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OUTROS SABERES SOBRE A ESCOLA: A VOZ DO ALUNO NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO Carmen Lucia Guimarães de Mattos University of British Columbia (UBC) Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Walcéa Barreto Alves Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) RESUMO Este texto discute a voz aluno na pesquisa educacional. Seu objetivo é compreender os processos e práticas interativas no ambiente escolar na perspectiva dos estudantes que fazem parte desse contexto. As análises derivam de duas pesquisas; uma bibliográfica que investigou (683) artigos sobre o fracasso escolar baseados em entrevistas “com/sobre” alunos que fracassam na escola e encontrou somente (1) que realmente ouviu esse aluno; e a outra é uma pesquisa etnográfica que privilegiou o aluno como agente ativo no ato de dar sentido aos dados coletados durante a realização da pesquisa, sentidos estes que podem provocar mudanças na escola. Estudos de Fine (2013), Grion (2013), Cook-Sather (2013), Mattos (2011, 1992) e Alves (2003, 2012) formam a base teórico-epistemológica dos resultados apresentados. Fatores como: relações assimétricas de poder, currículo centrado em práticas pedagógicas que não privilegiam os saberes dos alunos, pouca sensibilidade da escola em relação aos temas que permeiam o ambiente escolar e a violência da/na escola, emergiram da voz do aluno que, transformadas em vinhetas etnográficas, demonstram como eles se descolam do entendimento e realização de suas tarefas, dos professores, dos pais e de outros alunos e priorizam emergências que surgem na sala de aula, na escola e na família. Como resultado, esses alunos experimentam situações de vulnerabilidades em sua escolarização e as descrevem no enfrentamento das vivências do dia a dia. Para os alunos a escola é percebida como um espaço de construção de experiências com potencial transformador, especialmente a partir de suas vozes, permitindo compreender que o ensinar não se restrinja a uma mera transferência de conhecimentos, mas que a escola seja lugar de vida, de produção de conhecimento e de vicissitudes que propulsionem novas formas de interpretar, ver e ouvir a realidade a partir do outro. Em particular, invertendo-se as relações hierárquicas de poder e flexibilizando a assimetria existentes entre elas. Palavras-chave: aluno; etnografia; pesquisa bibliográfica Introdução Este texto busca dialogar com professores e pesquisadores sobre a importância de ouvir o aluno como fonte primária de conhecimento sobre a escola, o ensino e a pesquisa. Assim, pensa-se nos alunos como agentes do conhecimento, potencialmente transformadores da escola. O suporte teórico para as análises da voz do aluno tem como Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola EdUECE- Livro 1 03435

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OUTROS SABERES SOBRE A ESCOLA: A VOZ DO ALUNO NA PESQUISA

EM EDUCAÇÃO

Carmen Lucia Guimarães de Mattos

University of British Columbia (UBC)

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Walcéa Barreto Alves

Centro Universitário La Salle (UNILASALLE)

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

RESUMO

Este texto discute a voz aluno na pesquisa educacional. Seu objetivo é compreender os

processos e práticas interativas no ambiente escolar na perspectiva dos estudantes que

fazem parte desse contexto. As análises derivam de duas pesquisas; uma bibliográfica

que investigou (683) artigos sobre o fracasso escolar baseados em entrevistas

“com/sobre” alunos que fracassam na escola e encontrou somente (1) que realmente

ouviu esse aluno; e a outra é uma pesquisa etnográfica que privilegiou o aluno como

agente ativo no ato de dar sentido aos dados coletados durante a realização da pesquisa,

sentidos estes que podem provocar mudanças na escola. Estudos de Fine (2013), Grion

(2013), Cook-Sather (2013), Mattos (2011, 1992) e Alves (2003, 2012) formam a base

teórico-epistemológica dos resultados apresentados. Fatores como: relações assimétricas

de poder, currículo centrado em práticas pedagógicas que não privilegiam os saberes

dos alunos, pouca sensibilidade da escola em relação aos temas que permeiam o

ambiente escolar e a violência da/na escola, emergiram da voz do aluno que,

transformadas em vinhetas etnográficas, demonstram como eles se descolam do

entendimento e realização de suas tarefas, dos professores, dos pais e de outros alunos e

priorizam emergências que surgem na sala de aula, na escola e na família. Como

resultado, esses alunos experimentam situações de vulnerabilidades em sua

escolarização e as descrevem no enfrentamento das vivências do dia a dia. Para os

alunos a escola é percebida como um espaço de construção de experiências com

potencial transformador, especialmente a partir de suas vozes, permitindo compreender

que o ensinar não se restrinja a uma mera transferência de conhecimentos, mas que a

escola seja lugar de vida, de produção de conhecimento e de vicissitudes que

propulsionem novas formas de interpretar, ver e ouvir a realidade a partir do outro. Em

particular, invertendo-se as relações hierárquicas de poder e flexibilizando a assimetria

existentes entre elas.

Palavras-chave: aluno; etnografia; pesquisa bibliográfica

Introdução

Este texto busca dialogar com professores e pesquisadores sobre a importância de

ouvir o aluno como fonte primária de conhecimento sobre a escola, o ensino e a

pesquisa. Assim, pensa-se nos alunos como agentes do conhecimento, potencialmente

transformadores da escola. O suporte teórico para as análises da voz do aluno tem como

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base os conceitos e teorias derivados dos estudos de Fine (2013) a respeito da pesquisa

participativa, Cook-Sather (2013) e Grion (2013) sobre o potencial da voz do aluno

como contribuição para promoção de mudanças na escola, Mattos (2011, 1992) sobre a

abordagem “bottom-up” (de baixo para cima) e (2003, 2012) sobre a reflexividade dos

participantes na pesquisa etnográfica.

Dentre as diversas etapas que envolvem o trabalho de pesquisa, em uma delas,

realizada por Mattos e Castro (2010a), intitulada “Fracasso Escolar: Gênero e Pobreza”

foram estudados 2.017 textos científicos nacionais sobre o fracasso escolar em escolas

públicas brasileiras. Este estudo bibliográfico chamou a atenção das autoras para o

grande número de textos que argumentavam que os seus dados expressavam as

percepções e o entendimento dos alunos sobre o fracasso escolar. Mediante interesse

destas pesquisadoras sobre como estes alunos foram ouvidos, selecionou-se 683 textos

que utilizavam entrevistas como instrumentos. Os objetivos foram: verificar a presença

ou não de alunos como informantes primários dos estudos realizados; compreender

como essas pesquisas situavam os alunos; e verificar se eles foram ouvidos ou não.

O resultado da pesquisa apontou que: dos 683 textos, somente dez (10) relatavam

ter incluído em suas entrevistas a participação de alunos como sujeitos da pesquisa,

assim como outros participantes: professores, pais e diretores de escola. Essas

pesquisas, embora variando o modelo de entrevistas, fizeram uso, prioritariamente, de

entrevistas que pudessem lançar luz sobre o fracasso escolar e a realidade de crianças e

jovens que o viviam. Entretanto, na descrição sobre esse fracasso priorizaram as falas

dos demais entrevistados e não dos alunos.

Entre os dez (10) textos que incluíram os alunos como entrevistados, apenas um

(1) utilizou entrevista aberta, isto é, que ofereciam liberdade para que os entrevistados

respondessem o que pensavam, independentemente das perguntas pré-concebidas pelo

entrevistador. Pode-se inferir sobre os 683 estudos analisados, que existe uma

dificuldade, entre os pesquisadores, em lidar “com a fala do outro”, sobre o seu objeto

de estudo. No caso dos estudos analisados, as vozes sobre o fracasso escolar. Ao mesmo

tempo em que parece existir uma necessidade, entre esses mesmos pesquisadores, de

controlarem “o que este outro fala”, a partir da tentativa de falar sobre este outro e,

assim, comprovar suas próprias hipóteses sobre o que é o fracasso escolar na visão dos

sujeitos de suas pesquisas, embora sem a participação dos mesmos nesses resultados.

Esses estudos revelam a necessidade de pesquisas que deem relevância à voz do

aluno enquanto agência humana no ato de dar sentido ao conhecimento acerca de sua

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realidade, especialmente na escola e na sala de aula. Revela, ainda, que essas pesquisas

educacionais, embora os tenha descrito como sujeitos primários, não os reconhece como

vozes legítimas e válidas, pois interpretam o que esses alunos falam sem, efetivamente,

ouvir a sua voz enquanto produtores do conhecimento.

A ausência das vozes de alunos nas pesquisas educacionais releva a importância

de se explorar mais detalhadamente o que eles tem a nos dizer sobre si próprios e sobre

as suas escolas.

Entendemos que numa Pedagogia vivenciada na condição pós-moderna (PINAR,

2003), os alunos têm acesso a uma variedade infinita de informações e que o papel de

professores, sabedores dos conteúdos validados culturalmente, é de auxiliá-los a

fazerem sentido dessas informações, transformando-as em conhecimento e atribuindo

significado à sua realidade com seus próprios conteúdos.

Reconhecendo a ausência da voz do aluno em pesquisas educacionais (MATTOS;

CASTRO, 2010b), pretende-se estudar o que dizem essas vozes, a partir do acervo de

pesquisa do banco de dados do Núcleo de Etnografia em Educação (NetEdu/UERJ).

Esses dados, envolvem coletas realizadas em escolas públicas com a participação e

colaboração de alunos da educação básica e de graduação (bolsistas de iniciação

científica da UERJ) considerados sujeitos primários e agentes ativos nessas pesquisas.

Portanto, as bases empíricas que compõem as vinhetas etnográficas exploradas no texto

advém de pesquisas desenvolvidas ao longo dos últimos 10 anos por este Núcleo.

Ouvindo a voz do aluno: contribuições teóricas

O Projeto Ciência Pública (Public Science Project), atualmente desenvolvido por

Michelle Fine, na Universidade da Cidade de Nova York (City University of New York

– CUNY), nos Estados Unidos da América (EUA), tem como uma das atividades, a

pesquisa que é realizada em aliança entre universidades, pesquisadores, estudantes de

graduação, ativistas, jovens em desvantagem social e membros de diversas

comunidades e instituições da cidade, procuradores públicos, advogados, entre outros.

O modelo de pesquisa participativa adotado, evidencia o engajamento político e

acadêmico entre os membros da equipe. Existe uma prioridade em ouvir, de forma

igualitária, as vozes de todos os participantes, em especial os marginalizados

socialmente. Fine explica que o grupo criou uma “zona de contexto” (TORRES, et. al.,

2008), o que significa que pessoas de diversos segmentos sócio-educacionais se reúnem

com os pesquisadores e, juntos, partilham conhecimentos e criam as questões da

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pesquisa, os instrumentos, as amostras, as análises e os produtos, tornando-se uma

equipe e constituindo o que ela considera “campo de pesquisa”. Nesse contexto, todos

os membros da equipe são treinados juntos sobre métodos de pesquisas, projetos e

epistemologia. Todas as diferentes vozes são consideradas e as diferentes opiniões são

colocadas no campo de compreensão e negociação. Para Fine (2013), a chave para que

isso aconteça é acreditar na “ação de pesquisa crítica participativa”, de forma que as

pessoas que viveram injustiças e que tem um entendimento íntimo sobre os caminhos

pelos quais a injustiça opera, possam ter liberdade para relatar esses eventos.

Fine (2013) explica que, nesse processo, o mais desafiador é convencer as pessoas

com Doutorado de que os estudantes marginalizados, também têm conhecimento. O

cultivo de diferentes opiniões, quase sempre, significa uma “queda de braço” sobre as

divergências. Segundo a pesquisadora, se existem diferentes tipos de jovens na sala,

normalmente, os “bons alunos” acham que devem ensinar aos “maus alunos”, quando,

na verdade, ela está interessada, justamente, nos pontos de vista dos “maus alunos”:

“eles sabem de coisas... eles são experientes... eles seguram um pedaço diferente da

história” (Idem).

Fine (2013) contrasta, ainda, o tipo de investigação conhecida como “pesquisa-

ação” com a “pesquisa participativa” que delineia em seus projetos. Quatro princípios

modelam esta última: a) as pessoas que viveram injustiças têm profundo, íntimo

conhecimento sobre as estruturas, histórias, efeitos e consequências da injustiça.

Portanto, dispõem de um ponto de vista importante para fazer sentido a respeito dela; b)

essas pessoas também têm o direito de fazer pesquisa; c) na universidade, os

pesquisadores têm a obrigação de projetar pesquisas que não contribuam para ampliar o

quadro de violência em que essas pessoas vivem, como a “violência epistemológica”

(TEO, 2010), isto é, empreender mais violência aos grupos sobre os quais se pesquisa;

d) a pesquisa deve ter ação aderente a ela, seja através de uma organização política ou

um movimento social que visem mudanças.

Para Fine (2013), esses são os elementos críticos da “pesquisa participativa”, que

é diferente da “pesquisa-ação”, pois a pesquisa participativa desafia especialistas a

tomarem posições mais democráticas em todo o processo de fazer pesquisa, sem que se

promova uma ação de pesquisa de forma unilateral, isto é, levar a um grupo vulnerável

aquilo que achamos ser bom para ele.

Fine comenta que para isso é preciso que pesquisadores se posicionem em favor

da comunidade, pois ela também “possui os dados”. Assim, em colaboração, podem-se

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pensar os tipos de produtos mais apropriados para essa comunidade. Ela exemplifica

que os seus projetos começam pela questão política sob o ponto de vista do

marginalizado, porque as pessoas das comunidades estão interessadas no que a

comunidade pensa sobre as questões que enfrentam no seu dia a dia (FINE, 2013).

O trabalho de Fine e sua equipe servem como subsídio e aporte teórico para este

trabalho na medida em que ela inclui como participantes primários da pesquisa pessoas

que, na maioria das vezes, são esquecidas, e dá importância a voz do excluído de

maneira a legitimar os resultados da pesquisa. Esta é uma postura crítica frente a

realidade do excluído.

Alison Cook-Sather também contribui teoricamente com este trabalho. Ela

explica a partir do projeto de pesquisa “Ensinando e aprendendo juntos” (Teaching and

Learning Together), desenvolvido na cidade da Filadélfia, EUA, que no “esforço de

posicionar os alunos como sujeitos ou protagonistas” das interpretações de suas próprias

vivências e experiências, a pesquisa qualitativa coloca em primeiro plano a voz e a

experiência do estudante (COOK-SATHER, 2013, s/p). Especificamente, a pesquisa

posiciona os alunos como informantes, redefine seu papel, "ouvindo-os", e muda o

quadro de referência, alterando assim a apresentação.

Cook-Sather (2002) explica que a voz dos alunos é orientadora dos resultados e

que os objetivos políticos e pedagógicos precisam preponderar na pesquisa. Para que

isso aconteça, esses objetivos devem: 1) desafiar o modelo tradicional de ensino

segundo o qual teóricos e pesquisadores geram conhecimentos e os passam para os

professores. Estes, por sua vez, são pressionados a implementá-los como um novo

conhecimento, posicionando os alunos como receptores passivos desta transferência; 2)

alterar a dinâmica de poder na relação professor/aluno: preparar professores

comprometidos a agirem sobre as perspectivas dos alunos; e, 3) promover a consciência

crítica no aluno sobre as suas experiências e oportunidades educacionais, de modo que

este adquira mais confiança em expressar o que precisa como aprendiz.

Este trabalho também se pauta nas pesquisas de Valentina Grion, que estuda

questões como – o que é uma boa escola a partir do ponto de vista do aluno? Suas

colocações partem do pressuposto de que “os alunos têm ideias muito positivas e

realistas a respeito de sua escola e de como ela pode ser melhorada” (GRION, 2013,

s/p). Ela explica que os alunos querem realmente mudar a escola e isso não pode ocorrer

sem que a participação democrática na escola seja levada mais a sério. Para a autora é

necessário empreender ações onde “os alunos possam atuar como copartícipes nos

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processos de mudança” (GRION, 2013, s/p), garantindo que espaços de discussão sejam

legítimos e valorizados e onde alunos e alunas possam falar. Faz-se necessário,

portanto, que “reajustemos os nossos ouvidos para que possamos ouvir o que eles dizem

e, assim, redirecionarmos nossas ações em resposta ao que ouvimos” (GRION, 2013,

s/p). Na esteira de Cook-Sather, Grion assenta que "os alunos têm uma perspectiva

única sobre o que acontece na escola e nas salas de aula” (COOK-SATHER 2009, p. 5)

e que, por isso, podem e devem ser considerados pela política nacional de avaliação

escolar.

A partir da explanação acima, torna-se evidente a relevância e necessidade de se

ouvir a voz do aluno na realização de pesquisas que buscam compreender a escola com

seus sujeitos e pretendem contribuir para sua transformação. Alves (2012) aponta a

necessidade de se iniciar o planejamento das ações pedagógicas e educacionais sob uma

perspectiva “bottom-up” (MATTOS, 1992) levando-se em consideração as demandas

que emanam da base (o aluno) para o topo (gestores educacionais). A partir deste

prisma, considera a viabilidade de uma aplicabilidade significativa das ações educativas,

tomando como ponto relevante na construção conjunta a voz de alunos e alunas em suas

compreensões sobre a escola em seus papéis social e educativo.

O que acontece quando a voz do aluno é ouvida na escola?

Nas pesquisas realizadas pelo NetEdu, lidou-se com temas que não são

usualmente motivadores para os professores, como: violência na/da escola; interações e

discriminação de gênero; percepção dos alunos sobre o fracasso escolar; a situação de

pobreza associada ao desempenho do aluno; dentre outros. Pesquisou-se, ainda, como

os alunos se percebem na realização de tarefas escolares, os processos de avaliação da

aprendizagem; como se dá a relação “professor-aluno” no contexto das classes de

programas compensatórios (como classes de repetentes, progressão, aceleração, dentre

outros).

Revisitando os dados do Núcleo supracitado, mostra-se aqui alguns eventos nos

quais alunos e alunas se revelam conhecedores de suas próprias ações, limites e

possiblidades no interior da escola e da sala de aula, constituindo-se atores críticos do

seu papel social como educandos (MATTOS; CASTRO, 2010b).

Em pesquisa realizada em uma escola localizada na Baixada Fluminense, no

Estado do Rio de Janeiro, em 2010, um dos procedimentos de coleta de dados utilizado

foi a realização de entrevistas feitas por alunos e alunas do 1º ano do Ensino Médio com

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seus colegas do 6º ano do Ensino Fundamental. Os pesquisadores treinaram os

estudantes como entrevistadores para que as entrevistas se desenvolvessem de modo

que permitisse a liberdade de resposta dos entrevistados.

Os temas propostos pelos pesquisadores foram: ordenações de gênero e situação

de pobreza como indicadores do fracasso escolar. Entretanto, por proposta dos alunos

do Ensino Médio, foi acrescentado o tema violência. De acordo com eles e com seus

professores, a escola é situada num bairro muito violento, envolvendo crimes, roubos e

guerra do tráfico de drogas que refletem de modo negativo no ambiente escolar, levando

os estudantes a situações de desespero e vulnerabilidade.

O resultado dessas entrevistas e das observações de campo, identificam instâncias

de reflexividade crítica dos entrevistadores e entrevistados sobre os temas perguntados.

Neste texto, serão apresentadas somente as análises do tema da violência, por este ter

sido de escolha dos alunos. Serão apresentados dois eventos, em forma de vinheta

etnográfica, contendo: sua contextualização, as inferências dos alunos; interpretação das

falas e seus fundamentos teóricos.

Evento 1: Aprendendo sobre violência

Renato – Alguém já tentou violência contra você?

Maria – Já, teve uma vez que eu quase fui estuprada. Só que eu falei com o meu

pai, o meu pai veio resolver.

Renato – Você já presenciou algum caso de violência em sua família?

Maria – Já, eu odeio o meu tio! Cara, assim! O meu sonho sempre foi matar ele

[...] eu odeio ele! Ele metia a porrada na minha mãe [...] eu sempre defendi a

minha mãe[...] eu já puxei a faca pra ele, quase que eu meti a faca nele!

Renato – O que você acha desses atos de violência?

Maria – É muita coisa!!! O meu pai era assim, o meu pai começou com faca,

enfiava a faca nos outros, depois o meu pai começou a levar armas pra casa. Aí

um dia eu cheguei pro meu pai e pedi uma arma pra ele de presente de

aniversário...

Maria, menina de 9 anos com a estatura de 7 devido a uma doença rara que limita

seu crescimento físico é consciente da violência em que vive e visualiza como saída a

própria violência. Renato, seu colega entrevistador, alarmado com a forma como ela

falou do “quase estupro”, mudou imediatamente de assunto após a resposta de Maria.

Ele declarou ter ficado “sem palavras” diante do sofrimento da menina, embora já

soubesse do caso, pois Maria havia sido afastada dos pais e vivia com a avó por ter sido

vítima de violência doméstica.

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Renato declarou que não fazia ideia de que a pesquisa levasse os alunos a falarem

tão abertamente sobre as suas vidas, e que ele se sentiu útil ao “ouvir” os colegas.

Lembrou que na comunidade não existe preocupação das autoridades em oferecer

suporte social e psicológico para as vítimas de violência. Junto à equipe de pesquisa, ele

argumentou que a violência vivida pelos alunos desta escola criou um círculo vicioso

que impede as pessoas de viverem em liberdade e que a escola é um lugar onde se

sentem livres, embora esta reproduza, na forma de agir, a lógica de violência das

famílias e da sociedade que a circunda. O sentimento de liberdade relatado por Renato

reflete o potencial existente nas relações escolares, um sentimento de pertencimento, de

compartilhamento de valores que podem auxiliá-los a reverter o quadro de violência em

que vivem. Nesse contexto, a escola se assemelha a um laboratório onde os alunos

experimentam a violência brincando e desafiando uns aos outros.

Este evento, da forma como foi significado pelo próprio aluno-pesquisador,

denota a importância de se ouvir a voz do aluno e como este sente a necessidade de

expor a sua realidade numa solicitação e consequente permissão de ser ouvido e visto. A

maneira como a aluna entrevistada falou sobre a sua realidade não seria assim colocada

se não lhe houvesse sido dada esta possibilidade, mediante a realização da entrevista. O

fato de uma aluna ser ouvida, em ambiente de pesquisa, por outro aluno, também aponta

um referencial importante para compreendermos esses atores enquanto potenciais

agências de transformação da escola e da sua própria realidade: a entrevistada, por ter

tido a oportunidade de compartilhar algo que lhe era extremamente significativo e

marcante; o entrevistador, por se deparar com as possibilidades que a pesquisa traz a

partir do momento em que ouve o outro.

Evento 2: Escola como laboratório da violência

Renato –Você já viu alguma briga na escola?

Pedro – Já(risos).

Renato – Por que esse sorriso, aí (risos)?

Pedro – Pô, lá na sala tem um monte, cara.

Renato – Por que motivo?

Pedro – Pô, porque começa assim, eles brincam depois levam tudo a sério.

Pesquisadora – Mas tem umas brincadeiras assim na sala de aula?

Alunas entrevistadas [em grupo] – TEM!

Pesquisadora – Mas como é ? [pergunta ao grupo de alunas]

Carol – Eles ficam brincando de soquinho... essas coisas. Mas também quando

um se machuca o outro já quer machucar também, aí começa a briga.

Pedro – A mesma coisa, tudo a mesma coisa... só na hora da saída que não... na

hora da saída que tem alguns que fica... tipo assim, calmo! É engraçado que eles

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ficam levados só na hora na escola... Parece que eles sofrem uma transformação

quando pisam do portão para fora. Lá dentro é diferente! Parece que do portão

pra fora eles se transformam, é um negócio esquisito.

Como vemos na asserção acima, os alunos usam e escola para experimentar

formas de se libertar da violência que vivenciam fora dela, transformando o ambiente

escolar em um caos, onde eles próprios, os professores e o pessoal da escola – gestores,

professores e funcionários, não compreendem o que acontece. As brincadeiras são

transformadas em lutas corporais e modificam o clima escolar, limitando as

possibilidades de aprendizagem e de convivência pacífica. Alunos e escola, como um

todo, se opõem em seus propósitos básicos. A escola, além de ensinar os conteúdos

acadêmicos, ensina também a viver, a se defenderem da vida lá fora. O entendimento

que os alunos têm sobre o papel da escola e dos professores também se altera, assim

como as práticas relacionadas à violência da/na escola. Ao serem perguntados sobre

como os professores reagem às brincadeiras que envolvem violência na escola, os

alunos explicam que a violência física é a única que pode ser considerada violência pela

escola, as outras não contam.

A visão sobre este tipo de violência a partir da perspectiva do próprio aluno ganha

outras cores e versões se vistas pela escola sob este aspecto. Se o olhar e o ouvir da

pesquisa não estiverem atentos ao que a voz do aluno traz, significando os fatos

ocorridos no cotidiano escolar, a violência entre os alunos não passa de uma concepção

estratificada de “bagunça”, “desrespeito” e “atos de marginalização”. A apresentação da

concepção trazida pelos próprios alunos e a interpretação dos dados pelo processo da

pesquisa que tem como prerrogativa ouvir a voz destes atores, permite à escola uma

visão diferenciada, possibilitando ações de transformação na forma de lidar com os

aspectos de violência no cotidiano da sala de aula e do próprio contexto educacional

como um todo.

Considerações finais

Quanto mais se realizam pesquisas que têm como pressuposto teórico-

metodológico ouvir a voz dos alunos e alunas, mais se tem consciência de que é

necessário ouvi-los ainda mais. Sucessivamente a esta consciência, urge a necessidade

de se compreender a realidade da própria escola a partir da voz daqueles que são a base

da pirâmide educacional, para quem, para onde e de onde devem ser impulsionados o

planejamento e as ações educacionais a fim de se promover igualdade e justiça social.

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Michelle Fine (2013) descreve em seu trabalho que as pessoas marginalizadas tem

sido tratadas de modo desatento às suas demandas pelas pesquisas educacionais que,

com isso, estas podem estar promovendo a “violência epistemológica” além da

violência constante que esses sujeitos estão inseridos em seu dia a dia. Isto é, os

pesquisadores podem estar reproduzindo as relações de violência em suas próprias

relações de trabalho. Uma das formas de evitar que isso aconteça é delinear pesquisas

que sejam originárias daqueles que estão à margem da sociedade, incluindo questões

que permeiem diferentes posições, de pessoas de diferentes segmentos sócio-

educacionais, e não somente originárias de demandas acadêmicas. Além disso, faz-se

necessário que as pessoas pesquisadas sejam incluídas em todo o processo da pesquisa,

desde do projeto até o produto fina que, dessa forma, refletirá o pensamento de todos e

não apenas do acadêmico responsável.

Cook-Sater; Grion (2013), em adição à perspectiva de Fine (2013), acreditam que

ouvir o aluno pode impulsionar mudanças na escola. A abordagem das autoras é

desafiadora, mas faz sentido, quando associamos as experiências de Alves (2012) em

relação à reflexividade do aluno pesquisador sobre a sua própria realidade e a

abordagem “bottom-up” proposta por Mattos (1992). Afirmamos, portanto, que,

delineando pesquisas que incluam os sujeitos como participantes ativos do processo,

incentivando a reflexividade dos mesmos e dos próprios pesquisadores no ato de fazer

pesquisa, pode-se constituir uma chave para informar mudanças na escola.

As vinhetas etnográficas apresentadas sobre a violência, demonstram que os

alunos/pesquisadores e alunos/pesquisados são capazes de pensar sobre as situações

vividas no cotidiano da escola de uma perspectiva inédita. Suas vozes expressam

preocupação com eles mesmos, com os outros alunos, com os professores, com as

práticas de sala de aula, com as interações entre eles e o pessoal da escola, enfim, com a

escola como um todo. Nuances dessas expressões, na maioria das vezes, não são

percebidas pelos pesquisadores e pelo pessoal da escola. Nos pesquisadores provoca

uma visão equivocada desses processos interativos e dessas atividades. No pessoal da

escola, provoca a percepção de que os alunos são bagunceiros e não querem fazer as

tarefas propostas e ainda que sentem prazer em perturbar o ambiente escolar.

Entretanto, em recente reunião entre professores, gestores e profissionais da

Secretaria de Educação onde ocorreram muitas das pesquisas realizadas pelo NetEdu, os

professores se mobilizaram enfrentado os representantes da Secretaria no sentido de

promoverem mudanças no currículo e na avaliação, predominante normatizada e de

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caráter nacional. A mobilização foi no sentido de que as mudanças incluam as vozes dos

alunos e dos professores.

Os caminhos a trilhar a partir dessa perspectiva e preocupações são inerentes a

confrontações e delimitações e partem da própria dialética do campo de pesquisa e da

educação. No entanto, as possibilidades a serem criadas a partir da voz dos alunos

permite compreender que é possível articular mecanismos de transformação da

realidade educacional atual, onde o ensinar não se restrinja a uma mera transferência de

conhecimentos, mas que seja lugar de vida, de produção de conhecimento e de

vicissitudes que propulsionem novas formas de interpretar, ver e ouvir a realidade a

partir do outro. Em particular, invertendo-se as relações hierárquicas de poder e

flexibilizando a assimetria existentes entre elas.

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