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Os Sofrimentos e o Caos deste Final de Século (Suas verdadeiras causas e a restauração, possível, da justiça e da paz) Jorge Boaventura A presente obra, que damos a público neste momento, é de autoria de um brasileiro cuja trajetória tem como marcas evidentes, a coerência e a coragem das idéias que defende, com a nobreza do desinteresse e da conseqüente independência com que o faz. Colaborador da grande imprensa do país, em veículos dos quais são exemplos a “Folha de São Paulo” e o “Estado de São Paulo”. Tem publicado numerosos livros e ensaios, marcados pela profundidade de um pensamento que, de há muito, ultrapassou as nossas fronteiras, o que explica as numerosas condecorações e outras dignidades que lhe têm sido conferidas. A despeito da oposição de forças a serviço da degradação e da ruína e que têm, por todas as maneiras, tentado anular-lhe a voz, tem recebido o pensador e publicista Jorge Boaventura, elogios de vultos como, entre outros, Gilberto Freyre, o imortal autor de “Casa Grande e Senzala”.

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Page 1: Os Sofrimentos e o Caos deste Final de Século · mas que pode ser necessário, quando a alternativa seja escamotear do conhecimento dos que nos honram com a sua leitura, o que nos

Os Sofrimentose o

Caos deste Final de Século

(Suas verdadeiras causas e a restauração,possível, da justiça e da paz)

Jorge Boaventura

A presente obra, que damos a público neste momento, é de autoria de

um brasileiro cuja trajetória tem como marcas evidentes, a coerência e a

coragem das idéias que defende, com a nobreza do desinteresse e da

conseqüente independência com que o faz. Colaborador da grande imprensa

do país, em veículos dos quais são exemplos a “Folha de São Paulo” e o

“Estado de São Paulo”. Tem publicado numerosos livros e ensaios,

marcados pela profundidade de um pensamento que, de há muito,

ultrapassou as nossas fronteiras, o que explica as numerosas condecorações

e outras dignidades que lhe têm sido conferidas. A despeito da oposição de

forças a serviço da degradação e da ruína e que têm, por todas as maneiras,

tentado anular-lhe a voz, tem recebido o pensador e publicista Jorge

Boaventura, elogios de vultos como, entre outros, Gilberto Freyre, o imortal

autor de “Casa Grande e Senzala”.

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PREFÁCIO

O Professor Jorge Boaventura, homem de grande cultura e visão,

procurou (como não poderia deixar de ser), no seu brilhantismo, dar uma

explicação clara e concisa dos acontecimentos atuais concernentes à

evolução dos tempos. E tenta faze-lo por intermédio de um bosquejo histórico

em que ficam evidentes, segundo sua visão, as raízes profundas de fatos só

divulgados de maneira superficial. Em conseqüência, expõe ao leitor alguns

aspectos das mais avançadas fronteiras do pensamento científico que, longe

de afastarem a hipótese da existência de um Deus criador, torna-a quase de

aceitação imperativa. A tal ponto que, autores por ele citados, do mais alto

gabarito nos domínios da filosofia e da ciência, concordam na necessidade de

uma metalógica capaz de responder ao meta-realismo que nasce na nova

visão científica do universo. Numa terceira parte de sua exposição, faz um

apanhado resumido e isento de algumas das mais importantes correntes

religiosas dos nossos dias. Finalmente expõe suas idéias acerca do caminho

a ser seguido para a superação dos dias incompreensivelmente trágicos

vividos pela humanidade neste final de século. Desejo ressaltar ainda que a

obra cujo prefácio me pediu que fizesse retrata coragem e profundidade de

que não temos conhecimento tenha encontrado paralelo em obra do mesmo

gênero publicada em nosso país. Tais que me fizeram lembrar palavras de

meu avô, que transcrevo em seguida: “Consagrei a minha existência, desde

os primeiros passos a certo número de verdades e deveres, e tenho sido fiel a

esses deveres e a essas verdades”.

J. V. RUY-BARBOSA

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AGRADECIMENTOS

Agradecemos a todos quantos, direta ou indiretamente, contribuíram

para que se tornasse clara em nosso espírito, a visão das causas fundamentais

dos sofrimentos que vêm, desde há muito, atormentando a humanidade, bem

como do caos que se tem acentuado neste final de século. Visão que

oferecemos à consideração dos leitores, a quem caberá julgar da validade, ou

não, das idéias propostas à sua análise e avaliação, ao mesmo tempo em que

lhes pedimos, encarecidamente, que não as façam sem ler, armando-se de

paciência, todas as partes de que se compõe este trabalho, que exprime um

conjunto articulado e interdependente delas, mesmo quando, em certos

momentos, possa não parece-lo.

Agradecemos, ainda a coragem da Ed. Presença, nas pessoas do Dr.

Gregório Dobrinescu e de sua filha Margareth, que se dispuseram a dá-lo a

lume e a quem, bem como aos leitores, pedimos desculpas por falhas de

revisão que não nos foi possível realizar adequadamente, dadas as

circunstâncias especialíssimas do período em que escrevemos este livro.

O Autor

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ESCLARECIMENTOS INDISPENSÁVEIS

No momento em que iniciamos este novo esforço, na longa sucessão dos que nos

temos disposto a levar a cabo ao curso de décadas, nossa intenção, nosso propósito

dominante, é oferecer à atenção e à análise dos que vierem a ler as páginas que se seguirão,

pontos capitais da nossa maneira de ver as circunstâncias e dados componentes dos dias

sombrios e crescentemente atormentados pelos quais a humanidade atravessa neste final de

século. Não para tentar sugerir que a nossa visão é, pelo simples fato de acreditarmos em

seu realismo, em sua verdade, necessariamente verdadeira e realista. O julgamento não nos

pertence, mas aos leitores destas páginas, que não escrevemos motivados pela esperança de

recompensa pessoal, como quer que ela possa ser imaginada ou concebida. Fazemo-lo por

compulsão do íntimo da nossa consciência, a cuja voz não é possível fugir, sem o

sentimento da omissão e da recusa a Algo em que acreditamos e diante de Quem não

podemos recusar-nos ou omitir-nos. Trata, se, assim, de serviço. De pesado serviço, tanto

mais quanto pretendemos registrar, sem rebuços, o que nos parece verdadeiro ou, no

mínimo, digno de ser conhecido pela maioria, à qual muita coisa tem sido sonegada, de

modo a impedir que sejam expostas as idéias básicas sobre as quais, acreditamos, poderá

vir a realizar-se a única, verdadeira e definitiva Revolução, aquela capaz de trazer aos

homens a paz, a harmonia e a felicidade com que todos sonhamos. Em esforço anterior,

intitulado “O Mito da Caverna”, utilizamos o que, para outros fins, imaginara Platão, ao

descrever os homens confinados em uma caverna, mantidos de costas para a entrada da

mesma, e iluminados pelas chamas de uma fogueira, não tendo, pois, acesso direto ao

mundo exterior, do qual só lhes era dado ver as sombras deformadas e projetadas sobre o

fundo do lugar onde estavam. Usando a imagem acima descrita, acrescentamos que, nos

dias que correm, vive a maioria dos nossos semelhantes encerrada também em uma espécie

de prisão, cujas paredes são constituídas, não de pedras, mas de preconceitos e idéias tantas

vezes falsas, porém sustentados por poderosos interesses, geralmente inconfessáveis. Não é

nosso propósito magoar, ferir ou ofender quem quer que seja. Ou competir, ou disputar o

que quer que seja, no sentido menor que o egoísmo tantas vezes sugere, ainda que,

freqüentemente, disfarçado em pretextos que sirvam ao mascaramento da sua face,

denunciadoramente desagradável. Prepare-se, pois, o leitor para um relato que, em muitos

aspectos, haverá de parecer-lhe surpreendente e, em alguns casos, verdadeiramente

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chocante. E creia que, em qualquer das hipóteses, estaremos procurando transmitir-lhe

aquilo que julgamos de nosso dever fazê-lo, para que seja julgado pela sua inteligência e

pela voz íntima da sua consciência. Até para responder, além do apelo interior a que

fizemos referência no início deste ESCLARECIMENTO, também aos numerosos que

temos recebido, de semelhantes nossos que não conhecíamos pessoalmente, e que, de

variadas maneiras, nos interpelam, cobrando o reaparecimento da mensagem que

pressentiam em nossa voz e que, segundo eles, lhes foi, subitamente, sonegada. No que

está ao nosso alcance, aqui vai a resposta: primeiro, segundo a nossa consciência, a Quem

nos criou e a Quem todos devemos tudo, inclusive a vida; segundo aos que, mais

claramente, ou menos claramente do que nós, já sentiram, ou irão sentir, o irrecusável

chamado de Sua voz. O Autor

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I PARTE

A DEGRADAÇÃO QUE ESTÁ EM MARCHA

Aparências epidérmicas e motivações profundas

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1 PARTE

A DEGRADAÇÃO QUE ESTÁ EM MARCHA

Aparências epidérmicas e motivações profundas

I.1 - A balbúrdia que torna possíveis perigosas manipulações

Reiterando o propósito que acaba de ser registrado no “Esclarecimento

Indispensável” com que iniciamos mais esta tentativa visando a divulgação de idéias em

cuja validade acreditamos, mas sobre as quais parece-nos existir um esforço enorme no

sentido de impedir cheguem ao conhecimento geral, cabe aos que vierem a ler este livro o

julgamento sobre elas e sobre a utilidade de divulgá-las, segundo os apelos que temos

recebido. De fato, não nos supomos proprietários de verdades irrecusáveis, nem inclinados

a desrespeitar a inteligência e a consciência alheias, como tantos, com surpreendente

desenvoltura, dispõem-se a fazê-lo, em um exclusivismo que usando linguagem mais

contundente do que a que preferimos utilizar, o ensaísta e poeta inglês Pope descreveu

dizendo que, “somente os tolos conseguem pisar firmemente, em terrenos onde os anjos, às

vezes, mal ousam tocar com as pontas de suas asas”. De nossa parte, preferimos imaginar

que o referido poeta teria sido mais feliz se tivesse dito, em lugar de tolos, imprudentes.

Sobretudo tomando-se em conta o ritmo frenético da vida que todos levamos, ritmo que

dificulta, quando não impede, os momentos de reflexão, indispensáveis à percepção do

significado, do valor do que, em uma espécie de sarabanda alucinatória, nos fere os

sentidos, partindo dos veículos de mídia, dos letreiros e cartazes, tantas vezes, em sua

concepção, como que derivados daquela sarabanda que se derrama continuamente, sem

limites e sem peias reais. O que caba de ser apontado talvez seja a causa de haver

afirmado Michael Novak, em sua obra muito promovida e bastante recente, “O espírito do

Capitalismo”, que uma das coisas mais preocupantes dos dias atuais era, para ele a

prevalência das idéias sobre os fatos, mesmo quando estes as desmentem de maneira

frontal.

Não sejamos, portanto, ferinos nem presunçosos; mas não sejamos, também,

covardes, deixando de assinalar o que nos pareça deva ser assinalado, mesmo que isso

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possa causar controvérsia ou, até, escândalo. Escândalo com que não nos comprazemos,

mas que pode ser necessário, quando a alternativa seja escamotear do conhecimento dos

que nos honram com a sua leitura, o que nos pareça útil submeter à consideração da sua

inteligência e da sua consciência. A avaliação realista das nossas limitações, e o respeito

aos nossos semelhantes não significam, pois, covardia e, esperamos, no correr das páginas

que irão seguir-se, ao longo da caminhada que, neste momento, estamos apenas iniciando,

surgirão fatos e interpretações quase sempre mantidos sob pesado véu de silêncio, que

supomos suficientes para comprovar a veracidade do que acaba de ser afirmado.

É bastante possível que muitos dos que estejam lendo estas linhas tenham

dificuldade em aceitá-las como realistas, em um clima em que, à exaustão, e bilhões de

vezes, repete-se que é sagrada a liberdade de expressão. E poucos conseguirão dar-se conta

da diferença existente entre algo que se afirma e reafirma como conceito, e a sua realização

prática. A inexistência da diferença apontada suporia, como condição, que o que temos

designado como “centros de irradiação de prestígio cultural” como, entre tantos outros que

procuraremos analisar em outra parte desta obra, são os veículos da mídia, fossem, todos,

absolutamente isentos e totalmente comprometidos com a fidelidade, na ordem prática, ao

que, como conceito, quase todos louvam e buscam promover. Acha o leitor que, realmente,

é o que acontece? E os interesses de ordem econômico-financeira, serão ficções? E as

pressões decorrentes de opções políticas, não existem? E, caso existam, quais serão as mais

tenazes e mais persistentes na ação: as de cunho ideológico ou as que não o têm e, em

alguns casos, orgulham-se de não tê-lo? Das duas, qual será, na prática, a mais eficaz? Será

mera coincidência, ou simples acaso que, com raríssimas exceções, no campo cultural, os

nomes, de longe, mais promovidos e, por isso mesmo, famosos, são os que integram ou,

pelo menos, de algum modo são úteis a determinadas tendências ideológicas? Ou será

razoável supor que existem causas genéticas que compatibilizem, inexoravelmente, o

talento com as teses fundamentais de determinadas idéias, nada obstante o seu fracasso

objetivo o que, nem por isso impede os seus simpatizantes de continuarem a merecer os

rótulos de “progressistas”, ou “avançados”, ou “modernos”?

Vamos repetir uma vez mais: nós temos consciência das nossas limitações; e, com

toda a sinceridade, podemos afirmar que o que estamos assinalando, ainda de maneira

perfunctória, que procuraremos aprofundar bem mais adiante, fazemo-lo em homenagem

aos que venham a ler-nos e para honrar o compromisso assumido, de responder a apelos

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dos que nos têm apoiado em nossa trajetória e ao imperativo da nossa consciência, que nos

aponta a necessidade de cumprir o que se nos afigura de nosso dever. Sem mágoa alguma,

disponíveis para servir. Não nos sentimos credores diante do dom da vida, mas devedores,

Àquele que no-lo concedeu. Portanto, apenas como exemplo concreto, que julgamos possa

ser útil ao leitor, por acaso surpreendido diante do que registram algumas das linhas acima,

citaremos o cartão que nos enviou o prefaciador de obra nossa, que redigíramos há quase

vinte anos, muito tempo, portanto, antes da “perestroika”, da “glasnost” e da célebre queda

do “Muro de Berlim”. A obra, cuja l.º edição surgiu em S. Paulo, denominava-se “Ocidente

Traído”, lançada pela editora “Impres”. O referido prefaciador, à diferença da nossa

insignificância, foi o grande e saudoso Gilberto Freyre, autor da mais importante e

conhecida obra de cunho sociológico jamais escrita por um patrício nosso, “Casa Grande e

Senzala”, e o cartão, redigido e assinado de próprio punho, com que nos remeteu o

prefácio, e que guardamos até hoje, com carinho, era do seguinte teor: “Caro Jorge

Boaventura, colega ilustre1 vai o prefácio. O seu livro vai ser um acontecimento - mesmo

contando com silêncios atualmente tão da maior parte da nossa imprensa e da nossa

"crítica”.2

Um abraço de renovada admiração”

Gilberto Freyre

1. Designação devida, seguramente, à generosidade de Mestre Gilberto Freyre.2. Grifo do Autor

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Na obra em questão, entre outras coisas, havíamos realizado uma crítica sistematizada de

todos os aspectos fundamentais da cosmovisão do Materialismo Dialético, promovido, a

nosso ver artificialmente, entre nós, em único modo não alienado, de interpretar o

universo, a vida, o ser humano, a sociedade...

Como pode verificar o leitor, já àquela altura, registrava o grande mestre a

existência de silêncios, que grafou entre aspas, e, para usar suas próprias palavras, “tão da

maior parte da nossa imprensa e da nossa “crítica”, palavra grafada igualmente entre aspas.

Isso, há cerca de vinte anos. Portanto, supomos, de fato existem concepções e idéias

“malditas”, cujo trânsito deve ser bloqueado, bem como em conseqüência boicotados

devem ser os que ousem defendê-las e tentar difundi-las - o que nos parece mais simples e

fácil de aceitar, do que as hipotéticas razões genéticas a que deveríamos recorrer, no caso

de considerar inverosímil a idéia de que existe, usando vocábulo mais simples, cujo

emprego tentam fulminar como correspondendo a algo fantasioso e que é o famoso

“patrulhamento”. Algo assemelhável, por seus efeitos, à censura oficial que, não somente

eles, mas com especial veemência, os que chamaríamos de “patrulhadores”, condenam. É

que gostam de passar, por motivos facilmente compreensíveis, por democratas e liberais

sinceros e, mais do que isso, pelos representantes das alas mais “avançadas” e

“progressistas”, do universo político.

Voltando, porém, às expressões do generoso prefaciador do nosso “Ocidente

Traído”, chamou-lhe certamente a atenção o feitio minudente, ordenado e, supomos, difícil

de contestar, do que foi exposto nas páginas daquele livro, acerca de falhas - ao menos

segundo o nosso entendimento - clamorosamente patentes nos próprios alicerces da

elaborada tentativa de, pela primeira vez na História, organizar a sociedade com base na

negativa necessária e impositiva3 da existência de Deus ou de algo além, ou fora da

matéria. Sobre aquelas falhas, sobre o caráter materialista da ideologia marxista, em

qualquer de suas nuanças e variedades - eis que o materialismo é a pedra angular de toda a

cosmovisão a que nos estamos referindo, não um aspecto aleatório ou ancilar da mesma -

terá se baseado o mestre para afirmar que a obra, apesar das dificuldades por ele mesmo

apontadas, seria um acontecimento.

Acontecimento que, entretanto, não foi. E não foi, a despeito de - observe o leitor -

cerca de vinte anos atrás, as páginas do acontecimento que não foi, registrarem,3. Grifos do Autor

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textualmente, o seguinte: “Também não desejamos falar da social-democracia européia, em

especial a alemã, que desaguando de certo modo na República de Weimar, acabou por

permitir a ascensão ao poder do "Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”,

nome por extenso da organização política com que, pela via do sufrágio universal direto,

alcançou Hitler o referido poder, obtendo-o na própria e exclusiva fonte que, segundo a

melhor doutrina do liberalismo, ele deve provir.

“Igualmente não falaremos da I Internacional, ou da III, mas buscaremos, isto sim,

focalizar por alguns momentos a atenção sobre a II Internacional dos nossos dias, a

congregar os “socialismos democráticos” europeus, do tipo dos defendidos por Olof Palm,

Mário Soares, Willy Brandt, Golda Meir e outros.4

“E a razão da preferência está em que, segundo entendemos, os dias do socialismo

radical da União Soviética e dos seus parceiros ideológicos estão contados”... Seguem-se,

na página da obra que estamos citando, algumas razões para o que, no momento em que a

redigíramos, nos parecera uma avaliação mas que hoje, transcorridos cerca de vinte anos,

até a nós nos surpreende, pela dimensão do que, àquele tempo incrivelmente “retrógrado” e

“ alienado” - segundo os que continuam, “malgré tout”, sendo promovidos como

“progressistas” e “avançados” - soa agora como profético, ao menos para os que, não tendo

tomado conhecimento do acontecimento que não foi, possivelmente não poderão julgar,

com propriedade, quem era, afinal “alienado”: nós ou os “progressistas” para quem não

existem manipulação, filtragem nem patrulhamento...

Relendo o que acabamos de escrever, sentimos a necessidade de pedir desculpas a

quem, porventura, se sinta magoado. E esperamos ser compreendidos porque o relato que

estamos fazendo é factual e motivado pelo desejo de alertar os que venham a ler estas

linhas, para a realidade de manipulações que, possivelmente, a maioria ignora existirem.

Nunca para negar o direito de pensar como pareça melhor a quem quer que seja, ou para

tisnar a intenção com que, por vezes, lutam tantos que não pensam como nós,

denodadamente, na defesa daquilo em que acreditam. O ritmo alucinatório das notícias e

das informações, nem sempre verazes e isentas, face ao trepidar frenético das ocupações de

que depende a sobrevivência da maioria esmagadora das pessoas, obviamente, queiramos

ou não, representam conjugação que recomenda prudência por parte de quantos não se

desejem transformar em massas de manobra dos que, por detrás do contexto complexo e4. Em nosso país, os Partidos que correspondem à II Internacional são: o PSDB e o PDT

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confuso a que acabamos de referir-nos, introduzam distorções difíceis de perceber, mas

capazes de influenciar juízos e condutas. Tudo isso, porém, representa apenas uma espécie

de registro de aparências tão ostensivas que, acreditamos, já não existe quem não as

perceba. As divergências, assim, não se referem à presença, ou não, da balbúrdia, mas à

maneira, ou às maneiras, de interpretá-la.

Alguns, por exemplo, tendem a atribuí-la ao que designam como moderno, e

aceitam-na, sem perceberem que o fazem pela sinonímia falsa que se estabelece entre os

vocábulos moderno, ou novo, e o vocábulo bom. De fato, nem tudo que se supõe moderno,

ou novo, representa progresso. Por exemplo, quando as nossas jovens são levadas à

exibição, a cada dia maior, dos próprios corpos, chegando ao “top less” e ao chamado “fio

dental”, com que se expõem por longas horas ao sol causticante das nossas latitudes,

estarão, como diziam os pretextos inicialmente empregados para induzi-las a tanto, sendo

inovadoras e modernas, além de mais sábias na defesa da própria saúde? O que nos diz a

Ciência, de fato, sobre os “benefícios” da exposição prolongada da pele aos raios solares?

Quanto à inovação e ao modernismo, serão tão “avançadas” e “modernas” as nossas irmãs

silvícolas que desde tempos imemoriais andam praticamente desnudas usando, em muitos

casos, um “fio dental”, quando se banham nos rios, ainda que por motivos bem diferentes,

e feito com material, como cipós disponíveis, gratuitamente, em seu “habitat”? E, ao que

informam os que conhecem os hábitos de nossos indígenas, não se deleitam com expor-se

por horas a fio, aos raios solares que poderiam prejudicar-lhes a saúde, a despeito da

proteção que possuem, representada pelo tom azeitonado das suas peles. Nem tudo,

portanto, rotulado como novo, ou moderno, é de fato digno do rótulo; e quando o seja,

como justificar a sinonímia entre novo e bom? O que, de fato, seja novo - e acabamos de

ver que nem tudo que recebe tal rótulo faz jus a ele - deve primeiro ser testado para que se

verifique se, de fato, é bom e, em tal sentido, representa progresso. Isso é o que recomenda

a prudência, filha do bom senso, justificado pela razão. A açodada aceitação de tudo

quanto é promovido, no bojo confuso de uma massa de estímulos e informações,

interferidas por propaganda tantas vezes não explícita, e cada vez mais levada a cabo por

intermédio de técnicas de sofisticação e eficácia crescentes, não representa

necessariamente tendência a avanço, progresso, modernismo mas, por duro que seja dize-lo

e, para muitos, aceitá-lo, não é mais do que imprudência.

E isso para não sermos tão contundentes quanto o foi o poeta Pope, ao qualificar os

que pisam firmemente em terrenos tão delicados e perigosos que, neles, os anjos mal

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ousam tocar com as pontas das suas asas. E merece ser registrado que a maioria, sentindo a

impossibilidade de situar-se, pela via da reflexão, diante dos fatos, das imagens e das

informações que lhe contundem a sensibilidade, entrega-se, à tentação representada pelo

comodismo, ou pelo que muitos designam como “lei do menor esforço”, e busca “adaptar-

se” a coisas que, bem no fundo, as consciências dos que a integram dizem ser perigosas. E

isso sob a alegação, tantas vezes repetida e tão conhecida, de que “hoje em dia é assim”.

Claro que o leitor, inteligente, percebe que a mesma representa, tão somente, uma

constatação; nunca uma justificativa. “Hoje em dia é assim”, mas poderia, quem sabe, ser

de outra maneira.

Não devemos perder de vista que, até aqui, estamos buscando ser fiéis ao propósito

de, principalmente por meio de exemplos, defender a realidade da existência, em nossa

vida cotidiana, de uma balbúrdia, para a maioria, praticamente inextricável, de notícias,

imagens, informações, cujo fantástico lampejar torna difícil a compreensão de muitos dos

seus significados, sobretudo pelo ritmo frenético, já assinalado, das atividades que

geralmente somos levados a desempenhar, na busca da nossa e da sobrevivência das nossas

famílias.

Não bastasse a modalidade de equívocos de que procuramos dar, ou sugerir, alguns

exemplos, e outros, ainda mais dramáticos, podem ser apresentados. São os expressos pela

violência crescente que, a cada dia que passa, nos vai enclausurando em nossas próprias

casas, enquanto o chamado “crime organizado” aumenta o seu poder nos quadrantes do

mundo e, o que a alguns terá passado despercebido até agora, sobretudo no chamado 1o

Mundo, para o qual, dando apenas um parâmetro em favor do que acaba de ser afirmado,

dirigem-se todas as rotas do tráfico maldito das drogas, só ele, segundo estimativas

geralmente dadas como idôneas, movimentando qualquer coisa em torno de 700 bilhões de

dólares por ano! No 3o Mundo, sobretudo na África, na Ásia, no Oriente Médio, na

América Latina, e em algumas outras regiões de pobreza, amontoam-se populações de

miseráveis e famintos, outras expressões de inominável violência, diante da opulência que,

em lugar de dispor-se, enérgica e desinteressadamente, a ajudar, de maneira efetiva e

permanente, na redução e eliminação dessas nódoas vergonhosas de brutal injustiça, limita-

se geralmente, a sugerir a redução da natalidade, ignorando que, de fato, o planeta em que

vivemos, “tem recursos para todos, embora possam parecer insuficientes para a desmedida

ganância de alguns”.

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Em nosso próprio país, p. ex., de extensão continental, por que, cada vez mais

cresce o número de pobres, de desamparados, de desabrigados e, cada vez mais

claramente, apresentam-se as prioridades indecorosamente indicativas da falta de

sensibilidade e de amor aos nossos semelhantes, de cambulhada com a incompetência, com

a demagogia, com a ausência total, ou quase total, de escrúpulos, quando se trata de

conquista do poder, que a tantos fascina e a muitos parece enlouquecer? Sem querer

privilegiar uma. componente mística da observação do quadro deplorável que estamos, em

pinceladas resumidas e toscas, tentando oferecer à reflexão dos que venham a honrar-nos

com a leitura desta obra, não parece descabida menção à incidência crescente de

pronunciamentos de líderes religiosos de diferentes tendências, convergindo na visão de

uma espécie de rápida aproximação do que seria o final dos tempos ou, pelo menos, o final

de um ciclo da existência dos homens sobre a Terra.

Vejamos, como exemplos a serem avaliados pela profundidade da consciência do

leitor, o que nos diz o “ apóstolo dos gentios”, em sua 2a carta a Timóteo (a citação que é

feita neste ponto, deve-se ao fato de ser a sociedade brasileira de predominância religiosa,

ainda que de religiosidade pouco nítida, mas majoritariamente ligada à tradição judaico-

cristã, alicerçada nas Sagradas Escrituras) - “Nota bem o seguinte: nos últimos dias haverá

um período difícil. Os homens se tomarão egoístas, avarentos, fanfarrões, soberbos,

rebeldes aos pais, ingratos, malvados, desalmados, desleais, caluniadores, devassos, cruéis,

inimigos dos bons, traidores, insolentes, cegos de orgulho, amigos dos prazeres e não de

Deus, ostentando a aparência de piedade mas desdenhando-a na realidade. Dessa gente,

afasta-te!...”

E ainda do mesmo apóstolo Paulo, em sua epístola aos Gálatas: “Recomendo, pois,

deixai-vos conduzir pelo Espírito, e não satisfaçais aos apetites da carne. Porque os desejos

da carne se opõem aos do Espírito, e estes aos da carne; pois são contrários uns aos outros.

É por isso que não fazeis o que quereríeis. Se, porém, vos deixais guiar pelo Espírito, não

estais sob a Lei. Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem,

idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos,

invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes.

“Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão

o reino de Deus! Ao contrário, o fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência,

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afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança. Contra essas coisas, não há lei.”

As epístolas citadas, foram-no nos trechos expressivos de situação assemelhável à que,

cada dia mais nitidamente, se vai impondo às sociedades atuais, principalmente às mais

sujeitas à massa colossal de estímulos, sugestões explícitas ou subliminares, notícias de

veracidade não assegurável em todos os casos, tudo no ritmo já mencionado, que torna

praticamente impossível à maioria, deter-se para analisar o que suscita a sua atenção e lhe

fere a sensibilidade. Veja o leitor como as explicações que sentimos necessárias à citação

de dois trechos bíblicos, figuram em texto que, como este, visa o público que continua a

ser considerado integrante do que, em meados deste século, era freqüentemente designado

como “civilização ocidental cristã”, designação que, aliás, serviu como “slogan” principal,

em termos da necessidade de salvá-la, na 2a Guerra Mundial, travada contra a brutal

violência do Estado totalitário nazista. Guerra em que morreram muitos milhões de jovens

do mundo inteiro, inclusive patrícios nossos, convencidos de que a estavam, de fato,

salvando, por ser algo precioso e digno de seu sacrifício. Hoje, repetimos, sentimos a

necessidade de justificar a citação de dois trechos do Novo Testamento, precisamente o

característico da vertente cristã, da tradição cultural judaico-cristã, de que somos parte,

embora sob o esforço destruidor, desfigurador, degradador a que nos estamos referindo e

que, confrangedoramente, se patenteia diante dos olhos de todos.

Em obra anterior nossa, “O Mito da Caverna”, tomamos a liberdade de lançar mão

de célebre alegoria de Platão, que para outros fins, ligados à sua maneira de ver a aquisição

do conhecimento pelo ser humano, descreveu uma caverna imaginária, em cujo interior,

homens atados de maneira a não poderem voltar-se para ver diretamente o mundo exterior,

eram iluminados pela luz bruxuleante de uma fogueira, que lhes permitia enxergar, daquele

mundo, apenas as sombras projetadas e pouco nítidas que apareciam sobre o fundo da

caverna, que lhes ficava fronteiro. Na oportunidade a que nos referimos, arriscamos dizer

que hoje todos, ou quase todos, vivemos como aquele grupo humano da alegoria de Platão:

apenas, em nossos dias, as paredes da “caverna” não são de pedra, mas de idéias

deformadas ou francamente falsas, sustentadas por interesses inconfessáveis. Por isso, ao

nos aproximar-nos do final das considerações até aqui submetidas à avaliação dos que

venham a lê-las, queremos reiterar, com base nelas, a necessidade da prudência, em lugar

do açodamento, que podendo vitimar a todos, vitima sobretudo a juventude que, em sua

inexperiência, desejo de auto-afirmação e arrojo, compreende menos as vantagens de não

aceitar de pronto, quanto seja apresentado como “moderno” ou “avançado”. Para ela será

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sempre mais difícil, aceitar como dignas de exame, as idéias que este escriba registrou em

pequeno ensaio, editado pelo mesmo bravo editor deste livro, sob o título: “Democracia ou

Paganização?”. Ou outras idéias de mesma índole, possivelmente mais expressivas do que

as nossas. Finalmente: até aqui, indícios epidérmicos da balbúrdia. Daqui para diante,

ainda na I Parte desta obra, uma tentativa de análise de suas motivações profundas. Antes

de passar a ela, porém, seja-nos permitido transcrever palavras de um eminente sacerdote,

o arcebispo D. Luciano Cabral Duarte, doutor em Filosofia pela Sorbone, nas quais se

verifica que, não apenas nós, percebemos a gravidade do que vem se passando em

conseqüência da balbúrdia a que, até aqui, fizemos propositalmente, reiteradas referências.

Passemos, porém, à transcrição das palavras de D. Duarte, nas quais se inserem

alguns aspectos da busca das causas profundas da trágica degradação que está em marcha,

busca a que pretendemos dedicar-nos, sem presunção, agressividade ou petulância mas,

também, sem covardia ou timidez, pois desejamos fazê-lo em espírito de serviço,

atendendo a apelos de muitos e ao imperativo da nossa própria consciência, como de resto

já ficou registrado anteriormente: “... Esta pobreza espiritual, este vazio que se procura

ocultar com a agitação e o barulho exterior”5, tudo isso não está aí por acaso. Estamos

colhendo os frutos da nossa civilização secularizada. O secularismo é o coroamento do

esforço do coração humano, rendido ao “poder das trevas”, para construir uma sociedade

de onde Deus, e mesmo qualquer remanescência do sagrado, desapareceram.

“O mundo, entendido como humanidade, é sempre um lugar ambíguo, onde o Bem

e o Mal travam o seu infindável combate. Existem séculos marcados pela prevalência do

Bem. Há também períodos onde o mal assoma, com o ímpeto insolente de um presumido

vencedor. Este melancólico final de século que vivemos é sem dúvida, um dos capítulos da

História onde a escuridão prevalece.6

“Na esteira das conquistas científicas que surgiram depois da 2a Guerra Mundial, o

homem traçou, mais claramente do que nunca, o seu próprio destino: o progresso sem

limites, arrancando da Terra seus tesouros inesgotáveis. A História contemplou, com uma

centelha de ironia em seus olhos cansados, o homem tentando mais uma vez ser o deus do

homem. Porque esta é a filosofia subjacente ao pensamento moderno: o homem é, ao

mesmo tempo, princípio e fim de si próprio. Quando eu começo a ter consciência de mim

mesmo, não sei de onde venho. Isto não tem importância: eu só começo, realmente, quando5. Grifos do Autor6. Grifos do Autor

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sou consciente. E quando a consciência desabotoa em mim, sou eu que me torno

consciente de mim mesmo, através do conhecimento do mundo. Sujeito e objeto de sua

existência, a geração atual vive, mais uma vez o sonho de Protágoras, na marcha da

humanidade: “O Homem é a medida de todas as coisas”.

"Pergunto-me onde poderia surpreender o âmago deste mundo moderno,

radicalmente secularizado, despojado de toda ambição de transcendência, lambuzando-se

de prazer numa sociedade consumista, sociedade onde o “ter” prima sobre o “ser”, e onde

o espírito que está em cada um de nós, entra num estado de anemia perniciosa, do qual,

aparentemente, não há volta. A filosofia da “sociedade afluente”, da humanidade do

consumo, é o prazer, exprimindo-se no trevo em que, a cada uma das três folhas,

corresponde uma das tentações permanentes do homem: a concupiscência da carne, a

concupiscência dos olhos e a soberba da vida (Epístola de S. João, cap 1 - ver. 16). E nesta

pesquisa, tudo o que tenho lido, nesses últimos tempos, me conduz na direção dos nossos

infelizes jovens drogados7. Parece-me que é nos efeitos da droga, no seu paroxismo, nos

seus estertores, na ponta desta flecha maldita, que vou encontrar a resposta. A humanidade

secularizada e consumista, pela boca dos jovens drogados revela o fundo do seu coração:

ela quer evadir-se da consciência moral, cuja voz pretende sufocar; ela quer evadir-se do

mundo moderno, repleto de bens de consumo e por isto mesmo vazio; ela quer evadir-se de

uma sociedade onde Deus está morto”.

Na mesma matéria, após muitas outras considerações, recomenda o arcebispo d.

Duarte, como saída para os problemas e males apontados, uma conversão “que revire nossa

vida na direção de Deus e de um compromisso com os homens, nossos irmãos”. Algo

equivalente ao que foi assinalado por Arnold Toynbee, em seus diálogos com o professor

Wakaizumi, da Universidade de Quioto, Sangyo, quando afirmou a sua convicção de que a

humanidade estava necessitando de uma verdadeira revolução, de natureza e profundidade

religiosa. Não nos adiantemos, porém, de vez que, parece-nos, no mundo de hoje, não é

bastante afirmar: é necessário fornecer ao que se afirma, o suporte de fatos e de

argumentos que possam dar consistência ao afirmado. Vamos, portanto, tentar a

identificação das motivações profundas dos males de que temos feito menção até aqui.

I.2 – As motivações profundas7. Grifos do Autor

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O leitor, certamente, já tomou conhecimento da expressão “visão holística dos

problemas”, expressão cada vez mais difundida como algo indispensável à compreensão do

que se passa em torno de nós, desde quando, cada vez mais claramente, se vai impondo a

concepção de que nós e o universo de que somos parte, representamos um vasto processo,

em que cada integrante é influenciado e influencia o todo, sendo ilusória a visão de

isolamento e de independência, que, entretanto, muitos imaginam sustentável, entre outras

razões, por não serem facilmente perceptíveis interações que, por isso mesmo, imagina-se

que não existem.

A questão mencionada tem implicações muito sérias, fundamentais mesmo, para a

verdadeira vanguarda do conhecimento humano cuja tendência, que julgamos seja

intuitiva, à síntese, foi e, de certo modo continua a ser, perturbada, em conseqüência do

crescimento muito rápido das características dos fenômenos e das suas relações imediatas

de causas e efeitos. Tem sido este o domínio da Ciência, desde quando convenceram-se os

homens de que deveriam debruçar-se sobre o mundo sensível em que nos integramos, de

preferência a buscar, pela via do pensamento contemplativo e pelo emprego do método

dedutivo, o conhecimento do seu íntimo e das suas relações com o Criador, tido então

como de existência incontestável. Existência imprecisa e confusa no politeísmo, do que

constituiu-se em exceção o povo judeu, por isso mesmo conhecido como “povo eleito”, já

monoteísta durante os milênios que precederam a vinda do Messias esperado, e anunciado

ao menos pelos seus profetas. Vindo o Messias, na pessoa de Jesus, embora rejeitado

naquela qualidade pela maior parte dos judeus, seus contemporâneos, e combatido como

blasfemo pelos líderes religiosos, inclusive os de alta hierarquia, componentes do Sinédrio,

que exigiram a sua condenação à morte, foi a sua ressurreição, sua vitória sobre ela, que

manteve acesa a mensagem da Nova Aliança, a qual, embora como luz bruxuleante,

continua presente passados quase dois mil anos.

Sobre problemas desse gênero, ligados à transcendência, aparentemente, como

muitos continuam supondo, inapelavelmente diferentes do mundo acessível à pesquisa

realizada pelos nossos sentidos, diretamente ou com o auxílio de instrumentos

amplificadores da sua capacidade de perceber, de distinguir, de medir, de comparar, com

apoio principalmente, embora já hoje, não exclusivamente, no método indutivo, a atividade

inquiridora do espírito humano haveria de progredir lentamente no conhecimento do

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mundo dos fenômenos da natureza e das suas relações imediatas, pelos menos aparentes,

de causa e efeito.

Por isso, a ciência e a tecnologia, durante toda a antigüidade e até, praticamente, o

começo do século 18, progrediram muito devagar; por isso, os eruditos, àquele tempo,

podiam ter uma visão global, significativa, ainda que não minuciosa, de todo o acervo de

conhecimentos acumulados pela humanidade. Embora havendo diferentes linhas de

pensamento dentro daquele acervo, qualquer proposição representativa de flagrante

disparate em relação a ele, seria fácil e generalizadamente identificada como tal, pelo

menos no citado círculo de eruditos. A situação que acaba de ser descrita modificou-se

radicalmente, a partir de uma corrente epistemológica, surgida à altura do século 14,

especialmente pela influência de um monge católico, William Ockham, em conseqüência,

ou como reação, aos excessos da escolástica, que caracterizaram o período final de

decadência da Idade Média. É que, segundo a referida corrente, somente teriam existência

real, no universo, os objetos singulares, de fato apreensíveis pelos nossos sentidos.

Os conceitos universais teriam, existência, apenas, no mundo mental de quem os

concebia, de vez que não existiam “objetos universais”. Não seriam mais do que “sons

vazios”, ou “flatus voces”, como designara Ruscelino, os referidos “conceitos universais”.

Os excessos da escolástica antes mencionados, diziam respeito aos extremos a que haviam

sido levados os realismos aristotélico e platônico, a ponto de alguns escolásticos chegaram

a negar a existência do mundo que, hoje, a maioria considera, como o, de fato, objetivo,

consistente, irrefutável. Consideração, de resto, que pretendemos analisar, muito adiante,

nesta obra.

A questão, como bem percebe o leitor, é nitidamente filosófica e, embora o monge

Ockham haja sido figura polêmica em sua Ordem, discutindo, inclusive, a pertinência da

autoridade, para fins civis, do Papa, na época João XXII, não é considerado um

Nominalista extremado. O fato, porém, é que a sua visão epistemológica desencadeou,

repitamos, a célebre “querela dos universais”, que marcou o ocaso definitivo do período

medieval, que tantos insistem em designar como “Idade das Trevas”.

Sem querer realizar um esforço para a reabilitação de todos os aspectos do

medievo, desejamos, neste exato momento, tentar despertar a curiosidade do leitor isento,

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para o fato de, com tanta insistência, repetir-se que foi ele um período “de trevas”. Qual

quer fato vergonhoso pela perversidade, pela injustiça, pela brutalidade, pela ignorância,

acompanha-se, geralmente, do comentário: parece coisa da Idade Média, feito, quase

sempre, por alguém que, sobre ela, de fonte idônea, não sabe nada, ou pouquíssimo sabe.

De nossa parte, queremos, igualmente, reconhecer que o leitor que anteriormente

não haja tido a oportunidade de ocupar-se com assuntos de índole filosófica, tem todo o

direito de se estar perguntando: mas, afinal, a que vem toda essa complicação do

Nominalismo, e a ponderação acerca das críticas desfavoráveis ao medievo, que de fato

são praticamente generalizadas? O que têm a ver, tais assuntos, com as causas profundas

dos dramas e sofrimento dos dias atuais? E não apenas reconhecemos o direito do leitor de

fazer tais indagações, como as consideramos auspiciosas. E, também, neste momento, nos

comprometemos a responde-las, de maneira a que possam perceber, todos os que tenham

as mesmas curiosidades, que os assuntos, à primeira vista complexos, ou chocantes, por

contrariarem pontos de vista dominantes - especialmente os relativos às “trevas medievais”

- são na verdade bem simples e inteligíveis, além de denunciadores, no caso das supostas

“trevas”, de distorções que seria imprudente considerar, todas, meramente casuais e

destituídas de intencionalidade. É que já foi citada a opinião de Michael Novak, para

quem um dos fatos mais preocupantes dos dias atuais, é o da prevalência de idéias sobre

realidades concretas, mesmo quando estas as desmentem de maneira frontal. No caso da

“treva medieval”, repare o leitor que se tornou algo que, para a maioria, praticamente “já

transitou em julgado”.

Os próprios compêndios de uso escolar respaldam a hipótese que, não obstante, não

corresponde à opinião de um único medievalista. Antes mesmo de recorrer ao chamado

“argumento de autoridade”, é razoavelmente conhecido que a instituição universitária, a

Universidade, é uma criação, precisamente, do medievo. Nele foram criadas a

Universidade de Paris que, à altura do século XIII, já contava com cerca de l0 mil

integrantes, entre professores e alunos. Também criações medievais foram as universidades

de Salamanca, de Pádua, de Viena, de Cracóvia, de Oxford, de Cambridge, de Bolonha, de

Praga, de Heidelberg todas, ainda hoje, reputadas e famosas. O leitor já teria pensado

nisso? Qual foi o filósofo, no Ocidente, incluídos os da antigüidade clássica, que teria

produzido obra mais importante do que a de S. Tomás de Aquino? Qual foi o poeta lírico

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de maior expressão, na literatura ocidental, do que Petrarca? Qual a obra literária mais

importante do que “A Divina Comédia”, de Dante?

Quanto a Petrarca, vale acentuar que, conhecendo, durante a Semana Santa, em

cerimônias religiosas realizadas no enclave de Avignon, à época sede do Papado, a jovem

Laura, presentes, ambos, à igreja de Santa Clara, foi ela a sua única musa, durante 40 anos.

E todos sabemos que, do ponto de vista físico, é pouco provável que uma mulher conserve

os seus atrativos durante tanto tempo. É que a expressão amor, aplicada ao sentimento

entre um homem e uma mulher, não era ainda sinônimo de conjunção carnal, ou cópula,

em que se vai tentando transformá-lo, como algo “moderno”, “avançado” “não

preconceituoso”, e quejandos. São algumas ponderações que julgamos útil oferecer à

análise dos que venham a percorrer estas linhas. E por que o fazemos? Por ser indício de

que, efetivamente, é possível manipular, por meio de desinformação sistemática, a maioria

das pessoas, o que vem sendo realizado desde há muitos séculos, e hoje, torna-se ainda

mais exeqüível, face a formidável penetração dos meios de comunicação, em especial os

eletrônicos, a cujo serviço podem ser postas as técnicas, cada vez mais sofisticadas, de

transmissão de mensagens explícitas, ou não, a um público recipiendário que não dispõe,

geralmente, de tempo para refletir sobre a validade do que lhe fere a atenção.

Pensamos não ser demasia repetir o que acabamos de mencionar, embora já o

houvéssemos feito anteriormente. É que se trata de alguma coisa a que atribuímos a maior

importância. Para que se tenha um exemplo, dramático, de quanto tem sido possível

distorcer a verdade, diremos, certos de que haverá de surpreender a muitos, que é bastante

difundido o conhecimento de que imperadores romanos, muitas vezes ofereciam em seus

espetáculos na maior e mais importante de suas arenas, a do Coliseu, em Roma, cristãos

para serem devorados por leões famintos, quando não, embebidos em alcatrão, queimarem

vivos os seguidores do Cristo, transformados, assim, em trágicas tochas. Entretanto,

imaginamos que, em virtude da desinformação a que nos estamos referindo, a maioria

conhece a realidade que acaba de ser mencionada, mas tendo a sua atenção voltada só para

a crueldade e o extremado despotismo dos tiranos por ela responsáveis; poucos terão

refletido que os referidos déspotas não tinham como objetivo tornarem-se impopulares. Ao

contrário, faziam-no para divertir o povo que enchia o Coliseu. E por que o povo conseguia

comprazer-se com tão terríveis espetáculos? Não apenas pela razão que vamos mencionar

mas, sem dúvida, também por ela: é que o primeiro historiador de um certo realce que não

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se referiu aos cristãos, ou à “seita dos nazarenos”, não para elogiá-la ou aos seus

seguidores, mas para dizer que não tinha indícios concretos de que se compunha de

perversos fanáticos, perturbadores da ordem legal, e envenenadores de fontes, na prática de

homicídios indiscriminados, foi Plínio, o Moço, já no século IV da nossa era. Como pode

ver o leitor, durante cerca de 4 séculos, todos os cronistas e historiadores que se referiam

aos cristãos, faziam-no para caracterizá-los da maneira que, não para desmenti-la, mas para

pôr em dúvida a sua veracidade, escreveu Plínio, o Moço. Já àquele tempo, portanto,

interesses revestidos de poder, conseguiam manejar a desinformação, e usar inverdades

para iludir a boa fé do povo8. Aliás, não fora a sua ressurreição, sublinhemos, e a passagem

do Cristo pela Terra teria, talvez, sido esquecida. Ressurreição, de resto, da morte na cruz,

exigida pelos mais poderosos do povo para o qual, especificamente viera ao mundo,

exigência que contou com o apoio da maioria, desinformada e induzida a erro, na consulta

plebiscitária realizada diante do pretório de Pilatos...

Em linhas anteriores, demos precedência a fatos que nos parecem indicar a

conveniência da reflexão sobre a validade da “verdade indiscutível” das trevas medievais.

Temos, porém, consciência acerca de nossas limitações. Por isso, e como afirmamos que

os medievalistas não concordam com aquela “verdade”, seja-nos permitido citar alguns

deles. Dentre os franceses, Régine Pernoud, cuja obra de maior repercussão foi a que teve

como título “Lumière du Moyen Àge”, como verifica o leitor, “Luz da Idade Média”.

Sobre a referida obra, vale a pena esclarecer que sua autora a escreveu sob o impacto da

surpresa que lhe causou a verificação da enorme diferença entre o que sobre o famoso

“período de trevas” a que nos estamos referindo corria generalizadamente em seu país,

como nos livros em que havia estuda do em sua formação escolar, como no sentido das

preleções que sobre o assunto, ouvira dos seus professores, e os fatos. É que Régine

Pernoud não era uma historiadora, ou estudante de História, quando se defrontou com a

experiência que relata no livro a que estamos nos referindo. Ela, estudante de

Biblioteconomia, recebera como tarefa relacionada às suas obrigações como estudante

daquela especialidade, examinar, para classificar, documentos dos arquivos franceses,

relativos ao período medieval. Como pode verificar o leitor, informações de primeira mão,

pois tratava-se de documentos autênticos, elaborados no referido período; não de

comentários, ou opiniões sobre ele expendidas. E, segundo ela, compulsando os

documentos de irrefutável idoneidade, do conteúdo dos mesmos foi sendo revelada para

ela uma outra Idade Média, de maneira geral, totalmente diferente de tudo quanto, sobre a8. Tanto que da data do século IV a proibição das perseguições aos cristãos, determinada pelo imperado Constantino, pelo Edito de

Milão, ano 313 da nossa era. A capital do Império foi transferida para Bizâncio, na Ásia Menor, cujo nome, em honra doimperador, passou a ser Constantinopla, hoje Istambul. (Nota do Autor)

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mesma, havia aprendido e lido até então. Não temos a pretensão de constituir-nos em

reformulador do conceito sobre o medievo, pois estamos conscientes de nossas limitações

e, também, do objetivo fundamental, neste momento, desta obra, que é o de evidenciar que,

realmente, é possível e tem sido utilizado no correr dos tempos e continua a sê-lo, e ainda

com maior eficácia, nos dias presentes, o engano em grande escala, da opinião pública, em

matérias, por vezes de capital importância, desde que o referido engano seja de utilidade

para poderosos interesses que costumam agir, por motivos óbvios, geralmente na sombra.

A autora que estamos citando, fazemo-lo em primeiro lugar, pela isenção com que revelou

a sua enorme surpresa, diante dos documentos compulsados, e produzidos no medievo. A

mesma autora publicou outras obras sobre o mesmo período e, quanto a ele, um seu

patrício é tido também, como grande autoridade, o Sr. Henri Pirenne. Realmente, para não

nos estendermos em demasia, repetiremos que, entre os especialistas no assunto, não há

quem respalde a lenda das “trevas medievais”.

Outra autoridade, porém, que merece ser citada, é o Sr Henry R. Loyn, Professor

Emérito de História Medieval, da Universidade de Londres, que recentemente publicou a

obra que, no original, recebeu o título: “The Middle Ages - A Concise Encyclopédia”. A

apresentação da tradução para nossa língua, tradução levada a cabo pelo Sr. Álvaro Cabral,

Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade

Clássica de Lisboa, foi redigida pelo Sr. Franklin de Oliveira, sobre o qual não nos consta

haja sido associado, jamais, o qualificativo de “conservador”, “obscurantista” ou

“reacionário”. Eis como ele deu início à apresentação da edição brasileira - “A grande

maioria dos brasileiros continua prisioneira do preconceito forjado9 pelos historiadores

liberais do século XIX, que definiam a Idade Média como um “período de trevas”. É

preciso soterrar, de vez, equivoco tão grosseiro10. O Medievo não significa somente a

fundação da Europa em suas bases cristã e romana11. No bojo da Idade Média, gerou-se o

mundo moderno. Lá, com Ockham, Oresme e outros, surgiram os fundamentos da ciência

contemporânea12, como tão claramente comprovou Pierre Duhem”. E segue-se copiosa

argumentação apresentada pelo Sr. Franklin de Oliveira, em favor da existência dos

equívocos em que se têm constituído os conceitos sobre o medievo, difundidos por todos

os meios e modos disponíveis, e não a partir de agora, mas desde há muito tempo. Estamos

evitando citar medievalistas brasileiros, para não correr o risco de, involuntariamente,

omitir o nome de algum.

9. Atenção ao termo empregado. (Nota do Autor)10. Por que teria sido forjado? Casualmente? (Nota do Autor)11. Não acontecera, ainda, à época, a Reforma. (Nota do Autor)12. Em seus aspectos positivos e negativos. (Nota do Autor)

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Afirmamos, porém, que do pensamento dos estudiosos patrícios do assunto de que

tomamos conhecimento, consta a aceitação da deformação da realidade histórica medieval,

como de resto, de outras realidades históricas, tudo compondo, em nosso entender, a

procedência do esforço que estamos realizando, no sentido de alertar as inteligências dos

que nos leiam para as armadilhas com que pretendem ludibria-las.

Queremos, também, deixar claro que a propagação das inverdades a que nos

estamos referindo não é realizada, sempre, de modo consciente e intencional. Ao contrário,

é de inteira justiça registrar que, na maioria das vezes, a referida propagação é feita por

quem “ouviu falar” sobre o assunto e, sem reflexão, o repete, de maneira obviamente

imprudente e cujos efeitos maléficos não imagina que possam existir. Sobretudo quando

repetir “o que se ouviu”, sintoniza com o “hoje em dia é assim”, ou para o caso, “hoje em

dia todo mundo sabe que é assim”, principalmente, quando “estar na moda”, não ser

“conservador”, parece vantajoso, pelo menos por ser simpático e “inteligente”.

Feita a ressalva, parece-nos conveniente insistir no assunto dos erros a que a

maioria adere, embora, na origem, tais erros tenham sido postos em curso e prestigiados,

por servirem a determinados propósitos que a referida maioria está longe de conhecer ou

de admitir que existem. No que tange à conotação da palavra “trevas”, com ignorância, no

sentido acadêmico, o fato da Universidade ter sido uma instituição criada no período

medieval, do que foram dados os exemplos concretos constantes anteriormente deste texto,

parece que fica desmascarado o equívoco. Mas existem outras imputações infamantes

como, por exemplo, a frase cunhada, se não nos falha a memória, pelo irreverente e nada

religioso autor de “La Sorcière”, “A Bruxa”, Michelet, e que buscava acentuar o que,

segundo ele, teria sido a extrema falta de higiene medieval: “Mil ans; pas un bain!” - Mil

anos; nem um único banho! Ora, é bem sabido que no hemisfério norte o clima, sobretudo

no inverno, não é tão exigente de banhos quanto, especialmente nas zonas ou regiões

tropicais e subtropicais acontece.

O que não deixa de ser uma maneira, pelo menos mais delicada, de explicar certas

insinuações maldosas que, entre nós brasileiros, circulam acerca do amor não muito

ardente à água, observável, ainda hoje, entre os compatriotas do irreverente autor de “A

Feiticeira”.

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Somem-se ao fato as precariedades tecnológicas e científicas da época e, talvez, ao

menos em parte, já possa o leitor entrever algo correspondente a uma crítica mais racional

do que apaixonada. Mas não é só; a Sra. Régine Pernoud, com base, não em preconceitos,

que não os tinha, a não ser contrários ao período medieval, mas em testamentos feitos

durante a Idade Média, por pessoas que nela viveram e morreram, declara o seu espanto ao

verificar que, entre os bens legados aos herdeiros, era freqüente a menção a banheiras. A

falta de higiene pessoal, portanto, não parece ter sido particularmente acentuada no

medievo.

O que de irrealista circula sobre ele, entretanto, sem levar em conta as

circunstâncias da época, insiste nas conseqüências trágicas da, perdoem-nos os leitores,

“porcaria medieval”. E é aí que entra a questão de que se faz ampla propaganda: a famosa

“peste negra”. Já não se divulga tanto que não houve apenas um surto da referida peste.

Segundo o professor Loyn, anteriormente citado, ela teria assumido caráter epidêmico nos

primórdios do medievo, à altura do século VI da nossa era, oriunda da Etiópia. O segundo

surto ocorreu, ainda segundo o professor da Universidade de Londres, já em pleno século

XIV oriundo da Ásia Central. Refere-se o professor aos períodos mais devastadores da

pandemia que, entretanto, segundo ele, perdurou endêmica, desde o 2o surto até a metade

do século XVII13. Para os leitores que não saibam, a “peste negra” apresentava-se em duas

modalidades: a bubônica, que geralmente levava à morte em seis dias; e a pneumônica, que

podia fazê-lo na metade daquele tempo.

O agente produtor de ambas as modalidades, só foi identificado no final do século

passado, e os seus transmissores são pulgas transportadas pelos ratos em que se hospedam.

Claro que não estamos desejando significar que as conseqüências das terríveis pandemias

nada tiveram a ver com as condições de precária higiene daqueles tempos em que,

inclusive, ninguém possuía a mínima noção acerca de micro-agentes produtores de

moléstias, por afirmar cuja existência foi tão ridicularizado, tantos séculos depois, o grande

Louis Pasteur.

O que queremos realçar é que aquelas condições precárias não foram uma

peculiaridade medieval, período em que, ao contrário, segundo Régine Pernoud,

surpreendeu-a o número de testamentos em que figuravam banheiras legadas aos herdeiros,

como já vimos.

13. Grifos do Autor.

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Ainda que, no desdobramento dos assuntos que pretendemos submeter à análise dos

que venham a ler este livro, do ponto de vista da cronologia histórica, não tenha chegado o

momento de fazermos referências ao que costuma ser cognominado de “Rei Sol”, o

construtor do imenso palácio de Versailles, com suas centenas de cômodos, Luís XIV,

parece-nos oportuno registrar que, no referido palácio, nenhum daqueles cômodos foi

projetado pelos seus arquitetos, para servir como sala de banho.

E mais: segundo alguns cronistas e biógrafos do chamado “Rei Sol”, tomou ele, em

toda a sua existência, um único banho! É bem verdade que não tendo vivido mil anos, não

poderia dizer dele o “imparcial” Michelet - “mil ans; un seule bain!” Mas há outros dados,

que registramos, não na intenção de, por pura irreverência, toldar a imagem daquele rei.

Ocorre que há cronistas da época que afirmam que as audiências reais, concedidas como

especialíssimo favor, aos que as requeriam sem serem poderosos ou recomendados por

personagens que o fossem suficientemente, eram realizadas “com o rei sentado em sua

cadeira”. E esta não era o trono... Ainda mais: é verdadeira a imputação a S.M. da frase

que se tornou célebre: “l'État cest moi! “, “O Estado sou eu!”.

Os dados citados que, reconhecemos, referem-se a período

histórico muito posterior ao que estamos analisando, entretanto, supomos, são úteis à

avaliação pelos leitores, da existência de muito mais falsificações da verdade e falsas

reputações, do que a sua boa fé teria, quem sabe, imaginado até agora. Voltando, porém, às

“trevas medievais”, é quase certo que o leitor já ouviu falar do infamante “direito de

pernada”, segundo o qual o servo da gleba, ao casar-se, seria obrigado a ceder a noiva ao

seu senhor, para que fosse por este desvirginada. Trata-se, segundo afirmam os

medievalistas, de algo possivelmente difundido com especial vigor, a partir da peça de

Beaumarchais, “Le Mariage de Figaro”, mas que não teve origem no medievo, mas no

“direito de formariage”, que teria durado até o século X, e que consistia no direito que

tinha o senhor de impedir que um seu servo se casasse com cônjuge de outro domínio.

Como se tratasse, porém, de prerrogativa que atentava contra a família, foi abolida

e substituída por uma indenização a ser paga pelo servo da gleba, ao senhor do domínio a

que pertencia e ao qual, se integrava, voluntariamente14. As relações entre servos e

senhores eram muito diferentes das que existem hoje, entre patrões e empregados. Eram

relações de lealdade e proteção e os privilégios não eram exclusividade dos senhores.

14. Grifo do Autor.

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Todos eram titulares de, digamos, privilégios, não por estarem estabelecidos, de cima para

baixo, em conseqüência de leis e normas de direito positivo, mas como coisas ditadas pelos

costumes, constituindo-se, por isso mesmo, em regras do direito consuetudinário da época.

O leitor, inteligente, percebe que tais ou quais daquelas regras, apreciadas na sociedade de

hoje, podem parecer absurdas e injustas, como ò chamado “direito de séquito”, que dava ao

senhor a faculdade de obrigar o servo que houvesse deixado o seu domínio sem o seu

consentimento, a regressar ao mesmo, ainda que contra a vontade. O que o costume gera,

porém, obviamente sanciona e, por isso, cria menos descontentamentos, animosidades e

conflitos. Talvez a razão, porque a Inglaterra medieval era conhecida como “merry

England”, feliz Inglaterra.

Por outro lado, servo da gleba contém a expressão “servo”, que, em pleno clima de

animosidade hoje reinante entre patrões e empregados, para muitos soa de maneira

desprimorosa. Quando se trata, porém, de quem se dedica, ou diz dedicar-se, ao serviço de

Deus, a expressão servo de Deus passa a ser nobilitante. Claro que o patrão ou o senhor

feudal não podem ser comparados a Deus. O que queremos dizer, apenas, é que a

expressão servo não é, em si mesma, aviltante. Um outro exemplo, imaginamos,

esclarecerá o que queremos significar.

Como podem ser designados, sem nenhum desdouro, os que trabalham para o poder

público, senão servidores públicos? Não haverá, na conotação, mais do que pejorativa, às

vezes aviltante, que se estabelece com a expressão servo, alguma contribuição do orgulho?

De outra parte, o chamado “direito da mão morta”, este representava, de fato, um costume

abusivo. Consistia ele no privilégio que tinha o senhor, falecido o servo, de apropriar-se de

bens móveis por ele adquiridos em vida. Por outro lado, entretanto, convém esclarecer,

existia a norma designada como “glebae adstritio”, segundo a qual estabelecido o vínculo

entre o servo e o senhor, não podia este retirar a terra demarcada para que o primeiro a

cultivasse; nem mesmo quando da transferência do domínio para outro senhor, poderia o

servo ser privado do solo com que se sustentava, sustentava os seus dependentes, além de

pagar, com uma parte da produção, o seu direito de cultivá-lo e de nele permanecer bem

como os seus herdeiros, depois que ele morresse.

Como se vê, o servo, como de resto também o senhor do domínio, não era o

proprietário da área em que vivia ou, no caso do senhor, sobre a qual exercia a sua

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autoridade. O titular da propriedade imobiliária, era, menos um proprietário, no sentido

atual, do que um administrador do que os costumes consideravam basicamente existente

em favor da família. A cota de produção que o servo entregava ao seu senhor, variava com

as diferentes regiões que, como é sabido, apresentam-se, pela topografia como pela

fertilidade da terra e, por outras circunstâncias, reconhecidamente influentes sobre o valor

das safras, e as áreas adjudicadas. aos servos deviam levar isso em conta, bem como a

parte a ser entregue ao senhor, as suas necessidades de manutenção bem como as de sua

família. Algo, em certo sentido, de inspiração assemelhável à que atualmente, é tão

freqüente designar-se como “módulo familiar”, quando se fala de reforma agrária.

Também deve ser acrescentado que o servo, ou seus familiares, não eram convocáveis para

atividades bélicas, de vez que a sua segurança passava a ser da responsabilidade do senhor.

Danos eventualmente acarretados à terra que cultivava, como conseqüência

daquelas atividades, deviam ser reparados, igualmente, pelo senhor. Quanto ao vínculo

entre o senhor do burgo e os seus vassalos, a situação era semelhante. O vínculo era

estabelecido por iniciativa do vassalo, e o pacto de vassalagem era firmado de público, por

meio de um beijo que se trocavam senhor e vassalo. O burgo, a residência do senhor feudal

era, ao tempo a que nos estamos referindo, fortificada e construída em lugar adequado do

ponto de vista militar, e seus interiores despojados e austeros, nada tinham de parecido

com o fausto que, bem mais tarde, começou a caracterizar os aposentos dos palácios.

Cumpridas as obrigações livremente pactuadas, vassalos e servos nada tinham de

assemelhável aos escravos que, até o século passado, nós mesmos admitíamos em nosso

país.

Eles não eram propriedade dos seus senhores, suseranos, vassalos, ou mesmo do

rei. Eram livres para fazer tudo quanto não lhes fosse vedado pelo acordo que,

voluntariamente, haviam celebrado. A esta altura, convém reiterar o que afirmamos desde

o início destas ponderações: não nos propomos ser advogados do período medieval, nem

pretendemos insinuar que, nele nada houve de deplorável ou condenável. Permitimo-nos,

apenas, em espírito de serviço, assinalar que os fatos, costumes, acontecimentos, devem ser

analisados no contexto cultural em que ocorreram. Não fora assim, como qualificar certos

episódios constantes das Sagradas Escrituras, sobretudo do Antigo Testamento? Ademais,

quando se fala de Medievo, a referência é feita a um extenso período de muitos séculos,

sobre cujo início e cujo final, não concordam sempre os autores. Quanto ao início,

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obviamente não deve ser situado antes do esboroamento do Império Romano, à altura do

século V da nossa era; quanto ao seu final, seria impróprio, situá-lo além do século XV. E

cumpre realçar que em período tão longo houve - eis que nada é estático no mundo - fases

muito distintas umas das outras.

Assim, sem querer descer a detalhes, como exemplos, citaremos as manifestações

de nítidas alterações culturais, que muitos designam como proto-renascimentos. Desejamos

sublinhar com clareza que estamos nos referindo, até aqui, a aspectos que corresponderam

a traços dominantes e peculiares ao período medieval, não aos dos seus primórdios nem às

conseqüências da sua desfiguração, logicamente precursora, segundo pensamos, da sua

substituição pelo que, em geral, os historiadores designam como Renascimento. Supor

características peculiares à sociedade medieval dados, digamos, do século XV, não nos

parece adequado, pois seria tentar descrevê-la, pelos aspectos que ela apresentou quando já

estava, praticamente, agonizante. Sim, porque, embora não haja perfeita concordância

quanto ao início e ao final da Idade Média, parece não haver discrepâncias quanto à

chamada Renascença ter tido seu começo no século XVI. O que desejamos é ser realistas, e

ainda assim almejando, apenas, que o leitor, com sua inteligência e em sua consciência,

julgue sobre a propriedade e validade, ou não, de nossas ponderações.

De nossa parte, parece-nos muito inadequado ao esclarecimento da verdade ou,

pelo menos, a uma maior objetividade em sua busca, o radicalismo, que gera a intolerância,

tantas vezes, ambos, alimentados pela ignorância e pela imprudência. É falar-se em

medievo e, imediatamente, vêm à baila os servos da gleba e as fogueiras da Inquisição.

Quanto aos primeiros, já tivemos a oportunidade, pouco antes, de informar algumas coisas,

que poderiam ser aceitas mais facilmente, se nos lembrássemos do valor central que, no

período mais típico e peculiar do medievo, era dado à família. A tal ponto, que o

proprietário da terra, como já foi visto, fosse ele suserano, vassalo ou rei, não o era tanto,

como hoje, em sentido individual. Menos do que uma autoridade, ele era o chefe de uma

família, o administrador de patrimônio e privilégios que a ela, mais do que a ele,

pertenciam.

Este foi aspecto que de fato, fizemos aflorar anteriormente, mas que convém repisar

por ser, segundo entendemos, o que torna verosímil o fato de, mesmo o servo da gleba, ter

garantida a sua permanência na referida gleba, bem como os seus descendentes, por

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ocasião de sua morte ou, antes dela, pela transferência do domínio a outro senhor. De resto

este, suserano ou vassalo, poderia passar a vida crivado de dívidas, sem ter ameaçado o

patrimônio, como vimos, menos dele do que da família. A não ser que a sua inadimplência

fosse devida a procedimentos indignos os quais, mesmo quando não relacionados a

pecúnia podiam, eles sim, levar ao extremo da transferência dos seus privilégios a alguém

considerado mais digno. As normas de comportamento eram, àquele tempo, sobretudo no

que tangia a valores éticos e morais, muito rígidas. Daí, ser a distorção que apontamos

anteriormente, do chamado “direito de formariage” no aviltante “direito de pemada”,

inimaginável em uma sociedade do tipo e da feição da que estamos descrevendo.

O outro fato, que com freqüência é mencionado quando se fala na “Idade das

Trevas”, como vimos há pouco, são as fogueiras da Inquisição. Que realmente existiram e,

hoje, seriam inadmissíveis como penas legais, tal como ocorreu, nos reinos de Aragão e da

França, que incluíram as referidas penas em legislação secular, após a realização do 4o

Concílio de Latrão, isso no século XIII. No século XII, pela bula “Ab Abolendum”,

tornou-se obrigatório para os bispos, que ordenassem uma investigação, ou inquisição,

anual em suas dioceses e excomungassem, não só os heréticos (segundo fossem por eles

assim considerados) e as autoridades que não tivessem agido ou não agissem contra os

mesmos, depois de, daquela maneira, taxados. Anteriormente, haviam sido queimados

cerca de 15 clérigos e monjas, e os membros de uma comunidade religiosa, na Itália, cujos

integrantes pela forma com que cultuavam o Espírito Santo, sentiam-se no dever de não

comer carne e de não cumprirem os seus deveres conjugais com as esposas. Mas é falar-se

em Idade Média e, prontamente aparece quem mencione os horrores cometidos por

Torquemada, talvez pelo que o seu nome, de certo modo, sugere. Poucos dão-se,

entretanto, ao incômodo de saber quando, onde viveu e quem era o referido “incendiário”.

Seu nome era Tomás de Torquemada, sacerdote dominicano, nascido em

Valladolid, na Espanha, e nomeado inquisidor-geral ou Grande-Inquisidor depois que o

papa Sixto IV a pedido do rei Fernando e de sua esposa, Isabel, a católica, criou o tribunal

de Inquisição na Espanha. Mas, quando teria ocorrido essa criação? Em 1480.

Torquemada, realmente com singular crueldade (ah! os males do fanatismo !) exerceu as

funções para as quais fora nomeado, durante 14 anos, até 1494; ou seja, atuou durante o

século XV e, mais, na parte final do citado século que não foi, pelas razões já expostas,

característico do medievo, senão que dos seus estertores. Veja o leitor se não cabem as

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nossas reiteradas afirmações, quando tão profunda é a convicção de muitos acerca de

inverdades com que, inconsciente ou deliberadamente, são desrespeitadas as inteligências

do próximo. Mas, para que fique ainda mais clara a conveniência de buscarmos apreciar e

avaliar os fatos no contexto da época em que ocorreram, vamos lançar mão de um exemplo

que julgamos elucidativo, pelo menos, da conveniência apontada e da existência de dois

planos da História.

Assim, se relatassem ao leitor que alguém, altamente situado na sociedade a que

pertencia, no caso, o duque de Aveiro, foi condenado à pena de ser “supliciado” na roda,

em cadafalso alto, de madeira, a fim do suplício poder ser visto pelo povo e, com o

condenado ainda vivo, ser incendiado o cadafalso de modo à vítima da sentença ser

queimada, antes de morrer; e se perguntassem ao leitor quando foi proferida tal sentença e

outra, que mandou queimar na fogueira, como herege, um sacerdote considerado como tal,

o jesuíta Malagrida, qual seria o seu impulso, aliás perfeitamente compreensível, à luz do

que temos exposto até aqui? Seria o de responder que, certamente, no período das “trevas

medievais”. Pois, pasme, não foi; foi na segunda metade do “século das luzes”, o século

dezoito. A sentença primeiramente descrita, não chegou a ser consumada por decisão de d.

Maia I, rainha de Portugal, à época ainda lúcida, e conhecida pelo seu feitio compassivo.

Tão compassivo que exercitou-se em desfavor do seu protegido, responsável pelas

sentenças, pasme de novo o leitor, o marquês de Pombal, de quem, certamente, ou quase

certamente, sempre terá lido referências elogiosas, como grande e progressista

administrador, a que Lisboa deveu a reconstrução, depois do terrível terremoto de que fora

vítima. Como se vê, já na segunda metade do “século das luzes”, a mentalidade reinante

ainda ensejava episódios do gênero descrito. Por que, então, fazer o grande público

acreditar que somente no medievo ela teria existido? São aparentes “mistérios” desse tipo o

que, permitindo-nos Deus, tentaremos decifrar ao longo desta obra. Por intermédio de

dados e argumentos que, repetimos mais uma vez, cabe à inteligência e à consciência dos

leitores, julgar quanto à procedência e à validade.

E, para acrescentar mais um dado contundente, acerca dos perigos de avaliar sem

análise ou reflexão, não será prova deles o horror manifestado contra as fogueiras que,

como acaba de ser visto, não foram apenas medievais, quando, todas juntas, não podem ser

comparadas, em termos do mesmo horror, às incinerações de duas cidades japonesas,

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Hiroshima e Nagasaki, nas quais, além das dezenas de milhares de vítimas humanas

indefesas e inocentes sacrificadas, foi calcinado tudo quanto respirava ou, simplesmente,

vivia além dos que, ainda que distantes das duas fogueiras sem precedentes, foram

atingidos pelas radiações conseqüentes às explosões nucleares que as realizaram, e vieram

a morrer depois, de câncer, e cujos descendentes continuam, em muitos casos, a padecer as

conseqüências do ocorrido, seja por serem portadores de anomalias físicas devidas a

alterações genéticas, seja pela incidência, estatisticamente maior entre eles, do que na

média da população do seu país, da terrível moléstia há pouco mencionada?

Claro que não estamos desejando significar que como, muito depois da “idade das

trevas”, e mesmo em nossos dias, ocorreram coisas horríveis, crueldades medievais tenham

deixado de sê-lo. Foram-no, sem dúvida, ainda que em contexto cultural e mentalidade

dominante, que não devem ser desprezadas, quando se tente avaliá-las. Mas, sobretudo,

nesta fase da obra em que ainda estamos, o que queremos é despertar a atenção dos que nos

leiam para a, digamos, suspeitíssima divulgação de interpretações truncadas e

vetorialmente, ou preferencialmente, dirigidas contra o medievo. Entendemos que, por

causa da imprudência, do ritmo frenético da vida que nos impede de analisar e refletir, e

por causa de fatores que dispõem dos meios adequados ao aproveitamento da balbúrdia, a

maioria, ao contrário do que imagina, longe de respeitada, é enganada pelos manipuladores

daqueles meios. Não fora, segundo pensamos, a existência de dois planos da História, e

tudo dependesse da intencionalidade inspirada na natureza decaída dos homens, talvez

ainda tivéssemos hoje a escravidão, em sua forma explícita, e continuassem a existir, no

direito positivo, penas de morte na fogueira.

Ao condená-las, menos por piedade (como, supomos, o demonstra o episódio das

incinerações de duas cidades, sem que suas vítimas fossem julgadas ou, sequer acusadas),

o outro plano da História foi tornando cada vez mais difícil a prática ostensiva da

crueldade. O mal, porém, recalcitra, e socorre-se da hipocrisia, do engodo, da demagogia.

Por isso é que, não nós, que somos tão insignificantes, mas Suzane Langer, Professora

emérita de Filosofia do Conecticut College, USA, em trabalho intitulado “Civilização

Científica e Crise Cultural”, apresentado em 1961, à “Associação Japonesa Pró-Filosofia

da Ciência”, em reunião realizada em Nikko, no Japão; professora que, segundo nossa

opinião, é um dos mais expressivos vultos do pensamento filosófico americano moderno,

fez constar do citado “paper” as seguintes expressões: “Toda vida humana apresenta uma

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subcorrente de sentimento que lhe é peculiar. Cada indivíduo expressa este padrão

contínuo de sentimento naquilo que chamamos de sua “personalidade”; refletida no

comportamento, na fala, na voz e mesmo no porte físico (parado ou andando), como seu

estilo individual. Em escala maior, toda sociedade humana tem sua subcorrente de

sentimento que não é individual mas geral.

Todas as pessoas a partilham em um certo grau, e desenvolvem sua própria vida do

sentimento dentro do quadro “do estilo preponderante do seu país, em sua época”.

Atenção, agora, leitor, para o trecho que irá seguir-se, do mesmo “paper”: “Quase em toda

parte do mundo, hoje em dia, a subcorrente do sentimento está confusa, incerta, tensa. Há

muito orgulho nela, mas sob o orgulho, há medo; há uma grande fé na Ciência, e ao mesmo

tempo um irracionalismo que trai a vacilação de tal fé; há um crescente senso de sociedade

mundial, direitos humanos e igual dignidade de toda a humanidade, e no entanto,

prevalecem a hostilidade e o ciúme (são os dois planos da História a que nos temos

referido repetidamente)15 que tornam a situação política do mundo uma prolongada “

guerra fria”, na qual toda a sociedade acaba por se envolver. O sentimento básico da

maioria das pessoas hoje em dia parece ser de profunda confusão em moral, fins, valores

e motivos”16.

Haverá quem possa negar a validade, o realismo, das observações da Sra. Langer?

Quanto à “ guerra fria” a que ela fez referência, não nos parece consistisse na existência do

simbólico “Muro de Berlim”, então ainda de pé, como símbolo, para muitos dos que

continuam a dizer-se “progressistas” e “avançados” além, é claro, de democratas, da

barreira entre o resto da humanidade e a fração que representaria o seu inexorável futuro.

Segundo supomos, referia-se a ilustre figura do moderno pensamento filosófico

americano, mais especialmente, e para repetir as suas próprias expressões, ao fato “do

sentimento da maioria das pessoas hoje em dia, parece ser de profunda confusão em moral,

fins, valores, e motivos”. Como observa o leitor, trata-se de lutas que se travam no íntimo

de cada um, com reflexos dentro dos lares, das oficinas, por toda a parte. Uma guerra de

causas profundas de cuja natureza e de cuja própria existência, procuram manter afastadas

as consciências das pessoas, enquanto os egoísmos as afogam na confusão e na balbúrdia,

em que apenas surgem pretextos pueris e análises epidérmicas, sustentando a perplexidade

geral, que faz a maioria, no mínimo ficar paralisada pela referida perplexidade, causada

15. Comentários do Autor.16. Grifos do Autor.

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pela diferença entre o que se diz e o que se faz, prevalecendo, segundo Michael Novak, já

por nós tantas vezes citado, idéias sobre realidades que as desmentem. A compreensão do

porquê se sustenta quadro tão desalentador, entretanto, exige um mergulho ainda mais

profundo na História que, esteja certo o leitor, nos pouparíamos de fazer, como

pouparíamos a sua paciência, caso nos parecesse possível a identificação dos motivos reais

de tanto sofrimento, sem a realização do mergulho em causa.

I.3 – Aprofundando, ainda mais, o mergulho

Quando mencionamos o problema dos limites do medievo, embora não existindo

rigorosa concordância entre todos os autores, admitimos que não seria possível situar o seu

início antes do esboroamento do império romano, ocorrido no século V da era cristã; nem

além, no máximo, do século XV da mesma era, eis que o início do chamado Renascimento,

todos concordam em situar no século seguinte.

Reportemo-nos, portanto, ao quadro que seguiu-se ao esfacelamento do poder do

grande império, ao menos nos aspectos que, de mais perto, importam aos objetivos desta

obra.

Todos sabemos da eficácia da administração romana, cujas estradas, por exemplo,

ainda hoje, causam admiração pela diligência com que foram construídas e que se

constituíram nas artérias principais de circulação de pessoas e de mercadorias na Europa

daqueles dias. Com a queda do grande império, porém, daquelas artérias desapareceu o

gládio das Legiões, que igualmente diligentes, garantiam com o seu poderio, a segurança

nas áreas sob sua vigilância e responsabilidade. De outra parte, é necessário mencionar,

que ainda ao tempo do poder romano, quando as suas Legiões partiam para dar combate a

forças inimigas, atrás delas, como das referidas forças, marchavam os que, não sendo parte

nas motivações do conflito, desejavam, apenas, negociar com umas e com outras. E

comerciar, como em nossos dias, visando lucrar nas transações realizadas. Desaparecido o

poderio do império, tribos germânicas começaram a deslocar-se do norte para o sul do

continente. Tais tribos, do ponto de vista dos cidadãos da Roma imperial, bárbaras, eram

de notória belicosidade e não traziam projetos de mudanças de sentido civilizacional

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renovador, mas apenas o desejo de apoderar-se dos espaços e riquezas que já não tinham a

barreira do poderio militar que acabara de desaparecer.

Por outro lado, ninguém ignora que o Cristianismo, que surgira no Oriente Médio,

mais precisamente na área hoje representada pelo Estado de Israel (tudo isso sem

preocupação de grande rigor, mas apenas para situar, geograficamente, em grandes linhas,

o que queremos expor à consideração dos leitores), ao tempo a que nos estamos referindo

ao aludir ao deslocamento das tribos germânicas, já iniciara a sua obra de expansão

evangelizadora, deslocando-se em sentido contrário, do sul para o norte do continente

europeu. E os evangelizadores foram tão bem inspirados que, longe da tentativa de

eliminar a aptidão e o gosto para o manejo das armas dos seus catecúmenos, cuidaram de

coloca-los ao serviço da nova ética e da nova moral, conseqüentes ao sentido fundamental

da mensagem da nova fé, no cumprimento da missão de “propagá-la por toda a Terra”.

Assim, guerreiros germânicos, agora cristãos, passaram a colocar as suas lanças e

as suas espadas a serviço da nova ética e dos novos sentimentos a que haviam aderido as

suas mentes e os seus corações. Em torno das suas residências, portanto, começaram a

surgir áreas de tranqüilidade e segurança, em que buscavam abrigar-se com suas famílias,

agricultores e pastores, de vez que, desaparecida a ordem imposta pelas legiões, em

número crescente, pululavam bandos de malfeitores e salteadores, diante dos quais os

pobres camponeses não tinham defesa. Os malfeitores, porém, sabiam que a residência do

cavaleiro cristão, atrás de cujos muros muitas vezes passaram a viver outros tantos

convertidos à nova fé, dispunha de meios e de vontade, que trariam, certamente, risco às

suas empreitadas criminosas. E já agora, é possível que o leitor comece a perceber o que

queríamos dizer, quando falávamos, anteriormente, de vassalagem e, até, de servidão,

voluntárias, em um tipo de relação, predominante, de lealdade e proteção.

Mas, e a cota da produção que o servo da gleba era obrigado a entregar ao seu

senhor? Entende-se agora que, basicamente, destinava-se à manutenção dos cavalos deles,

das suas armas, da sua subsistência e da de seus irmãos de armas e de fé. Nenhum homem,

sabemos, é perfeito; mas estamos nos reportando aos primórdios do Cristianismo, e a

personagens convertidos pelo que ele representava. Haverá, pois, algum absurdo em supor

que, embora não perfeitos, as suas motivações eram, do ponto de vista do coração,

compatíveis com o quadro que, em largas pinceladas, estamos expondo à análise de quem

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venha a ler estas linhas? Lembra-se o leitor de que, anteriormente, fizemos alusão ao

interior despojado dos castelos medievais, bem diferente do fausto de palácios de épocas

posteriores, que não são criticadas de modo tão sistemático e tão rigoroso?

Então, retomando o fio da nossa exposição, as primeiras aglomerações começaram

a formar-se em torno das habitações dos cavaleiros cristãos e constituíam-se, de início,

quase que exclusivamente, de camponeses. Rapidamente, porém, juntaram-se a eles

pessoas de maiores haveres, de vez que, por tal motivo, haviam passado a ser alvos

preferenciais dos assaltantes da época. Com o correr do tempo, porém, os rudes

camponeses começaram a verificar que as atividades comerciais a que se dedicavam

aquelas pessoas eram mais rendosas e menos, muito menos, sacrificantes, do que o amanho

da terra e o apascentar dos rebanhos.

Mas, quem eram aquelas pessoas, e que tipo de comércio realizavam? Elas eram, ou

seus descendentes ou discípulos, os que, anteriormente, haviam seguido as tropas em

marcha para confronto militar, sem optar por nenhum dos litigantes, desejosos, apenas, de

fornecer-lhes o de que necessitassem, auferindo lucros pessoais nas transações realizadas.

Por isso, eram mais ricas; por isso, corriam agora mais riscos, por parte dos salteadores ;

por isso, buscavam abrigar-se à sombra, ou nas proximidades dos muros das residências

dos cavaleiros cristãos os quais, detentores da força, representavam o que poderíamos

chamar de “poder político” que, mais tarde, bem mais tarde, viria a concentrar-se no

Estado, único titular do poder coercitivo sem o qual, o direito consignado nas leis não tem

eficácia. Àquele tempo, não podemos falar de Estado; nem mesmo de Íeis mas, sobretudo,

de costumes: uns, sancionados pela nova ética; outros, por ela condenados. Entre estes, os

que pretendiam legítimo ou, melhor dizendo, justo, que o comerciante, comprando algum

bem, conseguisse vendê-lo, sem nenhuma modificação, a um seu semelhante, por preço

maior do que aquele que havia pago, surpreendendo a ingenuidade do comprador ou, pior

ainda, aproveitando-se de alguma sua necessidade urgente e aflita.

Na hipótese em causa, a ética do cavaleiro e dos seus irmãos de fé, viam a imagem

dos vendilhões do templo, contra os quais se revoltara o próprio e amoroso Jesus. Ainda

uma vez, queremos repetir que não estamos julgando, mas apenas submetendo à apreciação

do leitor, informações que, deliberadamente, ou não, são sonegadas do seu conhecimento.

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Tratava-se, de fato, no que tange às maneiras de apreciar as atividades comerciais,

não apenas de divergências superficiais, mas do próprio modo de ver o fato econômico, em

suas funções e em sua natureza. Acreditavam os garantidores da nova fé, na necessidade

moral e social de submeter as atividades econômicas a princípios da ética a que haviam

aderido as suas consciências e os seus corações. É que, crendo verdadeiramente que o

homem era criatura de Deus, “feita à Sua imagem e semelhança”, tiravam daí a origem e a

grandeza da sua dignidade. Para eles, o homem era, segundo teólogos medievais, menção

feita por Hughes, em sua obra extraordinária “Ascensão e Decadência da Burguesia”, “a

moeda espiritual do reino de Deus, pois que o seu valor provinha de trazer o cunho da

imagem do Criador”. Hoje, é claro, tal “moeda” poderá parecer distante das realidades que

a maioria considera práticas.

Propomos, porém, as seguintes perguntas à inteligência de quem no momento nos

lê : Parece prudente a desvinculação do mundo das atividades econômicas, dos alicerces de

uma ética nobilíssima, de origem fantasiosa, ou não, para entregá-las ao entrechoque dos

egoísmos, açulados, exclusivamente, para a conquista do ter e do ter cada vez mais? Não

parece razoável levar em conta, que a capacidade do homem desejar, querer, ambicionar, é

praticamente ilimitada, sendo, porém, muito restrita, a capacidade de efetivamente, possuir

o que venha a ter? Será pouco sensato supor que a felicidade é uma sensação, não uma

coisa objetivamente mensurável? Será insensato imaginar que as tensões e os conflitos

existentes em um mundo interior sacudido pela tempestade de paixões abalam, como o

disse Suzanne Langer, a subcorrente de sentimento que todos temos, e de cuja paz depende

a tranqüilidade de cada um? E será absurdo imaginar que a tranqüilidade é componente

importante, senão indispensável, da sensação de felicidade?

São perguntas sobre cujas respostas, supomos, vale a pena refletir. Sobretudo em

uma situação ou, melhor dizendo, em um período da história da civilização a que

pertencemos, em que o que temos chamado “espaço cultural” se encontra sob o que

costumamos designar como “interferência cultural”, por analogia ao que acontece a um

receptor de rádio cujo seletor de freqüências esteja defeituoso. A partir daí, o referido

receptor passa a amplificar, não sons harmoniosos, agradáveis e compreensíveis, mas uma

algaravia de ruídos, silvos, estrondos, guinchos, ininteligíveis e incômodos. Daí, a

perturbação da subcorrente de sentimento a que se refere Suzanne Langer, por nós citada

anteriormente, e cuja perturbação constitui-se em fator de desarmonia, de perplexidade, de

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insegurança, tudo isso contribuindo, como componentes subjetivos, para o aumento de

sofrimentos que, indiscutivelmente, são, hoje, muito mais intensos e extensos, do que

poderiam ser.

No que tange ao medievo, alguns aspectos de cujos primórdios estamos neste

momento oferecendo à consideração do leitor, mencionamos, anteriormente, o caráter

suspeito de atribuir-se, especialmente a ele, ângulos deploráveis da conduta humana que,

como já ficou evidenciado por meio de alguns exemplos recentes e muito expressivos, não

foram peculiares ou exclusividade dele, como tantos, por falta de informações isentas,

imaginam. Por nos ocorrer neste instante, acrescentaremos mais um desses exemplos: o

caso de Giordano Bruno, condenado à fogueira, como herege, pela Inquisição. Muito

provavelmente a maioria esmagadora dos que já ouviram mencionar o nome dessa vítima

do fanatismo, supõe ter sido ele supliciado na Idade Média; e não sabe que o intelectual

rebelde e brilhante, talvez o pensador filosófico de maior brilho da Renascença, não do

medievo17, pois morreu em Fevereiro de 1600, portanto, nos primeiros meses do século

XVII, antes de ser considerado herético e defensor do panteísmo, fora monge dominicano.

Espírito audaz e homem corajoso, dissentiu de aspectos que diziam respeito à Filosofia e à

maneira de entender a religião defendidos pela Magistério da Igreja a que pertencia e,

rebelde, preferiu deixá-la, abraçando o calvinismo - para, pouco tempo depois, dissentindo

também, de certos aspectos do pensamento do ascético, severo e ortodoxo Calvino, ter se

sentido obrigado a deixar a Suíça.

Brilhante, rebelde, corajoso, o fanatismo inquisitorial o queimou - mas isso,

repetimos, no início do século dezessete. Aliás, o fanatismo será sempre perigoso, pelo

radicalismo e imprudência da conduta dos que se deixam fanatizar. Assim, fato que é

pouco divulgado, entre outros, foi queimado por ordem de Calvino18, o brilhante e rebelde

intelectual Miguel Serveto, que com ele não concordava.

Se nos for permitido, gostaríamos de realçar fato de todos conhecido, no seio de

nossa cultura, mas ao qual não se tem dado o necessário realce, como elemento

indispensável a uma visão holística da realidade, como a que, a despeito das nossas

limitações, estamos nos esforçando por oferecer à análise dos que venham a ler esta obra.

Assim, páginas atrás, foi realçado, nos alicerces da cultura a que pertencemos - embora a

esta altura, já gravemente desfigurada - está o episódio da Queda, constante do livro do

17. Grifos do Autor.18. Grifos do Autor.

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Gênese, em conseqüência da qual, a natureza do homem passou a ser palco de uma

contradição permanente, entre o Bem e o Mal. Aquela que, em sua epístola aos Gálatas, o

“apóstolo dos gentios”, caracteriza dizendo: “os desejos da carne são opostos aos do

espírito, e estes aos da carne; pois são contrários, uns aos outros”, e passa, depois a

descrevê-los.

Ora, os cavaleiros cristãos do início da Idade Média, evidentemente os possuíam, a

uns e a outros. Mas a conversão os fazia, é claro, esforçar-se, em sua atuação, para

realizarem o que, supunham, os salvaria, os faria dignos do sacrifício do Cristo ou, pelo

menos, não tão indignos dele. A ambição, a avareza, o apego às riquezas que “a ferrugem

destrói, e as traças comem” tinham muito a ver com a atividade econômica centrada no

lucro, e não no atendimento das necessidades do seu agente ou das de seus dependentes ou

dos seus semelhantes em geral. Mas, dissemos linhas atrás, que desaparecido o gládio das

legiões das estradas da Europa, e, em sentido mais amplo, a ordem imposta e temida que

ele representava, as áreas de maior segurança passaram a ser as das vizinhanças das

residências dos cavaleiros feudais, que rapidamente começaram a povoar-se com

agricultores e pastores, aos quais se juntaram, prontamente, os comerciantes que

continuaram a exercitar as suas atividades, no mesmo espírito com que eles ou

antepassados deles as haviam exercitado, no tempo dos exércitos que marchavam para se

darem combate: a obtenção de lucros, os maiores possíveis. Tudo isso já foi mencionado

anteriormente.

O que queremos acrescentar agora é que, pelos motivos vistos, estabelecia-se, desde

então, uma oposição de interesse entre tais comerciantes e os que passaram a aumentar-

lhes o número, também já mencionados, e a autoridade que estava nas mãos dos senhores,

adeptos da nova ética e daqueles que os haviam convertido à fé de que ela era resultante.

Chegou, pois, o instante de repetir, qual era a designação dada às residências dos

cavaleiros, em que iam surgindo as primeiras aglomerações humanas, mais tarde

constituindo-se em vilas e cidades. Chamavam-se “burgos” e, dai, provem a palavra

“burguesia”, cuja conotação econômica, em nossos dias, não é feita referindo-se a

lavradores, pastores, assalariados, mas aos que exercitam a atividade econômica, visando

essencialmente o lucro. Isso, em uma visão que, parece-nos, não deve ser minudente, de

vez que as minúcias nos levariam à necessidade de digressões que nos afastariam, neste

trecho da nossa exposição, da linha central em que nos estamos concentrando, e que é a de

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deixar entrever alguns dados que, segundo supomos, são importantes para que se possa

compreender a demolidora crítica orientada, e nem sempre com realismo, para o fim de

atribuir a um dado período da História da civilização ocidental, o caráter de período

trevoso, sinistro, perverso, do Ocidente.

É que, desde o início, a propósito do fato econômico, estabeleceu-se uma antinomia

de tendências e de interesses, entre os que desejavam exercita-lo sem peias, que lhes

pareciam contrárias à satisfação do que desejavam ter, e os detentores do poder coercitivo,

enfeixado nas mãos dos cavaleiros convertidos e dos seus mentores espirituais, os

sacerdotes que os haviam levado à conversão. Estes últimos, sacerdotes católicos eram,

àquele tempo, os únicos sacerdotes cristãos existentes, de vez que a Reforma, de Luthero e

de Calvino, só veio muito mais tarde, à altura, já, do século dezesseis. Claro que a

antinomia apontada, a princípio foi algo surdo, subterrâneo, face mesmo ao fanatismo

religioso que, como vimos, durou até muitos séculos depois. Quantas idéias, tendências e

sugestões, porém, surgissem, capazes de enfraquecer a autoridade que embaraçava o “livre

exercício das atividades comerciais” - e se vê já aí, fala-se de “liberdade”, não de ambição

ou ganância - observação que fazemos, não na intenção de defender o irrealismo de que a

Economia pode desenvolver-se na ausência de qualquer expectativa de vantagem pessoal -

mas na de entremostrar como terá sido, e continua a ser, difícil defender o bem comum,

quando tal defesa, ao menos à primeira vista, supõe, em certa medida, a prevalência do

altruísmo contra o egoísmo - e quando em favor deste último falam, para usar a linguagem

do apóstolo Paulo, “os apetites da carne”, tão próximos e tão vigorosos, que o próprio

grande apóstolo, queixa-se deles, quando diz: “Ai de mim, que nem sempre faço o que

quero, mas o que os meus membros exigem!”

O leitor, inteligente, já entendeu que, no contexto da oposição surda de interesses a

que nos estamos referindo, de fato, tudo quanto contribuísse para enfraquecer o poder

coercitivo que já mencionamos, constituir-se-ia em algo cuja divulgação, embora lenta e

perigosa, pareceria útil aos agentes da atividade econômica, partidários do móvel central

no lucro; e seria facilitada por poder realizar-se, quase sempre, em nome da liberdade...

De fato, pelos exemplos, já citados, do grande apóstolo que, mesmo ele, queixou-se

da pressão dos apetites próprios da natureza carnal, é muito compreensível que, tudo

quanto a eles tente contrapor-se, oferece ensejo para que se estabeleça uma conotação entre

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tais tentativas, e uma disposição, pouco simpática, de restringir a liberdade. Mas, uma

coisa é a liberdade como conceito em plano, digamos, metafísico, em que o referido

conceito é precisamente o que tem como atributo característico, o de não sofrer restrições.

No plano, porém, da realidade concreta, é fácil entender que o quadro é bem outro. A

sociedade, que é indispensável ao pleno desenvolvimento das potencialidades humanas,

impõe, para que seja harmoniosa, limites bem nítidos ao seu exercício. Além disso, no

quadro da nossa cultura, como conseqüência da base que, essencialmente, a fez brotar, o

referido exercício deve ter um sentido de finalidade. Porque, como todos sabemos, no

citado quadro se inscreve uma diferença perfeitamente nítida entre o Bem e o Mal.

Diferença que se tem tentado toldar, para colocar em lugar dela um relativismo moral

extremamente perigoso, como o advertem as Escrituras, ao dizerem: “Sejamos homens

livres; mas não como os que falam de liberdade para ocultar a própria malícia”.

O exercício da liberdade é nobilíssimo e diz respeito à dignidade essencial da

criatura humana que, não fora a Queda, a que já nos reportamos mais de uma vez, e está

consignada no livro do Gênese, dispensaria a limitação que estamos submetendo à

consideração pela inteligência do leitor, de vez que, aí sim, a natureza humana não

conheceria a existência do Mal, não podendo, consequentemente, ser atraída e pressionada

pelos seus apelos. Talvez para a surpresa de muitos, e no cumprimento do que, em espírito

de serviço, nos comprometemos a tentar fazer, obviamente com as limitações impostas

pelas nossas precariedades, citaremos, a propósito do tema neste momento em discussão,

um autor medieval, que viveu e produziu no século XII - bem adiante dos primórdios do

medievo que estamos enfocando, mas ainda bem dentro dele, que às vezes tentam

prolongar, absurdamente, até o final do século XV senão ainda mais adiante. O autor em

questão, João de Salisbury, nascido na Inglaterra, no início do século XII, possivelmente

entre 1115 e 1120, foi um dos mais ilustres intelectuais da época, tendo sido, entre outros,

discípulo de Abelardo, de Alberico de Reims, Roberto de Melun, Guilherme de Conches, e

Simon de Poissy. Dentre suas obras, as mais importantes do ponto de vista histórico e

filosófico, foram, sem dúvida, o “Metalogicus” e o “Policraticus”.

Neste último trabalho, figuram os seguintes, e, para nós, muito expressivos

conceitos: “A não ser a virtude”19, nada existe mais esplêndido do que a liberdade, se é que

de fato se pode separar a liberdade da virtude... A virtude nunca pode ser plenamente

atingida sem a liberdade, e ausência de liberdade significa carência de virtude em toda a

19. Grifos do Autor.

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sua perfeição. Por conseguinte, o homem é livre na proporção das suas virtudes, e à medida

em que ele é livre, determina o que suas virtudes podem realizar”.

Como se vê, trata-se da idéia, não de restringir, em sentido negativo, o exercício da

liberdade; mas de enobrecê-lo, subordinando-o à virtude. O que nos parece, salvo melhor

juízo, inteiramente compatível com os fundamentos da nossa cultura, e garantia maior de

que o referido exercício, descompromissado com a noção de Bem, a que se relaciona a

virtude, o que acontece quando a concepção de liberdade é tida como um ideal que se

esgota em si mesmo20, uma espécie de pretexto para que, em seu nome, indiferentes à

distinção entre o Bem e o Mal, possam os homens dar expansão a todos os seus apetites,

mesmo os mais egoísticos.

A célebre expressão que em uma espécie de tentativa frustra de justificar a

“malícia”, a que se referem os Evangelhos, tantos usam: “a liberdade de cada um acaba

onde começa a liberdade do outro”, que, no fundo, exprime, em termos jurídicos, a ainda

mais conhecida “o direito de cada um acaba onde começa o direito do outro”, um instante

de reflexão evidencia que são, ambas, em profundidade, destituídas de consistência. Basta

que se pergunte, por exemplo, em qualquer dos dois casos: E onde começa a liberdade, ou

o direito, do outro? O leitor percebe que não haverá resposta racionalmente aceitável, a não

ser: onde acaba a do primeiro, a qual, como é fácil perceber, deixa o problema dos limites

absolutamente intocado. Como intocado permanece, ao menos na cultura a que

pertencemos e na qual todos somos viajantes efêmeros em busca de uma existência

espiritual eterna, cuja conquista depende da observância, inclusive no que toca à liberdade,

da regra básica de toda a ciência moral: o Bem deve ser praticado; o Mal deve ser evitado.

Qual Bem e qual Mal? Os que, sempre referindo-nos aos alicerces da cultura a que

pertencemos ou que, ainda insistimos em dizer que pertencemos, apontam e ensinam.

Assim como se o Criador, em Sua misericórdia, à criatura que fez à Sua imagem e

semelhança, a despeito da desobediência do primeiro casal, quisesse apontar o caminho

para a sua restauração. Portanto, por aceitar como verdadeira a visão a que nos estamos

referindo, o pensamento característico do período medieval supomos possa ser resumido,

no que tange ao exercício da liberdade, em admiti-lo prioritariamente existente, não para

que os indivíduos em suas efemeridades, busquem usa-lo para a consecução dos seus

objetivos egoísticos, mas para a realização dos pertinentes ao Bem, cuja fonte era, àquele

20. Grifos do Autor.

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tempo a maioria acreditava, a Providência. Ainda uma vez - e perdoem-nos a monotonia,

repetimos que estamos tentando expor. A validade das idéias e hipóteses expostas, pertence

aos leitores julgar. Não que tentemos escusar-nos de assumir, na dimensão pessoal, que as

aceitamos como válidas. Apenas não levamos a nossa presunção ou a nossa prepotência ao

ponto de imaginar que o que supomos adequado ou verdadeiro, o seja obrigatoriamente,

pelo simples, fato de nós o supormos tal.

Todos somos seres dotados de razão, e também por sermos, segundo supomos,

filhos de um mesmo pai, devemo-nos mutuamente, entre outras coisas, respeito.

Mas, voltando ao fio anterior desta exposição, chegamos a assinalar, no ponto em

que o interrompemos que, devido à ética dos primeiros tempos do medievo, em que

prevalecia o direito costumeiro, manifestou-se, prontamente, uma oposição de interesses

entre os que entendiam que a atividade econômica, para possuir sentido, incentivo e

expandir-se, devia ter como móvel central a obtenção de lucro por parte dos que a

praticavam em posição, digamos, de liderança, e os que julgavam pecaminosa tal

motivação. Estes últimos, já vimos, representados por quem detinha o poder decisório, e a

capacidade de, pela força, se necessário, fazer obedecidas as decisões tomadas. O referido

poder e a citada capacidade, também já dissemos, estavam enfeixados em mãos dos

moradores dos burgos e dos seus mentores espirituais, representados, somente, antes do

século XVI, no qual verificou-se o cisma do Cristianismo do Ocidente, pelos sacerdotes

católicos, obedientes ao papado. E sublinhamos que, nada obstante os riscos de fazê-lo, e a

precariedade dos meios de propagação das idéias, quantas parecessem contribuir para

enfraquecer a capacidade de coagir, representariam fatores coincidentes com os interesses

que se sentiam prejudicados.

Vejam os leitores que não estamos tentando dar dimensão individual aos atores do

que operava no seio da História daqueles tempos. Inclusive, também já ficou registrado

que o rigorismo excessivo, por utópico, de uma época de fundamentalismo religioso,

realmente constituía-se em entrave ao desenvolvimento das atividades de cunho

econômico. Os que as exercitavam, é razoável imaginar, não estavam tocados por tal ardor

fundamentalista e, sem dúvida, acreditavam sinceramente, que eles tinham aptidão

particularmente eficaz, para o desempenho de ações, cuja amplitude lhes era cerceada. A

propósito, parece caber aqui, mais uma vez, a ponderação sobre as inconveniências do

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radicalismo, pois que, na outra extremidade do que acabamos de apontar, está o exagero da

desvinculação daquelas ações, de compromissos com valores inatos, ou prévios, que viriam

a ser negados como algo existente, pelo “pai do empirismo”, John Locke, por sua vez um

dos inspiradores do ceticismo de Hume e, sem dúvida, um dos maiores vultos do

liberalismo, pela influência do seu pensamento sobre o de Thomas Jefferson, o principal

líder da Revolução Americana de 1776; bem como pela que exerceu sobre o de Jean-

Jacques Rousseau, tão importante sobre a Revolução Francesa de 1789.

São dados citados com tão grande antecipação, para que a paciência do leitor seja

aliviada, no sentido da orientação do nexo existente entre os fatos e tendências mais

recuados e outros, mais recentes e mais facilmente ligados aos disparates dos nossos dias,

em que uma capacidade enorme de produzir bens materiais e melhorar a qualidade de vida

dos homens, coexistem com a miséria extrema reinante em muitas áreas do mundo - uma

forma de violência que muitos se negam a aceitar como tal - e com as formas mais

evidentes e explícitas dela, bem como com a degradação moral que vem destruindo a

instituição familiar, multiplicando as taras e os vícios e orientando as rotas do tráfico

sinistro das drogas, do 3o para o 1o mundo, que o é, apenas no sentido material. Coisas

assim é que estamos tentando - e Deus sabe com quais sacrifícios - oferecer à análise dos

que venham a ler-nos. Para contribuir, na medida que esteja ao nosso alcance, para que nos

previnamos todos dos efeitos de análises epidérmicas e pueris, e por isso mesmo tantas

vezes geradoras de ilusões.

E como se não bastasse a superficialidade a que acabamos de referir-nos e que

contribuem para a sua periculosidade, acrescentam-se interesses que prosperaram à sombra

de equívocos que, é compreensível, a prosperidade assim constituída não deseja ver

elucidados. E não é só; há também o que chamaríamos de “passionalismo ideológico”, de

índole política, filosófica, religiosa, em qualquer caso, gerador de preconceitos que

dificultam a objetividade das interpretações.

Linhas acima, repetimos o que já havia sido assinalado anteriormente, sobre o dado

consistente no poder coercitivo do medievo estar em mãos dos cavaleiros feudais e dos

sacerdotes católicos que lhes haviam incutido a nova fé. O que eqüivale dizer que, em

diferente medida, no largo período medieval, misturam-se as autoridades secular e

religiosa, no sentido clerical, em qualquer das duas expressões, objetivamente

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representadas por seres humanos, com as suas fraquezas, os seus erros, os seus acertos, os

seus vícios, como as suas virtudes. Os vícios e maldades, sempre mais veementemente

criticados, de maneira desfavorável, nos que se revestem do múnus sacerdotal. Os

cavaleiros medievais que ao tempo da nossa infância e da nossa adolescência, povoaram as

lendas mais douradas, regiam-se pelo Código da Cavalaria.

Este, mesmo através da caricatura que de seus heróis romanceados, foi objeto da

obra do romancista Miguel de Cervantes, na celebrada figura de D. Quixote, deixa entrever

que o louco “Cavaleiro da Triste Figura”, ao confundir as atividades da camponesa que

estaria, como é usual dizer-se em nossos dias, “fazendo amor”, em circunstâncias insólitas,

com algo que se seus olhos viram, mas o seu coração não percebeu, trai o idealismo, sem

dúvida exagerado, mas não indigno, de cujo idealismo não participava, a figura prosaica e

terra-a-terra de Sancho Pança. O exercício do poder, como se sabe, é desvirtuador das

melhores intenções humanas. Não terá sido por outra razão, talvez, que quando o “Pai da

Mentira”, tentou corromper o próprio Jesus, fê-lo, segundo o relato bíblico, levando-o a

subir a um alto monte, de cujo cimo mostrou-lhe o esplendor de todos os reinos da Terra,

oferecendo-os ao Salvador se este, prostrado, o adorasse. Por isso, pelo exercício do poder

temporal compartilhado por cavaleiros e sacerdotes, ao longo de cerca de mil anos21, não é

difícil imaginar quantos pretextos, muitos válidos, se ensejaram aos que pretendiam

debilitar o poder que não estava em suas mãos: os que, no fundo, a par dos pretextos,

mesmo quando procedentes, o que desejavam era livrar-se da ameaça que lhes parecia

embaraçante de suas atividades econômicas.

Hoje, por exemplo, é comum a suposição, inteiramente em desacordo com a

verdade histórica, de que o papado detinha um poder tão absoluto e incontrastável, que a

sua intolerância, no domínio, por exemplo, cultural, exercida por intermédio do famoso

“índex”, proibitivo da leitura e circulação de obras consideradas impróprias pelo

Magistério da Igreja, era evidência do seu gosto pelo exercício abusivo e despótico do

poder. Na verdade, desde os primeiros tempos, surgiram no seio do Cristianismo

tendências que o referido Magistério considerava conseqüentes a doutrinas falsas, quando

não heréticas. E foram muitas, tantas que seria, supomos, inoportuno tentar enumerá-las

todas, no momento em que o que desejamos significar é que o papado não desfrutava de

situação tão confortável, em termos de poder, a ponto de fazer crer que seria desnecessário

o referido “índex”; e, mais tarde, o célebre “imprimatur”.

21. Grifos do Autor.

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Geralmente, os que mencionam o que imaginam a “desnecessária censura”, entre

tantas e tantas dificuldades para manter acesa e fazer crescer, a àquele tempo, luz

bruxuleante do Cristianismo, não mencionam a influência do império otomano, pujante

militar e culturalmente, em largo período do medievo, a ponto de, em vasta manobra de

pinças, colocar pé na Eurásia - a Turquia, mesmo européia, bem como tantas das ex-

repúblicas soviéticas, ainda hoje são de população predominantemente muçulmana - sendo

que, no braço da pinça a que nos estamos referindo, as forças do Islam só foram parar nas

planícies de Moacz, na hoje Hungria, e o próprio castelo de St. Ângelo, não escapou de

bombardeio sarraceno. No outro braço da colossal manobra, a bandeira islamita, como é de

conhecimento geral, triunfou na península ibérica, sendo que por cerca de cento e

cinqüenta anos, o Mediterrâneo transformou-se em uma espécie de lago onde só

navegavam em segurança, as embarcações permitidas pelas galeras da esquadra

maometana. Mas, inicialmente, dissemos que o poderio do império otomano não era só

militar, mas também cultural; e uma das heresias combatidas pela hierarquia católica, foi a

denominada “averroísmo”, designação tirada do nome de grande estudioso árabe de

Aristóteles, estudioso cujo nome por extenso, era Abu-al-Walid Ibn Ahmad Ibn Mohamed

Ibn Rushd.

Tão extenso que, foi abreviado, possivelmente por facilidade fonética, para

Averróis; e, daí, averroísmo. Pois saiba o leitor que, por acaso ainda não esteja informado a

respeito, que o estudioso de Aristóteles a que nos estamos referindo, esforçou-se por

afeiçoar o pensamento do filósofo de tão grande influência entre os eruditos católicos

daquele tempo, às características do seu próprio e peculiar modo de ver o mundo e o ser

humano. E foi assim que desagradou, tanto aos católicos quanto aos muçulmanos, ao

defender a eternidade da matéria e a não imortalidade da alma. Por tal motivo, o califa AI

Mansor o condenou à pena de exílio no Marrocos. Antes de falecer, pediu Averróis para

ser sepultado em sua terra, a Espanha22, mais particularmente, na cidade de Córdoba em

que nascera. Mas, oriundas do próprio paganismo, já se haviam manifestado no mundo

cristão tendências consideradas perigosas ou heréticas, como o gnosticismo, designação a

que correspondiam várias doutrinas e práticas religiosas, propagadoras de idéias segundo

as quais existiriam conhecimentos ocultos, ou herméticos, quase sempre marcados por uma

visão panteísta do mundo. Tratava-se, talvez, do pensamento pitagórico, bem como do

panteísmo neoplatônico, de feição emanatista, sobretudo presente na obra de Plotino e de

Amônio Sacas.

22. Grifos do Autor.

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Assim, longe de tranqüila a manutenção e a expansão da fé cristã, era ela ameaçada

por “idéias subversivas”, e por poderio militar adverso, ameaças, em certos aspectos, talvez

mais perigosas do que as existentes em forma aguda, em nossos dias, sobretudo ao tempo

da chamada “ guerra fria”. E, na medida em que cresciam as aglomerações urbanas, e

aumentava o número dos que se sentiam oprimidos por uma ética, para eles, abusiva e

prejudicial, um dos aspectos para caracterizar a opressão, foi o que Mac Fadden, em sua

obra “A Filosofia do Comunismo”, designou como “liberalismo intelectual”. No que

consistia ele ? Naquele que, aos olhos de hoje, justificar-se-ia plenamente: o livre exame de

textos, independentemente da avaliação da Igreja católica; inclusive daqueles do

paganismo, considerada a lentidão das transformações daquela época, ainda muito

próximo. E a reivindicação, é claro, podia ser feita, em nome da liberdade.

Ocorre, porém, que hoje, com a vantagem que o tempo transcorrido oferece, em

termos de perspectiva histórica, de sua amplitude e da isenção que enseja e propicia, não é

difícil entender que, com o chamado “livre exame” dos textos pagãos, a par do

enfraquecimento de autoridade que até ali fora capaz de impedi-lo, seria impossível negar

que tomaram novo impulso no seio do Cristianismo, concepções que contribuíram para

fortalecer dúvidas capazes de gerar outros tantos questionamentos à autoridade do

Magistério da Igreja, questionamentos e dúvidas a que o autor que citamos há pouco, Mac

Fadden, denominou de liberalismo religioso o qual não tardou a produzir frutos que o

mesmo autor designou como liberalismo político. Por que? Porque, como já foi exposto

antes, a autoridade, primeiro dos senhores feudais, depois dos reis - com a observação de

que somos, no curso deste trabalho, obrigados às vezes, a saltos muito grandes no tempo,

deixando registrados, apenas, os dados que nos parecem essenciais ao cumprimento da

tarefa que nos propusemos, de realizar um esforço, a ser apreciado quanto à sua validade,

pelos que venham a ler-nos - sofria um abalo.

O “liberalismo intelectual”, via enfraquecimento da fé, e da autoridade,

transformava-se no “liberalismo político” - sempre nos utilizando da linha de raciocínio e

das expressões de Mac Fadden. Claro que liberalismo, aí, não tem as características

formais dos nossos dias. O que se quer dizer é que, como a autoridade dos senhores dos

feudos e dos reis, era legitimada e tornava-se incontestável pela sanção da autoridade

religiosa, na medida em que se enfraquecia a fé, enfraquecida ficava a autoridade

eclesiástica e com tal enfraquecimento, como que se introduziam, sutilmente, fendas nos

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tronos reais. É em tal sentido, supomos, que Mac Fadden fala dos “liberalismos”

mencionados anteriormente, inclusive o designado, com as ressalvas expostas, como

“liberalismo político”.

Nós, particularmente, admitimos conforme menção anterior, a existência de dois

planos da História: um, o que resulta da natureza decaída do homem, com a sua

concupiscência, seu egoísmo, suas injustiças, e as lutas e sofrimentos que resultam de tudo

isso; outro, é o plano da Providência, às vezes difícil de discernir, pelo menos por olhos

distraídos ou toldados pelo fanatismo ou pelos preconceitos. Assim, quando em sua ânsia

de lucro, tantas vezes a qualquer preço, muitos buscaram enfraquecer a fé, e com ela a

autoridade que os incomodava, fizeram-no, sempre que possível, divulgando e

prestigiando, não somente inverdades e fantasias mas, também sempre que possível, falhas

e erros que outros praticavam, a pretexto de defender idéias nobres, porque já se haviam

deixado embriagar pelo exercício do poder, aquele mesmo com que Lúcifer tentara

corromper e perverter o próprio Messias. Assim, ninguém ignora o quanto o orgulho pode

tornar despótico o poder dos soberanos e deturpada e cruel, a virtude de tantos sacerdotes.

O Grande Inquisidor da Espanha, Torquemada, homem do século XV, mas

símbolo, para muitos, da “crueldade medieval” - crueldade que, em exemplo que citamos

anteriormente, perdurou até a segunda metade do “século das luzes”, o século XVIII - em

seu delírio de poder e em seu fanatismo religioso, chegou ao ponto de apontar como

suspeitos de heresia, nada menos do que figuras como as de Therezinha de Jesus e Inácio

de Loiola, o fundador da Companhia de Jesus, ambos hoje ocupando a honra dos altares,

canonizados como vieram a ser pela Igreja a que pertencia, e julgava defender

adequadamente, o terrível inquisidor. Então, não temos dúvidas quanto à existência de

desvios e abusos de que se valeram para os seus próprios fins, não propriamente para

corrigi-los, os adoradores inconscientes na maioria das vezes, do Bezerro de Ouro. Mas

não temos dúvida, também, de que as suas atividades de denúncias de erros e abusos

cometidos, em outro plano, dificultaram o exercício das práticas denunciadas, com isso

tendo continuidade, ainda que à custa de sofrimentos que poderiam ser evitados, o

propósito da Providência. Repare o leitor que na visão que acabamos de expor à sua

consideração, fizemo-la preceder da ressalva de representar ela algo em que pessoalmente

cremos.

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E por isso conseguimos manter a esperança, ainda que diante do quadro

constrangedor do mundo em que estamos vivendo neste final de século.

O fato, porém, é que se abusos e equívocos não houvessem acontecido, o

estabelecido pelos costumes continuaria a ser aceito com maior naturalidade, menos

ressentimentos e menos conflitos do que os que vieram a multiplicar-se e a agravar-se, ao

mesmo tempo em que começava, sutil, a instalar-se o ceticismo. Claro que, em face deste,

os impulsos decorrentes da natureza animal do homem, pelo menos em termos relativos,

tomavam-se mais fortes. É que o citado ceticismo começava a fazer empalidecer, na mente

e no coração daqueles em que se havia introduzido, a noção do pecado e do castigo que

poderia ser eterno, em que anteriormente as pessoas acreditavam firmemente. Sendo assim,

com o pensamento dos grandes filósofos pagãos, especialmente os produzidos pela Grécia

e por Roma, começava a acentuar-se a sedução dos costumes que imperaram ao tempo do

esplendor das duas culturas, de sentido fortemente lúdico e hedonista, já agora visto com

menos temor, pelos que começavam a ter abalada a fé anteriormente abraçada, e em

virtude da qual, antes haviam aceitado, sem relutância, a ordem vigente e as decisões das

autoridades que a mantinham. Com menos palavras, e por mais chocante que seja dize-lo,

começavam a ser, a pouco e pouco, reintroduzidos no Ocidente, as inclinações e hábitos do

paganismo.

A despeito de nossas reiteradas advertências acerca de que estamos relatando o que

nos parece historicamente mais verdadeiro, seja-nos permitido, a esta altura, como indício

de ausência de facciosismos, recorrer a um autor declarada e manifestamente liberal, o Sr.

Pennigton Haile, em sua obra “Raízes Filosóficas da Democracia e do Comunismo”. A

coincidência de visão é tão grande, que mesmo a nós nos surpreendeu quando em busca,

conscientes da nossa insignificância, fizemos, para atenuar o impacto que, sobre muitos,

sentimos que haverão de causar algumas das idéias expostas, em frontal contradição com

arraigados preconceitos e, nos deparamos, no autor e obra citados, com as seguintes

expressões: “Pois dentro do período histórico da Era Cristã, tem o homem ocidental vivido

à luz de três grandes visões. Primeiro, o sonho confortador do período medieval, no qual as

esperanças do homem se concentravam no céu, e seus temores no inferno23.

“Rebelando-se contra ele no “Século das Luzes”, a visão brilhante e estimulante de

uma sociedade fundada na liberdade pessoal. Nessa sociedade o homem guiado pela luz da

23. A liberdade com sentido finalístico. (Nota do Autor)

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razão, e liberto de qualquer autoridade predeterminada, eclesiástica ou civil 24, haveria de

decidir qual o grau e natureza do controle político necessário à proteção da liberdade. Foi à

luz desta visão que se formaram os Estados Unidos da América”.

Como pode verificar o leitor, maior franqueza não seria possível, na confissão

subjacente da visão de Protágoras, que queria o homem como medida de todas as coisas.

Igualmente, subjacente, como seria de esperar-se, a prevalência do direito positivo sobre o

direito natural, a rejeição de qualquer autoridade predeterminada, que o próprio pagão

Cícero criticou em “De Legibus”, dizendo que “se todo o Direito fosse constituído, apenas,

das leis, elaboradas sem quaisquer compromissos superiores externos à sua elaboração,

isso equivaleria à atribuição aos legisladores da faculdade de transformarem a virtude em

vício, o erro em verdade, o crime em ação meritória”; da mesma maneira como, para citar

autor mais recente, o professor Radbuch, de Heidelberg que, positivista do Direito,

converteu-se ao jusnaturalismo ao verificar, no problema da anterioridade entre o Estado e

as leis, que algo devia existir, fora e acima de um e de outro, como tem assinalado Mestre

P. Galvão de Sousa, grande jusnaturalista patrício.

E parece-nos curioso verificar que a, ao menos para nós, chocante franqueza com

que se exprimiu Pennigton Haile, ele não o fez de maneira leviana ou em conseqüência da

falta de informações. Ao contrário, muito longe de primária ou caricata, como é tão

comum identificar entre imprudentes que lembram muito as expressões do poeta Pope, a

análise de Pennington Haile se aprofunda de modo arguto e competente, até o pano de

fundo, ou o alicerce, sobre o qual existiu a sociedade medieval que, diga, se de passagem,

em seus cerca de mil anos de duração, representou período de tempo aproximadamente

duas vezes maior do que o transcorrido desde o chamado Renascimento, até os nossos

dias25. Segundo Haile, o extremado idealismo de Platão, que minimizava a importância dos

objetos do mundo apreensível pelos sentidos ou, melhor dizendo, das sensações obtidas a

partir do mesmo, em relação ao mundo das idéias, onde a razão permitia chegar a formas

perfeitas, sobre, por exemplo, Beleza, Justiça, Amizade, Amor, serviu para à concepção

que, no domínio da especulação filosófica, os doutores da Igreja estavam lutando para

introduzir no Ocidente, da existência de um mundo perfeito e imutável, o reino dos céus,

em contraste com o reino deste mundo, cheio de precariedades e imperfeições.

24. A liberdade como ideal que se esgota em si mesmo, com os perigos conseqüentes e já manifestados claramente. (Nota do Autor)25. Grifos do Autor.

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Como, porém, o platonismo nunca conseguiu esclarecer de maneira satisfatória, as

relações entre o mundo das sensações e o das idéias, tomava-se difícil estabelecer uma

explicação para os nexos entre o mundo em que vivemos, e o reino celestial. Daí, a

influência que, à altura do século XIII, vieram a ter as idéias, expressas principalmente na

“Summa Theologica”, de S. Tomas de Aquino, estudioso profundo de Aristóteles, cujas

concepções como que superavam as do platonismo, como harmonização entre as

imperfeições do mundo e o que pode ser concebido pela razão. Não existiria uma diferença

intransponível entre o que os sentidos podiam perceber e o que aquela pode elaborar.

Ademais, era básica, em Aristóteles, a convicção da existência de uma “finalidade” no

Universo. Para o estagirita, não havia como aceitar a concepção de Demócrito para quem,

tudo quanto acontece no referido universo é resultado de acaso e da necessidade. Acaso e

necessidade, seja-nos permitida a digressão, que serviu de título a uma obra publicada na

França, no começo da década de 70, por um cientista de nome Jacques Monod. O referido

cientista, professor no “Collége de France” dirige, ou dirigia na época, o serviço de

Bioquímica Molecular, por ele criado no Instituto Pasteur.

Em 1965, havia Jacques Monod recebido, em virtude de trabalhos realizados no

domínio de sua especialidade, o Prêmio Nobel de Fisiologia e de Medicina, que

compartilhou com dois outros cientistas, André Lwoff e François Jacob. E por que nos

permitimos fazer a menção, fora, ao menos, da cronologia da exposição que estamos

tentando oferecer à análise dos que nos leiam? A razão é que, convém não perder de vista,

uma das teses centrais desta obra, é a do cuidado que todos devemos ter, para que, por

imprudência, não sejamos manipulados pelo ocultamento de informações e, até, por vezes,

pela mais clara desinformação. O cientista que acabamos de citar, ademais de sê-lo, dos de

mais alto gabarito em sua especialidade, era militante destacado do Partido Comunista

Francês, que abandonou, e o fez público na obra há pouco citada, por entender que a

natureza dialética de todos os seres, como explicação para a atividade observada no

universo, base do Materialismo Dialético, alicerce de todos os socialismos de inspiração

marxista, era falsa. E tal entendimento não foi conseqüente a uma conversão espiritualista,

mas aos resultados a que chegou em suas atividades como cientista.

Entre outras conclusões, a de que a célula nervosa funciona “como uma máquina no

mais estrito sentido cartesiano”, sendo a mensagem nervosa transmitida “em um único

sentido”, não havendo como conceber-se a referida transmissão em sentido oposto. Além

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do que, em virtude da “lei dos contrários”26, nega a Materialismo Dialético o “princípio da

identidade”, mas a Física moderna afirma a absoluta identidade entre dois átomos que

estejam no mesmo estado quântico, sendo esse, um dos seus postulados fundamentais.

O autor, repitamos, não abandonou o materialismo. Ao contrário, a sua obra, a que

fazemos referência neste momento, o que não significa a sua apologia, é de reafirmação da

sua convicção acerca da existência exclusiva da matéria. Ele repudiou o materialismo

dialético, exatamente a base que dava aos seus devotos a convicção de serem os únicos

possuidores da interpretação correta do universo, da única e insubstituível postura

científica, o que reduzia os demais, ainda cegos para tão maravilhosa “verdade”, a

alienados, facilmente transformáveis em “instrumentos da reação”. Acreditamos não estar

exagerando, ao dizer que, dada a importância do Sr. Monod, e as suas convicções

filosóficas anteriores, o aparecimento do seu livro “Le Hasard et la Necessité”, deveria ter

repercutido intensamente entre nós, com larga divulgação. Mas não foi o que aconteceu.

Algum tempo depois, surgiu a tradução para o português editada por uma conhecida

empresa editorial, mas o significado da “heresia” do Sr. Monod passou, praticamente, em

brancas nuvens. Bem mais tarde, temos a esperança de oferecer à consideração dos leitores

no que consiste a chamada estratégia de Antonio Gramsci.

Por enquanto, fica o indício comprobatório das distorções que efetivamente existem

e podem dificultar, ou mesmo impedir, uma apreciação correta da realidade e dos

acontecimentos que nos cercam, mesmo às pessoas mais argutas e mais inteligentes, não

somente, mas principalmente ensejada por aquela estratégia. Encerrada a digressão,

entretanto, esperamos, não tão inútil quanto deverá ter parecido à primeira vista, voltemos

ao medievo e, nele ao pensamento de Aristóteles e à influência que, no campo da Filosofia,

exerceu sobre a “Filosofia Perene”, de S. Tomás de Aquino. Víramos há pouco, que para

Aristóteles, existiria uma “finalidade” para tudo de que se constituía o universo. A referida

“finalidade”, estaria inscrita no âmago de todos os seres, e o estagirita a designava como

“forma”, que encontra resistência, na inércia da matéria, o que a impede de realizar a sua

finalidade de maneira perfeita. Para o filósofo grego, os seres se hierarquizam, na medida

em que neles se realize a sua finalidade interior. Nos que não possuem vida, tal realização

se encontra no grau mais baixo de uma escala ascendente, em cujo topo se encontra o

homem, que é dotado de consciência e cuja alma, tem noção de qual seja a sua finalidade,

daí advindo para os seres humanos uma responsabilidade de natureza moral.

26. O Universo, com os seres criados que o integram, é dialético. Não, porém, como o Materialismo Dialético afirma, dialético emsentido de oposição e de luta, mas no sentido de cooperação ou complementação. (Nota do Autor)

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Bem mais adiante, nesta obra, é nossa intenção expor aos que nos leiam, algumas

das mais avançadas concepções da ciência moderna, e nexos patentes com concepções, até

o momento, apenas afloradas. Mas, prossigamos em nossa caminhada ao longo da História,

desde já sinalizando, aos que possam estar com a sensação de que estamos sendo pouco

“objetivos”, ou pouco “práticos”, que cada um de nós é sempre, querendo, ou não, “a

última palavra do passado e a primeira do futuro”. Na ignorância do contexto a que

pertencemos e que não nasceu conosco nem foi criado por nós, como entender o presente,

desprezando o passado de que ele resultou? E como prever e planejar para o futuro, com

um mínimo de propriedade, sem entender com a clareza possível, o significado do

presente? A não ser que não atribuamos importância alguma aos riscos dos enganos e

engodos de que, ao menos em grande parte, resultam os problemas e os sofrimentos dos

quais, entretanto, todos nos queixamos - o que, supomos, não seria coerente ou sensato.

Retomemos, entretanto, a idéia de que todos os seres se hierarquizam em escala

crescente, indicativa do grau, cada vez maior, em que aproximam-se do propósito, ou

finalidade, da “forma” interior, presente em todos; escala, como vimos, em que o homem

situa-se no topo, de vez que a alma, que nele representa a “forma”, tem consciência da sua

finalidade, decorrendo disso, a existência da nossa responsabilidade moral, inexistente nos

demais seres. Na linguagem tomista, representativa do que poderíamos considerar como

um refinamento da concepção hierarquizante de Aristóteles, a “forma”, ou princípio de

finalidade, significaria que todas as coisas, por sua própria natureza, estão referidas a

Deus27. De tal modo, deixava de existir o fosso intransponível, conseqüente ao idealismo

platônico para, diferentemente de supor-se a separação absoluta entre o reino dos céus e

este mundo imperfeito, o que era razoável inferir-se era que o Criador está, em tudo e em

todos os momentos, a revelar a própria presença. Já o dissemos um pouco antes, mas não

nos parece descabido repeti-lo uma vez mais: certos aspectos da Física moderna servem de

indícios, ou, quem, sabe, de evidência, do que acaba de ser afirmado.

Convém acrescentar, porém, que embora possa parecer a alguns, que se trata de

concepção panteísta, na verdade não se trata de panteísmo. Cada coisa, porém, a seu

tempo. Neste ponto da exposição, o que desejamos realçar é o que foi realçado pelo

próprio autor que estamos citando, ao dizer que a percepção do sentido finalístico das

coisas é apreensível pela inteligência limitada do homem e, portanto, está ao alcance da sua

razão. Mas não perfeita e totalmente, nem igualmente por todos os homens. O que, em

27. Grifos do Autor.

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sentido amplo, não possa ser apreendido pela razão humana, poderá sê-lo pela fé e pela

Revelação. Desse ponto, já teríamos chegado a um passo da aceitação de que a percepção

da finalidade pela via racional, era mais acessível, em tese, aos homens instruídos,

enquanto aos iletrados torna-se mais rica a estrada da fé.

Não que, necessariamente, a instrução, no sentido de preparo acadêmico, seja, por

si só, garantia de facilidade para a percepção do Criador, nas coisas por ele criadas;

freqüentemente, pelo contrário, pode tornar-se entrave ou dificuldade, sobretudo pela via

do Orgulho; como também a ignorância não é, por si só, algo garantidor da percepção da

“forma”, a que se referia Aristóteles. O que desejamos fazer entrever ao leitor é que, a

compatibilização do Criador com o mundo por ele criado, e por intermédio do qual pode

ser percebida a Sua presença e o Seu propósito ou finalidade, não implicava em nivelar

todas as criaturas mas, ao contrário, em aceitar a existência de diferenças de percepção e

de, em termos humanos, responsabilidade moral. Embora na visão da Filosofia Perene,

todas as almas sejam iguais perante Deus, os homens não seriam iguais entre si, em sua

existência neste mundo. Como se vê, como a Igreja católica era, àquele tempo, a fonte da

difusão da fé entre os simples e, ao mesmo tempo, a guardiã da racionalização do que

ensinava junto aos eruditos, o tomismo era o fundo filosófico mais adequado à ordem

medieval, de que era a Igreja incontestável baluarte.

Mas, anteriormente, já tivemos a oportunidade de mencionar que, à luz da ética dos

primeiros séculos, estabelecera-se uma oposição entre ela e os agentes da atividade

comercial, desejosos de fazer motor central desta a obtenção de lucro; e como o poder de

impor o que parecesse adequado estivesse em mãos dos senhores feudais, adeptos da nova

fé, e dos seus catequizadores, tudo quanto surgisse, capaz de semear a dúvida e, com ela, o

entibiamento da fé e do poder que dela e de seus agentes, leigos ou clericais resultava,

passou a ser objeto de empenho em divulgar e em promover. Estamos, ainda uma vez,

repetindo idéias já mencionadas; e queremos explicar que não o fazemos pelo prazer de ser

maçantes, mas por entender que o tema é vasto e complexo, convindo aos que nunca

tenham cogitado antes de problemas do gênero, facilitar-lhes a tarefa de entendê-los,

repetindo, ao menos alguns dos pontos focais para a percepção do conjunto. O Sr.

Penningtos Haile, por exemplo, e este é um exemplo da importância de certas motivações

reais, não apenas alegadas28, com a sua habitual franqueza, admite, o que é inteiramente

verdadeiro, que Aristóteles jamais condenou a escravidão.

28. Grifos do Autor.

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De nossa parte, diremos que ele, não apenas não a condenou, como julgou-a

indispensável à democracia - o que não impede, note o leitor, a freqüência com que,

explorando o étimo da palavra, tantos continuem a afirmar, solenes e enfáticos, que “a

democracia nasceu na Grécia” acrescentaremos que o mesmo Sr. Haile, assim textualmente

se exprime, em outro trecho de sua obra: “A concepção medieval dava aos homens uma

base racional para a convicção de que o universo existe para um fim29 e que o homem é o

representante de Deus na Terra. É de suma importância observar, ainda, que ela fornecia da

natureza do homem um conceito que acentuava significação a cada um, um papel a

desempenhar no grande drama cósmico da existência de cada indivíduo; pois a cada qual

era dado progredir da melhor maneira que lhe fosse possível, sabendo que tinha por tríplice

palco a Terra, o Céu e o Inferno.

“Nunca teve o homem melhor alicerce para uma consciência acerca de sua

importância no universo e da sua responsabilidade no cumprimento da finalidade inerente

a todas as coisas30. A despeito de tudo quanto ganhou em termos de conhecimento

científico, e de domínio técnico sobre o ambiente, algo se perdeu quando desapareceu a

concepção medieval do universo, algo que havia dado ao homem um senso interior de

segurança, quase insubstituível”. Nem pense o leitor que o Sr. Haile é um adepto de idéias

medievais que, segundo ele, teriam representado um sonho, substituído por outro sonho,

simbolizado, dizemos nós, pela estátua que se ergue à entrada do porto de Nova Iorque: a

estátua da Liberdade, que não está ordenada a um fim externo ao homem e aos impulsos de

sua natureza contraditória, no dizer de um poeta, algo como uma mistura de lama e de luz.

E para que não se pense que estamos interpretando equivocadamente o pensamento do

autor em questão, citemos novo trecho de sua importante e, sobretudo, reveladora obra:

“Leão XIII continuava fiel à concepção aristotélico-tomista.

“É óbvia sua oposição a qualquer outra atitude. Mas o importante nestas suas

afirmativas é que os princípios que tão firmemente denuncia são exatamente aqueles nos

quais cremos tão apaixonadamente, nos quais se funda nossa nação e em defesa dos quais

seríamos capazes de morrer31”. Os princípios criticados por Leão XIII e que Haile apoiou

com tanta veemência, após transcrevê-los em seu livro, são os seguintes: “Esse pernicioso

e deplorável amor das novidades que o século XVI viu nascer, depois de haver primeiro

transtornado a religião cristã, em breve, por inclinação natural, passou à Filosofia e da

Filosofia a todas as camadas da sociedade civil . É a tal fonte que cumpre fazer remontar

29. Grifos do Autor.30. Grifos do Autor.

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esses princípios modernos de liberdade desenfreada32 (...) Eis aqui o primeiro de todos

esses princípios: todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma natureza, são

semelhantes e, portanto, iguais entre si, na vida prática. Cada homem é de tal maneira

senhor de si mesmo que, de modo algum, está sujeito à autoridade de outrem; pode, com

toda a liberdade, pensar o que quiser sobre qualquer assunto (...) Numa sociedade baseada

em tais princípios a autoridade é apenas a vontade do povo 33 (...)”(Encíclica Imortale

Dei).

O leitor julgará livremente da prudência dos princípios pelos quais o Sr. Haile é

capaz de dar a própria vida. De nossa parte, estamos expondo, não criticando e, portanto,

julgando. Em qualquer caso, parece adequado citar textualmente, como estamos fazendo

sempre, o autor, ao referir-se a alguns dos resultados já presentes, ao menos como

tendência, no período que seguiu-se ao medievo e que os historiadores costumam designar

como Renascimento: “Desapareceram a docilidade medieval na aceitação da autoridade 34

e a delícia medieval das complicadas e elaboradas explicações. Na literatura três novas

tendências são de se notar: interesse por este mundo mais do que pelo céu e pelo inferno;

uma apaixonada insistência em abordar todos os assuntos ; e um acentuado ceticismo em

relação à autoridade estabelecida. A todos era comum aquele carimbo da Renascença - a

determinação do homem de pensar por si mesmo35.”

E, mais adiante, sempre textualmente transcrito: “Soprava sobre o mundo ocidental

uma fresca aragem de inquietação. Suas conseqüências foram múltiplas. Mas,

fundamentalmente, todas elas se achavam vinculadas ao nosso próprio planeta, sua

amplidão e beleza e as possibilidades de uma vida melhor em sua superfície. Havia muitos

motivos para esta evolução do interesse do homem, do céu, que se cria estar lá em cima,

para a Terra que sabia achar-se em torno deles36.

“Houvera, em primeiro lugar a partir dos começos do século XV ou antes, a

redescoberta da arte antiga, com o seu vivo e franco amor da beleza terrena, cujas

conseqüências invadiram rapidamente a Renascença... A beleza da carne, da paisagem

floresce na pintura...37”

... “Paralelamente, haveria de se tornar inevitável uma certa inquietação frente à

autoridade estabelecida, e a discussão de todos os postulados até então admitidos”.32. Grifos do Autor.33. Grifos do Autor.34. Grifos do Autor.

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Como pode verificar o leitor, um autor entusiasticamente liberal, claramente

concorda com o espírito de rebeldia e a exaltação da razão humana, que já não queria

submeter-se a princípios preestabelecidos. Tudo isso, segundo ele, como características do

clima cultural do Renascimento.

Anteriormente, havíamos dito, e mais de uma vez, que já na fase característica do

medievo, se estabelecera uma oposição de interesses, no domínio das atividades

econômicas, entre os que as pretendiam livres de “qualquer princípio preestabelecido”,

valendo-nos das expressões de Haile, exatamente os que embasavam a ética dos que

tinham autoridade e a capacidade de faze-la obedecida em suas decisões. Diremos agora

que, à medida em que progredia o ceticismo, fortaleciam-se os interesses dos que,

compreensivelmente, queriam libertar-se do que julgavam prejudicial ao progresso de suas

atividades. E foi assim, na presença da tensão a que nos estamos referindo, que surgiu o

Nominalismo de William Ockham, a partir do qual intensificou-se a célebre “querela dos

universais”, também já antes mencionada, e que se tornara possível face aos inegáveis

exageros da escolástica, muitos de cujos adeptos chegavam ao ponto de negar a existência

dos seres constitutivos do universo que nos cerca, para supervalorizar os conceitos

universais elaborados pela nossa mente, por intermédio, sobretudo, da introspecção e do

pensamento contemplativo.

O Nominalismo, a cuja menção estamos voltando neste momento, para os leitores

que nunca se tenham ocupado anteriormente de assunto dessa natureza, haverá de parecer

algo por demais abstrato para ter qualquer importância ou efeitos sobre o que, em nossos

dias, tantos imaginam que seja, com exclusividade, prático. A esses, pedimos paciência e,

desde logo, garantimos que para outros, tem a referida visão epistemológica tal

importância, que chegam a dizer que, sobre a moderna civilização a que pertencemos, ele

representou algo mais importante do que o uso da pólvora, a invenção da imprensa e a

Reforma de Calvino e Luthero.

É que, embora em si mesma, a visão epistemológica nominalista de William

Ockham, um sacerdote inglês, de resto considerado moderada e, por muitos, mais

adequadamente designável como Conceptualista, negava os conceitos universais tão

valorizados pelos escolásticos, como coisas que não compunham o universo dos objetos

perceptíveis pelos sentidos humanos, de vez que não existem “objetos universais” na

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realidade em que vivemos, suscetíveis de apreensão pelos referidos sentidos. Seriam,

assim, “os conceitos universais”, algo existente apenas na mente de quem os concebia.

De nossa parte, embora não com o propósito de influenciar a opinião do leitor,

mesmo porque temos humildade suficiente para entender a nossa insignificância, diríamos

que, como sempre, os radicalismos, menos ajudam do que dificultam a percepção dos

significados que expressam com tanto ardor, como algo que, necessariamente, todos devam

aceitar como verdadeiro. Será assim no plano das relações entre a criatura e o Criador em

que, supomos e não hesitamos em confessá-lo mais uma vez, torna-se indispensável a

Revelação. Permita-nos, porém, não aprofundar, neste instante, a ponderação que

acabamos de fazer. Apenas para acrescentar, a propósito da alegada inexistência de

“objetos universais”, perceptíveis pelos sentidos, que nominalistas radicais, como

Ruscelino, considerava “flatus voces”, sons vazios, que não nos parece justificável tirar daí

a conclusão de não terem importância os “conceitos universais”, para nós muito maior do

que os nomes, as palavras, que os expressam. Lembramo-nos, neste momento, da obra

“Duas Cidades - Dois Amores”, em que Gustavo Corção, engenheiro por formação

acadêmica, politicamente socialista em sua juventude, mais tarde convertido ao

catolicismo, ao comentar a corrente epistemológica a que nos estamos referindo dizia,

entre outras coisas, que como conceito de validade universal, no campo da geometria

euclidiana, a palavra círculo designa o lugar geométrico de todos os pontos eqüidistantes

de um ponto comum, denominado centro.

Com tais características e outras, que lhe são conseqüentes, como o valor da

relação, em qualquer círculo assim conceituado, entre ele e o seu diâmetro, ser sempre o

mesmo e representar é pi (n) constante cuja expressão numérica aproximada é 3,1416, com

tais características, jamais será possível produzir um objeto material, perceptível pelos

sentidos, por maiores que sejam os cuidados empregados em sua fabricação. Tal objeto

poderá aproximar-se muito do conceito geométrico que expusemos de maneira resumida,

nunca igualá-lo. Mas, com base no universal que corresponde a ele, foram possíveis

grandes avanços em geometria, inclusive com as aplicações práticas que resultaram deles.

Então, longe de meros “sons vazios”, os universais têm papel insubstituível no

desenvolvimento do conhecimento humano. A querela, entretanto, dados os excessos,

sobretudo dos escolásticos radicais, despertou a atenção de muitos coevos, para a

importância, igualmente inquestionável, de aplicar-se o homem ao conhecimento do

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mundo exterior, dos seus fenômenos, e das relações imediatas de causa e efeito, que, em

tais termos, os produzem.

Ora, o nominalismo e a “querela dos universais” que ele suscitou, datam do século

XIV. A partir daí, o pensamento contemplativo, a introspecção e o método dedutivo de que

principalmente lançava mão, começaram a perder terreno para a extroversão das atenções

em direção ao mundo que nos cerca, passando a ser o melhor instrumento para conhecê-lo,

a observação direta dos seus fenômenos, cujas relações de causa e efeito, há pouco

mencionadas, deveriam ser estabelecidas, por intermédio da observação, servida do

método indutivo. Com isso, a preocupação dominante dos homens, de conhecerem o

próprio íntimo, partindo da concepção inquestionada da existência de uma vida que

transcendia a vida material, e que era de duração eterna, tudo decorrente da vontade de um

Criador, que a cada ser dera uma finalidade, e perante o qual seríamos todos responsáveis

quanto ao tipo de existência transcendente, de duração eterna - que poderia ser de

inenarrável bem-aventurança, ou de indizível sofrimento, aos privados da contemplação de

Deus - tudo isso empalidecia pela dúvida acerca do que até então fora aceito praticamente

sem relutância. Dúvida aliás, cada vez mais fortalecida pelos rápidos sucessos

conquistados pela humanidade, no campo do conhecimento do chamado universo material.

O ceticismo a que acabamos de referir-nos, se o somarmos aos erros e abusos

decorrentes da gradual desfiguração da conduta e dos propósitos de autoridades temporais

e eclesiásticas, a servirem de pretextos para os que desejavam, exatamente, enfraquecer-

lhes o poder, pode oferecer uma explicação para o caminho de transformações em que se

constituiu o século XVI, no qual teve início o chamado Renascimento. A figura de reis,

que a Igreja canonizou, como S. Luiz, que não foi outro senão Luiz IX, rei de França; de S.

Fernando, que não foi outro senão Fernando III, rei de Espanha, ou a do legendário rei

Arthur com os seus Cavaleiros da Távola Redonda (redonda porque, àquele tempo, o rei

era tido como “primeiro entre iguais”), foi sendo substituído pela de outros soberanos, não

tão virtuosos.... Hoje, certas mesas do poder, já tendem mais para a forma

aproximadamente elíptica, cabendo a cabeceira a personagens em direção aos quais

dirigem, se numerosas atenções, tantas vezes sorridentes... A existência de reis exemplares,

já fora substituída, como vimos, por outros tendentes ao exercício despótico do poder de

que dispunham, e com cujo despotismo, nem sempre, mas muitas vezes, compactuavam

hierarcas eclesiásticos.

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Tornava-se, é claro, cada vez mais simples, ou mais fácil, o crescimento da

influência dos que supunham não dever ater-se a atividade econômica, senão à obtenção

de lucros, quanto maiores, melhor. A autoridade religiosa, até ali, na Europa e no mundo

cristão, em mãos do catolicismo, sofreu no século XVI, a ruptura que resultou no grande

cisma do Cristianismo do Ocidente, ruptura expressa pela crítica contundente de Luthero e

pela do severo asceta João Calvino. Claro que a motivação de um como de outro, tudo

indica ter sido nitidamente religiosa. O que os levou à rebelião contra o papa e contra o

Magistério da Igreja que o apoiava, foi, principalmente, a visão de ambos de que a pureza

essencial do Cristianismo não estava sendo mantida adequadamente, mas posta a serviço

de uma intercalação abusiva entre as Escrituras e o povo, pelos que, delas, se pretendiam

exclusivos intérpretes autorizados e competentes. Não é este o lugar para analisar as razões

ou sem razões dos líderes da Reforma, nem teríamos nós autoridade ou procuração para

tanto.

O que parece fora de dúvida e importa à linha de raciocínio que estamos oferecendo

à consideração do leitor é que se as disposições das autoridades seculares, e as virtudes de

eficácia evangelizadora dos sacerdotes dos primeiros tempos, se tivessem mantido em

nível constante, os costumes sobre as quais se havia estabelecido o que de melhor houve na

ordem social do medievo, teriam se mostrado mais resistentes à influência, sempre

crescente, dos que pretendiam localizar como motivação central de suas vidas, a atividade

econômica visando essencialmente o lucro. Influência cada vez maior na sociedade,

inclusive, a ponto de suplantar a expressão fundiária da riqueza, base em que assentava o

poder dos senhores feudais. Crescia, assim, o poder financeiro, representado pela

acumulação dos lucros obtidos nas transações que os tinham como objetivo principal;

acumulação, por sua vez geradora de uma nova capacidade de pressão social, exercitada

pelos que, senhores daquele poder, estavam em situação de socorrer, tanto senhores feudais

necessitados eventualmente daquele tipo de apoio, quanto, mais tarde, até reis.

Estes representavam o Estado, resultante do declínio da autoridade típica do

feudalismo e do crescente poderio de cidades, com privilégios peculiares, resguardadores

dos interesses que, à altura em que nos estamos situando, já eram, nitidamente, da índole

do que, no período áureo do medievo, fora condenado e combatido. Uma reflexão um

pouco mais atenta verifica que o Estado era algo situado acima dos barões feudais

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representativos, àquele tempo, do que, em linguagem dos nossos dias, seria considerado

reacionário e conservador.

As observações, obviamente nada minudentes ou precisas, foram feitas com o

objetivo de fortalecer a linha de raciocínio adotada por nós até aqui, com os dois objetivos

principais, de alertar para a possibilidade, real, da existência do fenômeno da

desinformação, por um lado; por outro, como certos valores fundamentais do Cristianismo,

serão tanto mais eficazes quanto maior for a fé, a convicção na existência de um Criador,

que a toda criação, a todos os seres que a integram, atribui um propósito, uma finalidade.

Propósito e finalidade que, o Homem, feito, segundo o relato das Escrituras que constituem

a base da civilização a que pertencemos, à Sua imagem e semelhança, sabe existir. Por

sabê-lo, aliás, é que existem para ele, como tivemos oportunidade de assinalar antes, as

exigências da moralidade, assentes em sua lei fundamental: “o Bem deve ser praticado; o

Mal deve ser evitado”. Bem e Mal, como pode perceber o leitor, que não são objetos

perceptíveis pelos sentidos, mas noções que, no fundo da consciência, a criatura humana

reconhece como verdadeiras.

Sobre como levar uma vida na observância, o mais satisfatória possível, das

exigências dessa realidade, é o que se constitui em dificuldade, tão bem retratada nos

trechos que utilizamos anteriormente, em que o grande “apóstolo das gentes” estabelece as

características do que ele designa como obras da carne e as das que denomina obras do

espírito, depois de afirmar que os apetites de uma e de outro, opõem-se entre si. Trata-se de

conflito que o apóstolo citado confessa existir em seu próprio íntimo, ao lamentar que nem

sempre conseguia fazer o que desejaria, face ao clamor das exigências dos seus membros.

Ora, em tal terreno, a Ciência não tem o que dizer ou, ao menos, não tinha, até

pouquíssimo tempo. Cuidando de examinar os fenômenos do mundo material que nos

cerca, e de estabelecer as suas relações aparentes de causa e efeito, não pertence ao seu

domínio, ensinar, ou esclarecer como devem ser utilizadas, no plano moral, as leis

descobertas e o domínio sobre os fenômenos, que elas ensejam.

As cogitações de ordem metafísica é que podem elucidar tais problemas; mas,

como vimos, a maneira pela qual o fez o Cristianismo dos primeiros tempos, contrariou

interesses que já mencionamos e que respondiam, em tal ou qual medida, a apetites da

carne, ligados à avareza, forma de concupiscência, de maneira a que tais interesses

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puderam lutar, e muito freqüentemente, em nome da liberdade, a qual, alegada como ideal,

era apenas uma arma em mãos dos que pretendiam a adesão popular à conquista dos

objetivos egoísticos que alimentavam e aos quais servia de camuflagem a mencionada

liberdade.

Não se tratava da liberdade a que se refere a passagem do Evangelho que, de

maneira limpidamente clara, como vimos, ensina: “Sejamos homens verdadeiramente

livres; não como aqueles que falam de liberdade para ocultar a malícia”.

Neste momento, desejamos realçar que os que combatiam a existência de um

propósito em todos os seres, que a consciência humana sabe existir, nem sempre o faziam

ou, melhor dizendo, geralmente não o faziam, conscientes do significado profundo da sua

posição. Eles estavam apenas, agindo sob a pressão dos próprios objetivos, que julgavam

justos e que, em certa medida, efetivamente o eram. Mas o prestígio dado a quanto

enfraquecesse autoridade prevalecente no período característico do medievo, e, já no época

do seu acentuado declínio, contando com numerosos pretextos válidos, não podia deixar de

exaltar o Nominalismo. Disposição que, ao estimular o estudo dos fenômenos da natureza,

a ser feito pela observação direta de suas características, observação a gerar hipóteses

explicativas, estabelecer relações de causa e efeito, tudo tendo como principal mecanismo

de elaboração o método indutivo, inegavelmente foi algo que acelerou de maneira

estupenda o desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia, que hoje caracterizam a

civilização a que pertencemos. A civilização, não tanto a cultura, esta sob os efeitos

atordoadores do fenômeno a que aludimos em passagem anterior desta obra, denominando-

o “interferência cultural”.

É que os rápidos avanços científicos e tecnológicos, ao mesmo tempo em que

ampliavam com velocidade vertiginosa o campo de cada ciência, obrigava à subdivisão de

cada uma em especialidades que, por sua vez, continuam a subdividir-se, acarretando, a par

dos progressos sem paralelo desde então desencadeados, a perda de visão de conjunto,

anteriormente possuída pelos eruditos, do acervo global dos conhecimentos conquistados

pelos antepassados; mas, além disso, tais e tantos e, em muitos casos, tão maravilhosos

foram os progressos, que passou a desenvolver-se o Orgulho humano, que tão bem seria

expresso por Immanuel Kant, em sua “Crítica da Razão Pura”: “A humanidade alcançou,

por fim, a maioridade. O homem já não necessita de nada que não tenha sido elaborado

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pela sua razão!” Ora, embora lamentando a falta de detalhes e o saltar inevitável de etapas

que não seriam indispensáveis à compreensão do fio do que estamos desejando propor à

consideração pelas inteligências e o íntimo das consciências dos que venham a ler estas

linhas, a superestimação da capacidade da razão humana, embora não eqüivalendo nem

significando uma negativa formal acerca da existência de qualquer coisa transcendente à

matéria, e à existência de um Criador que atribui um propósito, uma finalidade, a cada

uma de suas criaturas38, nitidamente visava dispensar a aceitação de quanto resulte da

Revelação.

De outra parte, todos sabemos que o Iluminismo, sobretudo o francês, teve a marca

desse racionalismo. Que a Enciclopédia, por intermédio de várias de suas mais importantes

personalidades, sofreu a influência do indutivismo de Francis Bacon, introduzido no

continente europeu, sobretudo por vultos como Diderot, d'Alembert, d'Holbach, entre

outros; que a Revolução Francesa de 1789, tomou-se possível face a injustiças consagradas

na lei, que atribuía aos membros da aristocracia e do clero católico, privilégios que eram

negados a todos os demais: aos plebeus, não clérigos, que constituíam o chamado Terceiro

Estado. Ocorre, porém, que os plebeus não eram apenas os marginalizados, os pobres, os

miseráveis. Também eram plebeus os ricos burgueses que, no decorrer dos séculos, e pelas

razões centrais já expostas, haviam combatido o feudalismo. Ao tempo a que acabamos de

referir-nos, os burgueses, após conquistarem definição social e influírem na formação das

cidades e dos privilégios que deviam corresponder às suas características econômicas,

deram início, por intermédio delas, ao embrião dos futuros Estados, a serem dirigidos por

reis a que deviam submeter-se os senhores feudais, tão incômodos.

Ocorre, porém, que os referidos reis, tal é a nítida e dramaticamente retratada “pelo

apóstolo das gentes”, natureza humana, fechados nos círculos de sangue de suas dinastias,

recorriam ao dinheiro dos burgueses que o tinham, mas não lhes deferiam a consideração,

o respeito e, mais ameaçador que tudo, o acesso direto ao poder político. O projeto de

debilitamento da capacidade da ordem feudal entravar-lhes ou criar-lhes dificuldades ao

desembaraçado exercício das suas atividades centralizadas no objetivo da obtenção de

lucros, em certo sentido tivera sucesso. A crescente influência da ordem financeira, porém,

ao mesmo tempo em que minava o estatuto social da feudalidade, consolidava e fortalecia

a posição dos monarcas, cujos favores, que não eram sancionados pela ética social

remanescente, dependiam dos empréstimos de que necessitavam os representantes de

38. Grifos do Autor.

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importantes dinastias para a sustentação do seu fausto e dos conflitos que freqüentemente

travavam entre si. Tratava-se, pois, de sucesso instável, cuja consolidação passava a

depender de uma sanção moral inviável dentro da estrutura e dos conceitos predominantes

na sociedade medieval.

Persistia, portanto a despeito do novo “status” dos dedicados à atividade financeira,

das cidades que, de certo modo, haviam dominado os núcleos em torno dos quais se

haviam formado, dos Estados conseqüentes a elas, e dos reis sobre os quais podiam exercer

influência na forma já vista, persistia, repetimos, a necessidade da sanção moral, acima

mencionada. Como a inviabilidade de tal sanção devia-se à visão ética de origem religiosa

característica do feudalismo, acerca da natureza e finalidades das atividades econômicas,

supomos, e submetemos a suposição à apreciação do leitor, que já se pode identificar a

índole de uma tremenda revolução da qual, imaginamos que os contemporâneos não

tinham plena consciência, e que implicava na desvinculação da ordem social, de

compromissos eficazes com idéias e conceitos de índole religiosa. Começava aí, a

gestação de uma cultura fundamentalmente leiga39. Bem sabemos que a exposição feita até

aqui, complexa pela sua própria natureza, lacunosa pela extensão do período histórico que

se propôs abranger, padecente das insuficiências do autor, entretanto, esperamos, já

entremostra ao leitor que o que lhe parecera, talvez, não pertinente, ou pouco objetivo, na

verdade representa o mínimo absolutamente indispensável à compreensão, em

profundidade, do caos e dos sofrimentos, tantas vezes desnecessários, presentes neste final

de século.

Acrescente-se, ainda, que a extroversão dos esforços dos sábios, a partir, sobretudo

do Nominalismo, a par dos extraordinários benefícios que trouxe40, em virtude do domínio

crescente dos fenômenos e das forças naturais, postos a serviço da produção de bens com

os quais os homens jamais haviam sequer sonhado; dos avanços da medicina, tanto

preventiva quanto curativa, que ensejam hoje uma maior e melhor expectativa de vida e

dão, no sentido material, uma feição absolutamente sem precedente nos milênios

transcorridos desde as mais remotas profundidades dos tempos históricos, até o início do

século XVIII; a par de tantos e tão brilhantes resultados, entretanto, o Orgulho41 trouxe à

civilização hodierna, paralelamente, a falsa sensação de independência e autonomia, tão

enfaticamente traduzida nas expressões citadas e constantes da “Crítica da Razão Pura”.

39. Grifos do Autor, a trecho que considera de capital importância.40. Grifos do Autor.

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Daí, dessa perigosa euforia, o fenômeno antes apenas mencionado, quando falamos

da “interferência cultural” a que vem sendo submetido o Ocidente em geral, e as demais

áreas do globo, sujeitas à sua influência. É que, embora não o confesse expressamente, a

civilização ocidental moderna, desde há muito sofreu a superposição, aos valores

fundamentais que lhe deram origem, da secularização, da atitude de latitudinarismo que, na

prática, mostra-se indiferente, e cada vez mais contraditória, em relação a critérios que, de

fato, despreza ou pelo menos, não acha que deva obedecer. Usamos tal expressão,

“interferência cultural”, pelos efeitos assemelháveis ao que acontece a um receptor de

rádio cujo seletor de freqüências esteja defeituoso. A partir de então, o referido receptor já

não amplificará mais sons inteligíveis e harmoniosos, mas apenas silvos, guinchos e

estrondos ininteligíveis e incômodos. Em termos de cultura, a contradição entre o que se

confessa e o que se pratica, instalou a “interferência”, da qual resulta tamanha confusão,

que poucos se dão conta, p. ex., do absurdo representado pela pacífica aceitação do termo

“Renascimento” para designar o período que se seguiu, no Ocidente, à Idade Média. Sem

precisar voltar a argumentos anteriormente citados a propósito do medievo, basta

considerar que, com suas virtudes e seus defeitos, foi ele sem dúvida o período em que

princípios cardiais da mensagem cristã, mais influíram na ordem social.

Isto posto, cabe indagar: o que é que renasce, senão o que esteve morto ou

mergulhado em profunda letargia? Então, como a civilização que continua a dizer-se cristã,

pode aceitar sem discussão e repetir ao infinito, que depois das “Trevas Medievais”, o que

as sucedeu representou um renascimento? Sobretudo quando já mencionamos, e o leitor

julgará se com propriedade, ou não, os interesses que se opunham às exigências da ética

cristã - ressalvadas, é claro, as circunstâncias da época - ressalva que fazemos para que não

se possa supor que estamos desejando insinuar uma volta, hoje, em condições

profundamente diferentes, do modelo medieval. Mencionadas foram, também, . sobretudo

nas expressões insuspeitas de um liberal convicto, como Pennington Haile, o sentido

hedonista que, realmente, marcou o que se usa denominar Renascimento. Para reprisar

alguns exemplos, os Cavaleiros medievais, tão cruelmente caricaturados em d. Quixote,

ainda que sem a exagerada exaltação de suas virtudes e façanhas, feita nos romances que

levaram à loucura o “Cavaleiro da Triste Figura”, esforçavam-se por pautar a sua conduta

pelo exigente e generoso Código da Cavalaria, que os induzia a colocar as suas armas,

sempre a favor da justiça, na defesa do fraco contra o forte.

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Na Renascença italiana, os “Cavaleiros Andantes”, a que acabamos de referir-nos,

foram substituídos pelos “condottieri”, mercenários sempre dispostos a colocarem as suas

armas, não a serviço das causas mais nobres, porém ao de quem pagasse mais. Certas

jovens infelizes que se dedicavam ao exercício da profissão que alguns afirmam ser a mais

antiga do mundo, e que no medievo italiano eram designadas como “peccatrice”,

pecadoras, passaram a ser chamadas de “cortiggiani”, por entender o povo que o

comportamento delas assemelhava-se muito ao de diversas senhoras da Corte.

Uma obra literária daquele período que constituiu-se no que, guardadas as devidas

diferenças, seria classificado hoje como “best-seller”, foi de autoria de um certo Sr. De

Valla, e o título de tal obra, muito expressivo, era “De Voluptate”. Realmente, foi um

período de liberação de impulsos que, de fato, integram a natureza do homem42. Por isso,

foi sempre mais fácil aos interessados em reduzir a influência religiosa - e, depois da

Reforma, já não mais apenas da Igreja Católica, fazê-lo apresentando-se como defensores

da liberdade. Liberdade que, não estando dirigida a um fim externo e superior aos impulsos

contraditórios da natureza humana, como os ligados às várias expressões da

concupiscência, constitui-se em uma espécie de absurda e perigosa carta sem endereço e,

mais absurdo ainda, sem texto. Era o clima adequado aos interesses de quantos vissem uma

ameaça na forma pela qual se exercia a autoridade, sempre que estivesse ela fora do seu

controle e pudesse prejudicá-los. Em termos de obra política do Renascimento italiano,

todos conhecem o primor de cinismo, em nossos dias transformado no eufemismo

“realismo político”, mesmo quando se trata, não apenas de realismo, mas da utilização do

termo, como eufemismo para justificar a amoralidade, que se contém no “O Príncipe”, de

Nicoló Macchiavelo.

Em tal cinismo, não é difícil identificar a influência de Ulpiano, jurista pagão, para

quem “a vontade do príncipe é justa por ser a vontade do príncipe”. Já o “trevoso”

aquinatense, ao revés, séculos antes, do “renascido” Macchiavelo, havia afirmado: “Não é

o reino que pertence ao rei; é o rei que pertence ao reino”. E já vimos, em passagem

anterior desta obra, que um monarca posterior a Macchiavelo, Luiz XIV foi o autor da

célebre frase - “O Estado sou eu!”. O Renascimento, portanto, representou, não apenas,

mas certamente, em certa medida, a reintrodução do paganismo no ambiente cultural do

ocidente cristianizado. As próprias artes, não tanto a pintura, pois na antigüidade clássica

não se havia desenvolvido ainda a produção das tintas indispensáveis, mas a escultura e a

42. Por motivos que serão expostos em parte ulterior desta obra. (Nota do Autor).

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arquitetura, de fato ganharam novo impulso e novas influências, sobretudo relacionadas ao

corpo humano. Da antigüidade clássica do Ocidente, sobretudo da Grécia e de Roma, são

comumente divulgadas mais encômios do que restrições. Pelo menos, ninguém, supomos,

será capaz de afirmar que deles são realçadas mais os defeitos do que as qualidades que

tiveram, ou a elas, nem sempre com justiça, se atribuem.

Assim, quem já não ouviu dizer, ou leu, que “a democracia nasceu na Grécia?”

Mas, ao que saibamos, os filósofos do esplendor da civilização helênica e, de maneira mais

ampla, os grandes pensadores daquela civilização, à exceção, talvez, de Aristóteles e

Platão, não se ocuparam, detidamente, com as questões relacionadas à organização política

da sociedade. Ao menos não parece terem se ocupado com elas os grandes vultos da

“Escola Itálica”, como Pitágoras, como Lisis, como Arquita de Tarento; ou os chamados

jônicos antigos, como Empédocles, ou Heráclito, ou Anaxágoras; ou os jônicos modernos,

como Anaximandro e Anaxímenes; ou os sofistas, como Protágoras ou Górgias. De fato, os

grandes nomes do pensamento político da civilização helênica foram Aristóteles e Platão,

com as suas famosas “Política” e “República”, respectivamente. E antes de que algum

leitor, que não tenha tido interesse, ou oportunidade, para informar-se melhor acerca de

certos aspectos da evolução político-social da Grécia e, por isso, possa imaginar que a

democracia - tal como ela é promovida hoje - nasceu ali, seja-nos perdoado fornecer alguns

dados, ainda que resumidamente, do que, efetiva e objetivamente, a História pode

informar-nos a respeito.

Nas primeiras cidades gregas, o governo foi monárquico, fato que perdurou em

Esparta que, no particular, e em certos termos manteve-se fiel por muitos séculos, às suas

origens. Àquele tempo, os reis exerciam a sua autoridade sobre clãs e pequenas

comunidades. A ilha de Ítaca, segundo observa Latapié, em sua “Consideraciones sobre la

Democracia”, era dividida em doze Reinos, sendo que Mecenas, Argos e Salamina

formavam reinos independentes. Com o passar do tempo, os reis de influência sobre

súditos mais numerosos, e que dispunham de maior poder, acabaram por impor a sua

autoridade sobre os mais fracos, que passaram a ser meros feudatários deles. De fato, e

Latapié o assinala na obra há pouco citada, Homero afirma que Ulisses era “rei dos reis de

Ítaca”, enquanto o legendário Teseu o era dos de Ática.

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Mas havia os grandes proprietários de terra, os latifundiários como seriam

denominados hoje, e que, à época, eram chamados eupátridas. Tais personagens, em geral,

eram descendentes de antigos chefes de clãs e, embora reunidos em torno do rei da cidade

que correspondia às suas origens, achavam-se colocados em camada social inferior à que

lhes coubera anteriormente. Por esse motivo, sentiram-se motivados para coligarem-se

contra os reis os quais, ameaçados pelo poder dos eupátridas, buscaram aliar-se aos

trabalhadores assalariados e aos pequenos artesãos, que antes viviam afastados de qualquer

participação cívica. A despeito disso os reis foram vencidos pelos eupátridas, sendo

organizado, na ocasião, um governo nitidamente aristocrático, ainda que de feição

republicana. Foram criados, então, os cargos de Polemarca - que detinha o comando do

poder militar - e o de Arconte, magistrado chefe da vida civil. Mais adiante, nomearam-se,

ainda, seis Thesmotetes, encarregados, especificamente, da administração da Justiça.

Criou-se ainda, o “Colégio de Arcontes”, integrado por todas as autoridades que acabamos

de citar. Fenômeno parecido difundiu-se rapidamente, e a maior parte das cidades gregas

passou a reger-se por regimes nitidamente oligárquicos.

Eram repúblicas aristocráticas que se mostraram, segundo a obra clássica de

Croiset, “Les démocraties antiques”, “mais duras para os pobres do que haviam sido os

antigos reis, já que estes, detendo poder que pairava sobre todos, podiam desempenhar a

função de moderadores entre os interesses e defender a justiça”. Mais uma vez, vemo-nos

compelidos a pedir que, por favor, leve-se em conta que estamos apenas relatando

realidades que constam de fontes idôneas. O juízo sobre a validade do que elas possam

significar, cabe ao leitor. A observação, que mais uma vez reiteramos, visa corrigir

interpretações que não corresponderiam às nossas intenções, já em mais de uma

oportunidade sublinhadas, nem, portanto, ao respeito devido aos que nos lerem. As nossas

opiniões pessoais, quando absolutamente indispensável, as explicitaremos, com a ressalva

de que são pessoais - e ninguém é proprietário da verdade.

Segundo as “Consideraciones sobre la Democracia”, Latapié, diga-se a bem da

verdade, não se mostra favorável ou, ao menos não se mostra incondicionalmente

favorável a esse mito dos dias de hoje. Por tal razão, supomos, ousa acrescentar que com o

desenvolvimento do comércio marítimo - hoje dir-se-ia, com a ampliação e diversificação

do mercado - foi crescendo e se fortalecendo uma classe burguesa - na acepção em que

procuramos mostrar como, mais tarde, aconteceu, pela concentração de comerciantes em

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torno dos burgos - a “burguesia”, a que neste instante, nos estamos referindo sentia-se

prejudicada pela prepotência das autoridades da forma de república aristocrática que, em

traços gerais, descrevemos há pouco e, buscando aliar-se, muitas vezes, aos assalariados -

tal como haviam feito os reis ao se verem ameaçados pelos eupátridas, agora senhores do

poder nas repúblicas aristocráticas que sucederam as monarquias - geraram tantos conflitos

que a situação tornou-se insustentável. Para pôr termo à extrema violência reinante, as

autoridades constituídas e as lideranças “burguesas” chegaram a um acordo, segundo o

qual Sólon, um eupátrida, foi nomeado “Arconte”, a suprema autoridade civil, como já

vimos, comprometido com a elaboração de leis capazes de restabelecer a paz, tão abalada e

perturbada. A subida de Sólon ao poder, ocorreu, segundo registra a História, no ano 592

a.C. As famosas leis de Sólon puseram termo aos privilégios da aristocracia de sangue que

resultara da revolta dos eupátridas, ainda que a forma de governo por eles adotada, não

fosse monárquica, mas republicana.

A esta altura, para que o leitor julgue da procedência, ou não, do que vamos

registrar, ousamos dizer que, em ambas as transformações institucionais, a motivação real,

embora não confessada, foram interesses contrariados. No caso da segunda mudança, que

resultou, cm um primeiro momento, na legislação de Sólon, núcleo da famosa e tão

decantada democracia ateniense, ousaríamos sugerir a similitude, em certos aspectos, com

a revolução de 1789, na França, que tantos, até hoje imaginam teria sido impulsionada e

tornada vitoriosa pelos esmagados e oprimidos... É a liberdade-pretexto ou ferramenta, a

serviço, no plano do homem decaído, não tanto da Justiça, quanto do egoísmo.

No final do parágrafo anterior, tocamos em um dos pontos mais delicados da

História moderna, qual seja o significado mais profundo daquele movimento, que tem sido

muito deformado perante a opinião pública, e não de hoje, mas desde há muito tempo.

Pretendemos, permitindo Deus, voltar a esse tema específico, para propor à análise pela

inteligência e pela consciência dos que nos lerem, dados e perspectivas que, geralmente,

não são objeto de divulgação, e sobre os quais pesa, ao contrário, um pesado e, ousaríamos

dizer, suspeitável silêncio.

Por enquanto, e para que se entenda melhor, voltemos ao que, com tanta

generosidade, costuma ser designado como “Constituição de Sólon”. De fato, resultante de

um acordo entre partes desavindas, menos interessadas, segundo supomos, na realização da

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justiça, do que na defesa do que parecia precioso aos impulsos egoísticos de seus

integrantes, resultou das leis de Sólon, a divisão dos cidadãos em quatro classes, conforme

o montante dos bens materiais de que eram possuidores 43. Às três primeiras, foram

reservados os postos mais altos da sociedade; mas é verdade, que à última, composta pelos

mais pobres, foi garantido o direito, pela primeira vez na Grécia, de tomar parte na

Assembléia e nos Tribunais.

Na verdade, dos órgãos plurais que levam tantos, até hoje, a imaginar quase como

um absurdo, dizer-se que a democracia não nasceu na Grécia, ao menos segundo Plutarco,

tinha representação permanente do povo, apenas o Senado, composto inicialmente por

quatrocentos membros, cem por cada uma das quatro tribos. Mais adiante, de acordo com a

reforma introduzida por Clístenes, considerado, juntamente com Efialtes, líder de maior

“abertura”, como talvez se dissesse atualmente, o Senado passou a ser integrado por

quinhentos membros, porque Clístenes, admitindo a existência de não apenas quatro, mas

de dez tribos, reduziu a representação de cada uma, de cem para cinqüenta, resultando um

aumento do número total de integrantes do único órgão permanente, dentre os três

existentes, conforme visto. Para Plutarco, entretanto, o que Sólon pretendeu foi evitar que a

tumultuada Assembléia pudesse conhecer algum assunto, antes deste ser sido objeto da

apreciação do Senado...

De qualquer maneira, da Assembléia podia fazer parte qualquer cidadão da polis, e

para maior facilidade de compreensão, daqui para diante, solicitamos ao leitor que quando

nos referirmos à organização política que, ainda hoje, tantos consideram como berço da

democracia, estaremos nos reportando ao modelo ateniense, que teria alcançado o seu

apogeu ao tempo do governo de Péricles. Quanto à observação que consta dos comentários

de Plutarco, acerca da restrição de não poder a Assembléia discutir qualquer assunto, antes

de que, sobre ele, já se tivesse manifestado o Senado, deveu-se ao fato de que, embora na

Assembléia, que costumava reunir-se na praça do Mercado, a famosa Ágora ateniense, e

mais tarde, no teatro de Dionísio, no sopé da Acrópole, todos tivessem o direito de falar, na

prática só o faziam os chefes de partidos e facções, os demagogos e os oradores

profissionais. Talvez por tal razão foi que, segundo Heródoto, quando procurado por

embaixadores de Esparta, que queriam convencê-lo a atacar a democracia grega, teria

respondido Ciro, o Grande, que não o preocupavam os povos que determinavam uma praça

para que os cidadãos nela se reunissem, para o fim de tentarem se enganar uns aos outros.

43. Grifos do Autor.

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Apenas relatando, não julgando, parece fora de dúvida ser historicamente

verdadeiro que, embora Demóstenes, o grande orador, tivesse reiteradamente tentado

convencer a Assembléia, da necessidade da preparação de Atenas, para enfrentar a ameaça

de Filipe da Macedônia, memoráveis discursos que integram as “Filípicas”, a Assembléia

manteve-se insensível até quando, já demasiadamente tarde, e já se tendo tornado

impossível negar a existência do perigo há tanto proclamado pelo grande orador,

atabalhoadamente dispôs-se a tomar medidas que se mostraram ineficazes, diante de Filipe

e de seu filho Alexandre, que derrotaram as mal preparadas forças de Atenas e Tebas

coligadas, na batalha de Queronea. A multidão que se reunia na Ágora, pelo clima

tumultuado e confuso que ali reinava, deixava-se sensibilizar mais facilmente pelos temas

que diziam respeito, não a um abstrato bem comum, mas pelos que, ao menos

aparentemente, trouxessem vantagens materiais para os cidadãos, considerados

individualmente.

Claro que tais vantagens, em última instância, com o correr do tempo, haveriam de

ameaçar as finanças públicas e foi assim que se criou a “eisfora”, uma espécie de imposto

sobre a renda, antes só existente, em caráter excepcional, em tempos de guerra, e que agora

passava a adquirir caráter permanente, estendida como fora, para os tempos de paz. Mesmo

o caráter permanente da “eisfora” não representou aumento de receita suficiente para

equilibrar as finanças; e como os gastos destinados às festas e diversões não puderam

jamais ser reduzidos, as despesas relativas à segurança foram sendo progressivamente

diminuídas o que, seguramente, além do talento guerreiro de Filipe e de Alexandre da

Macedônia, contribuiu para explicar a sua vitória em Queronea, confirmada mais adiante

pela alcançada por Alexandre, em Cranon. Quem sabe, explicava, também, as expressões

de desprezo que teriam sido proferidas por Ciro, o Grande, diante dm embaixadores de

Esparta.

O leitor há de lembrar-se de que, certos aspectos de realidades do período que, com

base no étimo da palavra, levam muitas pessoas a aceitar como verdadeira a afirmação de

que “a democracia nasceu na Grécia”, foram por nós anunciados, depois de afirmar que,

até onde saibamos, dentre os grandes vultos do pensamento grego, apenas Platão e

Aristóteles ocuparam-se, detidamente, com analisar os assuntos relacionados à organização

política da sociedade. Mencionamos, também, os mais proeminentes de várias escolas e

tendências, que àquela temática não se dedicaram. Deixamos, de mencionar, dentre tais

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tendências, a chamada “atomista”, atribuída a Demócrito e Leucipo. É que, na verdade,

acerca das concepções originais de Demócrito, nada chegou ao conhecimento dos pósteros,

a não ser na versão a elas atribuídas pelo poeta latino Tito Lucrécio Caro, em seu poema

“De Rerum Natura”, que igualmente não se ocupa com os problemas sobre os quais,

detidamente, se debruçaram Platão e Aristóteles. E fizeram-no em espírito que não

coincide com o entendimento que, hoje, é relacionado à palavra “democracia”.

Se não, vejamos: Na “Política”, do grande estagirita, considera ele, ser

indispensável ao funcionamento da sociedade, a existência de escravos, de vez que os

cidadãos que deviam incumbir-se dos complexos problemas de responsabilidade dos

ocupantes dos altos postos de condução dos assuntos da cidade não poderiam,

simultaneamente, ocupar-se com a realização de tarefas braçais exaustivas e

impossibilitadoras da reflexão demorada exigida para o trato adequado daqueles

problemas. Ademais, os trabalhadores braçais, exatamente pela natureza das tarefas que

deviam executar, exigentes de aptidão física, mas não de refinamento intelectual, por falta

deste, não seriam úteis, do ponto de vista social, caso devessem resolver sobre questões

que seriam pouco capazes de entender. Chega o grande filósofo ao ponto de considerar os

escravos como “instrumentos de trabalho”, que ele divide em duas categorias: a dos

instrumentos inanimados, como um machado, uma pá, e outros de mesma natureza, e os

“animados”, representados pelos escravos. Assim, para o autor de “Política”, os escravos

seriam propriedade dos seus donos, exatamente como as ferramentas ou instrumentos

inanimados a que foi feita referência.

De resto, no texto da obra a que nos estamos referindo, ao comentar os diferentes

tipos possíveis de organização política, classifica a democracia como uma “forma

deturpada de república”. Se ainda não bastassem os dados que acabam de ser mencionados,

é notória a maneira mordaz e nada elogiosa com que outro grego ilustre, Aristófanes, em

suas comédias, refere-se à democracia. Democracia, porém, tal como ele a via e analisava -

não na acepção em que a palavra é utilizada atualmente. Por isso, temos insistido tanto e

tão reiteradamente, em que as situações e, até, o significado das palavras, devem levar em

conta a época a que nos estamos reportando, quando as mencionamos e, principalmente,

quando pretendemos criticá-las. No que tange a Platão, na sua obra “República”, o que

transparece é uma concepção de ordem social que nada tem a ver com o que, hoje, se pode

entender como democrática. Para Platão, o poder decisório deveria caber, com

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exclusividade, aos filósofos. A educação das crianças seria incumbência privativa do

governo por eles exercido, o qual destinaria os cidadãos para tais ou quais atividades, das

quais eles não poderiam jamais afastar-se, para adotar outra. Isso porque, segundo ele, o

exercício continuado e exclusivo de um mesmo ofício, seria a melhor garantia da eficácia

das tarefas dos trabalhadores, dotados de tão longo tirocínio.

As crianças nascidas defeituosas ou demasiadamente débeis, em lugar de educadas

e destinadas a tais ou quais ofícios, simplesmente, seriam suprimidos para que não viessem

a constituir-se em peso morto para o conjunto da sociedade. Os educandos mais robustos,

mais impetuosos e bravos, mais velozes e aptos à violência exigida nos combates corpo-a-

corpo, seriam os “guardiões da Cidade”, mantidos por ela. As mulheres seriam propriedade

comum de tais guerreiros, sobretudo para que o problema da paternidade fosse sempre

sujeito a dúvida, de maneira a facilitar a entrega dos recém-nascidos ao governo dos

filósofos para que, como já vimos, fossem por eles “educados”. O leitor percebe que, na

República de Platão, não haveria mobilidade social, nem sequer horizontalmente, e o

assassínio dos bebês portadores de deficiências físicas já é algo, mais do que suficiente,

para que se possa ver que não se tratava de nada assemelhável ao que, em termos de

cultura cristã, se possa classificar como democracia. Por que, então, a insistência

desarrazoada, em afirmar-se que “a democracia nasceu na Grécia?” O chamado “século de

ouro”, da civilização ateniense, correspondeu ao período em que viveu e influenciou o

poder, o pensamento de Péricles.

Este, entretanto, na verdade foi uma espécie de ditador populista que, hábil

diplomata, conseguiu organizar e liderar a chamada Confederação de Delos, cujos

componentes, com o correr do tempo, passaram a sustentar com seus tributos, o populismo

do ditador, e o brilho sem precedente que deu a Atenas. Prestigiou ele as artes e

manifestações culturais em geral, sem que os atenienses sentissem o peso dos encargos,

que eram grandemente financiados pelos “aliados”, transformados em tributários os quais,

se relutavam em pagar os tributos que lhes eram cobrados pelo autor da Confederação de

Delos, sofriam expedições militares punitivas que lhes tiravam, à força, o que, por bem, se

haviam recusado a pagar. De outra parte, o governo ateniense que se exercitou sob a

orientação de Péricles, pelo esplendor material de Atenas, e pelo prestígio dado à cultura,

de resto já mencionado, contou ainda, como seus contemporâneos, com vultos como, entre

outros, os de Sócrates, Platão, Heródoto, Xenofonte, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Fídias.

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Tudo isso levou os historiadores a designar o século em que viveu o governante ateniense

de que estamos tratando, repetimos, como “século de ouro”, de Atenas.

Já não se dá tanta ênfase a determinados aspectos da sociedade daqueles dias como,

por exemplo, a redução do número de cidadãos que podiam, de fato, participar da Ágora.

Da cidadania, foram excluídos, além dos que já o estavam, como as mulheres e os

escravos, também os “metecos”, que eram os habitantes de Atenas, nela nascidos, mas não

filhos de pai e mãe atenienses. Para que se possa fazer uma idéia do que era, de fato, a

democracia ateniense, Montesquieu, em “O Espírito das Leis” relata que Demetrius de

Falero, cerca de um século após o período considerado áureo, a que acabamos de referir-

nos, mandou realizar um censo em Atenas e encontrou os seguintes resultados: vinte e um

mil cidadãos, dez mil estrangeiros e “metecos” e, pasme o leitor, quatrocentos mil

escravos. Como só aos cidadãos era concedido o privilégio de, de alguma maneira,

participar dos negócios administrativos da cidade, a “democracia” ateniense, segundo o

citado censo, só admitia a participação de algo da ordem de 5% dos habitantes de Atenas, e

isso mesmo se desprezarmos a fração não mencionada como excluída, correspondente às

mulheres e, compreensivelmente, às crianças.

Fatos dessa natureza é que, talvez, tenham levado Blanc de Saint Bonnet a assinalar

que “não devemos lançar palavras às multidões, sem explicar-lhes o sentido”.

Daí a nossa preocupação de, embora correndo o risco da monotonia, insistirmos,

reiteradamente, na observação de que a significação dos gestos, dos fatos, e até, dos

vocábulos, em sua avaliação, deve levar em conta, a época, o período, a que se refere a

análise. Cada período sofre a influência dos conceitos e preconceitos a ele correspondentes

- o que enseja uma magnífica oportunidade para confundir o entendimento das pessoas de

boa-fé, sobre coisas, às vezes da maior importância, cuja compreensão se deseje ver

adulterada e deformada. Hans Kelsen, em sua conhecida obra, que muitos consideram

fundamental para a defesa da democracia dos dias atuais, “ La Démocratie. Sa nature. Sa

valeur”, afirma que, em seu emprego corrente, a palavra democracia perde a sua

significação precisa, adotando as mais diversas, e, por vezes, contraditórias acepções, até

“degradar-se à categoria das fórmulas convencionais”. Como exemplo, observe o leitor

que, até bem pouco, muitas sociedades de regimes marxistas se definiam como

“democracias populares” fato que, em obra de nossa autoria, “As raízes da crise”, tivemos

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a oportunidade de comentar, dizendo que a expressão “democracia popular”, corresponde a

uma dupla impropriedade: a de natureza substancial e a de natureza formal, consistente em

adjetivar-se como popular, um regime que se diz democrático.

De outra parte, e voltando ao rumo central da marcha que nos propusemos realizar,

desde as linhas do “Esclarecimento Indispensável” com que a iniciamos, embora não tão

louvada quanto a civilização helênica, mas citada com admiração, sobretudo quando as

referências dizem respeito ao pragmatismo da política externa dos seus governantes, e às

suas leis, Roma não costuma ser objeto de tão sistemático vilipêndio quanto a malsinada

“Idade das Trevas”. E isso, em nossos dias, quando são reclamados com tanta insistência

os direitos humanos. Pois bem; no esplendor de Roma, os direitos dos seus cidadãos não

vinham do fato de serem eles “seres humanos”; mas do fato de serem “cidadãos de Roma”.

Cassada que lhes fosse a cidadania, eles passavam a poder ser vendidos como escravos e os

seus donos a terem sobre eles direito de vida e de morte. De outra parte, respeitava-se a

norma designada como “sexagenarius de pontu”, segundo a qual, os filhos podiam lançar

os próprios pais às águas do Tibre, para que nelas se afogassem, tão logo atingissem os 60

anos de idade. Uma outra norma, aceita com naturalidade, era designada como “arae

perusinae”, em acordo com a qual tomou-se possível cevar doze patrícios romanos para

serem sacrificados em praça pública, em honra ao “divino” Júlio César.

Por que, então, só o medievo teria sido de trevas? Não haverá algum motivo para

que o leitor medite no que estamos tentando, exatamente, propor à consideração pela sua

inteligência e pela sua consciência? Não haverá alguma procedência na hipótese de que

opor resistência, não a tal ou qual denominação religiosa, mas à ética do Cristianismo, em

seus aspectos contrários ao exercício de atividades econômicas, que se desejava pudessem

desembaraçar-se dos entraves opostos por ela, não era difícil fazer-se em nome da

liberdade? Afinal, a avidez pelo lucro, pela riqueza material, não exprime os reclamos que,

em linguagem religiosa, são descritos conto os reclamos da carne? Não que estejamos

tentando impor uma visão religiosa a quem, por acaso, não seja religioso. Mas, olhando ao

nosso derredor, o que é que, quase sempre em nome da liberdade, está produzindo,

concretamente, objetivamente, ostensiva e vergonhosamente, os frutos que cada um de nós

pode ver, no sofrimento, na dor, na fome, nos vícios, na degradação que se vão espalhando

pelo mundo “prático”, “objetivo” e “livre” em que vivemos? Será, de fato, prático, fechar

os olhos à palpável e contundente realidade, preferindo embalar-nos com o enunciado de

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frases pomposas, ou mentirosas - quando contrariem, não as nossas preferências, mas a

verdade em manifestação que em nada honra o nosso livre arbítrio e o nosso sentimento de

solidariedade, para que em tal clima de “viagem” alucinatória, em que os que se dizem

realistas, recusam-se a ver a realidade? Em todo caso, não nos anima o propósito de julgar,

mas o de expor dados que não têm, segundo nos parece, merecido uma divulgação isenta e

equânime, para que o leitor os analise.

I.4 – Ordenando idéias, para prosseguir

Nós somos os primeiros a reconhecer que a alusão a fatos históricos, distantes de

nós, às vezes por milênios, e entre si, freqüentemente, de muitos séculos, é tarefa hercúlea

a que nos abalançamos, não por superestimação das nossas tão limitadas forças, mas pelo

reconhecimento sincero e profundo, de que a humanidade, a cada dia que passa, torna-se

mais fácil de ser desviada dos caminhos mais desejáveis para a construção da harmonia e

da paz que todos, no íntimo, desejamos. Os motivos da crescente facilidade de fazer

dominantes idéias e conceitos deturpados ou falsos, já foram vistos desde o início desta

caminhada: de um lado, o trepidante ritmo da vida que somos levados a ter, indispensável à

nossa própria manutenção e à dos que de nós dependem; de outro, a multiplicação de

informações e desinformações, por intermédio de veículos de penetração tão extensa e tão

eficaz, como não fora possível conceber, há bem poucas décadas. A serviço dos referidos

veículos, técnicas de comunicação, cada vez mais sofisticadas, diante das quais

dificilmente o homem apressado e pressionado tem a chance de decidir algo além de

aceitar o hábito de fazer “o que todo mundo faz”, de achar “o que todo mundo acha”, de

“pensar como todo mundo pensa”.

E o leitor julgará se tudo o que acabamos de dizer é ou não procedente, ao menos

em grande parte e, se é, se constitui, ou não um risco imenso a que todos estamos

submetidos. Sobretudo se levarmos em conta que, ainda que a maioria não perceba, na

verdade há uma revolução em marcha, responsável pelo declínio da civilização a que

pertencemos, declínio que, praticamente, todos os grandes pensadores contemporâneos que

se têm preocupado com o problema, verificam como existente, ainda que expressando tal

concordância à sua própria maneira de analisar os fatos e de interpretá-los. Assim, não nos

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pareceu viável tentar oferecer uma contribuição de alguma valia, mesmo que muito

modesta, a um aguçamento da visão crítica daquele homem apressado e aflito, aturdido e

enganado, não porque lhe falta inteligência, mas porque lhe falta tempo, sem ser por

intermédio de retrospecto histórico extenso e inevitavelmente lacunoso. Claro que o

retrospecto em causa, a despeito dos esforços por reduzi-lo, em termos de extensão, ao

mínimo possível, ainda assim, resulta em leitura exigente de tempo e de atenção.

Entretanto, como oferecer ao leitor uma visão das forças que, realmente, movem os

acontecimentos, sem procurar as suas origens? Como oferecer exemplos de falsificação do

relato histórico oferecido com grande ênfase ao público recipiendário das versões

adulteradas com que nos tentam enganar, sem recuar a épocas anteriores aos primórdios da

era cristã? Quanto a esta, como deixar de assinalar a oposição de interesses entre os que

desejavam preservar a visão da ética cristã dos primeiros tempos, em matéria de atividade

econômica, dos interesses dos que desejavam dedicar-se àquela atividade motivados

essencialmente pelo lucro a ser obtido na mesma? Como deixar de registrar que, segundo

as bases da tradição judaico-cristã das quais brotou a civilização a que pertencemos, o ser

humano, em virtude do pecado original, passou a abrigar tendências contraditórias, umas

ligadas aos apetites carnais e outras às suas inclinações espirituais? Sem o realce dado a

essa realidade, como compreender que quanto se tente em favor dos apetites carnais, que

falam tão alto e são tão exigentes, pode ser feito sob a alegação de que se trata de uma luta

“pela liberdade”? Como entender a grosseira falsificação acerca da Idade Média sem,

recuando até ela, mostrar que os comerciantes que se aglomeraram em torno dos burgos,

buscando a segurança que lhes era oferecida pelos cavaleiros cristãos que neles viviam e

que, movidos pelos ideais da fé que haviam abraçado, combatiam as tropelias dos

salteadores, aprovavam a segurança, mas rebelavam-se contra normas que lhes

contrariavam os interesses?

Como, sem descer a alguns detalhes sobre aquele período, desmistificar a fantasia

que tantos acreditam verdadeira, sobre a existência de uma posição de tranqüila pujança da

Igreja católica quando, na verdade, pululavam ameaças contra a mensagem do

Cristianismo de que ela foi única depositária, até o século XVI, quando surgiu a Reforma?

Na verdade, desde os primeiros passos da introdução do Cristianismo na Europa, surgiram

tendências a desvios no campo cultural, em conseqüência de diferentes interpretações da

mensagem evangélica, bem como ameaças militares devidas à força do império otomano,

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em plena expansão o qual, em manobra de pinças, penetrou pelo sudeste europeu e

avançou até as planícies de Moacz e, no oeste da Europa, ocupou por largo tempo a

península ibérica, nada obstante a derrota sofrida diante dos Francos, na batalha de Poitier.

Por cerca de século e meio, o Mediterrâneo foi um lago muçulmano, tendo a península

itálica sofrido suas incursões.

O Cristianismo nascente, portanto, durante muitos séculos, esteve ameaçado, e

gravemente ameaçado. Mas como a ortodoxia dos detentores do poder daquele tempo,

enfeixado nas mãos dos cavaleiros medievais e nas dos sacerdotes católicos, seus mentores

espirituais, do ponto de vista dos que viam os seus interesses de lucrar o máximo possível,

sem os freios que pretendiam impor-lhes aqueles detentores do poder, deviam eles ser

enfraquecidos. Assim, quanto surgisse capaz de debilitar a fé, no que dependesse dos que

se sentiam prejudicados em seus interesses que, visivelmente, eram muito mais ligados aos

apetites da carne do que às aspirações do espírito, era por eles prestigiado e difundido

dentro, é claro, das limitações de meios da época. Meios, hoje, muitíssimo mais poderosos

e, por isso mesmo, muitíssimo mais eficazes e em certo sentido, perigosos. De tudo isso, a

importância que emprestamos ao chamado Nominalismo, em razão do qual desencadeou-

se a célebre “querela dos universais”, que marcou, como vimos bem antes, o fim dos

excessos e exageros da escolástica.

Com essa tendência epistemológica, à época prestigiada ao máximo pelos interesses

a que nos estamos referindo, os estudiosos, os homens de pensamento, inclinaram-se,

muito mais do que em qualquer época anterior, à extroversão das suas capacidades

intelectuais, que agora procuravam debruçar-se sobre as realidades externas, componentes

do universo sensível, com os seus fenômenos e as suas características. A introversão, o

pensamento contemplativo, a busca do homem por conhecer melhor a sua realidade íntima

e as suas relações com o Criador, cuja existência era aceita sem restrição, era substituída

pelo conhecimento dos fenômenos naturais, das suas relações de causa e efeito, ao menos

imediatos, suas características mensuráveis, e assim por diante. Data daí, fora de qualquer

dúvida, o início da aceleração da Ciência. De fato, o Nominalismo, a “querela dos

universais”, dele resultante, ocorreu à altura do século XIV quando a decadência da

sociedade medieval, os excessos e abusos dos detentores do poder, leigos ou clérigos

ofereciam pretextos, cada vez melhores e mais abundantes, a quantos tivessem interesse

em seu desaparecimento ou em seu enfraquecimento, solo propício e vigorosamente

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fertilizado pelas inquestionáveis conquistas científicas, que, tendo encontrado ali o ponto

de partida da sua aceleração, cada vez mais avançavam e diversificavam os seus campos de

atuação.

As conquistas científicas, porém, realizavam-se no domínio que lhe é próprio: o dos

fenômenos da natureza que, extraordinariamente importante como é, não preenche outro

gênero de indagações do ser humano, relativas à sua componente espiritual. Estas,

anteriormente, tinham sido objeto de esforços, sobretudo por intermédio da introspecção,

do pensamento contemplativo e do método dedutivo. E como, por sua índole, não se

ocupavam fundamentalmente com o mundo sensível, com o mundo dos fenômenos

naturais, sobre este perdurou longamente, espessa ignorância. E não é difícil entender que,

à medida em que, a princípio lentamente, mas, com o correr do tempo, cada vez mais

rapidamente, foram se acumulando os sucessos e a utilidade do domínio dos referidos

fenômenos se tornando evidente, a tarefa dos que desejavam libertar-se de exigências de

fonte religiosa, tomava-se mais fácil. E é aí que, ao menos segundo a nossa interpretação,

começa a revelar-se sutilmente, a verdadeira índole da revolução que lateja no seio da

civilização a que pertencemos, promovendo a decadência, o caos e os conseqüentes

sofrimentos que, ainda segundo o nosso entendimento, poderiam ser evitados e podem ser

corrigidos.

Continuemos, porém, o resumo ordenador e esclarecedor que, esperamos, haverá de

tomar-se cada vez mais nítido, à medida em que possamos expor à consideração da

inteligência do leitor, o desdobramento do que acaba de ser dito linhas acima. De fato, a

grande revolução que, há séculos, vem produzindo as injustiças e desarmonias apontadas

pelos grandes nomes que têm registrado a decadência do Ocidente, foi a que se iniciou com

o estímulo a tudo quanto desobrigasse os homens de levar em conta, prioritariamente, a

necessidade, entretanto, imprescindível, do arrimo da Revelação, que lhes oriente os passos

no vasto domínio em que as conquistas da Ciência, pelo menos até determinadas

concepções da Física Quântica, nada tinha a dizer-lhes, por não ser objeto das suas

atividades. O que queremos significar é que à Ciência pertence o domínio da investigação,

por exemplo, das condições de obtenção da fissão ou da fusão nucleares, a avaliação da

energia liberada em um e em outro caso, o encadeamento de tais fissões ou fusões, até a

liberação de quantidades fantásticas de energia, a tecnologia adequada à obtenção desse

encadeamento, de que não prescindem as bombas de utilização militar.

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Mas nem a Ciência, nem a Tecnologia, têm como orientar os homens acerca da

liceidade do emprego desses engenhos terríveis, em conflitos entre povos desavindos.

Sobre problemas dessa natureza, a Ciência não tem nada a dizer. Por isso, os estudiosos

que apontam o declínio da civilização moderna, assinalam o descompasso entre os

magníficos avanços conquistados pela investigação dos fenômenos da natureza, e a

balbúrdia, o caos, os sofrimentos, a degradação de costumes, havendo os que se referem,

explicitamente, a um processo como que de desumanização crescente, tão parecido com os

“frutos da carne”, descritos em mais de uma passagem das Escrituras, sobretudo no Cap. 5,

da epístola de S. Paulo, ao Gálatas. Ressalvados os exageros e excessos do radicalismo e

do fanatismo prepotentes, não nos resta dúvida - mas ao leitor cabe julgar da procedência

da observação que se vai seguir - de que, sempre pretextando lutar pela liberdade, na

verdade o que se estava fazendo e continua a ser feito, é a liberação de apetites, cada vez

mais instintivos e carnais, e cada vez menos espiritualizados, altruístas e justos - na

perspectiva valorativa da visão cristã, qualquer que seja a denominação em que esse

vocábulo seja empregado com isenção e competência44. As “revoluções”, descritas em

seus aspectos de formas institucionais, são aspectos epidérmicos da grande revolução,

repitamos, para nós consistente no que foi deflagrado pelos que se rebelavam contra os

empecilhos opostos aos seus interesses.

Difundido o ceticismo, em matéria da validade da Revelação, não foi difícil

conduzir o núcleo da civilização ocidental moderna, à superestimação da capacidade da

razão humana de tomar-se independente de algo que não fosse por ela elaborado e

conquistado45. Foi em tal clima, que prosperaram as idéias e atitudes de homens como

Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Voltaire e outros, prosperidade que encontrava muito

bons pretextos nas flagrantes injustiças da época, os famosos privilégios de que, de fato,

desfrutavam a aristocracia e o clero católico. Tais pretextos ensejaram a continuidade do

mito criado em tomo da revolução francesa de 1789 que, até os nossos dias, muitos

imaginam levada a cabo pelo povo oprimido, quando na verdade, este foi o instrumento de

que se valeu a fração do chamado Terceiro Estado, constituído pelos plebeus, fração

integrada também pelos burgueses ricos e poderosos pelo dinheiro que, tinham ajudado a

derrocada da ordem feudal. Desaparecida esta com o surgimento dos Estados, governados

por reis que, imaginavam, contribuiriam para a libertação de seus interesses mas, na

verdade, ainda que em número menor do que o dos senhores feudais, passaram a constituir-

44. Grifos do Autor.45. Grifos do Autor.

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se em novos entraves, eis que a sua investidura continuou a depender da legitimação da

autoridade religiosa, interessavam-se agora por derrubar a realeza.

E foi assim que, da mesma maneira como, durante tantos séculos, prestigiaram o

mito da “Idade das Trevas”, passaram a manter o da derrubada da Bastilha, prisão em que,

imaginam as vítimas desse engodo, estariam encerrados, quem sabe, centenas de presos

políticos, oprimidos pelo rei e pelos seus imaginados sequazes. A verdade histórica, porém,

é bem outra: a 14 de Julho de 1789, quando os “sans culottes”, como eram com ironia,

denominados pelos nobres, os de fato pobres, estes, instigados adequadamente, tomaram a

Bastilha, havia em seu recinto 7 (sete) prisioneiros, dois dos quais estavam ali, não por

desgostarem o poder constituído, mas por serem doentes mentais, abrigados para que não

morressem de fome ou de frio, sobretudo quando chegasse a estação invernosa. Antes de

que alguém possa supor que estamos tentando ocultar os aspectos positivos que aquela

revolução trouxe para a humanidade, no que respeitava, não ao uso, mas ao abuso ou

abusos de elites decadentes; ou que estamos fazendo a apologia dessa ou daquela forma

institucional, para nós, aspectos epidérmicos de uma revolução mais profunda 46,

reiteramos que, na verdade, dava um passo mais à frente, não a rebeldia contra injustiças

que não desejamos negar existissem, mas a rebelião contra qualquer ordem comprometida

com valores que transcendessem os desejos do homem que, entretanto, segundo pensamos,

tanto podem ser bons quanto maus.

Os defensores incondicionais do mito que estamos tentando desmitificar, falam dos

aspectos positivos da revolução de 89 - e sempre, notem, de maneira muito significativa,

em sentido libertário. Mas já não se mostram tão claros que ou - que é mais freqüente -

simplesmente omitem a verdade histórica de que, quando vitimado pela máquina

“humanitária” inventada pelo Dr. Guillotin, foi decapitado Robespierre, o líder do partido

jacobino, havia mais de quatrocentos mil prisioneiros políticos na França47 e mais

milhares e milhares de suspeitos, mantidos em prisão domiciliar, aguardando a instrução

dos seus processos, ainda pendentes de julgamento. Assim, a revolução da “liberdade,

igualdade, fraternidade”, tão influenciada pelo intelectual ativista J. J. Rousseau,

promovido à categoria de filósofo, não teve como melhores virtudes o bom senso e a

coerência. No famoso “Contrato Social”, por exemplo, como no “ Discurso sobre a origem

da Desigualdade”, inspiraram-se, principalmente, os redatores da famosa “Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão”, cujo artigo 1o reza: “Os homens nascem e permanecem

46. Grifos do Autor.47. Grifos do Autor.

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livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a

utilidade comum”.

Talvez por acreditar na validade do famoso princípio, foi que Graco Babeuf

divulgou o “Manifesto dos Iguais” - e, pasme o leitor que por acaso não o saiba, a

conseqüência foi que a cabeça de Babeuf rolou sob a lâmina da “piedosa” máquina do Dr.

Guillotin. É que, ousamos supor, aos autores reais da revolução, a igualdade deveria ser

apenas de direitos, algo que não era tão concretamente contrário aos seus desejos, muito ao

revés, quanto fora a acepção que lhe dera Babeuf, quem sabe inspirado no “filósofo” que,

em seu “Discurso sobre a origem da desigualdade” consignou: “o primeiro que, cercando

um terreno, afirmou: este terreno é meu ! E encontrou gente bastante ingênua para

acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e

mortes, de quantas misérias e horrores não teria poupado o gênero humano, aquele que

tivesse gritado, alto e bom som: não dêem crédito a esse impostor! Estaremos todos

perdidos se nos esquecermos de que os frutos pertencem a todos e que a terra não é

propriedade de ninguém!“ Se tivesse conhecido e levado em conta o que a “Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão” - denunciando quem, de fato, levara a cabo a revolução

de 89, - estabelece quanto à propriedade privada, quem sabe teria sido Babeuf mais

cauteloso.

É que, na referida “Declaração”, a propriedade privada é considerada “um direito

sagrado e inviolável”, sendo “direito natural e imprescritível do Homem”. Tudo isso são

fatos, verdadeiros, documentados, irrecusáveis - mas que não “interessa” divulgar. Assim,

precisamente quando tanto se fala - oportunamente, aliás, de cidadania e de direitos

humanos - escamoteiam-se dados que, se fossem do conhecimento geral, tornariam muito

mais difícil senão inviável, a manipulação em grande escala da opinião pública. Os

aspectos aparentes, ostensivos, os mecanismos e formas institucionais, que a maioria

imagina serem o que de mais importante deva ser analisado, com a finalidade de descobrir

as raízes mais profundas dos problemas e as maneiras de resolvê-los, na verdade, já são

frutos daquela grande revolução que lateja no seio da civilização, ao menos em suas

origens, cristã, e que a está conduzindo à decadência a que tantos grandes vultos do

pensamento contemporâneo se têm referido48.

48. Grifos do Autor.

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Essa a razão pela qual o pensador cristão Jean Madiran considerou a “Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão”, aprovada em 1789 e promulgada pela Assembléia

Nacional Francesa em 1791, como algo da mais grave significação, sobretudo pelo seu

artigo 6o, que reza: “A lei é a expressão da vontade geral”. Desprezando aspectos como,

por exemplo, como aferir, autenticamente, a “vontade geral”, na verdade o que significa

essencialmente esse artigo 6o, é que os homens a partir de então, decidiram constituir-se na

fonte exclusiva da lei49, em sentido amplo, pela qual deveriam reger-se. O latitudinarismo,

o ceticismo, impulsionados pela sensação de compreensível euforia oriunda dos

estupendos progressos da Ciência, adubados pelos erros e injustiças perpetrados por falsas

elites ou por elites decadentes e degradadas, já a partir daquele momento, tomavam as

rédeas da condução do processo sócio-cultural do Ocidente. Estamos, nos referindo, neste

momento, ao final do século XVIII, o tão exaltado “século das luzes”, pelos mesmos

interesses e tendências que, até agora, continuam a falar do medievo, como “Idade das

Trevas”...

Ainda que, como tantas vezes temos repetido, não nos consideremos proprietários

da verdade, alimentamos a esperança de que o leitor que tenha percorrido, até aqui, estas

linhas, comece a perceber que as teses que elas pretendem propor à sua consideração, de

fato não são absurdas como lhes teriam parecido, talvez, de início. A ética que se desejava

tornar inoperante, e cuja fonte era, adequadamente interpretada, ou não, a Revelação,

estava praticamente superada como obstáculo válido a certos ímpetos nascidos de

desmedida ambição. E os autores e beneficiários de tal conquista não foram, certamente, os

“sans cullotes”...

Indício veemente da verdadeira autoria, encontramo-lo em uma das primeiras

providências dos vitoriosos revolucionários: foram extintas as “Corporações de Ofício”,

instituições originárias do medievo, sem que nada fosse criado para substituí-las. É que a

exaltação, enganosa a nosso ver, da importância política de cada ser humano, não tolerava

qualquer intercalação, entre o cidadão e o Estado; nada, portanto, de instituições

intermediárias entre um e outro.

E foi assim que os verdadeiros promotores da “liberdade”, “igualdade” e

“fraternidade”, sem necessidade de comprometer-se com nada que não fosse produzido

pela razão humana, exatamente o que Kant diria em sua “Crítica da Razão Pura”, pouco

49. Grifos do Autor.

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tempo depois, ao afirmar que a humanidade tinha, finalmente, alcançada a maioridade,

produziram o quadro confrangedor dos primórdios da revolução industrial. Quadro de

brutais injustiças, de desapiedada exploração do trabalho de menores e de mulheres, tiradas

do lar para que, com a oferta maior de mão de obra, fosse possível manter baixos níveis de

remuneração. Claro que isso não era promovido assim, mas em nome da “libertação” da

mulher. Como se pode ver, sempre a liberdade como pretexto, a cujo sucesso serviam de

arrimo as injustiças praticadas contra as filhas e esposas, por pais e maridos despóticos.

Mas, fossem a libertação e a justiça os móveis verdadeiros, como explicar a miséria

reinante em lares de trabalhadores, e a indiferença diante do atentado que se praticava

contra a instituição familiar, a que já não podiam dedicar-se as insubstituíveis mães de

família? E foi em semelhante ambiente que começaram a surgir as organizações de

trabalhadores, os sindicatos e “Trade Unions”, em lugar das Corporações de Ofício, que a

revolução francesa prontamente extinguira.

Mas, agora, as organizações operárias que surgiram, faziam-no em um contexto de

luta e de ódio entre patrões e empregados, com confrontos sangrentos e, em nosso

entendimento, absurdos, irracionais e perfeitamente evitáveis, não fosse a presença surda e

camuflada da verdadeira revolução que está erodindo todas as sociedades inclusive as do

chamado 1° mundo, referto de bens materiais, mas indigente em termos de valores

espirituais. É que, já “maiores de idade”, os que de fato dirigem os acontecimentos, sempre

usaram como principal alegação, a ampliação do exercício da liberdade, e isso ao longo

dos séculos. Claro que, por motivos a esta altura já compreensíveis, para o leitor atento,

rejeitando uma finalidade para o referido exercício. E, em tal rejeição, vêm os homens

repetindo a rebeldia, e a desobediência que, em linguagem religiosa, as Escrituras, a

Revelação, descrevem como “pecado original”, de que resultou a Queda.

I.5 – Começando a Usar Uma Lente “Zoom”

Já no capítulo anterior deixamos registrado o nosso reconhecimento sobre o fato de

que se constitui em tarefa hercúlea, tentar realizar uma exposição abrangente de milênios

da História, ainda que de maneira imperfeita, nada detalhista, lacunosa e, em certos

momentos pelo menos, de leitura fastidiosa, por aparentemente desvinculada dos dias em

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que estamos vivendo, com os seus problemas, as suas angústias e as suas brutais injustiças.

É que aquilo que os alemães designam como “zeitgeist”, espírito do tempo, impõe à

maioria de nós, a impressão de que só é útil, ou prático, o que tiver, em visão imediatista,

de natureza utilitária, clara significação. Entretanto, supomos não ser demasiado otimista a

esperança de que, já a esta altura, o leitor que tenha lido quanto ficou registrado até agora,

estará apercebido de que, quanto à maneira de expor, quanto ao estilo da exposição, algo

teria sido feito bem mais satisfatoriamente, por outro autor, com mais talento do que o

desta obra. Nada obstante, parece-nos perfeitamente razoável alimentar a convicção de que

já se tornou patente que, sem um esforço da amplitude deste que estamos fazendo, nós ao

redigirmos, e os leitores ao lerem o que tem estado ao nosso alcance oferecer-lhes, não será

possível entender a natureza real e mais profunda do que está causando à humanidade,

tanta dor e tantos problemas.

Por isso, e para que se torne ainda mais patente que, de fato, não é inútil tanto

trabalho e tanta boa vontade, sobretudo dos destinatários desta obra, parece-nos chegado o

momento de usar o que, em fotografia, é chamado de “lente zoom”, de modo a aproximar

certos aspectos do mergulho ao passado, por vezes tão remotos, para acontecimentos mais

próximos de nós. Assim, a Revolução Francesa de 1789, fruto do “século das luzes”, e que

tantos consideram absurdo afirmar que teve virtudes, mas teve também os inevitáveis

defeitos, frutos dos equívocos do Racionalismo, representou, na longa luta contra a

existência de um propósito, de uma finalidade, em todos os seres, expressão política que,

de certa maneira, substituísse a sanção moral de que necessitava a burguesia, para livrar-se

das peias da ética cristã. Naturalmente, quando usamos o vocábulo Racionalismo, não o

fazemos no sentido de desmerecer o uso da razão, por parte de seres racionais, como

somos todos; mas no sentido em que a expressão foi consagrada, e que marcou o famoso

Iluminismo, sobretudo francês, correspondente à superestimação da razão como atributo

capaz de dispensar o que quer que fosse, desde que não elaborado por ela ou sancionado

pelos seus critérios e mecanismos.

Tal foi o sentido mais profundo da Revolução Francesa: o de tornar dispensáveis os

deveres da observância pelo Homem de quanto se tentasse impor-lhe por ter sido revelado

em domínio estranho a ele e aos seus mecanismos racionais. Por isso é que Jean-Jacques

Chevalier, no 2o volume de sua obra “História do Pensamento Político”, insere a citação

das expressões que se seguem, por ele atribuídas a P. Hazard: “Deu-se então uma crise na

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consciência européia; entre o Renascimento, donde ela promana diretamente, e a

Revolução Francesa, que ela prepara, nada ocorreu mais importante para a história das

idéias”50. Como pode verificar o leitor, levando em conta, inclusive, que o professor

Chevalier é professor honorário das Universidades de Grenoble e de Paris, bem como do

Instituto de Estudos Políticos de Paris, ainda que descontando o que, para nós, representa

um exagero, ao dizer P Hazard que o que ele designa como crise da consciência européia,

cuja origem situa no Renascimento e cujo resultado assevera sido a Revolução de 89, nada

ocorreu de mais importante para a história das idéias; mesmo feito o citado desconto,

parece flagrante a coincidência entre o nosso e o pensamento do ilustre mestre, no que

tange à magnitude da referida crise.

A divergência estaria, entre o pensamento deste humilde escriba e o dele, no

sentido e no valor a serem atribuídos a esse 47 Grifos do Autor. estuário em que, à altura

do século XVIII, desaguavam as verdadeiras forças que, discretas mas constantes,

influíram na mudança de rumos do processo civilizacional do Ocidente. De fato, para nós,

quando da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, aprovada em 1789, e

promulgada pela Assembléia Nacional Francesa em 1791, atingiu a cultura ocidental uma

espécie de “turning point” de dramática importância pois, como foi visto em capítulo

anterior, ao estabelecer a citada “Declaração” que a lei, “é a expressão da vontade geral”,

consagrou a exclusiva validade do Direito positivo, desvinculando a sua elaboração de

qualquer coisa além do que designou como “vontade geral”. Ou seja, os homens voltavam

as costas à hipótese da existência de um Deus e de uma Sua lei. Não que o fizessem

frontalmente, pois tal passo viria um pouco mais tarde, com o Manifesto Comunista de

1848, de autoria de Marx e Engels. Em tal sentido, ainda que esse projeto não fosse, ao

menos no plano consciente, o do “Partido dos Filósofos”, diríamos que, em termos de

Europa, o 14 de Julho, com suas conseqüências, constituíram-se na ante-sala da Revolução

de Outubro de 1917.

À primeira vista, poderá parecer chocante o que acabamos de afirmar.

Considerando, porém, o fio central da exposição, desde o feudalismo, em que o governo

temporal estava fortemente influenciado e hauria a sua legitimidade da sanção da

autoridade religiosa, até a “Declaração de Direitos” acima mencionada, parece-nos muito

evidente a laicização crescente da sociedade, sobretudo francesa, e, muito em especial, dos

seus vultos de influência cultural maior. Influência que, tal como em nossos dias acontece,

50. Grifos do Autor.

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não era conseqüente a uma competição em termos de igualdade, mas do apoio e da

divulgação dados, preferencialmente, às idéias e aos vultos que as concebiam, sempre que

coincidentes com interesses que, discretos, mas poderosíssimos, de fato orientavam os

acontecimentos. E faziam-no, não necessariamente visando contestar a existência de um

Deus criador de todas as coisas. Ao contrário, como se tratava de pessoas, digamos,

“práticas”, não lhes interessavam questões que, ao menos aparentemente, não tinham

relação perceptível com a “visão contábil”, como costumamos designa-la, neles dominante.

Os próprios enciclopedistas, dentre eles, destacados membros do “Partido dos Filósofos”,

se não todos, muitos deles, afirmavam a sua crença em Deus.

A rebeldia que manifestavam era dirigida à autoridade religiosa, de vez que, para

tais intelectuais ativistas, nada devia sobrepor-se à Razão, superestimada como já vimos.

Nem foi por motivos diferentes que o “clima” reinante no que veio a ser denominado como

Iluminismo, é também conhecido como de Racionalismo.

Vejamos, porém, como voz mais autorizada do que a nossa, analisa o que há pouco

admitimos o que parecerá, no mínimo, surpreendente a muitos leitores. Trata-se de Jean-

Jacques Chevalier, em sua “História do Pensamento Político”, já citada anteriormente:

“Mas eis que surge, em reação à Idade Média, o Renascimento. O indivíduo, por pouco

que seja dotado da “virtude”51, cara a Maquiavel, liberta-se fulgurantemente da longa

disciplina católica, embrenha-se voluptuosamente na selva social e aspira a emancipação

em todos os domínios. No seio de uma exígua elite de excepcionais exemplares humanos,

muitas vezes guerreiros, artistas e sábios, ao mesmo tempo, não raro, amorais e ferozes,

vemos a paixão da descoberta, a exigência crítica, o espírito de livre exame, a exaltação do

orgulho humano, aliarem-se à vontade de poder, à glorificação da carne, como da arte sob

suas formas mais pagãs, o que será suficiente para impressionar mais tarde - inclusive no

século XX - de forma singular, as imaginações, não sem adornar e embelezar, graças às

influências românticas, os aspectos inumanos dessa super-humanidade.

“Entretanto, a emancipação econômica do indivíduo via-se também favorecida pela

reação da época contra a organização medieval, considerada tradicional e estática, já que

alicerçada em princípios mais morais do que econômicos. O espírito do tempo milita a

favor de uma organização dinâmica, a qual adota o critério da utilidade, determinada em

função da satisfação de necessidades e obtida através do enriquecimento máximo do

51. A “virtude”, para o autor de “O Príncipe”, não corresponde à virtude, no plano moral. Talvez corresponda mais a uma noção dequalificação adequada.. Grifos do Autor.

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indivíduo. Essa organização está dirigida para a obtenção de uma produção sem limites, o

que se harmoniza perfeitamente com o caráter insaciável do novo apetite de riqueza. Sem

esquecer que esse indivíduo, em via de emancipação econômica, dominado pelo instinto

aquisitivo e pelo espírito de iniciativa, esse “mercador” (palavra que engloba tanto os

fabricantes e financistas quanto os comerciantes ou negociantes propriamente ditos),

encontrará, durante um longo período, um valioso aliado no Estado moderno - emancipado

paralelamente como unidade política moderna”52. De nossa parte, ousaríamos acrescentar:

cujas sociedades, sujeitas coercitivamente às leis nelas vigentes, teriam-nas elaboradas

somente pelos legisladores, sem obediência a qualquer referencial fixo de valores, capaz

de, o mais e o melhor possível, aproximar a Lei da Justiça. Como vimos em outra parte

desta obra, em “De Legibus”, o próprio Cícero, pagão, assinalou os riscos que tamanha

amplitude de influência concedida aos legisladores encerrava.

O orgulho, porém, é mau conselheiro e, por isso, se adequadamente manipulado,

pode funcionar como excelente ferramenta para a defesa de interesses, sobretudo quando

lhes é fácil manejá-la em nome, repitamos uma vez mais, da liberdade...

Para os que depositam toda a sua confiança, em termos de assuntos do dia-a-dia de

todos nós, apenas no que lhes parece palpável, concreto e, por isso, real e digno de atenção,

gostaríamos de ponderar que, se não existissem, no íntimo de cada um de nós, tendências

boas e más; ou, em linguagem religiosa, se não fossemos carne e espírito, e se os desejos

de um e de outro não fossem opostos; se, ainda lançando mão da mesma linguagem, não

tivessem os nossos antepassados, os nossos primeiros pais, Adão e Eva, cometido o pecado

original, ao comerem, desobedecendo proibição que haviam recebido do Criador, do fruto

da árvore do conhecimento do Bem e do Mal, os perigos apontados, já pelo pagão Cícero,

não existiriam. Entretanto, pela razão fundamental que, na visão religiosa característica da

nossa cultura, teve a origem acima resumida, os perigos existem e aceita-los, parece-nos,

constitui-se, de fato, em rematada imprudência. E para verificá-lo, não nos parece

indispensável a aceitação da hipótese religiosa descrita nas Escrituras como tendo sido o

motivo da expulsão do primeiro casal, do Paraíso em que viviam, enganados como teriam

sido pela “Pai da Mentira” desde o início, quando os convenceu, pela via do orgulho, que

nenhum mal lhes adviria se comessem do fruto proibido. Proibido, segundo o tentador a

que nos estamos referindo, não para protegê-los, mas para que eles não se tornassem iguais

àquele de onde proviera a proibição53.

52. Grifos do Autor.53. Grifos do Autor.

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Não se tornassem iguais a Deus, ao Pai que os criara. Mais claro exemplo da

manipulação do orgulho para induzir o ser humano ao erro, será difícil encontrar.

Entretanto, não é indispensável aceitar como verdadeiro o significado essencial do relato

que as Escrituras nos oferecem. Aos céticos, aos de “espírito prático”, nos permitimos

sugerir duas linhas que, supomos, lhes parecerão mais concretas: com realismo e

honestidade, um exame introspectivo da nossa realidade interior só nos mostra boas e

generosas tendências, socialmente capazes de implementar uma ordem justa e pacífica?

Ou, na referida introspecção, nos defrontaremos com disposições de natureza antagônica e

contraditória muitas das quais não temos coragem de encarar, nem no recôndito silêncio

das nossas consciências? Em tal experiência, não é necessário senão verificar o que acaba

de ser dito.

Por outro lado, a desvinculação da Lei - em seu sentido mais amplo - a quaisquer

compromissos inamovíveis a que devam sujeitar-se legisladores, homens como nós, será,

do ponto de vista racional, prudente? Como decidir sobre a resposta adequada à questão

proposta? A sociedade humana vai bem? No que depende das leis e das decisões adotadas

no âmbito da nossa precariedade de seres limitados e imperfeitos, tem sido implementada a

Justiça, condição indispensável da Paz? Da paz verdadeira, não de uma sua aparência, que

pode ser estabelecida pela imposição da força, mas será sempre incapaz de realizar a

felicidade que, no fundo, em última instância, todos desejamos? E que é uma sensação,

não uma “coisa concreta”54? E o que é a Justiça, senão um indicador do amor existente

entre os homens? Então, na medida em que haja amor entre os homens, se não na esfera

preferível do sentimento, ao menos como opção da vontade - opção, esta sim, se nos

permitem os que se julgam práticos, evidentemente prática, pelos frutos que será capaz de

produzir - haverá a paz, condição do verdadeiro progresso e da possibilidade de desfrutar

de suas conquistas.

Sendo, entretanto, como somos todos nós, misturas contraditórias de boas e de más

tendências, será tão irrealista supor que a “Declaração” promulgada em 1791 pela

Assembléia Nacional Francesa, que resultou, como assinalamos anteriormente, na

consideração exclusiva, como fonte da lei, a “vontade geral”, reproduziu, em escala

ampliada, a figura do pecado original, novamente usando como ferramenta o orgulho?

Afinal, qual foi, segundo o relato bíblico, o brado com que Lúcifer expressou a sua

rebeldia diante de Deus? “Não servirei!“ Claro que o leitor não está obrigado a aceitar

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como verdadeira a versão religiosa que usamos como símile entre o “espírito do tempo”,

no “século das luzes”, na plêiade dos realizadores da Enciclopédia, dos entusiastas

exaltados da Razão, e aquela versão, no que tange à manipulação do orgulho, para induzir

os homens ao erro.

Para o “espírito do tempo” dos nossos dias, sugerimos as seguintes indagações:

libertados, ou supostamente libertados os homens, de compromissos com um referencial de

valores, de caráter permanente que, por sua natureza, tivesse eficácia no que tange à

compatibilização da lei com a justiça, quais têm sido os resultados obtidos até agora?

Referimo-nos aos resultados dependentes da elaboração humana, tão precária a despeito de

tão orgulhosa. A restrição feita, “dependentes da elaboração humana”, é conseqüente à

nossa convicção sobre a existência de dois pianos da História: um, resultante daquela

elaboração; outro, resultante do propósito do Criador. Assim, quando os convictos da

existência exclusiva da matéria, e da luta como motor indispensável da História,

afirmavam, sobretudo por intermédio dos veículos de propriedade dos seus “inimigos de

classe”, que “o mundo marcha para o socialismo”, o que nos parecia e continua a parecer, é

que ele marcha para a justiça55. Aquela a que nos referimos anteriormente, e a que

voltamos a fazer alusão, como opinião pessoal.

Mas, dentre as pessoas “práticas”, entre as quais se contam as que têm talento

empresarial e aptidão administrativa, parece “prático” desempenhar as suas atividades no

domínio econômico, em clima de oposição e de luta? Não lhes parece que entre capital e

trabalho deve existir cooperação leal e sincera, não por temor ou medo de confrontos?

Afinal, em realidade, não são todos, trabalhadores e patrões, atores do mesmo processo

produtivo, de cujo rendimento, no espírito de sincera cooperação a que nos estamos

referindo, dependerá a prosperidade geral? O que é indispensável para que esse clima se

realize? Que, havendo sinceridade de propósitos, não se olhem, capital e trabalho, com a

desconfiança que atingiu a sua expressão antológica, no conceito já mencionado de

“inimigos de classe”. Essa “inimizade de classe” parece honrar ou desmerecer a

inteligência humana? Mas, para que haja cooperação sincera, não parece indispensável,

que não seja suprimido o propósito de remuneração justa do esforço, do talento, do risco

dos engajados no processo produtivo? Mas o que será considerado justo, se tudo for

deixado aos azares dos embates entre as boas e as más tendências de que somos todos

portadores? A vontade dos homens, como fonte exclusiva do Direito, ao longo do tempo -

55. Grifos do Autor.

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e a realidade o tem demonstrado - conduz a uma marcha no rumo da liberação dos instintos

e apetites provenientes do componente animal da nossa natureza, adulterada quando da

queda.

Como tais apetites pressionam continuamente, e como a oposição a tais pressões

pode tornar-se incômoda para muitos, tudo quanto vá, a pouco e pouco, se introduzindo

nos costumes, passa também, a pouco e pouco, a constituir-se em presunções de direito. E

como este não tem, na prática, senão o que resulta da elaboração legislativa, as leis,

freqüentemente, são injustas ou, em sentido profundo, ameaçadoras e imprudentes, pelos

resultados que produzem. Foi assim, no domínio do processo produtivo, sobretudo nos

primórdios da revolução industrial. Vem se mantendo assim, no momento, sobretudo no

campo das relações internacionais, cada vez mais reguladas, no que depende dos homens,

por uma ordenação que, em certos aspectos, violenta frontalmente a vontade da maioria, e

o faz pela pressão e, às vezes pelo uso explícito da força.

Claro que os frutos produzidos por erros tão crassos, são amargos e dolorosos, e

foram estes que mudaram para melhor, ainda que em clima de desnecessária e estúpida

tensão, as relações de trabalho, sobretudo nas sociedades mais ricas. É o outro plano da

História, que temos mencionado por mais de uma vez. Mas, será o processo mais prático

para a fabricação de uma roda, fazê-la primeiro quadrada para que, depois, aos “trancos e

barrancos”, com as respectivas inconveniências, vão sendo desbastados os ângulos vivos,

em penosa marcha de aproximação do formato desejado? Ou as pessoas de boa vontade

não serão capazes de refletir, ao menos como hipótese a ser analisada, que a instigação da

vaidade e orgulho humanos, pode de fato ser feita em nome da liberdade, mas de uma

liberdade que freqüentemente é mencionada como “pretexto para ocultar a malícia”?

Tentemos a menção a uma outra realidade que está patente aos olhos de todos: a famosa

liberdade sexual. O impulso genésico efetivamente existe e depende dele a continuidade da

espécie. Mas os seres humanos, à diferença dos demais seres da criação, são dotados de

imaginação, de vontade e de livre arbítrio. Por isso, para nós existe a responsabilidade

moral, enquanto os irracionais, procedendo no compasso de suas naturezas, não estão

sujeitos a ela. Daí que, para os homens, o impulso a que nos estamos referindo não é para

ser suprimido, mas disciplinada a sua satisfação a condições que a enobreçam.

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Entregue a conjugação carnal aos limites estritos do prazer, ou da compensação

sensorial que ela possa dar, escancaram-se as portas às variações, mesmo às mais

claramente anti-sociais, bem como aos desvios e taras que opõem-se, não a tais ou quais

preconceitos, mas à própria perpetuação da espécie. Permitam-nos um símile, para que se

torne mais clara a exposição do nosso pensamento: suponhamos uma queda d'água; como

tal, simplesmente como uma massa de água que se despenca de altura considerável, ela

produz, além de barulho, imponente pelo volume, compensação estética apreciada pelos

milhões de turistas que, ao longo dos anos, têm acorrido às mais famosas, entre as quais as

nossas Cachoeiras de Iguaçu. Mas se, for, não impedida, mas disciplinada a massa de água

que cai, de modo a percorrer trajetos adequados ao acionamento de turbinas que geram

energia elétrica, capaz de iluminar milhões de lares, acionar maquinaria que aumenta a

produção de bens e a geração de empregos, que garantem o funcionamento de tantos

equipamentos que contribuem para a saúde e a vida humana, todos podemos perceber que,

o que antes era pouco mais do que barulho e fugaz compensação estética, enobreceu-se.

Pois o exercício do sexo, corresponde à queda d'água. A subordinação do impulso

genésico, formidável energia, se considerarmos o conjunto dos milhões e milhões de seres

humanos, for, não suprimido, mas condicionado, por exemplo, à formação da célula

fundamental de qualquer sociedade, como o é a família, com as configurações que assume

conforme as culturas consideradas, tal condicionamento é a barragem. A união estável

entre dois seres que se completam, se respeitam, se amam, não apenas se desejam56, é o

início do grupo familiar, que representa o pequenos universo onde se exercita a autoridade

legítima, que é aquela que visa, sinceramente, não o próprio benefício, mas o benefício dos

que a ela estão subordinados. É a autoridade fundada no amor sincero que, normalmente,

os pais nutrem pelos filhos que, geralmente, os respeitam, os amam e admiram, exatamente

por perceberem, ainda que não necessariamente de modo consciente, que a união entre os

pais é algo que existe, para a vida e para a morte, para a alegria e para a tristeza, para a

saúde e para a doença; não algo de sentido apenas lúbrico, a desfazer-se tão logo surjam

alternativas, de mesmo gênero, porém mais tentadoras, quando mais não seja, por

significarem novidades.

Alimentos, roupas, remédios, podem ser distribuídos por cupons de racionamento.

Amor verdadeiro, porém, que é o que alimenta uma família bem constituída, este jamais

poderá ser distribuído por cupons do mesmo gênero. Lembramo-nos bem, a tanto vai a

56. Grifos do Autor.

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capacidade do ser humano de deixar-se enganar, às vezes apenas para “estar na moda”, que

em diálogo com uma jovem e inteligente senhora, dizia-nos ela que tais idéias eram de

origem meramente cultural, influências externas, não impulsos que estão em harmonia com

alguma ordem natural das coisas. Não resistimos, naquele momento, à tentação de

confessar à nossa brilhante interlocutora, estarmos perplexos por não entender quem teria

introduzido nas cabecinhas não muito ajuizadas das galinhas que cuidam das suas

ninhadas, o desvelado carinho com que o fazem...

Entretanto, repisemos mais uma vez, não nos julgamos proprietários da verdade,

nem ignoramos os casos de anomalias e desvios que, sem dúvida existindo, não constituem

a regra. O leitor, porém, julgará o que, à luz da sua inteligência e da sua consciência, lhe

pareça mais consistente, mais tranqüilizador e mais verdadeiro. A nós, particularmente, o

que parece muito claro é que, cada vez mais pujantes, campeiam o egoísmo nas relações

interpessoais e inter-grupais, a licenciosidade crescente dos costumes, de que é prova

incontestável, o aumento vertiginoso do uso de alucinógenos, a promoção das taras sexuais

e da promiscuidade, no espetáculo constrangedor de uma civilização que, embriagada por

uma liberdade que não se define quanto a contornos e quanto a limites, vai tendendo a

degradar-se em licenciosidade, eis que a satisfação de todos os apetites, logo transformados

em presunções de direito, ao longo do tempo, segundo a conveniência de legisladores sem

compromissos com qualquer referencial fixo de sentido axiológico, se vão traduzindo em

direito positivo, por intermédio de leis que lhes garantem o exercício.

Repare o leitor, se ainda não o fez, como está no ar, compondo a licenciosidade

rotulada como “avanço”, “modernismo” e “progresso”, a tendência à “liberação” do

aborto, da prática da eutanásia, da “descriminalização” do uso de drogas, tudo, é claro, a

princípio, de maneira tímida, no sentido da restrição a certos casos. Mas, observemos a

curva tendencial dessas disposições. Estamos longe da pretensão de analisar,

detalhadamente, cada caso. A nós, o que importa é oferecer à consideração do leitor, o que

chamamos de curva tendencial dessas disposições, para apreender-lhes o sentido mais

geral, o significado mais amplo, de rebeldia contra os fundamentos da nossa cultura, até

algumas décadas anunciada como tão valiosa, que justificaria o holocausto de milhões e

milhões de jovens, do mundo inteiro, chamados a derramar seu sangue nos campos de

batalha da Europa na 2a Guerra Mundial, de resto fruto da brutalidade e do egoísmo.

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Brutalidade e egoísmo que não são aspirações do espírito mas, exatamente, da

componente animal da nossa realidade, que se pretende cada vez mais “livre”.

Aos que se julgam mais “práticos” e mais “objetivos”, pedimos que considerem,

também, se o impulso genésico a que nos estamos referindo, considerados os bilhões de

seres humanos de ambos os sexos que hoje habitam o nosso planeta, representa, ou não, de

fato, formidável energia, cuja orientação adequada tem reflexos sociais e econômicos de

enorme importância, ou se ao afirma-lo, estamos fantasiando, por “sonhadores” ou

“retrógrados”, como alguns nos rotulam. Se é verdade que indústrias derivadas daquela

fonte de energia, como as que se ligam à vaidade, dentre as quais, para citar apenas alguns

exemplos, a dos cosméticos, a das jóias, a dos perfumes, a dos salões de ginástica e de

massagens, a de modas, não fossem planejadas e levadas a cabo, de qualquer maneira,

inclusive, como é compreensível em quem não se preocupa com a visão holística da

realidade, a que pareça de “mais pronto retorno dos capitais investidos” ; mas, ao contrário

tendo-se sempre o cuidado de levá-las a cabo, de modo a não aviltar a natureza do interesse

entre um homem e uma mulher, não contribuindo para a identificação daquele interesse

apenas à sua dimensão lúbrica, como se seres humanos fossem idênticos aos irracionais no

cio, não se estaria conciliando o espírito prático à sabedoria? Sim, porque, com tal visão do

problema, não nos parece absurdo imaginar que houvesse a possibilidade de se auferirem

lucros contábeis.

Para não falar de outros como, por exemplo, os representados pela noção do papel

que empresários talentosos, por parte das suas próprias consciências e do conceito em que

a sociedade passaria a ter a respeito deles, como “doublés” de homens de negócios e de

pedagogos esclarecidos, contribuintes, com o talento de que dispõem, para o

fortalecimento da família, a “barragem” do símile que empregamos linhas acima. Qual tem

sido, até agora, o custo social do enfraquecimento, cada vez maior, da referida “barragem”,

em termos de desorientação de jovens, cuja desgraça alimenta os lucros dos traficantes de

drogas, multiplica o poder do chamado crime organizado, impõe os custos da manutenção

de clínicas especializadas, os gastos, particulares e públicos, para diminuir a insegurança,

cada vez maior, em que vivemos? E tudo isso são apenas detalhes, de um clima gerador de

problemas de altíssimo custo social, em verbas e em dor, resultantes de um conceito

imprudente, para dizer o mínimo e o menos contundente e capaz de magoar, acerca da

liberdade, concebida como ideal que se esgota em si mesmo, espécie de carta sem endereço

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e sem conteúdo, incompatível, como já o dissemos antes e estamos repisando, com os

fundamentos, os alicerces da cultura judaico-cristã de que somos parte.

Imprudência resultante dos equívocos dos intelectuais ativistas de maior influência

no chamado “século das luzes”, dentre os quais avultou o papel da dupla J. J. Rousseau e

John Locke, no fundo de mesma inspiração. O primeiro, como já o dissemos

anteriormente, de influência predominante na Revolução Francesa de 1789, cujo sentido

tem sido deformado pela exaltação, apenas, do que nela foi positivo; e pelo ocultamento,

intencional ou por ignorância, do que de mau e errôneo ela trazia em seu bojo. Quanto ao

segundo, grande inspirador de Thomas Jefferson, a quem se deve, principalmente, a

famosa Declaração da Independência, principalmente por ele redigida, com a única

alteração, segundo tudo indica, sugerida por Benjamin Franklin, a quem não agradaram as

expressões iniciais do documento, que estaria redigido com base em verdades sagradas e

incontestáveis, substituídas por auto-evidentes57. Para usar as palavras na língua em que

foram escritas, as expressões “sacred and undeniable”, foram substituídas por “self-

evidents”. Não se conclua daí ter sido Locke ateu ou agnóstico. Ao contrário, considerava-

se ele inequivocamente cristão.

Apenas, amigo como foi de Isaac Newton, e vivendo em um século de exaltação da

razão colocava-a como última instância para que algo transcendente pudesse ser aceito por

um ser humano, para ele uma “substância mental”, que chegava ao mundo como uma folha

de papel inteiramente em branco, a ser preenchida no contato com o meio circundante,

segundo os critérios aceitos pela razão de cada um. Nada de propósitos ou finalidades

prévias a serem observadas. Apenas, como cria em Deus, cria também que o uso adequado

dos mecanismos racionais, ao analisarem as experiências adquiridas e registradas, nas

folhas de papel inicialmente em branco, levariam à conclusão da existência do Criador.

Semelhante conclusão, porém, o leitor verifica que, efetivamente, em última instância,

dependeria da razão. Uma marca inconfundível do Racionalismo, do Iluminismo,

sobretudo francês. Quanto a implicações de outra ordem, resultantes da hipótese de todos

os homens, as “substâncias mentais” como os conceituava Locke, virem ao mundo

exatamente nas mesmas condições, como as “folhas de papel em branco” a que fizemos

referências anteriormente, a serem preenchidas pelas interações com o ambiente e as

maneiras de elaborá-las por intermédio dos mecanismos racionais, não nos parece

57. Grifos do Autor.

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necessário sublinhar, certos como estamos de que o leitor já pode identificar onde

encontraria suporte a afirmação de que “o homem é o produto do meio”.

Não que nos pareça cabível negar a influência do meio sobre a criatura humana.

Influir, porém, é uma coisa; outra, bem diferente, é supor, abdicando do livre arbítrio, da

capacidade de optar entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, que o meio determina a

conduta humana, é coisa profundamente diferente, diferença que acarreta gravíssimas

conseqüências. De outra parte, já vimos, também, que Rousseau, de certa maneira, pode

ser considerado discípulo de Locke, o mesmo acontecendo ao virtual autor da Declaração

da Independência, de tão grande repercussão na França onde, apenas treze anos depois,

ocorria a tomada da Bastilha.

Cabe, portanto, aqui, uma indagação do leitor: se o substrato intelectual das duas

revoluções era tão semelhante, como se explicaria a diferença entre os cursos que

tomaram? Como se sabe, a segunda, acarretou o banho de sangue que a História consigna

como “o Terror”, as perseguições mais impiedosas, o morticínio de religiosos, sobretudo

na Vendéia, onde foram assassinados, segundo se avalia, algo como vinte e cinco mil

padres e freiras, a perseguição e a execução de cientistas, entre os quais Lavoisier, pois “a

revolução não precisa de sábios” - expressão atribuída a Robespierre - e tantos e tantos

disparates, entre os quais a extinção das Corporações de Ofício, sem que nada fosse

providenciado para substituí-las finalmente, desaguando no retorno à monarquia e

surgimento de Napoleão Bonaparte, o general de gênio que desejava unificar a Europa sob

o seu domínio, tendo se feito coroar imperador. Na América, porém, os frutos da

revolução, de fundamentos teóricos tão semelhantes aos da francesa, foram completamente

diferentes. É que, no caso da revolução americana, durante muitos e muitos anos, o curso

dos acontecimentos de dependeu muito menos daqueles fundamentos, do que dos valores

cultivados pelos puritanos, que para lá se haviam dirigido, valores como o amor à família,

o amor ao trabalho, a fidelidade à palavra empenhada e outros, oriundos da Revelação, na

conformidade da fé que professavam58. Sobre tais valores foi construída a grandeza da

nação americana.

No caso da França, bem ao contrário, o espírito dominante era o da rebeldia, da

exaltação da razão, da ridicularização, não tanto desta ou daquela denominação religiosa,

mas da própria religiosidade, da irreverência e da mordacidade, que fizeram de Voltaire

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um dos ídolos daqueles tempos agitados. A atitude irreverente e rebelde não é a que se

coaduna às pessoas que confessam os valores, na prática predominantes, nos primeiros

tempos da construção da grande potência do Norte. Mas era a que dominava o clima dos

intelectuais ativistas e de uma massa, por eles induzida à imitação das disposições de

espírito dos seus líderes. Daí, os cursos profundamente diferentes que tomaram as duas

revoluções. No caso da americana, porém, os equívocos permaneceram na lei fundamental

e, ao longo do tempo, foram manifestando os seus efeitos. Tanto mais quanto, a aspiração

por liberdade, no sentido, sobretudo, de livrar-se de perseguições religiosas de que tinham

sido alvo na Inglaterra, transmitiu-se dos primeiros habitantes da América aos seus

descendentes, de maneira, a princípio, lenta e gradual, mas cada vez menos semelhante

àquela que seus antepassados haviam estimado tanto. A pouco e pouco, passou a insinuar-

se e a dominar um ideal de liberdade que não tinha compromissos com valores

previamente estabelecidos, aquele cuja estátua ornamenta a entrada do porto de Nova

Iorque e que, assim, sem destinação preliminar, temos caracterizado como uma espécie de

absurda carta sem destinatário e sem conteúdo que, tal é a realidade do ser humano, acaba

por degradar-se em licenciosidade, em seu mais amplo e ameaçador sentido.

Como nos esforçamos para manter a consciência da nossa insignificância, pedimos

ao leitor, sobretudo se ele está na faixa dos adultos e, ainda melhor, já na terceira idade,

que procure lembrar-se, como um exemplo simples e concreto do declínio a que acabamos

de referir-nos, que há bem poucas décadas, nada obstante a inexistência de uma censura

oficial - que a lê emenda constitucional tornaria impossível - comissões de mães e de pais

de família protestavam eficazmente contra certos espetáculos, sobretudo filmes de cinema,

que lhes parecessem atentatórios à decência e à família. O resultado era que, no tempo a

que nos estamos referindo, os filmes “audaciosos”, “picantes” ou, de alguma outra

maneira, chocantes do ponto de vista dos que se mantivessem fiéis aos valores

fundamentais da cultura judaico-cristã a que pertencemos, eram geralmente filmes

europeus. Os “picantes”, sem querermos ser desprimorosos, buscando apenas descrever

uma realidade de que darão testemunho os leitores já adultos ao tempo a que nos estamos

referindo, eram na maioria das vezes, franceses. “Filme francês” era expressão que, já de

si, insinuava o sentido “audacioso” a que nos estamos referindo.

Em segundo lugar, vinham os italianos, que preferiam, entretanto, para situar-se

entre os “de vanguarda”, a temática social, segundo a visão, muitas vezes, do Materialismo

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Histórico. Hoje, porém, como estão os filmes americanos? Primam pela observância dos

valores estimados por aquelas comissões de pais e de mães de família há pouco

mencionadas, ou mostram-se, digamos, talvez ainda mais “audaciosos” e “de vanguarda”

do que os filmes europeus de algumas décadas? Aí está um exemplo da superposição, aos

valores dos primeiros cidadãos americanos, e a quem a América deve a sua prosperidade,

dos que decorrem dos equívocos que, resumida e simbolicamente, estão representados na

famosa estátua da Liberdade. E, vejam, não estamos atribuindo ênfase ao fenômeno da

exibição crescente do relacionamento sexual entre homens e mulheres ou, mesmo, à

permissividade em torno de insinuações claras a certos desvios e taras. O que nos parece

mais relevante é a maneira segundo a qual desvios teóricos conduzem a erros práticos.

O modo e a velocidade com que o fazem, depende de variadas circunstâncias e de

peculiaridades das sociedades em que tais erros se instalam e representem a lei. Em

sociedade de pouca resistência cultural e de múltiplos problemas de ordem material

resultantes de pauperismo e da mais confrangedora miséria, claro que tais erros podem

manifestar, rapidamente, os resultados maléficos que deles podem ser extraídos.

Resultados que os que deles não são vítimas, mas beneficiários, rapidamente se põem em

campo para afirmar que tudo resulta da falta de exercício, de prática no manejo de

instituições que, assim, devem ser mantidas a qualquer preço, de vez que representam o

que, com grande freqüência, gostam de designar como “normalidade institucional” ou

“normalidade democrática”. No campo da realidade concreta, porém, não nos parece difícil

compreender que, como existem grandes diferenças entre sociedades nacionais distintas,

não é suposição das mais sensatas a que aceita a existência de um modelo institucional

aplicável a todas; e que os desajustes verificados tão freqüentemente, haverão de ter como

causa, sempre, a “falta de prática” no uso do pretensamente universal modelo. Isso, por um

lado. Por outro, como as diferentes sociedades nacionais são realidades mutáveis, não nos

parece, igualmente, sensato supor a existência de um modelo que, além de uso universal,

tem, ainda, a propriedade de ser eterno. Nada obstante, não faltam os teóricos do “fim da

História”, como já houve, e têm ainda alguns adeptos irredutíveis, os da afirmação segundo

a qual “Deus morreu”.

Por enquanto, entretanto, e dando por encerrado este capítulo em que nosso

objetivo foi tentar aproximar da observação do leitor, fatos e circunstâncias que, tendo suas

raízes em séculos distanciados dos dias em que vivemos, possam ter parecido pouco

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objetivos ou fora de propósito, tentaremos no capítulo que irá seguir-se, expor o

significado de algumas expressões por nós usadas e que, nem sempre, são, no que

representam, do conhecimento do leitor.

I.6 – Esclarecendo o entendimento que temos acerca de expressões

apenas mencionadas

Antes de mais nada, seja-nos relevado repetir, uma vez mais, que de nossa parte,

não alimentamos o propósito de desmerecer idéias, movimentos, tendências, camadas ou

grupos sociais, denominações religiosas e, muito menos, pessoas. O nosso objetivo é

oferecer aos que venham a ler estas páginas, como nós, em um extenso bosquejo histórico,

interpretamos o nexo entre fatos aparentemente desvinculados e, na máxima medida ao

nosso alcance, transcrever o pensamento de grandes vultos do processo de que somos

todos, queiramos ou não, “a última palavra do passado, e a primeira do futuro”. O

julgamento da verosimilhança da nossa interpretação de fatos que, segundo pensamos,

marcam os balizamentos de rumos que, em nossos dias, longe de conduzirem a um

progresso harmonioso, ao contrário, no que depende da natureza decaída do homem59, está

desaguando na clareira de cinzas em que campeiam disposições e hábitos que,

invariavelmente, marcaram o período de declínio, não de ascensão, de civilizações que nos

precederam, tal julgamento pertence ao leitor. E de, quanto a isto, pedir-lhe que leve em

conta, os perigos da superestimação da capacidade dos pobres seres contingentes que

somos, ao nos imaginarmos senhores absolutos do nosso destino.

Por outro lado, como o bosquejo extenso que intentamos realizar, abrange

circunstâncias por vezes profundamente diferentes, vocábulos originados em dada época,

podem mudar de sentido. Exemplo típico é a palavra “burguesia”, nascida no medievo, e

relacionada às primeiras aglomerações surgidas em torno das residências feudais,

denominadas burgos. Na História contemporânea, porém, a maioria das pessoas conotam o

seu significado ao que lhe emprestou a visão do Materialismo Histórico em que ela adquire

um sentido, digamos, pejorativo, eis que associado ao capital, conseqüência, naquela visão,

da exploração do trabalho, por intermédio do que designa como “confisco da mais valia”.

Usamos o mesmo vocábulo quando nos referimos à revolução dos “eupátridas” que levou

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Sólon ao poder, embora os acontecimentos em causa tivessem ocorrido antes da nossa era

e, portanto, antes do período medieval. É que, naquela ocasião, como mais tarde, muito

mais tarde, na revolução francesa de 1789, os maiores interessados na mudança da ordem

de coisas que lhes prejudicava os interesses, não representavam o maior número dos que

levavam a cabo as referidas mudanças, nem eram em número suficiente para que elas se

tornassem vitoriosas.

Por isso, os que queiram entender determinadas atitudes das massas, é nossa

opinião que devem cuidar da existência de motivos reais, pretextos válidos, e atrativos

suficientes60 para que os pretextos sejam confundidos com os motivos, e a energia das

massas seja colocada a serviço dos que, quase sempre ocultando os motivos, dispõem dos

meios necessários para promover e acionar pretextos e atrativos. Também parece-nos útil

chamar a atenção para o fato de que, segundo a obra clássica de Sorel, “Refléxions sur la

Violence”, será sempre mais fácil realizar uma, “jacquerie” por uma bandeira, do que por

um pedaço de pão. A observação nos parece útil, exatamente porque, em nome do que

consideram “espírito prático”, têm sido descurados os mecanismos subjetivos presentes na

realidade do ser humano. Talvez por isso, tantos insistem na resistência a uma verdade tão

simples quanto a que se refere a ser a felicidade uma sensação, não uma coisa61, ainda que

o atendimento de certas necessidades essenciais, representadas por coisas, seja necessário

para que não se torne inviável, ou extremamente difícil, a sensação de felicidade.

Por incrível que pareça, o revolucionário que operacionalisou com maior nitidez

noções como as acima mencionadas, foi um materialista confesso, um ateu militante, de

nome Wladimir Illitch Ulianov, mais comumente conhecido como Lénine, codinome que

usou em razão do nome do rio em cuja proximidade vivera os primeiros anos de sua

existência. Foi ele o homem de ação, que realizou o que fora concebido por Marx, e seu

mais íntimo colaborador, Engels, e que, resumidamente, foi dado a público em 1848.

Repare o leitor como, da revolução francesa de 1789, até a publicação do Manifesto

Comunista a que acabamos de aludir, transcorreram apenas 59 anos. Levando em conta

que a dinâmica dos acontecimentos no século passado era muito menor do que a que hoje

pode ser observada, esperamos que já possa, no espírito do leitor, parecer menos

disparatada a afirmação registrada anteriormente e cujo sentido nos estamos propondo

esclarecer melhor no presente capítulo. Referimo-nos à afirmativa de que a revolução

francesa foi uma espécie de ante-sala da revolução de Outubro de 1917, na Rússia, que,

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aliás, entre tantas outras coisas, acarretou a derrubada da monarquia, e o trucidamento do

“czar” e de toda a sua família, inclusive do “czarevitch”, pobre criança hemofílica, cuja

doença foi o motivo da grande influência na Corte, da figura enigmática e sinistra de

Rasputine.

É que este, segundo relatos da época, fazia estancar as hemorragias a que estava

sujeito o herdeiro do trono, cuja genitora, a “czarina”, sentia-se, como mãe, dele

dependente de maneira dramática. Este, porém, é um pequeno “flash”, mencionado apenas

para evidenciar a proximidade histórica entre a Queda da Bastilha e o Manifesto

Comunista e a diferença entre pretextos atraentes e conseqüências chocantes, facilmente

verificável nas duas revoluções; ainda mais importante e convincente sobre a existência da

seqüência que estamos tentando tornar mais clara para o leitor, é que a chamada

“revolução belchevique”, não começou como tal, mas como uma revolução democrática62

de moldes análogos aos que inspiraram a revolução francesa. De fato, tratar-se-ia, apenas,

de abolir os privilégios aristocráticos e os seus abusos, em nome da liberdade e da

igualdade de todos, revolução que se tornou vitoriosa e levou ao poder, em um primeiro

instante, o Sr. Kerenski, um político tão hábil, que seria capaz de conciliar os antagonismos

entre os revoltosos de Petrogrado, e a Duma de Moscou... O resultado, todos sabemos, foi

que a minoria bolchevique dominou a maioria menchevique e, rapidamente, tornava-se

vitorioso o “slogan”: “todo o poder aos “sovietes”.”

Quanto à habilidade de Kerenski, na verdade é a maneira generosa com que, entre

outras, pessoas destituídas de convicções suficientemente sinceras e firmes para

impulsionarem ações, designam a aptidão para administrar, como é usual dizer-se entre

políticos do gênero que estamos figurando no momento, divergências e discordâncias entre

partes desavindas. Aptidão, de resto, de fato louvável e imprescindível, no dia-a-dia das

atividades do trivial relacionado ao funcionamento dos mecanismos institucionais em

vigor; nunca quando se trate da opção entre grandes e divergentes concepções acerca da

natureza e do destino dos seres humanos e da sociedade em que eles vivem; nesse domínio,

a “habilidade” transforma-se na vacuidade em que se perderam Kerenski e a revolução que

ele imaginava liderar. É que os “bolcheviques”, em face da questão que tantos “espíritos

práticos” consideram irrelevante, a questão da transcendência do destino dos homens, da

existência ou da inexistência de um Deus criador, de uma Sua lei e da nossa

responsabilidade perante a Sua Vontade, tinham uma opção firme pela negativa. E criam

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nela que, articulada na amplitude de uma cosmovisão, que se propunha responder, e

efetivamente respondia, a todas as indagações do espírito humano (se o fazia de maneira

adequada, ou não, já é um outro problema que acontecimentos recentes se incumbiram de

elucidar), funcionava como uma espécie de humanismo sem Deus ou mesmo, segundo

alguns, como uma ilógica “religião sem Deus”.

Os contemporâneos de Kerenski e, até hoje, por efeito da “inércia histórica das

idéias”, os que se dizem liberais, como acontece, não apenas entre políticos mas também

entre burgueses, preferem abster-se de responder à magna e fundamental questão, desde

1789, considerada descartável, eis que todo o Direito deveria depender, exclusivamente, da

“vontade geral”, expressa pelos “representantes do povo”. O homem, portanto, já não

necessitava de nada além da sua própria realidade e dos critérios da sua própria razão. Por

que, então, comprometer-se com uma resposta “que não teria nada a ver”, como dizem os

jovens. E qual é o homem de “espírito prático”, sobretudo quando o dedica às atividades

que, desde o período medieval, os que as praticavam preferiam fazê-lo livres de

empecilhos éticos irremovíveis, por resultarem do referencial axiológico fixo por provir de

revelação divina; qual deles, hoje, não propende para a mesma disposição? Aqui, cabe

esclarecer que não nos estamos referindo à maneira pela qual o espírito de tal ou qual

época histórica interpretava aquele referencial, no que tange à sua aplicação a esse ou

àquele tipo de atividade, para aplaudi-la ou contestá-la. A questão central, ou originária, é

saber-se se existe ou não um Deus criador, uma Sua vontade e uma Sua providência.

E o que é que, potencialmente, envolve menos risco: é responder com clareza, ou

abster-se? Na visão que tantos consideram prática, e no horizonte próximo marcado pelo

imediatismo que, na realidade ela representa, a resposta é óbvia: é abster-se. Na vida

pessoal e na intimidade, a questão se inverte: torna-se mais vantajoso não negar

frontalmente ou, sequer, confessar que se abstém por considerar irrelevante o problema. E

se, por acaso, a resposta afirmativa for a correta? Não poderão advir daí conseqüências

desfavoráveis numa outra vida, “quem sabe”, existente? Mas alguém, cujos mecanismos

psicológicos são do tipo que estamos supondo, é capaz de entusiasmos ou, de preferência,

de acomodações que signifiquem, no mínimo, ausência de riscos supostamente evitáveis?

Mas Lénine acreditava na cosmovisão a que aderira a sua consciência. E, espírito prático,

polarizado não pela esperteza que acomoda, mas pela noção de que, no que tange aos

grandes rumos da História, ser “oportunista” e “esperto”, é ser omisso e medíocre, tendo

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adotado o caminho que lhe fora sugerido pela sua natureza decaída, concebeu o que lhe

pareceu operativo para dar conseqüências objetivas à cosmovisão distorcida cuja base

assentava na convicção de ser a luta entre os homens, divididos entre explorados e

exploradores, o motor necessário, indispensável, da História.

A feição dialética, de fato presente em todas as coisas, fora interpretada por Marx

como uma dialética de luta, conseqüente aos contrários internos de que se constituem todos

os seres e que, por serem contrários, contrariam-se, conferindo a cada ser e ao conjunto de

todos os seres a atividade observável no universo inteiro, onde operam os contrários

internos a que acabamos de referir-nos, e os contrários externos, existentes entre seres

distintos, tudo tornando dispensável a hipótese de um Deus, responsável pela atividade

universal, que não pode ser negada. Em largos traços, o que estamos, neste momento

tentando, é oferecer ao leitor que, por acaso, não tenha tomado ainda conhecimento do que

se contém de mais fundamental na Filosofia marxista da Natureza, a primeira das suas

“leis”, precisamente conhecida como “lei dos contrários”. No que tange à sociedade, os

contrários, como já foi dito, estão representados por patrões e empregados, os “inimigos de

classe”, de cuja oposição de interesses, eis que, por definição, são contrários, resultarão as

lutas sem as quais o quadro das explorações dos primeiros sobre os segundos, não se

atenuarão ou, ainda menos, desaparecerão.

Como o capital possuído pelos patrões, resulta do “confisco da mais valia”, parte da

riqueza produzida pelo trabalhador e que não compõe o seu salário, a continuar assim a

situação, haverá um número cada vez maior de capitalistas, cada vez detentores de capitais

maiores, e um número crescente de operários até que, inexoravelmente, ocorrerá o “salto

qualitativo”, conceito que, no plano das transformações sociais, corresponde à “lei”

estabelecida em Filosofia marxista da Natureza, nos seguintes termos: “aumentos

quantitativos adequados produzem, por salto brusco, transformações qualitativas”. Assim,

quando o número de proletários for adequadamente maior do que o de capitalistas, por

salto brusco, a sociedade capitalista burguesa transformar-se-á em outra, em que o poder se

transferirá para as mãos dos operários, desaparecendo o “confisco da mais valia”, e a

propriedade privada, sobretudo de natureza fundiária, deixará de existir - o que, diga-se de

passagem, realizaria o que Rousseau sugeriu na passagem do seu “Discurso sobre a

Desigualdade”, transcrito em outra parte desta obra. Observe-se ainda que, para que o

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“salto qualitativo” possa ocorrer, é necessário que, além da numérica, já assinalada,

estejam presentes outras “condições objetivas”.

Tudo isso, registre-se, em uma exposição extremamente resumida dos fundamentos

de uma cosmovisão, resumo feito apenas para assinalar o método revolucionário leninista,

como instrumento viabilizador de uma transformação social que tardaria muito, caso viesse

a depender de proselitismo de massa, extremamente difícil, face ao caráter profundamente

complexo do chamado Materialismo Dialético, espinha dorsal da cosmovisão marxista,

espécie de coroamento de um longo trajeto histórico, abrangente de muitos séculos mas

que, como temos tentado evidenciar desde o início do esforço que este livro representa,

claramente deixa patente uma ilusória libertação da humanidade do que seria o jugo

alienante da religião ou, melhor dizendo, da religiosidade, da admissão da transcendência

do destino humano, a projetar-se em termos de infinito e de eternidade. Daí, a expressão

que seguramente o leitor conhece, pois tem sido, ou vinha sendo, largamente promovida,

de que a religião, ou a religiosidade, seriam “o ópio do povo” no sentido de que ele não se

desse conta da realidade da exploração cruel de que era vítima.

Ainda que não sendo possível, neste momento, entrar em detalhes acerca dessa

sinistra aventura consistente em, pela primeira vez na História, tentar organizar a sociedade

com base na negativa frontal e necessária da existência de qualquer coisa fora ou além da

matéria63, do pouco que foi dito, supomos, fica evidente a marca de uma disposição que,

oposta à do amor entre os homens, como corolário de sua irmandade por serem filhos de

um mesmo Pai, que os criou, não para que se odiassem mas para que se compreendessem e

se amassem, pregava a luta como motor indispensável da História.

Como, entretanto, dizíamos, linhas acima, seria muito difícil fazer as massas

aceitarem pela via da razão, o que representava o oposto, não apenas a tudo quanto elas

haviam admitido como sagrado até então, mas a quanto restava em todos que as

compomos, da nossa verdadeira natureza, no que ela tem de melhor e de mais generoso, e

que certamente não aponta para a necessidade da desconfiança e da luta. Daí, o que temos

designado como método de ação revolucionária leninista pregar, exatamente, não a ação de

proselitismo direto e explícito, a nível de massa. Realmente, quando aquele revolucionário

de gênio, em congresso realizado no início deste século, após ter exposto as suas idéias a

respeito, o número dos que as apoiaram era tal, que todos couberam em um único

63. Sobre a cosmovisão do Materialismo Dialético, existe copiosa literatura, tanto de autores a ela favoráveis, quanto de outros que, ao

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automóvel. E no que consistiam as referidas idéias? Na necessidade da criação de um

partido comunista, composto, segundo expressões atribuídas ao seu próprio autor, por uma

minoria, uma elite tão devotada à obra de derrubada do capitalismo burguês, que poderia

ser caracterizada como uma espécie de grupo de “mortos em férias”, de vez que as vidas

dos seus componentes seria inteira e totalmente dedicada a realizar a “revolução do

proletariado”, do qual seriam eles a “vanguarda”.

E tudo isso expressava uma enorme contradição com respeito à visão básica do

“Materialismo Histórico”, aplicação aos fatos de índole Histórica, do seu fundamento, a

cosmovisão do Materialismo Dialético. E por que seria assim? Porque, como já vimos

anteriormente, segundo aquela visão do processo histórico, no âmago das transformações

sociais pulsa, como seu verdadeiro motor, a luta de classes, resultante de serem os

“contrários” do, digamos assim, “ser social”, os explorados e os exploradores; contrários

esses que, de uma ou de outra maneira, vão produzindo a dinâmica das mudanças sociais,

em cujo contexto todas as ideologias não representariam mais do que reflexos da “infra-

estrutura econômica” com as características dos seus métodos e suas relações de produção.

Idem, idem, com relação às “superestruturas institucionais”. E, dadas as características

inevitáveis da empresa capitalista, fundada na apropriação da “mais-valia”, fonte

inexorável da acumulação do capital em um número cada vez menor de mãos, com o

crescimento, igualmente inevitável, do número de proletários cada vez mais pobres,

fatalmente chegaria o momento da presença das condições objetivas, propícias ao “salto

qualitativo”, na forma já mencionada anteriormente.

A serem todas essas coisas verdadeiras - e sabemos concretamente que não são, ao

menos como dados inexoráveis das transformações históricas, - a sociedade comunista

resultante do “salto qualitativo” seria algo a acontecer fatalmente, dispensando, portanto

um partido incumbido de levar a cabo o que, afinal, não dependia da vontade dos atores do

processo, mas das “leis internas” que o impulsionariam, inexoravelmente, para o que,

supunham, seria a magnífica sociedade comunista do futuro na qual

“de cada um seria exigido conforme a sua capacidade e a cada um seria dado conforme a

sua necessidade”. É bem verdade que nunca ficou claro a quem caberia avaliar a

capacidade e a necessidade de cada um... No momento, porém, o que desejamos realçar é

que, nos que criam nessa espécie de “religião sem Deus”, haveria de parecer disparatada a

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idéia de Lénin, apresentada no congresso realizado no começo do século, na cidade de

Zimmerwald, na Suíça, a que fizemos menção anterior.

O argumento do grande revolucionário, porém, era que a “vanguarda” de lúcidos

conhecedores da dialética marxista, que os demais ignoravam, “dopados” como estariam

por ideologias fantasiosas - especialmente as de natureza religiosa, que ao suscitar

esperança em uma vida futura, esvaziaria o ânimo de revolta contra o opressor - daí a

expressão já citada: “religião é o ópio do povo” - os quais oprimidos, entretanto, em sua

curta visão de “ alienados”, identificavam apenas problemas imediatos e tinham aspirações

de mesma índole, que não conseguiam resolver ou conquistar, exatamente porque, as

razões mais profundas de tais “contradições”, escapavam ao entendimento de quantos não

integravam ainda a “vanguarda”. Estes, porém, com a sua sofisticada e elaborada visão,

devidamente infiltrados em contextos potencialmente promissores, poderiam identificar as

“contradições” neles existentes e, sem a necessidade de qualquer compromisso com os

complexos fundamentos do Materialismo Dialético, levantar como bandeiras as referidas

“contradições”, emprestando dinamismo a uma massa até ali, insatisfeita, mas sem rumo

definido de ação.

Desencadeada esta, porém, os elementos da “vanguarda”, no curso do processo, o

iriam orientando para o alvo ou para a meta que só eles conheciam. Ditas assim as coisas,

reconhecemos não ser fácil ao leitor que não tenha conhecimento anterior e mais detalhado

da temática neste momento abordada, apreender a formidável potencialidade do método

concebido pelo futuro líder da revolução bolchevique. Permitir-nos-emos, então, imaginar

alguns exemplos que contribuam para a concretização do entendimento acerca do que

estamos expondo. Não há dúvida nenhuma de que a realização de uma política agrária bem

intencionada, ainda que não consistindo apenas nisso, passa necessariamente pela garantia

da atribuição de terra aos que saibam e queiram cultiva-la. A propriedade privada,

sobretudo da terra, porém, do ponto de vista do marxismo é um verdadeiro absurdo, de vez

que, para aquela visão, a propriedade privada, sobretudo de natureza fundiária, é a raiz de

todos os males e de todas as injustiças sociais. Mas, veja o leitor: qual é o maior número de

pessoas na sociedade brasileira: o dos que possuem terras, ou o dos que não a possuem? A

resposta, óbvia, é que é muitíssimo maior o número dos que não possuem terra.

Assim, os elementos de “vanguarda” não hesitaram um só momento, ao tempo das

famosas “reformas de base”, tão mencionadas no governo João Goulart, em empunhar a

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bandeira da “reforma agrária”, cuja reivindicação consistia, exatamente, em atribuir a

propriedade fundiária aos que desejassem tê-la para cultivá-la. Mas quais terras deveriam

ser distribuídas? Preferencialmente as que correspondessem aos latifúndios. As por acaso

devolutas e de propriedade da União, estas não deviam ter prioridade, por serem mal

situadas, ou de solo não adequado à exploração, etc. Tudo isso pode ser entendido e

discutido com tranqüilidade e honestidade de propósitos. Mas quando lideranças marxistas

se lançam, como então se lançavam, à frente das reivindicações que, como já vimos,

diziam respeito à atribuição da propriedade privada do solo ao maior número possível de

pessoas, e tudo em clima de tumulto e de improvisação, estava mais do que claro que o

objetivo real não era reconhecer a justiça da atribuição da propriedade da terra aos

lavradores que não a possuíam. O que se queria era desmoralizar o conceito da

intocabilidade da propriedade privada, que a lei reconhecia.

E, naquele clima, desmoralizada essa intangibilidade, os pobres agricultores que

recebessem os seus “títulos de propriedade”, sem os demais amparos sobre os quais pouco

ou nada se falava, dentro de muito pouco tempo descobririam que a sua situação de penúria

não se havia modificado, a não ser, talvez, para pior, porque a animosidade entre

“explorados” e “exploradores”, teria se exacerbado com agravantes que só quem não

conhece a nossa confrangedora realidade rural ignora. Por exemplo, o nosso lavrador, nas

épocas ruins em que a lavoura é tão pródiga, sabe que o seu “banco” é o vendeiro que lhe

fornece a crédito, por conhecê-lo de há muito, o que o livra da fome, até que venha a

próxima colheita. Instalado um clima de desconfiança e ódio no campo, como se

comportaria essa realidade?

É bem verdade que, no exemplo que estamos imaginando, o mal-estar a que

acabamos de aludir, sofreria nova transformação. É que a “vanguarda do proletariado” teria

chegado à sua verdadeira meta, em uma segunda etapa, caso já estivesse no poder, onde

não toleraria “a raiz de todos os males”, representada pela propriedade fundiária. Assim,

rapidamente, lavradores que haviam recebido títulos de propriedade em um contexto em

que um dos argumentos centrais havia sido que esta nada tem de intocável, tomariam

conhecimento de que as autoridades, para o bem da agricultura e dos agricultores, tornava

nulos os títulos de propriedade privada antes distribuídos, para a organização das “fazendas

coletivas”, as mesmas que na URSS revelaram tanta “produtividade”.

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Nos EUA, a potência rival da União Soviética, enquanto esta existiu e foi tão

devotadamente servida pelas “vanguardas” a que nos estamos referindo, seria muito difícil,

até bem pouco tempo, “mobilizar o proletariado” em torno da temática tão rica em outras

sociedades, relacionada a salários insuficientes, para não dizer francamente miseráveis

como é, por exemplo, o nosso caso; é que o operário americano acreditava que ele era o de

melhor remuneração no mundo. Mas lá, havia cidadãos pretos e brancos, e havia

discriminação racial. Aí estava a grande “contradição” a ser explorada - e toda a

“vanguarda” americana lançou-se à exacerbação dos ressentimentos que ela ensejava e

que, ao tempo da “guerra iria”, e até hoje, tantos problemas e dificuldades têm trazido à

administração e à sociedade americanas. São estes, exemplos do que designamos como

“método leninista” de ação revolucionária. Como ficou dito, a idéia básica assenta sobre a

conveniência, para acelerar o advento da sociedade comunista do futuro, de não ser tentado

o proselitismo de massa, difícil pela complexidade de uma cosmovisão chocantemente

diferente da que, durante tantos séculos, dominara o Ocidente (estamos falando, no

momento, do contexto sócio-cultural do Ocidente), e tão exigente de meios que não

estavam à disposição da “vanguarda” de “mortos em férias”, como descrevera os seus

integrantes ideais, o Partido cuja formação propunha Lénine.

Sim, porque se os integrantes do referido partido que, diga-se de passagem, sempre

teve dois tipos de quadros, os ostensivos e os clandestinos, mesmo que não houvesse

legislação que proibisse as suas atividades, fossem bastante competentes, as paralisações

sucessivas do trabalho, com as previsíveis seqüelas no processo produtivo; o acirramento

crescente da animosidade entre patrões e empregados; a denúncia dos abusos do poder

contra as lideranças dos trabalhadores; a desmoralização dos políticos que ousassem supor

a existência de intencionalidade política, em movimentos grevistas que deveriam referir-se

a problemas relacionados às condições e às relações de trabalho; as denúncias sobre

escândalos no seio da alta administração; tudo isso poderia levar, e efetivamente levava, a

um descontentamento crescente, em grande escala, canalizado habilmente para a conquista

do poder, sob lideranças que jamais mencionavam a natureza dos seus verdadeiros ideais,

mas outras bandeiras e “slogans” de aceitação fácil por parte da maioria. Bandeiras como

“justiça social”, “liberdade”, “democracia”, etc., etc.. Mas a “vanguarda” tinha que ser

competente o bastante, para conduzir o “processo”, até que estivessem configuradas as

“condições objetivas” para a ocorrência do “salto qualitativo”.

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Nem tinham os seguidores desse método a ilusão de fazer as suas etapas sempre

iguais, ainda quando as sociedades a serem conquistadas fossem diferentes em seus usos e

costumes políticos, sociais, ou distintas as suas economias e as condições de vida da

maioria dos seus integrantes. Não; ao contrário, entre outras fontes que poderiam ser

citadas, no “Manuel sur le Marxisme - Léninisme”, editado pelo Instituto de Línguas

Estrangeiras, de Moscou, ainda na década de 70, encontramos a expressa observação sobre

o fato de que a marcha para a construção de uma sociedade socialista deveria seguir os

caminhos que fossem considerados mais adequados, conforme as características e

peculiaridades das sociedades a serem conquistadas. Assim, ainda mais especificamente,

assinalava: nas sociedades de arraigadas tradições parlamentares, os parlamentos deviam

ser usados como fontes da transformação desejada. Mas como estamos tentando apenas

descrever, relatar, não opinar acerca da propriedade, ou não, dos fatos descritos, um

exemplo mais concreto poderá esclarecer melhor a essência do método usado pelos

“parteiros da História”, eis que, como já vimos, a sua atividade não visava produzir um

resultado que, para eles, era inexorável, como conseqüência da operação das “forças

internas” da História, os “contrários” que o leitor já sabe o que significam. A “vanguarda”

atuava apenas para acelerar o “parto” em questão.

Vamos, porém, ao exemplo prometido: Quando foi instaurado em nosso país, o

“Estado Novo” sob a liderança do Sr. Getúlio Vargas, todos os partidos políticos foram

extintos, e os considerados de extrema direita ou esquerda, passaram a ser perseguidos pela

polícia política. O Sr. Luís Carlos Prestes, que a “vanguarda” costumava designar como

“Cavaleiro da Esperança”, foi encarcerado. Deposto Vargas, em conseqüência do final da

2a grande guerra com a derrota do Eixo, consta que uma das exigências de Stálin, feita

quando da realização da famosa Conferência de Ialta, consistiu em que os EUA se

comprometessem a restaurar a democracia, na área sob a sua influência, como era o caso

da América Latina. E a democracia a que se teria referido o ditador soviético, não era do

tipo “popular”, como vieram a ser chamadas várias das situadas sob a influência de

Moscou. Tratava-se da que a “vanguarda” designava como “democracia capitalista” ou

“democracia burguesa”. Realmente, tão logo o Sr. Prestes foi libertado do presídio em que

se encontrava, e a despeito de ter sido apregoado durante muito tempo pelos seus

seguidores, que a esposa dele, grávida, teria sido devolvida à Alemanha nazista, para um

destino que, evidentemente, seria doloroso e trágico, a despeito de tudo, os muros da

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cidade, e possivelmente, não apenas do Rio, em que estivera encarcerado, mas em várias

outras do país, apareceram cobertos pelos seguintes dizeres: “Constituinte com Vargas”.

E os ardentes militantes da “vanguarda” eram os notórios autores da propaganda.

Sabe o leitor por que? Porque Vargas, como é sabido, a despeito de ditador, era um líder

popular de incontestável prestígio; e porque os comunistas desejavam em seu afã em

acelerar o “parto” a que fizemos referência, não desgostar a massa, conquistar as franquias

que as Constituições democráticas estabelecem, e isolar quanto possível “a burguesia” e os

“seus aliados de classe média”, que se haviam mostrado sempre em oposição à ditadura

populista do líder político gaúcho. De resto, não há registro de país em que, não estando a

“vanguarda” no poder e, ao contrário, nela esteja instalado um regime autoritário ou

ditatorial, em que a referida vanguarda não se bata, denodadamente, pela democracia. Pela

democracia, é claro, que é vista por eles, como uma etapa intermediária e muito útil, da

meta que, efetivamente, visam alcançar64. A observação não é nossa apenas mas, como

integra a lógica do método revolucionário de que estamos tratando, tem sido registrada por

numerosos autores. Entre eles, podemos citar o Sr. Jean François Revel, para quem as

democracias têm como que uma vocação suicida, ao garantirem aos seus inimigos mais

perigosos, todas as franquias de que eles necessitam para destruí-la.

E, ainda mais surpreendente, o Sr. Raymond Aron, um dos maiores nomes da

Ciência Política contemporânea, na penúltima obra que publicou, sob o título “Em Defesa

da Europa Decadente” (título que não exprime a sua concordância com a alegada

decadência que outros apontam), entretanto assevera em uma das primeiras páginas da

citada obra: “As democracias conduzem as sociedades para o socialismo marxista com a

mesma tranqüila inexorabilidade com que os rios conduzem as suas águas para o mar”.

Claro que o livro em questão foi escrito e publicado antes da queda do muro de Berlim. A

citação é feita para caracterizar a fria objetividade com que os adeptos do método

revolucionário de que estamos tratando manobram, sempre lançando mão do que lhes

pareça mais operacional, em termos de promover o engajamento da massa. A esta altura,

porém, o leitor já poderá estar se perguntando, e com toda a razão, como podem tão poucos

- eis que as “vanguardas” a que nos estamos referindo são quase sempre numericamente

inexpressivas - influir tanto e causar tantas preocupações, a ponto de políticos que não as

integram e, até, capitalistas que são vistos por elas como os “inimigos de classe” a serem

excluídos no futuro, cortejarem-nas, sempre que lhes é possível?

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Neste ponto, ocorre-nos à memória, imagem que usamos em certa oportunidade em

que falávamos a um público jovem, respondendo a indagação de um dos presentes,

precisamente da natureza da que acabamos de registrar.

Naquela oportunidade, dissemos o seguinte: Diz a sabedoria popular que “se força e

tamanho fossem “documentos”, o elefante é que seria o dono do circo”. Na realidade,

porém, longe disso, o que se observa é que o pequenino domador, tão frágil diante do

elefante, estala o chicote e o enorme paquiderme, por exemplo, senta-se em um tamborete;

ou equilibra-se sobre as patas dianteiras, “plantando uma bananeira”. Enfim, dócil, pratica

todas as manobras mais ou menos ridículas que o domador deseja, para deleitar o público.

É que, no cérebro obnubilado do enorme animal, parece altamente vantajoso obedecer,

porque, na fase do seu treinamento, a toda obediência corresponde um torrão de açúcar; e a

toda recalcitrância, a ausência da guloseima, quando não uma chibatada. O elefante,

concluímos, representa o conjunto dos “alienados”; o domador, a “vanguarda” dos que

“sabem o que estão fazendo”. A imagem acima foi, naquela oportunidade, muito bem

recebida, embora restasse a dúvida sobre a quem pertence o chicote do domador e porque

pode ele utilizá-lo livremente. E é aqui que desejamos esclarecer mais um ponto apenas

mencionado no capítulo anterior. Referimo-nos ao que ali foi designado como “estratégia

de Gramsci”.

Antonio Gramsci foi um militante marxista italiano de gênio que, prisioneiro em

seu país, ao tempo da ditadura de Benito Mussolini, escreveu as famosas “Cartas do

Cárcere”, em que tece considerações acerca das circunstâncias e condições que, em 1917,

tornaram possível o sucesso da revolução bolchevique. Para Gramsci, a “sociedade

política”, composta pela aristocracia, pela oficialidade das forças armadas e por algumas

poucas e insuficientes organizações da sociedade civil, suas aliadas, representava na

Rússia, um sistema de forças muito frágil, incapaz de sustentar a autoridade no momento

de crise que se configurava, diante da pobreza da maioria do povo e das sucessivas derrotas

militares na frente ocidental, especialmente os grandes fracassos sofridos ante as tropas

prussianas nos lagos Mansurianos. O brio nacional ferido; a corte desprestigiada, os

quadros militares subalternos se insubordinando, o pretexto de uma mudança não tão

dramática quanto a que, realmente, se estava tramando, o surgimento do “habilíssimo”

64. Grifos do Autor.

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Kerenski, tudo ensejou à minoria bolchevique o sucesso da “revolução de Outubro”, os

famosos “dez dias que abalaram o mundo”.

Na Europa ocidental, porém, ao tempo em que escreveu Gramsci, era opinião dele,

o quadro da realidade já era muito diferente do da Rússia czarista. Agora, a chamada

“sociedade civil” se robustecera extraordinariamente, pelo fortalecimento das instituições

que a compunham e, longe de hostilizar a “sociedade política” de seus países, no fundo era

dela aliada, estando disposta a sustenta-la, mesmo diante das mais graves crises que se

pudessem apresentar. As divergências, pois, entre as modernas “sociedades civis” e as

“sociedades políticas” respectivas, eram apenas, superficiais, em torno de disputas

menores, ressalvada, sempre, a ordem institucional, que a todos interessava. Assim, para

Antonio Gramsci, a “sociedade política” representava como que uma fortaleza central cuja

defesa era feita por numerosos fortins, constituídos pelas instituições da sociedade civil,

interessadas na incolumidade do forte que a todos importava defender. Como proceder,

então? Neste ponto, parece-nos oportuno esclarecer o sentido de mais uma expressão de

que já nos valemos anteriormente, consistente no que designamos como “centros de

irradiação de prestígio cultural”. São múltiplos esses “centros”.

Para citar alguns que nos parecem muito importantes, as colunas de crítica literária,

teatral, musical, no sentido de música popular ou erudita, o jornalismo político, de

imprensa escrita, televisada ou radiofônica, as cátedras universitárias, especialmente as

destinadas à formação de profissionais de imprensa e à formação de professores de nível

médio, as equipes de reportagem credenciadas nas Casas Legislativas, as colunas de crítica

no campo das artes plásticas, etc., etc. Trata-se de trabalho de infiltração que, como bem

compreende o leitor, com o correr do tempo, embora não utilizando massas consideráveis

de militantes, lança mão daqueles que Lénine designara como “mortos em férias”,

esclarecidos sobre as “verdadeiras forças e verdadeiros rumos da Historia”. Certos,

também, de que, desde que respeitados determinados limites, referentes aos interesses da

maioria dos proprietários dos veículos de mídia, estes poderiam ser utilizados pelos

infiltrados, ainda que não fossem deles os proprietários65.

Aqui, talvez seja útil lembrar a imagem do elefante e do domador, há pouco

utilizada, e o, ao menos para nós, perigoso equívoco de anunciar-se a liberdade como um

ideal que se esgota em si mesmo, sem compromissos com qualquer referencial axiológico

que, longe de limitar-lhe o exercício, na verdade o enobrece, como procuramos

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exemplificar com a massa de água que, só produzindo barulho e, em certos casos,

compensação estética, se for, não impedida de fluir, mas condicionada a fazê-lo em

determinados canais, pode acionar as turbinas que geram energia elétrica que ilumina, que

movimenta máquinas que produzem e ensejam empregos, e assim por diante. Na maneira

pela qual tão nobre exigência da natureza humana foi concebida por Locke e por Rousseau,

sem limites claros e sem objetivos de índole nitidamente conhecida, ela é o que mais

importa aos que, quando não estão no poder, exigem-na. Pois é ela que, ocupados por

infiltração, os “centros de irradiação de prestígio cultural”, transforma os infiltrados no

“domador” e, ainda por cima, por irrisão, lhes coloca nas mãos o chicote e os torrões de

açúcar com que fazem-se obedecidos pelo elefante, de cujo corpo são integrantes, tantas e

tantas vezes os proprietários dos veículos sem os quais o “domador” não teria nenhuma

possibilidade de influenciar.

É que, quando alguém, no domínio das artes, na imprensa, na ação parlamentar, na

direção dos veículos que lhes pagam os salários, ousa coibir-lhes a ação, funciona o chicote

representado pelos apodos de: radical, intolerante, conservador, antidemocrático,

reacionário. A princípio, supomos, tudo isso exigia um planejamento centralizado; já

agora, o sucesso estrondoso da manobra criou como que uma “cultura”, caracterizada pela

equivalência entre permissividade e espírito progressista, moderno, de vanguarda, que são

os torrões de açúcar à disposição do domador. Assim, fazem-se e desfazem-se reputações.

Assim, barram-se os caminhos de quantos, por quaisquer motivos, defendem valores que

não se encontram em coincidência com os desejados pelos iniciadores, dirigentes e

admiradores dos resultados da máquina que estamos descrevendo em suas linhas mais

significativas. Gramsci sabia de tudo isso. E sua arguta visão pode perceber que a “aliança”

entre a sociedade civil e a sociedade política dos nossos dias não permitiria a utilização da

manobra além dos limites capazes de pô-la em risco.

Nem mesmo, como já vimos, em situações de grave crise. Assim, o que ter-se-ia

que fazer era a adoção de estratégia consistente em utilizar, de tal maneira, os recursos

disponíveis que, sem necessidade de menção a projeto político-institucional alternativo, se

fosse cavando um fosso de tamanha profundidade entre os integrantes dos “fortins” da

sociedade civil e os seus dirigentes, entre as novas gerações e as mais antigas, que haveria

de separar os “fortins” da “fortaleza central”, pois a visão crítica dos detentores do

controle, em ambos os casos, impediria o exercício eficaz do poder de que eram detentores.

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Lembram-se os leitores da canção popular que dizia” “não confie em ninguém que tenha

mais de trinta anos?” O que significa a sinonímia que se vai impondo entre “amor” e

“cópula”? O que é que tem sido designado como “contracultura”? Por que existe, ou

existiu, um “Centro Internacional de la Canción Protesta”, em Cuba?

De novo cabe lembrar, e o fazemos sem hipocrisia, que estamos relatando coisas,

cuja avaliação será feita pelos que venham a ler estas linhas. Para nós - e aí vai uma

opinião pessoal - o problema não está nos fatos que estamos relatando. Eles possivelmente

não existiriam, nem se falaria da decadência da civilização ocidental, não fora a laicização

crescente das sociedades ocidentais, que atingiu o seu apogeu com a vitória dos princípios,

possivelmente concebidos bem intencionadamente pelos seus autores, muito em especial,

como já dissemos e repetimos, J. J. Rousseau e John Locke. A revolução bolchevique de

1917, resultou do desdobramento, racionalizado e a nível de cosmovisão, de tendência que

vinha de muito antes, e que tentamos descrever em parte anterior deste livro, visando o

afastamento dos homens dos seus compromissos com a hipótese da existência de um Deus

Criador, diante do qual todos prestaremos contas um dia. Os adeptos do Materialismo

Dialético, aderiram à ideologia que, corajosa ou atrevidamente, racionalizou e afirmou de

maneira categórica a negação, que em muitos se exprime na duplicidade consistente em

não refutar explicitamente, mas “na prática”, proceder como quem ignora a hipótese citada.

E já houve quem dissesse que não há forma mais expressiva de negar, do que

ignorar, não levar em conta; atitude que, sobre parecer mais prudente, traz ainda a

vantagem dos “torrões de açúcar” a que foi feita referência anteriormente. Também foi

assinalada antes a diferença entre as duas revoluções, a americana e a francesa. E

mencionamos, na ocasião que, segundo pensamos, a diferença resultou do fato de, no

começo, os princípios oriundos do pensamento de Locke não terem conseguido sobrepujar

aqueles em que criam os primeiros cidadãos americanos, predominantemente puritanos.

Com o correr do tempo, porém, a má semente começou a dar os frutos que seriam de

esperar-se, e que no caso francês mostraram de pronto o seu amargor. Por isso, neste

instante, temos diante dos olhos despacho internacional cujo autor, citando alta autoridade

do governo de Cingapura, textualmente, assinala: “A sociedade americana está

desmoronando e se desintegrando. Nos últimos trinta anos houve um aumento de 560%

dos crimes violentos; de 419% de nascimentos ilegítimos; 300% de crianças que vivem

em lares com só um dos pais, e uma queda de 80 pontos nos testes de aptidão escolar”.

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A esses impressionantes números, e como indício da promoção da contracultura a

que fizemos referência linhas acima, perguntaríamos de novo aos leitores de meia idade ou

da terceira idade: lembram, se de quando os jovens de tinta ou quarenta anos atrás se

referiam a algum filme “picante”, este era sempre francês ou, quando muito italiano, sendo

que o cinema italiano do pós-guerra enfatizava mais a temática social, dentro, já como

resultado de quanto vimos dizendo neste capítulo, da visão do Materialismo Histórico e da

luta de classes? Nos EUA não existia censura. Esta partia da própria sociedade, sobretudo

por pressão das chamadas “Ligas” ou “Comissões da Decência”. E hoje, como estão os

filmes americanos? Vejam: primeiro, o cinema francês, depois o americano. Observe o

leitor a cronologia e considere a hipótese, para nós convicção, de que a contracultura não é

o resultado de algum fenômeno cósmico inexorável, como parecem pensar os que dizem:

“hoje em dia é assim”. São “os novos tempos...” Está sendo assim, sem dúvida. Mas, como

tivemos oportunidade de afirmar em capítulo anterior, isso é uma verificação; não uma

explicação. E acrescentáramos, “hoje em dia está sendo assim, mas poderia ser diferente”.

Também parece-nos indispensável assinalar que, uma vez deflagrada a

contracultura, os que passam a alimentá-la não se constituem, apenas, do núcleo de que ela

resultou, quando se tratava de atuar dentro do que alguns têm designado como “fase

destrutiva” da sociedade a ser conquistada. Erigidos os modismos, nos “torrões de açúcar”

da imagem de que estamos lançando mão, o número de promotores, não engajados, da

contracultura, passa a superar, de muito, o dos que deram partida ao processo. E este torna-

se praticamente incontrolável, em sociedades em que todo o Direito é elaborado sem

compromisso com valores fixos. Observe o leitor se o que estamos registrando está, ou

não, ocorrendo em nossos dias e como, a despeito do desmoronamento do Muro de

Berlim, não ocorreu o colapso do que, em tal ou qual nível de adesão ou de participação,

teoricamente seria de esperar-se. Ao contrário, como demonstram os números relacionados

a aspectos alarmantes da sociedade americana, há pouco citados, a contracultura, ou o que

estamos designando como contracultura, continua ovante, em seu poderio cada vez maior.

A explicação desse fenômeno, aparentemente paradoxal, deixa de sê-lo, quando se levam

em conta duas concepções já utilizadas anteriormente: a “inércia histórica das idéias”, e a

prática identidade entre os que afirmam a existência exclusiva da Matéria, e tiram daí as

conseqüências a que tal afirmação conduz; e os que, simplesmente, desconsideram o

problema, por julgá-lo irrelevante.

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Os dois, no fundo, representam as duas faces de uma mesma moeda. Não fora

assim, como explicar a larga utilização de veículos que pertencem aos segundos, por

agentes dos primeiros, que o fizeram na colossal escala que resultou na contracultura a que

nos estamos referindo? Para reforçar a afirmação, à primeira vista, difícil de entender e,

ainda mais, de aceitar, permitam-nos lançar mão de outro conceito, já por nós usado

anteriormente nesta obra e, ao longo de muitos anos, na tribuna, na imprensa e no livro: o

que designamos como “visão contábil”, nas transações que, em numerosos casos, podem

ser lucrativas para as partes diretamente envolvidas; mas que, vistas na que chamamos de

“dimensão histórica”, podem representar algo muito diferente. Foi o caso assinalado em

outra parte desta obra, em que, em nota de rodapé de um livro de autoria do assessor para

assuntos internacionais do ex-presidente Jimmy Carter, um especialista em relações leste-

oeste afirmou que, de 1917 a 1937, a maior parte dos recursos financeiros e da tecnologia

que serviram ao reequipamento do parque industrial soviético e do exército vermelho,

foram-lhes fornecidos pelo Ocidente. Claro, repitamos, que as empresas que forneceram os

referidos recursos, do ponto de vista contábil, devem ter realizado excelentes negócios; do

ponto de vista histórico, porém, o mundo viveu, até pouco tempo, o pesadelo de uma

hecatombe nuclear.*

Para citar um exemplo concreto, matéria recente distribuída por agência

internacional, deu-nos conta de que a viúva do deputado americano Mac Donald, morto no

avião da KAL por míssil disparado por avião de combate soviético, que derrubou aquele

aparelho de transporte de passageiros, protestou publicamente contra o que considerava

absurdo, afirmando que o míssil citado tivera a tecnologia para a sua fabricação, vendida

por fabricante americano de armas. Para este, o leitor entende claramente, na “visão

contábil”, ótimo negócio. Para a viúva do parlamentar morto, a visão já era outra; e a

loucura ou absurdo a que ela se referiu em seu protesto só não mostrou a sua verdadeira e

trágica dimensão porque o desmoronamento da União Soviética impediu o confronto entre

os aviões de combate daquela potência militar, e os da OTAN entre os quais, fatalmente,

estariam os da Força Aérea Americana.

De outra parte, parece oportuno repisar que não é intenção do autor, desmerecer,

em sentido menor, a posição de tais ou quais correntes de opinião; ainda menos, as pessoas

que a elas se filiam, por tais ou quais motivos. Não nos compete julgar. Mas parece-nos

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indispensável, relatar e dizer o que pensamos quando e onde couber, para não nos

incorporarmos à legião que nos parece suficientemente numerosa, dos que, menos

informam, do que desinformam; dos que menos expõem, do que mascaram; dos que mais

se omitem do que cumprem o dever que as Sagradas Escrituras registram quando dizem:

“Não se acende uma lâmpada para ocultar a sua luz; mas para pô-la bem alta, de maneira a

que todos a vejam”. Assim, parece-nos que a liberdade de que tanto se fala, sem

comprometê-la com qualquer propósito que subordine o seu exercício, propósito externo à

tão celebrada “vontade geral”, que não podendo ser “a de todos”, deverá ser, ao menos, “a

da maioria”; e não podendo ser manifestada por esta diretamente, deverá sê-lo pelos seus

representantes, escolhidos como todos sabemos; tal liberdade é claramente filha do

Orgulho que a menciona como pretexto para funcionar como armadilha, cuja isca é a

satisfação dos impulsos da concupiscência, que busca justificar-se em nome do pretexto

liberdade a qual por isto mesmo, segundo a falácia a que nos estamos referindo, não deve

ter compromissos prévios e exteriores que possam disciplinar o que brota da natureza

decaída do homem.

Observem, por favor, os leitores, como todos, ou quase todos os “torrões de açúcar”

a que nos temos referido, ou são claramente referentes a costumes licenciosos ou, pelo

menos, à imperiosa necessidade de não criticá-los desfavoravelmente, nem às fontes de

onde parte a difusão dos mesmos, em nome, é claro, da citada liberdade...

Mas, nos dias em que estamos redigindo este trecho que está sob os olhos do leitor,

o noticiário internacional está sendo dominado pelo terrível atentado a um prédio do

governo federal americano, em Ocklahoma. O abalo foi tão grande que, aparentemente,

tornou-se impossível bloquear inteiramente a difusão de certos aspectos da realidade

americana, muito diferentes do que se poderia supor. E do que poderia ser imaginado pelos

que acreditam que as instituições ali vigentes, não apenas são irretocáveis, como seriam de

uso universal, benéficas para quaisquer sociedades, por mais diferentes que possam ser as

suas realidades e as suas necessidades. O exemplo do violento atentado mostra-nos que ele

pode ocorrer em um país do 1o Mundo, sob regime democrático ininterruptamente em

exercício há mais de duzentos anos. Como fica, então, o valor dos argumentos em favor

dos descalabros em que estamos vivendo, consistentes na afirmação de, que eles são

conseqüentes à “falta de exercício” do regime?

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Também torna-se nestes dias, mais fácil entender a estrondosa vitória do Partido

Republicano que, hoje, detém a maioria nas duas Casas do Capitólio, maioria que estivera,

por quarenta anos, sob o domínio do Partido Democrata. Pelo que já ficou assinalado em

partes anteriores desta obra, o leitor entende que o Partido Republicano nos Estados

Unidos simboliza, mais que o Democrata, os valores sobre os quais foi construída a

grandeza da América e que correspondiam melhor aos ideais de seus fundadores e

primeiros cidadãos, que amavam a liberdade, mas não para transformá-la na licenciosidade

que acaba por acontecer, quando ela é entendida como ideal que se esgota em si mesmo.

Ideal nascido, como já repetimos tantas vezes, do Orgulho, tão característico do

Iluminismo, sobretudo francês, sendo de notar-se que a estátua da Liberdade, monumento

erigido àquele ideal a que acabamos de referir-nos foi oferecido aos EE.UU. exatamente

pela república francesa...

Nunca será demasiado repetir que o ideal de organizarem-se os homens sob a égide

de instituições que, o mais e o melhor possível, representem os anseios justos e as

aspirações legítimas daqueles que as referidas instituições irão jurisdicionar é, realmente,

insubstituível e, por isso, universal e permanente. Nele está, supomos, o espírito, a essência

do que deve ser entendido como democracia. Repare, porém, o leitor, que ao lançarmos

mão das expressões “anseios justos e aspirações legítimas”, estamos tornando evidente a

necessidade da existência de um referencial fixo, de conteúdo axiológico, ao qual deve

subordinar-se a legislação, de maneira a, o melhor possível, aproximar o Direito positivo,

da Justiça que, no fundo, ele deve exprimir. Em nossa cultura, o referencial fixo a que

acabamos de referir-nos, é o que provém das Escrituras que, escritas sob a inspiração do

Criador, não sendo em si mesmas toda a verdade, são o farol que enseja aos homens buscá-

la, a despeito da Queda e da ignorância que se introduziu em sua realidade, como

conseqüência da tentação, ensejada pelo orgulho, pela concupiscência. Os mesmos,

supomos, que continuavam a alimentar o caos, a violência, a injustiça que,

paradoxalmente, vêm aumentando a cada dia, a despeito dos avanços da Ciência e da

Tecnologia.

É que estas, como os frutos materiais que produzem, representando redução da

ignorância há pouco referida, na verdade reduzem-na em seu aspecto externo, deixando

intocado, e quem sabe, acrescentando novos véus, que dificultam a percepção da existência

da ignorância interna, ou espiritual que, assim, não se tem reduzido; quem sabe, por isso é

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que se inscrevem nas Escrituras já tantas vezes mencionadas, as expressões: “supondo-se

sábios, tornaram-se estultos”. Ora, bem sabe o insignificante autor deste livro que palavras

e expressões, como "Escrituras inspiradas", "ignorância espiritual" e outras correlatas, são

objeto de subestimação pelos que integram as duas faces da mesma moeda, o

Materialismo, como já vimos, representadas pelos que negam explicitamente a existência

de Deus e de uma Sua lei, e pelos que, não ousando tanto, negam-na na prática, ao

considerar irrelevante essa questão. Os primeiros, porém, cuja expressão mais elaborada

foi a construída pelo marxismo-leninismo, exatamente pelo ateísmo, sua pedra angular, não

admitiam a existência de referencial que não estivesse contido na própria Matéria. De

qualquer maneira, porém, sentiram e expressaram a necessidade de algo que servisse ao

propósito de diferenciar a verdade do erro.

Para eles, de maneira coerente com a cosmovisão do Materialismo Dialético,

concebido por Marx e seu mais íntimo colaborador, Engels, o único critério de verdade era

a prática: o que, na prática, se mostrasse útil ao avanço, segundo supunham, inexorável, da

sociedade no rumo apontado pelas “leis internas” que a levariam à sociedade comunista do

futuro, leis, como vimos em trecho anterior desta obra, fundadas em uma dialética de

oposição e de luta, comprovaria a validade das idéias, teorias ou proposições sobre as quais

pairassem dúvidas. Não cabe aqui, supomos, mostrar a consistência de tal critério de

verdade, com relação ao conjunto do Materialismo Dialético e do Materialismo Histórico

em que ele se insere. O que importa é a verificação do reconhecimento da necessidade da

existência de um referencial fixo, garantidor da manutenção do rumo da humanidade, na

rota e para a consecução do fim que supunham haver identificado e que, ardentemente,

desejavam se realizasse. Aos que compõem o outro lado da moeda, abstendo-se de

examinar a questão da existência, ou não, da transcendência e, em termos da cultura a que

pertencemos, da existência da Revelação feita aos homens, sob a inspiração de Deus,

diríamos que, nela, registram-se as expressões: “Pelos frutos os conhecereis”.

Sem nenhuma irreverência, gostaríamos de indagar dos que, por julgarem-se

“práticos”, consideram irrelevantes questões da índole das que estamos submetendo à

consideração pela inteligência e pela consciência dos que nos leiam, se consideram bons os

frutos produzidos até agora por um anúncio de liberdade, sem menção à finalidade a que o

seu exercício deve destinar-se e sem, em conseqüência, o estabelecimento de contornos e

limites mais nítidos para o referido exercício, pois é a tal liberdade que se refere a bela

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estátua oferecida pela República Francesa aos Estados Unidos, e que, enorme, se situa à

entrada do porto de Nova Iorque. Quanto aos frutos amargos que, desnecessariamente, tem

produzido, já foi feita referência anterior, inclusive no que se refere ao resultado das mais

recentes eleições Parlamentares daquele país, das quais saiu amplamente vitorioso o

partido que, nele, segundo pensamos, representa, ainda que de maneira pouco nítida ou

francamente confusa, ideais mais compatíveis com os que alicerçaram a sociedade

americana em seus primórdios. O partido que, durante quatro décadas, conseguira maioria

nas duas Casas do Congresso, simboliza melhor e afina mais com as tendências que

defluem da imprecisão do conceito de liberdade, sem definição quanto à finalidade do seu

exercício.

É tal indefinição que tem delegado a formulação de leis às conveniências de quem

legisla, tal como assinalara Cícero, milênios antes do suposto modernismo, da

contracultura cujos frutos todos conhecemos. Perguntamos então: não seria o caso de

repensar a realidade, inclusive a nossa realidade interior que, muito longe de

tranqüilizadora, revela a presença de boas e de más inclinações, nela introduzidas pelo

grande inimigo de quanto represente a verdade, a harmonia e a paz? O resultado de

semelhante introspecção, supomos, longe de representar algo fantasioso e arbitrário,

evidenciará a verdade da existência, no íntimo de cada um, sem exceção, da presença de

impulsos e de inclinações que algo, em nossa realidade, nos diz serem boas ou más.

Esse algo que distingue em nosso íntimo, entre o Bem e o Mal, é o resultado, na

visão religiosa, do chamado Pecado Original, ou Queda, ter introduzido as tendências que

conduzem à desarmonia e ao sofrimento, que o Criador não desejara em seu propósito

original, que Lúcifer perturbou, mas não conseguiu eliminar. Daí, segundo a mesma visão,

a natureza contraditória do homem, em cujo interior instalou-se, desde a Queda, a

permanente batalha entre o Bem e o Mal, batalha da qual, em última instância, são

projeções as que, no plano material, se configuram nos conflitos e violências de toda a

ordem, que se vêm prolongando ao longo da História. Daí, em passagem bem anterior

deste livro, termos assinalado a, digamos, superioridade, do pensamento de Aristóteles

sobre o de Platão, no sentido de que o estagirita afirmava a existência do que chamou

“forma”, correspondente à finalidade, ou propósito, existente em todo o Universo. Tal

forma não conseguiria expressar-se plenamente, por esbarrar na inércia da matéria. Daí, a

preferência do pensamento aristotélico, por S. Tomás de Aquino, para quem, à “forma”,

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corresponderia a alma humana, em maior ou menor medida, apta a compreender a

finalidade presente em todos os seres, em todo o universo criado, pelo seu Criador. Nos

seres humanos, ainda que em diferentes medidas, tal finalidade ou propósito podiam ser

compreendidos, o que ensejava, no plano da Filosofia, o respaldo para a mensagem

religiosa do Cristianismo, a ligação entre a criação, em suas manifestações sensíveis, e o

Criador de todas as coisas, com todas as implicações e conseqüências que o leitor pode

conceber.

De tudo isso, a nossa opinião acerca do absurdo em que se constitui o anúncio de

uma liberdade como ideal que se esgota em si mesmo, sem qualquer preocupação

finalística, a carta sem destinatário e, até, sem conteúdo, a que já nos referimos,

possivelmente por mais de uma vez, em passagens anteriores desta obra. Assim colocado,

face o conflito que, permanentemente, todos abrigamos em nosso interior, ela haverá de

degradar-se em licenciosidade, como manifestamente se vem degradando, licenciosidade

que estimula a prática de todas as imprudências sugeridas pelo egoísmo, fonte de tantas

injustiças, de tantos ressentimentos e dos disparates brutais que resultam da natureza

decaída da humanidade, desde o primeiro casal que, pela via da desobediência ao Criador,

abrigou em seu seio e contaminou a sua descendência, o que lhes transmitiu aquele que, ao

rebelar-se contra Deus, assim se expressou, segundo o relato das Escrituras: “Non

serviam!“, “Não servirei!”.

No sentido religioso, a verdadeira liberdade, a que pacifica e traz felicidade, só é

possível quando, conhecida a finalidade para a qual fomos criados, conseguimos dominar

os déspotas dos impulsos instintivos correspondentes à nossa natureza decaída, colocando-

os ao serviço daquela finalidade. Essa, como assinalamos acima, a visão compatível com

os fundamentos da cultura a que pertencemos. É também aquela a que adere a nossa

consciência - o que certamente pesa pouco como argumento. Já não é assim, quando, sobre

a existência de um propósito, e sobre a suposta contradição que existiria entre Religião e

Ciência, que tem alimentado o Orgulho, e sustentando a laicização crescente que dele, ao

menos em certo sentido, vem resultando, pretendemos oferecer à consideração pela

inteligência e pela consciência dos que nos lerem, alguns aspectos da ciência moderna.

Tais aspectos parecem-nos - e os leitores julgarão se estamos, ou não, equivocados -

indicativos de que chegou a hora de evidenciar que, longe de se contradizerem, Religião e

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Ciência, no momento, tendem a fundir-se, em um mesmo contexto, mais generoso e mais

amplo, do conhecimento. É o que começaremos a tentar, já no capítulo seguinte.

I.7 – A Ciência atual e a questão da cognoscibilidade da realidade

Parece fora de cogitação, qualquer dúvida sobre o fato de que, no domínio da

Filosofia, o problema dos mecanismos de aquisição do conhecimento da realidade, coloca-

se como que em uma posição central, dividindo-se, em função dela, em dois grandes

grupos as principais correntes do pensamento filosófico: as que se situam no campo do

Idealismo e as que pertencem ao domínio da visão materialista da realidade. Naturalmente

que, em cada um dos campos citados, existem diferenças, cuja exposição obviamente

exigiria extensão que, não apenas seria excessiva para os propósitos desta obra, como não

ajudaria muito no esclarecimento do seu escopo central. Basta, parece-nos - e que nos

desculpem os filósofos a simplificação que nos atreveremos a fazer - assinalar que, ao

menos em suas expressões mais radicais, a própria divisão a que acaba de ser feita

referência, indica a admissão, por muitos, de uma diferença essencial e irredutível, entre

mente e objetos sensorialmente perceptíveis, ou, em outra dimensão, entre Espírito e

Matéria.

Também parece fora de dúvida que, no campo do Materialismo, a expressão mais

elaborada foi a que se apresentou na feição dialética que lhe deram Marx e seu mais

próximo colaborador, Engels. Este último, referindo-se à teoria do Conhecimento,

expressamente considerou-a como “a grande questão fundamental de toda a Filosofia”. A

dicotomia fundamental entre espírito e matéria, que domina a visão da maioria não

implica, assinale-se desde logo, na divergência, em todos os seus pontos e aspectos, acerca

da teoria do Conhecimento por parte de integrantes dos dois grandes campos do

pensamento filosófico a que já foi feita menção. Assim é que Mac Fadden, autor já citado

anteriormente, e cuja tese de doutorado versou a filosofia do comunismo, teve a referida

tese considerada por Fulton Sheen, autor também por nós citado no correr desta obra, como

o melhor trabalho já realizado sobre aquela filosofia. A tese em questão, consumiu quatro

anos de estudos e esforços ao seu autor, sendo oportuno esclarecer que, ambos os autores

citados, respeitados eruditos católicos-romanos, filosoficamente situam-se no campo dos

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que, em tal ou qual medida, revelam-se tomistas. Pois bem; textualmente, são de Mac

Fadden as seguintes afirmações: “Contra todas as formas de ceticismo e agnosticismo, o

marxismo afirma que a mente humana pode chegar ao conhecimento verdadeiro da índole

da realidade.

Tal atitude está em completa conformidade com o espírito da Escolástica. Além

disso, o marxista define o ato do conhecimento como “identidade de pensamento e ser”, o

que nos recorda a afirmação, tantas vezes repetida por S. Tomás: “a mente converte-se

naquilo que conhece”.

“O marxismo defende que a matéria e a mente são ativas; que a imagem, reflexo da

realidade objetiva, produz-se no cérebro, em virtude de uma experiência sensorial e que a

mente “trabalha” sobre essa imagem até chegar ao conhecimento pormenorizado do objeto.

O tomista concede tudo isto”.

“O marxismo condena o pragmatismo por destruir a base objetiva do conhecimento

e ser uma forma viciosa de idealismo. O tomista também o condena”.

“A doutrina do marxismo sobre o “caráter relativo do conhecimento”, é

inteiramente aceita pelo filósofo escolástico. Este sempre afirmou ser proporcionalmente

minúscula a parte do nosso conhecimento que representa a realidade objetiva na sua

totalidade e sem mistura de erro. O que significa ser muito reduzido o conhecimento

absoluto, eterno e imutável. A escolástica sempre proclamou esta doutrina e refere-se a ela

todas as vezes que fala do “caráter incompleto do conhecimento humano” - como se

contém na “Summa Contra Gentiles” e como se refere ao assunto J. Maritain, em “Os

graus do conhecimento”.

“Marxistas e escolásticos juntamente se insurgem contra o relativismo moderno. Os

seguidores do Aquinatense combatem denodadamente o relativismo, quando ensinam que

tem de existir uma base imutável da verdade e que aquilo que é verdadeiro será verdadeiro

para sempre”66.

E mais adiante: “Em geral, podemos afirmar que atualmente, há muito poucas

teorias do conhecimento tão vizinhas do tomismo, como a marxista”.

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O mesmo autor, Mac Fadden, entretanto, textualmente assinala o que

transcrevemos a seguir: “Contudo, também há muitos aspectos da teoria do conhecimento

onde tomismo e marxismo não estão de acordo. E não será preciso dizer que se trata de

aspectos importantes; são pontos vitais para toda a Filosofia. O filósofo escolástico não

pode admitir:

a) Que se suprima a distinção entre mente e matéria, isto é, que em última análise

toda a realidade seja material;

b) Que uma “mente” material possa chegar ao verdadeiro conhecimento da índole

da realidade, através dum processo de análise e síntese;

c) Que o conhecimento seja de caráter essencialmente ativo, quer dizer, que

necessariamente tenha de acabar na ação;

d) Que se negue o conhecimento contemplativo; e

e) Que o critério de verdade seja a prática objetiva.

“O estudo destas cinco falácias do marxismo mostra-nos que todas derivam de um

erro fundamental. Tal erro, por parte do marxismo, é não ter chegado a compreender que a

imaterialidade é a base de todo o conhecimento”.

Neste ponto, parece-nos oportuno sublinhar que, a própria existência de dois

campos, pretensamente distintos, entre o que se tem entendido por matéria e o que se tem

entendido como espírito, em outros termos, entre o que seria físico e o que pertenceria ao

domínio da metafísica; e, mais do que isso, a prevalência do físico, que, segundo

pensamos, começou a acentuar-se a partir do século XIV com o Nominalismo, prestigiadas

as conseqüências e resultados a que ele conduziu, nos campos da Ciência e da Tecnologia,

tudo isso, pelos motivos já vistos, servia aos interesses dos que não viam vantagem alguma

em manter aceso o prestígio da religião e, mesmo, da religiosidade, ainda quando não

referida a tal ou qual maneira de expressá-la. E foram tais e tantos os sucessos alcançados

nos campos citados, que a pouco e pouco se foi como que desvanecendo o ardor da fé, da

“certeza acerca do que não vemos”, substituída por um ceticismo crescente tal, que já no

66. O significado que atribuímos à questão do conhecimento será melhor esclarecido quando da exposição de alguns aspectos daCiência Moderna.(Nota do Autor).

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século XVI, começaram a surgir os sinais da grande revolução, para nós representada pela

gradual secularização da sociedade.

O Iluminismo, a Enciclopédia, a Revolução Francesa de 89, a triunfante expressão

usada por Kant, cujos termos asseveraram ter a humanidade atingido, enfim, a maioridade,

já não necessitando de nada que não fosse produzido pela sua própria razão, tudo isso

acabaria desaguando, pouco mais de meio século depois, no famoso Manifesto Comunista,

de Marx e Engels, surgido em 1848, como expressão revolucionária decorrente do

Materialismo Histórico, por sua vez expressão, no domínio que lhe é próprio, da

Cosmovisão do Materialismo Dialético. De tudo isso, aliás já mencionado anteriormente,

em outros trechos desta obra, desejamos sublinhar, mais uma vez, o quanto é importante

levar em conta o sentido do que acima chamamos de “grande revolução”, representada pela

secularização crescente a que acabamos de referir-nos. E que, face aos estupendos e

valiosos resultados das conquistas da Ciência e da Tecnologia, é fácil entender como,

simultaneamente, se foi afirmando a convicção acerca da existência de uma diferença

irredutível, entre matéria e espírito. E de vez que as coisas espirituais não se mostravam

acessíveis à investigação experimental, igualmente se pode compreender que o que não

podia ser comprovado experimentalmente passava a ser olhado com ceticismo. Ocorre,

entretanto, que o que desejamos seja considerado pelo leitor não é a hipótese da volta a

uma atitude devocional, em tantos casos, expressa de maneira desfavoravelmente

criticável.

Apenas desejamos assinalar que a diferença irredutível acerca de matéria e espírito,

fundava-se, no domínio do pensamento, por duas noções já hoje, aparentemente,

insustentáveis: uma relativa ao entendimento do que seria material, ou concreto, ou

palpável, dominante até o princípio deste século que se vai aproximando do seu final;

outra, acerca da possibilidade do conhecimento sobre a matéria, cujos aspectos ainda

ignorados, seriam, ao menos em tese, conhecíveis, à medida em que prosseguissem as

investigações científicas e avançassem os progressos tecnológicos a serem colocados à sua

disposição. Hoje, à luz de concepções decorrentes, no domínio da ciência, dos avanços da

Física Quântica, estamos chegando a conclusões como as que transcreveremos adiante,

devidas a Jean Guitton, um membro da Academia Francesa, que por muitos é considerado

talvez o maior pensador cristão dos nossos dias, com base em reflexões e indagações

propostas à consideração de dois eminentes físicos, Igor e Grischka Bogdanov, acerca das

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fronteiras da vanguarda do pensamento científico, sobre questões de magna importância.

Transcrevamos trecho que consta do “Prefácio”, ao teor dos diálogos que, a pedido dos

físicos acima citados, travou com eles.

Acrescente-se ainda que o ilustre membro da Academia Francesa, representa nome

do nível de Bergson, de Heidegger e de outros vultos do pensamento contemporâneo.

Vejamos o que, no momento, desejamos transcrever do referido “Prefácio”: “Cada ano traz

uma colheita de reflexões teóricas sobre estas linhas fronteiriças que balizam a nossa

realidade: o infinitamente pequeno e o infinitamente grande. A teoria quântica como a

cosmologia fazem recuar sempre para mais longe os limites do saber, até roçarem o

enigma mais fundamental que o espírito humano enfrenta: a existência de um Ser

transcendente, simultaneamente causa e significação do grande universo.

“E afinal de contas, não encontramos na teoria científica a mesma coisa que na

crença religiosa? O próprio Deus não é, daqui para a frente, sensível, referenciável, quase

visível67, no fundo último do real que o físico descreve?”

Mais expressivas, ainda, as afirmações de J. Guitton, na “Advertência”, de sua

autoria, que precede os “Diálogos” propriamente ditos: “Com os últimos anos do milênio,

uma longa época termina: entramos, como cegos, num tempo metafísico. Ninguém ousa

afirmá-lo: fazemos sempre silêncio sobre o essencial, que é insuportável.

“Mas uma grande esperança se levanta para aqueles que pensam 68. E nós

desejamos fazer ver, nos nossos diálogos, que se aproxima o momento de uma

reconciliação fatal entre os sábios e os filósofos, entre a ciência e a fé. Vários mestres do

pensamento, animados por um espírito profético, tinham anunciado essa aurora: Bergson,

Teilhard de Chardin, Einstein, Broglie, e muitos outros.

“... O que eu quero mostrar com os irmãos Bogdanov apoiando-me sobre a parte

científica do seu saber, é que neste fim de milênio os novos progressos das ciências

permitem entrever uma aliança possível, uma convergência ainda obscura entre os saberes

físicos e o conhecimento teológico, entre a ciência e o mistério supremo.69”

Levando em conta as novas conquistas do pensamento científico, esperamos que se

tenha tornado mais compreensível o título que procuramos dar a este capítulo, no qual

usamos as expressões cognoscibilidade da realidade e não, cognoscibilidade do real. É que,

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antes das noções que se vão impondo na Física Quântica, forçoso é admitir, usando

expressões de J. Guitton, que “em um universo, mistura de certezas e de idéias absolutas, a

ciência só se podia dirigir à matéria. Por esse caminho, ela levava mesmo a uma espécie de

“ateísmo virtual”: uma fronteira “natural” erguia-se entre Deus e a ciência, sem que

ninguém ousasse - ou mesmo imaginasse - pô-la em causa”. Nós, a despeito da nossa

insignificância, não seríamos tão categóricos quanto o ilustre Mestre. E alimentamos a

esperança de que o leitor, a esta altura, estará entendendo, cada vez mais claramente, a

importância que demos ao Nominalismo e às suas conseqüências. Entre elas, a sensação

enganosa da onipotência da ciência, posta ao serviço de uma razão correspondente à

maioridade do ser humano que, como um dia imaginou Kant, já não necessitaria de nada

que não fosse elaborado por ela... Hoje, segundo as conquistas da Física Quântica e das

concepções mais atuais da cosmologia, está se tornando forçoso reconhecer que há limites

físicos ao conhecimento e que a realidade, toda ela, não é apenas não conhecida ainda, pela

ciência, como não é conhecível.

E, mais, certas conclusões, repitamos ainda uma vez, alcançadas pela ciência,

mostram-se incompatíveis com todos os mecanismos lógicos conhecidos, exigindo como

que uma metalógica, capaz de atender a algo que poderia ser chamado como meta-

realismo. As noções de espaço, de tempo, de matéria, diferem radicalmente das que, até os

primeiros anos deste século, pareciam sólida e definitivamente estabelecidas, alimentando

ilusões, imprudências e orgulhos que, agora, revelam-se descabidos. Há, porém, dois

planos distintos da História, a que já nos temos referido tantas vezes, na imprensa, na

tribuna e no livro: um, decorrente da ação do homem, com base em sua natureza decaída;

outro, o da Providência, que encaminha o processo para o destino que Ela determinou, a

despeito da ação constante que a desobediência dos nossos primeiros pais permitiu se

introduzisse no que fora destinado à harmonia, à felicidade e à paz. Acreditamos, portanto,

que, a despeito de todas as dores, pelo caminho da ciência, começa a encontrar a

humanidade boas e consistentes razões para, abatendo o orgulho que durante tantos séculos

a tem iludido, rever o seu ceticismo, orgulho que, no final deste, começa a ser

desmascarado.

Ao leitor cabe, entretanto, avaliar se temos ou não razão no que acabamos de

afirmar; para tanto, continuaremos a expor as surpreendentes razões científicas, inclusive

as referentes à ordem que reina em fenômenos considerados casuais, desordenados,

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aleatórios, algo semelhante à própria história dos homens, com os seus conflitos, as suas

brutalidades, as suas injustiças, mas de cujo conjunto, cada vez mais claramente, ao menos

segundo pensamos, já se pode entrever o plano providencial, de que um aspecto capital

está representado pela união, em irresistível convergência, de Ciência e Religião.

De fato, desejamos desde logo propor à consideração do leitor as surpreendentes

revelações de um cientista de vulto, o bioquímico Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de

Química, para quem a desordem não é um estado natural da matéria, mas um estágio que

precede a emergência de uma ordem mais elevada. Permita-nos o leitor, a despeito da

nossa insignificância, que a observação de Prigogine, longe de incompatível, parece ter

muito a ver com os dois planos da História - o resultante de atividades do homem decaído,

e o que resulta da Providência divina.

Os cientistas surpreendidos com as concepções de Prigogine teriam, pelo menos

alguns deles, tentado silenciar a sua voz perturbadora, tal o absurdo que a ela atribuíam.

Ocorre, porém, que o bioquímico a que nos estamos referindo, assentava as suas

concepções em dados experimentais, conhecidos pela designação de “instabilidade de

Bénard”. É bem conhecida a expressão “movimento browniano”, para designar a

movimentação desordenada das moléculas de um líquido, a “agitação térmica” que, sendo

aparentemente caótica, é empregada em tom humorístico para designar, exatamente, a

atividade frenética, mas palpavelmente desordenada e que, por isso mesmo, não conduz a

nenhum resultado prático. Pois bem; a “instabilidade de Bénard” consiste na verificação

por ele feita de que, se tomarmos uma dada porção de água e a aquecermos, as moléculas

de que ela se compõe, e que estariam em movimento desordenado, apenas acelerado pelo

aquecimento, agrupam-se na formação de conjuntos hexagonais, semelhantes aos que

aparecem em certos vitrais, revelando a existência de uma “ordem”, onde se supunha

reinar apenas o caos. Ora, poderá se perguntar o leitor, o que tem a ver a “simetria de

Bénard”, com questões como as que dizem respeito às diferenças entre idealismo e

realismo, entre materialismo e espiritualismo, entre a diferença, irredutível ou não, entre

espírito e matéria?

Seguramente o leitor já terá, inúmeras vezes, se defrontado com o dilema entre

criacionismo e evolucionismo. O homem teria sido, ou não, criado por Deus? Não

seríamos o resultado da evolução no reino animal? Em tal hipótese, está superado o

transformismo de Lammarck segundo o qual, por exemplo, as girafas teriam o pescoço

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exageradamente comprido porque, em certo período da existência do nosso planeta, a

alimentação vegetal de que dependia a sua sobrevivência foi sendo, cada vez mais

dependente de folhas de plantas cada vez mais altas e assim, as girafas passaram a

esforçar-se por alcançá-las e, as mais aptas a fazê-lo, conseguiram sobreviver, com

pescoços cada vez mais longos. O leitor, inteligente, percebe que a hipótese em questão

supõe a afirmação de que caracteres adquiridos, transmitem-se por hereditariedade.

Infelizmente, os fatos desmentem o que acaba de ser enunciado, para não falar que os

carneiros, cujo alimento é a erva dos campos, são animais de pescoço curto e que, sabe-se,

são contemporâneos das girafas. Gritantes falhas do gênero, levaram à superação do

Transformismo acima visto, pela “seleção das espécies”, dependente da “struggle for life”,

a luta pela vida, que Herbert Spencer transpôs para o domínio da Sociologia, onde veio a

idéia a expressar-se, no Materialismo Histórico, pela malfadada “luta de classes”, que

tantas dores e tantos sofrimentos tem produzido no mundo.

O evolucionismo darwiniano, depende, para a sua comprovação científica, da

descoberta do famoso “elo perdido”, que continuava hoje tão perdido quanto estava, ainda

ao tempo de Erasmus Darwin e Conte de Buffon. Em que consiste o referido “elo”? Na

comprovação de que, de uma geração para a geração seguinte, uma fêmea de uma dada

espécie deu à luz um ser humano. Daí, sempre insistindo na visão evolucionista corrente -

para nós limitada e falsa, por ignorar os planos diferentes a que temos aludido

reiteradamente - a idéia de que a transformação das espécies seria devida às chamadas “

grandes mutações”, assinalada pelo botânico holandês De Vries. De fato, conhecem-se

anomalias genéticas grandes, as “grandes mutações” a que acabamos de referir-nos.

Nenhuma delas, porém, até agora, com sentido aperfeiçoador mas, ao contrário,

nitidamente deformador. Para citar um exemplo, é o caso do nascimento de um bezerro

com duas cabeças, ou cinco patas, de que, de quando em quando, faz alarde a imprensa.

Nada obstante, essas concepções limitadas do processo evolutivo o são, porque,

aparentemente, o entusiasmo que as anima decorre da suposta diferença irredutível entre

matéria e espírito, entre ciência e religião. Voltemos, portanto, à “instabilidade de Bénard”,

e às idéias de Prigogine.

É que, nada obstante a divulgação para o grande público se faça insistindo sempre

em algo de algum modo correspondente ao evolucionismo darwiniano, com imagens que,

ao insinuá-la verdadeira, como que excluem a hipótese criacionista - eis que esta, no

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contexto da nossa cultura judaico-cristã, nos remete ao livro do Gênese - na verdade,

quando se trata da insistência em excluí-la na dimensão da cosmologia, costuma fazer-se

menção ao “caldo” de que teria resultado a Vida, esse mistério sobre o qual dizia Claude

Bernard, há cerca de um século, ser o que existe de mais obscuro, dentre quantos enigmas

a curiosidade do homem tenta decifrar. Para os que, previamente, excluem a hipótese da

criação, usando os métodos de investigação científica, tão úteis à redução do que, em

passagem anterior desta obra, denominamos do “ignorância externa”, precisamente por

referir-se, não à dimensão espiritual mas a, até há pouco tempo, admitida como

irreconciliável com ela, representada pela matéria, o referido “caldo” primitivo, compor-

se-ia dos elementos essenciais da célula viva, como o hidrogênio, o nitrogênio, o carbono,

o oxigênio e o fósforo.

Tais elementos, “ao acaso”, no transcorrer de milhões e milhões de anos, foram se

juntando nas partes de que se constituem as células, as mesmas que, com singular

desenvoltura, antes dos recentes avanços da Biologia Molecular, os excludentes da

hipótese criacionista, mencionavam, para, na sustentação da tese da “complexificação

crescente”, até o homem, usar expressões como as que se seguem: “complexificação a

partir da formação casual de organismos extremamente simples”, constituídos por uma ou

por poucas células. É que não sabiam ainda que o que supunham “extremamente simples”,

no caso de uma bactéria, fabrica, ou produz, a cada instante, milhares de produtos químicos

diferentes, enquanto uma célula integrante do organismo de um animal superior, fabrica,

também a cada instante, centenas de milhares daqueles produtos. Como se vê, algo que

será impróprio descrever como “extremamente simples”. Ainda hoje, Jean de Rostand

refere-se à Vida, como sendo “o problema dos problemas”. Autor citado anteriormente,

Jacques Monod, opta pelo acaso e a necessidade, fora de que, tudo seria “puro animismo”,

que ele condena, mas admite que a simples existência de seres vivos “aparece como um

verdadeiro desafio”.

Que nos perdoem os leitores, mas para que fique mais explícita a noção da extrema

complexidade que se evidencia no que se relaciona aos seres vivos, segundo a revela a

Biologia Molecular a qual, entretanto, não está em condições de definir ou de desvendar a

essência da Vida, seja-nos permitido oferecer a seguir, alguns dados desse ramo da ciência,

com o perdão dos especialistas, entre os quais não tem este humilde autor a pretensão de

ser incluído, por tais ou quais imprecisões que, de boa-fé, viermos a cometer. Assim,

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diremos inicialmente, que além de numerosas outras substâncias, como metais, não metais,

açúcares ou oses, ácidos graxos, os seres vivos contêm duas grandes categorias de

substâncias químicas, denominadas ácidos nucléicos e proteínas. Os primeiros constituem-

se de moléculas gigantes, resultantes da associação de moléculas menores, denominadas

“nucleotídeos”, associadas umas às outras pelas extremidades, do que resulta a formação

de cadeias. Dentre os ácidos nucléicos, há um do qual, seguramente, o leitor sabe da

existência: o ácido desoxirribonucléico ou, abreviadamente, o famoso ADN. Em tais

ácidos, os “nucleotídeos” compõem-se de um açúcar, a desoxirribose, um fosfato e uma

dentre um grupo de quatro bases nitradas, que têm afinidade química, duas a duas.

Isto posto, diremos que a estrutura de um ADN, apresenta-se como o resultado da

ligação entre os fosfatos dos “nucleotídeos”, no sentido vertical. No sentido horizontal, a

ligação é feita por intermédio das bases que tenham afinidade. A estrutura sumariamente

descrita assemelha-se a uma espécie de escala na qual as marcas são constituídas por duas

bases nitrogenadas que tenham afinidade, já mencionadas. São possíveis quatro tipos

diferentes de marcas, cuja sucessão ou, melhor, cuja ordem de sucessão, constitui uma

espécie de linguagem codificada, escrita com um alfabeto de quatro letras. Em nosso

alfabeto, o número de letras é bem maior; mas da ordem em que elas sejam acopladas,

resultam as palavras de que se constitui a nossa linguagem escrita. Analogamente, a ordem

em que as dispõem o que chamamos de “marcas de uma escala”, caracteriza um dado ácido

nucléico, a sucessão de cujas “marcas” determina as propriedade químicas e fisiológicas

desse ácido. Em tal “linguagem codificada”, um grupo de três marcas corresponde a uma

“palavra”, na linguagem dos especialistas, um “codon”. Pois bem; dentro de tal

“linguagem”, “frases” compostas de várias “palavras”, constituem os famosos “genes”, os

quais podem grupar-se no que se denomina “operons”, que correspondem, digamos, aos

capítulos em nossa linguagem escrita.

Como os ADN são macromoléculas, contendo milhares de “letras”, constituem

“volumes”, ou livros, nos quais são descritas todas as operações químicas e fisiológicas

que a célula é capaz de realizar. Como se vê, nada “extremamente simples” como até tão

pouco tempo se supunha.

Os seres vivos, porém, como sabemos, constituem-se, além de outras substâncias,

de dois tipos fundamentais delas: os ácidos nucléicos, de que acabamos de descrever

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alguns aspectos essenciais, e as proteínas, das quais procuraremos tratar em seguida. São

elas também constituídas por macromoléculas, compostas por ácidos aminados

pertencentes a vinte tipos diferentes, os quais, acoplados pelas extremidades, conferem às

proteínas o caráter de “codificadas”, segundo a ordem em que se acoplam os referidos

ácidos. São elas, portanto, uma espécie de “linguagem escrita”, com um “alfabeto” de vinte

letras. Cada uma, portanto, é dotada de uma especificidade definida por sua “linguagem

codificada” ou, simplesmente por seu “código”. Com as sumárias noções acerca dos ácidos

nucléicos e das proteínas, vejamos agora alguns dados sobre o “núcleo celular”. Sua

composição assemelha-se à da célula, e possuem um “suco nuclear”, revestido por

membrana, no qual estão presentes “organitos”, que são corpúsculos permanentes, além de

corpúsculos de funções ainda não perfeitamente esclarecidas. Quanto aos “organitos”, sua

composição e funções, salvo casos acidentais, são invariáveis, constituindo-se no material

genético, nos cromossomos de existência tão freqüentemente mencionada em nossos dias.

Acrescentemos agora que, cada cromossomo, é constituído por uma macromolécula

de ADN. Dentro do núcleo os cromossomos associam, se em pares de cromossomos quase

idênticos, sendo o número de pares, característico de cada espécie. Na nossa espécie, na

espécie humana, o número de pares é de 23, correspondendo a 46 cromossomos. Diríamos,

assim, que o número de pares sendo, em nossa espécie 23, 46 cromossomos são

encontrados em todas as células do indivíduo que se considere, à exceção de suas células

reprodutoras, que têm 23 cromossomos. A afirmação vale, tanto para as “células fêmeas”,

quanto para as “células macho”. A associação de uma “célula fêmea” a uma “célula

macho”, na formação do ovo, reconstitui o número 46 de cromossomos, característicos de

nossa espécie, diríamos que se N é o número de pares de dada espécie, 2N será o número

de cromossomos que a caracteriza.

Cabe agora tentar esclarecer o papel fisiológico dos cromossomos, cuja significação

na hereditariedade já de há muito era reconhecida, como de há muito já se conhecia que o

desenvolvimento do organismo, a partir do ovo, se dava por sucessivas divisões celulares.

Hoje, entretanto, conhecem-se mais detalhes. Sabe-se, por exemplo, que o papel da

“linguagem codificada” do ADN é o de dirigir e realizar as sínteses das proteínas, das

quais, umas vão constituir os diferentes tecidos, enquanto outras provocam, catalisam e

controlam, no sentido amplo do termo, todas as reações químicas da célula. Igualmente,

sabe-se hoje que cada um dos genes do núcleo tem por função (diríamos nós, missão),

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realizar a síntese de uma proteína, na conformidade do seu próprio código. De fato, cada

“codon” de um gene seleciona, dentre todos os produtos armazenados na célula, o ácido

aminado que lhe corresponde, de modo a que o gene provoque o grupamento linear dos

ácidos aminados dentro da ordem que corresponde ao seu código, os quais parecem unir-se

espontaneamente, por intermédio de suas funções ácido e amina, em síntese que não é

igual às usadas pelos químicos em seus laboratórios.

Pedimos, agora, particular atenção aos leitores: um especialista em Informática

diria, do exposto, que cada gene dispõe da informação necessária à síntese de uma

proteína, e que o núcleo contém toda a informação necessária à construção do indivíduo

inteiro, a partir do ovo. Certos detalhes de mecanismo podem parecer contraditórios,

embora não o sejam. Assim, dissemos antes que a síntese das proteínas realiza-se no

citoplasma, por intermédio do que designamos como “organitos”. Na verdade, o ADN

produz um intermediário, que é uma espécie de réplica parcial dele mesmo. Tal réplica é

outro ácido nucléico, o ácido ribonucléico, abreviadamente conhecido como ARN, que tem

o mesmo código da fração de ADN de que se origina, ARN que funciona como um

“mensageiro”, cujo papel é ir ao citoplasma para ali provocar as sínteses correspondentes

ao seu “código”. Mas há outros fatos, tão, ou ainda mais surpreendentes, como a presença

dos chamados ARN de “transferência”, os quais fixam os ácidos aminados ao longo dos

“codons” do ADN e os transportam para os “codons” do ARN “mensageiro”. E há mais

ainda; existem “genes operadores”, que podem ser reguladores, repressores, controladores,

sincronizadores, os quais produzem proteínas específicas capazes de acionar, de reter, de

regular e de sincronizar a síntese das proteínas de estrutura, à medida em que se constituem

os tecidos do embrião, a partir do ovo.

Como se não bastasse, cumpre assinalar que todos os produtos químicos

necessários às operações vitais são sintetizados, em tempo útil, dentro das células, salvo os

ADN dos cromossomos do núcleo, porque eles preexistem no ovo e as únicas

transformações que sofrem, durante o desenvolvimento do embrião e de toda a vida do

indivíduo, são desdobramentos que, salvo acidentes, produzem dois cromossomos

idênticos ao cromossomo desdobrado. Registremos, pois, que a célula inicial pode dividir-

se - inclusive com o aparecimento de membranas necessárias a cada núcleo - seja em duas

células, seja em quatro do tipo destinado à reprodução, já mencionadas anteriormente. A

divisão celular constitui, portanto, o mecanismo fundamental da construção de cada

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indivíduo a partir do ovo, do seu crescimento e da manutenção do adulto. De capital

importância, também, é sublinhar que, salvo casos acidentais e esporádicos, os

cromossomos são os únicos componentes químicos estáveis e invariantes do indivíduo,

tanto no que toca à composição, quanto no que se refere à estrutura. E a observação tem

muitíssimo a ver com a evolução, tanto à visão do darwinismo original, quanto na do

chamado neo-darwinismo, uma vez que fica claro que é aos cromossomos que se deve a

hereditariedade.

Daí, aliás, o falar-se tanto nos modernos testes de paternidade, baseados,

precisamente, na invariância dos referidos cromossomos. Os acidentes aleatórios do

maravilhoso e preciso mecanismo do qual nos atrevemos a dar um esboço, sem dúvida

incompleto - e que por isso, ou por outras razões, nos perdoem os especialistas em cujo rol,

inicialmente, confessamos não pertencer - são, por isso mesmo que aleatórios,

imprevisíveis, de vez que permanecem ignoradas as leis que regem porventura o seu

surgimento. Aplicam-se a tais incidentes as leis das probabilidades e cálculos realizados,

até agora demonstram que, por intermédio das mutações que eles representam, já não

diríamos para o surgimento de um novo indivíduo, mas de um novo órgão, significaria a

necessidade de um tempo muito superior ao que a ciência atribui à existência do planeta

em que vivemos. Parece oportuno registrar também, que o Transformismo de Lammarck,

sobre o qual já fizemos observação anterior, não se sustenta porque caracteres adquiridos

não se transferem hereditariamente: sem o desejo de fazer “blague”, mas de dar um

exemplo simples e muito claro, o filho de um halterofilista, de um praticante de

musculação, não nascerá mais musculoso porque o seu pai, ou seus pais, fizeram aumentar

o volume das suas musculaturas, adquirindo o aumento mencionado por intermédio de

exercícios praticados durante as suas vidas.

Tais exercícios em nada influem na composição e na estrutura dos cromossomos de

que a hereditariedade de fato depende.

Do que ficou dito até aqui, imaginamos útil extrair o seguinte resumo de

conclusões, ou observações, de magna importância:

a) a incrível complexidade das estruturas e operações vitais, maravilhosamente

ordenadas e sincronizadas, presentes nas células que o orgulho, despercebido da

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ignorância em que se apoiava a respeito delas, costumava designá-las como

realidades “extremamente simples”;

b) o papel fundamental do ADN em todas as operações vitais;

c) os mecanismos químicos do papel fisiológico do ADN;

d) a invariância do ADN durante toda a vida do indivíduo, em virtude do processo

de “cópia fiel”, de que as mutações representam exceções de incidência

aleatória quanto à freqüência com que ocorrem, com as implicações já vistas

anteriormente;

e) a correlação entre a complexidade orgânica de um ser vivo e a do seu material

genético, correlação decorrente do fato de existir uma relação direta entre o

número de genes do material genético e o número de proteínas sintetizadas

dentro da célula, número que será tanto maior quanto maior seja o número de

tecidos e de órgãos do indivíduo considerado; e

f) um caráter adquirido por um indivíduo não modifica o núcleo de nenhuma

célula reprodutora, em conseqüência do que, não será transmitido

hereditariamente.

As novas técnicas da “engenharia genética”, fundam-se na possibilidade de alterar o

núcleo de células reprodutoras, o que, eventualmente conseguido, acarretará uma mutação,

não representando, portanto, a transmissão hereditária, de caráter adquirido pelo indivíduo.

Daí, já pode o leitor pressentir as formidáveis e perigosas implicações das pesquisas em

curso, e as suas correlações com outros campos da realidade humana, inclusive aqueles que

não integram os domínios da ciência e da tecnologia. Também pode compreender melhor a

razão dos fenômenos de rejeição de tecidos implantados em um organismo, oriundos de

outro organismo; bem como a maravilhosa singularidade de cada ser humano.

Por tais razões, não hesita este autor em confessar, por ser verdade, que sempre

resistiu à aceitação, como verdadeira, da hipótese de ser o homem o resultado de uma

evolução processada ao longo do tempo, evolução que trazia, no fundo, a negação da

hipótese criacionista, eis que tudo dependeria do acaso cego, ocorrido no plano da matéria,

ou o do que tantos supõem seja ela e sua diferença do que, sendo transcendente a ela, de

novo o orgulho supõe fantasioso e irreal. Hoje, admitimos a existência de dois planos

segundo os quais os acontecimentos ocorrem. Temos mencionado a existência deles, ao

menos segundo nossa presente maneira de ver as coisas e tentar entendê-las. E é aqui que

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nos parece chegado o momento de voltar à “instabilidade de Bénard”, e às idéias

revolucionárias de Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química. Segundo elas, a desordem

não é um estado natural da matéria mas, ao contrário, um estágio, que precede a

emergência de uma ordem mais elevada o que, supomos, já foi por nós assinalado

anteriormente. É que o cientista em questão recusava-se a aceitar a hipótese de que o

universo e a vida haviam brotado, casualmente, de um caos primordial. Tal convicção,

como já mencionamos antes, assentava em algo experimental, a acima de novo assinalada

“instabilidade de Bénard”, o qual observara que as moléculas de um líquido, da água, por

exemplo, em aparente movimento desordenado e caótico, o conhecido “movimento

browniano”, à medida em que se eleva a temperatura da amostra esta, longe de mostrar, tão

somente o aumento de velocidade das moléculas, misteriosamente apresenta retículos

hexagonais em que elas se agrupam, de maneira surpreendente, à partir do aparente caos

que marcava a sua movimentação. E Prigogine passou então a questionar-se se o que

acontece com a dinâmica dos líquidos, segundo as observações de Bénard, não seria

válido, também, nos domínios da Química e da Biologia.

Segundo entende este insignificante autor, fica clara aí, a hipótese de dois planos, a

que nos temos referido reiteradamente, não apenas neste texto, como registramos tantas

vezes em veículos da mídia, bem como na tribuna.

Quanto foi visto em dados que buscamos fornecer acerca da Biologia Molecular, ao

menos para nós, sugere claramente a existência de algo capaz de ordenar, controlar,

realizar de modo atordoadoramente complexo e harmonioso, as substâncias químicas que

dão realidade e expressão material aos organismos vivos, em sua variedade enorme, em

sua especificidade e em sua singularidade. E isso para não falar nas características

interdependentes dos ecossistemas, de que a menos maravilhosa não é a homeostase, capaz

de recompô-los, caso não ultrapassados certos limites de agressão daquela

interdependência harmoniosa. Voltando ao pensamento de Prigogine, e o leitor, esperamos,

concordará com a oportunidade da menção à homeostase, e ao “feed-back” tão conhecido

nos domínios da cibernética, devemos admitir que ele supõe que as coisas que se

encontram à nossa volta comportam-se como sistemas abertos, trocando matéria, energia e

informação com o ambiente. Esses sistemas abertos mantêm-se em perpétua atividade, mas

variam regularmente ao longo do tempo, devendo ser considerados, ao menos à falta de

melhor expressão, como flutuantes. Tais flutuações podem tornar-se tão acentuadas, que a

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harmonia com que funcionam, não pode suportá-las sem se transformar. Diante do limiar

representado pela capacidade do sistema de suportar as flutuações sem se transformar,

segundo Prigogine, duas hipóteses apresentam-se como alternativas: ou o sistema é

destruído, ou admite uma nova ordem interna, caracterizada por um nível superior de

organização. E aqui se apresenta a essência do pensamento revolucionário de Prigogine: a

Vida assenta sobre estruturas ativas de caráter dissipativo, cujo papel consiste,

precisamente, em dissipar o influxo de energia, de matéria e de informação capaz de

acarretar uma flutuação.

Como se vê, as concepções de Prigogine baseiam-se na idéia de sistemas abertos,

não valendo para eles o estabelecido pelo 2o princípio da Termodinâmica, o princípio de

Carnot, segundo o qual, em um sistema material isolado, ou fechado, toda transformação

espontânea acarreta um aumento da entropia do sistema o que vale dizer, que aumenta a

desordem nele reinante. Algo como se o universo ordenado que conhecemos, mantivesse

permanente luta contra a desordem crescente, luta de que seriam expressão as

transformações nele observadas. Seria o quadro de um universo em contínua degradação,

em oposição às concepções evolucionistas sustentadas dentro dele e, contra as quais, além

de razões menores, colocava-se, confessamos anteriormente, a voz deste humilde autor.

Ainda não havíamos percebido a existência dos dois planos dos acontecimentos, a nível

das transformações históricas, existência que, parece-nos, encontra respaldo na nova visão

que adquirimos dos mecanismos revelados pela Biologia Molecular e, fora mesmo dos

fenômenos ligados à vida, no cenário ainda mais amplo do universo em geral, pelas

concepções de Ilya Prigogine. Para ele, existe uma trama contínua que une o inerte.

Trata-se, como se pode ver, do ressurgimento de concepções evolucionistas

defendidas por correntes religiosas muito antigas originárias do Oriente, que as

sustentavam sem preocupação de fazê-lo com base científica e que agora, ao menos em

nossa visão, começam a encontrar respaldo científico, tanto nos fenômenos relacionados à

formação e crescimento dos organismos vivos como, agora, a partir principalmente das

experiências de Bénard, Prigogine explicita, maravilhado, talvez estupefato diante da

onipresença de uma ordem subjacente ao caos aparente da matéria, ao declarar: “O que é

espantoso é que cada molécula sabe o que farão outras moléculas ao mesmo tempo que ela,

e a distâncias macroscópicas. As nossas experiências mostram existência de comunicação

entre elas. Toda a gente aceita esta propriedade nos sistemas vivos, mas ela é, no mínimo,

inesperada nos sistemas inertes”.

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Já vimos que uma célula viva depende, em sua estrutura, do acoplamento de vinte

ácidos aminados. O exercício das funções desses ácidos aminados, por sua vez, sabe-se

hoje, depende de cerca de dual mil enzimas especificas, que devem ordenar-se em uma

maneira própria. Cálculos probabilísticos deixam evidente que, ainda no transcorrer de

muitos bilhões de anos, a probabilidade de que apenas um milhar dessas enzimas,

ordenadas na seqüência adequada, se reunam para a formação de uma célula viva, é da

ordem de um para dez elevado a mil. Ou seja, como disse Francis Crick, descobridor do

ADN, o que lhe deu o Prêmio Nobel de Química, o surgimento da vida, à luz do que a

ciência até agora conhece a tal respeito, parece ter algo a ver com milagre.

Ainda na mesma linha de considerações, cita Jean Guitton, em seu livro “Deus e a

Ciência”, as palavras de um dos interlocutores do diálogo que manteve com dois físicos, no

presente caso Grischka Bogdanov, que assim se expressou: “Para que o agregado de

nucleotídeos levasse “por acaso” a uma molécula de ARN utilizável, teria sido necessário

que a natureza multiplicasse os ensaios às apalpadelas, pelo menos durante dez elevado a

quinze anos, ou seja, cem mil vezes mais tempo do que a idade admitida para o universo.

De tudo isso, e de mais que poderia ser acrescentado, atreve-se este escriba a julgar muito

clara a união, a convergência, entre as duas vias adotadas pela humanidade para a

dissipação das duas modalidades de ignorância em que foi mergulhada, desde a

desobediência e a Queda: a interna, por meio da religião; a externa, representada pela

ciência, que, pelos motivos expostos, ao menos segundo a nossa opinião, acentuou-se, a

partir do século XIV com o surgimento do Nominalismo, componente fundamental da

célebre “querela dos universais”. Dicotomia que, segundo pensamos, começa a apresentar

indícios claros da unificação, em um só caminho, cuja verdade, afinal, começa a impor-se,

neste final de século.

No correr desta obra, nem sempre pudemos dispor de uma parte de documentos e

livros, por motivos sobre os quais não tivemos nenhuma ingerência ou responsabilidade,

que integram a nossa biblioteca que nunca esteve reunida, completa, em um só local. Por

isso, nem sempre pudemos fazer citações textuais e acompanhadas, além da menção da

autoria, que sempre procuramos fazer, das relacionadas à editora, data da edição, local da

edição, etc. Entretanto, sobre as observações contidas nos diálogos mantidos por Jean

Guitton com os físicos Igor e Grischka Bogdanov, é-nos possível, daqui para diante,

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sempre que pareçam oportunas, fazê-lo de maneira textual, fornecendo, além do título da

obra em que foram compendiados, a menção da editora, como é nosso dever, a Editorial

Notícias, Lisboa, feita de tradução do original francês, de 1991. É que a referida tradução,

cujo título completo, que antes registráramos de memória, como “Deus e a Ciência”, na

verdade acrescenta ainda, (para um meta-realismo), de vez que o título da edição francesa,

de Grasset e Frasquelle, é “Dieu et la science (vers le metaréalisme)”. A citação que segue,

portanto, é textual. Vejamos como se expressou Jean Guitton: ...”Que existe, então, para

além da sua substância sólida? Antes de dar a palavra à ciência de hoje, quero falar de dois

grandes pensadores que, cada um à sua maneira, responderam a esta questão: o primeiro

chamava-se Bergson.

“Num belo dia de Maio de 1921, decidi ir à Academia de Ciências Morais e

Políticas. Aí, pela primeira vez, encontrei (ou antes, contemplei de longe, no claro, escuro

de uma sala que cheirava a madeira velha e a cera) o grande Bergson. Desse primeiro

encontro, restam-me hoje duas coisas: um desenho do seu rosto de que eu rabisquei à

pressa um perfil; para além da imagem, a impressão indelével, profunda, do seu

pensamento. Nesse dia, verifiquei que ele tinha uma opinião puramente espiritual da

Matéria. Para melhor a compreender, temos que recordar em 1912 a um jesuíta, o padre

Tinquédec.

“As considerações expostas no meu ensaio "Matière et Memoire", fazem tocar com

um dedo, espero-o, a realidade do espírito. De tudo aquilo, destaca-se naturalmente a idéia

de um Deus criador e livre gerador, simultaneamente, da matéria e da vida”.

“Como teria ele chegado a uma tal certeza? Muito simplesmente apoiando-se na

idéia de que, na origem do universo, há um impulso de pura consciência, uma ascensão

que, num instante, se interrompeu e “caiu”. Foi essa queda, essa “recaída” da consciência

divina que engendrou a matéria, tal como nós a conhecemos. Nada de espantoso, portanto,

que essa matéria tenha uma memória “espiritual”, ligada às suas origens.

“Agora, algumas palavras sobre uma segunda personagem que, também ela, contou

muito na minha vida: o padre Teilhard de Chardin. Ele tinha sido companheiro do meu tio

Joseph que, desde sempre, me falou dele. Acabei por encontrá-lo um dia, em 1928, no

decurso de um retiro. Ele estava todo inteiro nessa primeira aparição, marcado por aquela

gravidade que nunca o abandonou. Disse-se muito, escreveu-se muito sobre esse grande

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pensador; mas o essencial de sua filosofia exprime-se menos (como sem razão se pensa) na

visão que ele tinha da evolução biológica do que na idéia muito pessoal que ele tinha da

matéria. Essa idéia impôs-se-lhe bruscamente, quando tinha sete anos. Um belo dia, ele

tinha afagado com a sua mão de criança a relha de um arado; de repente, ia perceber o que

era o Ser: qualquer coisa de duro, de puro e de palpável. Mas sobretudo, no momento em

que os seus pequenos dedos pousaram sobre o aço liso e frio da ferramenta, sua mãe pôs-

se-lhe a falar de Jesus Cristo. Então, nessa criança, as duas extremidades do Ser, a matéria

e o espírito, esses dois pólos que freqüentemente opomos, juntaram-se para sempre ”70.

O trecho transcrito, em nosso entendimento, se não exprime o que, exatamente,

sobre o assunto, escreveria este autor, entretanto, parece-nos, exprime, claramente o fato de

que em data distante, já anteviam pensadores da estatura de Bergson, de Teilhard de

Chardin e do próprio Jean Guitton, sobre a convergência, linhas acima mencionada, dos

dois caminhos aparentemente distintos, percorrendo os quais buscam os homens dissipar as

duas espécies de ignorância que resultaram do pecado original: os caminhos da religião e o

da ciência que, pensamos, dissemos e vamos repeti-lo uma vez mais, tendem a unir-se, a

fundir-se em uma, só grande e majestosa realidade.

O pensador que estamos citando, em outro trecho da sua obra, assinala... “Essa

nova teoria parece-me desembocar numa abordagem verdadeira do real: o fundo das

coisas, o substrato último não é material, mas sim abstrato: uma idéia pura cuja silhueta só

é compreendida indiretamente através de um ato matemático.

“A este respeito, faço notar que a ciência rectriz, aquela que nos faz penetrar nos

segredos do cosmos, não é tanto a Física, mas a Matemática, isto é visível no destino de

dois sábios ilustres que, um e outro, cruzaram a minha vida por diversas vezes: os dois

irmãos Broglie. O mais velho, o duque Maurice, era antes de mais, físico; mas o seu jovem

irmão Louis, matemático de formação, fez mais descobertas frente ao seu quadro negro

que Maurice no seu laboratório. Por que? Provavelmente porque o universo esconde um

segredo de elegância abstrata, um segredo no qual a materialidade pouco representa”.

Nós reconhecemos que os conceitos de natureza científica já estão ocupando uma

extensão consideravelmente grande, cuja leitura não é das mais fáceis para os que nos

estejam concedendo generosamente a sua atenção, mas não tenham tido formação - e

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ninguém tem a obrigação de possuí-la - nos campos a que aqueles conceitos se referem.

Desculpem-nos, portanto. É que a magnitude do assunto é tamanha que não pudemos

evitar a sua exposição - sempre com a ressalva sobre o óbvio, relativa à nossa convicção

sobre nossas limitações pessoais. Além dela, insistiremos mais uma vez em que, sobre as

matérias expostas, a decisão sobre o que elas representam em conteúdo de verdade, cabe

aos leitores, à consideração de cujas inteligências e consciências as remetemos.

De qualquer maneira, a despeito da extensão até aqui dedicada a dados de natureza

científica, alguns outros nos parecem indispensáveis, para uma compreensão mais

completa acerca da convergência, cada vez mais clara, entre espírito e matéria, entre

religião e ciência. Quando, em partes anteriores desta obra, nos dedicamos a mostrar uma

razão fundamental da preferência dada por S. Tomás de Aquino, ao pensamento de

Aristóteles sobre o de Platão, assinalamos o fato do primeiro admitir em todos os seres a

presença de uma "forma", cuja explicitação crescente seria a base da hierarquização entre

eles, cujo patamar mais alto caberia ao homem. Sem desejar voltar a detalhes já

mencionados naquela oportunidade, lembraremos apenas a circunstância da existência de

um propósito, idéia que não é compatível com a defendida, como já mencionado, por

Jacques Monod, para quem todo o universo conhecido seria o resultado do acaso e da

necessidade. Diremos agora que para o físico inglês David Bohm, o que pode parecer

aleatório e casual, na verdade é conseqüência da nossa incapacidade de apreender a

presença de uma ordem de grau muitíssimo mais elevado. Para ilustrar o que queremos

dizer, mencionemos a questão, que os físicos conhecem perfeitamente, das chamadas

“franjas de interferência”. Como podem elas ser obtidas? Intercalando-se uma placa dotada

de duas fendas paralelas entre uma fonte luminosa e uma chapa fotográfica. A fonte

luminosa, por sê-lo, permite enviar fótons em direção à placa. Considerado cada fóton

isoladamente, não há como prever qual das duas fendas será por ele atravessada, antes de

alcançar a chapa fotográfica.

A opção, por uma ou por outra, parecerá inteiramente aleatória, devida ao acaso.

Entretanto, depois do bombardeio com um número suficientemente grande de fótons, a

figura observada na chapa fotográfica nada tem de aleatória, mas corresponde às citadas

“franjas de interferência”, em tais termos, perfeitamente previsíveis em sua configuração.

O que parecia casual, na verdade obedecia a uma ordem subjacente que, ao menos à

primeira vista, não parecia existir. Acaso? O que será, realmente, o acaso, senão uma

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incapacidade transitória para perceber uma ordem superior, que criou e mantém todo o

universo?

Como pode, esperamos, ver o leitor, estamos tentando oferecer-lhe à consideração,

algo de tão grande importância que nos atreveremos a expor ainda alguns aspectos,

geralmente não divulgados em escala adequada, colhidos pela própria investigação

científica, sobretudo a partir do início deste século que vai se aproximando do final em

meio a claros, claríssimos, sinais de desagregação e de ruína. Os que se locupletam delas,

ou julgam locupletar-se, ao menos em parte são responsáveis pelo desconhecimento da

maioria acerca de circunstâncias que, difundidas e objeto de análise e reflexão, quem sabe

produziriam situação diferente, barrando os caminhos do orgulho impenitente que, ele

próprio tantas vezes ignorando certas coisas, não hesita em tripudiar sobre o

desconhecimento alheio. Assim, não contentes em afirmar uma diferença irredutível entre

matéria palpável, perceptível pelos sentidos materiais, e transcendência, ainda insistem em

difundir que a primeira é a única de fato existente, sendo tudo quanto possa ser classificado

como metafísico, apenas fantasia que as pessoas, realmente “objetivas”, não devem

considerar, a ponto de perder seu tempo com ela.

Nada obstante, ainda hoje, as pessoas que freqüentaram os cursos de grau médio, e

mesmo as de meia idade que tenham sido instruídas a nível do que hoje se denomina de 3o

grau, excetuadas as que se especializaram ou se formaram em cursos em que muito

acentuadamente foram atribuídas grandes cargas horárias ao estudo das propriedades da

matéria, em sua maioria, estamos certos, imaginam que, se realmente o que sugere o étimo

da palavra átomo (aquilo que não pode ser dividido), não corresponde à realidade, tal

como supunham filósofos da escola jônica, como Demócrito e Leucipo, imaginam

existirem apenas três partículas subatômicas, prótons, nêutrons e elétrons, os dois

primeiros constituindo os núcleos dos átomos, em torno dos quais girariam os elétrons. Na

verdade, hoje sabe-se que coisas menores que os átomos não são três apenas, mas centenas,

cujo número não pára de crescer. E mais surpreendente ainda para a maioria das pessoas

não especializadas, será atentarem para o fato que chegamos a mencionar muitas páginas

atrás, denominando-o “complementaridade”, segundo o qual os fenômenos elementares

devem ser considerados como algo que é, simultaneamente, corpúsculo e onda.

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Lembramo-nos bem de quando, ainda muito jovem, chamou-nos a atenção um

artigo publicado em uma revista científica inglesa, em que um dos maiores vultos da Física

do nosso século, Erwin Schrödinger, afirmava justamente isto: que os elétrons deviam ser

concebidos como algo, simultaneamente, partícula e onda. A natureza simultânea de duas

concepções distintas, pareceu-nos indicativa de uma realidade fugidia, cujo caráter de

corpúsculo e de onda, haveria de depender do gênero de observação a que fosse submetida.

Pois bem, ainda hoje, tantos anos passados e tantas surpresas acrescentadas, sobretudo pela

chamada Física Quântica, e ainda persistem tantas “certezas inabaláveis”, na verdade

outras tantas imprudências. E não o dizemos com intenção pejorativa, mas pesarosos, pelo

custo que tantas delas têm trazido ao nosso mundo, criado, segundo pensamos, para a

harmonia, a felicidade e a paz. Realmente, até o surgimento da mencionada Física

Quântica, não se cogitava da existência de limites além dos quais o conhecimento humano

não pode avançar. Tais limites indicam, repitamo-lo, não domínios ainda não conhecidos,

mas domínios insuscetíveis de virem a sê-lo.

Um deles é o “quantum de ação”, de pequenês inimaginável, uma vez que

representado por fração em que o numerador é expresso por alguns dígitos, enquanto o

denominador é a trigésima quarta potência de dez. Esse valor inconcebivelmente pequeno,

expresso em joules-por-segundo, representa a menor ação mecânica concebível. Ela marca

o limite extremo da divisibilidade da radiação, o que vale dizer, o limite extremo de toda a

divisibilidade. Entretanto, tal valor ínfimo não é igual a zero. O que haverá para além dele?

No estágio atual da ciência é algo que, em seu domínio, parece inatingível para sempre.

Por outro lado, é muito provável que o leitor já tenha ouvido falar, como hipótese

explicativa da origem do universo que a ciência assegura estar em contínua expansão, da

“Grande Explosão”, o “Big-Bang” inicial, explicativo da expansão a que acabamos de nos

referir. A Terra, o planeta em que habitamos, possivelmente o Éden a que se referem as

Escrituras, tem sua idade cientificamente avaliada em algo como quatro bilhões e meio de

anos. Outra fronteira do conhecimento científico, cumpre mencionar neste ponto, está

representada pela chamada “barreira de Planck”, a fração de um segundo dividido por dez

elevado à quadragésima terceira potência de dez.

Ou seja, um período de tempo em que a unidade aparece precedida de mais de

quarenta zeros. Entretanto, não se trata do tempo zero, em que nada existiria. Pois, na

diferença infinitesimal entre zero e a fração inimaginavelmente pequena de segundo

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referida acima, estaria concentrado tudo quanto hoje existe, ou sabemos existir, todos os

astros, todas as galáxias, todos os sóis, todas as plantas, todas as flores, todos os animais,

todas as plumagens, todas as simetrias das asas de todas as borboletas, todo o equilíbrio de

todos os ecossistemas, a homeostase de todos eles, os seres humanos, tudo, tudo, sugerindo

uma origem vertiginosamente potente, para a qual o tempo comumente conhecido, e que a

própria Física clássica incumbiu-se de evidenciar como algo dependente do referencial em

que foi medido, abalando a noção da simultaneidade de acontecimentos, de ocorrências

aferidas em referenciais que se movem, uns em relação aos outros, tudo isso teria

dependido do acaso? Por tais razões, talvez, é que o físico John Wheeler, apud J. Guitton,

op. cit., teria expressado a sua impressão acerca do que estaria por detrás, o que existiria

antes da “barreira de Planck”, nos seguintes termos: “Tudo o que nós conhecemos encontra

a sua origem num oceano infinito de energia, que tem a aparência do nada”.

Que significa, porém, ter a aparência do nada? Existe o nada? Assim, atrevemo-nos

a dizer que nada, aí, exprime apenas impotência diante daquilo para o que os instrumentos

de investigação, e os mecanismos lógicos aceitos até agora não têm aptidão; por isso,

também, é que ousamos dizer que estamos nos aproximando da convergência inexorável,

entre os caminhos interno e externo que os homens, como que tocados pela saudade da

harmonia que um dia conheceram, buscam reencontrá-la, trilhando, para dissipar os dois

tipos de ignorância que neles foi introduzida pela desobediência, duas vias: a interna, ou

espiritual, e a externa, relacionada às coisas do Criador de todas elas.

Este livro, o leitor bem o sabe, não tem a pretensão de transformar-se em um

tratado de índole científica. Nem seu autor a presunção de ser proprietário de verdades que

ele aceita como tais, pretendendo apenas expô-las para que sejam avaliadas pelas

inteligências dos que venham a lê-lo. Com o surgimento, no início do século, como vimos,

da Física Quântica, já representando algo novo em relação às idéias da teoria da

Relatividade, foi apenas nos meados dele que começaram a surgir os esforços baseados na

convicção de que a descrição completa do que chamamos matéria, implicava na fusão da

Física relativista com a Física Quântica, no que vem sendo chamado de “teoria quântica

dos campos”. E por que teriam surgido essa novas concepções? Pelo simples prazer de

complicar a descrição dos atributos da matéria, suas características, propriedades e

qualidades? Claro que não; tal como este autor não se vem detendo em assuntos que

reconhece complexos, pelo simples prazer de fazê-lo. Mencionamos anteriormente que as

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chamadas “partículas elementares”, sobre não serem tão poucas como a maioria dos

homens comuns continua a supor, imaginando que sejam apenas três, ou pouco mais,

tivemos oportunidade de dizer que, a esta altura, contam-se por algumas centenas, que,

entretanto, não compõem “átomos” razoavelmente compactos, mas coisas muitíssimo

distantes, umas das outras, os “átomos”, por sua vez extremamente distantes entre si,

constituintes dos objetos sólidos, como nos parecem, e que os nossos sentidos percebem

como tais.

A rigor, trata-se, no caso da referida percepção, de um problema de escala, de vez

que o que percebemos compacto, palpável, visível, em outra escala, na realidade representa

algo tão vazio quanto, digamos, os espaços siderais, muitíssimo maiores do que os corpos

celestes, em tal sentido, extremamente dispersos, de cuja presença nos dá conta a

Astronomia. Além disso, já o dissemos, nas interações elementares, algo pode ser uma

coisa, e outra bem diferente, simultaneamente. O terreno supostamente seguro da matéria,

na verdade não o é tanto, como anteriormente se supunha. A existência simultânea de duas

coisas diferentes, a “complementaridade”, também já mencionada, e que não se compadece

com as exigências da lógica, exigindo uma metalógica, deve-se, segundo admitem os

cientistas, ao fato de que uma partícula não é conhecida por ela mesma, mas apenas por

intermédio dos efeitos que produz, de acordo, pensamos, com os meios usados na tentativa

de observá-la, e da interpretação, dependente dos nossos esquemas intelectuais. Hoje, de

quanto foi dito até aqui, a própria noção de “partícula”, como algo pequenino mas

correspondente à noção do que “vale a pena ser investigado” por ser, supostamente, algo

do que imaginavam caracterizador da matéria, já não se mostra sustentável. Cada vez mais,

o “palpável”, quando se busca a realidade última da matéria, torna-se impalpável,

imaterial.

As últimas parcelas da “realidade”, tal como entendida até tão recentemente,

aparece como algo cuja percepção representa, não “coisas”, mas interações entre o que,

não sendo “coisas”, por intermédio das referidas “interações”, produzem determinados

efeitos fugazes, por meio dos quais chegamos a saber que existem. O conjunto de tais

efeitos é o que se denomina “campo”. Assim, os objetos que nossos sentidos apreendem

parecem ser resultado de um conjunto de “campos”, como o eletromagnético, o

gravitacional, o protônico, o eletrônico71. O que, em sentido corrente, constitui a realidade

do ambiente em que vivemos, na verdade parece ser o resultado da contínua interação entre

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“campos” aos quais não se pode atribuir nenhuma substância. Coloca-se, então, segundo

entendemos, uma grande questão: bem no fundo, como acabamos de ver, não há “coisas”,

mas efeitos perceptíveis de interações entre campos que não têm substância. Entretanto,

aqueles efeitos perceptíveis, em nossa escala produzem as coisas com que lidamos, com

suas formas, as suas qualidades, as suas propriedades. Coisas aparentemente estáveis,

inertes, estáticas, que, entretanto, resultam de um incessante número de interações entre

campos, que produzem efeitos apreensíveis também como partículas em fantástico

turbilhonar, que em relação às suas próprias dimensões, estão extremamente distanciadas

umas das outras.

O que fará com que desse aparente caos resulte, por exemplo, a serena e palpável

(para nós), existência de uma flor, com a sua beleza e o seu aroma, reprodutíveis em outras

de sua mesma espécie, a qual se perpetua em virtude da interação dual entre estame e

pistilo, em uma espécie de dialética, não de oposição e de luta, mas de cooperação, uma

dialética que de fato pode ser descrita como de dar e receber? Será o acaso que produz tudo

isso, e o faz em caráter repetitivo? A nós parece que, ao contrário, é mais inteligível a

suposição da existência de algo que subjaz ao caos aparentemente existente, uma ordem

superior, que nossa insuficiência de seres contingentes, ao não percebê-la, rotula como

acaso. Sem nenhuma intenção pedante, asseguramos ao leitor que outras, muitas outras

considerações, e cada vez mais abstratas e perturbadoras, poderiam ser acrescentadas como

as que conduzem ao conceito de simetria perfeita que teria existida atrás da “barreira de

Planck”, antes do momento da grande explosão, do “Big-Bang” que teria marcado o

surgimento do universo em expansão em que vivemos; simetria primordial, de caráter

absoluto, que segundo a idéia do “Big-Bang”, como instante inicial, começou a manifestar-

se por intermédio dos chamados “glúons”, que evoluíam quatro a quatro, seriam

destituídos de massa, sendo todos rigorosamente semelhantes, exprimindo, assim, o que os

físicos designam como simetria.

Qual será, entretanto, o sentido de atribuir-se substância, no sentido corrente, à

simetria a exprimir-se, no início, nos glúons destituídos de massa? Parece-nos, portanto

que o que já foi dito, talvez até com demasiada extensão, já é bastante para que se possa

perceber o que, no fundo, desejamos realçar: nos dias atuais, não podendo a Ciência provar

a existência de um Deus criador de todas as coisas, de uma Sua lei, de uma Sua ordem, de

uma finalidade, de um propósito, para toda a criação, como que já alcançou uma linha

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fronteiriça em que começa a impor-se a realidade da existência inexorável da

convergência, a que já nos temos referido por mais de uma vez, entre Ciência e Religião,

entre o físico e o metafísico. E quanto o radicalismo gerador de convicções inarredáveis,

fundadas em terreno movediço, tem prejudicado a busca da verdade e, em termos atuais,

tentado perturbar a Simetria Primordial, a Sabedoria e o Amor primordiais, de cujo Amor

somos, os seres humanos, o objeto principal, no universo de que ele é a fonte que o criou e

o sustém. Esta a nossa opinião. A do leitor, entretanto, nem é necessário dize-lo, dependerá

da análise pela sua inteligência e pela sua consciência, às quais estamos destinando esta

obra.

Perdoem-nos a pretensão de que, nada obstante a extensão, que pareceu-nos

indispensável à compreensão de assuntos tão graves e importantes, pudemos fazê-lo

evitando, quanto possível, a menção de números e expressões matemáticas, a não ser o

valor numérico de duas ou três das fronteiras do mundo físico. Encerrando, diríamos que,

hoje, matéria e energia, admitidos como intercambiáveis, desde os primórdios da

Relatividade restrita, devem ceder, no que tange à interpretação do universo, lugar ao que

parece mais importante e majestosamente presente, traduzível, talvez pela expressão

“esquemas de informação” o que, na limitação semântica que resulta da nossa

contingência, insinua, claramente, a presença, a um só tempo, aterradoramente grande e

indescritivelmente consoladora de um pensamento, de uma Mente Original, que criou o

universo com um propósito, que nos conhece a cada um de nós, seus filhos, objetos do

amoroso impulso que O levou a criar-nos. Acaso? Já vimos o que, ao menos para nós

significa esse rótulo72.

Agora, correndo o risco da impropriedade e impertinência do que iremos registrar,

queremos referir-nos ao saudoso mestre por cujas mãos iniciamos a nossa atividade de

professor universitário, professor Werner Gustav Krauledat, alemão de ascendência

finlandesa, que se transferiu para o Brasil ainda adolescente, adotando a cidadania

brasileira, que passou a ser a sua verdadeira pátria, protestante de denominação batista,

formado em Medicina e em Química, exerceu com zelo exemplar as suas atividades

docentes, na qualidade de catedrático, por concurso, tendo a tese de sua livre docência,

conquistada anteriormente, a formulação de uma nova Tabela Periódica dos elementos,

baseada, não no chamado “número atômico” mas na noção de “elétron diferenciador”,

sendo dispostos os elementos segundo os orbitais em que os referidos elétrons se situavam.

Homem metódico e extremamente estudioso, dedicando-se aos livros, toda as noites, até o

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começo da madrugada - e isso já quando em idade avançada e sem degraus a subir na sua

carreira - chamava-nos a atenção o fato de, em termos de medicina, ser apreciador da

homeopatia objeto, àquele tempo, de muitas restrições e de não poucas suspeitas acerca de

sua validade. O autor deste livro não é medico, nem pode alimentar a pretensão acerca de

discussão a ser sustentada por quem tenha conhecimentos especializados para fazê-lo.

Estamos mencionando o assunto porque nós mesmos ficávamos estupefatos diante

do mestre que, sendo formado em medicina e em química, não podia ignorar o fato, para

citar um único exemplo, e não dos mais eloqüentes, de o remédio de Sulphur (enxofre), da

30a dinamização, mesmo na chamada escala decimal, já não poder conter absolutamente

nada de enxofre. É que, para nós, existia algo como o “átomo-grama” daquele elemento, e

que valia 32g. Na escala decimal, à primeira dinamização corresponde a concentração de

um grama da substância medicamentosa, em um volume de 10 cm3 do remédio. A 2a

dinamização já seria realizada partindo de um cm3 da solução anterior e diluindo para l0

cm3, ou l0 ml (a diferença entre o centímetro cúbico e o mililitro é insignificante para os

propósitos do que estamos expondo); a 3a dinamização já será feita sobre um cm3 da

anterior, depois de diluída para dez. E assim, sucessivamente, até à trigésima dinamização,

na escala decimal. Fosse na centesimal, seria tudo isso, partindo-se de um ml para cem, na

primeira, de um ml da primeira, para cem, para a obtenção da segunda, e assim por diante.

Mesmo adotando a escala de concentrações maiores, a massa presumível ou

melhor, calculável, da substância medicamentosa já será menor do que a que era atribuída

ao elétron. Ou seja: a substância química enxofre, de há muito deixara de estar presente.

Nada obstante, assegurava o professor Werner, a experiência comprova a eficácia do

remédio, quando aplicado adequadamente. É que, em nossa ignorância, raciocinávamos

com partículas dotadas de substância, por detrás do que situava-se a distinção, hoje

inaceitável, nos termos vistos, entre o físico e o metafísico. Estávamos nós ainda longe das

noções de campos, de interações entre eles, de simetria, e de tudo quanto, anteriormente

nos esforçamos por submeter à apreciação dos que venham a ler-nos. As linhas acima são

um relato factual: não, repitamo-lo, uma apologia de tal ou qual escola terapêutica, para o

que faltam-nos os requisitos indispensáveis. Requisitos relativos a uma formação médica

que não possuímos. De qualquer maneira, fica mencionada uma correlação acessível à

compreensão do leigo e do não iniciado nos domínios da Física, entre muito do que ficou

dito até aqui sobre aspectos revolucionários das realmente avançadas e modernas

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concepções da investigação científica, apontando, parece-nos, para o surgimento, em

termos filosóficos, de um meta-realismo e de uma metalógica.

Ao mesmo tempo, supomos, fica também bastante clara, ao menos para nós, a

inconveniência, já mencionada, de radicalismos e de intolerância, de suspeições e de

preconceitos fundados em pressupostos que se esboroam, tudo indicando a presença de

influência perturbadora, estranha à harmonia existente, na linguagem da Física atual, no

que Era, para além da “barreira de Planck”, e no Que existiam todas as coisas. Influência

que perturba, dificulta, mas não pode impedir, supomos, o propósito que se exprime, na

linguagem bíblica, assim: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o

Verbo era Deus”.

Assim, damos por encerrada a I Parte desta obra, dedicada ao que acreditamos

sejam as causas profundas, verdadeiramente importantes, dos sofrimentos e do aparente

caos reinantes neste final de século. A identificação dessas causas, e os esforços por

erradicá-las, é que poderão contribuir para o estabelecimento de uma paz verdadeira entre

os homens. Os aspectos a que, comumente, se atribui tanta importância, geralmente ligados

a atividades de pessoas, de facções, de grupos de pressão, todos, ou quase todos, movidos

por motivações ligadas ao poder, à sua conquista e ao seu usufruto, podem ser causas

imediatas, apenas aparentes, dos problemas e dos sofrimentos a que foi feita menção. As

causas mediatas e profundas que as acarretam não estão naquelas pessoas, facções ou

grupos, na maioria das vezes ensandecidos pela ambição, sob o acicate de apetites

desaçaimados. O universo de harmonia, equilíbrio e beleza, não casuais, mas contidos já

no que Era, para além da “barreira de Planck”, não teria sofrido e continua sofrendo a

interferência do que, em linguagem bíblica é caracterizado como “o pai da mentira”, no

qual não existe nada de bom? O leitor julgará, não nós que não nos consideramos,

conscientes da nossa imperfeição, donos da verdade, que à consciência do leitor cabe

identificar. Atrevemo-nos, apenas, a sublinhar mais uma vez, que a disposição

preconceituosa, a presunção de suficiência fundada em conceitos que, quem sabe,

mereceriam ser reexaminados, são véus que, longe de ajudarem, tentam abafar a voz da

consciência. Ouvi-la, parece-nos, é mais compatível com o livre arbítrio com que o Criador

nos dotou de maneira irrevogável.

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INTERVALO ENTRE AS 1 a e 2a PARTES

Já no próprio título deste livro, estão claramente enunciadas as duas etapas em que

ele seria dividido essencialmente: “Os Sofrimentos e o Caos Reinantes Neste Final de

Século” - (Suas verdadeiras causas e a restauração, possível, da Justiça e da Paz). Assim

sendo, cumprir-nos-ia, dada como encerrada a 1a Parte, com o final dos 7 capítulos em que

ela foi desdobrada, iniciar a fase seguinte, destinada à exposição de idéias concernentes à

restauração, que julgamos possível, da Justiça e da Paz. Pareceu-nos, entretanto,

necessária, a intercalação deste breve “Intervalo”, para destacar alguns pontos que nos

parecem, além de essenciais, capazes de facilitar ao leitor a compreensão do significado e

da contribuição em que desejamos este livro venha a constituir-se, para a compreensão da

realidade desnecessariamente conflitual e geradora de sofrimentos que, como um vendaval

funesto, vem vitimando a humanidade, ainda que de diferentes maneiras, extensões ou

gravidades. Supomos, por exemplo, ilusória a noção de que os sofrimentos a que acabamos

de referir-nos, estejam presentes apenas no chamado 3o Mundo, assim classificado por

constituir-se de povos e regiões de carência, de pobreza ou de miséria. Na verdade, fora

assim, a verdade, tão singela, como responder à pergunta: foram os povos do 3o Mundo e

as suas lideranças, responsáveis pelos morticínios das duas Grandes Guerras?

Estão no 3o Mundo as sociedades que mais fazem uso de drogas? Foram elas que se

incumbiram da difusão dos costumes “fáceis”, da promiscuidade sexual e das taras e

desvios sexuais? Foi delas que se originou o chamado “crime organizado”? Foi delas que

brotou a idéia de que o único e indispensável motor da História era a luta de classes? Foi

nelas que surgiu a idéia, hoje consagrada, de celebrar o Trabalho a 1o de Maio, data de

sangrentos conflitos de rua, ocorridos em importante cidade dos EUA, como conseqüência

do espírito de oposição, inimizade e rancor que, necessariamente, deveriam existir entre

patrões e empregados, para que fosse realizada justiça nas relações de trabalho? Patrões e

empregados, tanto uns quanto outros, alimentando desconfianças recíprocas, envenenados,

ambos, por aquela visão inspirada no ressentimento, entre participantes do mesmo

processo produtivo.

Foi nas áreas do 3o Mundo que foram concebidas e fabricadas as armas mais

mortíferas de que se tem memória? Foi nelas que surgiu e prosperou a idéia de

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“desenvolvimento”, como algo sinônimo de crescimento econômico a qualquer custo,

inclusive o do brutal desrespeito aos ecossistemas, para muito além dos limites em que se

mantém a eficácia da homeostase? Foi nelas, especialmente em suas áreas mais pobres,

que se originou a idéia de torná-las livres ou independentes, mas, na prática, apenas para

atribuir-lhes os encargos que cabiam às antigas metrópoles (estamos nos referindo às áreas

até bem pouco, colônias) metrópoles que não ignoravam a pobreza de recursos humanos

capacitados das colônias que libertavam, nem que, praticamente na generalidade dos casos,

os respectivos territórios eram habitados por populações de culturas tribais diferentes, por

vezes pertencentes a etnias diferentes, usando diferentes línguas ou dialetos, e

freqüentemente hostis entre si? Territórios que tinham sido demarcados pela cobiça dos

colonizadores, sem levar em conta diferenças do tipo assinalado? E que agora, com os

recursos locais eventualmente valiosos economicamente, sob o controle dos mesmos que

os exploravam antes, ou, em alguns casos, arruinados pela incapacidade local de fazê-lo

adequadamente, tornaram-se, na “visão contábil” a que já fizemos referência, valiosos,

levada em conta a diminuição das despesas públicas, anteriormente a seu encargo?

Se as populações, por tal modo “libertadas”, pudessem antever os quadros

dantescos de inenarrável sofrimento que, de vez em quando, a mídia eletrônica nos mostra,

em rápidos e raros momentos, não teriam sido mais prudentes em relação a lideranças

locais e aos que, tantas vezes espontaneamente, os “libertavam”, a partir das metrópoles?

De nossa parte, e já o registramos por mais de uma vez em páginas anteriores,

achamos que, felizmente, existem dois planos bem diferentes da História: um, resultante da

natureza decaída do homem, induzida pelo “Pai da Mentira”, no qual nada existe de bom.

É o plano marcado pelo ódio, e pelos conflitos e sofrimentos que ele gera, de vez que a

fonte de que tais conflitos e sofrimentos resultam, é a que tem e teve, “desde o princípio”,

o propósito de rebelar-se contra Aquilo que, além da “Barreira de Planck”, deu origem às

maravilhas de harmonia que a ciência começa a tocar. E cujo poder prevalecerá, de vez que

a natureza original do homem, Sua obra mais perfeita, objeto de Seu amor infinito, não foi,

nem poderia ter sido, destruída. Vem sendo, apenas, perturbada, seduzida, tornada cega e

surda, ante o clamor da nossa natureza corpórea, que brada pela voz dos instintos açulados,

cuja significação profunda não escapa à percepção do que, ainda quando incapaz de resistir

ao mal, sabe distingui-lo do bem. Por isso temos repetido tantas vezes que o que o homem

faz, depende do que ele pensa e sente. Se ele está impotente diante do mal, deixa-se levar

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por ele, que se projeta nos males que mencionamos. Ocorre, porém, que, hoje, já não pode

ser aceita de maneira incontrovertida, a escravatura, como ocorria em civilizações

passadas, mesmo nos períodos do seu maior esplendor.

E se, hoje, as antigas lideranças, formais ou de fato, das antigas metrópoles, não

têm nada a oferecer em efetivo socorro dos nossos irmãos que gemem, além de

recomendar que tenham menos filhos, ou que deixem de ter filhos, o plano da Providência

segue o seu caminho, varrendo da consciência de todos a possibilidade da aceitação do

“direito” que teriam alguns povos de submeter outros, ao seu domínio. Pelo menos as

tentativas em tal sentido já não podem ser feitas de maneira explícita com que o faziam o

barão Marschall von Bilberstein e Sir Edward Fry, principais porta-vozes das grandes

potências, na famosa Conferência de Haia encontrando, já então, quem se opusesse à sua

tese, na pessoa do grande Rui Barbosa que, representando o Brasil, impediu, ou contribuiu

para que não se tornasse vitoriosa a corrente que pretendia negar a igualdade de direitos

entre as nações mais fracas e as mais fortes.

A prevalência da Força sobre o Direito, significava o oposto da desejável

prevalência do Direito sobre a Força, no campo das relações internacionais. Bem mais

tarde, com outras alegações e vestindo roupagem diferente, ressurgiria, como tentou o

nazismo, na forma do “lebensraum”, “espaço vital”, que seria a justificativa para a

anexação, pela força, se necessário, de territórios sob a jurisdição de outras soberanias. Nos

dias atuais, embora muitos não o percebam, passou a exercitar-se por intermédio da própria

Organização das Nações Unidas que, na defesa do que pareça conveniente ou adequado ao

grupo de apenas cinco Estados que detêm o chamado “direito de veto”, “direito” que é

privilégio exclusivo do pequenino grupo, integrante do tão falado Conselho de Segurança

da ONU, em caráter permanente e sem qualquer possibilidade prevista de rotatividade.

Qualquer voto, dentro do reduzido Conselho de Segurança, ou mesmo todos os votos dele

e da própria Assembléia Geral, serão completamente invalidados, bastando para tanto que

um único membro dos que detêm o mencionado “direito de veto”, o exercite.

E, acrescente-se, não representam os cinco Estados privilegiados uma dada

homogeneidade de interesses ou de filosofias que, por acaso pudesse, se não justificar, pelo

menos explicar a sua existência, como a de uma corrente vitoriosa de pensamento acerca

da concepção sobre quais devem ser as finalidades da atividade do homem, das sociedades

em que vivem e das normas de convívio internacional entre os diferentes Estados. Ao

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contrário, dele fizeram, e continuam a fazer parte os Estados mais fortes que, em comum o

que têm é o seu poderio. Até bem pouco, ilustrando o que acabamos de dizer, gozavam do

estranho privilégio, os EUA, a Inglaterra, a França, a União Soviética e China Vermelha.

É o mal, que sabendo-se inevitavelmente derrotado, estertora e se agita.

Entendemos, entretanto, que já não pode fazê-lo, senão mascarando a sua verdadeira face

por detrás de pretextos que, tão freqüentemente insinceros e hipócritas, através mesmo da

insinceridade e da hipocrisia com que busca proceder, revela, ao mesmo tempo, que o seu

aparentemente imbatível poder, de fato representa o campo perdedor, e a existência dos

dois planos a que temos feito menção reiteradamente: o que resulta da natureza decaída do

homem, e o providencial que, sutil mas cada vez mais claramente, se vai impondo aos

olhos de quem queira ver. Por exemplo, os que pretendem executar uma política

discriminatória, que mal consegue esconder a cupidez insaciável, sua verdadeira fonte, em

termos de realização prática, têm que usar pretextos que nada têm a ver com aquela fonte.

Falam, assim, de integração econômica e de aproximação entre os povos que, caso fosse

tão poderoso o que está, de fato, derrotado, não teriam necessidade de alegar.

Ao fazê-lo, em seu plano, o que pode, supõem, aplacar as exigências do inspirador

do caos, vão conformando o curso da História ao projeto original de Quem, ao menos

segundo nossa opinião, a conduz. No passado, antes da vinda de Jesus Cristo e da difusão

da Boa Nova de que foi portador, a imposição da força não necessitava de disfarces,

justificativas ou, melhor dizendo, pretensas justificativas: exercia-se sem rebuços, de

maneira direta e brutal. Para usar exemplo de fácil percepção, os gladiadores ao

penetrarem nas arenas em que, para divertir as multidões, sabiam que, vencidos, poderiam

morrer, faziam-no por lhes parecer um risco aceitável. E o déspota que, de sua tribuna,

mostrava o polegar para baixo, decretando a morte do vencido, por ter sido vencido,

geralmente buscava e conseguia o aplauso da massa que se comprimia nas arquibancadas.

Hoje, o leitor bem o sabe, tais cenas seriam possíveis? Para nós, a grande questão sobre

quem vai ser o vencedor no grande drama da história humana depois da Queda, já está

claramente posta diante dos nossos olhos; o grande problema é saber-se como vai

explicitar-se a sua vitória, cada vez mais próxima, sobretudo diante da convergência,

dramaticamente esclarecedora, entre ciência e religião, os dois caminhos em que, tateando,

tem caminhado a humanidade a partir da Queda.

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Claro que, neste momento da nossa exposição, os leitores cuja benevolência lhes

tenha permitido acompanhar-nos até aqui, sabem que estamos submetendo à consideração

das suas inteligências e consciências o que, nós supomos, seja a verdade. E haverão de

lembrar-se igualmente, de que, sempre que o fizéssemos, haveríamos, de assinalá-lo, como

o estamos fazendo neste instante. Quanto à convergência das duas vias segundo as quais

buscam os homens dissipar a dupla ignorância neles introduzida desde a desobediência a

que foram levados os nossos primeiros ancestrais, por aquele que rebelou-se revelando a

índole da motivação da sua rebeldia no brado que as Escrituras lhe atribuem, “Não

servirei!“, em capítulo anterior da l.º parte tentamos evidenciá-la à luz de alguns aspectos

da Ciência, surgidos já na segunda metade deste século, com a chamada teoria quântica dos

campos. Parece-nos oportuno, neste instante, oferecer à consideração dos leitores, ao

menos dois, dentre numerosos exemplos, já agora, não no domínio da ciência, sobre a

mesma convergência. Os exemplos em causa foram tirados dos escritos inspirados, ao

menos para os que crêem, por Deus, por intermédio do Espírito Santo. Hão de lembrar-se

os leitores atentos, dos dados registrados sobre os avanços da Biologia Molecular, sobre o

ADN e o seu significado, sobre a hereditariedade e os cromossomos, e sobre a

impossibilidade de admitir-se que, em tal terreno, tudo teria acontecido “por acaso”.

Vejamos agora o que nos diz o salmo 138, em seus versículos 13 a 16: “Fostes vós

que plasmastes as entranhas do meu corpo, vós me tecestes no seio de minha mãe .

Sêde bendito por me haverdes feito de modo tão maravilhoso,

Pelas vossas obras tão extraordinárias,

Conheceis até o fundo a minha alma.

Nada da minha substância vos é oculto,

Quando fui formado ocultamente,

Quando fui tecido nas entranhas subterrâneos”73.

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Considerando que o texto acima foi escrito dezenas de séculos antes das recentes

conquistas da Biologia Molecular, não parece ter algo a ver com o que esta última nos

ensina em nossos dias sobre ADN, cromossomas, hereditariedade?

Por outro lado, vimos também como está se tornando patente que o que tem a

aparência de casual, aleatório, na verdade exprime aspecto de uma ordem de nível mais

alto do que aquele que podemos alcançar; por isso, parece-nos casual o que, em realidade,

não o é. Expusemos à consideração pela inteligência do leitor as idéias de Ilya Prigogine,

como as chamadas “franjas de interferência”, que surgem regularmente, de fótons que,

individualmente considerados, comportam-se de modo, aparentemente, aleatório.

Mencionamos o conceito de complementaridade, observável nas interações elementares,

quando impõem-se noções como a de que o que conhecemos como elétron, por exemplo,

deve ser concebido como algo que, simultaneamente, representa duas coisas diferentes.

Assinalamos, também, que as que até relativamente pouco tempo, eram consideradas as

menores partes da matéria, em número de apenas três, contam-se hoje por centenas, ao

mesmo tempo em que se vai, rapidamente, desvanecendo a distinção, que tantos continuam

imaginando irredutível, entre o que é material e o que não é, entre o físico e o metafísico,

entre um universo imaginado como uma gigantesca máquina e o que, cada vez mais, se

assemelha a um pensamento.

Tudo isso foi exposto anteriormente, e seria inoportuno acrescentar outros dados

que figuram na parte desta obra a que estamos fazendo menção. Acrescentaremos, apenas,

a existência de fronteiras do universo alcançável pela investigação científica. Barreiras

que, admite a ciência, são intransponíveis. Dentre elas, a que designamos como “barreira

de Planck”, aquele tempo inimaginavelmente pequeno, expresso, em segundos, pela

unidade precedida de quarenta e dois zeros. Mas, vimos também, por detrás dela existe o

que, segundo a hipótese do “Big-Bang”, já continha tudo quanto, com a colossal explosão

que teria dado origem ao universo em que vivemos, representa todas as suas

características, de vez que o acaso parece não representar senão um rótulo dado pela nossa

ignorância, a respeito do que observamos e não podemos entender ainda. Este é um

resumo, do reduzidíssimo resumo que fizemos sobre o assunto, na I Parte deste livro.

Vejamos, agora, o que têm a dizer-nos as Escrituras, em nosso entendimento, em

perceptível e surpreendente correlação com ele: para tanto permitir-nos-emos lançar mão

do que se pode ler no livro do Eclesiástico, um dos livros denominados deuterocanônicos,

73. Grifos do Autor.

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que com tal designação, a Igreja católica inclui entre os componentes do Antigo

Testamento.

A religião judaica não o aceita como parte dos escritos inspirados, como não aceita

os que não tenham sido encontrados em seus textos escritos em hebraico. No particular, as

denominações cristãs protestantes os acompanham. Feita a observação acima, vejamos o

texto a que nos estamos referindo. Trata-se do cap. 23, versículos 28 e 29, do livro

deuterocanônico citado: “Ele não sabe que os olhos do Senhor são muito mais luminosos

do que o sol, que examinam por todos os lados o procedimento dos homens, as

profundezas do abismo, e investigam o coração humano até em seus mais íntimos

esconderijos.

Pois o Senhor Deus conhecia todas as coisas antes de as ter criado, e as vê todas,

depois que as completou"74.

Parece-nos que, sobretudo entre o trecho grifado e o que estava por detrás da

“barreira de Planck”, associado à idéia de que não existe o acaso, a não ser para as

limitações de seres contingentes como somos, ambas concepções elaboradas pela ciência,

há uma correlação mais do que surpreendente. Assim, em sentido pessoal, reiteramos ser

nossa opinião a de que, efetivamente, a busca da verdade, pelos caminhos da religiosidade

e da ciência, convergem nos dias de hoje, forçando a derrubada das barreiras da

intransigência e do preconceito. Em todo caso, não é nosso propósito, e já tantas vezes o

temos dito, substituir pela nossa, a visão crítica dos que venham a honrar-nos com a sua

leitura. Já dizia Bergson que a aquisição do conhecimento não se realiza, tão somente, por

intermédio do intelecto, à luz de evidências que satisfaçam os seus mecanismos. Também a

intuição participa daquela aquisição o que, mesmo antes de conhecer o papel, ou a

importância atribuídos por aquele grande filósofo, à intuição, já nos chamava a atenção o

fato de que, entre duas teses defendidas com propriedade equivalente, segundo as

exigências do intelecto; e, mais, mesmo quando uma delas parece reunir um número maior

de dados a seu favor, de comprovação acessível à verificação direta, mesmo em tais casos,

é freqüente a inclinação de alguns em favor de uma das teses, e de outros em favor da

outra.

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Claro que, neste momento, estamos abandonando o rigorismo de certas expressões

e de certos conceitos, para mencionar que, quaisquer que sejam as exigências a respeito,

sempre haverá quem se incline por uma e quem se incline pela outra. E tudo isso, em

comentário acerca da intuição a que se referia Bergson, e sem levar em conta as

surpreendentes conquistas que, já nos dias atuais, vão surgindo, quando não impondo, a

admissão de um meta-realismo e a necessidade de uma metalógica. Tudo isso levado em

conta e, ainda, levadas em conta limitações deste autor, de fato parece-nos adequada a

orientação que estamos adotando desde o início deste livro, de submeter à análise pelos

que venham a lê-lo, a adesão, ou não, a certas maneiras de interpretar o que estamos

expondo. Entretanto, tal disposição não implica na renúncia ao dever de dizer a nossa

opinião pessoal, quando e onde couber, tal como tem sido nosso compromisso com o

leitor, desde o “Esclarecimento Indispensável” com o qual iniciamos esta caminhada. Por

isso, quando ela vai chegando ao final deste “Intervalo Esclarecedor”, queremos registrar

que, em nossa opinião pessoal, a intolerância que se expressa em prévias rejeições do que

se nos afigura diferente daquilo que constitui a nossa convicção, simplesmente por parecer-

nos diferente dela, não representa disposição construtiva.

Também aderimos à idéia de que a fé, em sentido transcendente, não é algo que se

possa adquirir pela via do intelecto que, para nós, não representa a totalidade da capacidade

humana para adquirir conhecimento, correspondendo os mecanismos puramente

intelectuais, a apenas uma parte da mente. Por isso mesmo a referência feita mais de uma

vez, aos dois grandes caminhos segundo os quais os homens têm buscado dissipar os dois

tipos de ignorância que nos afligem. Acreditamos, também, que de todas as qualidades

humanas a mais nobre é a bondade - embora não seja a única. Há outras necessárias ao

exercício adequado do impulso que ela representa. Acreditamos, também, na existência de

dois planos da História, nos termos mencionados em mais de uma passagem anterior deste

trabalho. Por isto mesmo, nos propusemos oferecer aos que venham a ler-nos, a maneira

pela qual vemos, se não todas, ao menos, as que nos parecem as causas mais profundas dos

males, do caos aparente e dos absurdos sofrimentos presentes neste final de século. Final

marcado, em termos de conquistas científicas e tecnológicas, por um esplendor sem

qualquer paralelo com épocas anteriores da História, o que indica, para nós, um

desequilíbrio profundo entre os progressos alcançados pelas duas vias de dissipação da

ignorância humana: a espiritual, ou interna, e a física, ou externa.

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Duas vias representadas até aqui, essencialmente, pela religião e pela ciência. Daí a

importância por nós atribuída à convergência a que nos temos referido e em favor da qual

buscamos apresentar à consideração dos leitores um resumo de dados e informações que

nos parecem de extraordinária importância. Afinal, e tantas vezes temos repetido, “a

desordem que reina na sociedade, reinou primeiro no coração e na mente daqueles que a

compomos”. Daí também as reiteradas menções feitas a uma observação de Michael

Novak para quem um dos aspectos mais preocupantes dos dias atuais é o da prevalência

das idéias sobre os fatos, mesmo quando estes as desmentem de modo frontal.

Problemas como o da existência, da índole e da origem do Bem e do Mal, são

problemas relacionados à ignorância interna, ou espiritual, sobre os quais a ciência, como

tal, não se ocupa com responder. As suas investigações, entretanto, tão verdadeira nos

parece a existência de dois planos da História, está chegando ao ponto em que, como

vimos antes, cada vez mais se impõe a união entre os dois caminhos. Assim, na segunda

parte deste trabalho, dedicada à restauração, que nos parece possível, da justiça e da paz

“entre os homens de boa vontade”, procuraremos oferecer aos que nos leiam, alguns

aspectos fundamentais de concepções religiosas, no âmbito da cultura judaico-cristã a que

pertencemos - o que, pelas nossas limitações e por todos os outros motivos que podem ser

inferidos do que ficou dito até aqui, não terá nenhuma veleidade crítica. O leitor julgará,

segundo a sua inteligência, a sua intuição ou, para nós, segundo a voz íntima da sua

consciência. De nossa parte, em termos confessionais, procuraremos ater-nos ao que

ensinou o grande “apóstolo das gentes”, S. Paulo, passagem que citaremos em seguida, de

sua I Epístola aos Coríntios, cap. 3, 4-15: “Quando existe entre nós, um que diz: Eu sou de

Paulo”, e outro: “Eu, de Apolo”, não é isto modo de pensar inteiramente humano?

“Pois, quem é Apolo? E quem é Paulo? Simples servos, por cujo intermédio

abraçastes a fé, e isto conforme a medida que o Senhor repartiu a cada um deles: eu,

plantei, Apolo regou, mas foi Deus quem fez crescer. Assim nem o que planta é alguma

coisa, nem o que rega, mas só Deus, que faz crescer. O que planta ou o que rega são iguais;

cada um receberá a sua recompensa, segundo o seu trabalho.

“Nós somos operários com Deus. Vós sois o campo de Deus, o edifício de Deus.

Segundo a graça que Deus me deu, como sábio arquiteto, lancei o fundamento, mas outro

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edifica sobre ele. Quanto ao fundamento ninguém pode pôr outro diverso daquele que já

foi posto: Jesus Cristo.

“Agora, se alguém edifica sobre este fundamento, com ouro ou com prata, ou com

pedras preciosas, com madeira, ou com feno, ou com palha, a obra de cada um aparecerá.

O dia do juízo demonstrá-lo-á. Será descoberto pelo fogo; o fogo provará o que vale o

trabalho de cada um. Se a construção permanecer, o construtor receberá a recompensa. Se

pegar fogo, arcará com os danos. Ele será salvo, porém passando de alguma maneira

através do fogo”.

De nossa parte, reconhecendo os problemas e dificuldades com que se defrontam os

doutos em Teologia, por isso mesmo, igualmente doutos em exegese bíblica, entre os quais

temos bastante autocrítica para não nos pretendermos incluídos, fizemos acima, menção à

lição em que o grande apóstolo, ex-perseguidor dos cristãos, pareceu-nos de uma clareza e

amplidão de vistas, o melhor possível, desestimuladora de disposições que desunem, em

lugar de unir.

Não é nossa intenção, pois, colaborar para a obra de desconfiança, ressentimento e

rancor até, que podem brotar, e tantas vezes têm brotado, de radicalismos intolerantes, que

se imaginam fidelidades, os quais tantas vezes propendem mais para “enxergar o argueiro

que está no olho do seu irmão, do que a trave que está em seus próprios olhos”. Por isso

temos repetido tanto que, especialmente em nossos dias, em que idéias difundidas com

amplitude e penetração suficientes podem prevalecer sobre fatos que as desmentem,

amplitude e penetração tais que, somadas a refinadas técnicas de comunicação, direta ou

indireta, ostensiva ou subliminar, postas a seu serviço, deixam os homens, aturdidos pelo

frenesi do ritmo da luta pela vida, à mercê de muitas manipulações. Manipulações que

podem encontrar, e têm encontrado, preciosos auxiliares nos preconceitos e rejeições

prévias de idéias que, porventura, pareçam contrárias aos interesses dos que, falando quase

sempre de liberdade, tantas vezes o fazem “para ocultar a malícia”. Por isso, geralmente os

que mais condenam qualquer censura, praticam-na de maneira tão ampla e tão impiedosa

como jamais as que se exercitaram em regimes autoritários (não totalitários), souberam,

puderam ou se atreveram a fazer.

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Referimo-nos à existência de um “patrulhamento” excludente, no que lhe esteja ao

alcance, de quanto não colabore para que prossigam as ações da obra de desagregação e de

ruína, possivelmente não desejada pelos que a levam a cabo - pelo menos conscientemente

- e cujo verdadeiro inspirador, segundo pensamos, é o Pai da Mentka, aquele em quem

“não existe nada de bom”.

Assim, que nos desculpem os que se imaginem atingidos por expressões usadas por

nós. A nossa intenção não é ferir, ofender, magoar, depreciar quem quer que seja - mas

contribuir, quanto nos esteja ao alcance para, sem preconceitos, oferecer a nossa

contribuição, cuja propriedade, oportunidade e verdade serão, digamo-lo uma vez ainda,

julgados pela voz intima que a todos nos fala em silêncio, cuja voz o tropel dos instintos e

apetites não consegue anular.

Passemos, agora, finalmente, à 2a Parte deste trabalho.

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II PARTE

A RESTAURAÇAO, POSSÍVEL, DA JUSTIÇA E DA PAZ

II.1 - As contribuições da Ciência e da Religião

Segundo nosso entendimento, a Justiça representa uma exigência e uma medida

do amor entre os homens. Amor que, quando não seja possível existir como sentimento,

deve existir, pelo menos, como uma opção da vontade. Aos que, pela suposição, para nós

equivocada, de que formulações como a que acaba de ser feita são apenas pieguices

destituídas de valor prático, submetemos a seguinte ponderação: poderá existir paz

verdadeira, onde não haja justiça? Não serão os homens seres racionais, que não podem

sentir-se bem, quando se sintam injustiçados, maltratados por seus semelhantes? Não terá

sido esta a razão pela qual as Escrituras consignam que o Cristo assim se expressou: “Um

mandamento vos deixo - amai-vos uns aos outros como eu vos amei”?.

Supondo embora os que não crêem, que Jesus Cristo foi um homem como os

demais, em todos os sentidos, negando a missão messiânica que os cristãos, de qualquer

denominação, lhe atribuem, parece difícil imaginá-lo como alguém alienado e pouco

prático, com visão precária da realidade, se em apenas três anos, no período transcorrido

entre os trinta e os trinta e três anos de sua curta existência, marcou indelevelmente a

História, hoje tão freqüentemente dividida em duas eras distintas, a.C. e d.C., sobretudo

quando se leva em conta que ele veio ao mundo em lar pobre e em longínqua e, segundo os

padrões correntes do mundo, insignificante província do grande império romano. Sem a

pretensão de fazer prevalecer a nossa opinião sobre a de quem quer que seja, na verdade

raciocinamos como acaba de ser dito. Ou seja, ainda que convencidos da missão e caráter

divinos do Messias anunciado desde a profundidade dos séculos, por intermédio dos

escritos inspirados que falaram da Sua vinda, mesmo que não o estivéssemos, não

poderíamos avalia-lo senão como alguém absolutamente extraordinário, em termos de

lucidez e de visão de incomparável profundidade.

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De outra parte, o que parecerá mais prático, para a consecução de uma sociedade

pacífica: a animosidade alimentada pela desconfiança, ou a disposição de entender que,

realmente, no fundo, bem no fundo, somos todos irmãos? Outra pieguice alienada? Mas,

será dela que têm resultado as guerras e as violências, de variada modalidade, mas sempre

expressões de injustiças, que não se nutrem senão de egoísmo? No sentido material,

conquistamos muito - mas estaremos nos sentindo bem?

Parece que a resposta à indagação que acaba de ser feita, é óbvia: a despeito,

como já vimos, de todas as conquistas feitas pela humanidade no domínio físico, com todas

as possibilidades e benefícios que as acompanharam, os dias em que vivemos não serão

descritos com realismo, se o forem como dias marcados pela harmonia e pela felicidade.

Ao contrário, como que sopram de todos os quadrantes ventos de discórdia, multiplicando

mal-estares e conflitos, violências e sacrifícios absurdamente em desacordo com a extensão

alcançada pelas conquistas acima mencionadas. É que elas se vêm realizando,

especialmente, no âmbito físico da realidade e o homem não é, ao menos segundo

pensamos, apenas corpo, mas uma dualidade consubstancial em que, juntamente com

aquele, com suas necessidades, está presente o espírito, que por intermédio dele se exprime

e atua no plano em que vivemos. Espírito que tem, também, as suas necessidades, que o

impelem, como que movido pela saudade difusa, imprecisa de um passado de harmonia e

de beleza de que desfrutaram os nossos primeiros antepassados e que as tiverem

profundamente perturbadas, com a perda da beatífica felicidade que agora busca a

humanidade reencontrar.

Não fora, pensamos, a presença da saudade difusa a que acabamos de referir-nos,

como teríamos a noção do sofrimento e da infelicidade? Infelicidade não significa o oposto

da felicidade? E esta é algo existente no domínio físico, algo perceptível pelos sentidos do

corpo? Algo audível, visível, degustável, aromático, tateável? Na I Parte deste trabalho,

buscamos oferecer à consideração dos que venham a tomar conhecimento do seu conteúdo,

uma abordagem histórica cujo objetivo foi o de expor como que uma pista para o

entendimento de certos aspectos da problemática social dos nossos dias que, tantas vezes

expressa em números, índices, indicadores, todos relacionados a fatos mensuráveis, no

fundo tem como fonte geradora o egoísmo, a ausência de empatia, a incapacidade de

comover-se com a dor do próximo, egoísmo que faz de cada um algo como uma ilha

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ilusória, que impede a visão, para nós, ela sim realista, de que tais ilhas, caso existissem,

não seriam compatíveis com a realização da felicidade, objetivo de todos.

“Pelos frutos os conhecereis”. Reparem quais têm sido os frutos resultantes das

disposições egoísticas, tantas vezes rotuladas como “espírito prático”.

Mas, a par do bosquejo histórico a que acabamos de referir-nos, com as falhas e

lacunas involuntárias que, por mais de um motivo, ele apresenta e, entre tais motivos, sem

dúvida os decorrentes das insuficiências do autor, tratamos, também, com os reparos de

mesmo gênero, cabíveis, de expor alguns aspectos conceituais e conceptuais da Física

moderna. Aspectos por tal forma revolucionários que, se não chegam a provar a existência

de um Deus criador e mantenedor de todas as coisas, como que chegam quase a tateá-lo -

com o perdão à impropriedade da expressão usada - para algo que não sabemos como

exprimir, exatamente por ser perturbadoramente novo - ao deixar patente a precariedade de

noções até bem pouco tidas como indiscutíveis, como a que supunha a existência de

irredutível diferença entre o físico e o metafísico. Impõe-se, também, tão surpreendentes as

conquistas científicas expostas na I Parte, que figuras do mais alto gabarito, ali citadas,

tanto no domínio da Física quanto no da Filosofia, entendem indispensável a concepção de

um meta-realismo, exigente de uma metalógica. De qualquer maneira, para nós, surge,

límpida, a realidade de uma convergência, de urna união conceptual que haverá de fundir

religião e ciência, como dois caminhos não divergentes, mas confluentes, quando vistos

como esforços visando a dissipação da dupla ignorância que tem levado os homens a

buscar, tateando, a felicidade perturbada pela Queda, mas que eles sentem que um dia

conheceram.

Ao leitor caberá avaliar se estamos devaneando, ou não. De qualquer modo,

realcemos que, da I Parte, constam os dados que julgamos indispensável submeter à

consideração dos leitores, acerca de aspectos relevantes do processo histórico e do

desenvolvimento científico. Torna-se imprescindível, agora, oferecer alguns dados que

julgamos igualmente fundamentais, relacionados à via religiosa em que os homens, em

nossos dias, vêm buscando restaurar a felicidade de que, segundo pensamos, estão

saudosos. Aqui, o terreno torna-se ainda mais delicado de vez que, não nos considerando

teólogo e não possuindo, em conseqüência, autoridade própria, buscaremos expor aspectos

importantes de esforços que se vêm realizando pela via da religiosidade, no âmbito da

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civilização e da cultura judaico-cristã em que nos integramos. E começaremos por um que,

não pretendendo constituir-se em uma religião, claramente representa esforço situado no

âmbito da busca da justiça, da paz e da felicidade, pela via da citada religiosidade. Trata-se

do movimento de Rearmamento Moral, criado por um americano de ascendência suíça,

Frank Buchman, um de cujos antepassados traduzira o Alcorão para o idioma alemão. A

sua família emigrou para a América em 1740, estabelecendo-se na Pensilvânia.

Outro de seus antepassados combateu sob as ordens de George Washington, tendo

sido ainda outro o primeiro voluntário nas tropas de Lincoln, quando da guerra de

Secessão. Em 1921, foi convidado para assistir à Conferência do Desarmamento, realizada

na capital dos EUA. Durante as sessões da referida conferência, cada vez se fortalecia mais

em seu espírito a idéia de que os planos cogitados para a paz mundial eram insuficientes,

de vez que, segundo crescia em sua mente, os homens de Estado devem reconhecer, antes

de mais nada, a necessidade de uma transformação da natureza humana 75. E foi assim,

segundo as informações que estamos colhendo em publicação daquele que foi, talvez, o

seu mais íntimo colaborador, Peter Howard, que Frank Buchman decidiu-se a iniciar uma

transformação fundamental da realidade mundial, partindo, porém, da própria

transformação individual76. A publicação a que acabamos de referir-nos, consta de livro

impresso pelo “Rearmamento Moral”, sob o título: “Para a Crise Mundial, uma Resposta”.

Segundo, ainda, a mesma fonte, a trajetória do esforço de Buchman iniciou-se

praticamente, a partir de contatos que manteve com estudantes sul-africanos, que conheceu

em Oxford. E foi a partir daí que começou a ser conhecido em veículos de imprensa o que

era designado como “Grupo de Oxford”.

Poucos anos mais tarde, por volta de 1930, o que nascera como “Grupo de

Oxford” alcançava âmbito mundial, tendo Carl Hambro, presidente da então Liga das

Nações, declarado algum tempo depois: “Onde nós fracassamos, vocês tiveram êxito; não

soubemos transformar a política, vocês souberam transformar os homens e lhes ensinar

uma nova maneira de viver”. Em 1938, surgia do “Grupo de Oxford”, inspirado pelas

idéias de Frank Buchman, o programa do Rearmamento Moral. Contra ele levantou-se

imediatamente a oposição das ideologias totalitárias, pois o que fascistas e comunistas

mais temiam, era ver unida ao poder industrial e militar das democracias, a força poderosa

de uma ideologia superior. Desde o início, Frank Buchman foi violentamente atacado por

todos aqueles que se opunham a ver implantar-se no mundo uma ideologia moral 77. Os

75. Grifos do Autor.76. Grifos do Autor.

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comunistas procediam de acordo com a sua técnica habitual: chamar fascistas aqueles que

temiam. Os nazistas diziam que o seu trabalho “fornece aos cristãos os seus alvos

democráticos mundiais... Opõem-se, claramente ao Nacional-Socialismo"78. Já àquele

tempo, dizia Buchman, que “a solução esperada encontra-se numa ideologia moral e

espiritual79 capaz de remediar as fraquezas da nossa civilização e, por seu dinamismo,

ganhar a adesão das massas que reclamam, em toda parte, com justiça, uma mudança”.

Importantes e numerosos líderes de projeção mundial referiram-se a Buchman e

ao trabalho que realizava, de maneira elogiosa. Assim, o mahatma Ghandi, de quem foi

amigo; Robert Schuman, então Ministro do Exterior Francês, mais tarde Primeiro Ministro,

autor do “Plano Schuman”, prefaciando uma edição das conferências de Buchman,

escreveu: “Se me fosse apresentado um novo plano para a prosperidade pública, ou outra

qualquer teoria, eu me mostraria cético. Mas o que o “Rearmamento Moral” nos traz é uma

filosofia de vida posta em ação... é o começo de uma transformação da sociedade a longo

prazo, cujos primeiros passos já foram dados”. O Dr. Adenauer, Chanceler da Alemanha,

referiu-se ao “Rearmamento Moral” nos seguintes termos: “A menos que a obra

“Rearmamento Moral” se difunda, a paz mundial não poderá ser preservada”. O Chanceler

alemão considerou o “Rearmamento Moral”, como “uma força invisível, mas efetiva”, na

conclusão de acordos internacionais. O ex-Primeiro Ministro da Itália, De Gasperi,

expressou a sua convicção de que o programa do “Rearmamento Moral”, “indo à raiz dos

males do mundo, trará a compreensão entre os homens e nações que todos almejam”. O

Marquês de Salisbury, falando na Câmara dos Lordes, disse: “A causa da situação cm que

se encontra o mundo não é econômica, é moral”.

E mais adiante: “se me permitirem empregar uma frase freqüentemente usada por

um importante movimento que se desenvolve atualmente neste país e em outros lugares, o

que necessitamos é de pessoas guiadas por Deus para criarmos nações dirigidas por Deus,

a fim de criar um mundo novo. Todas as outras idéias de reformas econômicas são

demasiado estreitas para atingirem o âmago do mal”80. Também manteve contato com

Sun-Yat-sen, o fundador da República da China, entre tantos e tantos outros líderes

políticos, sindicalistas, empresários. Diplomata com larga experiência, referiu-se ao

“Rearmamento Moral”, no tempo do “apartheid”, na África do Sul, e, com relação à África

em geral, assim se expressou: “Na África, hoje, os africanos perguntam em toda parte aos

brancos: “quando vocês se retirarão?” Mas aos homens e mulheres do Rearmamento

78. Grifos do Autor.79. Grifos do Autor.

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Moral, eles dizem: “Quão rapidamente vocês podem vir?” Richard Tegström, o brilhante

cinegrafista de Walt Disney, que foi à África filmar “Liberdade”, falou dos filmes a que

assistiu naquele continente. Disse que: “Das telas brancas, a escória dos filmes produzidos

pela civilização ocidental, é derramada, noite após noite, sobre a juventude africana

indefesa. Quanto à programação difundida pelas telas de TV que penetra em milhões de

lares, preferimos não comentar".

Este cinegrafista foi o mesmo que filmou a película “A Experiência Culminante”,

que foi inspirada na vida de Mary Mac Leod Bethune, filha de pais escravos, que chegou

ao posto de conselheira de vários presidentes na Casa Branca e que disse a respeito do

Rearmamento Moral: “Fazer parte desta grande força unificadora

de nossa era é a experiência culminante de minha vida”.

Cumpre esclarecer, neste momento, que todas as referências e citações sobre o

movimento do Dr. Buchman foram tiradas da publicação já mencionada, sendo que

algumas, como foi assinalado, referem-se a depoimento do seu, talvez, mais íntimo

colaborador, Peter Howard. Outras, constantes da mesma publicação, são de trechos ali

consignados como de palestras do próprio fundador do Movimento. Daqui para diante,

serão citados, já como caracterizadores do pensamento de Frank Buchman, exclusivamente

trechos de pronunciamentos de sua autoria, constantes da publicação que estamos

utilizando, de maneira fiel e isenta, editada pelas “Edições Rearmamento Moral”, Rio, Cx.

Postal 984. Vejamos: “A sabedoria humana falhou.

“O mundo moderno - desiludido, caótico, desnorteado - exige

uma solução adequada para curar essa desordem”.

“Os atuais problemas internacionais são, no fundo, problemas

pessoais de egoísmo e medo”.

“Para solucionar os problemas é preciso que as vidas sejam

transformadas. A paz no mundo só poderá brotar da paz nos corações

dos homens”.

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“Fazendo a experiência dinâmica da liberdade do Espírito

divino, os homens encontrarão a solução para os antagonismos

regionais, a depressão econômica, os conflitos raciais e as dissenções

internacionais”.

“Deus no comando, eis a nossa necessidade primordial”.

(Genebra, janeiro de 1932)

“Por ocasião do primeiro Pentecostes, Deus falou a um grupo

de homens comuns. Eles mudaram o curso da História. Será possível

que hoje Ele não tenha um plano capaz de resolver os problemas de

um mundo atormentado?”.

“O Espírito Santo é a mais inteligente fonte de orientação no

mundo de hoje. Ele tem a solução a todos os problemas. Onde quer

que os homens O deixem agir, Ele lhes ensina a maneira certa de

viver”.

“O mundo precisa de um milagre. Os milagres da ciência

constituem as maravilhas da nossa época, mas não trouxeram paz nem

felicidade às nações. Um milagre do Espírito, eis o que é preciso”.

“É preciso que apareça uma energia espiritual dinâmica,

capaz de reconstruir homens e nações. É preciso que apareça uma

autoridade espiritual que seja aceita por todos em toda parte. Somente

assim a ordem surgirá do caos nos negócios nacionais e

internacionais”.

“Para que esse milagre se realize no mundo, alguma nação

deverá mostrar o caminho. É preciso que uma nação encontre seu

destino no cumprimento da vontade de Deus e escolha fara seus

representantes, no país e no estrangeiro, pessoas livres da escravidão

do medo, da ambição e que sejam dóceis à direção do Espírito

Santo”81.

81. Grifos do Autor.

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“Tal nação conhecerá a paz dentro de suas fronteiras e será

portadora da paz no seio da família das nações. Será essa a sua

nação?”.

(Alocução proferida no castelo de Hamlet, Elsinore,

Dinamarca, Pentecostes de 1935, perante cerca de dez mil

escandinavos.)

“A crise é fundamentalmente, uma questão moral. As nações

devem rearmar-se moralmente. A recuperação moral é essencialmente

precursora da recuperação econômica. Imaginem uma onda crescente

de honestidade absoluta e de altruísmo absoluto expandindo-se por

todos os países! Qual seria o efeito? O que dizer dos impostos?

Dívidas? Economias? Uma onde de altruísmo absoluto através de

todas as nações significa o fim da guerra”.

“Se cada um cuidasse bastante do próximo, se cada um

repartisse o bastante, não haveria o suficiente para todos? Há no

mundo o suficiente para as necessidades de todos, mas não para a

ganância de alguns”.

“Somente um novo espírito nos homens poderá trazer um

novo espírito à indústria”.

“A indústria poderá ser pioneira de uma nova ordem, na qual

o planejamento industrial seja baseado na direção de Deus. Quando o

Trabalho, a Administração e o Capital tornarem-se sócios, sob a

direção de Deus, então a indústria ocupará o seu verdadeiro lugar na

vida nacional”.

“Não aprendemos, ainda, a captar as vastas fontes criadoras

da Mente de Deus - Deus tem um plano e a união das forças morais e

espirituais da nação pode descobrir esse plano”.

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(Londres, junho de 1938, alocução proferida no Town Hall,

East Ham, diante de 60 prefeitos e conselheiros.)

“Não se deve fazer propaganda quando se quer construir

alguma coisa? Acaso a propaganda deve ser reservada somente para a

destruição?”.

(Visby, Suécia, agosto de 1938.)

“Onde estão, em cada nação, os homens que se erguerão para

aceitar a soberania de Deus, para combater por sua pátria, engajando-

se sob a bandeira do Rei dos reis e para satisfazer o anseio de uma

humanidade sedenta de paz em busca de um mundo novo?

(Interlaken, setembro de 1938)

“O Pensamento de uma nação está em ruínas, bem antes de

uma nação se arruinar”.

“A América não conservou devidamente o patrimônio moral

que recebeu por herança”.

“Se a América não reencontrar seu legítimo ideal, é o caos

que nos espera. Nosso destino é obedecer à direção de Deus”.

“O verdadeiro combate no mundo de hoje não se situa entre

as classes, nem entre as raças. O combate é entre Cristo e o Anti-

Cristo”.

“Escolhei hoje mesmo aquele a quem quereis servir”82.

(Mackinac Island, julho de 1943)

82. Grifos do Autor.

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“As nações falham, porque tentam, desesperadamente,

combater a apatia moral com planos econômicos. A ameaça terrível de

um fracasso econômico enche de pavor o coração de cada um,

estadista ou simples cidadão. Entretanto, a crise material pode

esconder a causa, o materialismo e a derrota moral de que a crise

provém, e por isso, não sabem como solucioná-la”.

“O problema não é, tão somente, uma cortina de ferro que

separa uma nação da outra, mas o egoísmo férreo que separa um

homem de outro homem, e todos os homens da autoridade de Deus. O

ferro da cortina do egoísmo e o aço, se derretem quando os homens

escutam a Deus e lhe obedecem”.

“A natureza humana pode ser transformada: esta é a solução

fundamental. A economia das nações pode ser transformada: este é o

fruto da solução. A história do mundo pode ser transformada - este é o

destino da nossa época”83.

(Caux, Suíça, 1947.)

“A desunião é a característica dos nossos tempos. Desunião

nos corações, desunião no lar, desunião na indústria, desunião na

nação, desunião entre povos”.

“A união é a nossa mais urgente necessidade”.

“A divisão resulta das paixões humanas: do orgulho, do

ódio, do medo, da cobiça”.

“A divisão é o traço marcante do materialismo”.

83. Grifos do Autor.

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“A união é a graça que acompanha o renascimento.

Desaprendemos a arte de nos unir porque esquecemos o segredo da

transformação e da renascença”.

“Católicos, judeus, protestantes, hindus, muçulmanos,

budistas e confucionistas - todos descobrem que podem transformar-se

naquilo que é necessário e juntos seguir este bom caminho”.

“Deus está chamando homens, de toda parte, para tornarem-

se instrumentos de união. A união não é fruto de conferências, de leis,

de resoluções ou de esperanças piedosas, mas é o fruto da

transformação”.

“A transformação é o âmago da ideologia superior”.

(Los Angeles, Junho de 1948.)

“Em nossa época, uma idéia que exclui quem quer que seja,

é mesquinha demais”.

(Nova Delhi, janeiro de 1953, em palestra realizada para as

duas Casas do Parlamento Indú.)

“O que falta à nossa democracia é uma ideologia. Dizemos

que somos democratas e que não necessitamos de ideologia. Julgamos

que falar em ideologia é quase um sinal de fraqueza.

“Assim sendo, face ao objetivo e à paixão comum às

ideologias estrangeiras, nada mais encontramos para enfrentá-las

senão conversa fiada em que exaltamos grandes ideais. Em último

recurso, usamos a força. E esperamos continuar a viver como sempre

vivemos – egoísta, confortável e tranqüilamente”.

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“Esquecemos a eterna luta entre o Mal e o Bem, e que a

vitória deste último traz as bênçãos da segurança e da prosperidade. A

derrota, porém, neste embate, ou mesmo a ignorância da existência

dele, traz-nos a pobreza, a fome, a escravidão e a morte”.

(Los Angeles, junho de 1948.)

II.1.a – O caminho pelo “Rearmamento Moral”

Ao tratarmos, no que tange ao caminho religioso para a busca da felicidade que

acreditamos terem desfrutado os nossos primeiros antepassados, antes da desobediência e

da Queda, começamos pela transcrição de textos editados pelo próprio “Movimento”, em

sua maior parte de autoria do seu fundador, Frank Buchman, ou do seu colaborador Peter

Howard. Abstivemo-nos, por motivos que não nos parece necessário explicitar, de

comentá-los no mérito. Agora, para que possa o leitor avaliar melhor a visão do Dr.

Buchman - sobre cuja personalidade e trabalho nos permitimos incluir opiniões de grandes

personalidades internacionais, registradas na mesma fonte a que foi feita referência -

desejamos esclarecer o que entendia o fundador do “Rearmamento Moral” como sendo o

caminho adequado para a realização concreta dos seus ideais. E por que teríamos incluído

aquelas opiniões? Não, certamente, para trazer à baila algo de presença dispensável, mas

para que o leitor se disponha a conceder atenção a um assunto que, à primeira vista,

poderá, parecer-lhe produto dos devaneios de um homem “pouco prático”. Por favor,

acredite o leitor que, de nossa parte, as explicações que acabam de ser dadas não têm

propósito apologético ou restritivo, sendo expressão de um critério que, em outros casos,

buscaremos igualmente observar.

Assim, para o Dr. Buchman, o caminho parte da observância sincera, pelos homens,

de 4 princípios que passem, efetivamente, a reger a sua conduta e orientar as suas decisões

e as suas atitudes. São eles: honestidade, pureza, altruísmo e amor absolutos. Comentando

os princípios enumerados, assim se exprimiu ele:

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“De início, considerai a honestidade. O que encontrais na

nação? O que dizer de indivíduos desonestos, digamos, em contratos

de guerra? O suborno e o mercado negro mantêm numerosas pessoas

ocupadas e custam milhões de dólares. Antigamente ninguém

aprovava a desonestidade. Agora, os vigaristas bem sucedidos são

quase premiados”.

“Falemos da pureza. Talvez digais que se trata de um

assunto pessoal. Mas o que está acontecendo à nação? São raras as

pessoas que tentam introduzir uma grande força purificadora em sua

nação. O que acontece a uma nação se ninguém trouxer a cura? Lares

desfeitos, crianças inseguras, a decadência da cultura, a sementeira da

revolta”.

“Quanto ao altruísmo e ao amor, ninguém pretende ser

altruísta, nem tão pouco, ter amor”.

“Pôs-se de lado os quatro critérios, como coisas arcaicas,

do tempo das diligências. Assim sendo, é á última coisa em que se

pensa para as nações. É por isso que o mundo está nestas condições”.

“A Sociedade das Nações nunca esteve alicerçada em

Deus”.

(Mackinac Island, julho de 1943.)

“Precisamos dar ênfase aos princípios morais, e também

ao poder de salvação de Jesus Cristo. Sentireis então a força dinâmica,

quase esquecida - o Espírito Santo - que vos guiará mostrando

exatamente o que se deve fazer, como um apelo direto de Deus”.

(Mackinac Island, julho de 1943.)

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“Haverá um remédio que cure o indivíduo e as nações, e

traga a esperança de um restabelecimento rápido e satisfatório?”.

“O remédio poderá consistir no retorno àquelas singelas

virtudes caseiras que muitos de nós aprenderam nos joelhos de nossas

mães e muitos esqueceram ou negligenciaram - a honestidade, a

pureza, o altruísmo e o amor”.

(Londres, junho de 1938.)

“Suponham que amanhã de manhã, vocês se levantem um

pouco mais cedo para tentar escutar a Deus. Por que não convidar sua

família para fazer o mesmo?”.

“Podemos pôr-nos a escutar todos os dias. Se o fizermos e

obedecermos aos pensamentos que nos venham, pode ser que, juntos,

preparemos o caminho para a maior revolução de todos os tempos,

pela qual a Cruz de Cristo transformará o mundo”.

(Londres, agosto de 1936.)

“Essa oportunidade se nos oferece diariamente: escutar a

Deus e receber Seu programa para o dia”.

“Mas é necessário respeitar as condições. A primeira é

escutar honestamente tudo que possa vir até nós, e, se somos

inteligentes, o escreveremos. A segunda condição é a de pôr à prova,

os pensamentos que nos chegam para ver quais os que, realmente,

vêm de Deus”.

“A Bíblia é um dos meios de verificar. Ela está

impregnada da experiência secular de homens que, sob o efeito da

revelação divina, ousaram fazer a experiência de deixar-se dirigir por

Deus. Nela encontramos - sendo seu ponto culminante a vida de Jesus

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Cristo - o desafio moral e espiritual mais alto: a honestidade, a pureza,

o altruísmo e o amor absolutos”.

“Outro excelente meio de controle é o de ouvir o que

dizem outras pessoas que também escutam a Deus. É um princípio

inerente ao espírito de equipe. É também uma prova decisiva da nossa

obediência ao plano de Deus. Ninguém pode estar inteiramente

submisso a Deus se trabalha sozinho”.

“É no seio de um grupo de homens e mulheres dedicadas e

livres que Deus fala com mais clareza. E é por meio de homens

governados por Ele que um dia Deus governará o mundo”.

(Birmingham, julho de 1936. )

“Ora, constato isso: Quando não sabemos como fazer,

Deus nô-lo mostra, se assim o quisermos. Quando o homem escuta,

Deus fala. Quando o homem obedece, Deus age. O segredo está em

ser governado por Deus - não queremos dar ordens a Deus, queremos

receber Suas ordens. E Ele as dará”.

“O Grupo de Oxford está convencido de que se quisermos

uma solução para os problemas do mundo atual, é melhor

começarmos conosco mesmo. Essa é a primeira e fundamental

necessidade”84.

“O segredo é ter Deus no comando. As únicas pessoas

sensatas neste mundo insensato são aquelas que aceitam a direção de

Deus. Os indivíduos dirigidos por Deus produzirão nações dirigidas

por Deus. Esse é o alvo do Grupo de Oxford”.

(Dinamarca, Páscoa de 1936.)

84. Grifos do Autor.

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Assim, sem apreciar no mérito, o que foi registrado sobre o “Rearmamento Moral”

proposto pelo Dr. Frank Buchman, personalidade e obra das quais buscamos dar dados que

supomos expressivos, quanto ao significado místico e a importância do esforço por ele

realizado em vida, passaremos, em seguida, com toda a isenção, a expor dados referentes à

posição fundamental da Igreja Católica Apostólica Romana, no que tange ao papel que se

atribui de única representante autêntica de Jesus Cristo na Terra, papel que lhe teria sido

concedido pelo próprio Salvador, quando da Sua passagem pela terra.

II.1.b - O caminho da Igreja Católica Apostólica Romana

A Igreja Católica Apostólica Romana reivindica para ela o papel e a

responsabilidade de única representante da verdade cristã, sem mescla de erro, baseada

essencialmente, segundo o seu Magistério, em passagens das Escrituras, tais como as tem

interpretado a Tradição, passagens que, podem ser lidas em Bíblias impressas com o “Nihil

Obstat”, e o “Imprimatur”, conferidos por organismos e autoridades eclesiásticas

competentes.

Assim, do Evangelho de S. Mateus, em exemplares das Escrituras em que figuram

as autorizações acima, consta o relato sobre a pergunta feita por Jesus a Pedro, e a resposta

dele, no sentido de que o Mestre era o Cristo, o filho do Deus vivo. Diante da resposta de

Pedro, Jesus lhe afirmou que ele era feliz porquanto a sua resposta não lhe fora revelada

pelo sangue e a carne mas pelo seu pai (pai de Jesus), que está nos céus. E acrescentou: Tu

és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não

prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo que ligares na terra

será ligado nos céus.

Em exemplares de Bíblias católicas de impressão oficialmente autorizada também

figura observação sobre o fato de que a tradição da igreja romana assenta naquela

promessa a autoridade conferida a Pedro e aos seus sucessores de, ligando na terra, ligar no

céu; desligando na terra, desligar no céu.

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Em fontes igualmente autorizadas pelas autoridades eclesiásticas competentes,

menciona-se que a tradição reforça sua convicção sobre a suprema autoridade da igreja

romana, em passagem que figura em apêndice do evangelho de S. João, na qual o Salvador

reitera por três vezes a Pedro a pergunta sobre se este o amava, obtendo sempre resposta

afirmativa, diante da qual ordenava Jesus: Apascenta as minhas ovelhas. Admitem fontes

católicas ser de notar-se a coincidência entre o número de perguntas do Cristo e das

respostas de Pedro, e as três vezes que o grande apóstolo o negara.

Fontes de idoneidade equivalente admitem que as passagens que foram citadas

acima, não integram o texto de S. João, mas um apêndice acrescentado possivelmente por

um de seus discípulos.

Por favor, estamos nos atendo ao domínio factual. Supomos que a bagagem

intelectual de uma Igreja que já dura cerca de vinte séculos e que, ao menos no Ocidente,

até o século XVI, tinha a principal responsabilidade de manter acesa a chama da

mensagem do Cristianismo - e isto em condições como as descritas no bosquejo histórico

que figura na I Parte deste trabalho; Igreja da qual brotaram obras, para citar apenas duas

dentre numerosas outras, como as S. Tomás e Sto. Agostinho; em respaldo aos pontos de

vista transcritos acima, atribuídos à Tradição, certamente possui uma cópia imensa de

argumentos em favor daqueles pontos. Na realização deste trabalho, o objetivo, porém, é o

de nos mantermos no domínio factual. Com base na formidável bagagem filosófica,

teológica, exegética que seus doutores produziram ao longo do tempo, na realidade a Igreja

Católica reivindica que, com ela, estão as chaves da interpretação correta das Escrituras e

da Verdade que nelas se encerra. Também nos parece que, em matéria de doutrina social,

numerosos documentos pontificais como, entre outros, encíclicas como a “Rerum

Novarum”, a “Quadragésimo Ano”, a “Libertas”, do mesmo pontífice autor da “Rerum

Novarum”, Leão XIII, da “Divini Redemptoris”, da “Octogesimo Adveniens”, da “Mater

et Magistra”, da “Laborem Exercens”, da “Humanae Vitae”, etc., etc., têm representado

algo considerado geralmente como contribuição excepcionalmente respeitável no domínio

dos estudos sobre a problemática social do nosso tempo.

É igualmente matéria factual a variedade de aspectos segundo os quais atuam, tanto

o clero quanto o laicato católicos. Assim, para citar, não todas, mas as mais conhecidas,

começaremos por assinalar que o seu clero divide-se basicamente em dois tipos: o clero

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secular e o clero regular. O segundo, representado pelos sacerdotes que ingressam nas

diferentes Ordens em que a sua maneira de exercer o sacerdócio pode encontrar maior

afinidade com a vocação de cada um. Estamos nos referindo, por exemplo, e novamente

para citar apenas alguns exemplos, à Ordem de S. Bento, à Ordem de S. Francisco, à

Ordem de S. Domingos, à Companhia de Jesus, à Ordem dos Carmelitas, etc. A cada uma

delas corresponde uma dada disciplina, uma dada estrutura organizacional, uma dada

maneira de viverem os seus integrantes, a fé que abraçaram.

Uns, mais afeitos à contemplação e à oração; outros, sem desprezar esses aspectos

básicos da vida monástica, mais afeitos às cogitações intelectuais a respeito dos

fundamentos daquela mesma fé. Os sacerdotes seculares são os que, consagrados

sacerdotes, não optaram pela vida monástica e exercitam as suas atividades nos templos em

que oficiam a Missa, batizam, crismam, casam, de um modo geral ministram a eucaristia e

os outros sacramentos, ouvem em confissão, etc. Não vivem, porém, reclusos, mas em

contato mais direto e freqüente com os fiéis. Estão sujeitos, entretanto, como, atualmente,

todos os sacerdotes da Igreja Católica Romana, ao celibato, e são obrigados, entre outros, a

fazerem o voto de castidade. Nesse aspecto, a orientação da Igreja a que nos estamos

referindo, mostra-se muito rigorosa e não faz concessões. Não se dispõe a abolir o celibato

dos sacerdotes, não aceita o divórcio, não admite o aborto, não aceita métodos

contraceptivos, não aceita a chamada fecundação “in vitro”, etc. Claro que o leitor entende

que nos estamos referindo a aspectos doutrinários da posição de Roma. As transgressões de

que são acusados membros do seu clero, referem-se, quando procedentes, a falhas

humanas, que o magistério não incluiu na sua orientação e doutrina. E não teriam sido

poucas, ao longo de tanto tempo, diante de um ascetismo que, ainda hoje, não se atenuou,

muito pelo contrário, nos documentos de orientação doutrinária.

Também é necessário mencionar as freiras, com seus trajes mais recatados do que

os em moda em nossos dias, atuantes de diferentes maneiras, embora não investidas do

“munus” sacerdotal, conforme as disciplinas e pastorais que escolheram. As denominadas

“Irmãs de S. Vicente de Paulo”, que se voltam para a assistência aos doentes, são exemplo

frisante do que estamos expondo à consideração do leitor. Há as que se dedicam à

assistência à infância, p. ex., nos orfanatos, etc. etc. A despeito de tudo isso, sobretudo a

partir do Concílio Vaticano II, além de problemas relacionados a desvios pessoais de

sacerdotes que foram apontados como transgressores das normas de comportamento que

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decorreriam de sua fidelidade a votos feitos, surgiram problemas formais, de índole ritual

ou litúrgica, que foram uma fonte de divergências entre sacerdotes, os quais passaram a ser

vistos como classificáveis em dois grandes grupos: o dos “progressistas” e o dos

“conservadores”. Face à questão social, agravando ainda mais os problemas, surgiu a

chamada “teologia da libertação”, cujos vultos mais mencionados foram, entre nós, um

franciscano que acabou abandonando a Igreja, um outro sacerdote que envolveu-se de

modo surpreendente do ponto de vista “conservador”, como assessor de uma importante

liderança política, para não falar de estrangeiros, igualmente muito conhecidos dos que

acompanharam esses problemas.

No passado, numerosas vezes, até pela grande influência que tinha sobre os

detentores do poder temporal, o clero cometeu equívocos, que o papa João Paulo II, de

público, admite como lamentáveis, e por eles pede perdão. Levando em conta que a

sociedade dos nossos dias exalta, na prática, o direito que teriam os homens de deixar

expandir livremente os seus impulsos instintivos, tão poderosos que, de seu poderio, dele

queixou-se até o grande “Apóstolo das Gentes”, as vocações sacerdotais escasseiam,

sobretudo para o ingresso em denominação de tão rígidas exigências, e que, por isso

mesmo, incomoda quantos vêem nessa rigidez uma censura subliminar, ao que decorre do

conceito em que têm a liberdade e o seu exercício. E essas observações, ao contrário do

que possa parecer à primeira vista, não são opinativas - o que seria incompatível com o

nosso compromisso de isenção. As estatísticas comprovam e não apenas em nosso país,

que as vocações sacerdotais têm diminuído, sobretudo se comparado o número de jovens

que procuram os seminários com as frações que eles representam em relação ao

crescimento populacional85. É que, repisemos ainda uma vez, o “espírito da época”,

nitidamente, exalta a satisfação dos sentidos a tal ponto, que quanto a ela se oponha, passa

a ser confundido com obscurantismo inaceitável, quando não com “violação dos direitos

humanos”.

E como, realmente, a preocupação de Michael Novak, acerca da predominância de

idéias sobre os fatos, ainda que estes as desmintam da maneira mais flagrante, é uma

realidade incontestável dos nossos dias, ao menos em certo período e em muitos casos, as

exigências para a formação de sacerdotes passaram a ser atenuadas o que, como seria de

esperar-se, erodiu em alguma medida, o nível da referida formação. Ressalvados os casos,

que em alguns meios afirma-se terem existido, sobretudo ao tempo da “guerra fria”, da

85. Observa-se, atualmente, o início de inversão da tendência assinalada, sobretudo nas regiões em que tem prosperado o pentecostalismo da“Renovação Carismática Católica”. (Nota do Autor).

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infiltração de moços que, impregnados pela cosmovisão do materialismo dialético,

procuravam ordenar, se para, por dentro, comprometer e criar problemas para o que

avaliavam como uma fonte de alimentação do “ópio do povo” - conceito em que tinham a

religião em geral - ainda assim, a realidade mostrou que, face as desigualdades sociais,

muitos, levados por sua inclinação para a prática da justiça e pelo sentimento de caridade,

inclinaram-se para exercitá-la por intermédio da participação na problemática social.

Problemática sobre a qual nem sempre estavam bem informados e, ainda quando não lhes

faltassem conhecimentos adequados, pelo menos em termos de “praxis”, não a tinham

eqüivalente a de agentes preparados especificamente para ela.

As conseqüências são bem conhecidas, e sua avaliação nem sempre tem sido feita

com a indispensável isenção. Em período ainda recente da nossa história, as autoridades

eclesiásticas não proibiam a participação direta de sacerdotes na vida político-partidária o

que, do ponto de vista daquelas autoridades, não se mostrou conveniente. Igualmente,

organização como a JUC (Juventude Universitária Católica), e a JOC (Juventude Operária

Católica), praticamente deixaram de existir.

Tudo isso, porém, tem sentido factual e refere-se a um determinado período da

trajetória de instituição que tem perdurado ao longo de quase vinte séculos, durante os

quais já conheceu muitas crises, e algumas de acentuada gravidade. Por isso mesmo, os

que se dispõem a defendê-la, encontram nas citadas crises e nos motivos que as

determinaram, um argumento em favor da tese da marca divina da igreja de que estamos

tratando. Realmente, dizem aqueles defensores, o número e a profundidade de tais crises,

bem como o número dos que, a pretexto delas, têm tentado anular-lhe a influência, sem

consegui-lo, são a evidência de que ela é depositária da promessa registrada em passagem

anterior, tal como é o ponto de vista da Tradição e manda a isenção dizer que os

protestantes afirmam que o Apóstolo Paulo, em mais de uma passagem, contraria tal

interpretação. De qualquer maneira, parece-nos que seríamos também injustos por

omissão, se não nos dispuséssemos a lembrar os mártires da Igreja, e figuras de vidas

exemplares, bem como a contribuição dos seus místicos e pensadores. Entre eles Francisco

de Assis, o moço rico que renunciou à riqueza e aos prazeres deste mundo, para

transformar-se em figura tão doce que nem os mais ferrenhos adversários do catolicismo

romano criticam desfavoravelmente.

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Também Vicente de Paulo, que em meio a indizíveis sacrifícios e dificuldades,

dedicou sua vida aos que sofriam em seus leitos de dor, e tantos e tantos outros que a

instituição a que pertenceram canonizou, elevando-os à honra dos altares, como vidas

exemplares, espíritos de eleição, a serem imitados em suas virtudes. Quanto aos místicos,

um pelo menos, nos permitiremos destacar: S. João da Cruz. Quanto a pensadores, já

mencionamos antes as figuras e as obras de S. Tomás de Aquino e a de Sto. Agostinho,

como citaremos agora Sta. Catarina de Siena, que nem por ser desprovida do que o mundo

considera erudição, deixa de ser tida como doutora da Igreja. De novo, cumpre realçar que

os dados, em número ínfimo em relação ao do conjunto de tantos outros que mereceriam

ser citados, não têm sentido opinativo, sendo de natureza factual. Como de sentido

igualmente factual é a perda do ardor evangelizador e missionário de outros tempos - e aí

estão, em nosso país, figuras como a de Anchieta e dos que realizavam no sul do país a

obra das Missões, de que hoje são vestígios as ruínas das edificações que ainda se mantêm

de pé; e, nos EUA, a famosa Missão Dolores, à qual dedicou a vida a figura exemplar de

frei Junípero Serra.

Perda de ardor que não sendo total, de vez que a igreja católica romana continua a

enviar missionários a áreas do mundo que carecem de apoio espiritual e de assistência

sobretudo a doentes, do que foi exemplo notícia que correu o mundo, acerca de duas freiras

brasileiras que haviam desaparecido e foram devolvidas à liberdade, durante a ação

missionária que, silenciosamente, realizavam em uma das regiões mais sofridas do planeta.

Também é factual, porém, que à perda de ardor referida, correspondeu uma evidente, como

que burocratização da atividade sacerdotal, nos templos, mais nitidamente exercitada em

aspectos rituais ou litúrgicos, do que na ênfase dada ao esforço pelo fortalecimento da fé e

pela conversão. O que, pelo menos segundo pensamos, não desmente a eficácia do

consolo, para os que crêem, da absolvição de Deus das culpas de que se arrepende o fiel,

intermediada pelo sacerdote que lhe ouve a confissão, no exercício do que, em linguagem

corrente, de natureza científica, denomina-se catarse. Realiza-se, porém, a referida catarse,

para quem crê, em patamar que a ciência não alcança, que é o do arrependimento. Não

alcança, registre-se, por não ser do âmbito do seu campo de atividade levar a

arrependimento, de mesma índole e de implicações análogas ao que a expressão adquire

em sentido religioso. Quanto ao valor que, para o fiel, tem o sacramento da eucaristia, nem

é necessário enfatizar que a ciência não se propõe oferecer algo correspondente.

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Ao mencionarmos os dados e circunstâncias apontados até aqui, é notório que o

próprio magistério da igreja lhes reconhece a procedência, em sentido amplo, descontadas

eventuais impropriedades involuntariamente cometidas pelo autor em face de suas

deficiências e do imperativo da concisão que se impõe por mais de uma razão. E ainda que

não existissem as vozes que, de público, se têm feito ouvir, o fato de, em um país de

população majoritariamente católica, estarem crescendo, vertiginosamente, outras

denominações religiosas, inclusive não cristãs, aponta para a angústia que, não

encontrando alívio de outra natureza, busca-o na transcendência. O que, face ao

esmorecimento do ardor que registrávamos acima, oferece vasto campo para a semeadura

dos que, com maior ou menor propriedade, esforçam-se por substitui-lo. Por isso se tem

falado tanto no crescimento dos que, na maioria das vezes, são designados como

“evangélicos”.

II.1.c - A Reforma, o Pentecostalismo e outras influências menores

No decurso da primeira parte desta obra, no trecho dedicado a dados históricos

oferecidos à análise pela inteligência e pela consciência dos leitores, mencionamos, dentro

da linha interpretava ali adotada, com base em citações constantes do próprio texto, como,

baseados no que lhes parecia impróprio quanto à “praxis” das atividades do papado, e

quanto ao próprio modo de interpretar as Escrituras, levantaram-se em protesto as vozes de

maior expressão dos descontentamentos reinantes, de Luthero e de Calvino. Claro que as

teses dos grandes vultos do cisma do Cristianismo do Ocidente foram, à época, e

continuam a sê-lo, objeto de extensas controvérsias, desenvolvidas por teólogos de um lado

e de outro, dos campos a que nos estamos referindo. Seria impraticável expô-las, mesmo

apenas em suas linhas mais fundamentais. Parece-nos igualmente impróprio tentar fazê-lo

em seus aspectos mais, digamos, populares. Assim, Permitir-nos-emos, sempre dentro do

compromisso que, entre outros motivos, nos é imposto pelo respeito que devemos aos que

venham a ler estas linhas, manter a orientação de prevalência do factual, campo em que

acabou de ser registrado um aspecto: a Reforma, marcou a quebra da unidade do

Cristianismo do Ocidente, em termos confessionais. Por isso, já no final do tópico

dedicado a dados sobre o catolicismo romano, usamos as expressões: “Por isso se tem

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falado tanto do crescimento dos que, na maioria das vezes, são designados como

“evangélicos”.

Como se vê, a palavra evangélicos, naquela oportunidade, foi grafada entre aspas,

cuja razão de ser, cumpre-nos agora explicar. É que, sem discutir, no mérito, os motivos e

argumentos dos que foram os vultos mais proeminentes da Reforma, a Igreja romana,

quaisquer que possam ser as suas falhas e as suas deficiências, ninguém dirá que repudiou

a mensagem do Salvador. De outra parte, pertence também ao domínio factual que, sem

colocar em dúvida a sinceridade de propósitos e a religiosidade ardente dos dois grandes

nomes da Reforma, a divisão, em termos confessionais do Cristianismo, não se limitou a

duas ou, quando muito, três frações denominacionais. Ao contrário, ela prosseguiu e, hoje,

em nosso país como em outros, as divisões e subdivisões têm se multiplicado sem parar,

enquanto denominações que já agora passam a ser designadas como tradicionais, v.g., a

Luterana, a Presbiteriana, a Batista, a Metodista, obviamente evangélicas, não têm

crescido, sobretudo as duas primeiras, no mesmo ritmo. O que se nos afigura, de fato, mais

próprio, é falar do fenômeno do pentecostalismo, presente e aparentemente responsável

pelo dinamismo que tem faltado às igrejas que não o praticam.

Por tal razão, dispomo-nos, neste momento, a registrar alguns dados a ele,

pentecostalismo, referentes. Comecemos pela passagem que figura nos Atos dos

Apóstolos, cap. 2, versículos 1 a 28, onde se narra que, no dia de Pentecostes, no local em

que estavam reunidos os apóstolos, após soprar um vento forte, surgiram umas línguas de

fogo que se dividiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram, então, todos cheios do

Espírito Santo, e começaram a falar em diversas línguas, conforme o Espírito Santo lhes

concedia que falassem. Passou, então, muita gente a ouvi-los e maravilhavam-se de que

cada um os ouvisse como se estivessem falando em sua própria língua. É que sabiam que

os que falavam eram todos galileus e os ouvintes pertenciam a numerosos povos sendo

muitas as suas línguas maternas. O fato os deixara perplexos, e se perguntavam uns aos

outros: “Que significam estas coisas?” Outros, porém, zombeteiros, diziam: “Estão todos

ébrios de vinho doce”.

Os apóstolos, então, se levantaram e Pedro, em alta voz, dirigindo-se aos presentes

e a todos os habitantes de Jerusalém, exortou-os a que prestassem atenção às suas palavras.

Estes homens não estão bêbados, afirmou, visto não ser ainda a terceira hora do dia86.

Cumpre-se neste momento o que foi dito pelo profeta Joel, por intermédio de quem Deus

86. Grifos do Autor.

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falou, anunciando que nos últimos dias derramaria do Seu Espírito sobre todo ser vivo, e

então profetizarão os vossos filhos e vossas filhas. Os vossos jovens terão visões, e os

vossos anciãos sonharão. Sobre os meus servos e servas derramarei naqueles dias do meu

Espírito e profetizarão. Acontecerão prodígios no céu e milagres embaixo na terra: sangue,

fogo e vapor de fumaça. O sol se converterá em trevas e a lua em sangue, antes que venha

o grande e glorioso dia do Senhor. E então, todo o que invocar o nome do Senhor será

salvo". A profecia a que aludira Pedro refere-se a Joel 3, 1-5.

Prosseguindo, disse Pedro aos israelitas que "Jesus de Nazaré, de quem Deus deu

testemunho com milagres, prodígios e sinais que realizou por intermédio dele, em meio aos

israelitas, como estes sabiam, foi entregue, segundo determinado desígnio e presciência de

Deus, por israelitas que o mataram, crucificando-o por mãos de ímpios. Entretanto, Deus o

ressuscitou, rompendo os grilhões da morte, porque não era possível que ela o retivesse em

seu poder". E citou-lhes o que dissera Davi sobre a esperança na ressurreição, no Salmo

15, 8-11.

Sobre os carismas e dons espirituais, o apóstolo Paulo afirma a sua existência, a sua

diversidade, a sua fonte comum, o Espírito Santo, a diversidade de ministérios e operações,

mas um só Deus, que opera tudo e em todos. Menciona, entre outros, o dom de curar

doenças, o de profetizar, o de ciência, o de línguas, o de interpretação das línguas, o da

sabedoria. Mas tudo em um sentido de unidade e de cooperação, "pois todos os que crêem,

quaisquer que sejam as funções que desempenhem e os dons e carismas que possuam são,

todos, membros de um mesmo corpo, que é o corpo de Cristo, não se justificando

dissenções, como os diferentes órgãos de um mesmo corpo, para que este exista como tal,

embora diferentes, devem colaborar, cada um com sua função, para que se mantenha a

harmonia do todo".

Na sociedade humana deste final de século, maltratada por todas as manifestações

do egoísmo, desiludida por “elites” que consideram avançado ou elegante a

desconsideração em que têm, tantos dos que as integram, por obrigações decorrentes de

valores e leis ditadas por um Criador em que não crêem, as denominações religiosas cujos

representantes desincumbem-se do ministério que lhes cabe, de maneira pouco

comunicativa, mantêm-se pela graça da fé dos seus fiéis, ou pelo frio automatismo de

quem contenta-se com aspectos ritualísticos ou litúrgicos, aceitando-as como verdadeiras,

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por definição. Os que têm dúvidas e, dentre eles, os que estejam sofrendo, em si mesmos,

ou na pessoa de entes queridos, vão sendo atraídos por um pentecostalismo fortemente

devocional, que aceita que os dons do Espírito Santo não se manifestaram apenas durante

pouco tempo, nos primórdios do Cristianismo, mas continuam a ser derramados pelos que,

com disposição sincera e coração contrito, tentam socorrer-se da misericórdia de Deus,

eternamente fiel, que criou-nos a todos para que fôssemos objetos do seu amor, a

manifestar-se segundo os desígnios de Sua providência, infinitamente sábia, e os ditames

de Sua vontade, sempre orientada para o bem, embora nem sempre seja possível às Suas

criaturas entendê-la.

O comentário feito nas linhas acima, não foi redigido com sentido apologético, mas

descritivo, no que tange ao fenômeno do pentecostalismo que não é uma exclusividade de

denominações cristãs que não seguem o catolicismo romano mas, pelo contrário, quase

todas resultaram das divisões que se vêm multiplicando desde as origens do chamado

protestantismo. Por exemplo, o referido catolicismo tem como uma de suas características,

igualmente não exclusiva, a diversidade de atividades e instituições que abrigam os fiéis,

clérigos ou leigos, segundo as suas propensões e inclinações, como mencionado

anteriormente. Pois, segundo estamos informados, do laicato brotou o movimento talvez

mais dinâmico do catolicismo atual, representado pela chamada “Re novação Carismática

Católica”. É de justiça registrar que o ponto de partida ocorreu há cerca de vinte anos, em

virtude de um sacerdote católico, que exercia o seu ministério junto a uma universidade

dos EUA, ter aceitado convite para assistir ao culto em uma igreja pentecostal, a que

compareceu acompanhado por um grupo de estudantes da mencionada universidade. O que

viram os impressionou por tal maneira que, pouco depois, realizaram reunião semelhante,

em sua própria igreja.

Dali para cá, a Renovação Carismática Católica tem crescido extraordinariamente,

os chamados “Grupos de Oração” que a integram estando presentes em muitas dezenas de

países do mundo inteiro, e sendo o número dos que participam das suas reuniões estimado

a esta altura em algo como 4 milhões de fiéis. A hierarquia da Igreja, como seria de

esperar-se e é do seu modo de conduzir os assuntos afetos à sua responsabilidade, mantém-

se em atitude prudente e não recomenda oficialmente a validade da “Renovação

Carismática”, nem a repudia. As reuniões do ramo do laicato de que estamos tratando, são

realizadas geralmente nos salões paroquiais dos templos cujos párocos não se oponham a

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tal utilização, sendo freqüentes as cerimônias religiosas, como a celebração da Missa,

evidenciarem a presença de um maior número de fiéis do que a média observada no

mesmo templo, antes do funcionamento de um “Grupo de Oração”, consentido pelo

pároco. Maior número e participação muito mais intensa.

O movimento de que nos estamos ocupando, em matéria de doutrina, de hierarquia,

de ritual, de liturgia, em nada se diferencia, ou declara desejar diferenciar-se das

recomendadas oficialmente pela igreja, que não tem o propósito de hostilizar ou combater.

De qualquer maneira é fato inconteste, em nossa sociedade, que as denominações

evangélicas, sobretudo as de caráter pentecostalista, bem como a Renovação Carismática

Católica, vêm contribuindo para um afervoramento da fé cristã, sendo ostensiva a

participação, sobretudo das primeiras, na promoção pública do nome de Jesus, e da sua

qualidade de salvador dos homens. E isso para mencionar ações diretamente praticadas, de

cunho evangelizador, inclusive por intermédio da utilização, crescente, de veículos de

mídia eletrônica. Indiretamente, esse esforço está despertando a ação da hierarquia católica

no Brasil a qual, acordando para a realidade de que o crescimento do protestantismo

pentecostalista, em número de fiéis, obviamente significa decréscimo correspondente ao

número dos que se diziam e se consideravam católicos, começa a inclinar-se para aumentar

os seus esforços e dar maior atenção ao uso da mídia eletrônica do que a que vinha dando

até há pouco tempo. Naturalmente o crescimento rapidíssimo de denominações

protestantes tem sido feito às expensas da qualidade da formação dos seus ministros.

Entretanto como o público atingido é, em sua grande maioria, constituído por pessoas

sofridas e muito simples, em termos de preparo intelectual, é de justiça assinalar que a

simplicidade de mesmo tipo de seus pastores, constitui-se em fator que favorece a

comunicação.

E como o esforço é centrado na exaltação da fé, do ponto de vista de certos

aspectos da problemática social, relacionados a desvios, por vezes, muitos graves, de

conduta, a conversão e conseqüente aceitação de valores fundamentais da mensagem

cristã, vem se constituindo em contribuição positiva para a redução do número dos que se

vinham desviando. Naturalmente o leitor já percebeu que estamos nos referindo ao quadro

da nossa realidade, da realidade do nosso país. A observação é feita para que não se tirem,

por inadvertência, conclusões simplistas e apressadas. Por exemplo, as que imaginam que,

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em toda parte e em todas as sociedades, a multiplicação de denominações cristãs ou o

protestantismo em geral, apresentam-se como, nos aspectos assinalados, o fazem entre nós.

Observe o leitor como as grandes rotas do tráfico de drogas orientam-se, sempre, do

hemisfério sul para o hemisfério norte, do Terceiro para o Primeiro mundo. Nem todas as

sociedades nacionais do Primeiro Mundo são protestantes; a maioria, porém, constitui-se

de protestantes ou de adeptos de opções diferentes, fora do âmbito do Cristianismo.

Também a legitimação de práticas abortivas, contraceptivas, a disseminação, rotulados

como “progresso”, dos chamados “costumes fáceis”, é de notar-se, sobretudo a partir da

segunda metade deste século, seguem rotas de direção oposta à do tráfico de drogas.

As chamadas guerras totais, abrangentes das populações civis, inclusive as de

concentrações urbanas indefesas, foram registradas no hemisfério norte e entre sociedades

nacionais do Primeiro Mundo. Por exemplo, as duas carnificinas designadas como Grandes

Guerras, ocorridas neste século. Talvez se possa assinalar que - e estamos nos restringindo

ao campo do Cristianismo - a causa principal da eclosão desenfreada do egoísmo, dos

apetites e injustiças que flagelam a humanidade, parece mais ligada ao absenteísmo, à

indiferença religiosa, do que às formas confessionais com que se expressa a religiosidade.

Em todo caso, é a que acabamos de registrar, apenas uma opinião ou, melhor, uma

impressão pessoal que ao leitor cabe julgar quanto à justeza que possa ser a ela atribuída.

Também, no campo da via religiosa para a dissipação da ignorância que, segundo a

visão judaico-cristã da nossa civilização, resultou da Queda ou Pecado Original, seria

injusto omitir o Espiritismo, codificado por Charles Rivail, mais conhecido pelos seus

seguidores como Alan Kardec, nome, segundo Rivail, do espírito desencarnado e muito

evoluído, que lhe revelou a mensagem de que ele passou a ser porta-voz e arauto. Entre

nós, o Espiritismo Kardecista, ou “de mesa” teve um surto considerável nas primeiras

décadas do século que vai chegando agora ao seu final, surto perturbado, segundo nossa

opinião, especialmente por dois outros fenômenos: os dos cultos religiosos afro-brasileiros,

e o dos desenvolvimentos de estudos de fenômenos que foram classificados como do

domínio da Parapsicologia, cujos pesquisadores, alguns, sacerdotes católicos, têm buscado

designar os fenômenos objetos de seus estudos, como decorrentes de potencialidades ainda

pouco conhecidas da mente, fenômenos que seriam paranormais, e deveriam ser tidos

como preternaturais, mas não, sobrenaturais. Na parte do esforço em que se tem

constituído para nós esta obra, dedicada à ciência, como via de dissipação da ignorância

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que designamos como “externa”, à diferença da via religiosa que a humanidade tem

procurado palmilhar para a redução da ignorância que denominamos “interna”, ou

espiritual, a relutância de parapsicólogos à aceitação de alguma coisa que possa ser de

índole sobrenatural, reflete a aceitação, ainda hoje generalizada, entre o físico e o

metafísico como domínios irredutível e essencialmente distintos. Naquela parte dedicada à

ciência, sem confusão com o panteísmo que uma observação desatenta possa supor, vimos

que cada vez mais se esbate e desvanece aquela distinção. Feita a observação, parece-nos

justo também mencionar a presença entre nós de igrejas que, não sendo conseqüentes ao

protesto de Luthero e de Calvino, não têm seguido a orientação do papado. São igrejas

ditas do catolicismo ortodoxo, que não sofreu influência predominante do ocidente, e que,

em sua maioria, separou-se do catolicismo romano em meados do século XI. A razão

principal da ruptura foi a excomunhão, pelo papa Leão IX, do patriarca Miguel Cerulário, a

propósito de divergências de natureza teológica, a respeito da Terceira Pessoa da

Santíssima Trindade, o Espírito Santo.

A partir daí, ficou o Cristianismo dividido em dois ramos: o da cristandade

representada pelo Catolicismo Romano, no ocidente; e a cristandade representada pela

Igreja Ortodoxa, oriental. Por isso, ao nos referirmos à Reforma, na primeira parte desta

obra, assinalamos que ela marcou o grande cisma do Cristianismo no Ocidente. Há,

também, um catolicismo ortodoxo que se manteve fiel a Roma, preservando, entretanto,

algumas particularidades litúrgicas. Em todo caso, como o número dos fiéis ortodoxos em

nosso país, ligados à feição assinalada, e a outras que não chegaremos a mencionar, é

relativamente pequeno, ficaremos, apenas, com este registro. Os sumaríssimos dados que

acabamos de fornecer visam, assim, essencialmente, evitar uma omissão que por mais de

um motivo não seria justa. Inclusive pela respeitabilidade do extraordinário acervo cultural

do Cristianismo oriental.

O leitor, paciente e atento, terá percebido que, ao menos do ponto de vista deste

autor, há, no campo da religiosidade, dois dados que ressaltam com muita evidência: o que

designamos como pentecostalismo, atraindo multidões de criaturas aflitas, em busca de

alívio e de esperança pela via religiosa; e o fato, ao menos em nossa sociedade, do

extremado ecletismo - de resto garantido pela Constituição, cuja letra assegura o direito ao

exercício das convicções religiosas, não podendo ninguém ser discriminado em virtude de

tais ou quais opções, como não podendo sê-lo em conseqüência de convicções políticas ou

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de diferenças raciais. As garantias constitucionais a que acabamos de referir-nos, de resto

respondem à realidade de uma população maciçamente propensa à religiosidade, embora

de feição pouco definida em face de múltiplos fatores da ordem social em que vivemos, e

dos quais, seguramente faz parte uma falta claríssima de instrução e orientação a nível

adequado. Por isso, funcionam livremente entre nós, locais de cultos que não precisam

esconder o tipo de atividades exercitadas em seus rituais. Fala-se, abertamente, em “magia

branca” e de “magia negra”, de “trabalhos para o bem ou para o mal”, sem que ocorra

qualquer perseguição realizada por autoridades legalmente constituídas.

As discriminações e perseguições de que algumas se queixam, referem-se a

rivalidade entre diferentes denominações a que, por vezes, fazem eco determinados setores

da mídia. Nada, entretanto, parece-nos, do porte da de que foi alvo uma denominação,

designada como “Igreja do Espírito Santo para a Unificação do Cristianismo Mundial”.

II.1.d – A Igreja do Espírito Santo para a Unificação do Cristianismo

Mundial

A referida igreja encontra seu fundamento teológico no volume em que está

compendiado o que foi até agora expresso pelo seu fundador, o Rev. coreano Dr. Sun

Myung Moon, a respeito do fundamento a que se refere. O redator do referido compêndio,

intitulado “Princípio Divino”, foi um seu seguidor, reconhecidamente erudito em Teologia,

de cuja redação resultou trabalho realmente muito complexo e, sem dúvida, insuscetível de

ser, de modo honesto e isento, objeto de crítica desrespeitosa. É bem verdade que ele

contém concepções surpreendentes que, como até agora temos buscado fazer, mostraremos

de maneira isenta, cabendo ao leitor julgar do seu valor, no que tange ao mérito. A esta

altura, o referido leitor, poderá estar se perguntando o motivo, ou os motivos, pelos quais

lhes serão fornecidos os dados e informações, a serem analisados pela sua consciência e

pela sua inteligência, no trecho que irá seguir-se do presente trabalho.

Linhas acima, destacamos a importância do pentecostalismo, e antes já havíamos

mencionado que todas as tendências pentecostais estão centradas no Espírito Santo e nos

carismas e dons por Ele distribuídos, segundo o relato, que nos permitimos fazer com

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fidelidade comprovável, constante dos Atos dos Apóstolos e da I epístola do apóstolo

Paulo aos Coríntios. Na verdade, a Igreja fundada pelo Rev. Dr. Sun Myung Moon, tem

peculiaridades marcantes e não se assemelha a outras denominações evangélicas ou ao

Movimento de Renovação Carismática Católica. Não há como ocultar, entretanto, que em

sua própria designação, destaca o Espírito Santo e anuncia o propósito de promover a

unificação do Cristianismo mundial. No particular da união, em lugar da divisão, de certo

modo assemelha-se mais, dentre as que foram expostas neste livro, às idéias do Dr. Frank

Buchman, das quais muitas bastante significativas, foram explicitadas quando tratamos do

movimento por ele fundado, o “Rearmamento Moral”, cujo fundador e cujas idéias centrais

foram objeto de calorosa apreciação, inclusive quanto à sua operacionalidade e por sua

oportunidade, por vultos dos de maior projeção dentre os que tem conhecido o nosso

século.

Mas, antes mesmo de iniciar a exposição de aspectos fundamentais do “Princípio

Divino”, devemos dizer que, há cerca de quinze anos, foi a igreja que nele se baseia, de

fato objeto da mais demolidora campanha de que jamais tivemos conhecimento entre nós,

ao ponto de excitar os ânimos de muitas pessoas que, sem se aperceberem que estavam

sendo lideradas por alguns a quem possivelmente interessava impedir a expansão da, já

então, rotulada como “seita Moon”, no interior de cujas sedes passar-se-iam coisas sinistras

e criminosas, dispuseram-se a depredá-las, todas, ou quase todas, do norte ao sul do nosso

país. E isto a despeito das garantias à liberdade de culto constantes da Constituição em

vigor, àquele tempo, como continua garantida no texto atual da nossa Carta Magna.

Ora, o fato em si, de ter sido levada a cabo tão extensa e violenta perseguição

contra uma determinada instituição religiosa, a ponto de ser efetivada, em numerosos

casos, por intermédio da prática de violência física contra o patrimônio, representada por

arrombamentos de portas, de armários, gavetas, de sedes invadidas por grupos

aparentemente enfurecidos, levou-nos como, julgamos, a qualquer observador isento e

desapaixonado, a sentir que algo muito estranho, estaria por detrás de tudo isso. É que se

tratava de comportamento em absoluto desacordo com os hábitos de tolerância religiosa de

nossa gente, tolerância a que foi feita referência anteriormente, no curso deste trabalho. O

fundador do movimento religioso, alvo de tão surpreendente e insólita reação do nosso

povo, geralmente pacato, vinha sendo descrito como um aventureiro sinistro e desonesto,

cujos adeptos eram conquistados por meio de lavagens cerebrais praticadas contra jovens

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incautos, para serem transformados em mão-de-obra praticamente escravizada a qual, por

intermédio de exaustivas jornadas de trabalho, vendendo flores, bombons e outras

miudezas, garantia o dinheiro que tão suspeita, para não dizer criminosa, organização,

necessitava.

A hipótese sobre a falta de escrúpulos e os propósitos desonestos do fundador,

cujos adeptos “robotizados”, designavam como “Pai”, era robustecida por abundante

noticiário acerca da sua condenação, nos EUA, por crime de sonegação fiscal.

Naturalmente não eram mencionadas prisões anteriores do mesmo personagem que, como

viemos a saber posteriormente, por fonte insuspeitável de facciosismo favorável a ele, já

estivera em campos de concentração e trabalhos forçados, ou campos de extermínio,

segundo alegam os seus adeptos, em virtude das condições de ausência do mínimo

indispensável a uma sobrevivência prolongada por parte dos aprisionados em tais campos.

Quem sabe essas passagens pela prisão não se encaixavam na imagem do trapaceiro cruel,

que agia motivado pela avidez por dinheiro, como era o personagem descrito, situando-o

no domínio dos criminosos comuns. É que aqueles campos eram situados na Coréia do

Norte, como se sabe, governada pelos adeptos do comunismo ou, melhor dizendo, pelos

adeptos do Materialismo Dialético, a forma mais dinâmica do materialismo, aquela cujo

principal autor, Karl Marx, certa vez mencionara, ao dizer que a Filosofia, até então, se

ocupara em descrever, ou interpretar, o mundo; e que era indispensável que, dali para

diante, fosse capaz de transformá-lo.

Referia-se sem dúvida ao fato de que a cosmovisão de que fora o arquiteto genial,

incluía necessariamente a negação de qualquer coisa fora ou distinta da matéria - portanto a

negativa da existência de um Deus criador - além de incluir, entre numerosas outras coisas,

a existência de leis internas da matéria, que operavam e eram o motor também da História,

e que o conhecimento humano deságua, inevitavelmente, na ação. Ora, ao tempo da

perseguição a que nos estamos referindo, em nada interessava a certo tipo de ativismo,

revelar que o seu alvo estivera detido, como prisioneiro, em campos de concentração, em

conseqüência de pregação religiosa que contrariava, obviamente, a quantos entendessem

que religião, qualquer que ela seja, constitui-se em “ópio do povo”, no sentido de que, ao

acenar para a existência de uma outra vida, de duração eterna, cujo transcorrer será ditoso,

na dependência da conduta humana, marcada pela resignação, pela tolerância e pelo amor

ao próximo, atenua os sentimentos que se constituem no combustível da “luta de classes”.

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Tanto mais quanto, os acontecimentos a que nos estamos reportando neste momento,

ocorreram ainda ao tempo dos governos presididos por generais, não convindo, no caso da

perseguição movida contra a organização fundada pelo Rev. Dr. Sun Myung Moon,

descrevê-lo senão como um criminoso comum.

É que, supomos, muitos entendiam àquela época, que o referido Dr. Moon combatia

o comunismo, no sentido político, social e econômico em que os seus perseguidores, ou

adversários, entendiam o vocábulo. Não cogitavam da hipótese de que, no comunismo ele

pudesse ver, em primeiro plano, o materialismo, a negação da transcendência, o que outras

correntes filosóficas igualmente faziam, mas não com a mesma formidável

operacionalidade dos impregnados pela visão da luta como motor insubstituível da

História, por detrás dos quais estava a URSS, com o seu formidável poderio militar, o seu

suposto exemplo de sociedade igualitária e justa, a meta dos sonhos dos militantes de todos

os partidos que, sob tais ou quais designações o acalentavam. A esta altura, muitos leitores

estarão se perguntando sobre se esquecemos o compromissos da imparcialidade.87

Entretanto, até aqui estamos descrevendo e citando fatos que, se necessário, poderemos

provar que, no que porventura corrijam aspectos da imagem do Sr. Moon e dos seus

seguidores, em favor dos mesmos, foram obtidos de fontes contrárias a ele e às suas

atividades. Por exemplo, haverão de ter notado que o líder religioso coreano vem tendo o

seu nome precedido neste texto pela abreviatura “Dr.”.87. Ao contrário, porém exatamente pelo compromisso com a imparcialidade, registre-se que a

sonegação fiscal, em conseqüência da qual foi condenado o líder religioso Dr. Sun MyungMoon, é algo factual, não opinativo. Por esta razão, sentimo-nos na obrigação de nosdeter sobre fato tão grave, sobretudo quando se trata do perfil de quem se apresentacomo líder religioso, liderança cuja natureza é incompatível com práticas dedesonestidade e corrupção. Assim, para que o leitor possa, ele sim, avaliar a questão,oferecemos à sua análise, os seguintes dados factuais:1) O líder religioso em questão chegou aos Estados Unidos em 1971.2) A Igreja por ele estabelecida naquele país passou a existir, do ponto de vista

jurídico, a partir de 18 de setembro de 1961.3) A importância a que se referiu o processo em que foi condenado à prisão o Dr. Moon

era de US$ 7.300.4) O processo em questão foi iniciado cerca de l0 anos após a prática da sonegação a

que se referia, cujo montante, acrescido de multas e juros correspondentes aos anostranscorridos, totalizava US$ 25.000.

5) Aproximadamente na mesma época em que se deu a condenação do Reverendo coreano, aSra. Geraldini Ferraro, que fora acusada de sonegar cerca de US$ 29. 709, foicondenada ao pagamento de multa, não à prisão. Também o Sr. George Bush, por faltaanáloga, relativa a uma importância de US$ 129.000, foi condenado à pena pecuniária,tal como a Sra. Ferraro, que chegou a candidatar-se à vice-presidência do seu paíspelo partido Democrático. Em ambos os casos, admitiram as autoridades competentesque as sonegações não haviam sido praticadas com dolo - e daí, a sanção pecuniária,não prisional.

6) A pena de prisão imposta ao Dr. Moon foi de 18 meses, da qual o condenado cumpriu13, tendo sido beneficiado por indulto (?) concedido pela entidade AMICAS CURIAE.

7) A pena de prisão, imposta a um estrangeiro que, presumivelmente, nem sequer dominavao idioma inglês ou, menos ainda, conhecia perfeitamente a legislação fiscalamericana, foi considerada, no mínimo como fruto de intolerância (bigotry), termousado em seu idioma, por jornalista da importância do Sr. Carl Sherwood. O citadojornalista goza da reputação de ser um dos mais competentes repórteresinvestigativos americanos, do que parece fazer prova o fato de ser talvez o único de

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seu país, portador dos prêmios Pulitzer e Peadoby, cuja importância não precisa serrealçada. O referido repórter publicou, como produto do seu trabalho sobre oprocesso em que foi condenado à prisão o Dr. Moon, um alentado volume de cerca de700 páginas, nas quais trata do que lhe pareceu um conjunto de irregularidadesprocessuais, fruto de perigosa intolerância.

Os dados desta nota são factuais, não opinativos. Cabe ao leitor, não a nós, julgar. Mantemos, assim, o nosso compromisso deisenção que, obviamente, não deve implicar em omissão de informações pertinentes. (Nota do Autor

É que fontes contrárias a ele registram que ele possui o título de “doutor honoris

causa” da Universidade Católica de La Plata, Argentina. É verdade que segundo as

mesmas fontes, embora sem relação com a personalidade agraciada, autoridades

eclesiásticas do Vaticano fizeram restrições ao fato - ainda que o texto, para a finalidade,

considerado por nós insuspeito - não nos parecesse suficientemente claro no que dizia

respeito a restrições não referentes ao beneficiário do título honorífico a que nos estamos

referindo. De resto, o fundador da Igreja da Unificação - que é como os seus seguidores

abreviadamente a designam, - é formado em Eletricidade pela Universidade de Waseda, no

Japão. Outra informação surpreendente para quem considere o Dr. Moon uma espécie de

espertalhão reles, embora de sucesso invulgar no mundo dos negócios, citaremos para

apreciação pela inteligência do leitor, o fato de ter tido ele a oportunidade de falar perante

a Assembléia Geral das Nações Unidas, a cujo plenário foi apresentado pelo Sr. H. E.

Stoyan Ganev, Presidente da referida Assembléia, a 13 de Maio de 1993.

Em seu discurso de apresentação o Sr. Ganev, entre muitas outras considerações

acerca do papel da ONU como instrumento de promoção do ideal de paz entre os povos,

usou das seguintes expressões: “Portanto, nós das Nações Unidas, estamos dispostos

realmente a aceitar e aplaudir todos os esforços para a paz, das Igrejas e dos líderes

religiosos de todas as Religiões e das fontes filantrópicas de todas as partes do mundo.

“Nesse contexto, na reunião desta noite lança uma mensagem específica religiosa

de paz, o fundador do Movimento da Unificação, que é para ser comentada e merece

nossos elogios”.

E, mais adiante, acrescentou o mesmo Presidente da Assembléia Geral da ONU, Sr.

Ganev, ... “Contudo, freqüentemente no passado e mesmo neste século, indivíduos têm

sido perseguidos por possuir diferentes pontos de vista religiosos. Similarmente, diferenças

religiosas e filosóficas têm estado na raiz de vários conflitos que ocorreram através da

História e neste século. Se a paz deve prevalecer, todas as religiões e credos devem estar

livres e a tolerância universal deve ser uma regra.

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“O Reverendo Sun Myung Moon tem dado contribuições construtivas em inúmeros

campos da diligência humana. Ele tem defendido a liberdade religiosa. Ele tem se oposto a

todas as formas de racismo e discriminação. Grupos de minorias, em toda parte do mundo

reconhecem suas contribuições. Durante os últimos cinqüenta anos ele tem trabalhado

arduamente para a paz e a união do mundo. Nessas últimas duas décadas, o Reverendo

Moon trabalhou nos Estados Unidos como se fosse o seu próprio pais, enfatizando o papel

da América no avanço da causa da paz, da liberdade e da justiça social.

“Seus méritos e conquistas teriam menos conseqüências se o Reverendo Moon não

fosse como ele é, um homem dedicado à paz e à união e, acima de tudo, uma pessoa

totalmente dedicada a Deus. Em palavras e prática, ele tem enfatizado a necessidade de

colocar Deus no centro de toda diligência humana. Para ele, Deus não é um conceito

filosófico, mas a fonte de uma existência significativa. Eu sei que uma das mais

importantes motivações para a apresentação desta noite é nos fornecer noções mais

profundas de seus esforços para promover a paz e a união mundiais.

“Portanto, todos nós o cumprimentamos e eu particularmente estou muito contente

por fazer isso e saudá-lo como um renomado líder religioso, um dedicado trabalhador da

paz mundial, e para lhe dar as boas vindas ao pódio”.

Na noite em que o Rev. Dr. Moon ocupou o pódio da Assembléia Geral da ONU,

estava acompanhado da Sra. Hak Ja Han Moon, sua esposa, e de um diplomata latino-

americano, designado pelo Sr. Ganev como Embaixador José Maria Chavez.

Ainda no aspecto factual, para os que imaginavam ser o Rev. Dr. Moon, na melhor

das hipóteses, um anti-comunista, no sentido já anteriormente assinalado, parecerão ainda

mais surpreendentes alguns trechos das declarações sobre ele feitas, pelo então “premier”

soviético, Sr. Gorbachev, antes da derrocada da poderosa URSS. As referidas declarações

foram feitas por ocasião de uma reunião promovida, em Moscou, de centenas de

representantes da mídia internacional, ex-chefes de governo de diferentes países,

parlamentares de diversas procedências, no ensejo da XI Conferência Mundial da Mídia,

patrocinadas, esta e as anteriores, pelo Rev. Dr. Moon. Aqui vão palavras do Sr. Mikhail

Gorbatchev: “Gostaria de agradecer pessoalmente ao Sr. Rev. Dr. Moon, do fundo do meu

coração, porque através desta conferência, a mídia internacional poderá mudar seu

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conceito sobre determinados pontos que prejudicaram o desenvolvimento das relações da

União Soviética com o resto do mundo. Por o sr. ter criado esta oportunidade, Rev. Moon,

eu lhe agradeço do fundo do meu coração... “Tenho informações sobre seu incrível

fundamento mundial, Rev. Moon...” "Espero que, através de todo o fundamento econômico

que o Movimento da Unificação Internacional possui em muitos países, possa haver uma

contribuição, direta ou indireta, para o desenvolvimento da União Soviética”.

Em fontes contrárias à Unificação almejada pelo Rev. Dr. Moon, nos Estados

Unidos são mencionadas tantas personalidades e tantos episódios, que seria

demasiadamente extenso arrolar. Mencionaremos apenas o jornal que seu Movimento

possui em Washington, o Washington Times, que apoiou a eleição de Ronald Reagan,

candidato dos republicanos à Presidência e que, segundo uma daquelas fontes, teve um dos

seus jornalistas nomeado para funções tão elevadas na Casa Branca, que muitos círculos da

capital americana passaram a tê-lo como o “ghost writer” dos discursos do presidente.

Hoje, o nome do citado jornalista, tem aparecido no noticiário como pretendente à

indicação, pela Convenção do Partido Republicano, como candidato à próxima sucessão. A

fonte que nos falou do que acabamos de mencionar, avalia que, a serem verdadeiros os

rumores em questão, serão mínimas as chances de vitória do suposto candidato, sobre o

candidato que a mesma fonte considera, de longe, o favorito dos convencionais daquele

Partido. Fica o registro, a ser avaliado pelo leitor sob os diferentes ângulos em que a

avaliação pode ser feita.

Os dados até aqui arrolados e oferecidos à sua consideração, referem-se,

principalmente, à dimensão da obra da Unificação, posta em marcha pelo Rev. Dr. Moon,

bem como à maneira pela qual, ela e o seu impulsionador e criador, têm sido avaliados por

vultos da maior expressão do cenário internacional. Acrescentaremos, apenas, pela

extensão que já começa a ameaçar os limites sugeridos pelo editor para a extensão desta

obra, que estamos informados, igualmente, de que o presidente da Coréia do Norte o tem

hoje, não mais como um inimigo, mas como alguém sinceramente devotado à obra da paz

mundial. Da mesma maneira, o governo de Beijing, ou Pequim, como é mais conhecida

entre nós a capital da China continental o progresso da Igreja da Unificação, e o Rev.

Moon pensa em dar partida a uma linha de montagem de pequenos automóveis populares,

de marca comercial “Panda”, que se propõe produzir cerca de 1 milhão desses carros de

baixo preço, anualmente. Igualmente, sempre dentro da idéia central de aproximação de

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povos, raças e culturas, já iniciou um projeto de ligação, por túnel, entre a Coréia e o Japão

cujos povos se têm olhado com desconfiança e ressentimento, ao longo da História.

Quanto às idéias desse líder religioso, que se anuncia como o Messias do Segundo

Advento, ficou dito que estão fundamentalmente compendiadas sob o título “Princípio

Divino”, obra extensa e muito complexa, mas que contém, de início, um extrato, um

“resumé”, que nos permitiremos transcrever na íntegra88, para que o leitor possa lê-lo e

avaliá-lo, conforme a sua inteligência e a sua consciência. Aqui vai ele, sob o título que lhe

é atribuído no compêndio a que nos estamos referindo - "Introdução Geral".

INTRODUÇÃO GERAL

Todos, sem exceção, estão lutando para alcançar a felicidade. O primeiro passo

para atingir esta meta é superar a presente infelicidade. Desde pequenos assuntos

individuais até os acontecimentos globais que fazem história, tudo são expressões das

vidas humanas, em sua luta para alcançar a felicidade. Como, então, a felicidade poderá ser

alcançada?

Toda pessoa se sente feliz quando seu desejo é satisfeito. A palavra “desejo”,

porém, é apta a ser mal interpretada. A razão disto é que todos estão agora vivendo em

circunstâncias que podem levar o desejo para a direção do mal, em vez da direção do bem.

O “desejo” que resulta em iniqüidade não vem da “mente original do homem”, isto é, o seu

ser íntimo, que se deleita na lei de Deus. O caminho da felicidade é alcançado quando a

pessoa supera o desejo que leva para o mal e segue o desejo que procura o bem. A mente

original do homem sabe que o desejo mau levará somente para a infelicidade e o

infortúnio. Assim é a realidade da vida humana; o homem está tateando nas trevas da

morte, procurando a luz da vida.

Por acaso já houve algum homem que, seguindo o caminho do desejo mau, tivesse

conseguido encontrar a felicidade, em que sua mente original pudesse se deleitar? A

resposta é “não”. Sempre que o homem atinge o objeto de seus maus desejos, sente a

agonia de uma consciência ferida. Existem, porventura, pais que ensinem seus filhos a

88. A transcrição que irá seguir-se foi devidamente autorizada, na forma exigida pelo editor do “Princípio Divino”, no Brasil. (Nota doAutor).

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fazer o mal, ou professores que instruam seus estudantes a seguir o caminho da iniqüidade?

Mais uma vez, a resposta deve ser “não”. É da natureza da mente original do homem odiar

o mal e exaltar o bem.

Nas vidas dos homens religiosos podem-se observar muitas tensas e implacáveis

lutas para atingir o bem, seguindo apenas o desejo da mente original. Contudo, desde o

começo dos tempos, nenhum homem jamais conseguiu seguir completamente sua mente

original. Por esse motivo, a Bíblia diz: “Não há um justo, nenhum sequer; não há ninguém

que entenda; não há ninguém que busque a Deus” (Rm 3.10-11).

O Apóstolo Paulo, que teve de enfrentar tal maldade do coração, diz em

lamentação: “Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus, mas vejo em

meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento e me prende

debaixo da lei do pecado que está em meus membros. Miserável homem que eu sou”(Rm

7.22-24).

Existe uma grande contradição no homem. Dentro do mesmo indivíduo o poder da

mente original, que deseja o bem, está em violenta guerra contra o poder da mente má, que

deseja o mal. Toda vida, toda matéria, estão fadadas à destruição, enquanto contiver tal

contradição. Todos os homens que tiverem tal contradição dentro de si mesmos, estão

vivendo à beira da destruição.

Será possível que o homem tenha sido criado com tal contradição? A resposta mais

uma vez é “não”. Nada na criação poderia ter sido criado com tal contradição inerente.

Portanto, a contradição deve ter-se desenvolvido no homem depois da criação. No

Cristianismo, esse desenvolvimento tem o nome de “Queda do Homem”.

Devido à “Queda” o homem sempre se encontra à beira da destruição. Por isso ele

faz esforços desesperados para remover a contradição, seguindo o bom desejo de sua

mente original e repelindo o mau desejo de sua mente má.

Para a tristeza da humanidade, a resposta última à questão do bem e do mal ainda

não foi atingida. Com respeito às doutrinas de teísmo e ateísmo, se uma for julgada boa, a

outra deverá ser má. No entanto ainda não conseguimos uma teoria absoluta com respeito à

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questão do bem e do mal. Além disto, muitas pessoas continuam em total ignorância a

respeito de respostas a muitas questões fundamentais, tais como: o que é a mente original,

a fonte do bom desejo? Qual foi a origem da mente má, que causou o desejo mau? Ou, o

que foi a causa fundamental da queda, que possibilitou ao homem conter tal contradição?

Antes de poder levar uma vida boa, seguindo o desejo bom da mente original e repelindo o

desejo mau, é necessário superar a ignorância e saber distinguir entre o bem e o mal.

Observada do ponto de vista do conhecimento, a queda humana significa a descida

do homem à escuridão da ignorância. Já que o homem contém dois aspectos, o interno e o

externo ou o espiritual e o físico, há também dois tipos de conhecimento, interno e externo

e dois tipos de ignorância, interna e externa.

Ignorância interna, no sentido religioso, significa ignorância espiritual, isto é, a

ignorância das respostas de questões tais como: qual é a origem do homem? Qual é a

finalidade de sua vida? Será que Deus e o mundo futuro existem? Que são o bem e o mal?

Ignorância externa é a ignorância da realidade física, isto é, a ignorância com

respeito ao mundo natural, que inclui o corpo humano, como também a ignorância de

questões tais como: qual é a base do mundo material? De acordo com quais leis naturais

ocorrem todos os fenômenos físicos?

Desde o primórdios da história até o presente, os homens, constante e

assiduamente, têm procurado a verdade, com a qual possam superar esta ignorância e

restaurar a luz do conhecimento. O homem tem lutado para descobrir a verdade interna

através do caminho da religião. A ciência tem sido a trilha seguida para a descoberta da

verdade externa.

A religião e a ciência têm sido métodos de procurar os dois aspectos da verdade, a

fim de superar os dois aspectos da ignorância e restaurar os dois aspectos do

conhecimento. O dia há de chegar quando a religião e a ciência hão de caminhar em um só

caminho, para que o homem possa desfrutar da felicidade eterna, completamente liberto da

ignorância, dirigindo-se para o bem, que a mente original deseja. Então haverá de vir a

compreensão mútua entre os dois aspectos da verdade, o interno e o externo.

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O homem tem se aproximado de uma solução para as questões fundamentais da

vida, seguindo dois cursos diferentes. O primeiro curso é procurar a solução dentro do

mundo material. Aqueles que seguem esta rota, pensando ser uma trilha sublime, rendem-

se à ciência, orgulhando-se de sua onipotência e procuram a felicidade material. Contudo,

será que o homem pode desfrutar da felicidade total se ele limita sua busca às condições

materiais externas centralizadas no corpo físico? É possível à ciência criar um ambiente

social agradável, no qual o homem possa desfrutar de máxima riqueza, mas tal ambiente

poderia satisfazer os desejos espirituais do homem interior?

As alegrias passageiras do homem que se deleita nos prazeres da carne não são

nada quando comparadas com a felicidade experimentada por um homem que se devota a

Deus. Não foi somente Gautama Buda que, deixando a glória do palácio real, tomou a

longa jornada da vida à procura do caminho. Sua meta era o lar perdido do homem, o seu

estado antes da queda, o seu domicílio permanente, embora não soubesse onde encontrá-lo.

Assim como o homem é completo e sadio quando sua mente está em harmonia com seu

corpo, assim também acontece com a alegria. A alegria do corpo torna-se completa e sadia

quando está em harmonia com a alegria da mente.

Qual é o destino da ciência? Até agora, o objetivo da pesquisa científica não incluía

o mundo interno da causa, mas somente o mundo externo do efeito; não o mundo da

essência, mas somente o mundo dos fenômenos. Hoje a ciência está entrando numa

dimensão mais alta; não se preocupa somente com o mundo externo do efeito ou dos

fenômenos, mas começa a examinar também o mundo interno da causa e da essência.

Aqueles que tomaram a trilha da ciência estão agora chegando à conclusão de que sem a

verdade relativa ao mundo espiritual da causa, isto é, a verdade interna, o homem não pode

atingir a finalidade última da ciência, isto é, a descoberta da verdade externa, que pertence

ao mundo externo do efeito.

O marinheiro que se puser a viajar no mar do mundo material, levado pelo barco da

ciência à procura dos prazeres da carne, talvez encontre o litoral do seu ideal, mas logo

descobrirá que aquilo nada mais é do que um cemitério preparado para sua carne. Mas,

quando o marinheiro, depois de ter completado sua viagem à procura da verdade externa

no barco da ciência, vier a encontrar a rota marítima da verdade interna, no barco da

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religião, ele será capaz de terminar sua viagem no mundo ideal, que é a meta do desejo da

mente original.

O segundo curso do esforço humano tem sido na direção da solução das questões

fundamentais da vida no mundo essencial da “causa”. A filosofia e a religião, que

percorreram esse caminho, fizeram contribuições substanciais. Por outro lado, tanto a

filosofia como a religião se encontram sobrecarregadas de muitos fardos espirituais. Em

sua própria época, os filósofos e santos do passado foram pioneiros na abertura do caminho

da vida, mas suas realizações freqüentemente resultaram no acréscimo de outros fardos

sobre o povo da época atual.

Consideremos este assunto objetivamente. Será que já existiu um filósofo que tenha

sido capaz de pôr fim ao sofrimento humano? Existiu alguma vez um santo que nos tivesse

mostrado claramente o caminho da vida? Os princípios e as ideologias até agora

apresentados à humanidade deram origem ao ceticismo, criaram muitos temas que devem

ser desemaranhados e numerosos problemas que devem ser resolvidos. As luzes

renovadoras, com as quais todas as religiões iluminaram suas respectivas idades,

desapareceram com o decair de sua idade, deixando apenas pavios de faíscas

enfraquecidas, brilhando tenuemente nas trevas que se aproximam.

Estudemos a história do Cristianismo. Por quase 2000 anos o Cristianismo cresceu,

professou a salvação da humanidade e estabeleceu um domínio mundial. Mas, o que é do

espírito cristão que projetou uma luz de vida tão brilhante que, mesmo nos dias da

perseguição sob o Império Romano, levou os romanos a ajoelharem-se perante Jesus

crucificado? A sociedade feudal medieval enterrou o Cristianismo vivo. Contudo, mesmo

em seu túmulo, a tocha da reforma religiosa cristã brilhou de novo sobre as trevas

ameaçadoras daquela idade. Não lhe foi possível, porém, virar a maré daqueles dias

obscuros.

Quando o amor eclesiástico expirou, quando o desejo agitado da riqueza material

varreu a sociedade da Europa e incontáveis milhões de pessoas das massas esfomeadas

gritavam amargamente nas favelas industriais, a promessa de salvação veio, não do Céu,

mas da terra. Seu nome era Comunismo. O Cristianismo, embora professasse o amor a

Deus, transformou-se no corpo sem vida do clero arrastando chavões vazios. Era, pois,

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natural que uma bandeira de revolta fosse levantada contra um Deus aparentemente

impiedoso. A sociedade cristã tornou-se o foco do materialismo. Extraindo adubo deste

solo, o comunismo, a ideologia mais materialista de todas, cresceu rápida e

desenfreadamente.

O Cristianismo perdeu a capacidade de superar a prática do comunismo e não foi

capaz de apresentar uma verdade que pudesse sobrepujar a teoria comunista. Os cristãos

observam o comunismo crescer dentro de seu próprio meio, expandindo o seu domínio

sobre o mundo todo. Os cristãos, que ensinam e crêem que todos os homens são

descendentes dos mesmos pais, não gostam de sentar-se com irmãos e irmãs com pele de

cor diferente. Este é um exemplo representativo do Cristianismo de hoje, que é destituído

da força vital para praticar a palavra de Cristo.

Virá, talvez, o dia em que tais tragédias sociais terminarão, mas existe um vício

social que está além do controle de muitos homens e mulheres do dia de hoje: o adultério.

A doutrina cristã afirma que este é o maior de todos os pecados. Que tragédia não poder a

sociedade cristã de hoje bloquear este caminho de degradação para o qual tantas pessoas

correm cegamente.

O que esta realidade representa para nós é que o Cristianismo de hoje está em

estado de confusão, dividido pela túrbida maré da presente geração, incapaz de fazer coisa

alguma pelas vidas das pessoas que foram atraídas pela fúria do redemoinho da

imoralidade de hoje. Será, porventura, o Cristianismo incapaz de alcançar a promessa

divina da salvação para a era atual da humanidade? Qual seria o motivo pelo qual até agora

os homens de religião têm sido incapazes de realizar suas missões, mesmo tendo lutado

com empenho e devotamento em busca da verdade interna?

O relacionamento entre o mundo essencial e o mundo fenomenal é semelhante ao

que existe entre a mente e o corpo. É o relacionamento entre causa e efeito, interno e

externo, sujeito e objeto. Assim como o homem pode atingir a perfeita personalidade

somente quando sua mente e seu corpo estiverem harmonizados em perfeita unidade, assim

também o mundo ideal poderá ser realizado somente quando os dois mundos, o da essência

e o dos fenômenos, estiverem juntos em perfeita unidade.

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Como acontece no relacionamento entre a mente e o corpo, assim também não pode

haver mundo fenomenal separado do mundo essencial, nem pode haver mundo essencial

separado do mundo fenomenal. Do mesmo modo, não pode haver um mundo espiritual

separado do mundo físico, nem pode haver felicidade espiritual separada da felicidade

física. A religião até agora tem colocado pouca ênfase no valor da realidade diária; tem

negado o valor da felicidade física a fim de enfatizar a consecução da alegria espiritual.

Mesmo fazendo extremos esforços, o homem não pode cortar-se da realidade, nem

aniquilar o desejo de ter a felicidade física que, como uma sombra, sempre o segue. Na

realidade, o desejo de ter felicidade física persistentemente se apodera dos homens de

religião, conduzindo-os aos vales da agonia. Tais contradições existem mesmo na vida dos

líderes espirituais. Muitos líderes espirituais tiveram um triste fim, dilacerados por tais

contradições. Aqui está a principal causa da fraqueza e inatividade da religião de hoje : a

fraqueza se encontra na contradição, que ainda não foi superada.

Também outro motivo tem conduzido a religião ao declínio fatal. O homem

moderno, cuja inteligência está muito desenvolvida, exige provas científicas para todas as

coisas. A doutrina religiosa, porém, que permanece inalterada, não interpreta as coisas

cientificamente, isto é, a interpretação da verdade interna pelo homem (religião) e sua

interpretação da verdade externa (ciência) não estão em acordo entre si.

A finalidade máxima da religião só pode ser realizada, primeiro, crendo na verdade,

depois, praticando-a. Contudo, hoje não pode haver verdadeira crença sem conhecimento e

compreensão. Nós estudamos a Bíblia para confirmar nossa crença através do

conhecimento da verdade. A realização de milagres por Jesus e a revelação de sinais eram

para levar o povo a saber que ele era o Messias, tornando possível que eles cressem nele. O

conhecimento vem da cognição e, hoje, o homem não pode ter cognição de coisa alguma

que não tenha lógica e nem prova científica. Para compreender alguma coisa, primeiro

deve haver cognição. Assim, a verdade interna também requer prova lógica. A religião tem

caminhado, através do longo percurso da história, para uma idade na qual ela deve ser

explicada cientificamente.

A religião e a ciência começaram com as respectivas missões de eliminar os dois

aspectos da ignorância humana. Em seus cursos, estas duas áreas de pensamento e

investigação têm, se encontrado em um conflito aparentemente irreconciliável. Para que o

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homem possa atingir a boa finalidade do desejo da mente original, deve vir uma época em

que uma nova expressão da verdade venha a existir, tornando a humanidade capaz de unir

estes dois assuntos sob um só tema unificado. Estas duas matérias são a religião, que tem

se aproximado da ciência, e a ciência, que está cada vez mais perto da religião.

Talvez desagrade a crentes religiosos, especialmente aos cristãos, aprenderem que

deve surgir uma nova expressão da verdade. Acreditam que a Bíblia que agora têm é

perfeita e absoluta em si mesma. A verdade, logicamente, é única, eterna, imutável e

absoluta. A Bíblia, porém, não é a própria verdade, senão um livro de textos que ensina a

verdade. Naturalmente, a qualidade do ensinamento, o método e a amplitude da verdade

dada, devem variar de acordo com cada idade, pois a verdade é dada a povos de épocas

diferentes, cujos níveis espirituais e intelectuais são diferentes. Portanto, não devemos

considerar um livro de textos como absoluto em todos os detalhes.

A religião veio a existir como um meio de realizar a finalidade do bem, seguindo o

caminho de Deus, de acordo com a intenção da mente original. A necessidade de variadas

espécies de conhecimentos obrigou a aparição de várias religiões. As escrituras das

diferentes religiões variaram de acordo com a missão da religião, com o povo que as

recebeu e com a idade em que vieram. A escritura pode ser comparada a uma lâmpada que

ilumina a verdade. Sua missão é espalhar a luz da verdade. Quando uma luz mais brilhante

aparece, extingue-se a missão da antiga. Todas as religiões de hoje falharam em conduzir a

presente geração do vale escuro da morte para o brilho da vida, de forma que deve agora

surgir uma nova verdade, que possa espalhar nova luz.

Muitas passagens da Bíblia dizem que novas palavras de verdade serão dadas à

humanidade nos “Últimos Dias”.

Qual será a missão da Nova Verdade? Sua missão será apresentar, sob um só tema

unificado, a verdade interna, que a religião tem buscado, e a verdade externa, procurada

pela ciência. Deve também procurar superar tanto a ignorância interna como a externa do

homem e oferecer-lhe o conhecimento interno e externo. Deve eliminar a contradição

interna do homem, que é receptivo tanto ao bem como ao mal, ajudando o homem decaído

a resistir ao caminho do mal e a alcançar a finalidade do bem. Para o homem decaído, o

conhecimento é a luz da vida e tem a força da revivificação; a ignorância é a sombra da

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morte e a causa da ruína. Nenhum sentimento ou emoção pode ser derivado da ignorância;

nenhum ato de vontade pode surgir da ignorância. Por isso, quando o conhecimento, a

emoção e a vontade não funcionam devidamente no homem, não vale mais a pena viver.

Já que o homem foi criado para ser incapaz de viver separado de Deus, como a vida

deve ser infeliz, quando ele se encontra na ignorância sobre Deus! Contudo, será que o

homem pode conhecer a Deus claramente, mesmo que diligentemente consulte a Bíblia?

Além disso, como poderá o homem vir a conhecer o coração de Deus? A Nova Verdade

deve ser capaz de nos informar sobre Deus como uma realidade. Deve também ser capaz

de revelar Seu coração e sentimento de alegria por ocasião da criação, Seu coração partido

e sentimento de dor ao lutar para salvar o homem decaído que se rebela contra Ele.

A história humana, tecida com vidas de homens que se inclinam tanto para o bem

como para o mal, está repleta de narrativas de lutas. Estas lutas têm sido batalhas externas

com respeito a propriedade, terras e homens. Hoje, porém, a luta externa está diminuindo.

Povos de nações diferentes vivem juntos sem racismo. Lutam pela realização de um

governo mundial. Os vencedores das guerras procuram libertar suas colônias, dando a elas

direitos iguais aos direitos dos grandes poderes. Relações internacionais, anteriormente

hostis e discordantes, são harmonizadas em tomo de problemas econômicos semelhantes,

ao moverem-se as nações para a formação de sistemas de mercado comum em todo o

mundo. Enquanto isso, a cultura está circulando livremente; o isolamento das nações está

sendo superado e a distância cultural entre o Oriente e o Ocidente está sendo interligada.

Resta, portanto, uma guerra final diante de nós, ou seja, a guerra entre as ideologias

da Democracia e do Comunismo. Estas ideologias em conflito interno estão agora em

preparação para outra guerra externa, estando ambos os lados equipados com armas

terríveis. As preparações externas são, na realidade, para a luta de uma guerra interna

(espiritual) final e decisiva. Quem haverá de triunfar? Todo aquele que acredita na

realidade de Deus responderá: a Democracia. Contudo, a democracia de hoje não está

equipada com uma teoria ou prática que seja suficientemente poderosa para conquistar o

Comunismo. Por isso, para que a providência da salvação de Deus seja completamente

realizada, a Nova Verdade deve levar toda a humanidade a um novo mundo de bem

absoluto, através da elevação do espiritualismo defendido no mundo democrático a uma

nova e mais alta dimensão, finalmente até mesmo assimilando o materialismo. Desta

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maneira, a verdade deve ser capaz de unir, em um só caminho absoluto, todas as religiões

existentes, como também todos os “ismos” e idéias que existiram desde o início da história

humana.

Algumas pessoas, de fato, se recusam mesmo a acreditar na religião. Não acreditam

porque não conhecem a realidade de Deus e do mundo futuro. Contudo, mesmo que usem

toda sua força para negar a realidade espiritual, é da natureza do homem aceitar e crer

naquilo que é provado de maneira científica. É também uma manifestação da natureza

inerente do homem sentir-se vazio, fútil e apreensivo consigo mesmo se tiver colocado a

finalidade máxima de sua vida no mundo externo das coisas diárias. Quando uma pessoa

passa a conhecer Deus através da Nova Verdade, compreende a realidade espiritual e

percebe que a finalidade fundamental da vida deve ser colocada não no mundo externo da

matéria, mas no mundo interno do espírito. Todos os que estão percorrendo este caminho

único haverão de encontrar-se um dia como irmãos e irmãs.

Já que toda a humanidade deverá encontrar-se desta maneira, como irmãos e irmãs,

num destino único por meio desta Verdade única, como seria o mundo fundado sobre esta

base? Seria o mundo em que toda a humanidade teria formado uma só grande família sob

Deus. A finalidade da verdade é buscar e alcançar o bem, e a origem do bem é o próprio

Deus. Por isso, o mundo realizado através desta verdade seria o mundo em que toda a

humanidade viveria em maravilhoso amor fraterno sob Deus como nosso Pai. Quando o

homem perceber que, ao fazer de seu próximo uma vítima para seu próprio benefício, o

sofrimento que lhe advém do remorso da consciência é maior do que as vantagens que

obtém de seu ganho injusto, descobrirá que lhe será impossível prejudicar seu próximo.

Por isso, quando o verdadeiro amor fraterno aparecer no fundo do coração do homem, ele

não poderá fazer nada que venha a causar sofrimento a seu próximo. Como isto se aplicaria

mais ainda a homens que vivessem em uma sociedade, na qual tivessem experiência do

sentimento real de que Deus é seu Pai, transcendente de tempo e espaço, que observa todas

as suas ações, e que este Pai quer que nós nos amemos uns aos outros a cada momento? O

novo mundo, que será estabelecido pela nova verdade, introduzirá uma nova idade em que

a história pecaminosa da humanidade será liquidada. Deverá ser um mundo no qual pecado

algum jamais poderá existir. Na história humana até agora, mesmo os que acreditam em

Deus cometeram pecados. Sua fé em Deus tem sido na forma de conceito, em vez de ser na

forma de uma experiência viva. Se o homem sentisse a presença de Deus e conhecesse a lei

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celeste de que os pecadores são mandados para o inferno, quem então ousaria cometer

pecado?

O mundo sem pecado poderia ser chamado de “Reino do Céu”, mundo este que

todos os homens decaídos há muito têm buscado. Sendo este mundo estabelecido como

realidade na Terra, poderá ser chamado de “Reino de Deus na Terra”.

Podemos assim chegar à conclusão de que a finalidade máxima da providência da

salvação de Deus é estabelecer o Reino de Deus na Terra. Já ficou claro, da exposição

anterior, que o homem caiu da graça e que a queda humana veio depois da criação do

homem. Do ponto de vista da realidade de Deus, torna-se evidente a resposta à questão

sobre que tipo de mundo Deus originalmente desejava na criação. Podemos aqui dizer,

contudo, que este mundo é o Reino de Deus na Terra, no qual a finalidade da criação de

Deus é realizada.

Por causa da queda, porém, a humanidade não tem sido capaz de realizar este

mundo. Ao invés, o homem produziu o mundo do pecado e caiu na ignorância. Por isso, o

homem decaído tem lutado incessantemente para restaurar o Reino de Deus na Terra, o

qual Deus originalmente desejava. Ele tem feito isto, superando a ignorância interna e

externa, para buscar o bem máximo no decurso de todos os períodos da história humana. A

história da humanidade, portanto, é a história da Providência de Deus na qual Ele pretende

restaurar o mundo em que a finalidade de Sua criação é realizada. Para restaurar o homem

decaído de volta ao seu devido estado original, a nova verdade deve ser capaz de revelar a

ele o seu destino final no curso da restauração, ensinando-lhe a finalidade original da

criação, para a qual Deus criou o homem e o universo. Muitas questões devem, pois, ser

respondidas.

Será que o homem caiu pelo ato de comer o fruto da Árvore da Ciência do Bem e

do Mal, como diz a Bíblia literalmente? Se assim não foi, qual é a causa da queda humana?

Como poderia o Deus de perfeição e beleza criar o homem com a possibilidade de cair?

Por que razão Deus não pôde impedir que o homem viesse a cair, já que Ele, sendo

onipotente e onisciente, devia saber que a queda viria a acontecer? Por que Deus não pôde

salvar o homem pecaminoso em um só instante, sendo Ele todo poderoso? Estas e muitas

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outras questões têm desassossegado a mente dos profundos pensadores e devem ser

resolvidas pela Nova Verdade.

Quando se observa a natureza científica do mundo pode-se concluir que Deus, o

criador, é a própria origem da ciência. Já que a história humana é a providência de Deus

para restaurar o mundo à sua finalidade original da criação, deve ser verdade que Deus, o

mestre de todas as leis, tem dirigido a história providencial com um plano e uma ordem.

Por isso, é nossa tarefa urgentíssima descobrir como foi que a história pecaminosa da

humanidade começou, que tipo de curso ela deve seguir, de que maneira será concluída e a

que tipo de mundo a Providência finalmente conduzirá a humanidade. A Nova Verdade,

pois, deve ser capaz de resolver todas as questões da vida. Com o esclarecimento de todas

estas questões, a realidade de Deus, como um ser absoluto que planeja e guia a história,

não pode ser negada. Quando a verdade for conhecida, todos virão a compreender que os

acontecimentos históricos que o homem viu e experimentou são as reflexões do coração de

Deus, lutando para salvar o homem decaído.

Além disto, a Nova Verdade deve ser capaz de estudar claramente todos os difíceis

problemas do Cristianismo, porque o Cristianismo tem um papel importante na formação

da esfera cultural mundial. As pessoas intelectuais não podem satisfazer-se apenas ouvindo

que Jesus Cristo é o filho de Deus e o Salvador da humanidade. Muitas controvérsias

surgiram nos círculos teológicos no sentido de entender o significado mais profundo das

doutrinas cristãs. Assim, a Nova Verdade deve ser capaz de esclarecer o relacionamento

entre Deus, Jesus e o homem, à vista do princípio da criação. Além disso, as difíceis

questões da Trindade devem ser esclarecidas. A questão sobre o motivo por que a salvação

da humanidade por Deus foi possível apenas através da crucifixão de Seu filho, deve ser

respondida. Quando vemos que nenhum pai pode jamais gerar um filho sem pecado, com

direito ao Reino do Céu, sem redenção por um salvador, não é isto boa prova de que os

pais ainda transmitem o pecado original a seus filhos, mesmo depois de seu próprio

renascimento em Cristo? Esta investigação conduz a mais uma pergunta: até que ponto

houve redenção pela cruz?

Tem sido vasto o número de cristãos, durante os 2000 anos de história cristã, que

tinham plena confiança de terem sido completamente salvos pelo sangue da crucifixão de

Jesus. No entanto, na realidade, nenhum indivíduo, lar ou sociedade foi estabelecido sem

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pecado. Na verdade, o espírito cristão tem estado na trilha do declínio dia após dia. Por

isso, restam muitos problemas difíceis, conduzindo a uma contradição central entre a atual

realidade do Cristianismo e a crença da redenção completa pelo resgate da cruz. A Nova

Verdade que buscamos deve explicar todas estas questões clara e completamente. Há mais

questões como: por que Cristo virá de novo? Quando, onde e como virá? De que maneira a

ressurreição dos homens decaídos será realizada? Qual é o sentido das profecias bíblicas

que dizem que o céu e a terra serão destruídos por fogo e outras calamidades naturais? A

Nova Verdade deve fornecer a chave de todos estes difíceis mistérios bíblicos, que estão

escritos em parábolas e símbolos e deve fazer isto em linguagem clara, de modo que cada

um possa entender, como Jesus disse em João 16.25.

Mediante estas respostas e somente mediante verdades claras, todas as

denominações serão unidas à medida que as divisões causadas por diferentes interpretações

das passagens bíblicas forem eliminadas.

Esta Nova Verdade, máxima e final, porém, não pode vir nem da pesquisa sintética

das escrituras ou da literatura, feita por algum homem, nem de cérebro humano algum.

Como diz a Bíblia: “Urge que ainda profetizes de novo a numerosas nações, povos, línguas

e reis” (Ap. 10.11). Esta Nova Verdade deve aparecer como uma revelação do próprio

Deus. Esta Nova Verdade já apareceu!

Com a plenitude do tempo, Deus enviou Seu mensageiro para resolver as questões

fundamentais da vida e do universo. Seu nome é Sun Myung Moon. Por muitas décadas ele

vagou em um vasto mundo espiritual à procura da verdade última. Neste caminho ele

suportou sofrimentos ainda não imaginados por pessoa alguma na história humana.

Somente Deus se lembrará disto. Sabendo que ninguém pode encontrar a verdade última

para salvar a humanidade sem passar pelas mais amargas provas, ele lutou sozinho contra

uma multidão de forças satânicas tanto no mundo espiritual como no mundo físico e,

finalmente, triunfou sobre todas elas. Desta maneira ele entrou em contato com muitos

santos no paraíso e com Jesus, revelando assim todos os segredos celestes mediante sua

comunhão com Deus.

O Princípio Divino revelado neste livro é apenas parte desta Nova Verdade. Nós

registramos aqui o que os discípulos de Sun Myung Moon até agora ouviram e

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testemunharam. Nós acreditamos com alegre expectativa que, com o passar do tempo,

partes mais profundas da verdade serão continuamente reveladas. É nossa oração mais

sincera que a luz da verdade rapidamente encha toda a Terra.

EM CONCLUSÃO

Sem nenhuma presunção sugerida pela falta de modéstia, acreditamos ter sido

mantido o compromisso inicial relativo à isenção. Isenção inspirada no respeito que quem

se comunica com o grande público deve a quem lhe concede a sua atenção; respeito que

supõe, igualmente, sinceridade e coragem. Assim, de quanto foi exposto até agora, em que

vamos terminando este esforço, e somente nós e Deus sabemos o quanto de sacrifício ele

representou para quem se abalançou a levá-lo a cabo, nas circunstâncias especialíssimas

em que o fizemos, queremos dizer que estamos convencidos desde há muito - quem

conhece a nossa obra que tem enfrentado, além das limitações pessoais, as que são

impostas muitas vezes por tantos dos que “falam de liberdade, mas para ocultar a malícia”

- sabe que nunca aceitamos que o Universo possa ser entendido como obra do acaso e da

necessidade. Que sempre nos pareceu mais razoável a aceitação da existência de algo

capaz de explicar-lhe a atividade e a harmonia, atividade que a tão conhecida “lei dos

contrários”, estabelecida em Filosofia marxista da Natureza, alicerce sobre o qual,

principalmente, foi erigida a cosmovisão do materialismo dialético, não pode explicar. Por

mais de uma vez, e desde há muitos anos, pareceu-nos que à idéia de oposição ou de luta,

que o materialismo dialético supunha existente, na verdade era superposta a uma realidade

que sugeria a concepção dual como, em exemplo simples, os eletrodos em um elemento

galvânico, que a nosso ver, como que cooperavam, não se opunham ou contrariavam.

Livros escritos, ou talvez, como outros desejariam, “perpetrados”, por nós, há décadas,

registravam o caráter a nosso ver, arbitrário, da interpretação que Engels daria acerca do

funcionamento do mesmo elemento galvânico. De outra parte, parece-nos bastante claro

que o preconceito e a intolerância, não apenas geram mal-estares e conflitos, como não

são, seguramente, as melhores disposições para que se possa entender o objeto da nossa

análise, a propósito de idéias eventualmente diferentes daquelas por nós conhecidas e

aceitas anteriormente. Assim, fica explicada a insistência das nossas referências, em

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palestras, artigos, livros, acerca de pensamento de Stuart Mill relativo ao fato de que o que

os homens fazem, depende do que eles pensam, a que nós sempre nos atrevemos a

acrescentar - “e do que eles sentem”. Da mesma maneira como sempre repetimos o que se

depreende do pensamento de Fulton Sheen, correlacionando a desordem que reina na

sociedade, com a que reina em nosso íntimo, de nós todos que a compomos. Também

julgamos indispensável declarar que, para nós, a fé é uma graça, não algo a que se chega

por intermédio de um silogismo; não nos consideramos gnósticos, mas compreendemos

que, nos dias de hoje, chegar a ela será mais fácil sobre a base de explicações que não se

nos afigurem ininteligíveis, ou que ao menos não estejam presentes em número

desnecessariamente elevado. Com Arnold Toynbee, e com tantos outros, entendemos ainda

que, sem uma revolução interior, de natureza filosófica e religiosa, capaz de mudar a

ordem das prioridades, de fato, dominantes - a despeito dos mantos com que procuram

esconder a sua verdadeira face, - podem mudar os métodos, os processos e as dimensões da

motivação de que elas se originam, mas não desaparecerão os sofrimentos e o caos

presentes em nossos dias e que, tudo indica, tendem a acentuar-se, no plano do que os

homens fazem desastradamente, como mariposas atraídas pela lâmpada cujo calor irá

mata-las. Exemplo claríssimo desse desatino, podemos ter na maneira, por vezes

grosseiramente intolerante, com que adeptos de diferentes correntes religiosas se atacam

uns aos outros. Às vezes, facções ou correntes de uma mesma religião. Quando se trata de

denominações cristãs, parecem incapazes de entender a explícita condenação que o

apóstolo Paulo faz, acerca de divisões, para ele motivadas por questões puramente

humanas. Nem a relevância que dá à caridade, como a mais importante das três virtudes

teologais. Em virtude do radicalismo intolerante, a ignorância, não humilde para

reconhecer-se como tal e, confundindo falhas humanas com erros doutrinários, encontra

pretexto para dar vazão a atitudes que não chega a perceber que desmentem a própria

essência do espírito cristão. Cumpre esclarecer que o vocábulo ignorância refere-se ao seu

sentido lato e não, apenas, à acepção em que ele é comumente empregado, de falta ou

insuficiência de escolaridade.

Por outro lado, ao transcrever, na íntegra, o “resumé” do “Princípio Divino”, que

compendia, como já dissemos, o que até agora foi ensinado pelo Rev. Dr. Sun Myung

Moon, fizemo-lo por considerar a Igreja do Espírito Santo para a Unificação do

Cristianismo Mundial, algo baseado em afirmações que a distinguem, nitidamente, do

Catolicismo Romano, como do Catolicismo Ortodoxo, bem como das denominações

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protestantes e do pentecostalismo em geral, protestante ou relativo à chamada Renovação

Carismática Católica. De resto, diferencia-se também, em muitos aspectos, de outras

grandes religiões, fora do campo do Cristianismo.

O fundador da Igreja da Unificação, cumpre informar, a despeito de oriental,

coreano como é, do ponto de vista confessional, foi, como seus pais anteriormente

convertidos, cristão Presbiteriano.

O “Princípio Divino”, embora não sejamos o melhor juiz para julgar, revela a

preocupação de quem o ditou, de conciliar, visando a unificação do Cristianismo,

diferenças até aqui tidas como insuperáveis, por intermédio de reinterpretação de

determinadas passagens do Antigo, como do Novo Testamento - além de conceitos novos

fundados, segundo quem se anuncia como o Messias do 2o Advento - em revelações que

lhe teriam sido feitas ao longo de uma vida de orações, devoção e sacrifícios. De nossa

parte, queremos dizer que, no conjunto, pareceram-nos os objetivos enunciados, e a

argumentação desenvolvida, os mais inteligíveis dentre quantos, de mesma natureza,

conhecemos. A própria hipótese da adulteração da linhagem humana, que figura no texto

completo do “Princípio Divino”, como conseqüência de conjugação sexual entre Lúcifer,

simbolizado na Serpente, e Eva; conjugação realizada, não com base no amor, como o

concebera Deus, mas na lascívia, parecerá menos absurda quando nos lembremos dos

relatos do medievo, referentes a íncubos e súcubos, sobretudo os segundos, tão conhecidos

e divulgados como “Pombas-Giras”, que se fariam presentes em locais de cultos afro-

brasileiros.

Entretanto, reconhecendo a nossa dupla insignificância, em qualidades espirituais e

em conhecimentos teológicos, e admitindo que a fé sobrenatural não pode ser,

inevitavelmente, conquistada, mas é uma graça a ser buscada também na misericórdia de

Deus, acreditamos já ter dito, com franqueza, lealdade e respeito aos que lerem este livro,

tudo quanto, neste instante em que damos por encerrado o seu texto, podemos dizer com

segurança1.

Que aquela misericórdia possa vir em socorro da luta está presente, no nosso, como

no íntimo de todos os seres humanos, como esteve no íntimo do próprio apóstolo Paulo,

1. Por dever de consciência e respeito aos leitores, devemos acrescentar que a segurança assinalada resultou da leitura do “PrincípioDivino” o qual, a nosso juízo, enfrenta e projeta intensa luz sobre pontos nodais de dúvidas que têm alimentado divergências, que,certamente, não são prazerosas para a fonte de todo o amor. Lemos, também, atentamente, sobre os referidos pontos, as opiniões

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segundo o seu lamento, registrado nas Escrituras. Luta da qual são projeções, ampliadas, os

conflitos e violências que tanta dor têm trazido à humanidade.

E que Deus nos proteja a todos.

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ÍNDICE

Prefácio................................................................................................. 2Agradecimentos.................................................................................... 3Esclarecimento Indispensável.............................................................. 4

I – PARTEA DEGRADAÇÃO QUE ESTÁ EM MARCHA

Aparências epidérmicas e motivações profundas................................. 7I.1 – A balbúrdia que torna possíveis perigosas manipulações............ 7I.2 – As motivações profundas............................................................. 18I.3 – Aprofundando, ainda mais, o mergulho...................................... 34I.4 – Ordenando idéias, para prosseguir............................................... 76I.5 – Começando a usar uma lente “ zoom”..................................... 84I.6 – Esclarecendo o entendimento que temos acerca de expressões

apenas mencionadas..................................................................... 99I.7 – A Ciência atual e a questão da cognoscibilidade da realidade..... 122Intervalo entre as I e II Partes............................................................. 149

II – PARTEA RESTAURAÇÃO, POSSÍVEL, DA JUSTIÇA E DA PAZ 161

II.1 – As contribuições da Ciência e da Religião................................. 161II.1.a – O caminho pelo “Rearmamento Moral”.................................. 172II.1.b – O caminho da Igreja Católica Apostólica Romana................. 176II.1.c – A Reforma, o Pentecostalismo e outras influências menores.. 182II.1.d – A Igreja do Espírito Santo para a Unificação do Cristianismo

Mundial.................................................................................... 189INTRODUÇÃO GERAL..................................................................... 196EM CONCLUSÃO.............................................................................. 209