concluiu a morte, dedicarei este dia a escrever as

cartas, cálculo que venham a ser umas duas mil e quinhentas, imagina só, tenho

a certeza de que chegarei ao fim do trabalho com o pulso aberto, (...). A morte

só não chegou ao fim com o pulso aberto depois de tão grande esforço porque,

em verdade, aberto já ela o tem desde sempre. São modos de falar que se nos

pegam à linguagem, continuamos a usá-la mesmo depois de se terem desviado

há muito do sentido original. (AIM, p.186)

Os personagens que representam o clero, o governo e a mídia são privados de uma

psicologia complexa, deixando transparecer ao leitor o quanto são limitados possuindo,

11 Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, op. cit. p. 128.

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portanto, traços de uma personalidade exagerada ou caricaturada, tornando-os assim

cômicos e ridículos frente à problemática da morte. Talvez o autor tenha preferido

descrevê-los desta forma com o objetivo de tornar as ações mais subversivas dentro da

narrativa. Esse jogo de excesso na descrição de personagens com a intenção de acentuar

alguns traços negativos em detrimento das qualidades a fim de caricaturar, de satirizar está

presente também em Memorial do Convento. Para o leitor experiente em José Saramago,

fica fácil perceber o quanto essas características burlescas, incluindo deformações de

personagens, são encontradas em suas principais obras.

I. 2- As intenções da ironia no discurso do narrador

Antes de começarmos nosso trabalho de análise, é imprescindível explicar a

importância do papel da ironia em uma narrativa e conhecermos um pouco seu histórico e

os dois tipos distintos que podemos encontrar ou não no romance analisado.

A ironia é um fenômeno bastante antigo e por conseqüência, bastante estudado.

Encontram-se desde os primórdios da civilização, algumas expressões ou situações que,

atualmente, poderiam ser chamadas de irônicas. A partir do século XVII é que esse

fenômeno ganhou esse nome, ironia. Existem teóricos que destacam dois tipos de ironia: a

situacional e a verbal. Temos também a partir da obra A República de Platão, o primeiro

registro de ironia aplicada a Sócrates, que criou o método denominado maiêutica no qual

fazia as pessoas buscarem um autoconhecimento, ou seja, uma auto-reflexão expressa no

pensamento. Os diálogos de Sócrates eram divididos em dois momentos: a ironia

(perguntar fingindo ignorar) e a maiêutica (momento do “parto” intelectual, da procura da

verdade no interior do homem). Os exemplos citados acima são importantes para mostrar o

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quanto esse fenômeno é antigo. Logo depois, o termo foi atribuído a Aristóteles,

aparecendo em traduções da obra nominada Poética como uma figura de retórica utilizada

para censurar através de um elogio irônico ou até mesmo elogiar através de uma censura

irônica.

Ao longo de sua trajetória, a ironia adquiriu novos significados até o fim do século

XIX; no entanto os antigos permaneceram, e mesmo sendo a ironia satírica, vulgar e

barata, perversa, diabólica e destruidora, o que realmente existem nesses novos

significados são transformações bastante radicais. Antigamente, ela era praticada apenas

em espaços específicos ou ocasionalmente. Hoje, podemos considerá-la como parte

integrante do mundo e da humanidade. Ela está presente na literatura seja de forma clara,

explícita; seja de forma indireta. Daí atualmente termos também estudos sobre a ironia

literária.

É importante, durante esse estudo da ironia em José Saramago, salientarmos a

preocupação não só no que é irônico, mas também naquele que é vítima da ironia. Se não

há vítima, há sempre um alvo da observação irônica. A ocorrência da ironia é explicita e

nem sempre depreciativa ou agressiva. Contudo, muitas vezes, é apenas um estilo de

linguagem, como veremos mais adiante na análise de algumas passagens da obra em

estudo. E mesmo sendo um estilo, alguns cuidados devem ser tomados, pois sendo um

estilo, a ironia e sua interpretação não podem ser estudadas separadamente, visto que a

ironia não é ironia até que alguém, obviamente, o leitor, seja capaz de interpretá-la como

tal. Nesse aspecto Lélia Parreira Duarte contribui dizendo o seguinte:

A ironia, afirmação de um indivíduo que reconhece a natureza intersubjetiva de

sua individualidade, serve dessa forma à literatura, quando esta busca um leitor

que não seja passivo, mas atento e participante, capaz de perceber que a

linguagem não tem significados fixos e que o texto lhe pode apresentar

armadilhas e jogos de enganos dos quais devera, eventualmente, participar. Isso

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porque um autor escreve para ser lido, mesmo que seja apenas por ele mesmo,

embora o autor clássico aparentemente negue isso, pois não se coloca de forma

explícita na obra e não revela geralmente preocupação e não revela geralmente

preocupação com o receptor.12

No sentido abordado acima, podemos então ilustrar como exemplo a epopéia Os

Lusíadas do poeta português Luis Vaz de Camões. O fato de o poeta colocar-se

explicitamente no poema é um dos motivos pelos quais essa epopéia não é considerada

clássica por alguns estudiosos.

A ironia é, portanto, uma estrutura comunicativa que se relaciona com a sagacidade; é

mais intelectual e mais próxima da mente que dos sentidos, é muito mais reflexiva e

consciente que lírica ou envolvida. Assim, podemos dizer que há três tipos distintos de

ironia: a retórica (coloca uma dupla possibilidade, mas tem um ponto de chegada); a

romântica (amplia e torna mais complexo o fingimento existente na ironia retórica); e a

humoresque (cuja intenção não é dizer o oposto ou simplesmente dizer algo sem realmente

dizê-lo, é ao contrario, manter a ambigüidade e demonstrar a impossibilidade de

estabelecimento de um sentido claro e definitivo, pois o texto construído com essa ironia se

configura como código evanescente e lugar de passagem). Esta última afasta-se da

seriedade e, intencionalmente, provoca o riso, com o objetivo implícito de levar o

interlocutor à reflexão e ao convencimento. À proporção que formos analisando o romance

As Intermitências da Morte, iremos perceber qual delas tem um maior destaque na

narrativa e nos discursos e qual delas se relaciona com as intenções do autor. Devemos

considerar também a hipótese de haver apenas as características de um tipo de ironia como

também de haver a presença de duas ou mais em determinadas passagens da obra

analisada.

12 Lélia Parreira Duarte, Ironia e humor na Literatura, Belo Horizonte, PUC Minas, 2006, p.19.

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Outro fator de extrema importância ao estudo literário da ironia é o jogo irônico. Este

é composto por dois elementos essenciais: o ironista (é aquele que pretende estabelecer

uma relação irônica entre o dito e o não dito) e o destinatário. O interpretador é aquele que

dá corpo à ironia, é aquele que decide se a elocução é irônica ou não, determinando qual o

sentido irônico particular pode ter. Não podemos deixar de salientar que em um texto a

ironia nem sempre será bem percebida conforme desejou o ironista. Às vezes, ocorrem

fracassos na comunicação. Já no contexto literário, podemos desconfiar um pouco de

alguns autores irônicos porque nunca sabemos o que eles realmente pensam nem o seu

nível de engajamento. Por isso devemos sempre considerar o distanciamento, seja no

âmbito ideológico ou psicológico, entre o escritor e a ironia que este faz.

Na nossa análise, trataremos dos sinais (intenções) da ironia no discurso literário

segundo a teoria de Philippe Hamon na qual ele cita diferenças entre o discurso onde há a

presença da ironia sem ser irônico. Analisaremos o discurso representado pelo narrador e

tentaremos interpretá-lo de acordo com o contexto levando também em consideração os

traços lingüísticos e os valores ideológicos que permeiam o conteúdo da obra analisada

considerando que seu autor, José Saramago é, atualmente, na Literatura de Língua

Portuguesa, um dos principais mestres no uso desse estilo. E a respeito disso, ele mesmo

no seu papel de escritor reconhece-o afirmando o seguinte:

Sou razoavelmente irônico, é uma das coisas que me caracteriza, além de ser

alto e calvo... No fundo, sou alguém que gostaria de brincar, mas não pode ou

não sabe fazê-lo. Isso se resolve em mim pela ironia. Que é muitas vezes virada

contra o próprio ou contra coisas e pessoas que muito quer ou estima. Haveria

que estabelecer diferenças entre a troça, o sarcasmo, o humor e a ironia, tudo

parentes da mesma família, mas, como acontece com as pessoas do mesmo

sangue, nem sempre se dão bem. Creio que a troça é o pior de tudo; o sarcasmo,

às vezes, é a única solução, enquanto que o humor é uma espécie de gazua e a

ironia pode ser um disfarce de qualquer coisa grave, dor ou angústia, mas

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também pode ser prova ou demonstração de amor. De qualquer modo, tento

não sentimentalizar as situações que pareciam estar fadas a tal 13.

Como o próprio José Saramago afirma que se utiliza das ironias para brincar, o mesmo

representado na obra no papel do narrador, sente-se mais à vontade para se expressar por

meio do lúdico da palavra. Assim, ao falarmos nesse narrador, verificamos que ele em As

Intermitências da Morte exerce basicamente dois papéis, sendo cada papel diferente em

cada parte da obra estudada. Na primeira parte, deparamo-nos com uma voz onisciente e

onipresente que anuncia detalhadamente a seqüência dos fatos decorrentes da ausência da

morte ao leitor. Esse narrador vai além do seu papel, deixando bem claro a sua visão

mórbida dos fatos, e apropriando-se de certo humor negro, endereça-se ao leitor para fazer

suas considerações. É nesse momento que em seu discurso ele utiliza-se de ironias, ora

bem explícitas em seus comentários, ora bem cômicas referentes às situações anunciadas.

Observamos a liberdade na fala do narrador ao anunciar fatos e situações fantásticas no

desenrolar da narrativa e principalmente na primeira parte, onde a presença da ironia faz-se

de forma bem clara, utilizando um vocabulário paradoxal e até mesmo metáforas para

criticar não somente episódios textuais, mas também fatos que pertencem ao nosso

cotidiano e que são considerados como problemas sociais:

Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão freqüentes em ocasiões

festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam

mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte

em primeiro lugar. (AIM, p.13)

A ironia acima está presente no jogo lúdico das palavras: “alegre irresponsabilidade” e

“conseguir chegar à morte em primeiro lugar”. Esse jogo intenciona uma reflexão sobre a

irresponsabilidade no trânsito pelo excesso de velocidade como causa de mortes em

diversos países.

13 A força da ironia in A Capital, Lisboa, 26 de novembro de 1984, p. 33.

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Em outro momento da narrativa, percebemos também que o discurso político está bastante

em evidência ao citar temas atuais, polêmicos e midiatizados. O pseudopatriotismo, a

ausência de um governo eficaz que resolva a contento os problemas dos habitantes do país

que se encontra no caos (aqui representado por um rei que não se interessa por seus súditos

e um primeiro ministro que esconde tudo, tentado resolver à sua maneira) pela ausência da

morte e a corrupção, claramente denunciada no pacto entre dirigentes governamentais e a

máphia (na obra estudada, escrita com ph parodiando a máfia clássica internacional).

Setores da sociedade (seguradoras, funerárias, igrejas, casa de repouso, hospitais,

imprensa, etc.) são alvos de críticas, levantando assim a questão do interesse capitalista em

que sempre prevalece a busca pelo dinheiro e pelo poder. E o governo, para agradar esses

setores e ajudá-los a permanecer “vivos”, cria novas formas de sustentação do capital não

se importando de ferir as leis do absurdo.

Na ausência de mortos, as funerárias, os carpinteiros fabricantes de caixões e os

coveiros pediriam falência, assim como as agências seguradoras; no entanto para esse

problema, logo foi encontrada uma solução: o governo para fazer com que o capital circule

nesses setores, decreta a obrigatoriedade do enterramento e incineração de todo animal que

viesse a morrer, seja por acidente ou por doença, cria também um mecanismo que estende

o pagamento das apólices de seguro até uma determinada idade, já preocupado com o fato

de o segurado tornar-se imortal. Nessa passagem da obra, temos o absurdo que serve para

denunciar até onde chega a baixeza e a falta de escrúpulos do ser humano para ter dinheiro

e poder. E é através dessa “fábula” como é considerada essa obra, onde encontramos um

verdadeiro manifesto contra o capitalismo. A ironia no discurso do narrador sinaliza

denúncias e traz à tona reflexões sobre o “ser” e o “poder” e de como membros do poder

encontram as mais mirabolantes soluções para obter recursos financeiros. Temos a

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ridicularizarão desses setores que, para fugir do caos, ultrapassam as fronteiras para dar a

morte aos moribundos e enterrá-los no seu país natal, tudo em troca de dinheiro:

O país encontra-se agitado como nunca, o poder confuso, a autoridade diluída,

os valores em acelerado processo de inversão, a perda do sentido de respeito

cívico alastra a todos os sectores da sociedade, provavelmente nem deus saberá

aonde nos leva. Corre rumor de que a máphia está a negociar outro acordo entre

cavalheiros com a indústria funerária com vista a uma racionalização de

esforços e a uma distribuição de tarefas, o que significa, em linguagem de trazer

por casa, que ela se encarrega de fornecer os mortos, contribuindo as agências

funerárias com os meios e a técnica para enterrá-los. (AIM, p.73)

O discurso sério, quando aparece no texto, adequa as palavras às coisas e sua primeira

pertinência é a ironia. Assim o dizer coincide com o fazer, transformando-se em real. Esse

tipo de discurso tem mais credibilidade perante o leitor que consegue imaginar e ao mesmo

tempo associar um mundo real a outro onde o caos está estabelecido ( mundo irreal ou

irônico). Podemos destacar outro fator de extrema importância e que merece nossas

considerações que é a necessidade de conhecermos o gênero da obra para analisarmos a

ironia e suas intenções. Portanto, de acordo com Philipe Hamon :

L’identification du “genre” d’une œuvre et le détour par ce genre, donc par les

signaux qui signalent ce genre, constitue par conséquent une étape

indispensable à la compréhension de cette même œuvre. Le genre est donc cette

« aire du jeu », balisée de certains signaux, à l’intérieur de laquelle, sur la base

de certaines règles, va se jouer, entre partenaires disjoints, la communication

littéraires14. 

O gênero romance é considerado privilegiado na carreira de José Saramago apesar de

ter escrito poesias, teatro, contos e crônicas. Nesse gênero, como disse acima Philippe

Hamon, o autor encontra uma área livre para desenvolver e inovar a sua criatividade

literária ao utilizando-se do lúdico. Desse modo, ele enquadra todos os registros da Língua

14 Philippe Hamon, L’Ironie Littéraire : essai sur les formes de l’écriture oblique, Paris, Hachette, 1996, p.71.

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Portuguesa- do mais pomposo ao mais coloquial. Assim, não se trata, pois de um texto

“aberto” o que José Saramago nos oferece – e onde podemos normalmente distinguir com

facilidade, e apenas pela diferença gráfica, os diálogos do discurso do narrador; é pelo

contrário, um texto muito cerrado, denso, onde diálogos e discurso do narrador se

misturam, onde é difícil separar as falas das personagens umas das outras e onde a maior

parte dos sinais emotivos de pontuação (exclamação, interrogação, reticências, travessões)

se exclui.

No discurso do narrador de As Intermitências da Morte, encontramos também junto às

ironias, o uso de provérbios, de ditos populares, comprovando a aproximação desse

discurso ao coloquial e popular. Maria Alzira Seixo afirma o seguinte: “(...) nos romances

de Saramago, tem origem numa voz proverbial, e talvez não nos enganemos. (...) seria

interessante estudar o tipo de provérbios que efetivamente aparece nos textos, que são

muitas vezes formas de um discurso familiar provinciano ou sancionadas pela tradição

(...).15” Como vemos nos trechos abaixo, para melhor dialogar com o leitor, José Saramago

põe no discurso do narrador assim como no discurso de alguns outros personagens,

aforismos e ditos bem populares que costumamos ouvir cotidianamente:

E assim a vida, vai dando com uma mão até que chega o dia em que tira tudo

com a outra. (AIM, p. 42)

Conhece o ditado antigo, nunca digas desta água não beberei. (AIM, p.56)

Tal como na dúvida clássica de saber o que apareceu primeiro se o ovo, se a

galinha, também nem sempre é possível distinguir se foi a procura que precedeu

a oferta ou se, pelo contrario, foi a oferta que pôs em movimento a procura.

(AIM, p.60)

15 Maria Alzira Seixo, Lugares da ficção em José Saramago: o essencial e outros ensaios, Lisboa, Imprensa Nacional, 1999, p. 81.

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Com as palavras todo o cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas.

(AIM, p.69)

Como já dizia o ditado antigo, galinha do mato não quer capoeira. Em sentido

figurado, portanto, a morte anda no mato (...). ( AIM,p.172)

Se observarmos o discurso do narrador, perceberemos que este está aberto a mudanças

e arranjos no seu modo de narrar, pois em diversos momentos durante a narrativa, faz

pausas para refletir junto com o leitor sobre os problemas de compreensão provocados pela

linguagem, retificando-os; e sobre os sentidos das palavras, demonstrando assim a sua

preocupação em ser bem compreendido e aceito. A respeito desta preocupação, Felipa

Palma dos Reis acrescenta o seguinte: “A prosa de Saramago revela uma consciência

aguda dos problemas sociais e das diferenças de classe, mas essa consciência, na forma

como se exprime, submete-se inteiramente ao primado da linguagem.16” Portanto, temos a

partir desse diálogo com o leitor acerca da linguagem, uma característica marcante dos

romances saramaguianos:

Os atores do dramático lance que acaba de ser descrito com desusada num

relato que até agora havia preferido oferecer ao leitor curioso, por assim dizer,

uma visão panorâmica dos fatos, foram quando da sua inopinada entrada em

cena, socialmente classificados como camponeses pobres. O erro, resultante de

uma impressão precipitada do narrador, de um exame que não passou de

superficial, devera, por respeito à verdade, ser imediatamente retificado. (AIM,

p.49)

Enfim, de deus e da morte não se têm contado senão histórias, e esta não é mais

que uma delas. (AIM, p.152)

José Saramago observa-se quando escreve e ao mesmo tempo em que escreve,

discorre sobre a linguagem que usa, comentando-a e corrigindo-a. Quando percebe que usa

“clichês”, justifica-se. Assim, através da fala do narrador, ele não hesita em aplicar o

mesmo tipo de tratamento aos lugares comuns da linguagem popular, e do uso de 16 Filipa Palma dos Reis, José Saramago e algumas tendências atuais do romance em Portugal, Revista Peregrinação, Leeds, N° 12, 1986, p. 5.

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provérbios, garantindo-lhe o caráter intertextual já verificado anteriormente em O Ano da

Morte de Ricardo Reis (1984). Logo podemos perceber que o uso desse tipo de citação na

obra, é reflexo da intenção do autor em comentar um pouco a ironia na própria linguagem.

Falar com leitor o deixa à vontade para exprimir melhor as verdades dos fatos. Pode ser

também considerada uma auto-reflexão por meio do diálogo com o leitor. Daí o propósito

de José Saramago conhecer bem o momento em que deve ser irônico.

I. 3- O riso nas intenções cômicas e irônicas

A ironia sempre foi marca registrada no conjunto da obra de José Saramago. Muitas

vezes deixando de ser uma simples ironia literária, passando a ser uma sátira ou até mesmo

uma paródia ou tudo junto, como já foi citando anteriormente. No entanto, na obra em

estudo, além de encontrarmos características desses estilos, temos também algo que a torna

um tanto quanto cômica e como tal, leve o leitor ao riso. Talvez pelo fato da narrativa ser

tratada pelo próprio escritor como fábula17, por querer passar no seu final uma mensagem à

humanidade, ela também tem caráter risível, ou seja, traços do cômico. Esse aspecto

cômico alia-se à ironia, ou talvez seja o contrário, a ironia (sendo ela bem elaborada e

intencionada) conduza ao cômico e conseqüentemente ao riso. No decorrer da nossa

análise, observaremos essas características em diálogos, situações e na fala do narrador.

Henri Bergson, em seu estudo sobre o riso, fez questão de mencionar “que não há

comicidade fora do que é propriamente humano.18” Esse autor enfatiza que o homem é o

único animal capaz de rir e de fazer rir. Assim, o leitor fazendo uso do seu imaginário,

mergulhando vivamente na obra lida é capaz de compreender o que nela venha ser cômico

e a partir de então, rir. O cômico infiltra-se em formas, em atitudes, em gestos, em

17 Durante o lançamento do livro em São Paulo, SESC Pinheiros, 25 de Outubro de 2005.18 Henri Bergson, O riso, Rio de Janeiro, 1983, p.7.

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situações, em ações e em palavras. O cômico é o que faz rir, o que excita o riso e também o

que se presta ao riso. Nesse sentido abordado, Jean Emelina enriquece ainda mais as

definições explicando o seguinte: «  Le comique peut être verbal ou non verbal, populaire

ou aristocrate, il peut concerner le réel ou l’imaginaire ; il peut naître de la société contre

l’individu ou de l’individu contre la société et, surtout, il touche à tous les domaines19. » 

Desde a sua primeira parte, As Intermitências da Morte traz em si um universo mágico

que aliado a recursos estilísticos bem elaborados, proporciona uma leitura agradável,

embora ela trate de um tema “caro” para a humanidade, pois se trata de algo não muito

abordado cotidianamente nos dias de hoje. Entretanto, objeto do pensamento ocidental ao

longo da nossa história, a morte ou a vontade da eternidade, está na ciência, na arte, na

filosofia e também na literatura. Assim, estando presente também na Bíblia e nos versos de

Homero (Ilíada e Odisséia), deparamo-nos com ela de forma bastante diferente na obra em

estudo. A abordagem desse tema nos discursos (personagens e narrador) torna em algumas

situações, a oscilação entre o sério e o cômico. Do sério, podemos citar as críticas

ferrenhas às instituições sociais que por meio de duras ironias, sentimos a indignação do

escritor que, embora se posicione em um narrador de terceira pessoa, consegue passar

claramente ao leitor, fazendo com que este compartilhe do seu sentimento. Do cômico,

quando no decorrer da narrativa, citam-se situações que fogem ao contexto real, utiliza-se

de personagens extremamente engraçadas e, sobretudo, ao descrever as aparições da morte,

já na segunda parte da obra.

José Saramago faz rir não apenas porque utiliza ironicamente a surpresa, a aparição de

cada fato no desenrolar da narrativa, mas porque tem consciência do caos apresentado nela,

e que humoristicamente, desmistifica ideologias e poderes estabelecidos, dividindo a sua

voz e brincando com a linguagem, convidando, assim, o leitor a entrar no seu jogo, mesmo

19 Jean Emelina, Le Comique : essai d’interprétation générale, Paris, Sedes, 1991, p. 12.

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que instantaneamente, e por outro lado, fazendo-o sentir temporariamente o peso da vida e

o medo da morte.

Podemos apontar como exemplos de situações cômicas na primeira parte da obra, as

soluções encontradas pelo governo e agências de enterro frente à possibilidade da

imortalidade do ser humano e a necessidade de se conseguir dinheiro:

(...), pois não é a mesma coisa sepultar um ser humano e levar à ultima morada

um gato ou um canário, e porque não dizer um elefante de circo ou um

crocodilo de banheira, sendo portanto necessário reformular de alto a baixo o

nosso know how tradicional, servindo de providencial apoio a esta

indispensável atualização a experiência já adquirida desde a oficialização dos

cemitérios para animais (...). (AIM, p.29)

Contrariando às leis naturais do “viver” e do “morrer”, além das convenções sociais, a

narrativa nos apresenta aspectos de um mundo absurdo, irreal. O cômico está na situação

absurda que fere as normas estabelecidas historicamente pela sociedade, uma inversão de

valores que não deixa de ser lucrativa. O efeito comparativo, evidenciado na citação acima,

serve também para chamar a atenção do leitor para o valor que deve ter a vida humana e

que em algumas situações é deixado de lado.

Assim, encontramos além do narrador, personagens que têm de certa forma um

chiste20na narrativa, é o exemplo do primeiro ministro do chefe de governo e do

representante da Igreja. Cada um traz no seu discurso algo cômico, seja pela forma como

declara a sua preocupação em manter “de pé” a instituição a qual pertence, seja pela forma

como o narrador passa ao leitor, de forma bastante irônica, até que ponto pode chegar o ser

humano (mesmo sendo ele consciente e conhecedor das normas) na hora do desespero.

20 Original do alemão Witz, que significa « gracejo », a palavra chiste é encontrada na obra de Freud, pai da psicanálise, que define o chiste como uma espécie de válvula de escape de nosso inconsciente, que o utiliza para dizer, em tom de brincadeira, aquilo que verdadeiramente pensa. Freud acreditava que utilizar o humor e a ironia no dia-a-dia deixava o cotidiano mais leve e a realidade mais tolerável. E é isto que o chiste possibilita quando conecta arbitrariamente, através de uma associação verbal, duas idéias contrárias.

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Esses personagens têm a função de tornar o que seria sério em algo engraçado, ou

proporcionar ao leitor uma leitura vista por um ângulo mais alegre, mais leve.

Northrop Frye lembra: “(...) há dois modos de desenvolver a forma cômica: um é pôr

ênfase principal nas personagens; outro é pô-la adiante, nas cenas do descobrimento e

reconciliação.21” E é quase isto que ocorre na narrativa. As personagens da primeira parte

não exercem as mesmas funções na parte seguinte, deixando abertura para o crescimento

da Morte que até então era tratada apenas como fenômeno e não como personagem. No

entanto, essas personagens reaparecem em algumas situações para dar a entender ao leitor

que elas ainda fazem parte da narrativa, embora ofuscadas pela Morte (personagem).

A morte, ainda na sua forma alegórica medieval, é figura de extrema comicidade, assim

como as personagens que participam das situações em torno dela. Ora, onde já se viu a

morte “parar de trabalhar” por sete meses, escrever cartas, organizar fichários, ir às

agencias de postagem das temerosas cartas de cor violeta, conhecer a gramática da língua

que usou para se endereçar aos futuros defuntos e tudo isso somente para se sentir

desejada, para provar que sem ela, paradoxalmente, seria difícil viver? O cômico está

presente em quase todos os momentos da aparição da Morte na segunda parte da obra, e,

sobretudo em seu discurso. Abaixo, temos reflexão e crítica ao poder das mídias e a

ponderação sobre as vantagens e desvantagens do uso dos atuais meios de comunicação,

como o correio eletrônico:

Se te tivesse mandado a ti, com esse teu gosto pelos métodos expeditivos, a

questão já estaria resolvida, mas os tempos mudaram muito ultimamente, há que

atualizar os meios e os sistemas, pôr-se a par das novas tecnologias, por

exemplo, utilizar o correio eletrônico, tenho ouvido dizer que é o que há de

mais higiênico, que não deixa cair borrões nem mancha os dedos, além disso é

rápido, no mesmo instante em que a pessoa abre o Outlook Express da

Microsoft já esta filada, o inconveniente seria obrigar-me a trabalhar com dois 21 Northrop Frye, Anatomia da crítica, São Paulo, Cultrix, 1973, p. 67.

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arquivos separados, o daqueles que utilizam computador e o dos que não o

utilizam, de qualquer maneira teremos muito tempo para decidir (...), talvez um

dia me resolva a experimentar, até La continuarei a escrever com caneta, papel e

tinta, tem o charme da tradição , e a tradição pesa nisto de morrer. ( AIM,p.143)

Outro ponto que abordaremos como fator cômico é a questão do uso do disfarce pela

Morte. Ora, em sua forma medieval ela não seria apresentável ao ser humano,

principalmente quando a intenção é de fazer contatos e dialogar. Assim o uso do disfarce

(adquirir uma bela forma feminina, bem vestida) fará com que se dê essa aproximação

entre Ela e o violoncelista (personagem que, por três vezes, não recebera a famosa carta

violeta e por isso perdera o momento de morrer, deixando, assim, a Morte contrariada).

Dessa forma, percebemos que nada na escrita de José Saramago é por acaso, nem mesmo a

escolha da cor da “famosa carta violeta”, que segundo Jean Chevalier “não significaria a

passagem da morte à vida, isto é, a evolução; mas sim a passagem da vida à morte: a

involução.”22. É interessante acrescentar que um mesmo sobrescrito de cor violeta aparece

também no romance O Ano da Morte de Ricardo Reis23, bem como a temática da morte.

Inteligentemente chamado de fábula, este romance traz também uma certa semelhança com

uma outra fábula de origem francesa escrita provavelmente por volta do século XIII,

recontada por Maurice Daumas, percebemos também a presença da morte como

personagem cômica e que envia mensageiros para anunciar a sua chegada aos futuros

mortos:

La mort est parrain d’un enfant, mais celui-ci ne devient pas médecin : le récit

bifurque vers un autre conte qui met aussi en scène La Mort, Les messagers de

la mort : la mort envoie des messagers à son compère pour le remercier de son

aide …et lui annoncer son trépas ! 24

22 Jean Chevalier et Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles : mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs ,nombres, Paris, Robert Laffont/Jupiter, 1982,p.1020. 23 José Saramago, O Ano da morte de Ricardo Reis, Lisboa, Caminho, 1984, p.170.24 Maurice Daumas, La mort en Occident: ethnologie historique, acesso digital em pdf, p.64.

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Verificamos que o tema morte é gerador de contos e fábulas frutos de um desejo

extremo de desvendar o desconhecido. A figura da morte aguça a criatividade, incentiva o

uso de figuras de estilo para efeito cômico como o que podemos perceber no diálogo entre

a Morte e a Gadanha (personificação da foice), onde ambas, seres femininos, trocam ideias

e sugestões a respeito do que é “ser bonito”.

Estais muito bonita, comentou a gadanha, e era verdade, a morte estava muito

bonita e era jovem, teria trinta e seis ou trinta e sete anos como haviam

calculado os antropólogos, Falaste, finalmente, exclamou a morte, Pareceu-me

haver um bom motivo, não é todos os dias que se vê a morte transformada num

exemplar da espécie de quem é inimiga, Quer dizer que não foi por me teres

achado bonita, Também, também, mas igualmente teria falado se me tivesse

aparecido uma figura de mulher gorda vestida de preto como a monsieur Marcel

Proust (...). (AIM, p.188)

Segundo Henri Bergson: “A pessoa que se disfarça é cômica. A que se acredite

disfarçada também o é. Por extensão, todo disfarce vai se tornar cômico, não apenas o da

pessoa, mas o da sociedade também, e até mesmo o da natureza.25” Portanto, podemos

encontrar na obra em estudo, uma série de momentos em que isso ocorre e que em dado

momento, é preciso intervenção do narrador para explicar ao leitor a infinidade de

absurdos (fenômenos sobrenaturais) que aparecem em toda narrativa, e entre eles: como a

morte (fenômeno) consegue adquirir disfarces e até mesmo dinheiro para pagar o táxi.

Mesmo na explicação dos fatos absurdos, José Saramago aproveita-se da ocasião para tecer

críticas de forma bastante irônica e cômica à Comunidade Européia e à criação da moeda

Euro:

É natural que a curiosidade de quem vem seguindo este relato com escrupulosa

e miudinha atenção, à cata de contradições, deslizes, omissões e falta de lógica,

exija que lhe expliquem com que dinheiro vai a morte pagar a entrada para os

concertos se há menos de duas horas acabou de sair de uma sala subterrânea

25 Henri Bergson, O riso, Rio de Janeiro, 1983, op. cit., p.24.

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onde não consta que existam caixas automáticas nem bancos para de porta

aberta. (...) apressamo-nos a esclarecer que a morte não só pagou o que o

taxímetro marcava como não se esqueceu de lhe juntar uma gorjeta.

(...) Quanto à proveniência do dinheiro, se essa continua a ser a preocupação do

leitor, bastara dizer que saiu donde já tinham saído os óculos escuros, isto é, a

bolsa ao ombro, uma vez que, em princípio, e que se saiba, nada se opõe a que

de onde saiu uma coisa não possa sair outra. O que, sim, poderia acontecer, era

que o dinheiro com que a morte pagou a viagem de taxi e haverá de pagar as

duas entradas para os concertos, além do hotel onde ficara hospedada nos

próximos dias, se encontrasse fora de circulação. Não seria a primeira vez que

iríamos para cama com uma moeda e nos levantaríamos com outra. (AIM,

p.193)

Outro aspecto interessante que encontramos na narrativa em questão é a deformidade da

morte e o quanto ela provoca o imaginário dos outros personagens. Eles imaginam como

seria este “ser” e a descrição dessas deformidades citada acaba provocando o riso. Alguns

a vêem no seu aspecto medieval, outros como caveira ossuda, aspectos de cabra, figura de

mulher perigosa de trinta e poucos anos; não importando a forma imaginada, temos o

cômico. A esse respeito Henri Bergson afirma: “ao atenuar a deformidade risível,

deveremos obter a feiúra cômica.26” É exatamente o que percebemos na trecho abaixo:

(...) um céptico protestava que não havia memória de a morte ter escrito alguma

vez uma carta e que era necessário mandar fazer com urgência a análise da

caligrafia porque, dizia, uma mão só composta de trocinhos ósseos nunca

poderia escrever da mesma maneira que o teria feito uma mão completa,

autêntica, viva, com sangue, veias, tendões, pele e carne, e que se era certo que

os ossos não deixam impressões digitais no papel e, portanto não se poderia por

ai identificar o autor da carta, (...). (AIM, p.108)

Aqui a figura alegórica da morte é representada na sua forma medieval, mas possuindo

características bem humanas. A narrativa dissimula alguns fatos explorando assim a

26Henri Bergson, O Riso, op. cit., p. 26.

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ambigüidade deles com o objetivo de obter efeitos inesperados. O leitor considerado como

um antagonista é provocado para reagir conforme podemos verificar no trecho a seguir:

A morte, em todos os seus traços, atributos e características, era,

inconfundivelmente, uma mulher. A esta mesma conclusão, como decerto

estareis lembrados, já o eminente grafólogo que estudou o primeiro manuscrito

da morte havia chegado quando se referiu a uma autora e não a um autor (...).

(AIM, p.134)

A ironia e o humor provocados pelo binômio morte/mulher são bastante intencionais.

Por que o autor podendo ele fazer outros tipos de comparações entre a morte e um outro

elemento, qualquer, prefere a mais usual? Quais seriam as suas intenções? Certamente, há

toda uma questão sócio-cultural por trás dessa escolha e José Saramago sabe muito bem se

posicionar a respeito disso, pois sabemos que ao longo da história, em geral contada

sempre por homens, a mulher sempre foi vista como a causadora dos males que há na

humanidade, isso se considerarmos também algumas interpretações bíblicas que enfatizam

esta ideia. Ora, o autor, então, ironiza e isso nos mostra que a ironia atua também de forma

intelectual, provocada pelo estranhamento, pelo inesperado e pelo paradoxal, que entram

em confronto com o habitual. A figura da morte/mulher nos mostrara no final da narrativa

que a mulher/morte será vencida pelo amor.

É interessante ressaltar ainda dentro dessa análise do cômico que o próprio narrador

enquanto que voz representativa do autor satiriza sua própria criação quando ao narrar

momentos em que a morte observa o violoncelista em seu apartamento, ela depara-se com

um cão que se encontrava fora do alcance da sua gadanha. Esse momento quebra um pouco

a seriedade do desenrolar da narrativa, provocando o riso. Portanto, é difícil manter-se

distante do riso ao perceber essa paródia do próprio texto, e isso se dá quando ele sugere o

seguinte:

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(...) logo se haveria de ver por quanto tempo, se a sua própria morte, a outra, a

que se encarrega dos outros seres vivos, animais e vegetais, se ausentasse como

esta o tinha feito e, portanto, alguém tivesse um bom motivo para escrever no

limiar de outro livro No dia seguinte nenhum cão morreu (...). (AIM, p.156)

O riso relaciona-se com a tragicidade da vida, mas também com a capacidade de

distanciamento: o prazer de pensar, o gosto do engano e a possibilidade de subverter

provisoriamente, através do jogo, a condenação à morte e tudo aquilo que ela representa.

Em geral visto como sinal de alegria, o riso pode revelar também o sofrimento em toda a

sua crueza. É o que percebemos também na obra estudada. O sério, ou pelo menos o que

deveria ser tratado como “sério”, vira motivo de riso. O leitor, ao deparar-se com o que na

vida real é fator de tristeza, vê este fato transformar-se em humor pelo uso da linguagem

bastante irônica e inteligente. Não podemos desconsiderar os efeitos fantásticos na

narrativa que também provocam o riso. Vejamos o exemplo:

Os resultados foram decepcionantes. Claro está que, em princípio, havendo os

modelos escolhidos para a reconstituição fácil, tal como antes referimos, sido

tomados de gravuras e pinturas antigas, não se esperaria encontrar a imagem

humanada da morte em sistemas de identificação modernos, (...). (AIM, p.135)

A caricatura de um “ser”, seja ele quem for, pode ser considerado cômico. Assim, em

relação à morte, são feitas caricaturas que sempre dentro da narrativa, ou melhor, dentro da

perspectiva da imaginação do leitor, fazem parte de forma coerente do seu conhecimento.

Logo, ri-se de um rosto que é por si mesmo a sua própria caricatura, no caso, a morte.

Neste aspecto, Mikhaïl Bakhtine diz:

Le rire lui-même ne se transforme pas encore entièrement en une ridiculisation

pure et simple : son caractère est encore suffisamment entier, il concerne

l’ensemble du processus de vie, ses deux pôles et tonalités triomphantes de la

naissance et de la rénovation y résonnent.27 27 Mikhaïl Bakhtine, L’œuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance, Paris, 1970, p.73.

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Podemos então, concluir nesta análise que são aspectos irônicos e cômicos, além das

situações apresentadas nessa ficção, todas as aparições da morte que constam na segunda

parte do romance, além de alguns diálogos e reflexões do narrador. Portanto, será a partir

desse conjunto que estudaremos a carnavalização tomando como fonte teórica, as ideias de

Mikhail Bakhtine.

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SEGUNDA PARTE

A Carnavalização da Morte

O Carnaval, da Renascença e da Idade Média, desempenha para as pessoas, segundo

Mikhaïl Bakhtine, papel simbólico fundamental: possibilidade de liberdade utópica mais

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que a mera possibilidade de cessação do trabalho, permissão para o questionamento lúdico

das normas, abolição de hierarquias, nivelamento das classes e inversão de valores. Assim,

no início do romance de José Saramago, podemos perceber com a ausência da morte por

um período de sete28 meses, essas normas que regem o mundo adverso são

temporariamente suspensas e as leis e hierarquias que o organizam são invertidas, de modo

que as distâncias firmemente estabelecidas e preservadas pelas convenções serão abolidas.

A partir dessa permanência utópica da eternidade, o autor começa a expor o que seria o

mundo sem a morte. Cada setor da vida social será ridicularizado em seu desespero e

incompreensão dos fatos, não deixando de encontrar soluções inusitadas e cômicas para a

problemática temporária. A morte, que outrora causava medo, traz sensações ambíguas: a

eternidade e em seguida, a necessidade de morrer. Essa “ausência” proporciona uma

segunda vida, um duplo das práticas da Igreja e do Estado, em que todo o povo participa

numa comunhão utópica de “liberdade”, de suspensão das leis e, sobretudo, das fronteiras

entre o antes e o depois. É nesse contexto que propomos estudar na segunda parte desse

trabalho etapas da carnavalização da morte perpassando desde sua figura alegórica

medieval à sua forma humanizada (fisicamente e psicologicamente como um ser humano),

bem como outros personagens em torno dela.

O comportamento dos personagens que representam esferas da sociedade é

carnavalesco. Alguns deles chegam a perder as suas identidades, gerando, assim, uma

confusão total. Reflexões sobre a juventude e a velhice são vindas à tona. A relativização

da verdade e do poder dominante (Estado e Igreja) constitui, na obra, um dos sentidos

profundos do riso carnavalesco, pois temos, como conseqüência da ausência da morte, uma

desorganização do poder (na figura de um Rei omisso, de uma Rainha à beira da morte e

de um primeiro ministro picareta) e um desespero visível dos que fazem parte da Igreja 28 O número sete é bastante representativo na literatura por possuir uma vasta simbologia. Assim, na obra em estudo ele pode representar o término e a renovação de uma fase cíclica.

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chegando ao cúmulo de pensarem em criar uma “tese de morte adiada”, pois sem a morte

não há justificativa para se “pregar” o paraíso e a vida eterna como vantagens futuras do

“depois da morte”.

O fato de a Morte estar em “greve”, ou melhor, cessar seus trabalhos, é um elemento

carnavalizado. Saramago cria uma cosmo-visão carnavalesca dessa ideia fazendo com que

o problema, ou seja, a ausência da morte passe a ser encarada por vários ângulos e um

deles é desmascarar a ilusão que o ser humano tem de que o mundo seria melhor sem a

presença dela. A partir disso, o autor aproveita-se para mostrar a sua posição ideológica,

colocando na primeira parte do romance, amostras de como seria o mundo se não houvesse

a morte e, na segunda parte o “alívio” das autoridades com a volta ao normal e o desespero

daqueles que há sete meses tiveram a morte adiada, mas que agora estavam frente à real

possibilidade de morrer.

Assim, temos uma literatura carnavalizada que é, conforme Mikhaïl Bakhtine, aquela

que direta ou indiretamente, através de diversos elos mediadores, tem profunda relação

com as diferentes modalidades do folclore carnavalesco (antigo e medieval). Notamos

então que o carnaval opera uma inversão do mundo sério e oficial numa atmosfera de

grande vitalidade e de transformação. Não é um fenômeno literário, mas sim, uma forma

sincrética de espetáculo ritualístico cuja linguagem de formas concreto-sensoriais

simbólicas exprime uma cosmo-visão carnavalesca. Nesse conceito, podemos ainda

continuar a citar categorias carnavalescas inseridas na narrativa saramaguiana envolvendo

a morte. Uma delas, talvez a de maior relevância, é a declaração da própria morte em um

comunicado à imprensa. Ela, na sua função ambivalente, explica-se aos seres humanos

deixando bem claro o seu valor e a sua importância para a vida:

(...) senhor diretor da televisão nacional, estimado senhor, para os efeitos que

as pessoas interessadas tiverem por convenientes venho informar de que a partir

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da meia noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos

notórios, desde o princípio dos tempos e até ao dia trinta e um de dezembro do

ano passado, devo explicar que a intenção que me levou a interromper a minha

atividade, a parar de matar, a embainhar a emblemática gadanha que

imaginativos pintores e gravadores doutro tempo me puseram na mão, foi

oferecer a esses seres humanos que tanto me detestam uma pequena amostra do

que para eles seria viver para sempre (...). (AIM, p. 105).

O que nos parece uma condição imutável, transcendente e definitiva, ou seja, a

morte, na obra estudada, é ridicularizado e cômico na medida em que acontece uma total

inversão dentro do cotidiano ficcional. A morte, fenômeno necessário para a vida, estudado

por filósofos, religiosos, sociólogos, etc., na narrativa apresenta-se de diversas formas,

sofrendo metamorfoses e, de certa forma, “brincando com a vida dos seres humanos na

intenção de conscientizá-los”. É nesse contexto que propomos estudar na segunda parte

desse trabalho, etapas da carnavalização da morte perpassando desde sua figura alegórica

medieval à sua forma humanizada conseqüências de uma criação literária que envolve o

processo do maravilhoso onde ela se apresenta como dominadora e tentadora; e,

finalmente, dominada pelo amor.

II. 1. Da alegoria à humanização: elementos do maravilhoso na narrativa

Neste capítulo trataremos da evolução da figura da morte dentro da narrativa até

chegar à humanização o que acarretará num processo de questionamento pessoal a respeito

da sua identidade a da busca pelo amor, já estando ela na sua forma feminina.

II. 1.a. O mito

A percepção carnavalesca do mundo frente à ausência da morte é o motor principal

que gera e ajuda no desenvolvimento de toda a narrativa trazendo à reflexão temas que

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variam do cotidiano à política e à religião. A inteligente forma com que a narrativa vai se

desenvolvendo unindo o maravilhoso ao real e a forma com que as personagens, à medida

que tudo vai acontecendo, vão aceitando os fatos como normalidade e tentando adequar-se

ao novo, faz desse romance, como já foi dito antes, uma espécie de fábula cuja figura

principal é a morte.

A morte, apresentada e descrita de início na sua forma alegórica medieval, ou seja,

um esqueleto coberto por um grande e negro capuz e que leva sempre uma gadanha ou

foice utilizada para ceifar vidas. É assim que a personagem é apresentada na segunda parte

da narrativa. Porém, antes de chegarmos a análise dessa alegoria, temos, na primeira parte

do romance, trechos que evocam de forma bastante sucinta a lenda das três parcas ou três

moiras da Grécia Antiga, que são também conhecidas como as filhas de Zeus e Têmis.

Segundo essa mitologia, há três parcas nascidas da noite no princípio dos tempos, e que

representam o destino de cada indivíduo. Cloto, a fiandeira, representa a que terce a teia da

vida; Átropos, a que cortava o fio da vida; e Lachesis, a que distribui a parte que cabe a

cada alma. Interessa-nos a segunda, Átropos, pois é ela quem, de início, representa em

nosso imaginário a personagem Morte. Nota-se que, a partir dessa primeira alusão à sua

presença, a forte intenção de fazer uma espécie de evolução da Morte, e é isso que

verdadeiramente ocorre já que está claro que ela não faz uso da tesoura para cortar o fio da

vida deixando, portanto, de matar porque intenciona conscientizar o ser humano do quanto

ela é importante para a continuidade da vida conforme verificamos abaixo:

A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso

regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse

resolvido embainhar a tesoura por um dia, Sangue, porém houve-o, e não

pouco. (AIM, p.13)

Outro mito grego evocado na obra é o de Tânatos, que segundo essa mesma mitologia

significa a personificação da morte suave. Enquanto Hades reinava sobre os mortos no

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mundo inferior, Tânatos era conhecido por ter o coração de ferro e as entranhas de bronze,

irmão gêmeo do deus do sono, Hypnos. Esse mito também era considerado inimigo da

humanidade. Na psicanálise, Tânatos é a personificação mítica da pulsão de morte, um

impulso instintivo que leva a pessoa a buscar a morte ou a destruição. A carnavalização no

romance se dá pelo fato de Tânatos ser portador da vida e da alegria coletiva, contrariando

assim todo processo mitológico e psicanalítico:

Posto isto, não tiveram os periódicos reticentes ou problemáticos outra solução,

e com eles a televisão e as rádios afins, que unir-se à maré alta de alegria

coletiva que alastrava de norte a sul e de leste a oeste, refrescando as mentes

temerosas e arrastando para longe da vista a longa sombra de tânatos. (AIM,

p.26)

II. 1.b. A paródia

É perpassando pelo universo da mitologia que a figura da morte vai se construindo no

imaginário do leitor desse romance até chegar ao ponto de metamorfosear-se em alegoria

(esqueleto vestido com um manto negro de monge) para logo em seguida atingir a sua

humanização (forma feminina que se apaixona pelo músico), porém não deixando o peso

da morte ou o fardo que sua ausência traz ser tratado também pelo narrador em situações

cômicas como “espada de dâmocles29”.

Com relação à alegoria, não é a primeira vez que temos essa representação na obra

saramaguiana. Em A Jangada de Pedra (1986), José Saramago narra de forma alegórica a

separação geográfica da Península Ibérica do continente europeu junto a fatos

sobrenaturais e sem explicação. Considerando que na obra em estudo há uma alegoria, e

que esta é de origem grega e significa uma virtualização do significado, ou seja, sua

expressão transmite um ou mais sentidos que o da simples compreensão literal, então,

pode-se constatar que há grandes metáforas presentes na narrativa que remetem a nossa 29 Dâmocles foi uma figura participante de uma anedota moral anexa à cultura clássica da Grécia. A espada de Dâmocles é uma alusão à insegurança daqueles a quem pertence o poder.

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realidade, visto que há uma grande dimensão alegórica em todo o corpo do texto. Nessa

perspectiva, tomamos como exemplo a seguinte passagem onde temos a visão que a mídia

tem sobre a figura da morte na segunda parte, a partir do seu retorno:

Apressou-se a classificar a ideia de estupidez crassa, porquanto só a um idiota

chapado poderia ocorrer a lembrança de que a morte, um esqueleto embrulhado

num lençol como toda a gente sabe, saísse por seu pé, chocalhando os calcâneos

nas pedras da calçada, para ir lançar as cartas no correio. (AIM, p.133)

Essa representação da morte citada acima é de origem italiana e está muito presente em

obras que foram produzidas durante a Idade Média (que de início representada como um

ser humano mumificado ou em decomposição) como também na Renascença,

principalmente em pinturas que representam o macabro e o Apocalipse. Encontramos ainda

essa mesma representação em obras que retratam a peste negra, pandemia que se espalhou

na Europa entre os anos 1347 e 1351, matando milhares de pessoas. Essa mesma descrição

da morte apareceria em seguida na Literatura e na cultura Gótica. Atualmente, essa

alegoria que outrora foi geradora do medo e do pavor do homem frente à morte, já não

produz mais o mesmo efeito, pois sofre e está a sofrer em diferentes âmbitos artísticos a

carnavalização, a sátira e até mesmo o deboche visto que os tempos mudaram, o mundo

mudou e a sociedade evoluiu. A esse respeito Philippe Ariès afirma:

A partir du XVIII siècle, l’homme des sociétés occidentales tend à donner à la

mort un sens nouveau. Il l’exalte, la dramatise, la veut impressionnante et

accaparante. Mais, en même temps, il est déjà moins occupé de sa propre mort,

et la mort romantique, rhétorique, est d’abord la mort de l’autre ; l’autre dont le

regret et le souvenir inspirent au XIX et au XX siècle (…)30.

José Saramago sabe muito bem disso, por isso enfatiza seu pensamento a respeito desse

assunto de forma bem humorada a fim de aliviar toda carga negativa que traz o falar sobre

a morte nos dias de hoje. No trecho abaixo, ele apropria-se de uma fantasia que está 30 Philippe Ariès, Essais sur l’histoire de la mort en Occident : du moyen âge à nos jours, Paris, Editions du Seuil, 1975, p.46.

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presente, sobretudo no imaginário infantil a respeito do sorriso da morte, visto que é uma

descrição do que é visto em alguns desenhos animados onde a tal figura aparece. No

entanto, traz também uma reflexão a propósito dos sentimentos que podem estar presentes,

mesmo de forma não revelada, no íntimo dessa personagem:

A morte conhece tudo a nosso respeito (...). Se é certo que nunca sorri, é só

porque lhe faltam os lábios, e esta lição anatômica nos diz que, ao contrário do

que os vivos julgam, o sorriso não é uma questão de dentes. Há quem diga, com

humor menos macabro que de mau gosto, que ela leva afivelada uma espécie de

sorriso permanente, mas isso não é verdade, o que ela traz à vista é um esgar de

sofrimento, porque a recordação do tempo em que tinha boca, e a boca língua, e

a língua saliva, a persegue continuamente. (AIM, p.145)

Somos testemunhas fidedignas de que a morte é um esqueleto embrulhado num

lençol, mora numa sala fria em companhia de uma velha e ferrugenta gadanha

que não responde a perguntas, rodeada de paredes caiadas ao longo das quais se

arrumam, entre teias da aranha, umas quantas dúzias de ficheiros com grandes

gavetões recheados de verbetes. (AIM, p.151)

II. 1.c. A metamorfose

Sendo mais uma ficção sobre a morte, o narrador retoma a mesma representação do

esqueleto embrulhado em um lençol sendo que desta vez ele acrescenta a descrição do

espaço onde esta representação alegórica se esconde, ou melhor, mora. Esse espaço é

percebido pelo leitor como mínimo e vital, já que na narrativa, até mesmo a morte tem

direito a ter seu próprio lar. Então, como podemos observar a partir desse momento, a

alegoria começa a adquirir forma e vida e os elementos irreais e estranhos passam a ser

aceitos como algo do cotidiano, algo normal. Nota-se que anteriormente ela era a

responsável pelo fio da vida, temida pelos humanos; era a que determinava o momento da

triste partida. Agora ela é representada por uma alegoria reconhecida pela mídia e por

todos que fazem parte da narrativa e também possuidora de arquivos, que por sinal são

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bem organizados visto que o narrador refere-se a ficheiros e a verbetes. Logo, essa nova

forma adquiriu conhecimentos gramaticais e lexicais (leitura e escrita) e porque não dizer,

de organização, características que fazem parte do cotidiano dos seres humanos. A visão

antiga da morte começa a ser carnavalizada ao adquirir todas essas características que

pertencem ao mundo dos humanos. Nesse contexto todo, percebe-se que a aproximação da

morte ao mundo dos humanos também é objeto de carnavalização na intenção de levar o

leitor ao riso pela inverossimilhança.

Aos poucos essa humanização vai adquirindo maior intensidade no desenrolar da

narrativa, sendo verdadeiramente desencadeada a partir do momento em que o sobrescrito

de cor violeta, como já dissemos, é o aviso de uma futura morte (fato este que durante toda

a segunda parte da narrativa é carnavalizado), volta por três vezes não chegando às mãos

do seu destinatário, ou seja, o violoncelista. Nesse contexto a curiosidade da morte é

atiçada, ela sente-se desafiada por um ser humano que insiste em viver quando já deveria

ter morrido. Assim, ela é obrigada a conhecer o músico, esse ser tão desafiador. Essa

personagem obviamente representa metaforicamente todos os seres humanos, sobretudo

aqueles que um dia conseguiram “vencer” a morte:

Veio para ver este homem, e agora já o viu, não há nele nada de especial que

possa explicar as três devoluções da carta cor violeta, o melhor que terá a fazer

depois disto é regressar à fria sala subterrânea donde veio e descobrir a maneira

de acabar de vez com o maldito acaso que tornou este serrador de violoncelos

em sobrevivente de si mesmo. (...) a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se

até as paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até à sala

contígua, aí uma parte de si alongou-se a olhar o caderno que estava aberto

sobre uma cadeira, era a suíte numero seis opus mil e doze em ré maior de

johann sebastian bach (....) (AIM, p.158)

(...) escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da

unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca

visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela,

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agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pé, e braços, e

mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não

se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa

um rastro de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. (AIM,

p.159)

Elementos mágicos acontecem nas passagens acima citadas, mas sem serem bem

explicados, pois o que realmente interessa é mostrar a sensibilização da personagem, ainda

na sua forma alegórica e o seu primeiro momento de humanização (física e sentimental). E

é através da música que esse fato se realiza, o que nos remete imediatamente ao mito de

Orfeu, em que a magia da música e do amor consegue comover e transcender a própria

morte. Percebemos então que a morte, dentro do seu processo maravilhoso de

transformação, dá o seu primeiro passo rumo à humanização provocando a primeira

intermitência. Contudo, para que isso ocorresse, ela teve que se rebaixar, ou seja,

destronar-se para poder chegar à condição humana. Portanto, ter características físicas de

um ser humano implica também ter fraquezas e necessidades que podem variar do sexo ao

desejo de ser amada. É a partir desse pensamento que a evolução ocorrerá de forma mais

intensificada, uma vez que ela teve a curiosidade, a vontade de chorar por ter sido tocada

pela música e a aquisição de formas humanas. Assim, é nesse contexto de quase

humanizada que a personagem vai se desenvolvendo ainda mais ao longo do processo

narrativo até chegar ao clímax da morte carnavalizada, ou seja, quando ela adquiriu formas

femininas para, de início entregar pessoalmente ao violoncelista o sobrescrito sem a

intenção explícita de seduzi-lo.

Dois pontos que nos chamaram atenção e que vale a pena ressaltarmos para a melhor

compreensão do propósito de nossa pesquisa foram a presença de um cão preto no

apartamento do violoncelista e a ausência de nome para este último em todo desenrolar da

narrativa. Sobre a presença de cães em algumas de suas obras como, por exemplo:

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Levantado do Chão, A Caverna e Ensaio sobre a cegueira, Saramago diz, justificando, que

em romances como A Caverna ficaria “mais pobre sem o cão e a maneira como ele se

comporta e aparece - como é levado a casa da personagem Isaura, de onde foge- é

importante para o livro.”31 Já o cão do Ensaio é um tipo de anjo da guarda que consola a

mulher do médico, sendo chamado de “o cão das lágrimas”, é um cão humano face ao

ambiente de desumanidade dentro dessa narrativa. Em As Intermitências da Morte a

importância se dá a partir do momento em que ele, o cão, sobe em um sofá onde está

sentada a morte. O calor do corpo desse animal, tão dócil e gentil, fez com ela sentisse pela

primeira vez o que era ter um cão no regaço, intensificando a sua humanização. Sabemos

que a figura do cão através da mitologia mundial sofreu várias evoluções até chegar a que

nós conhecemos, a de guardião do mundo inferior. Sempre com o papel de conduzir as

almas, esse animal tem ligação a forças ocultas, principalmente o de cor negra passou a ter

uma percepção muito negativa, o que é o oposto na obra em estudo. Já a respeito da

ausência de nome para a personagem violoncelista, temos a hipótese de que ele representa

metaforicamente toda a humanidade frente à presença da morte, no entanto é importante

destacar para melhor entender essa escolha do autor, a opinião da pesquisadora Maria

Teresa Simões citada pelo próprio Saramago durante entrevista a João Céu e Silva:

(...) a ausência do nome dos personagens faz parte do contrato narrativo

assinado com o leitor e reforça a mensagem que lhe é endereçada. Numa época

onde “o número” desempenha o papel principal, e numa sociedade cega, que

melhor forma de sublinhar a importância do nome e de lhe prestar homenagem

do que preservá-lo distante do inumano, fazendo de conta que não o vemos?32

Ora, isso quer dizer que apesar desse personagem não ser designado por um nome

próprio ele tem uma expressão descritiva muito forte e importante dento da narrativa que

contribuirá para acentuar as metamorfoses da morte. O interesse por essa figura sem nome

31 João Céu e Silva, Uma longa viagem com José Saramago, op. cit., p.263.32 João Céu e Silva, Uma longa viagem com José Saramago, op. cit, p.265.

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a fez assumir então a forma de uma bela mulher de 36 anos. Portava consigo tudo de que

uma mulher mesmo sendo uma mulher-morte precisa para seduzir um homem ainda que

inconscientemente. Além de essa metamorfose33 ter seu ar de comicidade devido à situação

apresentada, proporciona também ao leitor um efeito de humor já que os apetrechos que a

morte levava consigo, objetos como: óculos escuros, bolsa, dinheiro e vestido sensual,

aparecem sem explicação lógica. A preocupação central é, na verdade, aproximar-se do

músico e saber ainda mais sobre ele, é fazer com que ele se interesse por ela, com o

objetivo final de receber a carta violeta e encerrar o assunto de que um dia um ser humano

desafiou a morte, mesmo sem saber.

Na aparência humanizada, ela conseguiu filosofar sobre a vida com as personagens que

entrecruzaram o seu caminho, mas deixando sua marca através do perfume que exalava,

uma mistura de rosa simbolizando a vida e o crisântemo, nome de origem grega que

significa “flor de ouro” que segundo Jean Chevalier “ cuja disposição regular das suas

pétalas faz dela um símbolo essencialmente solar, associado, então, à ideia de longevidade

e até mesmo de imortalidade” 34 o que comprova a sua contradição frente ao ser humano,

uma morte que exala vida, imortalidade e beleza:

(...) era bonita, porventura não a mais bonita entre a assistência feminina, mas

bonita de um modo indefinível, particular, não explicável por palavras, como

um verso cujo sentido último, se é que tal coisa existe num verso,

continuamente escapa ao tradutor. (...) porque sua figura ali no camarote,

rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se habitasse um nada,

parecia ser a expressão da solidão mais absoluta. (AIM, p.197)

(...) mas ela, como uma águia descendo rápida sobre o cordeiro, só tem olhos

para o violoncelista. Com uma diferença, porém. No olhar desta outra águia que

33 Du latin metamorphosis, changement de forme, de nature d’un être ou transformation totale d’un être au point qu’il n’est plus reconnaissable. Modification complète du caractère, de l’état de quelqu’un, de l’aspect ou de la forme de quelque chose. La métamorphose marque le passage d’un plan d’organisation à un autre. (Grand Dictionnaire Encyclopédique Larousse tome 7, Paris, Librairie Larousse, 1984, p. 6876.34 Jean Chevalier et Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles : mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres, op. cit, p.247.

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sempre apanhou as suas vitimas há algo como um tênue véu de piedade ( ...).

(AIM, p.197)

Incorporada na figura de uma bela mulher, a morte deixa-se perceber pelo músico,

atraindo-o pela sua beleza e presença constante no teatro, a observar a sua “presa”.

Comovida pela música, e talvez pela observação da arte desse músico tão solitário, o

sentimento de piedade aflora no peito da tão temida Parca. É a partir desse sentimento que

ocorre a abertura para outros mais fortes, que vão se desencadear a partir dos diálogos

entre o Homem e a Morte, essa figura tão inquietante. Essa aproximação vai provocando

uma mudança brusca no pensamento da personagem, transformando-a em morte-mulher

pela necessidade de ser amada e pelo desejo erótico de estar sempre ao lado do

violoncelista ao ponto de ela não saber mais o que é. Assim, a morte mergulha em plena

crise de identidade por não ter certeza do que era por nutrir sentimentos por um humano

conforme percebemos no trecho que segue: “ No seu quarto de hotel, a morte, despida, está

parada diante do espelho. Não sabe quem é.” ( AIM, p. 207)

A metamorfose da morte pode ser analisada por diversos ângulos, e entre eles a

dimensão filosófica, o ser enquanto ser, adiantada na primeira epígrafe desse romance

“Saberemos cada vez menos o que é um ser humano” do famoso inventado Livro das

Previsões. José Saramago adianta tratar dessa metamorfose ao citar, na segunda epígrafe,

de Wittgenstein, que segundo a qual, pensar mais a morte implicaria conhecer por esse fato

nossas representações, novos âmbitos da linguagem. Assim, no decorrer da narrativa, a

morte perde a sua identidade anterior e vai ganhando sentimentos e características de uma

nova identidade, que se constitui em torno do mais comum dos questionamentos humanos:

quem sou eu? Esse questionamento filosófico será mais apurado na terceira parte do nosso

trabalho, por enquanto nos deteremos apenas no estudo das transformações da morte.

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Ao despir-se e olhar-se no espelho, simbolicamente conhecido por refletir a verdade, a

sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência e o conhecimento de si, a morte,

talvez por ter sofrido várias metamorfoses (ela mesma foi lembrada de que estava passando

por isso ao ver uma borboleta acherontia átropos35 quando estava no teatro vendo o músico

tocar), encontra-se em crise de identidade por não se dar conta ainda da sua forma

feminina, que certamente está carregada de desejo por este homem desconhecido. A luta

entre a obrigação de cumprir o seu papel de Átropos e o desejo latente no seu novo corpo

bem esculpido de mulher torna-a indecisa. Essa indecisão será desfeita novamente pelo

efeito da música, contribuindo enfim para a vitória do amor sobre a morte fazendo-a

entender que o homem deve a sua existência somente à sensibilidade:

Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam, por

isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. (...), ficarei

contigo, ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava

escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra vez. Ele

adormeceu. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na

sala e retirou a carta cor violeta. (...) saiu para a cozinha, acendeu um fósforo

humilde, ela que poderia desfazer o papel com olhar, reduzi-lo a uma

impalpável poeira, (...) o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia

arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas.

A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que

lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair

suavemente as pálpebras. (AIM, p.214)

Deixando de lado os seus poderes por aceitar a sua forma humana vencida pela

consumação do sexo, a morte-mulher apaixona-se pelo músico e entrega-se a ele

abandonando o seu antigo desejo de matá-lo. Possuída, pois, pelo deus do sono que domina

todos os mortais, ela sucumbe pela primeira vez a essa fraqueza. Assim, atingida pela

35 O termo « acherontia » faz referência a Achéron da mitologia grega, um dos rios do inferno onde deveria atravessar para chegar aos mortos e “átropos” é um dos nomes de uma das três parcas, a encarregada de cortar o fio da vida. Esse tipo de borboleta também é conhecido como “Sphinx Tetê de Mort” por ter o desenho semelhante ao de uma caveira no dorso.

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flecha de Eros, deus do amor, Tânatos (a morte) é vencida. É interessante destacarmos a

partir da análise da citação acima a intenção do autor em ter escolhido esse final

surpreendente. Ora, falar sobre a morte faz rir, um riso obsceno. No entanto, falar sobre

sexo não provoca nem isso. Nesse propósito, Jean Baudrillard contribui afirmando o

seguinte:

La société, “libérant” la sexualité, la remplace progressivement par la mort dans

la fonction de rite secret et d’interdit fondamental. Dans une phase antérieure,

religieuse, la mort est révélée, reconnue, c’est la sexualité qui est interdite. C’est

l’inverse aujourd’hui. Mais toutes les sociétés « historiques » s’arrangent de

toute façon pour dissocier le sexe et la mort, et jouer la libération de l’un contre

l’autre- ce qui est une façon de les neutraliser les deux.36

Com relação a dissociar o sexo da morte, o que ocorre em As Intermitências da Morte é

claramente o oposto. Precisou-se da afetividade, do contato entre as duas personagens,

além da criação artística musical, para que o amor viesse a se concretizar pelo sexo. José

Saramago uniu esses dois temas, essas duas vertentes que são tão opostas, mas que no

decorrer da segunda parte da ficção se completam sem ter um tom obsceno, pois consiste,

conforme já afirmamos anteriormente, numa fábula, e como tal, tanto pode proporcionar

asas ao sonho, ao maravilhoso pelos aparecimentos de fatos inusitados, como também nos

trazer uma lição de moral. Cabe ao leitor perceber cada momento do desenrolar desses

fatos, cada detalhe dessa metamorfose que nas duas partes da obra assume diferentes

representações, pois nesse romance tudo é bem intencionado, nada pode ser deixado de

lado. Temos reunidas em uma obra ideologias e reflexões que vão desde a história à

filosofia e é com maestria e perfeição que o autor desenvolveu tudo isso. Portanto, como

podemos observar, tentamos analisar as representações da morte e sua evolução que

36 Jean Baudrillard, L’échange symbolique et la mort, Paris, Editions Gallimard, 1976, p. 280.

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perpassaram de uma simples alegoria à sua forma humana e para tanto o autor utilizou-se

em sua criação literária a coexistência de alguns elementos fantásticos aliados ao

transcendente o que possibilitou à narrativa uma certa complexidade ficcional . No capítulo

seguinte, trataremos de alguns processos da inversão pelos quais passaram alguns

personagens e situações dentro da obra.

II. 2. O processo da inversão

O Carnaval, como representação da cultura popular que inclui tanto a inversão

hierárquica dos valores pelo forte poder do riso quanto o ponto de contato das diversas

linguagens sociais, é um evento em que predomina também a inversão das coisas, dos

valores; mas em contrapartida, por definição tem duração limitada. Logo, se essa inversão

não tiver um tempo determinado, será considerada uma revolução e não mais um desfile

carnavalesco. Propomos então, tomando por base essa ideia de limitação temporal, fazer

uma análise do processo da inversão em As Intermitências da Morte.

II. 2.a. A revolução

Na primeira parte da narrativa, temos a apresentação do caos estabelecido pela

ausência temporária da morte. Lembrando que essa ausência dura sete meses, sugerindo-

nos o período em que o carnaval, ou seja, a inversão de papéis e dos valores vai vir à tona.

O “desfile” carnavalesco da sociedade desse país fictício começa a partir da instalação de

dois sentimentos: o primeiro de felicidade por não haver mais mortes; o segundo quando os

habitantes percebem a importância da morte para a vida. Dentro desses sentimentos,

membros da sociedade, sobretudo aqueles que precisam da morte para manter a paz e a

continuidade de suas ideologias, começam a se desesperar pela perca do poder, não só do

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poder burocrático, mas também do poder religioso e ideológico. Essas mudanças vão

eletrizar o país desconhecido, invertendo tudo aquilo que antes era considerado normal. Os

modelos que até então eram os adotados, tornar-se-ão subversivos por terem sido

invertidos. Conforme Mikhaïl Bakhtine nos explica abaixo:

Dans le carnaval s’instaure une forme sensible, reçue d’une manière mi-réelle,

mi-jouée, un monde nouveau de relations humaines, opposé aux rapports socio-

hiérarchique tout-puissants de la vie courante. La conduite, le geste et la parole

de l’homme se libèrent de la domination des situations hiérarchiques (couches

sociales, grades, âges, fortunes) qui les déterminaient entièrement hors carnaval

et deviennent de ce fait excentrique, déplacés du point de vue de la logique de la

vie habituelle. L’excentricité est une catégorie spéciale de la perception du

monde carnavalesque, intimement liée à celle du contact familier ; elle permet à

tout ce qui est normalement réprimé dans l’homme de s’ouvrir et de s’exprimer

sous une forme concrète.37

É nesse ambiente que tomamos conhecimento de alguns pensamentos dos

representantes do país fictício que até então estavam escondidos. A ausência da morte vai

proporcionar a liberação de atitudes e de pensamentos contrários à normal, contrários a

tudo que a vida cotidiana nos apresenta. Assim, desfilando nessa passarela (metáfora que

nós empregamos para designar o período do tempo carnavalizado e suas ações) os

personagens são obrigados a usar máscaras para encarar essa nova ordem, pois ao

perceberem que essa ausência (contrariando o que pensavam no início) é a geradora da

mais perfeita desordem que afetará da poderosa Santa Sé ao mais simples camponês,

resolvem intervir. Assim, membros da Igreja são obrigados a unirem-se aos protestantes na

intenção de não perderem os fieis, já que com a ausência da morte e a vida eterna

alcançada, o povo não terá mais medo da tríade: deus, diabo e inferno. A inversão acontece

quando esses representantes “de deus” propõem criar a tese da morte adiada, subvertendo o

ponto de vista da lógica e da vida.

37 Mikhaïl Bakhtine, La poétique de Dostoïevski, Paris, Editions Seuil, 1970, p. 181.

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A descoberta do incômodo provocado pelos os doentes e feridos que não conseguem

morrer, bem como as pessoas idosas, ou seja, o prejuízo que esses moribundos provocam à

sociedade em geral desse mundo carnavalizado faz com que, ironicamente, encontrem uma

solução. Essa solução para burlar a ausência morte, inversamente ao que se espera, não

parte dos que são considerados intelectuais ou religiosos, mas sim de uma simples família

de agricultores, que, conforme disse Mikhaïl Bakhtine, advém de maneira semi-real, mas

proporcionando aos outros personagens um mundo novo no que diz respeito às relações

humanas. Então, é a partir da atitude dessa família que se inicia um novo ciclo contra a

morte, uma nova esperança para dar fim à vida dos moribundos que clamam pela passagem

para o outro mundo. É uma inversão total do ponto de vista da lógica, pois alcançar a

eternidade é o maior desejo da humanidade; no entanto o que vemos em As Intermitências

da Morte é a necessidade da morte para que a vida continue.

Essa família de agricultores, sem perceber, acaba gerando uma nova quebra das normas

que regiam esse país desconhecido. O fato de ter passado a fronteira para dar a morte (pois

no país vizinho ela continuava a trabalhar) aos parentes moribundos, o autor traz à tona

uma polêmica: a eutanásia. É a partir da ação dessa família que, novamente, o caos se

intensifica, provocando e incentivando a mesma atitude naqueles que também têm parentes

à espera da morte, mas que não conseguem morrer devido à greve estabelecida por ela

nesse país. Fato este que além de ser carnavalizado é extremamente cômico e fora da

realidade:

Nem todas as famílias que assim procederam poderiam alegar em sua defesa os

motivos de algum modo respeitáveis, ainda que obviamente discutíveis

apresentados pelos nossos conhecidos e angustiados agricultores que, muito

longe de imaginarem as conseqüências, haviam dado início ao tráfico. (AIM,

p.52)

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(...) o chefe do governo condenou a desumana ação, apelou o respeito pela vida

e anunciou que as forças armadas tomariam imediatamente posições ao longo

da fronteira para impedir a passagem de qualquer cidadão em estado de

diminuição física terminal, quer fosse o intento de sua própria iniciativa, quer

determinado por arbitrária decisão dos parentes. (AIM, p.52)

O governo, que antes se desesperava com o problema dos hospitais cheios procurando

sempre encontrar soluções para minimizar o caos em seus corredores, tentava buscar

soluções que aliviassem os prejuízos das seguradoras (que iam perder dinheiro por causa

da vida eterna), dos coveiros que não tinham trabalho, e das casas de repouso por estarem

repletas de velhos imortais, pois conforme vimos, a situação está inversa. Não aceitar que

os moribundos ultrapassem as fronteiras em busca da morte é uma atitude contrária à

situação. Já a família que foi criticada por sua atitude, ou melhor, por ter encontrado a

solução para livrar seus parentes (o velho e a criança) de uma morte suspensa, agora era

imitada por todos. A mesma sociedade que criticou o feito dos agricultores, denunciando-

os, agora fazia o mesmo para livrar-se de seus parentes moribundos. Os valores e

princípios foram invertidos. O chefe do governo que se incomodava com a suspensão da

morte, passou a ser contra a ação, chamando-a de desumana. No entanto, isso já faz parte

do nosso cotidiano natural, quando os governantes não atuam como devem, o povo passa a

tomar as rédeas da situação em busca de resultados mais eficazes.

II. 2.b. Uma sociedade decadente

Desfilando também nessa passarela carnavalesca, está a “máphia” representando o

controle da fronteira e claro, a corrupção. O fato de não ser um órgão declarado nem

reconhecido pelo governo como algo legal, confere-lhe plenos poderes para inibir a

passagem para o outro lado. Essa “máphia” (associação de delinqüentes) funciona como

um tipo de milícia, um poder paralelo que não aceita estar subordinada ao governo, no

entanto é paga por ele para trabalhar. Essa “máphia” com ph para diferenciar-se da outra

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clássica máfia, é carnavalizada por ter atitudes inversas ao seu propósito original, pois

passa a receber propina das famílias ricas que querem passar a fronteira, tornando-se forte

e influente ao ponto de corromper também alguns funcionários públicos e pôr o governo

em estado de futuro golpe militar.

A inversão total dos valores acontece quando o governo, sentindo-se impotente,

convoca diversos segmentos da sociedade para sair às ruas. É o desfile dos enfermos, é o

povo na praça pública. Ato metafórico do desejo pela democracia. Assim, por meio do

processo de inversão, seja dos valores sociais, seja das ações dessa sociedade tão

contraditória, temos críticas ao mundo contemporâneo e uma profunda reflexão sobre as

políticas atuais. O desfile dos enfermos nos remete à enfermidade social e à busca da cura

do caos por meios democráticos e pela fala do povo:

(...) uma greve geral promovida em conjunto pelas duas centrais sindicais, uma

pastoral dos bispos chamando à oração e ao jejum, uma procissão de penitentes,

uma distribuição maciça de panfletos amarelos, azuis, verdes, vermelhos,

brancos, chegou mesmo a falar-se em convocar uma gigantesca manifestação na

qual participassem os milhares de pessoas de todas as idades e condições que se

encontravam em estado de morte suspensa, desfilando pelas principais avenidas

da capital em macas, carrinhos de mão, ambulâncias ou às costas dos filhos

mais robustos, com uma faixa enorme à frente do cortejo, que diria, sacrificando

nada menos que quatro vírgulas à eficácia do diastico. (AIM, p. 66)

No meio de toda essa desordem, perguntamo-nos “Onde está o Rei desse país? ” Temos

um Rei omisso que deixa seu primeiro ministro administrar sem prestar-lhe

esclarecimentos de suas ações e decisões. É a mais pura representação da decadência desse

sistema de governo. A família real não participa do desfile dos enfermos ainda que a

Rainha mãe esteja também em estado de morte suspensa. Assim, temos a alusão a um

poder decadente face aos problemas do povo, face à greve da morte. A ausência da atuação

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do poder real diante dessa problemática nos remete à interpretação que Mikhaïl Bakhine

faz sobre o mesmo tema presente na obra de François Rabelais:

Le pouvoir dominant et la vérité dominante ne se voient pas dans le miroir du

temps, aussi ne voient-ils pas leurs points de départ, leurs limites et leurs fins,

leurs face vieille et ridicule, la drôlerie de leurs prétentions à l’éternité et à

l’immuabilité. Les représentations du vieux pouvoir et de la vieille vérité

achèvent leur rôle, la mine sérieuse et dans les tons graves, alors que les

spectateurs rient depuis longtemps38.

Diante os fatos que permeiam a primeira parte da narrativa, a postura real é ridícula,

pois ela ausenta-se, anula-se frente ao problema, como se estivesse a assistir inerte de seu

trono ao desfile carnavalesco que envolve todo o reino. No romance, o povo não ri durante

o desfile e, pelo contrário, une-se e é manipulado pelos que fazem parte do poder. Portanto,

a figura do Rei é invertida, torna-se subversivamente uma marionete manipulada por seu

primeiro ministro que consequentemente é manipulado pela força da “máphia” deixando,

pois, bem clara a ideia de que um país sem governo atuante é um país mergulhado na

desordem, no caos. Assim, se o Estado perde seu poder diante da “máphia “que é apenas

uma milícia, deixa-nos evidente a inversão dos valores hierárquicos dentro de um mundo

onde tudo está às avessas.

Não podemos deixar de lado a figura da morte, pois ela mesma em “pessoa” é um

agente subversivo. É ela que causa todo esse caos e que consequentemente provoca

diversas inversões de valores, de atitudes e até mesmo de ideologias. Ao anunciar que

cessou de trabalhar por sete meses somente para que os seres humanos sentissem a

necessidade do seu retorno, em um momento em que quase tudo estava voltando ao

normal, ou seja, os habitantes já estavam se acostumando à sua ausência, mesmo tendo

problemas com os outros países onde não se morria, ela volta às suas atividades,

38 Mikhaïl Bakhtine, L’œuvre de François Rabelais et la culture populaire au moyen âge et sous la renaissance, op. cit. , p. 213.

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provocando um novo caos. Assim, o que já estava invertido por conta da ausência de

Tânatos, volta ao “normal”, sendo que esse normal será um novo espetáculo carnavalesco,

visto que ela passará a enviar cartas violeta avisando ao futuro defunto que terá um prazo

de uma semana para organizar a sua vida, pagar dívidas, fazer as pazes com as pessoas, etc.

Nesse contexto, o desfile carnavalesco recomeça, trazendo com ele a subversão dos

valores, provocando uma nova etapa onde tudo se torna às avessas.

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TERCEIRA PARTE

O Humanismo em José Saramago

Se alguém nos perguntasse o que significa ser humano, a resposta está em José

Saramago, pois em suas obras encontramos questionamentos fundamentais à existência

humana. É um escritor que tem compromisso com a humanidade e cujos temas são

compreensíveis a qualquer pessoa. Encontramos no conjunto de sua obra, alguns

questionamentos referentes à família, à liberdade, à identidade, à história, à morte e ao

amor. Este último, talvez seja a base da literatura desse escritor, pois tudo converge nele

mesmo quando se trata da morte, é sobre o amor que ele quer falar.

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Entre os questionamentos destacados acima, podemos perceber do próprio escritor em

um diálogo com um de seus editores a afirmação de que “ao romance e ao romancista não

restava mais que regressar as três ou quatro grandes questões humanas, talvez só duas, vida

e morte, tentar saber, já nem sequer donde vimos e para onde vamos, mas simplesmente

quem somos.”39 É nessa busca constante de saber as respostas a esta simples pergunta que

o escritor tenta caracterizar a essência humana. De fato, é o que vemos no conjunto de sua

obra, essa demanda em encontrar o outro lado do homem a partir de uma ausência. É assim

que, segundo ele, surgiram alguns de seus romances, como Ensaio sobre a Cegueira e As

Intermitências da Morte. No Ensaio, essa ausência seria a cegueira. Podemos imaginar

então, que a cegueira citada seja alegórica, simbolizando o uso da razão contra a razão ou

“a cegueira da razão” ou o uso irracional da razão. Uma razão cega que não sabe aonde vai

e nem se interessa em saber. Dessa maneira é acolhida a imagem tradicional do homem

cuja natureza o distingue dos outros animais, precisamente por causa dessas duas

faculdades, a razão e a vontade. Na segunda obra em destaque, podemos dizer que a

ausência seria então uma análise do mundo sem a morte e o estudo da posição do ser

humano frente a essa possibilidade. Notamos então, o interesse por parte do escritor em

conhecer sempre a reação humana frente a alguma possibilidade diferente, ou seja, que fuja

ao seu cotidiano, à sua realidade.

José Saramago também tem suas preferências e ele as expõe claramente nos Cadernos

de Lanzarote. A partir de uma leitura desses Cadernos, percebemos a facilidade com que o

escritor passa da ficção a textos como diários. Ambos são gêneros tão diferentes, no

entanto; José Saramago deixa claro, através da sua escrita, o ele espera encontrar sempre

como qualidades no ser humano e entre estas estão a bondade juntamente com a

sensibilidade e inteligência. Segundo ele “a bondade seria talvez, neste mundo, a mais

39 José Saramago, Cadernos de Lanzarote I, Lisboa, Editora Caminho, 1994, p.169.

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inquietante de todas as coisas.”40 Talvez seja por isso que, na obra em estudo, ele faz

questão de tratar de temas como o trato com velhice e o respeito aos doentes como forma

de expressar o que se espera do ser humano e o que se apresenta de fato como realidade.

Assim, é nessa busca em compreender o que o escritor expõe sobre o ser humano na obra

em estudo, que nos propomos a analisar nessa terceira e última parte do nosso trabalho de

pesquisa algumas questões existencialistas e fazer um breve histórico das representações

da morte.

III. 1. Preocupações existencialistas

O Existencialismo é uma corrente filosófica e literária pertencente aos séculos XIX e

XX, período em que adquiriu maior popularização por meio de Jean-Paul Sartre e Simone

de Beauvoir; no entanto os seus elementos podem ser encontrados na vida e no pensamento

de Sócrates, Aurélio Agostinho e também no trabalho de muitos escritores pré-modernos.

Os mais importantes princípios desse movimento estão presentes no obra de Sartre

intitulada O Existencialismo é um Humanismo cujos temas abordados são o absurdo do

mundo, o silêncio e a solidão, enfim a existência humana em toda a sua natureza é

questionada. A partir daí surgem indagações sobre quem somos, para onde vamos, o que

fazemos e quem nos move. É essa consciência de abandono e de solidão, de impotência e

de falta de justificação das ações humanas que estão presentes em boa parte das obras que

unem o filosófico e o literário. No existencialismo também se questiona a existência de

Deus e a realidade humana frente à possibilidade da morte, além de colocar reflexões sobre

a essência humana a partir do famoso pensamento de Sartre que parte do princípio de que a

existência precede a essência.

40 José Saramago, Cadernos de Lanzarote I , op. cit., p.53

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É interessante ressaltar que há alguns intelectuais existencialistas, sejam eles filósofos

ou literatos têm ligação com a fé ou com alguma religião, ao passo que outros se declaram

piamente ateus, é o caso José Saramago, que deixa presente em sua literatura um estudo

sobre a condição humana. Por isso na primeira parte de As Intermitências da Morte ele

consagra um capítulo para expressar-se através do diálogo entre um aprendiz de filósofo e

o espírito que paira sobre a água do aquário. Nele temos profundas reflexões sobre a morte

individual e a morte universal e a postura do ser humano frente à velhice. Por meio de uma

fábula que segundo o narrador é bastante antiga, mas que corre sempre o mundo todo, ele

quebra o percurso narrativo do romance, tentando fazer com que o leitor mergulhe na

história (dentro da história) contada a fim de fazê-lo refletir sobre a natureza humana e o

seu lado obscuro, ou seja, a sua capacidade de prejudicar alguém até que outro lhe abra os

olhos para a verdade e para se conhecer.

Encontramos também em José Saramago um pouco de Jean-Paul Sartre no que se

refere às temáticas abordadas por esses dois grandes escritores. Em Huis Clos de Sartre e

Ensaio sobre a Cegueira, por exemplo, observamos que ambos tratam da metáfora do

emparedamento, ou seja, do enclausuramento do homem moderno, cada um ao seu estilo.

Nessa mesma obra de Sartre encontramos também a temática da morte tratada de forma

alegórica, conforme explica a professora Teresa Cristina Cerdeira:

A alegoria é, pois, um diálogo de mortos que expõem, na verdade, a ideia e a

postulação filosófica- para o caso existencialista- do significado da morte para

os vivos: «eu cai em domínio público», em outras palavras, a morte como

diluição absoluta da consciência livre, perda definitiva da liberdade do sujeito

que se transforma num todo feito pelos outros, pela linguagem dos outros.41

Temos então a ideia de que não há mais a possibilidade de transformar a vida pelo fato

dela já ter acabado. Em As Intermitências da Morte, José Saramago aborda a natureza

41 Teresa Cristina Cerdeira, “ Espaços concentracionarios e as crises da utopia: Sartre e Saramago”, In: Literatura Portuguesa: história, memória e perspectiva, São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2007, p. 360.

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humana encarnando-se em um personagem chamado aprendiz de filosofo. Esse aprendiz de

filósofo é, na verdade, a voz do narrador que, por conseqüência, é o próprio autor. Essa

preocupação em mostrar até que ponto pode chegar a natureza humana frente à velhice é

talvez um desabafo, uma denúncia de como os mais jovens tratam mal os mais idosos,

mesmo aqueles com quem têm laços de família. A fábula contada nesse capítulo traz uma

lição de moral bastante forte e com efeitos de revolta, pois a história pode ser antiga. No

entanto aborda o fato de forma clara e atual, revelando da parte do autor esperanças de que

um dia tudo possa ser diferente. É sua maneira de mostrar que essa culpa é também

coletiva.

O fato de acreditar na bondade humana o faz também questionar para onde vai o ser

humano após a morte e se ela é a mesma para todos bem como quem determina de que

forma ela deve acontecer conforme vemos no trecho do diálogo abaixo:

Eis que o espírito que pairava sobre a água do aquário perguntou ao aprendiz de

filósofo, Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos (...), será

a mesma morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que

nunca o saberá. (AIM, p.78)

Pensava-se que o respeito pelos velhos e pelos enfermos em geral representava

um dos deveres essenciais de qualquer sociedade civilizada, e, por conseguinte,

embora não raro fazendo das tripas coração, não se lhes negavam os cuidados

necessários, e mesmo, em alguns assinalados casos, chegavam a adoçá-lo com

colherzinha de compaixão e amor antes de apagar a luz. (AIM, p. 85)

Esse mesmo questionamento está presente de forma diferente em quase todo o

romance. Essa busca incessante em conhecer a essência humana, em saber se realmente o

homem é bom, faz-nos refletir sobre em que direção devemos procurar o humanismo da

sua ética. Enfim, essa intolerância e falta de respeito no trato com outro ser humano é alvo

de profundas críticas na obra em estudo ao ponto do próprio autor na voz do narrador

sugerir mais fraternidade e consciência. Na verdade para o autor, ao relatar o exemplo de

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maus tratos descritos na fábula, não se vê é como respeitar o homem se não se sabe o que é

o homem, por conseguinte, a sua dignidade, sem perder todo o sentido da humanidade. É

bastante clara essa indignação com que José Saramago se insurge contra o nosso tempo,

que faz da ausência de valores um valor e da hipocrisia pública e privada uma regra. Não é

menos evidente que o escritor atribui a proliferação do mal em nossa sociedade a uma

inércia de espírito que permite a tudo isso tornar-se rotina.

Há no pensamento do autor uma ética, ou melhor, um humanismo ético que é o respeito

pela vida humana, logo esse pensamento caminha até a justiça e à solidariedade. Por isso

ele tem a preocupação em abordar em suas obras temas que permeiam esse meio, como em

As Intermitências da Morte, a forma como ele, enquanto narrador se posiciona diante da

eutanásia, tema bastante polêmico e não tanto abordado na literatura. Assim, percebemos

que Saramago tem perfeita consciência de que só pode denunciar o erro aquele que

conhece, ou julga conhecer, a verdade. Nesse sentido ele traz esse tema à tona nos

Cadernos de Lanzarote onde faz a seguinte pergunta: “Alguém é capaz de imaginar aquela

que seria a maior das revoluções, a revolução de dizer simplesmente a verdade?” 42 É essa

a constante na obra saramaguiana visto que como escritor ele não teme dizer a verdade,

mesmo que esta ofenda, desmascare ou seja fonte de polêmicas. Portanto, para ele o mais

importante é servir a humanidade com a verdade ainda que em forma de literatura e para

isso ele utiliza-se da ficção, enquanto obra de arte, mesmo sabendo que esta implica

sempre em uma deformação da realidade intuída pelo artista. No entanto, isso não quer

dizer que a deformação de uma obra de arte não reflita uma verdade humana, sobretudo um

pouco da identidade do seu autor.

Outro tema que envolve o ser humano e que José Saramago não dispensa em As

Intermitências da Morte (através dos personagens que fazem a política e a Igreja) nem em

42 José Saramago, Cadernos de Lanzarote III, Lisboa, Editora Caminho, 1996, p.168

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O Evangelho Segundo Jesus Cristo é a hipocrisia. Essa hipocrisia que reina no seio da

sociedade atual e que é fidedignamente descrita na obra em estudo, junto à reflexão sobre o

erro humano e a mentira. Ele é ciente de que a hipocrisia domina por toda parte, porém

cabe ao escritor denunciá-la. A hipocrisia que destacamos abaixo no diálogo entre o

primeiro ministro e o representante da Igreja resulta em dois defeitos humanos, a mentira e

a vaidade:

A igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas

eternas que não posso imaginá-la a dar outras, Ainda que a realidade as

contradiga, Desde o princípio que nós não temos feito outra coisa que

contradizer a realidade, e aqui estamos, Que irá dizer o papa, Se eu o fosse,

perdoe-me deus a estulta vaidade de pensar-me tal, mandaria pôr imediatamente

em circulação uma nova tese, a da morte adiada. (AIM, p. 22)

Observamos que a essência dessa mentira conforme nos explica Jean-Paul Sartre

“implica, de fato, que o mentiroso esteja completamente a par da verdade que esconde,

evocando assim, uma espécie de má-fé”43. É o que podemos perceber na citação acima: o

fato de envolver mais uma vez a Igreja. Já com relação à meditação sobre o erro, ele

propõe também questionamentos existenciais sobre “quem somos” e “para quê estamos

aqui” condensados sobre o sentido da vida, como vemos nessa outra citação sobre a

efemeridade do ser humano:

Como alguém já disse, tudo o que possa suceder, sucederá, é uma mera questão

de tempo, e, se não chegamos a vê-lo enquanto por ca andávamos, terá sido só

porque não tínhamos vivido o suficiente. (AIM, p.87)

É da natureza humana indagar-se sobre o sentido da vida e da morte deixando muitas

vezes um pouco confusos os sentimentos e os objetivos traçados no percurso da vida,

porém cabe ao ser humano tentar buscar dentro de si essas respostas. Assim, por meios

delas, teremos uma aceitação fácil e corriqueira em relação à vida, ao passo que para a

43 Jean- Paul Sartre, “Má-fé e mentira”, In: O Ser e o Nada, Petrópolis, Editora Vozes, 2005, p.115.

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morte, torna-se impossível compreender que aqui somos efêmeros, passageiros. Já falamos

muitas vezes sobre a morte e sobre alguns outros temas que a relacionam, logo, de certa

forma, falamos também como José Saramago, através da sua escrita, deixa clara a maneira

de como ele encara a vida e essa possibilidade, pois é um escritor que tem em suas obras

um forte compromisso com a humanidade e que por intermédio de sua literatura nos faz

sentir imortais ainda que tenhamos defeitos e falhas. Assim, encerramos este capítulo com

a resposta a uma pergunta feita por João Céu e Silva a José Saramago:

_Todos nós podemos ser mais do que aquilo que somos?

_Disso não tenhamos nenhuma dúvida. Pensar que o que somos estava escrito

desde o princípio do mundo e vamos ter que ser assim quando efetivamente

podemos olhar para uma vida que não foi em linha recta- ou foi em linha recta

de uma certa maneira mas passou por isto ou por aquilo- e pensamos que isso

não podia estar escrito. Há uma parte, evidentemente em que entra a sociedade e

que interfere nas nossas vidas, mas também há outra parte, que não é

insignificante, em que são as nossas decisões e a nossa vontade que interferem.

Não quero dizer que na vida da sociedade, mas que condicionam um pouco ou a

orientam num sentido um pouco diferente. Se não fosse assim, o que é que

seríamos, meras passividades? Mas para que alguém se limite ou se resigne à

passividade, isso implica que há alguém que se aproveita dessa passividade e

porque se aproveita dessa minha passividade significa que essa pessoa, essa

entidade, não é passiva. Isto é um jogo de forças.44

Nesse jogo de forças em que estão presentes a sociedade (coletivo) e o homem

(indivíduo) devem vencer sempre, segundo o escritor, os valores pessoais e a força interior

de cada um. É essa força interior que dá um sentido lógico à vida possibilitando ao homem

perder o medo da morte por abraçar-se firmemente à vida, talvez este seja o maior

propósito da obra em estudo.

III. 2. O encontro entre o Ser e a Morte

44 João Céu e Silva, Uma longa viagem com José Saramago, op. cit. 261

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Indagar para onde vamos após a morte sempre foi uma das preocupações humanas

desde as mais remotas civilizações. Umas mais que outras tinham todo um certo ritual de

respeito à passagem da vida para a morte variando os tipos de cerimônias de acordo com a

vida pregressa do morto, sua posição social, seus valores filosóficos e religiosos.

Considerando o fato de não sabermos o que nos espera do outro lado, temos um sentimento

de medo diante do desconhecido, por isso a necessidade de alguns rituais de passagem e de

preparação para assegurar de forma respeitosa e digna a chegada do morto ao outro lado.

Mesmo na obra em estudo, verificamos alguns desses rituais e o sentimento de medo do

desconhecido. Então é nessa perspectiva que tentaremos abordar nesse capítulo algumas

representações históricas sobre a morte e a posição do homem frente a este episódio final.

III. 2.a. Representações históricas da morte

Como já dissemos, a morte tem como características principais o mistério e o medo.

Quem já passou para o outro lado não teve a oportunidade de voltar e relatar

detalhadamente o que espera futuramente os outros que ficaram em vida. Essa incerteza

gerou em várias culturas a busca pela resposta, pelo conhecer mais sobre a morte através

dos mitos, da filosofia, da arte e das religiões. Assim, elas criaram elos que tornaram um

pouco mais compreensível o desconhecido, na esperança de aliviar a dor e a angústia

geradas pela morte. A maneira de como uma sociedade se posiciona diante da morte e

diante do morto é fundamental na constituição e na construção da sua identidade coletiva,

consequentemente na formação da sua tradição cultural comum.

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Constatamos as afirmações acima na civilização mesopotâmica onde o sepultamento de

seus mortos era realizado com tanto respeito e zelo que juntamente com seus corpos eram

colocados objetos pessoais e até mesmo a comida preferida do morto enquanto este tinha

vida. Este ritual representava o respeito pelo morto e a certeza de que nada lhe faltaria

durante a passagem para a outra vida. Já na sociedade grega, verificamos um caráter mais

cultural, pois havia a cremação dos corpos dos mortos com o objetivo de marcar a sua

nossa condição, ou seja, a condição de morto. No entanto, os gregos faziam rituais

diferenciados para o povo e para seus heróis. Os primeiros eram cremados e enterrados em

sepulturas comuns, coletivas; enquanto que aqueles considerados heróis eram levados à

pira crematória com direito a uma bela cerimônia de passagem, pois para os gregos esse

tipo de cerimônia tornava o morto imortal. Não podemos deixar de destacar que alguns

gregos guardavam as cinzas dos seus mortos para conservar-lhes em memória. Portanto,

como podemos observar, sempre houve um respeito do homem perante a morte

acreditando que o morto encontrará do outro lado algo melhor.

Para a civilização cristã e para grande parte da comunidade judia, principalmente para

aqueles que acreditam na ressurreição, a morte era vista como passagem para outra vida,

cessando assim o sofrimento, acesso ao paraíso prometido nas Sagradas Escrituras, mas

somente par aos bem-aventurados. Nesse contexto, a morte para os cristãos seria um sono

profundo do qual eles acordariam no dia da ressurreição com a chegada do Messias, este

possibilitaria o retorno das almas aos corpos, sendo assim necessitaria ter um certo

cuidado, um certo esmero ao enterrar os corpos dos defuntos. Esse cuidado em enterrar os

corpos enfatizou bastante a esperança de poupar as futuras gerações da ideia de um final

definitivo. Em As Intermitências da Morte, percebemos em alguns diálogos entre

personagens representantes da sociedade a importância em preservar esse discurso

propagado pelo cristianismo, porém no intuito de manter os fiéis nas igrejas:

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(...) o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui o

alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de abóboda da nossa santa

religião. (...) sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte

não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja. (AIM, p.20)

Na Idade Média (século V ao século XII), a morte era mais familiarizada, ou seja,

havia uma certa intimidade e costume entre o ato de morrer e a sociedade ao ponto que a

morte era encarada como algo muito natural. Era comum nessa época, sentir, ou melhor,

pressentir a aproximação dela. O indivíduo ao pressentir a sua partida, preparava-se,

despedia-se dos seus próximos, expunha os seus últimos desejos, mas tudo isso na

esperança de passar pelo juízo final e de alcançar um lugar no paraíso (ideia divulgada

deste os princípios do cristianismo). Essa ideia de preparação foi divulgada na segunda

parte da obra em estudo quando a morte retorna ao trabalho resolvendo dar um prazo de

uma semana para os que receberem as cartas cor violeta se prepararem para a passagem.

Assim, verificamos um dos resgates que o autor faz da representação da morte na Idade

Média e que é vivenciada na obra em estudo.

Ainda na Idade Média, os defuntos eram enterrados somente com sudários e em

grandes valas, pois ainda não havia necessidade de um túmulo individual para o morto.

Vemos também essa mesma representação da morte abordada no romance em estudo ao

destacar na narrativa o sepultamento do velho e da criança (membros de uma família

camponesa bastante modesta) com braços em forma de cruz em uma vala coletiva fora da

igreja, uma menção a uma ação do nosso passado histórico (AIM, p.46). Nesse contexto,

temos a retomada de uma representação histórica da morte dentro de uma ficção em

momentos históricos diferentes e em sociedades diferentes. Outro ponto que devemos

observar é a ideia de separação entre cemitério e igreja ainda não era bem definida, uma

vez que os ricos eram enterrados dentro da igreja e os pobres no seu pátio, pois valia a

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crença de que os mortos seriam protegidos do inferno pelos santos. É interessante ressaltar

que embora houvesse uma ligação entre igreja e cemitério, ambos não deixaram de ser

lugares públicos tornando clara a convivência entre vivos e mortos como explica Philippe

Ariès:

On n’avait pas l’idée moderne que le mort devait être installé dans une sorte de

maison à lui, dont il serait le propriétaire perpétuel- ou tout au moins le locataire

de longue durée- , qu’il y serait chez lui et qu’on ne pourrait pas l’en déloger.

Au Moyen Age et encore au XVIe et au XVIIe siècle, peu importait la

destination exacte des os, pourvu qu’ils restassent près des saints ou à l’église,

près de l’autel de la Vierge ou du Saint-Sacrement. Le corps était confié à

l’Eglise. Peu importait ce que l’Eglise en ferait pourvu qu’elle les conservât

dans son enceinte sacrée. 45

Com o passar do tempo ocorreram mudanças bastante significativas com relação às

representações da morte, sobretudo no Ocidente. As certezas tornaram-se incertezas, pois a

partir do século XII cabia à Igreja intermediar o acesso da alma ao paraíso e o julgamento

que antes era divulgado como um acontecimento “nos tempos finais” passou a ser tratado

logo após a morte determinando assim a ida ao inferno ou a subida ao céu. A consequencia

disso tudo é que as pessoas deixaram de encarar a morte como algo natural além de colocar

dúvidas sobre a misericórdia divina aumentando assim, o medo de cair no poder de

Satanás. Essa mudança de postura ocorrida no século XII com relação à morte faz com que

esta passa a ser “clericalizada” como nos explica Philippe Ariès:

Vers le XIe siècle, à la fin d’un long premier Moyen Age, deux attitudes devant

l’après-mort apparaissent donc distinctement. L’une, traditionnelle, commune à

la grande masse des laïques, reste fidèle à l’image d’un phylum continu de

vivants et de morts, unis sur la terre et dans l’éternité, évoqués chaque dimanche

aux prières du prône. L’autre au contraire, propre à une société fermée de

moines et de prêtes, qui témoigne d’une psychologie nouvelle, plus

45 Philipe Ariès, Essais sur l’histoire de la mort en Occident, op. cit. , p. 29.

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individualiste. A partir du XIIIe siècle, tout se passe comme si les traits de

mentalités jusque-là développés comme en serre dans les cloîtres gagnaient le

monde ouvert des laïques. La mort va être pour longtemps cléricalisée. C’est un

grand changement, le plus grand avant les sécularisations du XXe siècle.46

Durante a baixa Idade Média, o corpo após a morte e depois de receber as expressões

de luto e de dor dos familiares, era estendido sobre um lençol de ouro tecido de cores

bastante fortes como o vermelho, o azul o verde ou um simples lençol de linho para em

seguida ser exposto na porta da casa antes de ser inumado. Esse corpo era cosido na

mortalha, da cabeça aos pés, de modo que nada aparecia do que ele tinha sido tudo isso

para logo em seguida ser fechado numa caixa de madeira ou cercueil termo francês que

surgiu da raiz palavra sarcófago sarceu.

A partir do século XVIII, verificamos fortes mudanças da postura do homem diante da

morte, pois esta passa a ser mais romantizada e encarada como ruptura no qual o homem

era arrancado de sua vida e jogado em um mundo mais cruel e violento. As igrejas deixam

de ser um local para sepultamentos, pois estes passaram a ocorrer em cemitérios que eram

construídos nos arredores das cidades marcando assim um diferencial entre a vida e a

morte. Maurice Daumas nos explica tal decisão ocorrida em França da seguinte forma:

Le dernier quart du XVIIIe siècle vit proliférer les mémoires sur le cimetière,

objet de l’attention des médecins, des urbanistes et des administrateurs. Dès les

années qui précèdent immédiatement la Révolution, on le conçoit comme une

cité des morts : il reproduit la hiérarchie sociale, honore les grands hommes et

rassemble dans un jardin, à l’instar d’un musée, les meilleurs témoignages de

l’art de son temps. La Révolution balaya tous ces projets, mais leurs idées

finirent par s’imposer : le cimetière devint une ville des morts, une nécropole.

La désacralisation du lieu se manifeste par le fait que le cimetière accueille

désormais tout le monde sans distinction de confession ou de croyance ;

L’Eglise n’est plus étroitement liée au cimetière.47

46 Philippe Ariès, L’homme devant la mort, Paris, Editions du Seuil, 1977, p. 161.47 Maurice Daumas, La mort en Occident, op. cit. , p.56.

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Os corpos passaram a ter túmulos individuais e bem demarcados, pois se pretendia

agora ter acesso ao lugar exato onde o corpo havia sito colocado a fim de que este

recebesse a presença da família. Já no século XIX temos a volta do significado do luto,

porém de uma forma bem exagerada isso quer dizer na visão de Philippe Ariès que “os

sobreviventes aceitam a morte do próximo mais dificilmente do que noutros tempos, pois a

morte temida, não é a morte de si mesmo, mas a morte do próximo, a morte do outro”48.

Embora a morte tenha um caráter universal, as representações ligadas a ela sofrem

alterações no tempo e no espaço. Ela que um dia foi familiarizada, domesticada; nos dias

atuais é motivo de tabu, algo do qual o homem moderno tenta fugir, porém é uma fuga em

vão, pois na sua condição de mortal é imprescindível que ele faça parte do ciclo da vida e

encare a morte do outro e a sua própria morte também. Portanto, é dentro dessa ideia de

que a morte ainda é considerada um tabu que José Saramago se posiciona tentando quebrar

esse pensamento. Ele resgata em As Intermitências da Morte a característica natural da

morte explicitando o desespero do homem diante da ideia de fim; no entanto, tudo é tratado

de forma muito simples com o objetivo de trazer à tona uma reflexão sobre o ato de morrer

e sobre como enfrentar a morte. É a visão exterior de um homem que vê os outros reagirem

diante dessa perspectiva, como se sua obra fosse um laboratório experimental para testar e

comprovar hipóteses sobre a morte.

III. 2.b. O universo carnavalizado do encontro do Ser com a Morte

Se partirmos do pressuposto de que morrer é, efetivamente, antes de tudo “perder a

vida”, então acreditaremos e compreenderemos o motivo do medo da morte, da

necessidade de evitar comentários sobre esse tema que, para muitos, traz tanta dor e

48 Philippe Arès, Essais sur l’histoire de la mort en Occident, op. cit. , p. 53.

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saudade. Mas não é esse o propósito desse capítulo, pois abordaremos esse tema de forma

branda, buscando mostrar o valor salvador do cômico até mesmo em situações que se

referem à morte, porém não deixaremos de tratá-lo também pela filosofia do humanismo.

Conforme vimos nos capítulos anteriores, as sociedades possuíam e possuem um

arsenal defensivo contra a morte, seja através dos seus ritos e cerimônias, seja através de

seus tabus. Mesmo na literatura, vista como forma artística que representa uma

determinada cultura também encontramos a figura da morte ora de forma redentora ora de

forma punitiva, como por exemplo, no romance brasileiro Lucíola (1862) de José de

Alencar onde a figura da morte é representação punitiva de uma sociedade hipócrita. Nesse

tipo de romance não há nada que possa relacionar a morte ao humor nem ao seu estado

familiar já que os personagens dessas obras literárias, sobretudo das mais recentes (século

XIX), deparam-se com a morte de forma bastante trágica e surpreendente. Totalmente o

oposto do que ocorria em obras medievais francesas em que os personagens se preparavam

para a chegada do momento da passagem, aceitando-o como fato natural, como por

exemplo, em La Chanson de Roland, Les Romans de la table ronde e Trinstan et Iseult.

As Intermitências da Morte, obra publicada recentemente, reflete uma sociedade

moderna e teoricamente bem mais preparada para a discussão desse tema. Porém não é o

que acontece comprovando mais uma vez que o homem contemporâneo, seja ele bem

instruído ou não, não está de forma alguma preparado para a morte nem do próximo e nem

de si mesmo. Percebemos isso pela reação das personagens frente à concretização dessa

realidade no seu cotidiano. As representações da morte na obra em estudo aparecem de

forma que variam entre o sério e o ridículo, mas sempre com a intenção de mostrar a

reação do homem frente a essa possibilidade. Algumas entre essas personagens se sentem

surpresas, inconformadas, não preparadas o bastante para fazer a passagem. Algumas se

apegam a Deus fazendo preces e promessas (segunda parte do romance), outras que se

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encontram com enfermos incuráveis, ao vê-los estagnados pela ausência da morte na

primeira parte da romance, buscam encontrar soluções para alcançar o seu objetivo que é

levar a morte ao moribundo. Não temos, no contexto geral do romance, muitas referências

sobre a dor da perda de um ente querido, pelo contrário, o que vemos é o desespero para

encontrar uma solução para livrar os enfermos que se encontram entre a vida e a morte. É

nesse momento que a morte é carnavalizada. As situações ridículas são abordadas de forma

cômica, fazendo-nos lembrar da ideia exposta por Mikhaïl Bakhtine de que o ridículo

mata: ele mata a morte49. Como vemos no trecho abaixo referente à publicidade do uso da

bandeira nacional, fato que virou moda graças ao gesto de uma senhora em estado de

viuvez citada logo no início do romance:

Quem não puser a imortal bandeira da pátria à janela da sua casa não merece

estar vivo, Aqueles que não andarem com a bandeira nacional bem à vista é

porque se venderam à morte, Junte-se a nós, seja patriota , compre uma

bandeira, Compre outra, Compre mais outra. (AIM, p.26)

Brinca-se com a morte, brinca-se também com a bandeira nacional. A condição para se

manter vivo é levar a imortal bandeira bem à vista para fugir da morte, logo se tornar

eterno. Aqui, verificamos o desejo da imortalidade por não se acreditar na possibilidade de

morrer. O jogo de palavras como “imortal” e “vivo” deixa clara essa ideia de que o ser não

concebe, ou melhor, não aceita essa hipótese como algo que se realizará mais cedo ou mais

tarde e que nesse trecho do romance é tratado também, através do discurso irônico e do

excesso de acumulações (compre uma bandeira, compre outra, compre mais outra...) o

universo carnavalizado. Ora nesse contexto cômico podemos ressaltar o desejo claro de

desconstruir um mito, aqui representado pela bandeira nacional portuguesa, símbolo de

luta, amor e patriotismo. Logo, verificamos que mesmo diante de situações sérias, como

49 Mikhaïl Bakhtine, L’œuvre de François Rabelais, op. cit., p. 101.

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por exemplo, o fato de morrer, devemos evocar ou é evocada a presença do riso conforme

explica Mikhaïl Bakhtine:

On joue avec ce qui est redoutable, on s’en moque : le terrible devient un

« joyeux épouvantail ». (...) La victoire sur la mort n’est nullement son

élimination abstraite, c’est à la fois son détrônement, sa rénovation, sa

transformation en joie (…).50

Na Idade Média o ato de morrer era tratado de forma diferente, havia uma certa

preparação. Era uma ocasião festiva, daí o fato da morte ser evocada no carnaval em forma

de mulher grávida mostrando as suas deformidades para ser motivo de riso e a sua

eliminação metafórica mostrava a vitória do ser contra a sua presença. Há ainda, na obra

em estudo, outros momentos onde se dá a carnavalização do ato de morrer, como por

exemplo, ao referir-se aos caixões e à falta de defuntos para estes, o fato de enterrarem

seus mortos em valas cavadas em outro país fora da fronteira, o fato da morte avisar aos

futuros defuntos o dia da morte deles e de dar-lhes uma semana para organizar a partida,

pagar suas dívidas e pedir perdão aos que foram ofendidos (este fato nos remete à

preparação da morte familiarizada e domesticada na Idade Média). Portanto, tudo isso

torna o universo da narrativa carnavalizado, ou seja, o encontro do homem com a morte é

tido como uma paródia em As Intermitências da Morte.

Em meio a tudo isso há um ponto que merece atenção especial: a posição do escritor

face ao encontro entre o ser e a morte. Sabemos que José Saramago, como escritor cujas

preocupações existencialistas estão presentes no conjunto de sua obra, defende os valores

humanos de forma bem explícita acreditando que no homem sempre deve existir o bem.

Então é nessa busca de mostrar a importância dos valores para o bem-estar da humanidade

que o escritor se aproveita do tema central para evocar temas secundários, ou seja, é a

partir da temática da morte que surgem reflexões a respeito do valor à vida, e de como o

50 Mikhaïl Bakhtine, L’œuvre de François Rabelais, op. cit., p. 99.

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ser humano deve aprender a valorizá-la, pois uma vez que ele a perde, não poderá tê-la de

volta. Assim, o escritor faz de um “tabu”51, um tema aberto à reflexão e à discussão, de

forma bem simples e objetiva afastando-se da temática do medo e do pavor que ele traz.

Nesse encontro entre o ser e a morte, não podemos deixar de lado o sentimento do

homem perante Deus e diante da Morte. Em As Intermitências da Morte, Deus é

representado no papel da Igreja, vista como instituição que precisa da presença da morte

para assegurar aos fiéis uma esperança de vida eterna e de paraíso. Mas não é “esse tipo de

Deus” a que nos referimos. Não é da instituição que queremos falar, mas sim do Ser

Supremo. É do papel que Esse Ser exerce em meio a uma possibilidade de morte que

queremos abordar considerando o pensamento de Jean-Paul Sartre a respeito dessa

temática:

(...) une fois disparu l’horizon du devant Dieu, l’angoisse devenant une

appréhension réfléchie de soi en toute liberté, l’être-pour-la-mort échappe au

pouvoir du libre mortel. Comme la naissance, la mort vient du dehors,

contingent et absurde.52

Uma vez que este ser se encontra sozinho, sem qualquer apoio filosófico, moral ou

religioso, fica difícil a compreensão e aceitação da possibilidade de morte, seja ela do

próximo ou de si mesmo, pois esse homem tem a necessidade de se apoiar em algo em que

acredita, então, é nesse momento que surge a importância do papel de Deus. Ora, José

Saramago declarando-se ateu, teria a preocupação de abordar a importância de Deus em

uma de suas obras? Em resposta a essa pergunta, podemos imaginar que ele não acredita na

existência de Deus, mas por “ter sido durante toda a sua vida “embebido” no

51 O tema da morte é considerado um tabu porque calamos a respeito dele por séculos e séculos. É um assunto que, quando é mencionado, sentimos que alguma coisa começa a se agitar dentro de nós. A morte nunca é encarada diretamente, pois sempre criamos fenômenos falsos diante dela, assim como eufemismos para designá-la ou anunciar a sua chegada.52 Jacques Colette, L’existentialisme, Paris, Presse Universitaire, 1994, p.75.

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Cristianismo”53, espera, talvez algo melhor após a morte. Assim, quando se tem a visão de

uma outra vida melhor que nos espera em outro lugar desconhecido, porém idealizado,

torna-se fácil aceitar a morte. Era o que ocorria em épocas remotas antes da Igreja criar a

noção de que ao morrermos iríamos imediatamente ao céu ou ao inferno, de acordo com

nossas obras aqui na terra. Esse último pensamento, que de forma clara, tinha a intenção

de aproximar o homem da Igreja e fazê-lo respeitar e seguir seus dogmas, de certa forma,

afastou-o de Deus e da aceitação da morte naturalmente. Por isso, no romance em estudo

há críticas a essa instituição, o que nos leva a reafirmar que José Saramago é ateu assumido

sim, no entanto, isso não o impediu de falar de Deus e de refletir sobre a sua existência,

como percebemos no diálogo abaixo:

Na sinagoga nunca ouviste dizer que Deus é um olho, uma orelha e uma

língua, A conclusão foi minha, se Deus isso não fosse não seria Deus, E por que

achas tu que Deus é um olho e uma orelha e não dois olhos e duas orelhas como

temos tu e eu, Para que um olho não pudesse enganar o outro, e uma orelha a

outra orelha, para a língua não é preciso, é uma só, A língua dos homens

também é dúplice, tanto serve para a verdade como para a mentira, A Deus, não

é permitido mentir, quem lho impede, O mesmo Deus, ou então negar-se-ia a si,

Já o viste, A quem, A Deus, Alguns o viram e anunciaram. O homem esteve

calado a olhar o rapaz como se nele buscasse umas feições conhecidas, e depois

disse, Sim, é certo, alguns julgaram vê-lo. 54

Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo percebemos o uso da letra maiúscula ao referir-

se a Deus, talvez em gesto de respeito por parte do escritor. Verificamos também nesse

mesmo diálogo uma afirmação da existência desse Deus e de como Ele procede com os

homens. Desde modo, concluímos esse capítulo tentando mostrar de forma sucinta a

relação entre Deus e o homem, dentro da ficção, e o papel da igreja, principalmente, no que

se refere aos entraves que seus dogmas trazem a esta relação. Tentamos também mostrar o 53 Palavras do Próprio escritor em um debate com o Frade Carreira das Neves, em 23 de outubro de 2009, na Televisão portuguesa.54 José Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Lisboa, Edição Digitalizada, p. 161.

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universo carnavalizado do encontro do homem com a morte no contexto ficcional de As

Intermitências da Morte.

Conclusão

A análise do romance As Intermitências da Morte permitiu-nos observar o poder que a

ironia e o cômico, aliados à linguagem lúdica, exerce nesse tipo de gênero narrativo

proporcionando ao leitor chegar ao riso sem perder o seu caráter crítico e reflexivo. Nesse

sentido, estudar a ironia e suas intenções em José Saramago, além de ter sido um trabalho

prazeroso, mostrou-nos o quanto esse escritor é perspicaz e sábio, pois ao tratar da temática

da morte como se este fosse uma fábula, ele dá ênfase a muitos questionamentos essenciais

para a humanidade.

Ao abordar a temática da morte, no primeiro capítulo, a partir da ausência dela como

fenômeno natural, José Saramago traz à tona os sentimentos do homem diante da morte e a

importância dela para a continuidade da vida. É através dessa ausência temporária que

surgem, a partir do caos estabelecido no seio da sociedade destacada na obra, vários

questionamentos existenciais. São esses questionamentos que levam a uma reflexão sobre

o amor, sobre o medo e sobre o respeito à vida. Através deles surgem as ironias ora na

linguagem ora em situações bastante cômicas comprovando assim, que é possível o uso

desses dois recursos sem prejudicar o sentido geral do texto. Claro que José Saramago

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utilizou-se de outros recursos estilísticos para tornar a linguagem de sua obra bastante

lúdica, e entre eles podemos destacar a alegoria da morte. Essa alegoria, conforme

mostramos em um dos capítulos de nossa pesquisa, foi muito bem desenvolvida, pois a

figura da morte, como personagem principal, desfilou em nosso imaginário desde a sua

representação medieval passando por diversas metamorfoses até chegar a sua forma

humana adquirindo característica físicas e psicológicas de uma linda mulher de 36 anos.

Cada aparição da morte no segundo capítulo da obra, além de expor os fatos de uma

maneira bem humorada, traz também profundos questionamentos a respeito do valor que a

humanidade deve dar à vida e ao próximo. Assim, na análise dessa segunda parte,

verificamos a preocupação do escritor em conscientizar o leitor, seja ele quem for, de que a

vida humana é efêmera, portanto devendo ser apreciada e respeitada. Em meio a tantos

outros temas abordados a partir da principal temática que é a da morte, percebemos

também uma forte ligação a outras obras de José Saramago, tais como Memorial do

Convento, Ensaio Sobre a Cegueira, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e O Ano da Morte

de Ricardo Reis. Nessas obras, assim como em As Intermitências da Morte o principal

papel da ironia é criticar. A crítica, conforme verificamos no decorrer de nossa pesquisa, é

direcionada a diversos representantes da sociedade, mas em especial à Igreja e ao Governo.

Sendo assim, é através dela que o escritor, a nosso ver, pretender conscientizar o leitor a

partir de alguns assuntos que envolvem essas duas camadas sociais que detêm ainda o

poder de conduzir ou manipular o povo.

Temos plena consciência de que há ainda muita coisa a ser pesquisada no universo

saramaguiano, sobretudo no que diz respeito à ironia e a comicidade. Também somos

cientes de que nossa pesquisa se trata apenas de mais uma pequena vírgula em meio a

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várias outras que já foram feitas sobre a obra de José Saramago, mas que de certa forma,

tem algo a acrescentar pela sua simplicidade e respeito a esse tão grande escritor.

Bibliografia

1. Bibliografia Ativa

a) Corpus Principal

SARAMAGO, José, As Intermitências da Morte, Lisboa, Editora Caminho, 2005.

b) Corpus Anexo

SARAMAGO, José, Cadernos de Lanzarote I, Lisboa, Editora Caminho, 1994.

________________, Cadernos de Lanzarote III, Lisboa, Editora Caminho, 1996.

________________, Ensaio Sobre a Cegueira, Lisboa, Editora Caminho, 1995.

________________, Memorial do Convento, Lisboa, Editora Caminho, 1982.

________________, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Lisboa, Editora Caminho, 1984.

________________, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Lisboa, Editora Caminho, 1991.

2. Bibliografia Geral

a) Livros

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b) Artigos

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3. Dicionários e Enciclopédias

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